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MICHEL FOUCA ULT

Sôbre a Arqueologia

FOUCAULT. Mi chel ( 197 1) Sobre a arqueologia das ciencias. Resposta ao

cir\~ulo epistemológico. Em : Estruturali smo e teoria da linguagem p.19-55,
VOZES. Petrópoli s.
®
6.
das Ciências
Resposta ao Círculo Epistemológico

Perguntas a Michel foucaul!

NÃO HOUVE outro dese jo nas questões que são aqui

colocadas ao Autor de Hisfoire de la Palie, de NalsSante de la Cli-
nique e de tes Mais e! les Chases senão o de lhe pedir que enunciasse,
sObre sua teoria e ~ implicações de seu método, preposições críticas
que fundam sua possibiUdade •._o interêsse do Círcul o levou a pedir-
MUSEU N.A C ~CNA L lhe que definisse SUilS respostas em relação ao estatuto da ciência,
OEP; O[ A~ r::--'C:-',: L OGIA de sua história e de seu conceito.
f:3 1 8L iO~ L~A

,..." !lEG. x--. Gl-' Da epls!eme e da rutura epistemológica

A noção de futura epistemológica serve, desde a obra de Ba-
chelard, para designar a descontinuidade que a fil osofia e a história
das ciências crêem marcar entre o nascimento .de qualquer ciência
e o "tecido de erros positivos, tenazes, solidários" retrospectiva-
mente reconhecido como a precedente. Os exemplos tópicos de Ga-
Iileu, Newton, de Lavoisier, mas, também, d,e Einstei n c Mendél~eff,
ilustram a perpetuação horizontal dessa ruptura.
O a:ptor de tt! Mots d r,..! · Chosts marca uma .descontinuidade
vertica·j entre· a conf~r..ãb. epis~êmica de uma época e a seguinte.
fiI
9

•
 I
! I
I
I
I
I
Perguntamos· lhe : quais as relações que mantém entre 51 esta
horizontalidade e esta verticalidade. I
~ . periodjz3~âo arqueolócica dclirnit:t no continuo conjuntos sin-
crUnlres, reunindo os saberes na forma de sistemas unitários. Ela
ar13j:!3 30 mesmo tempo a diferença Que, ao~ olhus uc Baclu la rd
scpar.J a todo instõlnle os d iscu rsos cientificos d os outros e alrihuin~
do ;:). (,:lda um suas ternJl9ralidadcs especific3S, faz de su~ sim ult;J.-
r
neidade e de sua sol idaricdad ~ U~~~CTê,t~~ de sur~
. ~~rgu.nta m~ls se ~ .1rque'~ltlj::'o quer essa supressão, ou se quer, ai.
dlstlngult dOIS rClZlstros, tllcrarquizauos nu 1\50.
Se é verdHde que se oMém um;! configuração episH!mica p or arti.
culação de traços pertinentes escol hidos em um conjunto de enuncia-
dos, p~rguntam os-l he:
- o que j!overna a .seleção e justifica pOI" -exemplo, a segu inte
fran~e: "Seuls ~CIIX qUI ne s"ve~t pas !ire s'étonneront que je I'ai
appns plus c1alrement chez CU\'ler. chez Bopp, chez Ricardo que
chez Kant ou Hel!el" (In Mais d les Chosfs. p. 318)1
- o que valida a configuração obtida?
- tem sentido pergunt .. r o que define uma tpisteme em geral?
Perguntamos-lhe mais : deve a arqueologia conhecer um conceito
d~ ci~ncia? um conceito da ciencia que não esteja esgotado pela
dIVerSIdade de suas formas ('figures') histôricas?
l.
Da leitura
QuaJ o uso da letra que a arqueologia supõe? Isto é: que opera~óes
praticar sóbre um enunciado para decifrar, através do que diz suas
condições de possibilidade e assegurar-se de que se atingiu ~ não-
pensado que, fora dêle, nêle, O suscita e sistematiza?
I Reronduz::- um discurso a seu impensado torna vão dar-lhe as
estruturas internas e recompor-lhe o funcionamento autônomo? Que
relação fazer entre estas duas sistematizações concorrentes? Há uma
"a rqueologia das doutrinas filosó fi cas" a opor à tecnologia dos siste-
mas filosóficos, tal como a pratica Martial Gueroull?
O exemplo de Descartes poderia ter, aqui, valor discriminante
(Histoirt de la FoJie, pp. 54-~7).
• Tenta- 5~ retomar nesta qucstlo a p""l:"em 5el:"ulnle do arlh!;o de O.
~ .n l:"uilhern cO"5'l:"r.d • • 0 Ih'ro de M. Fouuull (C rll.qfl~, n· 242, P:r,. 612-3 ) :
1 ralando·5t de um ~Gtttr I~órleo, ~ p05Slvc l p~n s., na upeciliclda e de s eu
conceito !Cm r tl er~nCII a qu alquer norm. 1 Enlre os d ;~ ctHSO ~ teóricos con-
sider.dos ~o n'orm u .0 sillema eplsUmlco dos stculos XVII t XVII! . alguns,
Como a hl5tória n"ural. loram relfRados pel. ,,,i., ftmt do 8cculo XIX. mas
alr; un s OUITOS loram InleRrados. Apesar de ler fiuvldo de m od ~l o aos IIslolo·
f! iSlas da tconomi. anim aI durante o .tcuto XVIII a 1151ca de Nt'Wl nn 11.10
caminhou com ell . tiuflon t refutldo por Dlrwln: se nln o ~ por ellen ne
Geollroy S,lrt- Hillire. Mas Newton nl0 ~ mlls relulldo por Elnsltin do que
por Muwtll. Darwln nlo ~ relulado por Mendel e More'" . A ,ucusto O.IUel/,
Newton., ElnSlein 11.10 apresent. ruptura s semelhantes h que se utahclectm
11.1 .uceulo Tourntlorl, Uneu, EnCler em slsumille. boU.nlca ."
10
ao~
Da doxologia
Como definir a relaç-ã o que articula a confi~uração epistêmica
conflitos de opini5.o que ~;e de ~e nrolam em s ua superfície?
O nivel das opiniôes só tem propriedades negativrs.: desordem,
sepa ração, dependência?
() sistema de o piniôes que define um élutor não pode obedece:' a
um:l lei prúpria. de tal ~o rte que se poderiam estabelece r re;!rns
que gove rnem em uma rpistemr a variedade dos sistema~ doxolúgit us,
n pre~ença d~ tal opini5.o implicando ou excluindo tal outra no in·
teri ~ r de um mesmo sistema?
Por que é necessâ'rio que a rel::lção entre os sistemas de opiniões
tome sempre a fo rma de conflito?
Das formas de transição
Nas formas de transição que asseguram a pass agem de uma gr;;,nde
conf iguração a outra, o capítul o VI, parte IlJ , de les Mols el les
Choses, explica Que se, no caso da história natural e da gramittica
geral, "Ia mutation s'est faite brusquement, ... en revanche le mode
d'être de la monnaie et de la richesse, paree qu'il était Iié à toute
une praxis, à tout un ensemble institutionnel, avait um indicí! de
v iscosité h.istoriQue beaucoup plus élevé" (p. 192 e 218).
Perguntamos de que teoria a possibilidade em gera! de uma tal
viscosidade pode ser o objeto?
De Que maneira e segundo Que relações (causalidade, correspon-
.... d~ncia, etc.) uma forma de transição pode ser determinad:; por tal
viscosidade?
As descontinuida des que se estabelecem entre con figura ções que
se s ucedem são tOdas, de direito, do mesmo tipo?
O::~!! 31 é o molar que transforma uma configuração em outn:? O
principio da arqueologia quer a redução desta Questão?
Da hisloricidade e da finilude
Perguntamos a o Aut or de Hisloire de la Folie, de Naissance de la
Clinique e de les Mols cI Jes Choses como definiria o ponto de onde
pode levantar a terra epistêmica. Quando êle afirma Que para falar
da loucura uma "Ian gage sans appui était nécessai re" (p. X) , Que
na clínica algo começa a mudar hoje, ou simplesmente que o "I in de
l'h omme est prochaine", que estatuto conferiria a ésse pronlmcia-
mento mesmo?
Pode, lHe hoj e, situar sua própria configu ra ção?
Se se chamasse historicidade de um autor o tato de que pertença
à cpisleme de sua época, e "finitude" o nome Que uma época -
notadamente a nossa - daria a seus próprios Iimitrs, que relações
11
 I
l, ou não-relações manteriam, segundo êle. essa hist oriridade e essa
finitude?
Actitariól que um:!. alternativa lhe fO sse proposta. entre um histo--
rici!'mo radical (a :l.Tqucologia poderia predize r su a própria reins-
i crição em um n6v('t di!'cu rso) e uma espécie :te saber absoluto (do
qual algu ns autõrc,!': pode riam tc r o pressentimento independente-
mente das reslr ições epistcrnicas)?
o Ci r\CUlO DF. EPISTEMOLOGIA
RESPOSTA AO CiRCULO DE F.PI STEMOLOGlA
i I. A História e a descontinuidade
I ~.gm
Um cur ioso entrecruzamento. Há dezenas de anos que a
I
I
atenção dos his.to riadores se voltou preferencialmente para
os períodos .1ong~~: Era como se, debaixo da~; peripécias
políticas e de seus episódios, buscassem revelar o:) eq uilíbrios
estáveis e difíceis de romp er, os processos insensíveis, as
I I: regulações constantes, os fenômenos tendenciais que ..culmi-.:.-. _ _
I nam e se invertem após continuidades seculare3, os movi-
mentos de acumulação e as saturações lentas, as g randes
I bases imóveis e mudas que o emaranhado da:; narrativas
tradicionais recobria com um a camada de acon tecimentos.
Para conduzir essa análise, os historiadores di:;punham de
..,- -. ~
instrumentos que, em parte, moldaram e em partt receb eram :
.. mod elos de crescimento econômico, análise quantitativa d os
fluxos de trocas, perfis dos dese nvolviment os e das reg ressões
demográficas, estudo das oscilações do cjima. tstes instru~
mentas permitiram-lhes distinguir, no ca mpo da história , ca-
madas sedimentares diversas; as sucessões lin e~ res, que ti-
nham sido até então o obj eto da pesquisa, foram substituídas
por um jôgo de disjunções em profu ndidode. Da mob ilidade
políticas às lenti dões próp rias da «civilizaçãn materiab, os
ní veis de aná lise se multiplicaram; cada um t,=,m s uas ruptu-
ras específicasí eada 11m compo rta um rceorle que s6 a ~ Ie
pertence; e, ã medida que se desce.: cm direção às camadas
mais profu ndas, as esca nsões se fazem cada vez maion:s. A
velha questão da história (que ligação estabelecer :,!!!-e..!ÇQ!!-
12
- --- -- ----------
-
"
lecimcntos dcscontínu os?) é substituída de agora em diant~
por um jõgo de interrogações difíceis: que estratos é preciso
isolar uns ~1os out ros? Que tipo e que critério de periodização
é preciso adota r pa ra cada um dêles? Que sistema de relaçõcs
(hie rarquia , dom inância, disposi~ão horizontal, determinação
unívoca, ca usalidade circular) pode-se observar entre um e
outro?
Ora, mais ou menos na mesma época, nas disciplinas que
se chamam histó ria das idêias, das ci~ncias, da filosofia, do
pensa mento, e tamb ém da literatura (sua especificidade pode
ser negligenciada por um instante), nas disciplinas que,
apesar de seu título, escapam em g randE' parte ao trabalho
do historiador e a seus métodos, a atenção se deslocou, ao
...cuntrário, das vastas unidades ~ue formam «época> ou «sé-
direçao ':..~ ~nô menos "de ruptllrâ."sõb as grand~
co ntinuidades do pensamento, sõb as mãtrWestações maciças
..,.
e homogêneas do espí rito, sob o realizar-se obstinado de uma
' ciência que luta para existir e para se re?liiar _~
çomf~, procura-se •. agora, detecta r a 1ríêídência das interrup...7
/1 çõcs. G. B~ch ~).ard delimitou limiares epistemológicos que
rompem o acúmulo- indefinido dos conht:cimentos; M. Gue-
TOU U descreveu sis temas fechados, arqu iteturas conceituais
;.• fechadas que escandem o espaço do discurso filosófico; G.
Canguilhem analisou as mutações, os deslocamentos, as trans...
formações no campo de validade e regras de uso dos con-
ceitos. Quanto à análise literária, é a estrutura interna da
ob ra - menos ainda: do texto - qu e ela interroga.
Mas que êsse entrecruzamento não iluda. Não se deve ima-
gi nar, confiando na aparência, qu e algumas das disciplinas
hi stóricas cami nh a ram do contínuo ao descontínuo, enquanto
que as outras - para dizer a verdad e: a história toul court:
caminhariam do formigamento das descontinuidades às
grandes unid ades ininterruptas _ De fo to, é a noção de dfl!- .,/
continuidade que mud ou de estatuto. P3ra a história, sob
sua forma c1asslca J o descontínuo era ao mesmo tempo o
dado e o impensável: o que se oferecia sob a forma dos acon-
tecime ntos, das instituições, das idéias ou das práticas dis-
persas; e o que devia ser, pelo discurso ,jo historiador, con-
to rnad o, reduzido, apagado, para que aparecesse a continui-
dade dos encadeame ntos_ A descontinui dade era o estigma / '
13
 I
,
f
(
~ da dispersão temporal que o historiador tinhar por tarefa
suprimir da história" ~Ia ~e ~o.rnou agora Um lIos elementos
fundamentais da ~n~h~e. ~ls tOTlCa. Ela aparece &Qh um triplo
papel. Ela constitui ml c l ~J me nte uma OprT;JC;fio deliberada
do historiador ( e não mais o que recebe mulJ:ré lI/i do ma-
tcrial que tem par a tratar) , pois ,êle dev,e, ~l' 11 1 IJU' II' I!' a titulo
d r hipú l(,~t.' sistl' llI .:lt ica ,. di~ tin~\llr (l.~ nlV l' ! ', 1 " '~: ', i vl ' i s de sua
.1núlisc C fi xa r :J.S pc n ocil zaço('s .q~II:· IIh". (" !l Vi' ln . Ela ê,
tambêm, o res ulta do de ~ ua dcscn ç;.1O .(~. , ";11, "'~Ii '. o que s e
deve eliminar sob o cf c l~ o . de sua 3nahsl'" "'IH. (I que êle
I !
I
husca descobrir são o~ ilm.ltcs d: um prtJtI .... :.; 'J, I, ponto de
inflexão de uma curva, a \Ilvcrsao de UIII 1I1'J'lhlJ l: nto~ reãu-
lador, os limites de uma osc ilaç ã ~ , o Iimi.;n fi , UI/) 1un cio~a­
i i mento, a emergê ncia de um mecanl.: ;i 11l0, .0 111~ , I;lI l t .~ 11': distúrbi o
de uma causalidade circular. . ~la e, C~fln.l, Un, ( 'IIH.:!'ito que o
,I trabalho não cessa de especIficar : ~ao (: rn;m fI '/azio puro
I " e uniforme que separa com uma Ulll ca e IJlf't.l fliJ Jit c.una dua s
figuras positivas ; ela ~ o~la uma .iorma I ' U'M: função dife-
rentes segundo o domlnJo e o nlvel aos {.U:'I ~ íJ aplicamos.
Noção que não deixa de ser ha::;ita~te píJr~l').tncal. já que é,
1.: ao mesmo ' tempo, instrumento .e oh] eto 4: t,t!l>~f1J~a, já que
delimita o campo de uma a"âh,e de q.. , [ " >" eíto; já que
permite individualizar os donllnJos, ~~t_ . !~ .... "-,r,
se pode
estabelecer senão por sua comparaçao './ J" 1"11' não rompe
unidades senão para es tabelecer novas; ]" 4'* t\Ulnde séries
e desdobra níveis; e já que, afinal de .conta.\. ti;, hão é sim-
pl esmente um conceito prt:5~nte. no dlS('U'~, dt , historiador,
mas que êste, em segrêdo, ~ supoe : de or~~ t1te f.Y4eria falar,
·- ~.l na verdade , senão a partir dessa rupauI;'. ~ 1l "'IE~' oferece
como objeto a história - e ::;iua própriJ: ;utt/lf'lft ....
Poder-se-ia dizer, de .uma forma esqUt-'~. tfl{.;; . ' lue a his -
tória e, de uma maneira geral , as 0 ..:,..0 ' ~.1f'l;C . históricas,
cessaram de ser a recons titui ção dos eW.:"ft:.rr.-.,." )S (situa-
dos ) além das sucessôes a pa~cntcs ,; .ela·" ! /!:t': ' ~ ~. de agora
em diante o acionamento sls tematlClJ ';', Ii"" ~''''',i, t ínuo. A
grande mutação que as m a r ca ra~ \ c ~ ' .. , .<, (" 0:: não é a
extensão de seuS dominios em dlrcça(1 ;. ~' '' f:S ' . .1" 1"11 1 econô-
micos qu e conhecem há muit() t~mpo; U .'" ~if":1rOUCO , a
inteKraç~o dos fenômenos i~e(J16glcos, C;c '''' :1-"'. d e pensa-
mento, dos tipos de mentahdade : o st-u. :. / :/ :-' as havia
14
an ali sado. E', antes, a tran s formação do descontínuo: sua
passagem do obstáculo à prática; esta interiorização do dis-
curso do his to riador que lhe permitiu não ser mais a fatali-
dade exterior que é ~' reciso reduzir, mas o conceito operatório
que se utilizai esta inversão de s ignos raças à qual não é
\t !!lais o negativo da leitura 1 Ica (seu avesso, seu fra-
\\~ \. .: cass-o,-o-rmrtte de se u poder) , mas o elemento pos itivo que
t(l·r . ~~/'Ç d ete rmina se u ob jeto c va lid2 suaanál ise. E' precIso aceitar
~ ".p ....:.~~.. ..•. compreender o que se torn oua hi stória no trabalho· real dos
-r,. \1 l ' , his to riadores ; IJID..-Cc.rto ~QJeglllado da descontiQ!lidade para.
; ~.,~ ,.,.""o,/~. a anális ~~_ ~éries temporais.
jt ;:~'r ,,,J-If, Compreende-se qu e muit os tenham permanecido cegos em
' ..... "{ relação a êsse fat o que nos é contemporâneo apesar de o
.. ,. . . saber histórico já testemunhá -lo h á quase meio século. Se a
his tória , na verdad e, p odia continuar sendo a ligação das
continuidad es ininterruptas, ~e ela ligava, s em cessar, enca-
dea mentos que nenhuma an álise desfaria sem abstração, se
tramava , em tômo dos homens, de suas palavras e de seus
ges tos, obscuras sínteses sempre prestes a se reconstituírem.
então seria ela... para a consciência um abrigo priviJegiado: o
que a história retira dela mostrando determinações materiais,
práticas in ertes, processos inconscientes, intenções esqueci-
das no mutismo das instituições e das coisas, restituir-Ihe-á
sob a to"rma de uma síntese espontânea. Ou, antes, permitir...
lhe-ia melhor se reassenhorear da história, apossar-se nova-
mente de todos os fios que lhe tinham escapado. reanimar
tôdas essas atividades mortas e tornar-se, sob uma luz nova
ou ressurgida, seu as sunto soberano. A história contínua é
o correlato da cons ciência : a garantia de que o que lhe es-
capa poderá ser-lhe ' devolvici o; a promessa de que poderá,
um dia, apropriar-se de nôvo de tôdas as coisas que a cercam
e a fazem pender, de sôbre ~las restaurar seu contrõle e de
encontrar nelas o que é preciso chamar - deixando à palao:
vra tudo que ela tem de sobrecarga - sua morada. Querer
fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da
consciência humana o as~un to originário de qualquer saber
e de qualquer prática sã o as duas faces de um mesmo sistema
d e pensamento. O tempo é, aí, concebido em têrmos de to-
talização e a revolução ~, sempre, apenas ' uma tomada de
consciência.
15
1
 II Quando, desde o inicio d~ste século, 3S pesquisas psicana-
Iiticas, lingüísticas c, em seguida. as etnológicas, despiram
! o ~ujcilo dJ~ leis dt seu desejo, da s formas de sua palavra,
da s regra!' de ~ua ação c dos sistemas. de se us discursos,
míticos, aquêlcs qUI ent re nós, se di spuseram a proteger a
i
I
tradição histll riográ fica não cessaram de responder: sim, mas
a história .....\ hi s tória que não e estrutura mas devir; que
não e simultaneidade mas sucessão; que não é sistema, mas
I pratica; que não é forma , mas csfôrçfJ incessante de uma
consci~nciJ. que se rctoma a si mesma tentando reassenho-
I rea r-se de si mesmo até o mais profundo de suas condições;
I
I a histôria que não é descontinuidade mas longa paciência
I ininterrupta. 1\-\.1 5 para cantar esta litania da contestação,
I se ria necessário uc!;viar o olhar do trabalho dos historiado-
re s : recusa r-se a Vl r o que se passa atualmente em sua prá-
j tica e em seu discurso; fechar os olhos à grande mutação
de sua disciplina; permanecer obstinadamente cego ao fato
de que a história talvez não seja, para a soberania da cons-
ciência, um lugar melhor abrigado, menos arriscado que os
mitos, a linguagem ou a sexualidade; em resumo, seria ne-
cessário reconstitui:, como medida de salvação, uma história
como não se faz mais. E, no caso em que essa história não
oferecesse segurança bastante, é ao devir do pensamento,
dos conhecimentos, do saber, é ao devir de uma consciência
sempre próxima d ·~ la mesma, indefinidamente ligada a seu
passado, e presentt ~ em todos os seus momentos, que se pe-
diria para salvar o que deveria ser salvo: quem ousaria ·
privar o sujeito de sua própria história? Clamar-se-ia, então,
que a história tinha sido assassinada cada vez que em uma
análise histórica (c, sobretudo, se se trata do conhecimento),
o uso da descontinuidade se tornasse demasiado visível. Mas
não há necessidade de engano: o que se lastima tão grave-
mente não c a supressão da história, é o desaparecimento
dessa forma de história que era secretamente - mas intei-
ramente-referida à atividade sintética do sujeito. Acumula-
ram-se todos os tesouros de outrora na velha cidadela desta
história; nós a julgávamos sólida porque a havíamos sacra-
Iizado e porque eld era o último lugar do pensamento antro-
pológico. Mas há muito tempo que os historiadores partiram
para trabalhar em ourtas áreas. Não é mais preciso contar
16
com êlcs para guardar os privilégios, nem para reatirmar
mais uma vez - ainda que tenhamos grande necessidade
disso na angústia de hoje - que a história, pelo menos da,
i: yiva c continua.
2. O campú dos acontecimentos discursivos
Se se quer aplicar sistemil ticamcnte (isto é, definir, utilizar
de uma maneira tã o geral quanto possível e validar) o con-
c~ i to de descontinuidade a êsses domínios, tão incertos quanto
à suas front<:iras, tão indecisos em seu conteúdo, que se
chama história das idéias, ou do pensamento, ou das ciências,
ou dos conhecimentos) encontra-se um certo número de
problemas.
Antes de mais nada, tarefas negativas. E' preciso se li-
bertar de todo um jôgo de noções que estão ligadas ao pos-
tulado de continuidade. Sem dúvida, elas não têm uma estru-
tura conceitcal muito rigorosa, mas sua função é muito
precisa. Como a noção de tradição, que permite ao mesmo
tempo delimitar - qualquer""novidade a partir de um sistema
de coordenadas permanentes e de dar um estatuto a um
conjunto de fenômenos constantes. Como a noção de influên-
cia, que dá um suporte - antes mágico que substanCía)-~
aos fatos de transmissão e de comunicação. Como a noção
de d ~~e n yo lvj.!"ento, que permite descrever uma sucessão de
acontecimentos como sendo a manifestação de um único e
mes mo princípio organizador. Como a noção, sL~~trica e
inversa, de k1eologia ou de evolução em direção a um estágio
normativo. Como, ainda, as noções de mentalidade ou de
i e~.í rito de uma época que permitem estabelecer entre fenô-
" menos simultâneos ou sucessivos uma comunidade de sentido,
de laços simo6lícos, um jôgo de semelhanças e de espelhos.
( ( E' preciso abandonar essas sínteses já feitas, êsses agrupa-
\' . I' mentos que ~. e admitem antes de qualquer exame, êsses laços
\\'. !\~ I cuja validad€: é admitida ao inicio do jOgo; destruir as formas
I c as -fôrças obscuras pelas quais temos o hábito de ligar
. , ent re si os pensamentos dos homens e seus discursos; aceitar
I q~~':iA EU trata; -em....p!imeira instância, de um conjunto de
, .à.contecimentos dispersá$.. /'
EstruturaUlmo e Teorl •.. . - 2
17

, 1
•
~ t
l'ão é preciso, tampoucu, tomar como válidos os recortes
l «d~coupag t!s .) ou grupamentos com que estamos familia-
rizéldos. N.lQ se pode ad mit ir estritamente nem a distinção
dos grandes tipos de discu rso Ilem a das formas ou dos gê-
neros (ci~nci.1, lil~ratura. filosofia, religião, história, ficções,
etc.) . As razôcs saltam aos olhos. Nós próprios não es tam os
('~rtos do uso des tas distin ções no mun do do discurso que é
., I) nosso. Com mais forte razão quando se trata de analisar
co njuntos de ~Ilunciados que eram distribuídos, repartidos e
caracterizados de maneira inteiramente diferente: afinal, a
.dileral ura » e a «politicall sâo categorias recentes que não
se podcm aplicar à cultura medi eval ou, mesmo, à cultura
clássica a não ser por uma hipótese retrospectiva e por um
jõgo de analogias novas ou de semelhanças se mânticas: mas,
nem a literatura, nem a política, nem, por conseguinte, a
filosofia c as ciências articulariam o campo do discurso, no
século XVIl ou XVIII como o articularam no século XIX.
De qualquer forma, é preciso ter-se consciência de que êsses
reco rtes (cdécoupages_) - quer se trate dos que admitimos.
ou dos que são contemporâneos dos discursos estudados -
são sempre, êles próprios, categorias reflexivas. p"rincípios
de classificação. regras normativas, tipos institucionálizados:
são, por sua vez, fatos de discurso que merecem ser anali-
sados ao lado dos outros que tem, com éles, certamente,
relações complexas, mas que não tem caracteres intrínsecos
autóctones e universalmente, reconhecíveis.
Mas as unidades que. sobretudo, é preciso pôr em sus-
penso são as que se impõem da forma mais imediata: as do
livro e da obra. Aparentemente, não se pode apagá-Ias sem
um artifício extremo: elas são dadas da forma mais certa, seja
por uma individualização material (um livro é uma coisa que
ocupa um espaço determinado, que tcm seu valor econômico
e que marca, cm si mesmo, por um certo número, os limites
de seu coméço e de seu fim), seja por uma relação assinalávcl
(mesmo que, em certos casos, seja bastanle problemá.tico)
(:nl re discursos e o individuo quc os proferiu. Entretan to.
desde qUe se olhe um pouco mais de perto, as dificuldades
começam. Não são menores que as t!,I1contradas pelo lingüista
quando quer definir a unidade da frase ou pdo historiador
quando quer definir a unidade da literatura ou da ciência. A
18
'.
.. -
,,
......-
-~
unidade do livro não é, inicialmente, urna unidade homogênea:
a relação que existe entre diferentes tratados de matemática
não é a mesma que a que existe entre diferentes textos filc··
só ticos ; a diferença entre um romance de Stendhal e um
romance de Dostoievski não é passivel de ser superposta à
que separa dois romances da Comédia Humana, e esta. por
s ua vez, não e passível de ser superposta à que separa
Ulisses de Dédalus. Mas, além disso. os Jimites de um livro
não são claros nem rigorosamente traçados : nenhum livro
pode existir por si mesmOj está sempre numa relação de I
apoio e de dependência em relação aos outros; é um ponto
em uma rêde ; comporta um sistema de indicações que reme...
tem - expl1citamente ou não - a outros livros, ou a outros -
textos, ou a outras frases. E, conforme se trate de um livro
de fisica, de uma antologia de discursos polilicos ou de um
romance de antecipação, a estrutura dêsse remetimento e,
por consegüinte. o sistema complexo de autonomia e de
heteronomia, não será o mesmo. E' inútil dar-se o livro como
objeto que se tem sob a mão; é inútil encar9uilhâ-lo n~se .
pequeno paralelepípedo que o encerra; sua uRldade é vanâ--
vel e relativa: ela não se constrói, não se indica e. por con...
segUinte, ela não se pode descrever senão a partir de um
~!"po de di&c~ · ., --- .
Quanto ã obra, os problemas que levanta são ainda mais
difíceis. Aparentemente, trata·se da soma dos textos que
podem ser denotados pelo signo de um nome próprio. Ora,
essa denotação (mesmo se se deixam de lado os problemas
da atribuição) não é uma função homogênea: um nome
de autor não denota da mesma forma um texto que ele
próprio publicou sob seu nome, um outro que publicou sob
pseudônimo, um outro que se teria encontrado depois de
sua morte em estado de esbOço, ainda um outro que não
passa de um rascunho. uma caderneta de notas. um cpapeb.
A constituição de uma obra completa ou de um opus supõe
um certo número de escolhas teóricas que não é fácil nem
justificar nem mesmo formular: basta adicionar aos textos
publicados pelo autor os que êle projetava enviar par~ im-
pressão e que permaneceram inacabados apenas em virtude
da morte? E' preciso. também, integrar tudo que é rascunho,
desejo inicial, correções e rasuras das obras? E' preciso adi- .
2· 19
 .\
•
cionar os esquemas abandonados? E que estatuto dar às
cartas, às notas, às conversações relacionadas, aos propósitos
• transcritos pelos auditores, enfim, a essa imensa multidão
de traços verbais que um indivíduo deixa em tôrno de si no
momenfo-- de"-sua morte, que falam em um entrecruzamento
. in~~_f~ido tantas Iin~~gens diferentes ~ ~e:!l]andarão sécu1m;,
rnilênios- t;~) y cz , antes dc_s.e_ apaga!em? Em qualquer caso. a
denotação de um texto pelo nome Ma llarmé sem dúvida não
I
I
é do m c~ mo tipo se se trata de temas inglêses, das traduções
de Edgar Poe, dos poemas ou das respostas a pesquisas. Da
mesma maneira, não é a mesma relação que existe entre o
,I nome de Nielzsche de um lado e de outro lado as autobio-
I grafias da juventude, as dissertações escolares, os artigos
I
filológicos, Zaratustra, Ecce homo, as cartas, os últimos
cartões postais as~inados por Dionysos ou Kaiser Nietzsche,
I
I
as inumeráveis cadernetas em que se emaranham as notas de
lavanderia e os projetos de aforismos.
De fato, a única unidade que se poderia recOfthecu , na
I i
I
cobra, de um autor seria uma certa função de expressJo:-
Supõe-se que ai deve haver um nivel (Ião profundo que é
necessário supô-lo) em que a obra se revela em todos os seus
fragmentos, mesmo os minúsculos e os mais acessórios, como
I
a expressão do pensamento, ou da experiência, ou da imagi-
nação, ou do inconsciente do autor, ou das detenninações
históricas nas quais estava envolvido. Mas vê-se logo que
essa unidade da opus, longe de ser dada imediatamente, é
I constituída por uma operação; que esta operação é interpre-
tativa (no sentido de que ela decifra, no texto, a expressão
ou a transcrição de alguma coisa que êle esconde e manifesta
ao mesmo tempo); que, finalmente, a operação que deter-
mina a opus em sua unidade e, por conseguinte, a obra mesma
como resultado dessa operação, não serão as mesmas se se
Irala do aylor do Théálrt el son double ou do aulor do
rraclalus/ A obra não pode ser considerada nem como uma
unidade imediata nem como uma unidade certa, nem como
uma unidade homogêneal
Enfim, a última medida para pOr fora de circuito as con-
tinuidades irrefletidas pelas quais se organiza, de antemão,
e em um meio~segrêdo, o discurso que se quer analisar: re-
nunciar a dois poslulados que eslão ligados enlre si e que
20
j ., .,: 1)
\'\ \l! I
,I" se opõem. Um supõe que jamais é possivel assinalar, na
. fI; ordem do discurSai a irrupção de um acontecimento verda-
~ l. \. deiro; que além de todo comêço aparente há sempre uma
~, 't-\\ origem secreta - tão secreta e tão originária que não se pode
~ nunca retomá-Ia inteiramente nela -mesma. Se bem que sería-
mos fàcilmenle reconduzidos, através da ingenuidade das
cronologias, em direção a um ponto infinitamente recua<lo,
jamais presente em qualquer história; êle próprio não seria
se n ~ o seu próprio vazio, e, a partir dêle, todos os começos
só poderiam ser recomêço ou ocultamento (na verdade, em
um único e mesmo gesto, isso e aquilo). A êste tema está
li gado o de que todo dis~~ªÇ> .man ~sto repousa secretamente
sObre um já dito ; mas que êste já dito não é simplesmente
uma frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um
«jamais dito" um discurso sem corpo... uma voz tão silenciosa
quanto um sOpro, uma escriturà que é apenas o ôco de seu
próprio traço. Supõe':se;--a-ssim, que tudo que o discurso
formula já se encontra articulado nêsse meio-silêncio que lhe '
é prévio, que continua a correr obstinadamente sob êle, mas
que êle recobre e faz calar. O discurso manifesto seria,
apenas, afinal de contas, a presença depressiva do que não
diz e êsse não-di to-seria um Oco que anima do interior tudo
o que se diz. O primeiro motivo destina a análise histórica
do discurso a ser procura e repetição de uma origem ·que
escapa a qualquer determinação de origem; o 'outro, a destina
a ser interpretação ou escuta de um já~dito que- seria ao
mesmo tempo um não-dito. E' preciso renunciar a todos êstes
temas, que têm por função garantir a infinita continuidade
do discurso e sua secreta presença em si no jOgo de uma
ausência sempre reconduzida. E' 'p~ciso _~.çolh~_r . c.a da mo-
j
l menta do discurso em sua irrupçãQ de acontecimentoj nt'.5sa
pontualidade em que aparece "e nessa d~spers~o temporal qu_e
lhê" perinite-"sei -repetido, sabido, t;s que~ido, transfonna~o,
apagado até em seus menores traços, enterrado, bem lon.ge
de todos os olhares, na poeira dos livros. Não é preclSol
remeter o discurso à longínqua presença da origem; é pre- \
ciso Ira lá-lo no jOgo de sua inslância. -
Uma vez afastadas estas formas prévias de continuidade ,
estas l sínteses mal controladas do discurso, todo um dominio
se encontra liberado. Um domínio imenso, mas que se pode
21
 definir: l· constituldo pelo conjunto de todos os enunciados
cfl:tivos (que tenham sido ditos e escritos L em sua dispersão
de acontecimentos e na instância que ê própria a cada um.
Antes de estar relacionado a uma ciência, ou a romances, ou
:l discursos políticos, ou à obra de um autor, ou mesmo a
um livro, o material, que se tem que tratar em sua neutrali-
dade primeira, é um conjunto de acontecimentos no espaço
J do discurso em geral. Aparece assim o projeto de uma des-
li crição pura dos jalos do discurso. Esta descrição se distingue
"I fàcilmente da anãlise da língua. Certamente, só se pode esta-
, de determinar as condições de sua existência, de fixar, o
helecer um sistema lingüístico (se não o construímos artifi-
cialmente) utilizando um corpus de enunciados ou uma
coleção de fatos de discurso; mas trata-se, então, de definir,
a partir dêste conjunto, que tem valor de amostra, regras
que permitam construir eventualmente outros enunciados di-
ferentes daqueles. Mesmo que tenha desaparecido hã muito
tempo, mesmo que ninguém a fale mais e que tenha sido
restaurada a partir de poucos fragmentos, uma língua sempre
constitui um sistema para enunciados possíveis: é um con-
junto finito de regras~~ que autoriza um número infinito de
performances.&Jlisç1:1~, ao contrário, é o conjunto sempre
finito e atualmente limitado pelas únicas- seqü~rlc1ãS Tuig!lis-
tíCi[Ciiie-:: foram formuladas; elas -pade-in- ser. inumeráveis.
podem, por sua massa, ultrapassar qualquer capacidade. de
reglstrQ~_ Qf_ me~6iia, ou de leitura: constitue~.. . entretanto,
um co!,ju'!!9. finito. IA questão que coloca ã -Ílnãlise da língua,
à propósito de um fato de discurso qualquer, é sempre: se-
gundo que regra [... tal enunciado foi construido, e, por
consegüinte, segundo que regras ... } outros enunciados se~
melhantes poderiam ser construídos? A descrição do discurso
coloca uma questão inteiramente diferente: como um deter-
minado enunciado apareceu e nenhum outro em seu lugar?
Vê-se, igualmente, que essa descrição do discurso se opõe
à anãlise do pensamento. AI também. sÓ se pode reconstituir
um sistema de pensamento a partir de um conjunto definido
de discursos. Mas êsse conjunto é tratado de tal maneira que
se busca reencontrar, além dos próprios enunciados, a inten-
ção do sujeito que fala, sua atividade consciente, o que êle
quis dizer ou, ainda, o jôgo inconsciente que aparece, malgré
i
1ui, no que tle disse ou na quase imperceptível fratura de
22
suas palavras manifestas. Trata-se de reconstituir um outro
discurso, de reencontrar a palavra muda, murmurante, ines ...
gotável, que anima do interior a voz que se ouve, de estabe-
lecer o texto miudo e im'isivel que percorre o inter~tício das
linhas escritas e, às vêzcs, as subverte. A análi5f: do pensa-
mento é sempre alegórica em relação ao discurso que utiliza.
Sua quc5tão é infalivelmente: o que se dizia, poi~, no que
estava dito? Mas a análise . do discurso é orientada de ma-
neira inteiramente -cfjf-er~~te; tra-ta:'se de compr~ender o
enunciado na estreiteza e singularidade de seu acontecimento;
mais precisamente possível, seus limites, de estabelecer suas
correlações com outros enunciados aos quais possa estar
ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui.
Não se busca, sob o que está manifesto, a tagareiice semi-
silenciosa de um outro discurso; deve-se mostrar por que não
poderia ser diferente do que é, em que é excludente de
qualquer outro, como assume, em meio aos outros e em re-
lação a êles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar. A .
questão própria à anãlise do discurso poderia ser assim I'
formulada: qual é essa irregular existência que surge no que,k-E
se diz e em nenhum outro lugar?
Pode-se perguntar para que serve finalmente essa colo-
cação em suspenso de tõdas as unidades admitidas, essa
busca obstinada da descontinuidade, se se trata, afinal, de
liberar uma poeira de acontecimentos discursivos, de acolhê-
los e de conservá-los em sua absoluta dispersão. De fato, a
supressão sistemática das unidades inteiramente dadas per..
mite inicialmente restituir ao enunciado sua singularidade
de acontecimento: êle não é mais considerado sirr:plesmente
como [ ... a colocação em jôgo de uma estrutura Iingü!stica,
nem como J manifestação episódica de uma significação mais
profunda que êle; é tratado em sua irrupção histórica; o que
se tenta observar é a incisão que constitui, irredutível - e
muito freqüentemente minúscula - emergência. Por mais
banal que seja, por menos importante que o imaginemos em
suas conseqüências, por mais ràpidamente esquecido que
possa ser depois de sua aparição, por pouco entendido ou
mal decifrado que o suponhemos, por mais rãpido que possa
ser devorado pela noite, um enunciado é sempre um aconte-
23
 cimento que nem a língua, nem o sentido podem esgotar in-
teiramente. Acontecimento estranho, certamente: inicialmente,
·!
porque está ligado por um lado a um gesto de escritura ou
à articulação de uma fala (c parol el> L mas que, por outro
lado, abre a si mesmo uma existência remanesc ~ nte no campo
de uma mem6ria ou na materi alidade dos manu scritos, dos
livros e não importa de que formas de regis tro; em seguida,
já que é unico como qu alquer acontecimento, mas que se
oferece à repetição, à transformação, à reativação; finalmente,
,I . po:que é ligado ao mesmo tempo a situações que o provocam
e a conseqüências que incita, mas está ligado, ao mesmo
tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente a
enunciados que o precedem e o que o seguem.
Mas se se isola, em relação à língua e ao pensàmento, a
instância do acontecimento enunciativo, não é para tratá-Ia
em si mesma como se ela fôsse independente. solitária e so~
berana. E', ao contrário, para com preend er como êsses enun~
ciados, enquanto acontecimentos e em sua especificidade tão
estranha, podem~se articular com acontecimentos que não
são de natureza discursiva, mas que podem ser de ordem
técnica, prática, econômica, social, política, rlc. Fazer apa-
... recer em sua pureza o espaço em que se dispersam os acon-
tecimentos discursivos não é tentar estabelecê-lo em um corte
(ccoupure.) que nada poderia superar; não é fechá-lo nEle
,.
I
mesmo nem, ainda com maior razão, abri-lo a uma trans-Ir
cendência; é, pelo contrário, se permitir descrever, entre êle ! .
e outros sistemas que lhe são exteriores, um jOgo de relações. \: \
\A../
~ g rupamos em conjuntos estatutários, o papel que exercem,
Relações que se devem estabelecer - sem passar pela forma f ·
geral da língua, nem pela consciência singular dos sujeitos
que falam - no campo dos acontecimentos.
O terceiro interêsse de uma tal descrição dos fatos de dis-
curso é que, liberando-os de todos os grupamentos que se
dão como un idades naturais, imediatas e universai s, tem-se
a possibilidade de descrever - mas dessa VI!Z por um con-
junto de decisões controladas, outras unidad es. Desde que
se lhes defi nissem claramente as condições, poderia ser legí-
timo constituir, a partir de relações corretamente descritas,
conjuntos discursivos que não seriam novos mas que, entre-
tanto, permaneceriam invisíveis. Esses conjuntos não seriam
novos porque formados de enunciados já formulados, entre
24
os quais se poderia reconhecer um certo número de relações
bem determinadas. Mas essas relações jamais teriam sido
formulad as por elas mesmas nos enunciados em questão
(di ferent~mente, por exemplo, das relações explicitas que são
colocadas e ditas pelo próprio discurso, quando êle toma a
forma do romance, ou se inscreve em uma série de teoremas
matemáticos). AI\as essas relações invisíveiS não constituiriam
de maneira alguma uma espécie de di:ct!isO secrc:o, anim:..ndo
do interior os discursos manifestos; não, seria pois, .uma in-
terpretação o que poderia fazê-los vir à luz, mas a análise
de sua coexistência, de sua sucessão, de seu funcionamento
mútuo, de sua determinação reciproca, de sua transformação
independente ou correlativa. Tôdas elas (se bem que jamais
se possa analisá-Ias de forma exaust iva ) formam o que se
poderia chamar, um pouco por um jOgo de palavras, pois a
consdência jamais está presente em uma tal descrição. o in-
consciente, não do s uj eito que fala, mas da coisa dita.
Finalmente, no horizonte de tôdas essas pesquisas, esbo-
çar-se-ia, talvez, um tema mais geral: o do modo de exis-
tência dos acontecimentos discursivos em uJtla_çultura. o que
. se trataria de lazer aparecer é o conjunto das condições que
regem, em um momento dado e em uma sociedade determi-
nada, a aparição dos enunciados, siia conservação, os laços
que são estabelecidos entre éles, a maneira pela qual os-
o jôgo dos valôres ou das sacra lizações que os afetam, a
maneira pela qual são investidos em práticas Ç)u condutas,
os princípios segundo os quais circulam, são recalcados, es-
quecidos, destruidos ou reativados. Em suma, tratar-se-ia do
discurso no sistema de sua institucionalização. Chamarei
arquivo não a totalidade dos textos que tenham sido conser..;
vados por uma civilização, nem o conjunto de traços que se
põde salvar de seu desastre, mas o jõgo das regras que de-
te rminam em uma cultura a aparição e o desaparecimento
dos enunciados, sua permanência e sua supressão, sua exis-
tência paradoxal de acontecimentos e de coisas. Analisar os
fatos de di scurso no eJemento geral do arquivo é considerá-los
não como documentos ( de uma significação oculta ou de
uma regra de construção), mas coma monumentos "; é
, Devo • M . Cln,ullb~. a Id~11 dt utilizar I palayra a Cllt _tido .
25
 fnrn. de qu:t1qucr met.Hora gC'ol0gica, sem nenhuma citação
de origem, sem o menor gesto em direção ao comêço de uma
nrché - fazer o que poderia chamar, segundo os direitos
lúdicos da C'timoJogia., algo como uma arqueologia.
E$:ta r, mais ou menos, a problemática de t'Hisloire "de la
F(llir. de la Naissancr de la Cliniqul', de Il's Mols cf les
C/zMC'S. Nenhum dêst('~ t ~xto!' r autônomo e suficiente por
'I
!'i mesmos; ap(liam-se uns sôb re os outros, na medida em
'I
que se trata em cada C3 !'O de exploração muito parcial de
uma região limitada. Devem ser lidos como um conjunto
:tpcnas cshoçado de experimentações descritivas. Entretanto,
se não é necessá rio justificá-los por serem tão parciais e la-
cunares, é preciso explicar a escolha à que obedecem. Pois
~('o campo geral dos acontecimentos discursivos não permite
nenhum recorte (edécoupe») n priori, é excluído, entretanto,
que se p os~ a de~crever de uma vez tôdas as relações carac-
t('rí~ticas do arquivo. E' preciso. então, em uma primeira
aproximação, aceitar um recorte (edécoupage») provisório:
I
uma região inicial, que a análise desorganizará e reorganizará
I quando puder ar definir um conjunto de relações. Como cir-
I cunscrever essa região? Por um lado, é necessário, empirica-
mente, c~colher um dominio em que as relações correm o
I risco l!c serem numerosas, densas e relativamente fáceis de
dcscreVlr~ E' em que outra região os acontecimentos discur-
sivos parecem estar melhor ligados uns aos outros, e segundo
relações melhor decifrávds, que naquela que se designa em
I
I
I
geral pelo t~rmo ciência? Mas, por outro lado, como dar o
maior número de oportunidades para reassenhorear em um
enunciado, nl0 o momento de sua estrutura formal e de suas
leis de construção, mas o de sua existência e das regras de
~eu aparecimento? se não nos dirigirmos a grupos de dis-
cursos pouco formalizados e onde os enunciados não pare-
cem engendrar-se segundo regras de pura sintaxe? Enfim,
como estar seguro de que não nos deixaremos prender a
tôdas essas unidades ou sfnteses irrefletidas que se referem
ao individuo que fala, ao <ujeito do discurso, ao autor do
texto, enfim, a tôdas essas categorias antropológicas? A não
ser, talvez. considerando justamente, o conjunto dos enun-
ciados através dos quais essas categorias se constituíram -
n conjunto de enunciados que escolheram como cobjeto) o
26
sujeito dos discursos (seu próprio sujeito) c busc~ram des-
dobrá-Ia como campo de conhecimentos?
Assim se explica o privilégio de f~to atribuido a ésse jôgo
de discurso de que se pode dizer, muito csquemàticamente.
Que define as cciências do homem». M:ls isso não passa de
I
um privilégio de partida. E' preciso manter bem presentes
• no espirito dois fatos : que a análise dos acontecimentos dis-
I cursivos e a descrição do arquivo não estão de nenhuma
! forma limitados a um domínio semelhante e que, por outro
lado, o recorte (edécoupe» dêste dom in ia não pode ser
,
I
considerado como definitivo nem como válido de forma abso-
luta ; trata-se de uma primeira aproximação que deve permitir
fazer aparecer relações que correm o risco de apagar os limi-
I tes dêsse primeiro esbôço. Ora, devo reconhecer que êsse
projeto de descrição, tal como tento agora delimitar, ~nc~n­
I tra-se êle próprio situado na região que tento, em pnmelra
abordagem, analisar. E que corre o risco de se dissociar sob
I
o efeito da análise. Interrogo essa estranha e tão problemática
configuração d~s ~iências humanas à qual meu discurso se
,
encontra ligado. Analiso o espaço em que falo. Exponho-me
- ã -desfazer e a recompor êste lugar que me indica os marcos
primeiros de meu discurso; busco dissociar suas coordenadas
I
r
I
visíveis e sacudir sua imobilidade de superfície; arrisco-me
a suscitar a cada instante, sob cada um de meus propósitos,
a questão de saber de onde pode nascer: pois tudo que digo
~
••
bem poderia ter por efeito deslocar o lugar de onde eu o
digo. Se bem que à pergunta: de onde pretende então falar,
você que quer descrever - de tão alto e de tão longe - o
discurso dos outros?, eu responderia apenas: acreditei que
falava do mesmo lugar que êsses discursos e que, definindo-
lhes o espaço, situaria meu propósito. Mas, devo, ~gora,
reconhecê-lo: de onde mostrei que êles falavam sem diZê-lo,
nem eu mesmo posso mais falar, mas a partir sõmente desta
diferença, desta ínfima descontinuidade que meu discurso já
deixou atrás de si,
 3. As lormações discursivas e as positividades
Busquei, então, descrever as relações de coexistência entre
enunciados. Tomei cuidado para não levar em consideração
nenhuma das unidades que podiam ser propostas e que a
tradição colocava à minha disposição, quer seja a obra de
um autor a ( l)Csão de uma época, a evolução de uma ciência.
I idênticc ao objeto que se dese nha através das sentenças jurí-
Ati ve -me à presença única dos acontecimentos vi zinhos a
., meu próprio discurso, certo de tratar de um conjunto coe-
rente se eu chegasse a descrever entre êles um sistema de
,I relações.
Parcceu ~me, inicialmente, que certos enunciados podiam
formar um conjunto na medida em que se referem a um único
e mesmo objeto. Afinal, os enunciados que dizem respeito
por exemplo. à loucura, não têm todos, certamente, o mesmo
nivel formal (estão longe de obedecer, todos, aos critérios
requeridos por um enunciado cientifico); não pertencem todos
,, ao mes mo campo semântico (uns originam-se da semântica
médica, outros da semântica jurídica ou administrativa;
I outros utilitam um 1éxico r1iterário), mas êles todos se rela-
cionam a êsse objeto q~~se apresenta de diferentes maneiras
na experiência individ~iol ou social e que se pode designar
I, I
por loucura. Ora, logo nos apercebemos que a unidade do
objeto não permite in~dividualizar um conjunto de enunciados
e estabelecer entre \êles uma relação ao mesmo tempo des-
critiva e constante: É isso por duas razões. .E' que o objeto.
I.?nge de ser aquilo em relação a que se pode definir um
! ,I conjunto de enunciados, é, antes, constituído pelo conjunto
dessas formulações; estariamos errados em procurar junto
i . â «doença mental:. a unidade do discurso psicopatol6gico ou
psiqu iá trico .: enganar-nos-íamos, certamente, se perguntásse-
mos ao ser mesmo desta doença, a seu conteúdo secreto, à
sua verdade muda e fechada em si, o que se pOde dizer dela
em um momento dado; a doença ·mental foi constituída pelo
conjunto do que pôde ser dito no grupo de todos os enuncia-
dos que a nomeavam, recortavam (cdécoupaienb), descre-
viam, exp licavam, relatavam seus desenvolvimentos, indicavam
s ua s ·diversas correlações, a julgavam, e eventualmente lhe
emprestavam a palavra, articulando, em seu nome, discursos
I
que deviam passar por serem os seus. Mas há mais: êsse
28
conjunto de enunciados que dizem respeito à loucura, e para
dizer a verdade, a constituem, está longe de se relacionar a
um s6 objeto, de tê-lo formado de uma vez por tôdas e de
conservá-lo indefinidamente como seu horizonte de idealidade
inesgotável. O objeto que é colocado, como seu correlato
pelos enunciados médicos dos séculos XVII e XVIII, não é
dicas ou das medidas policiais. Da mesma forma, todos os
objetos do discurso psicopatol6gico foram modificados de
Pinel ou de Esquifo1 a Bleuler : não se trata das mesmas
doenças aqui e lá - ao mesmo tempo porque o código per-
ceptivo e as técnicas de descrição mudaram, porque a desig-
nação da loucura e seu recorte (cdécoupe» geral não obe-
decem mais aos mesmos critérios, porque a função do discurso
médico, seu papel, as práticas nas quais está investido e que
o sancionam, a distância a que se mantém do doente foram
profundamente modificados.
Podcr-se-ia, dever-se-ia talvez concluir dessa multiplici-
dade dos objetos que não é possível admitir, Como uma uni- / ..
da~e válida para constituir um conjunto de enunciados, o
«diScurso concernente à loucura:.. Talvez fôsse necessário ::,'
~u~ nos ativêssem~s aos grupos de enunciados que têm um ~
::-
UOlCO e mesmo obJeto: os discursos sôbre a melancolia ou
,,- a neurose. Mas, breve, constataríamos que, por sua vez, cada
um dêsses discursos constitui seu objeto e trabalhou-o até
translormá-Io inteiramente. lk...sJlLle....quLsLcoloca o p r9- /.' '::' I '
blema de ~ber .se .a. un~dadc de um discurso não é leita pelo
espaço comUm3Jl1_ que diversõs- objetoSst--pêrfiJaJ'íf"ehêDn!l_
n!!amente se t~2!~am ~:!iãõ,: pelêt p.~rmanência_ e·singuia-
r(dade _de um objeto~ AJelaç.ULcaracteristica _ que permit~
~ualizaL L!m __c.Qnjunto de . enunciados concernente à
JouclITa seria.en.tão.;_3_ regréLde. aparecime~}o- simultâneõ- õU'
. su~~sivo dos diversos objetos . que aí estão nomeados, des-··
critos, analisados, apreciados ou julgados; a lei de sua ex-
clusão ou de sua implicação reciproca; o sistema que rege
sua transformação. A unidade dos discursos sObre a loucura
não está fundada na existência do objeto cloucura:., ou a
constituição de um horizonte único de objetividade; ê o ·jôgo
das regras que tomam possíveis, durante uma época dada, o
aparecimento de descrições' médicas (com seu objeto), o
29
 aparecimento de uma scric de medidas discriminativas c re-
pressivas (com seu objeto próprio), o aparecimento de um
cunjunto de práticas codificadas em receitas ou em medicações
(Cl1rtl :)I.!U objeto especifico). E', pois, O conjunto das regras
que dão conta, não especialmente do próprio objeto em sua
ilh:ntiJade, mas de ~ua não-coincidência consigo mesmo, de
sua perpetua diferença., de seu afastamento c de sua disper-
~ ã() . Além da unid.ldc dos discursos sôbre a loucura. é o jôgo
das regras que definem as transformações dêsses diferentes
objetos, sua não-identidade através do tempo, a ruptura que
sc produz nêlcs, a descontinuidade interna que suspende sua
p~rl1lanência. De uma forma paradoxal, definir um conjunto
de enunciados no que êle tem de individual não consiste em
individualizar s~u objeto, em fixar sua identidade, em des",:
never os carach:res que conserva permanentemente; é, jus-
tamente o contrário, descrever a dispersão dêsses objetos,
cnmprecnucr todos os inícrstícios que os separam, medir as
úistâncias qUI: reinam entre eles - em outros têrmosj
formular sua lei de repartição. Não chamarei a êsse sistema
r
I
«domínio. de objetos (pois a palavra implica antes em uni:-:.,....
dade, fechamento, vizinhança próxima do que em espalha- - - -
mcnto c a dispersão); dar-Ihe-eiLum ~uco arJ;!i.!rària!!ll'nte,-··
r-
u nome 4Lre crencial, c direi, por exemplo, que a «loucura:.....
não é õb~ <> "ou referente) comum a um grupo proposi- ae
çõe5,õ1ãs Õ rcfcrc"ncial,ou""le-j-de "disJ)crsão de diferentes objc-
toSOu "rcféientes"-pô;;tos em jôgo por um conjunto de enun-
I ciados, cuja unidade se encontra precisamente definida por
l:sta lei.
O segundo critêrio que se poderia utilizar para constituir
cunjuntos discursivos seria o tipo de enunciação utilizada.
Pareccu-me, po r exemplo, que a ciência mi:dica a partir do
si:culo XIX se caracterizava menos por seus objetos ou con-
ceitos (de que uns permaneceram idênticos e outros foram
inteiramente tranSformados) que por um certo estilo, uma
Certa forma constante de enunciação: assistir-se-ia à insta-
laçãu de uma cifncia descritiva, Pela primeira vez , a medicina
lIão t mais constituída por um conjunto de tradições, obser-
\'ações, receitas heterogêneas c sim por um corpus de conhe-
cimentos qué supõt: um mesmo olhar lançado sôbre as mesmas
coisas, um mesmo csquadrinhamento do campo perceptivo,
30
lima mesma análise do fato patológico segundo o espaço vi-
sl\'el do corpo, um mes~o sistema ~de transcrição daquilo
que se percebe para aqUilo que se diZ (mesmo vocabulário
me smo jõgo de metáforas ) i enfim, pareceu-me que a rnedi~
eina se formalizava, se podemos assim dizer, como uma série
de enunciados descritivos. Mas, ainda ai, foi preciso aban-
, donar esta hipótese inicial. Reconhecer que a medicina cIlnica
I era tanto um conjunto de prescrições políticas, de decisões
• êconõmicas, de regras institucionais, de modelos de ensino,
i quanto um conjunto de descrições; que êste, de qualquer
maneira, não podia ser abstraído daqueles e que a enunciação
~escritiva não passava de uma das f.ormulações· presentes no
., grande discurso clinico. Reconhecer que esta descrição não
, cesso u de se deslocar, seja porque, de Bichat à patologia
j
celular, deixou-se de descrever as mesmas coisas, seja porque
•1 da inspeção visual, da auscultação e da palpação ao uso do
microscópio. o sistema de informação foi modificado, seja
ainda porque, da correlação anatomoclínica simples à análise
.. refinada dos processos fisiopatol6gicos. o léxico dos signos
e seu deciframento foi inteiramente reconstituído, seja, final-
mente, porque o médico deixou pouco a põUcó"-de ser, êle
próprio, o lugar de registro e de interpretação da informação
e porque, ao lado dêle, fora de.le, constituíram-se massas
documentárias, instrumentos de correlação, e técnicas de aná-
lise que êle tem certamente que utilizar, mas que modificam,
em relação ao doente, sua posição de sujeito observante.
TôdiilS es5as alterações que nos fazem talvez sair, hoje da
medicina clínica, depositaram-se lentamente, no decorre; do
~éculo XIX, no interior ~o djscur~o. clínico e no espaço que
ele desenh.a~a. Se se qUJse~se. definir êsse discurso por uma
forma codJ~lcada de enunclaçao, (por exemplo, descrição de
um certo .nume~o de elementos determinados na superficie do
corpo, e inspecIOnados pelos olhos, ouvidos e dedos do mé-
dico; identificação das unidades sinaliticas e dos signos Com-
plexo~ a.valiação de sua significação provável; prescrição da
terapeuhca correspondente), seria preciso reconhecer que a
medicina clínica fracassou assim que apareceu c que pràtic.a.
mente s6 conseguiu formular·se em Bichat e em Laennec. Na
\'erdade, a unidade do discurso clinico não é uma forma áe-
terminada de enunciados, mas o conjunto das regras que
31
 tornaram possíveis, ~imultânea ou sucessivamente, descrições
puramente -perceptíVas, "mas, também, observações media~i­
iãdas PC);- insfi'ümen tos, protocolos de experiências de labo-
ratóri os, cálculos estatísticos, constatações epidemiológicas
ou demográficas, regras inst itucionais, decisões politicas.
TJldo és se conjunto não pode obedece r a um modêlo único
de encadeamento linea r: trata-se de um grupo de enuncia-
ções diversas que estão longe de obedecer às mesmas regras
formais, longe de ter as mesmas exigências de validação,
longe de mant er uma relação constante com a verdade, longe
de ler a mesma função operatória. O que se deve caracterizar
como medicina clinica é a coexistência dêsses enunciados
dispersos e heterogê neos; é o sistema que rege sua repar-
tição, o apoio qu e estabelecem entre si, a maneira pela qual
se implicam ou se excluem, a transformação que sofrem, o
I
I
I
jõg:o de seu revezamento, de sua disposição e de sua s ubsti-
luição. Pode-se fa zer coincidir no tempo a aparição de dis-
curso com a introdução em medicina de um tipo privilegiado
i de enunciação. Mas êste não tem um papel constituinte ou
normativo. Abaixo dêsse fenOmeno e em tõmo dêle dese n-
volve-se um conjunto de formas enunciativas diversas e é a
. mas como um"série de elementos deSignativos cujo conjunto
! regra geral dêsse desenvolvimento que constitui, em sua in-
dividualidade, o discurso clinico. A regra de formação dêsses
enunciados em sua heterogeneIdade, em sua impossibilidade
mesma de se integrarem em uma única cadeia sintática, é
o que chamarei de desvio enunciativo (c.écarl énonciatit»). E
direi que a medicina clínica se caracteriza, como conjunto
discursivo individualizado, pelo desvio ou lei de dispersão
,I que rege a diversidade de seus enunciados.
I
! O terceiro critério segundo o qual se poderiam estabelecer
grupos unitários de enunciados é a existência de um jõgo de
conceitos permanentes e coerentes entre si. Pode:se-supor,
por exemplo, que a análise da linguagem e dos fatos gra-
maticais repousava nos clássicos (desde Lancelot até o fim
do século XVIII) em um numero definido de conceitos cujo
conteúdo e uso estavam estabelecidos de uma vez por tôdas:
o conceito do julgamento definido como a forma geral e nor-
mativa de qualquer frase, os conceitos de sujeito e de atributo
reagrupados sob a categoria mais geral de substantivo, o'
conceito de verbo utilizado como equivalente do de cópula
32
lógica, o conceit? de palavra .que s~ define como signo de
uma representaçao. Poder-se-Ia assim reconstituir a arqui ...
tetura conceitual da gramática clássica. Mas ainda ai encon-
trar-se-iam, logo, limites: apenas, sem dúvida, poder-se-iam
descrever com tais elementos as análises feitas pelos autores
de Port-Royal. E, logo, seríamos obrigados a constatar o
apa recimento de novos conceitos. Algu ns talvez derivados dos
primeiros, mas os outros lhes são heterogêneos e alguns são,
mes mo, incompatíveis com êles. As noções de ordem sintática
natur~1 ~u._inv~~t~~~l.a de complemento (introduzida 'no inicio
ao século XVIII por Beauzée) p'ó dem, sem duvida, integrar-
se ainda no sistema conceitual da gramática de Port-Royal.
Mas nem a idéia de um valor originàriamente expressivo dos
sons, nem a de um saber primitivo envolvido nas palavras e
transmitido obscuramente por elas, nem a de uma regulari-
dade na evolução histórica das consoantes podem ser dedu-
zidas do jôgo de conceitos utilizado pelos gramáticos do
século XVIII. Ainda mais a concepção do verbo como simples
substantivo que permite designar uma ação ou uma operação,
a definição da frase não mais como proposição atributiva.
reproduz uma representação, tudo isso é rigorosamente in-
compalivel com o cõnjunto dos conceitos que Lancelo! .ou
Beauzée podiam usl'f. E' necessário admitir nessas condições
que a gramática só aparentemente cons titui um conjunto
coerente, e que é uma falsa unidade êste conjunto de enun-
ciados, análises, descrições, princípios e conseqüências, de-
duções, que se perpetuou sob êste nome durante mais de um
século?
Na verdade, é possível, abaixo de todos os conceitos mais
ou menos heterogêneos da gramática clássica, definir um
sistema comum que abarque não sàmente sua emergência, mas
também sua dispersão e evr.ntualmente sua incompatibilidade
e s te·· sistema não é constituído de conceitos mais gerais ,
mais abstratos que aquêles que aparecem na superfície e sã,
manipulados ostensivamente; é constitui do antes por um con-
junto de regras de formação dos ·conceitos. Este coniunto se
subdivide êle próprio em quatro grupos subordinados. H~ o
grupo que (ege a formação dos cnnceitos que permitem des-
creve~ e analisar. a fr~e como uma unidade em que ~ ele-
Eatrutur.lIamo « Teoria ... _ 3
33
 . ,
mentos (as palavras) não estão simplesmente justapostos,
mas relacionados uns aos outros; êste conjunto de regras é o
que se pode chamar a teoria da atribuição; (' sem que ela
prõpria seja modificada, esta teoria da atrihuição pôde dar
lugar aos conceitos de verbo· cópula ou de vcrbo-substaAtivo
especifico da ação, ou de verbo-ligação dos elementos da
I representação. Há lambem o grupo que rege a formação dos
! conceitos que permitem descrever as relações entre os dife-
~ renles elementos significantes da frase e os diferentes ele-
mentos do que é representado por êsses signos; é a teoria
! da {!!ticuJaçúo que pode, em sua unidade especifica, dar conta
de conceitos tolo difl!renles quanto o da palavra como resul-
tado de uma análise tle pensamento, e o da palavra como
instrumento pelo qual se pode lazer semelhante análise. A
teoria da dtsignaçúo rege a emergência de conceitos, como
o de signo ãiOiiràriõ e convencional (permitindo, conseqüen-
temente, a construção de uma língua artificial) mas, também,
Como o de signo espontâneo, natural, imediatamente carregado
I
de valor expressivo (permitindo, assim, reintroduzir a ins-
I tância da lingua no devi r, real ou ideal, da humanidade).
I
I
I Finalmente, a teoria da deriv'!f.ão abrange a formação de um
jOgo de noçOes muito dispersas e muito heterogêneas: a '
I
idéia de uma imobilidade da lingua que s6 está subm~da !
transformação pelo efeito de acidentes exteriores; a idéia de
uma correlação histórica entre o devir da lingua e as capaci-
dades de análise, de reflexão, de conhecimento dos individuas;
a idéia de uma relação recíproca entre as instituições políticas
e a complexidade da gramática; a idéia de uma determinação
circular entre as formas da língua, as da escritura, as do
saber e da ci~ncia, as da organização svcial e, enfim, as do
progresso histórico; a idéia da poesia concebida não como
uma certa utilização do vocabulário e da gramática, mas
como o movimento espontâneo da língua deslocando-se no
espaço da imaginação humana. que ~. por natureza, meta-
f6rica . Essas quatro «teorias» - que são como tantos es-
quemas formadures de conceitos - Itm entre si relações
<lescritívris (das se supú~m entre si; elas se opõem duas a
<luas; elas derivam uma da outra e, encadeando-se, ligam
em uma s6 figura (<<1Igure:.) O1SCUrsOS que nao podem ser
nem unificados nem superpostos). Elas constituem o que se
34
; ~. !" .....
poderia chamar uma rêde teórico. Por esta palavra nã"o se
deve entender um grupo de conceitos fundamentais que rea-
grupariam todos os outros c permitiriam recolocá-Ios na
unidade de uma arquitetura dedutiva, mas, sim, a lei geral
de sua dispersão, de 8ua heterogeneidade, de sua incompa-
tibilidade (quer ela seja simultânea ou sucessiva): a regra
de sua insuperável pluralidade. E, se é licito reconhecer na
gramática geral um conjunto individualizável de enunciados,
c na medida em que todos os conceitos que ai figuram, que
se encadeiam, se entrecruzam, se interferem, se perseguem
uns aos outros, se mascaram, se dispersam, são formados a
partir de uma única c mesma rêde teórica.
~ Finalmente, poder-se-ia tentar constituir unidades de dis-
Curso a partir de uma identidade de opinião. Nas «ciências
humanas», destinadas à polêmica, oicrccidas ao jôgo das
preferências ou dos intcrêsses, tão permeáveis a temas filo-
sóficos ou morais, tão prontas em certos casos à utilização
política, tão vizinhas, igualmente, de . ccrtos dogmas religio-
sos, é legitimo em primeira instância supor que uma certa
tcmática seja capaz de ligar e de ~!~umar como um organismo
que tem suas necessidades, sua fôrça interna e suas capaci- .
dades de sobrevivência, um conjunto de discurso. Será que,
por exemplo, não se poderia constituir como unidade tudo '
aquilo que, de Buffon a Darwin, constituiu o discurso evo- .
lucionista? Tema a princípio mais filosbfico que científico,.
mais próximo da cosmologia que da biologia; tema que antes
dirigiu de longe pesquisas que nomeou, recobriu e explicou
resultados; tema que supunha sempre mais do que se sabiai
mas coagia a partir dessa escolha fundamental a transformar.
em saber discursivo o que estava esboçado como hipótese
ou como exigência. Será que não se poderia da mesma forma
falar da idéia fisiocrãtica? Idéia que postulava, além de
qualquer demonstração e antes de qualqut.!r análise, o caráter
natural das três rendas fundiárias; que 8upunha, em conse-
qüência, o primado econômico e politico da propriedade
agrária; que excluía qualquer análise dos mecanismos da
produção industrial; que implicava, ao contrário, na descrição
do circuito do dinheiro no interior de um Estado, de sua dis-
tribuição entre as diferentes categorias sociais e dos canais
através dos quais êle vollava à produção; .que, finalmente,
3'
 intcrrOgar'~:::~~~:cas:s' em ~~ >-'1'~' ~ .~.
conduziu Ricardo a se que
tripla renda não aparecia, em condições em que se poderia
fo rma r, e a denunciar, por conseguinte, o arbitrário do tema
fisiocrático?
Mas a partir de se melhante tentativa somos levados a fazer
duas constatações inversas e complementares. Em um caso,
o mesmo fato de opinião, a mcsrr;a temática, a mesma es~
colha se articula a partir de dois jogos de conceitos, de dois
tipos de di scursos, de dois campos de objetos perfeitamente
diferentes: a idéia evolucionista em sua formulação mais geral
é talvez a mcs ma em Benoit de Maillet, Bordeu ou Diderot
e em Darwin i mas, na verdade, o que a torna possível e
coerente não é de forma alguma da mesma ordem aqui e lã.
No século XVIII, a idéia evolucionista é uma escolha operada
a partir de duas possibilidades bem determinadas: ou bem
/ se admite que o parentesco das espécies forma uma conti-
1 nuidade inteiramente dada no início, e que só as catástrofes
da natureza, s6 a história dramática da terra, s6 as pertur-
, ,,' '"
mesma explicação de um preço pelo mecanismo da troca e
pela quantidade de trabalho necessária para a obtenção da
I mercadoria; fixava-se da mesma forma o preço de um tra-
balho : o que custava a manuten ção de um operário e de sua
familia durante o tempo de trabalho). Ora, a partir dêsse
jõgo conceitual ún ico, havia duas formas de explicar a for-
mação do valor: a partir da troca ou da retribuição à jornada
de trabalho. Estas duas possibilidades inscritas na teoria
econômica e nas regras de seu jõgo conceitual deram lugar,
a partir dos mesmos elementos, a duas opiniões diferentes.
Estaríamos errados, sem dúvida, em procurar nêsses fatos.
de o pinião princípios de individualização de um discurso. O
que define a unidade da história natural não é a permanência
de ce t tas idéias como a de evolução; o que define a unidade
do discurso econOmico do século XVIII não é o conflito entre
os fi siocratas e os utilitaristas ou os defensores da proprie-
dade rundiária ou os partidários do comércio e da indústria.
O gue permite individuali!ar um discurso e de lhe conceder

- bações de um tempo extrínseco a interromperam e como

que rasgaram (é, então, hte tempo que criou a descontinui-
dade, o que exclui o evolucionismo), ou bem se admite que
é O tempo que criou a continuidade, as mudanças da natureza
.,,
que coagem as espécies a tomar caracteres diferentes dos
que tinham no inicio, de sorte que o quadro quase continuo
das espécies é como o afloramento, sob os olhos do natura·
lista, de tOda uma esp=ura de tempo. No século XIX, a
idéia 'evolucionista é uma t:scolha que não se realiza mais,
sObre a constituição do quadro das espécies, mas sObre as
modalidades de interação entre um organismo de que todos
os elementos são solidãrios e um meio que lhe oferece suas
condições reais de vida. Uma únka cidéia:t, mas a partir de
dois sistemas de escolha.
Ao contrário, no caso da fisiocracia, pode-se dizer que a
escolha de Quesnay repousa exatamente sObre o mesmo sis-
tema de conceitos que a opinião inversa sustentada pelos
que se pode chamar utilitaristas. Nessa epoca, a análise das
riquezas comportava um jõgo de conceitos relativamente limi-
tado e que era admitido por todos (dava-se a mesma defi-
nição da' moeda, que era um signo e s6 tinha valor pela ma-
terialidade pràticamente necessária dêsse signo ; dava-se a
I
36
I
j
~
'u ma existência indepensknte.J Q sistema dos pQn.tos... de es-
colha que êle deixa livre a p';!rtir de l!IlI...J:amjKLd.LO.bj.etos
dados, a ~arfii de uma gama enunciativa determinada,~
partir de um jOgõ:de..coru:eltaLdefin,idos em seu conteúdo e
em seu uso seria, QQj~Josuftciente procurar em uma o~ção
teórica o fundamento geral de um discurso e alarma j!foDaI
deSuãideiitiêiãdehlst6ri9'd!ºiLJIl!!L-Il!~s.m~_ 0I!ç~!!..pode
realarecer em dois tipos de discúrsos, e um s6 discurso pode
dar lugar a vAnas opçõeS dilereiifêS.~ Nem a perman~ncia das
opiniões através do tempo, nem a dialética de seus conflitos
basta para individualizar um conjunto de enunciados. E'
necessário para isso que se possa demarcar a repartição dos
pontos de escolha e que se defina, aquém de tOda opção. um
campo de possibilidades estratégicas. Se a análise dos fisjo-
cratas faz parte dos mesmos discursos que a dos utilitaristas,
não é porque viviam na mesma época, não é porque se de-
frontavam no interior de uma mesma sociedade, não é porque
seus interêsses se emaranhavam em uma mesma economia.
: é porque suas duas opções se originavam de uma única e
: mesma repartição dos pontos de escolhá, de um único e
i, mesmo campo estratégico. eS!.e campo não é O total de todos
'os elementos em conflito, não ê tampouco uma obscura unJ.
37
 1
ca.k dividida contra ela mesma e recusando-se reconhecer
~\.m ~ mascara de cada ad\'crsário, l! a Ici de formação e de
ch;~:s.i.o de t()das as opções poss íveis.
!
I
;
E..:-. !' ~ sumo, ei!'-nos cm pre!;cnça de qua tro critl!rios que
:..'rr.:i:~m r ~Cllllh e~. er ~~l id ~ q~_s__ º i!\cur!;ivas: que não são as
:"::1i':::.J;:s traJicion :lis ( qu er sej a o «te xto:., a 4: obra:t, a ccie n-
~- : 3, _ ~l!.l v qll ~ sl'ja o dominio ou a forma do disc urso, os
.: . .; :::~ i : ,'~ que utiliza, ou as escolh as que manifesta) . ~ s t es
.:; .. ;: :: . ,. cr iterios não so mente não são incompativeis, como
~\: ':':-;.l m3m un s aos OutfClS: o primeiro define a unidad e de:
um G:s.:urso pela regra de fo rmaç~ o de todos os seus objetos ; '
(, (\t;:r\l pela regra de for ma ção de todos os se us tipos sinfá- i
:iri"l.i: ,1 terceiro pela regra de formação de todos os seus I
,,;;em~ntos semânticos; o quarto pela regra de formação de !
;:,·,d~ as suas ev(·ntualidades operatórias. Todos os a spectos ~
do d ts.:urso estão assim cobertos , E quando, em um g rupo dt:
cnun:iados, !;c pode demarcar e descrever um referencial,
um tipo de desvio enunciativo, uma rêde teórica, um campo
ck possihilidades estratégicas, então podemos eStar certos de
que ê&es pertencem ao que se poderia chamar um~..Jo(maçiio
disalnil'Q. Es!;a formação agrupa todo um ·conjunto de acon-
tecimtntos enunciativos. Ela não coincide evidentemente, nem
t.m saLS critérios, nt!m em stus limites, nem em suas relações
íntf.1'11aS, com as unidades imediatas e visíveis, sob as quais
se RIO o hAbito de reagrupar os enunciados. Revela, entre os
fenômenos de enunciação, relações que permaneciam até então
obscuras e não se encontravam imediatamente transcritas na
su!'t'rlicie dos discursos. Mas o que ela revela não é um
~ -:g .êd o, a unidade de um sentido oculto, nem uma forma
;erz! e unica ; ê um sistema regulado de diferenças e de dis-
~'=."!'SÕes. ~ sse s istema de qua tro níveis, que rege uma for-
::1a~·-' discurs iva e deve dar conta não de seus elementos
.:orr.:,ms mas do ,iOgo de suas variações, de seus interstícios,
~~ ! :.ü!.S distâncias - de alguma fo rma de suas lacunas mais
q Ut é ~ suas su pl' rficies chei as - (o isso qu e eu me proporei
=harr..ar s ua posil h'idade ,
S o ponto de partida, o problema era definir, sob as form~s
;.:t~$.3damente admitidas de síntese, umdades que seria
:.;.-: ~;n.) instaurar no campo tão desmesurad o dos aconteci·
:::~:lh_'\$ ~nunciativos. A esta questão eu me esforçara em dar
a pesquisas
:...--:.1 f::'5p.:lsta que fôsse empírica ( e art iculada
:'~;::s~s) e cri tica ( pois que di zia res peito ao lugar, de onde
~::: :~":")=3\"a a questão, a região que a sit uava , a umd.a de cs-
":\...".~!n~a no interior da qual eu podia crer que fala~a) . Dai
~:5·~'::'s iiw es ti gações no domínio dos discu.rsos que .mst~~ra­
'oc...T. ou pretendiam instaurar um conh eclm ~nto ~cle~hflco:.
.j,: hJm ~rn vivo, que fa la e trab alha. Essas mv~shgaçoes ~e­
\-!:'aram conj unt os de enunciados que chamei «.f?r.maçoes
ãis..,.rsi\"as:t e sistemas que sob o no me de cpos lhvldades:.
é~'"t!m abarcar esses conjuntos. Mas, a final , não terei feito
pera e simplesmente uma história das c ciênc~as:t human~s
_ ou. se qlli se rmo~, dêsses ~o~heciment?: 1.n~xatos cuJo
a...."1imulo não pôde amda conshtUIr uma ClenC1.;]. . Será que.
...., fiquei prêso em seu recorte (<<découpage» aparente e ·
.o sistema que a si mesmas elas prete~dem. ~ dar? .Ser.á.
que não fiz uma espécie de epistemologIa cnbca dessas fl-
~ras «figures.) de que não é seguro qU! mereçam verda-.
óeiramente o nome de ciênêias?
Sa verdade, as formações discursivas que foram recortadas
00 jescritas não coincidem exatamente com a delimitação
d<ssas ciências (ou pseudociências). Sem dúvida, é a partir
da exis tência no momento atual de um discurso que se diz
;:s:copatológico (e que pode ter aos olhos de alguns a pre-
= são de ser cientifico) que abri a pesquisa sôbre a história
Cz Loucu ra; sem dúvida, igualmente, é a partir da existência
é"'! uma economia política e de uma lingüística (às quais
L5Un5 podem contestar os critérios da rigorosa cientifici-
::ade) que tentei analisar o que, nos séculos XVlI e XV111, se
océ'!ra dizer sôbre as riquezas, a moeda, a troca, sôbre os
!:?ncs lingüisticos e o funcionamento das palavras. Mas .as
~",itividades obtida. no fim da análise e as formações dlS-
C::rsivas que elas reagrupam não cobrem o mesmo espa,ço
Ct!e essas di sciplinas e não se articulam como elas; mUlto
~ : não se superpõem ao que podia ser considerado como
39
 , ;.
ciC:ncia, ou como forma autônoma de discurso na éP"'=2 tstu-
dada. Assim, o sistema de positividade analisado na H!silJirt
de la Folie não abarca exclusivamente, nem mesmo dt Um.l
forma privilegiada, o que os médicos puderam di:cr. n~(.,J
época, sôbre a doença mental; define antes o rcftren.:l.t:. a
gama cnunciativa'.I.a rêde teórica, os pontos de C!:~I~,J t;:.!e
tornaram possí veis em sua dispc rs:\o mesma os enui.':;.l': ~"lS
médicos , as regras institucionais, as medidas admin i5t;zti~·.!~.
os textos jurídicos , as expressões literárias, as fonm.. ~l\.'\es
filosóficas. A formação discursiva, constituída e d es ~i~ ~a.
, análise, extravasa largamente o que se poderia contar c..1.."llCl
i sendo a pré-história da psicopatologia ou como a gên~ ôe
SCU!i conceitos.
I Em les Mols el les Choses, a situação é in\'elY. As DJSi-
tividades obtidas pela descrição isolam formações diSOlrSr."'2S
que são menores que os domínios cientificos reconhecidO;) em
primeira instância. O sistema da História natural permite
,I abarcar um certo número de enunciados que dizem respeito
à semelhança e diferença entre os sêres, as constiruiçiJes dos
I
--
caracteres específicos ou genéricos, a repartição dos parm-
.
tescos no espaço geral do quadro; mas ela não ~ as-2Dá-
"r Iiscs do movimento involuntário, nem a teoria dos g!Dtros.
.I nem as explicações quimicas do crescimento. A e.xist&l::ia., a
'
- autonomia, a consistência interna, a limitação dessa forua;:io
~iscursiva, é precisamente uma das razões pel~. quais moa
ci ênci~1 geral da vida não ..$e_.çonstitui.!.t flc) .período ..dkricn
Da mes ma forma, a positividade que, na mesma época, rqm
a análise das riquezas não determinava todos os emnviados
concernentes às trocas, aos circuitos comerciais e aos preços:
ela deixava de lado as <aritméticas políticas. que só eu1R-
ram no campo da teoria econOmica muito mais tarde. quzndo
um nOvo sistema de positividade tornou possível e necessária
a introdução nêsse tipo de discurso da análise ealnômi::a. A
gramát ica gerat não dá conta tampouco de tudo o que !'ÕÓe
ser dito sóbre a linguagem na época clássica (quer seja
pelos exegetas de textos religiosos, fil6sofos, ou teóriros da
obra literária) . Em nenhum dêstes três casos se tratava de
reencontrar o que os home~s puderam pensar da linguagem,
das riquezas ou da vida em uma época em que se constituíam,
lenta c secretamente, uma biologia, uma economia e DIlUI
40
filologia; não se tratava, tampouco, de descobrir o que ainda
se misturava de erros, preconceitos, confusões, fantasmas,
talvez a conceitos em via de formação: não se tratava de
saber ao preço de que cortes (ccoupures:.) ou de recalca..
mentos (crefoulements:t) uma ciência ou, pelo menos, uma
disciplina de pretensão científica ia afinal se constituir sObre
um solo tão impuro. Tratava-se de fazer aparecer o sistema
dessa «impureza. - ou antes, pois a palavra não pode ter
significação nes ta análise, de abarcar a aparição simultânea
de um certo número de enunciados cujo nível de cientificidade,
cuia forma, grau de elaboração podem bem, retrospectiva-
mente, parecer-nos heterogêneos.
A formação di scursiva analisada na Naissance de la Clini-
que representa um terceiro caso. E' bem maior que o discurso
médico no sentido estrito do têrmo (a teoria científica da
doença, de suas formas, de suas determinações, e dos instru-
mentos terapêuticos); ela engloba tôda uma série de reflexões
políticas, de programas de reforma, de medidas legislativas,
de regulamentos administrativos, de considerações morais,
mas, por outro lado, não integra tudo aquilo que, na época
es tudada, podia ser conhecido a respeito do corpo hUQ1ano.
de seu funcionamento, de suas correlações anatomofisiQI6-
gicas e das perturbações de que podia ser ,p~ive(. A untade
do discurso clinico não ê de nenhuma ,TImll-ª..lLunjda _ILde
uma ciência ou de um conjunto de conhecimentos ten!ando
ct1r um estatuto cientifico. E' uma unidade complexa: não
sé 'lhe podem aplíCiifOs- critérios pelos quais podemos - ou
pelo menos pensamos poder - distinguir uma ciência de
uma outra (por exemplo, a fisiologia da patologia) , uma
ci i~ ncia mais elaborada de uma que o é menos (por exemplo,
a bioquímica da neurologia) , um discurso verdadeiramente
cientifico (como a hormonologia) de uma simples codificação
d;. experiência (como a semiologia), uma verdadeira ciência
(como a microbiologia) de uma ciência que não o fOsse
(como a frenologia). A clinica não constitui nem uma ver-
dadeira ciência nem uma falsa ciência, se bem que em nome
de nossos critérios contemporâneos podemos dar-nos o di...
feito de reconhecer como 'verdaqeJros alguns de seus enun-
ciados, e como falsos alguns outros. Ela é um conjunto
enunciativo ao m~smo tempo teórico e prático, descritivo e
41
 1 institucional, analitico e Tl!gulamentar. composto tanto de in-
ferências quanto de deci..~'\es, de afirmações como de decretos.
As formações discu:sh~as não 530, pois, nem ciências atuais
em \'ia!' de gestação, ner.: ci~nd.l~ outrora reconhecidas en-
quanto tafs, dt:pois cai.j~ em desu~o e abandonadas em
funçã o das cxigênc:iJ~ 0 .'\".15 do:' n r.SS0 S critérios. São unida-
des de uma natureza (' d~~ um ninl diferentes daquilo que se
chama hoje (ou do que se p~'XI(' .:-hamar outrora) ciência.
Para ca racterizá-Ias. a distin,áo d" cientifico e não-cientifico
não é pertinente: elas são epistemológicamente neutras.
Quanto aos sistemas de positi\'idade que lhes asseguram o
grupamento unitári o. êsses não são estrutur<!s :~cionais, nem
tam pouco jogos, cquiiibrios. oposições ou díal ehcas entre as
formas de racionalidade e entre coações irracionais; a dis-
tinçã o do racional e de seu contrãrio não é pertinente para
dCRcrevê-las, pois nio são leis de inteligibilidade, são leis
de formação de todo um conjunto de objetos, de tipos de
formulação, de conceitos.. de opções teóricas que estão in-
vestidos em instituições. técnicas, condutas individuais ou
coletivas, em operações políticas" atividades. científic~s,
I I ficções Jiteririas, espeal1aç6es teóricas. O conjunto asstm
formado a partir do sistema de positividade e manifesta~o
I
na unidade de uma fonnação disrur.;iva, é o que se podena
chamar um saber. O sabe1 não é uma soma de conhecim~_J!!:0s
_ pois dêstes dcv~pre poder dizer se são verdadeiros
I
I
ou falsos, exatos ou a.ão. aproximados ou definidos, C?otra-
dit6rios ou coerentes; nenhuma dessas distinções é perttne~te
para descrever ~~alJe1:.queJ.o. conj~.nt~.E.0~ elementos (obJe-
, tos, tipos de formulação, conceitos e escolhas teóricas) .!2r-
I ma~~~ a partir ~ u~ única e mesma positividade. no campo
I de uma formação discur-:i\'3 unitária.
. Eis-nos agora em presença de uma figura (digure.) com-
I plexa. Ela pode e deve 5!?:r analisada ao mesmo tempo como
uma formação de enunciados (quando se considera o con ..
junto dos acontecimentos discursivos de que fazem parte);
como uma positividade i quando se considera o sistema que
rege em sua dispersão os objetos. os tipos de fe :-mulação,
os conceitos e as opiniões que são postas em jOgo nêsses
lenunciados); como um saber (quando se consideram êsses
objetos, tipos de formulação, conceitos e opiniões, tais como
42
estão investidos em uma ci~ncia, em um método t~cnico, ins-
tituição, naTTação romane:sta, prática jurídica ou política,
etc.). O saber não se analisa em t~nnos de conhecimentos;'
nem a positividade em têrmos de racionalidade, nem a for·
mação discursiva em tl?rmos de ciência. E não se pode pedir
à sua descrição que seja equivalente a uma história dos co~
nh ecimentos, ou à uma gênese da racionalidade. ou à epis- .
tcmologia de uma ciência. .,I
IssC' não implica que se possa descrever enlre as clencias
(com suas estruturas de ra.:ionalidade e a soma de seus co-
nhecimentos) e as fonna Ç\.~s discursivas (com seu sistema
de positividade e o campo de seu saber) um certo núm ero
de relações. Pois é verdade que sômente critérios formais
podem decidir da cientifícidade de uma ciência, isto é, de-
finir as condições que a tomam possível como ciência; êles
jamais podem dar conta de sua existência de fato, isto é. de
sua aparição histórica, dos acontecimentos, episódios, obstá-
culos, dissensões, esperas, atrasos, facilitação que puderam
marcar seu destino efetivo. Se foi necessário, por exemplo,
esperar o fim do séado XVIII para que o conceito de vida
se tornasse fundamental na aOlUse dos sêres vivos, ou se a
demarcação das semelhanças entre o latim e o sânscrito não
pôde dar nascimento, antes de Bopp, a uma gramática his-
tórica e comparada, ou ainda se a constatação das lesões
intestinais nas afecções debris» não puderam dar lugar,
antes do inicio do séaIIo XiX, à uma medicina anatomopat<>-
lógica, não se deve procurar a razão nem na estrutura epis-
temológica da ciência biológica em geral, ou da ciência gra-
matical, ou da ciência médica; nem. tampouco, na êrro em
que se obstinaria tanto tempo a cegueira dos homens; el3
II;! reside na morfologia do saber, no sistema das positividades
na disposição ÍIlterna das formações discursivas . .]', muito
mais, !!2--demento_l\o_~ que se. determinam as condições.
d~ aparição de ,u ma ciência, ou, pelo menos. de um conjunto
<:f~ dj~cursos . q~_acolh~ o~rei~indicam . os _ 1!I0deIÇJ~_de
cientificidade: se, no inicio do século XIX; vemos formar-se
sobo -~ome de economia política um conjunto de discursos
que se dão a si mesmos signos de cientificidade, e se impõem
um certo número de regras formais; se. mais ou menoS na
mesma época, alguns discursos se organizam sObre o modêlo
43
 .,
,i cios discursos me.di:lJs, clínicos e semiol6gicos, para se cons ..
tituir como psicopamlogia, não se pode pedir-lhes, retrospec-
tivamente, satisfaçCo!s a estas cciências~ mesmas - quer seja
sõbre seu equilfori:.- atual ou a forma ideal em direção à
qual se supõe que ias se encaminham; não se pode tampouco
pedir s.1tisfações ê. um puro e simples projeto de racionali-
zação que se ter"" iormado então no espírito dos homens,
mas que ".lo porie:i2 levar em consideração o que êsses dis-
cursos têm de e5"?Ccifico. A anAlise dessas condições de
aparição. é no car:.;;>o do saber que ~ preciso conduzi-Ia -
ao nível dos conjun:os discursivos e do jôgo das positividades.
Sob o têrmo g<:aJ de <condições de possibilidade. de uma
ciência ~ necessário, pois, distinguir dois sistemas hetero-
morfos. l!m define as condições da ciência como ciência: l!
relati~~ a "seuaominio--dê- ob{etos, ao tipo de lingu"agern que
ela utiliza, aos con:eitos de que dispõe ou que procura esta-
belc~er; define as regras formais e semânticas que são re-
queridas para que 10m enunciado possa pertencer a essa ciên-
cia; é instihlido seja pela ciência em questão, na medida em
que ela se coloca a si mesma suas próprias normas, seja
por uma outra cibIN na medida em que ela se impõe à pri-
meira como mod& de formalização: de tôdas as formas,
essas condições de cientificidade são interiores ao discurso
cientifico em geral < não podem ser definidas senão por êle.
O outro sistema diz respeito à possibilidade de uma ciência
em sua existência histórica. ele lhe é exterior, e não super-
ponivel. E' constituido por um campo de conjuntos discur-
SIVOS que não têm nem o mesmo estatuto, nem o mesmo
recorte (cdécoupo), nem a mesma organização, rem o
m~smo ~uncionam~to que as ciências às quais dão lugar.
Nao sena necessáno ver nesses conjuntos discursivo:i uma
rapsódia de falS05 conhecimentos, de temas arcaicos, de fi-
guras (cfigures~ J í:racionais, que as ciênciaS em sua sobe.
r~nia _repe~riam . d-:finitivamente para a noite de uma pré-
história_ Nao sena n~cessário tampouco imaginá-los como um
esbõço de futuras ciências que seriam ainda confusamente
redobrad~s sôbrt &t:'U futuro "e que vegetariam, um pe-ríodo,
na letargia das germinações silenciosas,. Não"seria pr~ciso, fi-
nalmente, c~ncebe-lf)S como o único sistema epistemológico
de que senam suscetíveis essas . falsas, ou qua~ -:-, ou
44
~' .
pseudociências que seriam as ciências humanas. Na verdade.
trata-se de figuras (c figures») que têm sua consistência
própria, suas leis de formação e sua disposição autônoma.
Analisar formações _dis~ursi~as, positividades e o saber que
lhes corresponde, nao e designar formas de cientificidade; é
percorrer um campo de determinação histórica, que deve
abarcar, em sua aparição, sua permanência, sua transfor-
mação e, se fôr o caso, em seu desaparecimento, de discursos,
dos quais alguns são ainda hoje reconhecidos como científi-
cos, de que outros perderam o estatuto, de que outros, final-
mente, jamais pretenderam adquiri-lo. Em um;\ palavra, o
saber não é a ciência no deslocamento sucessivo de Suas es-
truturas internas; é o campo de sua história efetiva.
5. Algumas observações
A análise das formações discursivas e de seu sistema de
positividade no. elemento do saber só concerne a certas de-
terminações dos acontecimentos discursixo.~. Não se trata
de constituir uma disciplina unitária que se substituiria a
tôdas as outras descrições dos discursos e os invalidaria de
uma só vez, Trata-se, antes, de dar lugar a diferentes tipos
de análises já conhecidos, e praticados, freqüentemente, há
muito tempo; de determinar seu nível de funcionamento e de
eficácia; de definir seus pontos de aplicação; e de evitar,
afinal, as ilusões a que pod.~m dar lugar. Fazer surgir a
dimensão do saber como dimensão específica não é recusar
as diversas análises da ciência, é desenvolver, o mais possí-
vel, o espaço em que elas se podem alojar. E', antes de tudo,
afastar duas formas de extrapolação que tem cada uma um
papel redutor simétrico e inverso: a extrapolação epistemo-
lógica e a extrapolação genética.
A extrapolação epistemológica não se confunde com a
anãlise (sempre legítima e possivel) das estruturas formais
que podem caracterizar um discurso científico. Mas ela deixa
supor que essas estruturas bastam para definir para uma
ciência a lei histórica de seu aparecimento e de seu desen.
volvimento. A extrapolação genética não se confunde com a
descrição (sempre legítima e possivel) do contexto - quer
45

..
i!le seja discursivo, técnico, econonllCO, institucional - no
qual urna ciência apareceu; mas ela deixa supor que a o~­
cranização interna de uma ciência e suas " onnas formais
~od~m ser descritas a partir de suas condições externas. Em
um caso, da-se à ciência o encargo de dar conta de sua
hi~toricidadc; no outro, encarregam-se determinaç'õ~s histó-
ricas de dar conta de uma cicntifi~idadl.!. Ora. é desconhecer
que O lu ga r de aparecimento e de dcscfl\'oh'imenw de uma
cil:I1cia não e nem essa ciência mesma repartida segundo
uma sucessão lclco16gica, nem um conjunto de práticas mu-
das, ou de determinações extrínsecas, mas o campo do saber I
co m o conjunto de relações que o a travessam. ~te desconhe-
cimento se explica, na verdade, pel o privilegio concedido a
ouis tipl1s de ciências, que servem em geral de modelos,
quando são, sem dúvida, casos-limite. Há, de fato, ciências
que podem retomar cada um d os episódios de seu devir his -
tórico no intt!rior de seu sistema dedutivo; sua his tória
pode-se descrever como um movimcnto de extensão lateral,
-
depois de retomada e de gen eralização em um nivel mais ele-
vado, de sorte que cada nlOmento aparece seja como uma
região parlicular, seja como um grau definido de formaliza-
ção ; lB' seqUencias se abolem em beneficio de vizinhanças que
não as reproduzem; e as datações se apagam para fazer apa-
......ecer sincroniaS'"que ignoram o calendário. E' o caso, evidente-
mente, da matemãtica em que a álgebra cartesiana define uma
região particular em um campo que fOra generalizado por La-
grange, Abel e Galois; em que o método grego da exaustão
parece contemporâneo do câlculo das integrais dermidas. Pel.o
"
contrário, existem ciências quc só podem assegurar sua Uni-
dade através do tempo pela narração 011 a retomada critica de
sua própria história: se há uma psicologia desde Fe~hner e
uma só, se há desde Comte ou mesmo desde Durkhelm uma
única sociologia, não é na medida em que se pode atribuir~ a
tantos discursos diversos, uma única es.trutura epistemológica
( tão ligeira quanto se possa imaginá-Ia); i: na medida em que
a sociologia ou a psicologia colocaram a cada instante seus
discursos em um campo histó rico que €Ies mcsmas percor-
"
riam sõbre o modo crítico da confirmação ou da invalidação.
A história das matemáticas estã sempro prestes a ultrapassar
u limite da descrição epistemológica; a epistemologia das
46
~ .. ~ :'1':" -;;t.
o~~-:"-~"' o _ oo-.,::c;:,' o
r - ·;. -o;
c;ciências:., como a psicologia ou a sociologia, está sempre
! no limite de uma descrição genét ica.
E' porque, longe de constituir exemplos privilegiados para
a análise de todos os outros domínios científicos, êstes dois
casos extremos correm o risco de induzir ao êrro; de não
deixar ver, ao mesmo tempo em sua especificidade e em s uas
relações, o nível das estruturas epistemológicas e o das de-
terminações do saber ; que tôda ciência (mesmo tão altamente
formalizada quanto a matemá tica ) supõe um espaço de his-
toricidade que não coincide com o jõgo de suas..tºrmas;mas
que tôda ci~ncia (m~slllo tão carregada de empiricidãa"e
quanto a psicologia, e tão afastaJa das normas requeridas
para constituir uma ciência) exis.e no campo de um saber
que não prescreve simplesmente a sucessão de seus episódios,
mas que determina, segundo um sistema que se po.de _ges-
crever, suas leis de formação. Ao co ntrãrio, são ciências cin-
termediárias:» - como, por exemplo, a biologia, a fisiologia,
a economia politica, a Iingüislica, a filologia, a patologia -
que devem servir de modelos : pois com elas não é possível
confundir em uma falsa unidade a instância ao saber e a
forma _~a Ciência nem elidir o momento do saber.
-
A partir disso, é possível situar em sua possibilidade, mas
também de definir em seus limites, um certo número de des-
crições legitimas do discurso científico. Descrições que não
se endereçam ao saber, enquanto instância de formação, mas
aos objetos, às formas de enundação, aos conceitos, às opi-
niões, enfim, às quais dá lugar. Descrições que, entretanto,
s6 permanecerão legitimas com a condição de não pretende.
rem descobrir as condiçõe.c; de existência de qualquer coisa
como um discurso científico. Assim, é perfeitamente legitimo
descrever o jõgo das opiniões Oll das opções teóricas que
ocorrem em uma ciência e a propósito de uma ciência ; deve-se
poder definir, para uma época Ol~ um domí nio d eterminado,
quais são os princípios de escolha, de que maneira (por qual
retórica ou qual d ialética) êles são manifestados, ocultos ou
jus t:ficados, como se organiza e se instituci onaliza o campo
da polêmica, quais são as motivações que podem determinar
os individuas; enfim, há lugar para uma doxologia que seria
a descrição (sociológica ou lingüística, estatistica ou inter-
pretativa) dos fatos de opinião. Mas há ilusão doxológica
47
 ,
' ~
cada vez que se faz valer a descrição como análise das con-
dições de existência de uma ciência. Esta iJu.são . toma dois
aspectos: admite que o fato das opiniões, em lugar de se~
determinado pelas possibilidades estratégicas dos jogos con-
ceituais, remete diretamente às divergências de interêsse ou
de hábitos mentais nos indivíduos; a opinião seria a irrupção
do não-cientifico (do p~~icológico. do político. do social, do
religioso) no dominio específico da ciência. Mas, por outro
lado, ela supõe que a opinião constitui o núcleo central, o
foco a partir do qual se desenvolve todo o conjunto dos enun-
ciados cientificos; a opinião manifestaria a instância das es-
colhas fundamentais (metafísicas, religiosas, políticas) de
que os diversos conceitos da biologia, ou da economia, ou da
lingüística, seriam apenas a versão superficial e posjtiva, a.
transcrição em um vocabulário determinado, a máscara cega
a si mesma. A ilusão doxológica é uma maneira de elidir o
campo de um saber como lugar e lei de formação das opções
teóricas.
Da mesma forma, é perfeitamente legitimo descrever, para
uma cienda dada, qualquer de seus conceitos ou de seus con-
juntos conceituais; a definição que lhe é dada, a utilização
que dêle se faz, o campo no qual se tenta validá-lo, as trans-
formações que fazemos com que sofra, a maneira pela qual
o generalizamos ou pela qual o transferimos de um domínio
a outro. E' igualmente legítimo descrever a propósito de uma
ciência as formas de proposições que ela reconhece como
válidas, os tipos de inferência aos quais ela recorreu, as re-
gras que ela se dá para ligar os enunciados uns aos outros
.,'I, ou para torná-los equivalentes, as leis que coloca para reger
suas transformações ou suas substituições. Em resumo, po-
i de-se sempre estabelec:cr a semântica e a sintaxe de um
discurso científico. Mas é preciso guardar-se do que se pode-
ria chamar a ilusão lormalizadora: isto é, imaginar-se que
essas leis de construção são ao mesmo tempo e de pleno direito
condições de existência; que os conceitos e as proposições
válidas não são nada mais que formalização de uma expe-
riência selvagem, ou o resultado de um trabalho sôbre pro-
posições e conceitos já. instaurados: que a ciência passa a
existir a partir de um certo grau de conceitualização e de
uma certa forma na construção e no encadeamento das pro-
48
posições; que basta, para descrever sua emergência no campo
"
dos discursos, demarcar o nível lingüístico que a caracteriza.
.... ,(
•
A ilusão formalizadora elide o saber (a rêde teórica e a re-
partição enunciativa) como lugar e lei de formação dos con-
ceitos e das proposições.
finalmente, é possível e legitimo definir; por uma análise
regional, o dominio de objetos aos quais uma ciência se dirige.
E de analisar seja sôbre o horizonte da ideaIidade que a
ciência constitui (por um código de abstração, por regras
de manipulação, por um sistema de apresentação e de eventual
representação), seja no mundo de coisas ao qual êstes objetos
se referem: pois se é verdade que o objeto da biologia ou
da economia politica ficam bem definidos por uma certa
estrutura de ideal idade própria a estas duas ciências, se não
são pura e simplesmente a vida de que participam os indi-
viduos humanos ou a industrialização de que foram os arte-
sãos, acontece o mesmo na experiência ou em uma fase
determinada da evolução capitalista a que êsses objetos se
referem. Mas estaríamos errados em acreditar (por uma
ilusão da experiência) que há regiões ou domíniõt di;t coisas
que se oferecem e.<;pODtâneamente a umll atividaãe de ideali-
zação e ao trabalho da linguagéincieíilifica; qüê ·elas se de-
senvolvem por si mesmas, na ordem ou na história,....a técnica,
as descobertas, as instituições: 'os instrumentos humanos pu-
deram tê-los constituidos ou revelado; que tOda a elaboração
científica e apenas uma certa maneira de ler, de decifrar, de
abstrair, de decompor e de recompor c que é dado, seja em
uma experiência natural (e por conseguinte de valor geral),
seja em uma experiência cultural (e por conseguinte relativa
e histórica). Hã lima ilusão que consiste em supor que a
ciência se enraiza na plenitude de uma experiência concreta
e vivida; que a geometria elabora um espaço percebido, que
a biologia dá forma à íntima experiência da vida, ou que a
economia política traduz ao nível do discurso teórico os pro..
cessas da industrialização; então, que o referente detem em
si mesmo a lei do objeto cientifico, Mas é igualmente ilusório
imaginar que a ciência se estabelece por um gesto de. ru~tura
e de decisão, que se liberta fàcilmente do campo quahtahYO e
de todos os murmúrios do imaginário, pela violência (serena
ou polêmica) de uma razão que se funda ela mesma em suas
E.&tru.tg.allllllo I TeerI& ••• - 4 49

: ..i'
próprias asserções : então, que o objeto cientifico passa a
existir em sua própria identidade.
Se há ao mesmo tempo relação e corte «coupore» entre
a análise da vida e a familiaridade do corpo. do sofrimento.
da doença c da mortcj se hã entre a economia politica c uma
certa forma de produção a o mes mo tempo ligação e di s-
tancia, se UC ulIla fOfma geral, a ciência se rdere à expe-
ri ência e, entre tanto, dda se des taca, não ê o fato de uma
determinação unívoca nem de um corte ( << coupurc» soberano,
constante e definitivo. Na verdade, essas relações de refe-
rência c de distância são especificas para cada discurso cien-
tifico c sua forma varia através da história. E' que elas
meSmas são determinadas pela instância específica do saber.
E.ste ddinr as leis de formação dos objetos cientificas e
cspt:cifica por isso os laç os ou oposições da ciência e da
experiência. Sua extrema proximidade, sua intransponível
distância não é dada no inicio; tem seu principio na morfo-
i logia do referencial; é êste que define a di sposição recíproca
- o face-i -face, a oposição, seu sistema de comunicação -
i ._
do referente e do objeto. Entre a ciência e a experiência há
··""ó Uber:...não a titulo de mediação invisível, de intermediário
secreto e cumplice, entre duas distAncias tão diliceis ao mesmo
I
tempo de reconciliar e desembaraçar; na verdade, o saber
determina o espaço onde se podem separar e situar, uma em
relação a outra, a ciência e a experiência.
I !
O que a arqueologia do saber coloca fora de circuito não
é, então, a possibilidade das descrições diversas a que pode
dar lugar o discurso cientifico; é, antes, o tema geral do
«conhecimento:t. O conhecimento ~ a continuidade da ciência
e da experiência, seu indissociável emaranhado, sua reversi-
bilidade indefinida ; é um jõgo de formas que antecipam sôbre
todos os conteLidos na medida em que elas já as torna0!
possíveis; ~ um campo de conteúdos originários que esbo-
çam silenciosamente as formas através das quais poderemos
le-Ios; é a estranha instauração do formal em uma ordem su-
cessiva que l: a das gêneses psicológicas ou históricas ; mas
(: o ordenamentu do empírico por uma forma que lhe impõe
sua tcleologia. O conhecimento confia à experiência o en-
cargo de dar conta da existência efetiva 'da ciência; e ela
confia à cientificidadc a tarefa de dar conta da emergência
50
.'
:R~~.:·\~j.·'>~:~~ ,.~ . i ;.~ :..J_ '
" ~ ~,;-... -"', F, ~
histórica das formas e do sistema ao qual ela obedece. O
tema do conhecimento equivale a uma negação do saber.
Ora, a êste tema maior, alguns outros estão ligados. O de
uma atividade constituinte que asseguraria, por uma série
de operações fundamentais, anteriores a todos os gestos ex-
plicitas. a tôdas as manipulações concretas, a todos os con-
h!udos dados, a unidade entre uma ciência definida por um
sistema de requisitos formais e um mundo definido como
horizonte de tódas as experiências possíveis. O de um sujeito
que assegura, em sua unidade reflexiva, a síntese entre a di-
versid.1de sucessiva do dado e a idealidade que se perfila,
em 5U;\ identidade, através do tempo. Finalmente, e sobretudo,
o grande tema histórico-transcendental que atravessou o sé-
culo XIX e apenas se esgota ainda hoje na repetição incan-
sável destas duas questões: qual dev~ ser a história, por qual
projeto absolutamente arcai", é preciso que, ela seja atra-
vessada, qual lelos fundamental a est~belec.u desde seu pri-
meiro momento (ou, antes, desde o que abriu .. possibilidade
dêsse primeiro momento) e a dirige, na sombra, ali direção
a um fim já estabelecido, para que a vérdade ai at>zreça, ou
que ela reconheça nessa c1aridade sempre recuada, o ntômo
daquilo que já a origem havia ocultado? E logo a outra
qUestão se formula: qual deve ser essa verdade ou talwz .
essa abertura mais que originária para que a história ai se
I \ desenrole, não se recobri-Ia, ocultá-la, mergulhá-Ia em um
~
I',\\ esquecimento de que essa história, todavia, carrega a repe...
lição, a lembrança, e, portanto, a mem6ria jamais completa.
i Pode·se fazer o que se quiser para tomar essas questões tão
r.dicais quanto possivel: elas permanecem ligadas, apesar de
tõdas as tentativas para daí arrancá-Ias, a uma canalitica do
~cit(J e ~ma proble~!tica. do co~e~imento. ----
Por oposiçãõ-ãtõdos êsses temas, pode-se dizer que o
saber, como campo de historicidade em que aparecem as
ciências, t' 'vre de ual ucr atividade constituinte, liberto
dç,~u_er r.!!ferência a uma origem ou a ~ma eleologia
histórico-transcedental; destacad6 de qoaíqÜer apoio sObre
uma sll.llj~ivLdªde fundadora. De tMas as formas de síntese
prévias pelas quais se queria unificar os acontecimentos des-
continuos do discurso, é provável que estas tenham sido du-
rante mais de um século as mais insistentes e as mais temi..
'0 51
 • veis; eram elas, sem dúvida, que animavam o tema de uma
história contínua, perpetuamente ligada a si mesma e indefi·
nidamente oferecida às tarefas da retomada e da totalização.
{ Seria necessário que a história fôsse conUnua para que a
i soberania do sujeito estivesse resguardada; mas se ria neces-
sário, reciprocamente. que uma subjetividade constituinte e
I .lma tcleologia transce ndental atravessassem a história para
que esta pudesse ser pensada em sua unidade. Assim estaria
11 excluida do discurso e rejeitada no impensável a desconti-
I,
I
r .; nuidade anônima do saber .
I seria o circulo hermenêutica?
I Se o primeiro recorte ("dlcoupage"), ao con ~ rário, é definitivo,
I é arbitrário.
I Entre o interminavel e o arbitrario, para o que hl. lugar?
I
NOVAS QUESTõES
Não somos nós que faremo& o balanço do que pennanece em sus-
penso, após a Resposta de Michel Foucault. das questões que pro-
puséramos. Pois o movimento pelo qual ela excede a dimensão
epistemológica em que nos alojamos l bastante imperioSo para fazer
! esquecer agora u elisÕH que o permitem.
Que ni"gu~m 5e engane: o texto que acabamos de ler, pelo sistema
! que articula pela primeira vez das relações necessárias que mantém
aos olhos do Autor, Histoirt di la Folil, NauSllnct di la Clinique
e Its Mots ti Ils Chosts, d' uma fu ndamentaçio renovada à arque~
logia da ci!ncias e recentra a teoria do diSCllrso que a suporta
att desfazer seu rMtodo de leitura, tal como a introdução a Naissanu
di la Cliniqut institulra.
'II E' porque há coisa mais importante a fazer do que nos repetirmos.
~1 Uma tarefa se propõe por si mesma: a de tomar um inicio nôvo
d!ste texto nOvo. e nos inserirmos assim, como a tanto nos autoriza
Michel Foucault, no processo de um trabalho cujo titulo mais emi.
nente c de estar ainda agora. e verd",deiramente, tm curso.
Do circulo do método
Nossa primeira palavra deve ser para dizer o circulo do método.
Na verdade, a critica da continuidade, tão corrosiva que poderia
reunir Martial Gueroult e Heidegger sob a crítica de "antropologia.
mo", desde que êles estudam totalidades que reunem nomes próprios,
leva inevitavelmente Foucault a um circulo quando tenta circunscre·
"er seus próprios objetos. No nível radiral distinguido como "o
rtfe :encial", o conjunto dos enunciados a estudar não tem outra uni·
52
da de que a da lei mesma que regula a disperaS.o dos "'diferenteS
objetos ou referentes" Que êsse conjunto "põe em jÓio", o que quu
dizer: a lei define o que a define.
E' justo reconhecer Que êsse circulo segundo tOda verossimilhança
~ assumido, já Que a dtscontinuidode D implica no que ela é ao
mesmo tempo "objeto e instrumento de pesquisa", e delimita "o
campo de uma analise de que ela é o efeito".
Mas uma teoria déste efeito é necessária, sem dúvida .
Se o método se encontra coagido, em virtude de seu circulo, a
tomar se u inicio de um recorte ("dtcoupage") provisório, por que
êste difere das "sínteses espontâneas" de Que o texto . instrui o
processo? Eis que concatena o processo de uma correeão interm ....
navel, progressiva-regressiva. O circulo da arqueologia das ciências
Da regra de formaçlo
Para resolver o problema da unidade dos objetos, a Rtsposta
propõe um conceito inédito, a "regra de fonnaçio".
Nos quatro níveis que esgotam os aspectos dos discursos, êsse
conceito está pOsto em jOgo, e seus efeitos enunciados quatro vêze:l .
em têrmos idênticos. Mas a regra é algo mais que o nome dado • . '..
relação. Inespecificável, de uma variedade a uma unidade, já que
seu próprio singular se opõe stm mtdioção à dispersio dos obje~OI .
que ela passa por formar?
Se a regra é a partir de agora articulâvel · para Michel Foucaull.
é preciso perguntar-lhe então quais são suas propriedades. o que a
opõe a outros tipos de regras e que a distingue em particular du
rtgras t struturalistas?
O sistema de um conjunto de enunciados deve ser capaz de s0-
mente formar diz a Resposta, os enunciados efetivamente produzidos,
e nenhum outro a mais ou em seu lugar. Não é preciso recons'ituir
um sistema de formação de produtividade indefinida, antes de im-
por-lhe a limitação de produzir apenas o numero finito dos enuncia-
dos que ocorreram? Gueroult está errado , respondfndo no lugar de
Descartes às Questões que êste não encontrou, de avaliar assim a
pot~ncia do sistema cartesiano?
Do discurso, do emmciado, e do aconteclmento
E' preciso voltar agora ao conceito do di~curso . de que se cons.
tata na Rtsposta que o valor não esti fixado. Parece que se podem
distinJnJir três l sentidos da palavra, que se deixam ordenar em
processo.
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'-: .
. ... ;
 •
L Em um primeiro sentido, o discurso é um grupamento dado de
eaUD.."iados d~dos, o enunciado sendo aqui apenas a identidade inde--
~\b do tipo imediatamente inferior ao discurso; é nc!'te sentido
~ ~ f3la da "superficie dos discursos",
!.. .Em um sentido, o discurso é o conceito do Que deve sua unidade
L:l:S <;'""-1tTo critérios; é neste sentido que se fala dos "aspectos dos
c.s..::::::scs-.
l. Fin.1lmente, o discurso como formação discursiva é o que rc-
ào tratamento de t por 2, ou seja, entre todos os grupamentos
S:::õ2
~. aquêle que se coloca sob o conceito definido em 2. E' deste
j'OCt.:! de lista que se pode dizer que a formação discursiva "agrupa
tõàa uma população de acontecimentos enunciath'os".
Toio o processo está suspenso pela definição ausente do enunciado,
QUt ama no conceito do discurso no sentido 1, e que supõe o dis-
o:n.c 80S sentidos 2 e 3.
Ta::udo-se do enunciado, pode·se perguntar se esta unidade estA
basta:wct especificada para ser a menos dotada de sentido. E quais
são as ai~rios de individualização de tal enunciado, dêsde quando
tstt i considerado como inanalisAvel? O lugar está no número dêsses
critirios? E todos não se reduziriam apenas a éle? Neste ca30, que
!iiaMdo kria dizer que um enunciado se reptle?
Hi -.ti; o lugar l uma determinação dupla, jA que o enunciado
• c::.abe como um ~I~mtnlo em um sistema e um acontecimento
• ~çio. Na verdade, I R~sposta explicita o prinCipio de lei.
bn do eDuudado como elemento (tomada de leis de náo-oCoinc"
deKi:a,. clt desvio e de disperslo, remetendo às regras de fonnaçio)
~ eotenckr que existe um principio do enunciado como acon-
~ (tomada das condiÇÕH que regem o aparecimento de
.._;'""'Io*s como acontedrnntos, a+rav&: de sua articulação com
o.tros acoateclmentos. de natureza nlo-discursiva).
E.trmmo, bi efetivamente dois principias de leitura? E qual seria
il a:nioII.açio do segundo com o primeiro? Na verdade, o acontecl-
a:.to de estar sempre inscrito em uma configuração e relacionado
ao siszm.a de suas condições, parece não ser mais que um elemento.
Ma.. MWamente, tOdas as caracterizações que é possível dar da
~ do acontecimento nlo se reduzem à singularidade de
uma. ".tStftÇIl? E esta tem outro fim que o de permitir dissolver as
mriCaóes de tôdas as ordens que secreta por assim dizer essa illguma
coisa. cp:!e não tem nome mais preciso que "cultura"?
Si<;.. obstante, Michel Foucault pode reconhecer, na dispersão
dos aoxrt:ecimentos "um jOgo de relaçóes", "um conjunto de regras"
~e se .a~tam como fundadas na unicidadt de um sistema que
drf".mt o COIJjunto das condições históricas de possibilidades dêsses
acw tt:::iweutos.
PaRa.oOOS que essa seqOência: I) Unidades, 2) Singularidade, 3)
Uaicidade (ou tênnos equivalentes) forma agora sistema, opera em
~ (2 trata t para produzir 3) e permite apresentar como
te!In 'li PQ!tulados JeguintH:
t. A~ento e enunciado são Ih-res, todo acontecimento apa-
recendo o:mo enunciado no "espaço do discurso".
2. Nc roajunto dos enunciados, que e, de direito, finito, todo
enuncia.): i insubstituível.
Se ~ [lostulados estivessem explicitados, a questão se colocaria
semprt: C ·que permite às quatro "regras de fonnação" formarem
conjun:-: .:t: às "formações discursivas" e às "positividade~" ~ cor.
respon:i.....~ Não seria porque está suposto que um principiO de
coerên~ :eduz, no "incom.ciente da coisa dita" , o acontecimento em
sua ~cia pura ao estatuto ~e um elemento? E' preciso em.pregar
---~
o têrmc :'-:t]ca para designar o sistema que penmte tornar perhnenMs
OS dÍ\~ acontecimentos, quer estejam registrados ou não? .
Dand:· "mI. passo a mais, o aband ono do princípio de coerênCia
acarretril como conseqüência a independência verdadeira do "acon-
tecimerõ:;: üo-discursivo·'? E não seria necessário supor que cada
vez que c:: acontecimento é rdomado com-o en~nciado. e passa ~o~
elemtntt ~ conjunto do saber, há um resto Ifreduhvel que hnuta
as pretel5."".es de uma "descrição pura dos fatos dc discurso", e que
implica .e..-esãriamente uma aniculação do saber com o que êIe
não ~ iIItcgrar?
Fi~ concluiremos pelo que nos parece o afastamento maior
da Ra,.". em relação ao quc compreendíamos do pensamento de
FouClllll
Já qa est;j aqui seu axioma de que só há impensado constituído
d~ TeK'B. tir. se proíbe de falar do impensado de um t!nunciado ou
j de um Buso! êsse impensado jamais seria senão um outro enun-
ciado, _ .aro discurso.
E' pra::Bo, pois, que a critica da continuidade (do livro, da obra.
da bismriz. cn seu conjunto ou de uma fonnaçia que a recobre.
como pz:1. Heidegger. a metaffsica) exclui de agora em diante que
um """'C"iadc seja produzido para tomar o lugar de um outro? Isto
é: para ia:::ledi·Jo de aparecer, para rualcti-lo (Hlt refou/er')?
Que m:: cfi:scurso possa vir .i superfície para recalcar ("refouler")
um oatr:. JOb si é entretanto o que, da psicanálise, n's parecia a
aquisiçi:: ódinitiva. .
Após z. i-cposla ao Circulo de Epistemologia, a questão se propõe:
onde fCl'!l:::aSlt se coloca agora, em relação a Freud e a Nietzshe? • _
o CIRCULO DE EPISTEMOLOQIA
• MJ~ f...cal,llt, novamente, .allou dar um,a rupo.ta e H.a, qllUlaes;
Ele lparea:n. d i 1,1111 Dúmero Go. Cohl'TI pour I "rull,le.