Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Texto e pesquisa
Eduardo Amaro
Notas explicativas
Bellovesos Isarnos
Capa:
Zellig/www.zellig.com.br
Ilustrações
Luciana Lebel
Copidesque
Luisa Ulhoa
Revisão
Luíza Côrtes
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
A522a
Moreira, Marcelo
Alma celta / Marcelo Moreira. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014.
ISBN 9788577345120
1. Ficção fantástica. I. Título.
14-17208 CDD: 869.93
CDU: 821.134.3(81)-3
– Eduardo Amaro
A canção de Amergin
Por fim, os três reis dos Danann e suas rainhas foram mortos na Batalha
de Tailtiu. As Tuatha Dé Danann foram derrotadas e obrigadas a recuar para
o Outro Mundo, através de colinas subterrâneas, o Sídhe, muito além-mar,
graças a um feitiço de invisibilidade de Manannán. A Irlanda foi dividida
entre os irmãos de Amergin, Érimón, que governou o norte, e Éber Finn, o
sul.
Em nossa visão pessoal, a canção de Amergin invoca os reinos do céu, da
terra e do mar com palavras de sabedoria e poder para reivindicar a
soberania da terra, a partir do “Eu sou”, pois cada ser carrega em si
elementos, ou dúile, que os une à natureza e aos deuses, ou seja, é a
integração do homem com o Todo – interligados como um nó celta.
Suas palavras são como um desafio, uma inspiração divina que, na língua
gaélica, é conhecida como Imbas, a inspiração poética, tal como a Awen
dos galeses, um frenesi conhecido como “fogo na cabeça”, promovido por
estados alterados da consciência. O poema de Amergin revela segredos
druídicos, centrados numa longa jornada xamânica, rumo ao Outro Mundo e
o seu retorno.
Encerra-se, assim, mais um ciclo da epopeia celta, mas ele se perpetua e
as Tuatha Dé Danann apareceriam em muitas outras histórias séculos
adiante, comprovando a sua existência divina e imortal.
Os druidas
A palavra druida é de origem celta e, segundo o historiador romano Plínio,
relaciona-se com a força do carvalho, considerada uma árvore sagrada. Os
druidas foram membros de uma elevada ascendência céltica. Ocupavam
cargos de juiz, médico, astrônomo, alquimista, mago, místico e grandes
conhecedores da religião, entre outras funções. Eles também eram filósofos,
cientistas, teólogos e intelectuais da sua cultura. Embora possuíssem uma
forma de escrita chamada Ogham, muito parecida com a escrita rúnica dos
nórdicos, eles não a usavam para registrar seus conhecimentos.
Estrabão, como outros autores clássicos, cita: “Entre todas as tribos,
falando de um modo geral, havia três classes de homens tidos com honra
especial: os bárdoi, os ouáteis e os druídai. Os bárdoi eram os cantores e
poetas; os ouáteis se ocuparam das coisas do culto e eram filósofos naturais;
enquanto os druídai, em acréscimo à ciência da natureza, estudaram
também a filosofia moral e ética.”
Os druidas possuíam o ofício sacerdotal, exercendo também a função de
conselheiros e filósofos naturais. Eram eles os responsáveis pelas
cerimônias religiosas, pelos rituais em geral e por todos os julgamentos da
tribo, dividindo-se em três tipos de funções ou castas sacerdotais: bardos
(fili), ovates (vates) e druidas. Possuíam ainda o dom da profecia e entravam
em transe xamânico para contatar o Outro Mundo. Considerados mestres da
magia, faziam encantamentos quando necessário e provocavam um sono
mágico nos inimigos, possivelmente hipnótico. Outra habilidade era
produzir brumas misteriosas para mudar de aparência ou se esconder, arte
conhecida como féth fiada. Eles podiam impor a uma pessoa um geis,
espécie de proibição, uma maldição ou um feitiço que, se quebrado,
acarretava terríveis consequências ao transgressor.
Ensinavam sobre a metempsicose, termo que descreve a transmigração da
alma de um corpo para outro, com a possibilidade de a alma humana habitar
provisoriamente corpos de animais. Entre seus ensinamentos, havia relatos
da doutrina pitagórica do renascimento da alma em outro corpo depois da
morte.
Na Gália (atual França), Grã-Bretanha e Irlanda, dedicavam-se ao ensino
daqueles que pretendiam tornar-se druida apenas de forma oral, e os seus
estudos podiam se estender até vinte anos de máxima dedicação. O
sacerdócio não era uma casta fechada, mas aberta a todos aqueles que
demonstrassem uma aptidão sincera, e, apesar de pouquíssimos relatos,
também se estendiam às mulheres. Os druidas, normalmente, constituíam
família.
Após o domínio do cristianismo muitas informações históricas da cultura
celta se perderam, exceto aquilo que permaneceu guardado nos registros de
antigos historiadores e nos achados arqueológicos. Por isso, muito da
história dos druidas ainda é considerado um grande mistério para os
pesquisadores. As fontes de pesquisa do druidismo são praticamente as
mesmas dos celtas, com um pouco mais de restrições, pois eles não estão
presentes em todas as sociedades celtas. Podemos compará-lo às escolas
bramânicas tradicionais da Índia, se tivesse sobrevivido aos tempos antigos.
Seres feéricos
Feérico, que vem do francês féerique e que pertence ao mundo das fadas ou
povo das fadas, são seres mágicos e imortais, dotados de grandes poderes
sobrenaturais e estão presentes em várias mitologias antigas, na literatura
medieval, no folclore e em vários textos modernos.
Para entender de onde vêm esses seres, devemos analisar atentamente os
encontrados na mitologia celta. Apesar de muitas outras culturas e
civilizações terem suas próprias versões de fadas e outros seres
sobrenaturais, como os elfos, por exemplo, a crença irlandesa veio através
da retirada das Tuatha Dé Danann para o Outro Mundo, após a derrota para
os milesianos, os últimos invasores da Irlanda.
Depois de um acordo entre eles, as Danann passaram a viver nas colinas
do subterrâneo, um mundo paralelo ao nosso conhecido como AesSídhe,
que significa “O povo dos montes”, o povo nobre ou os bons vizinhos do
Outro Mundo, considerados os antigos ancestrais, os espíritos da natureza
ou os próprios deuses que um dia habitaram a terra.
Por vezes, são tidos como espíritos guardiões que habitavam uma colina,
uma árvore ou um determinado local próximo às fontes de água, onde as
oferendas eram feitas para se manter a paz. Dentro deste contexto, os seres
feéricos podiam ser vistos ou percebidos ao anoitecer e amanhecer,
momentos considerados especiais, assim como nos grandes festivais celtas:
Samhain, com a entrada do inverno, e Bealtaine, com a chegada do verão.
A maioria das informações que temos sobre as fadas irlandesas vem do
poeta irlandês do século XIX, William Butler Yeats.
Ano celta
O ano celta era dividido em duas metades: uma metade clara e outra escura.
As duas eram associadas respectivamente ao verão e ao inverno. Além
disso, durante o ano havia comemorações agrícolas e pastoris celebradas
nos grandes festivais celtas: Samhain, Imbolc, Bealtaine e Lughnasadh.
Outros dias sagrados podiam ser adicionados aos ritos do ano.
Calendários antigos de origem céltica, como o Calendário de Coligny –
descoberta arqueológica feita em uma área ao norte de Coligny, próxima a
Lyon, na França, onde foi encontrada uma grande placa de bronze com 153
fragmentos datando aproximadamente de 50 d.C. –, indicam que o tempo
também era medido por eles com base nos ciclos da Lua e do Sol.
Possivelmente, marcavam a data de quando os festivais celtas eram
celebrados, havendo referências ocasionais para as celebrações dos
solstícios e equinócios.
Animais celtas
Os animais representavam partes inconscientes de um poder mágico que nos
revelava qualidades sobrenaturais, possibilitando a comunicação entre os
mundos. Os celtas como animistas acreditavam que todos os aspectos do
mundo natural eram dotados de espíritos e entidades divinas, com as quais
todos os seres humanos poderiam estabelecer contato.
Podemos observar como os animais míticos eram consultados e, ao
mesmo tempo, como eles carregavam em si qualidades protetoras e
amigáveis, atuando como emissários dos deuses que, em certas ocasiões,
também podiam se transformar em animais.
Os cães, por exemplo, geralmente, estavam associados à proteção, à caça
e às provas sobrenaturais. Os cavalos tinham um valor inestimável para os
celtas, fosse na guerra, fosse como meio de locomoção para o Outro
Mundo.
Tanto os animais domésticos quanto os selvagens estavam ligados à
fertilidade, à vitalidade, à força, ao movimento e ao crescimento,
fornecendo condições necessárias à subsistência de toda a tribo através de
sua carne, peles e ossos. Representavam também uma forte conexão entre a
terra e os céus, ligados a vários deuses, promovendo a busca de segredos e
de sabedoria ancestral.
Para os celtas, cada animal possuía um atributo específico e suas
características eram associadas a algum tipo de habilidade. Eram dignos de
veneração através de um ritual ou uma cerimônia religiosa.
As aves estavam sob os domínios do céu e eram vistas como um elo entre
os vivos e os espíritos ancestrais. Elas podiam ser tanto o mensageiro como
a própria mensagem, carregando em si um teor mágico, profético ou
divinatório.
O javali e os porcos representavam coragem, bravura, proteção e riqueza.
Os peixes, especialmente o salmão, estavam associados à sabedoria e ao
conhecimento. A lenda nos diz que o salmão adquiriu esse conhecimento ao
comer nove avelãs que caíram no poço da sabedoria de nove árvores que
ficavam ao redor da fonte sagrada, e a primeira pessoa que comesse sua
carne fresca ganharia todo esse conhecimento. Foi assim que Finn Mac
Cumhail recebeu seu conhecimento, após sete anos tentando pescar o
Salmão do Conhecimento, nos contos do ciclo feniano.
O veado era um animal reverenciado e perseguido ao mesmo tempo,
considerado por vezes emissário divino ou deus transformado em animal.
Exemplo dessa transformação é como Cernunnos, o senhor dos animais, da
natureza e da abundância, foi retratado no Caldeirão de Gundestrup, um
antigo artefato de prata, ricamente decorado em alto-relevo, encontrado na
Dinamarca, datado do século I a.C. e que pertence ao final do período de La
Tène.
Há uma infinidade de animais descritos nos contos e nos mitos celtas, o
que mostra uma profunda ligação com a natureza e, principalmente, a
conscientização de sua sacralidade e o respeito entre os mundos natural e
sobrenatural. Assim é descrita uma época em que os deuses viviam em
plena harmonia com os homens e os animais.
Os deuses celtas
Os celtas não misturavam panteões de outras culturas e nem cultuavam
deuses celtas de outras tribos. Apesar das semelhanças entre eles, cada tribo
celta celebrava seus deuses locais seguindo apenas as referências das
tradições pertencentes a sua terra natal, com exceção de algumas divindades
pancélticas. Para entender melhor seus atributos e funções é necessário um
maior aprofundamento nos estudos célticos, a fim de se evitar avaliações
equivocadas. A seguir, alguns dos principais deuses celtas e suas tradições.
Mitologia irlandesa
– Áine: deusa do amor, da fertilidade e do verão. Rainha dos reinos
feéricos das Tuatha Dé Danann, conhecida como CnocÁine (Monte de
Áine), era a soberana da terra e do Sol, associada ao solstício de verão,
às flores e fontes de água. Áine (pronuncia-se Enya), filha de
Manannán Mac Lir, representa a luz brilhante do verão. Como uma
deusa solar, podia assumir a forma de uma égua vermelha.
– Boann/ Boand/ Boyne: deusa que deu nome ao rio Boyne, na Irlanda,
descrito nos poemas “Dindshenchas”, que contam lendas relacionadas
à origem dos nomes dos lugares sagrados da Irlanda, do Ciclo
Mitológico Irlandês e na lenda do “Salmão da Sabedoria”. Ela era
esposa de Nechtan, o deus do rio. Também é mãe de Angus Mac Og
com o grande Dagda. Para esconder o adultério de Boann, Dagda usou
o seu poder para esconder a gravidez de Boann, fazendo uma viagem
de nove meses parecer ser de apenas um dia e uma noite. É a deusa da
fertilidade, da abundância e da prosperidade.
– Cailleach: é a deusa da terra e das rochas. Diz a lenda que ela criou os
morros e as montanhas a sua volta, ao atirar pedras em um inimigo. Na
mitologia irlandesa e escocesa, é conhecida também como a Cailleach
Bheur, que significa “mulher velha” e é descrita, às vezes, de capuz
com o rosto azul-acinzentado. Geralmente é vista como a deusa da
última colheita (Samhain), dos ventos frios e das mudanças; aquela que
controla as estações do ano, a Senhora do Inverno.
Mitologia galesa
– Arawn: é o rei de Annwn ou Annwfn (Outro Mundo). O submundo
na tradição galesa que é visto como um castelo sobre o mar, chamado
de Caer Siddi, castelo de fadas, ou Caer Wydyr, palácio de vidro.
Como Tír inna n-Óc, Annwn era um lugar de doçura e encanto. Arawn
possuía um caldeirão mágico, descrito no poema do bardo Taliesin, em
“Os Espólios de Annwn”, em que descrevia a viagem de Arthur e seus
companheiros ao Outro Mundo para resgatarem o Caldeirão da
Abundância.
– Dylan: filho das ondas do mar, o menino dos cabelos de ouro é o deus
do mar para os antigos galeses. Filho de Arianrhod, irmão gêmeo de
Lleu e sobrinho de Gwydion. Seu símbolo é um peixe prateado, dos
contos do Mabinogion em “Math, filho de Mathonwy”.
Mitologia gaulesa
O termo gaulês se designa a um conjunto de povos celtas que vieram de
Gales e povoaram a Gália, que atualmente corresponde aos territórios da
França até a Bélgica e à Itália setentrional.
Os celtas na atualidade
Apesar do declínio das línguas celtas, a sua sobrevivência é certa graças
àqueles que buscam o regaste histórico dessa cultura. Em termos gerais, a
sua definição é uma questão que levanta a abordagem de como a linguagem
realmente é importante para a identidade céltica na visão moderna, presente
também nos nomes toponímicos. Mas devemos ter em mente que os
habitantes, por exemplo, da Escócia, da Irlanda, do País de Gales, da Ilha de
Man, da Cornualha e da Bretanha não se definem como celtas, embora o
atual movimento pancelta insista nesse conceito.
O número exato de celtas é incerto e as verdadeiras razões deste declínio
são complexas. Poderíamos descrever inúmeros motivos, desde a relutância
da Igreja Católica até problemas econômicos e sociais. Ainda assim, a
identidade celta está se desenvolvendo de forma independente, e suas raízes
linguísticas estão se espalhando e ganhando novos simpatizantes pelo
mundo afora.
No passado, o renascimento celta foi visto de maneira idealista e
platônica ao tentar resgatar os costumes celtas através dos movimentos
literários da época. Precisamos ter cuidado para não incorrermos no mesmo
erro nas práticas druídicas modernas. E o mesmo pode ser dito dos
estudiosos, particularmente dos acadêmicos e historiadores revisionistas.
Podemos afirmar que as principais fontes de informação sobre os antigos
celtas e druidas são descritas em relatos clássicos de historiadores greco-
romanos, em dados arqueológicos e nos registros de monges cristãos, entre
os séculos VIII e XII d.C. Outros meios possíveis para se entender os celtas
e os seus costumes nos dias atuais seriam através de analogias e estudos
comparativos entre eles e outras culturas indo-europeias semelhantes ou que
conviveram entre si em algum período da história.
Rowena Arnehoy Seneween
Pesquisadora autodidata da cultura celta e druidismo
1 Monumento megalítico funerário caracterizado por duas ou mais pedras verticais que sustentam uma
grande pedra horizontal (laje), formando assim uma câmara sepulcral.
Prólogo
Masa brec gach dan suad,
is brec brat ‘s as brec biad;
‘s as brec an domhan uli,
‘s as brec fos an duine criad.
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5 Povos (ou tribos) da deusa Dana. De acordo com a tradição registrada no Lebor Gabála Érenn (LGE,
“Livro das Conquistas da Irlanda”), as Tuatha foram o quinto grupo a estabelecer-se na Irlanda,
conquistando-a ao derrotar os firbolg. Pensa-se que as Tuatha Dé Danann derivaram das divindades
pré-cristãs da Irlanda.
6 O carvalho (duir) é uma das árvores de vida mais longa, levando setenta anos ou mais para ficar
madura o bastante para produzir bolotas. Por essa razão, a tradição irlandesa associa-o à força sólida e
bem-desenvolvida de uma pessoa em seus anos mais vigorosos. O carvalho simboliza a perícia
artesanal, a habilidade oriunda de uma longa prática e do trabalho duro. Essa forte e firme árvore está
intrinsecamente associada à magia, compreendida como a interação com o mundo natural desenvolvida
ao longo de extenso e árduo aprendizado. O carvalho ensina que qualquer habilidade difícil de obter
contém um elemento de magia. Como o Caldeirão da Abundância da lenda, que aparece vazio para o
covarde e o mentiroso, ele generosamente concede suas riquezas ao corajoso, sincero e persistente que
se mostrar digno de recebê-las.
7 Em gaélico, Bealtaine é o nome do mês de maio e também o do festival celebrado na noite que
precede o dia 1º de maio. O Bealtaine marca a metade do percurso do Sol entre o equinócio da
primavera e o solstício de verão no hemisfério norte. De acordo com o Sanas Chormaic (“Glossário de
Cormac”), do século IX, os druidas da ilha faziam fogos com grandes encantamentos na noite de
Bealtaine. O gado passava entre esses fogos para obter proteção contra doenças e as pessoas dançavam
ao redor das fogueiras, em busca de fertilidade e defesa contra maus espíritos. A origem do nome
Bealtaine seria a expressão bil tine, “fogo afortunado”. Todos os fogos da Irlanda deveriam ser
apagados na noite de Bealtaine e depois novamente acesos com brasas trazidas das fogueiras druídicas
de Uisneach, no reino de Mide, centro mítico da Irlanda antiga.
8 Deusa-mãe das Tuatha Dé Danann. Nenhum mito a seu respeito sobreviveu, embora o teônimo Danu
seja, supostamente, a origem de vários nomes de rios espalhados pela Europa, como Danúbio, Dniepr,
Dniestr e Dôn, assim apontando para sua origem como deusa aquática/fluvial. Sua correspondente mais
próxima é Dôn, figura mítica presente nas lendas do Mabinogion.
11 Figol foi o druida das Tuatha Dé Danann responsável por três chuvas de fogo que caíram sobre os
Fomoiri, inimigos das Tribos de Danu, por ocasião da Segunda Batalha de MaghTuredh.
12 De acordo com a lenda, a Pedra do Destino emitiria um rugido ao ser pisada pelo homem que
devesse ocupar a posição de Ard Ri Érenn (“Rei Supremo da Irlanda”). Era um dos principais símbolos
míticos da Soberania (Fláith), trazido de Falias pelas Tuatha.
13 Érimón ficou com a metade norte da Irlanda; Éber Finn, com a metade sul. Depois, insatisfeito com
sua parte na divisão, Érimón entrou em guerra com Éber e matou-o, tornando-se governante único da
ilha. De acordo com o historiador irlandês Seathrún Céitinn (Foras Feasa ar Éirinn, “Alicerce do
Conhecimento sobre a Irlanda”), o reinado de Érimón teria começado em 1.287 a.C. Os Annála nag
Ceithre Máistrí (“Anais dos Quatro Mestres”), contudo, indicam o ano 1.700 a.C.
14 Síde (plural de síd) são as colinas ou pequenos montes que pontilham a paisagem irlandesa. Em
vários textos mitológicos, cada um das Tuatha Dé recebe um síd próprio. Na literatura mais antiga, a
palavra síde refere-se aos palácios, salões ou residências subterrâneos que se tornaram moradas dos
deuses. Depois, síde passou a designar tanto os montes quanto os seus habitantes (Aes Síde, “Povo dos
Síde, Povo dos Montes Encantados”). Os Síde tornaram-se as fadas do folclore irlandês.
O décimo sétimo dia da Lua
Meu canto é a alma da natureza
O vento passa por mim
Meus olhos ficam verdes, como a terra sagrada
Minha alma – sua alma
Cresce – cresce rapidamente
(Refrão)
Contemplo toda a minha vida
Espalhando pelo mundo
(Refrão)
17th day of the moon
(Música: Marcelo Moreira / Letra: Eduardo Amaro e Alexei Leão)
A lake on a plain
A hawk on a hill
The 17th day of the moon
An oak in the woods
The fire in your chest
I am, I am, I am
What I am
(Chorus)
Cherish all my life
Spreading through the world
(Chorus)
2
Do meu coração
Após uma noite de descanso perto do riacho, que percorre a colina sagrada,
Amergin montou para retornar ao litoral. Imaginava a surpresa e o pesar de
Eithear no momento em que tivesse ciência dos acontecimentos.
A cavalgada não se mostrava cansativa nem para o mago, nem para o
animal. Estranhamente, ele nem sequer recordava do percurso. A lembrança
esvaíra-se como um sonho.
Chegou a uma floresta com altas árvores de troncos delgados, espaçados
o bastante para um homem a cavalo passar sem se preocupar com os galhos
mais baixos. O chão estava marcado por muitas trilhas, talvez indicando a
proximidade de algum povoado.
A temperatura caiu abruptamente. Um frio sem precedentes. O inverno
ainda estava longe, porém o sopro gélido cortava sua pele. Amergin viu
uma mulher sentada em um tronco caído, seu rosto tão enrugado quanto o
toco. Ela olhou atentamente para a copa de uma árvore. Não havia mais
ninguém por perto. Ele se aproximou.
– Senhora, estás sozinha nesta floresta! Moras nas redondezas?
– Moro onde o coração humano se encontra, mago: na sabedoria da
folhagem do carvalho, que desaba em honra da época mais fria.
– És uma druidesa? Vives da comunhão com a natureza?
– Procure em ti mesmo e descobrirás.
Após dizer tais palavras, a anciã voltou seu olhar do alto da árvore para o
semblante de Amergin e sorriu. Seu rosto não era corado como o de um ser
humano normal, porém de uma tonalidade cinzenta levemente azulada. Em
seus olhos, muito verdes e sem pupilas, o branco misturava-se e tremulava
como ondas no mar. Os cabelos grisalhos trocavam mechas com fios cor de
cobre.
O sacerdote ficou um pouco perplexo. Enfrentara uma fúria divina no dia
anterior e estava esgotado. Outro confronto seria fatal. Era uma deusa,
certamente, e não uma druidesa. Entretanto, como ela não demonstrava
ameaça, ele permaneceu tranquilo. Pensou nas peculiaridades do momento:
o frio repentino, a aparente velhice da mulher, seus olhos e rosto, a forma de
falar, a sutileza de suas palavras...
– És Cailleach Bheur,15 Senhora do Inverno!
– Ah, percebeste! Teu coração é teu guia, druida. Tua mente racionaliza
somente para que ele perceba as mensagens, e sua réplica é sempre
verdadeira. Segue-o.
– Por que estás aqui, nobre deusa?
– Neste momento, contemplo os pássaros, sentada à beira do lago, para
garantir que quatro cisnes brancos continuem a banhar-se em segurança.
Não deixarei que o lago congele e, dessa forma, pereçam os filhos de Llyr.
Eu os protegerei do inverno inclemente.
– Mas não há pássaro algum, tampouco um lago por perto!
– Justamente porque não estou aqui, Amergin.
Tão breve quanto intenso foi aquele momento de inverno. Tudo
desapareceu como em uma miragem. O feiticeiro entendeu então que, na
verdade, a deusa nunca estivera lá, mas habitava seu próprio interior.
Quando a visão se dissipou, ele percebeu que estava quase chegando em
seu destino. Viu o mar, as naus e seus irmãos. O acampamento depois da
colina, os cavalos e demais animais. Parte em trote rápido em busca de
Eithear.
Foi com euforia mesclada ao pesar que comunicou ao outro druida a
vitória sobre as Tuatha Dé Danann, a perda do irmão Uar, a ira de Morrígu
e o massacre de um exército inteiro.
Eithear perdeu as palavras. Misturaram-se sentimentos desconexos em
seu íntimo: alegria, dor, saudade, tristeza. Ele permaneceu calado, abaixou a
cabeça e partiu rumo à floresta, sem dizer uma única palavra, deixando
Amergin sozinho.
No limite de sua capacidade física e mental, Amergin realmente precisava
de repouso. Seu cavalo também não seria capaz de transportar nem sequer
uma criança. Ele retornou ao interior do acampamento a pé, para poupar o
animal. Seguindo-o desde que deixara a floresta, vários síabrai16
observavam a tristeza e o cansaço do homem cabisbaixo, que entrou em sua
tenda. Enternecidas, ficaram à entrada de prontidão, como se montando
guarda para assegurar o repouso do milesiano.
A noite descia com quietude inesperada, a mesma calma que veria o
nascer do dia seguinte. Ele saiu para caminhar logo cedo. Seus passos,
macios como flocos de neve recém-caídos do céu; sua mente, como uma
gaivota a aproveitar a brisa marítima, mergulhou distraída na imensidão
azul.
Uma espessa névoa matinal ofuscava a entrada da floresta. Passou por ela
e viu a colina. Seguiu uma trilha, feita por antepassados, para que chegasse
ao seu lugar de contemplação. Coletou alguns gravetos secos, colocou-os
uns sobre os outros e fez uma pequena fogueira. Sentou-se diante dela,
fixou seu olhar nas labaredas dançantes. Inspirou e expirou várias vezes.
Deixou a melodia dos pássaros e o sussurro longínquo do mar adentrarem
seus tímpanos. Inspirou e expirou repetidamente, cada vez com menos
intensidade, até que seu espírito vibrasse na mesma sintonia da natureza.
Ela e Amergin comungavam o mesmo canal.
– Conte-me, pequena colina, teus segredos mais profundos, tu, que aqui
chegaste antes dos homens. Abrigo do potente carvalho, abriga também
meu coração em teus braços fortes. Os rios, tuas veias, correm do teu ventre
escuro para o mar, desafogando as mágoas do universo. No inverno
congelante, encontro refúgio nos bosques que te adornam. Encontro o amor
em teu verdejante campo, em meio aos arbustos e árvores onde os pássaros,
mensageiros do céu, cantam juntos o mais puro amor que sinto, ressoando o
encanto de todos os espíritos dos três mundos.
Uma estranha voz, rouca e imponente, ecoou pela floresta:
– A terra e Dagda saúdam-te, milesiano. A prosperidade da Ilha Verde
depende de vós todos, especialmente de teus dons únicos, ó sábio. Reúna os
quatro tesouros que as Tuatha Dé Danann trouxeram das ilhas ao norte do
mundo: a Pedra da Soberania, a Lança da Realeza, a Espada da Vitória e o
Caldeirão da Abundância.17 Oferece-os a Danu, pois assim vencerás a besta
e desencadearás uma era de paz!
O espírito de Amergin regozijou-se com a revelação. Um fio de energia
subiu por sua espinha e ele começou a contemplar o passado e o futuro de
seu mundo, alimentado por ela.
Um escudo, um guerreiro, uma espada, em sua testa o emblema reluzente
de uma nação, um ser quase indestrutível que estava por vir. Seu coração
amedrontou-se diante das visões. A ilha mudaria após a chegada desse
bravo herói. Ele via luz. Via caos. Estava confuso perante essas imagens.
Multidões de seguidores, exércitos, druidas, feitiços, monumento de pedra,
oceano, sangue.
No céu, o falcão voou e crocitou alto – mas escutou também o silêncio de
sua alma alada. A melodia penetrou e reverberou do solo fértil da floresta.
Ao procurar por si mesmo, respirou esses sentimentos e seu ser se encheu
de alegria e bondade.
De seu coração, uma colorida chuva de cânticos espalhava-se por toda a
colina. Os abaicc18 acordaram com a cantoria, os síabrai se agitaram,
dançando em círculos, despertando as flores e as plantas.
Ele pensou: “Os quatro tesouros... Onde encontrá-los?” A voz em sua
mente silenciou. “Quem é a besta temível, que atormenta os meus
pensamentos? A natureza é a essência mais sábia e justa deste plano, nunca
erra. Cabe-me apenas confiar.”
O amanhecer finalmente mostrava sua soberania. Um sol magnífico
brilhava intensamente sobre as águas. Na mata, as árvores em coro com os
pássaros acompanhavam a melodia encantada.
Tudo resplandecia, a vida contagiava o ambiente. Cervos e seus filhotes
apareceram subitamente do meio da floresta em uma brincadeira inocente,
pulando e correndo uns atrás dos outros, para depois se esconderem de novo
nos arbustos.
Dois síabrai brancos foram ao encontro do mago para falar sobre os
mistérios do amanhecer.
– Sábio, as nuvens são o teu caminho. Contempla-as. O Caldeirão
Inesgotável do Dagda encontra-se no caminho nebuloso, oculto nas raízes
do carvalho.
– Obrigado por ouvirdes minhas preces, crianças da terra.
Sem parar, elas continuaram a sobrevoar o bosque, protegendo todo
aquele magnífico lugar. Era sempre assim.
Aquele dia era perfeito para que ele se recuperasse, aproveitando a
calmaria da enseada. Havia um radiante arco-íris! Muitas questões
atormentavam o seu ser: quem era esse homem invencível que via em seus
sonhos? Por que tamanha ira em seus olhos? Ele era realmente um dos
seus? Como poderia interpretar essas visões?
Antes de chegar a essa ilha, ele conseguia entender os próprios presságios
com muita clareza e tranquilidade. Inclusive em alto-mar, sentindo a
vibração do carvalho na selva, havia imaginado que essa dádiva seria
intensificada. Espantou-se que acontecia o oposto!
15 Cailleach é uma bruxa divina, uma criadora, uma deidade ancestral ou uma ancestral divinizada. No
folclore escocês, a criação de numerosas montanhas e grandes colinas é atribuída à Cailleach, formadas
quando pedras acidentalmente caíram do avental da deusa enquanto ela perambulava pela terra. A
Cailleach carrega um martelo para talhar montanhas e vales e é considerada a mãe de todos os deuses e
deusas. Ela personifica o inverno: é a pastora dos cervos, seu cajado congela o chão, ela domina o ano
do primeiro dia do inverno ao primeiro dia do verão, cedendo então seu lugar a Brigit, a filha de Dagda,
embora alguns considerem que a Cailleach e Brigit sejam duas faces da mesma deusa.
16 Significa “fantasmas”, síabair no singular. Originalmente, os síabrai eram aes síde menores,
semelhantes aos álfar (“elfos”) da mitologia nórdica.
17 O antigo poema Tuath De Danand na set soim (“As Tuatha Dé Danann das joias preciosas”),
preservado no Leabhar Buidhe Leacáin (“Livro Amarelo de Lecan”, século XV), menciona os quatro
tesouros das Tribos de Danu: “De Failias para cá a Lia Fáil/ Que gritava sob os reis da Irlanda./ A
espada na mão do ágil Lugh/ De Gorias – uma escolha de riquezas vastas.// De Findias distante sobre o
mar/ Trazida foi a lança mortal de Nuada./ Um grande e poderoso tesouro de Murias,/ O Caldeirão do
Dagda de feitos elevados.”
(Refrão)
(Chorus)
(Chorus)
3
Na floresta
Caminhando em busca do precioso carvalho, já perto do meio-dia, sol a
pino, Amergin sentiu seu espírito desabrochar suavemente, tal qual uma
cachoeira na floresta, cuja alma bate nas pedras produzindo música, igual
uma árvore na primavera, sorrindo ao ver seus rebentos tomarem cor e
perfume, feito uma criança na chuva, brincando e deixando sua mente voar
livre como uma águia, ao sentir os pingos doces das nuvens acariciarem a
sua face.
Chegou a uma clareira e avistou uma trilha, rodeada de ciprestes e outras
árvores de gerações passadas. Foi seguindo uma revoada de síabrai, que se
agitava à sua frente. Os pequenos seres comunicavam-lhe seus pensamentos
e estimulavam-lhe a seguir as nuvens. Olhou para o céu e viu várias
formações singulares. Por vários minutos, não vislumbrou nada, até que
observou um formato específico e percebeu que era o de uma árvore. Seu
cajado começou a brilhar, projetando uma intensa luz verde que apontava
para uma formação de pedras cobertas de musgo, sobre a qual uma cobra
serpenteava e erguia a cabeça na direção do abrigo das árvores no limite da
floresta. Seguiu a luz mística até chegar ao lugar onde, iluminado, um
carvalho repousava. Resplendoroso, soberbo, imponente.
A luz do sol, que aquecia o gigante verde, inundou seu coração,
dissipando a noite. O voo do falcão era o horizonte da sua visão, a curva do
rio era a linha do seu sorriso, a força da terra era a canção do rouxinol, que
enternece a existência humana.
O carvalho-ancião, um recipiente de sabedoria que encarna as origens de
Amergin, saudava a sua chegada. Como pequenos vaga-lumes, que vão se
expandindo em fachos circulares, a aura mística do carvalho penetrou em
seus olhos, atingindo a sua energia.
– Sábio Amergin, o que aflige tua alma? Sinto vibrações rubras,
descompassadas e intensas percorrerem tuas emoções.
– Precioso Ancião de Luz, tenho várias visões sangrentas que me
atormentam incessantemente. Vencemos! As Tuatha Dé Danann foram
derrotadas! A terra encontra-se em paz! Por que tais presságios?
– O que antevês é o futuro, bravo sacerdote. Vês a glória dos povos da
ilha!
– Vejo um cão raivoso atacando uma criança! Vejo sangue de nobres
guerreiros, batalhas terríveis, excruciantes; vejo um homem invencível
derrotando exércitos. Quem é ele?
– Vês o futuro dos povos da ilha! – insistiu o ser iluminado.
– Mas não compreendo...
– Ouça atentamente, filho de Mil, ouça teus antepassados e vislumbre os
feitos dos que estão por vir! Mantenha sereno o teu espírito, ore e peça
proteção aos deuses, entre em comunhão com a natureza, e o universo dar-
te-á a resposta. Ouça atentamente, filho de Mil, o que vês é a glória! E isso
te basta no momento.
– Tua sabedoria é eterna. Apesar de não compreendê-la em sua plenitude,
guardarei teu ensinamento sempre em mim. Grandioso ancião, os seres
elementais me informaram que possuis um dos tesouros das Tuatha Dé, o
Caldeirão da Abundância.
– Sim, eu o possuo. E, segundo a minha inteligência atemporal, devo
entregá-lo a ti.
Um vento gelado se manifestou na mata densa, espalhando em rodopios
rápidos as folhas caídas da imensa árvore milenar, revelando o artefato.
Amergin intuitivamente sabia o que fazer: aproximou seu cajado da poção
dentro do Caldeirão, absorvendo toda a energia. Dos olhos do mago
milesiano saltaram raios, e o poder de seu cajado, como em um redemoinho
de cores, iluminou todo o lugar. Quando o lampejo multicolorido cessou, o
Caldeirão desapareceu. O amuleto azul do cajado do druida piscou uma vez
mais e passou a carregar a marca do Dagda.
Nesse instante, tudo se esvaiu em pétreo silêncio e apenas indagações
ficaram em seu espírito.
Na terra sagrada, ao redor do carvalho, aglomeraram-se folhas e galhos
secos, que logo tomaram uma forma humana. O Homem de Folhas abriu
vagarosamente os braços e, com um sinal de mão, apontou para a trilha de
onde o mago veio. Ele tinha de partir, então. Seus olhos, idênticos à luz da
árvore milenar, disseram-lhe que não era um pedido, mas uma ordem.
Caminhou até visualizar uma adjacência, por onde percebeu uma clareira,
um descampado. Era um ótimo lugar para orar e pedir orientações.
Preparou-se para realizar o chamado antigo, ensinado pelos seus mestres,
que havia muito cavalgavam com o séquito dos deuses junto aos seus
ancestrais.
– Pelo fogo, pela pedra, pela onda do mar turbilhonante, que se abra a
porta entre os mundos!
Cravou seu cajado no solo e absorveu o poder da terra que ele canalizava.
Erguendo os braços e jogando a cabeça para trás, lançou ao céu seu
chamado:
20 Palácio do Bóinne [grande rio da província de Leinster, Boyne em inglês], também conhecido como
Newgrange, é o maior e um dos mais importantes sítios neolíticos da Europa. Anterior ao século XXX
a.C. (mais antigo que as pirâmides do Egito), o complexo é formado por tumbas de câmara, menires,
círculos de pedras e outros recintos pré-históricos. Newgrange (Sí an Bhrú, “Síd do Palácio”) é famoso
pelo alinhamento astronômico de sua entrada principal com o solstício de inverno, pela arte abstrata
(círculos, espirais, arcos, losangos e várias outras formas), que decora muitas de suas pedras, e por suas
ricas associações mitológicas (teria sido morada do Dagda e depois de Óengus Óc, filho do Dagda e de
Boand).
Na floresta
Andando pela floresta
Eu sinto este mundo que tenho vivido
Dentro da luz
(Refrão)
In the Forest
(Música: Cláudia Barron e Marcelo Moreira / Letra: Eduardo Amaro e Alexei
Leão)
Open my eyes
Take away everything I have cried
Give me life – give me more life
Bring back the light
Show me the way
Now it’s time to fly
Time to live your own life!
(Chorus)
4
Brilho solar
Amergin voltou para o acampamento quando o sol começou a se deitar. Sua
ânsia pelo bem-estar daquelas pessoas era proporcional à sua exaustão
interior. A doce lua começou a emitir seu sorriso nas águas salgadas. Ao
longe, gaivotas voaram de volta às pedras nas quais muitas fizeram seus
ninhos. Era hora do descanso noturno.
O druida foi em direção às ondas. Um conjunto de pedras, logo adiante,
revelava um lugar ideal para contemplação.
Ele não compreendeu o motivo pelo qual continuava com angústia, a voz
de Tír inna n-Óc havia sido bem clara. Ele ficaria em paz após definir o
legado da batalha travada, mas a sensação errática insistia e crescia. Isso o
estava deixando deveras desgastado.
Quando olho para o céu distante e vejo teu semblante nas águas, desejo-
te mais do que deveria, meu ser clama por tua presença, Grande Mãe.
Busco regeneração e conhecimento, pensou Amergin, suplicando pela ajuda
da deusa.
– Ouve meus lamentos, Grande Mãe, dá-me teu encantamento e purifica
minha percepção! Concede novamente teu amor celeste a este servo terreno!
Que a magia de Tír inna n-Óc floresça intensamente em mim! – Ele falava
com a lua cheia, perguntando se o seu amor voltaria em breve, esquecendo-
se de que o verdadeiro amor nunca morrerá.
O amor adormeceu dentro dos Homens. Às vezes, quando eles enfrentam
adversidades que fogem à compreensão a que estão restritos neste plano
existencial, os seres humanos percebem isso. Apesar dessa fraqueza
aparente, a deusa o compreendia.
No alto céu, as estrelas começaram a dançar, aglomerando-se em um
único ponto, que aumentava conforme elas se uniam, explodindo em um
feixe de luz em direção à areia da praia. A Senhora se manifestava.
– A angústia que domina teu coração, mago, não condiz com a sabedoria
do teu espírito, nem com a firmeza de teus propósitos. Almejas
compreender os desígnios dos deuses. Pressentes o equívoco desse intento e
cruelmente te atormentas.
– Tu, que dominas as estrelas e vês com claridade minha agonia, sabes
como curar essa doença astral? Ajuda-me! Eu te suplico!
– Eis que não me está predestinado esse futuro, honrado filho de Mil!
– Vês e compreendes! Por que não me ajudas?
– Sim, compreendo-te e me compadeço. Ajudar-te-ei em teu caminho,
Amergin, na medida do possível.
– Peço por mim e por meu povo!
– Um presente daquela que reina soberana na noite estrelada!
Com um movimento circular de mãos, a deusa abriu um pequeno portal,
de onde saiu voando o falcão místico criado pelo feitiço de Amergin,
entoado no décimo sétimo dia da Lua. A ave foi ao céu e deu meia-volta,
pousando no braço estendido da deusa.
– O nome dele é Suthain.21 A partir de agora, que mago e falcão sejam um
só! Torna-te carne, ser emplumado, que tuas penas sejam o sangue deste
druida, torna-te carne, como carne é tua metade humana!
Relâmpagos e raios escaparam dos olhos da ave e do druida, atordoando-
os por alguns instantes.
– Consigo entender o falcão como se fosse um de meus irmãos!
– A ave te compreende da mesma forma, feiticeiro. Sois agora um só e
teu destino não mais me diz respeito. Devo partir, pois já interferi demais
nas lutas dos homens.
– Espera! Ainda preciso de tua orientação!
– Fecha teus olhos, Amergin.
– Por quê?
– Fecha-os apenas.
Sem titubear, Amergin acatou o comando da deusa, mantendo os olhos
fechados, enquanto protegia a cabeça de seu falcão, abraçando-o e
envolvendo-o na túnica. O sábio druida sentiu algo diferente no ar, as
frescas brisas marítimas cessaram e o solo ficou quente, como se ele pisasse
em brasas!
– Suporta o fogo, milesiano, prova teu valor aos deuses!
Amergin resistiu à provação corajosamente por vários minutos. Quando
os gritos da sensibilidade ultrajada de sua carne diminuíram de intensidade,
o mago percebeu que conquistou a vitória e a confiança da deidade, de
quem emanava forte energia. Amergin sentiu o ar que preenchia seus
pulmões como a luz pura de um novo dia esparramando-se pelo horizonte.
– Tu és quem? – indaga perplexo.
– Sou aquele que alimenta a mais inflamada paixão, que comanda a ação
mais temerária, que sopra a brisa no auge do verão. Ofereço calor quando a
roda das estações cobre a terra de branco. Sou o pensamento primordial,
guia do corvo em seu voo, força que colocou as estrelas em movimento e
determinou o eterno caminho que cada uma deveria seguir. Ao redor de
minha cabeça saltita o rebanho inquieto das nuvens. O trovão que te faz
estremecer é um eco distante do meu suspiro. Sou aquele que sussurra
respostas nos sonhos. Chamo-me Dian Cecht22 e em minha honra
vaticinarás a glória futura do teu povo!
– És fogo e sol, prosperidade e cura! És a fonte da grande proteção!
– Venho em teu auxílio a pedido de Danu. Em breve, tuas angústias terão
fim. A celebração em que sou honrado, o Bealtaine, aproxima-se. Ao chegar
esse dia, irás ao lugar sagrado onde se localiza o antigo santuário de pedras
suspensas e entoarás o feitiço. Assim chamarás a atenção dos habitantes de
Tír inna n-Óc. Deverás estar com teu falcão e na presença de teu confrade
Mallach, que te proverá a energia da cura para a realização desse
encantamento.
– Quais são as palavras sagradas, meu senhor? Esse encantamento curará
minha chaga?
– Teu espírito revelar-te-á a verdade, as palavras estão gravadas em teu
coração, nobre mago. Se ali não as encontrares, não estarão em lugar algum.
Confia em teu deus do fogo!
– Confio em tua honra e no cumprimento de tua palavra.
– Que assim seja. Enviar-te-ei para Tír inna n-Óc, onde enfrentarás um
oponente formidável. A Lança da Realeza está em teu poder. Se venceres,
ela será teu prêmio.
Em um instante etéreo, a luz solar da divindade fez o corpo do mortal
brilhar de poder. Ele foi transportado para Emain Ablach, a Fortaleza
Encantada das Macieiras. O caminho foi abert6o e ele sabia como segui-lo.
Ao longe, via-se o Templo de Luz resplandecendo, aves míticas voavam
ao seu redor. Tudo era tênue como em uma ilusão e, ao mesmo tempo, tudo
era nobre e radiante! As árvores que circundavam o descampado eram de
várias espécies, e o diâmetro de seus troncos denunciava uma idade
multissecular. Eram todas gigantes e imponentes – carvalhos, teixos,
aveleiras, amieiros e tantas outras, que pareciam abraçar-se em comunhão
ímpar. O vento crepuscular, que embalava as seculares árvores,
repentinamente se tornou um vendaval.
Um ponto luminoso surgiu entre as nuvens, o clamor retumbante de
trovões tomou conta de todo o lugar. Faíscas incandescentes laranja-
avermelhadas estrondearam pela atmosfera, atingindo vários pontos no solo,
atordoando o sábio druida. Uma carruagem revestida de placas de estanho e
adornada com incontáveis ametistas e topázios surgiu de uma pesada nuvem
púrpura, conduzida por dois enormes corcéis azuis que, com uma única
mão, um cocheiro de cabelos e barba negros e aspecto severo manejava. Sua
couraça de bronze ostentava o sinal da espiral dupla delineada em rebites de
prata.
Nascido em uma geração de seres divinos de idade incomensurável,
Taranis, o Mestre do Trovão, parou o veículo, cujas rodas quebraram o
silêncio do firmamento, e desceu à terra. Jogou a cabeça para trás e deu um
grito que fez estremecer os alicerces das montanhas. Ergueu seus braços
para o alto e duas formas apareceram em suas mãos. Na esquerda, a roda
áurea das estações, sua insígnia e seu escudo; na direita, a lança invencível
cobiçada pelos reis.
Taranis! Não posso vacilar diante do Senhor do Céu!, pensou Amergin,
sabendo o valor como guerreiro desse adversário, cujo nome seus próprios
antepassados nunca pronunciavam sem temor. Jamais homem ou imortal
conheceu o limite de seu poder. Com esse pensamento, o druida tomou a
iniciativa. Rodopiando seu cajado, ele abriu um vórtice energético que
atingiu Taranis, paralisando-o. Amergin, logo em seguida, bateu o artefato
no solo e, pela pedra azul em seu topo, libertou o poder do falcão místico,
que atacou a divindade, lançando-a longe da carruagem.
Taranis ficou enfurecido. Deu ordens a seus cavalos, que começaram a
trotar e, dos cascos, faíscas imensas surgiram. A roda dourada canalizou
energia e a Lança da Realeza a devolveu para Amergin com um raio
violento, que o derrubou com toda a força.
Agachado, pensou o sacerdote atordoado: “Não sou capaz de defletir
outro golpe assim, a força do raio é uma das mais poderosas da natureza.
Fatalmente sucumbirei, é questão de tempo. Mas como detê-lo?” Enquanto
isso, Taranis preparava-se para um novo golpe.
Observando como o deus produzia seu poder, Amergin deduziu: “Mas é
claro! O corpo de Taranis não é imune ao seu próprio poder, que emana dos
cavalos! Quando um raio cai sobre a água, ele se dissipa, afetando tudo o
que está ao seu redor, mas os navios não são afetados, pois a madeira dos
cascos os protege.”
Dessa forma, ele entoou o cântico de Emain Ablach, liberando o
Caldeirão da Abundância e, por um comando gestual, fez a água encantada
de dentro do artefato se transformar em uma onda, que foi arremessada
contra Taranis, ao mesmo tempo em que ele liberava uma nova descarga em
sentido oposto. O choque das duas potências fez o chão tremer. Para se
proteger do impacto, o druida transformou sua pele em casca de carvalho e
a energia residual foi absorvida pela árvore sagrada. Taranis não possuía tal
proteção mágica e caiu, arrebatado por sua própria força.
Nesse instante, a Lança ganhou vida e foi à mão de Amergin. Quando ele
a tocou, uma intensa luz azul-esverdeada a fez desaparecer: seu cajado
absorveu a essência do dom e uma nova inscrição foi gravada nele: a
insígnia da lança, bem abaixo do símbolo do Dagda.
– Louvo tua vitória, sacerdote!
– Dian Cecht!
– Derrotaste aquele que nunca tombou em batalha: um dos mais
poderosos dentre os deuses de sua linhagem. Com astúcia divina, soubeste
usar contra ele sua própria força. A Lança da Realeza é tua por
merecimento. Agora vai! A Noite dos Fogos aproxima-se, mas distante está
o fim de tua missão.
21 “Eterno.”
22 Dian Cecht é o curandeiro das Tuatha Dé Danann, deus da medicina e da regeneração. Filho do
Dagda e avô de Lugh Lamfhada, foi o criador do braço artificial que deu ao rei Nuadu seu epíteto
(Airgetlám, “Mão de Prata”). Seu nome pode significar “Mistura Rápida”, talvez referência ao preparo
de poções curativas. Entre os celtas, bem como em várias outras culturas da Antiguidade, uma das
formas mais populares para se descobrir a cura de uma enfermidade era orar por um sonho divinamente
inspirado, daí a ligação do deus da cura com sonhos e vaticínios.
Brilho solar
Quando eu olho para o céu distante
Eu sinto o meu espírito se libertar
Eu te desejo mais do que deveria
As pedras suspensas
Aquela era uma época importante para nós. A fertilidade de nossa terra
estava em foco, chegara o tempo do Bealtaine. O completo desabrochar das
flores, a continuidade da prole, o regozijo do espírito e do amor, a magia
por trás do desejo exacerbado, a sabedoria da aveleira e, principalmente, a
fertilidade dos campos e do gado. Devíamos celebrar todas essas dádivas
dançando, cantando, fazendo amor e oferendas.
Via meus companheiros atarefados, fazendo pilhas das nove madeiras
sagradas: o salgueiro das ribeiras, a aveleira dos rochedos, o amieiro dos
pântanos, a bétula das cachoeiras, o freixo da escuridão, o teixo da
invulnerabilidade, o olmo da ribanceira, o carvalho do sol, o espinheiro do
Povo Encantado, todos filhos do bosque, que generosamente doaram seus
corpos para que os homens pudessem chamar a força dos Imortais para o
gado, para as lavouras que seriam semeadas e para si mesmos.
Como uma adaga cravada em meu flanco, as visões afligiam minha
mente, sobretudo o aspecto sombrio do Homem de Folhas, que surgiu
taciturno junto ao Carvalho-Ancião. O silêncio dos Deuses era
atemorizante. Por que não poderiam ser claros em seus propósitos?
Enviaram-nos enigmas e sussurros obscuros, provocando o risco de
errarmos sua interpretação e pagarmos por isso. Mas ainda pior seria o
mutismo total e indiferente das deidades, revelando seu desinteresse pela
sorte dos homens.
O sol caiu e o povo agitou-se cada vez mais. Uma névoa peculiar
circundou o grande monumento de pedras suspensas, para cujo centro a voz
indistinta do meu sangue me impulsionara. Suthain abandonou seu voo
circular e pousou em meu ombro esquerdo. Recebi, na carne, o forte aperto
das garras da ave. Meu amigo de penas estava tomado de ansiedade.
Senti o fluxo da energia tépida que se desprendia dos corpos humanos e
era tragada pela terra. O mesmo cio perpassava as canções dos bardos, a
cadência de suas palavras formando uma nuvem cor de carne que um vento
morno acariciava com língua provocadora. A atmosfera estava carregada.
Dian Cecht escolhera bem a data do feitiço.
Ordenei que três fogueiras de madeira de espinheiro-negro fossem acesas
sob três caldeirões dispostos em triângulo. Ficaria no centro para absorver o
poder das chamas e dos vasos fumegantes, o que permitiria a minha voz ser
escutada naquele lugar em que meu corpo ainda não poderia ir.
Assim como Suthain, Mallach estava comigo. A previdência de Dian
Cecht outra vez me surpreendeu. O druida mais jovem seguiu de forma
exemplar minhas instruções, os caldeirões começam a fumegar e ele se
aproximou de mim, ansioso para cooperar no rito que libertaria todo o poder
do meu espírito, para que eu assegurasse em definitivo a posse dessa terra
para os filhos de Mil.
– Mestre Amergin – disse Mallach –, tudo foi preparado conforme tuas
ordens. Podemos iniciar a cerimônia quando desejares.
– Fiel amigo, quanto antes começarmos, melhor será. Agradeço o apoio e
a dedicação que me dispensaste.
Coloquei as ervas selecionadas nos caldeirões, e os aprendizes, usando
grandes pilões de madeira, maceraram-nas na água pura da cachoeira até a
seiva das plantas diluir-se ao líquido que começava a borbulhar. O aroma
pungente e característico das ervas que traziam a Visão espalhou-se no
ambiente. Enchi dois recipientes com uma pequena quantidade da forte
poção, oferecendo um deles a Mallach.
– Bebamos o leite da iluminação, que abrirá nosso caminho entre as
brumas que nos separam de Tír inna n-Óc!
– Assim espero, Amergin, e que nossa viagem seja segura!
– Voe, Suthain, dá-me o vórtice! – ordenou o druida a seu falcão místico,
que o obedeceu prontamente.
O vapor que subiu dos caldeirões ficou mais denso. Mallach levantou os
braços e jogou a cabeça para trás, já sentindo o efeito das ervas, enquanto
Amergin ergueu seu cajado descrevendo um círculo sobre sua cabeça.
Golpeado pela inspiração, o druida exclamou:
– Deuses desconhecidos, grandes divindades ocultas além dos deuses!
Protegei-nos ao cruzarmos o caminho obscuro. Ó filho de Lir, Manannán,
Rei da Terra das Mulheres, Rei da Terra sob as Ondas, Rei da Terra da
Promessa, Rei da Fortaleza Encantada das Macieiras,23 ouve-me! Por cima
das ondas de alvas cristas, vem a mim! Aqui, deus abençoado! Em tua
carruagem, o mar é para ti uma planície com profusão de flores, ó
Manannán, Soberano do Povo dos Montes Encantados, Senhor das Brumas,
caminha comigo e abre-me a porta do Outro Mundo!
Amergin desceu o cajado e o vapor espesso abriu-se, revelando à
distância as falésias brancas de uma ilha distante, cobertas por espesso
arvoredo. No alto de uma colina no centro da ilha, refulgia uma fortaleza de
prata com tetos dourados, suas muralhas adornadas por incontáveis
estandartes de todas as cores. Era Emain, o reino mágico do Mestre da
Névoa, Manannán. A visão de beleza indescritível sugou o espírito do
druida com uma força insuperável.
– Poderoso Carvalho-Ancião, escuda-me na jornada à Terra Imortal, que
lá eu encontre a cura para o mal que domina minha alma! – disse Amergin,
desfalecendo.
– Deuses antigos dos Três Mundos, Senhores da Grande Árvore –
Mallach invocou ao sustentar o corpo do druida mais velho –, tomai, se
precisardes, todas as minhas forças. Que seja aberto o caminho para
Amergin, filho de Mil, filho de Bilé, filho de Breogan!
Mallach desviou o olhar para que sua mente não fosse igualmente
capturada pela visão da ilha sobrenatural. Usando as habilidades de seu
treinamento druídico, ele assumiu a forma espiritual de uma árvore cujas
raízes penetravam fundo no solo do antigo santuário. Em segundos, ele
intuiu todas as gerações de folhas, flores, troncos e sementes que ali
vicejaram; adivinhou as mãos e os braços que ergueram aquelas pedras em
adoração a forças primordiais e terríveis invocadas em línguas há muito
esquecidas.
Verde e velho, pensou Mallach, brotando, amadurecendo, decompondo-se
no círculo sem fim das estações. Perpétuo retorno da primavera, mas nunca
as mesmas flores.
Apenas sua concentração impediu que se dissipasse o poder do ritual e
manteve aberta a passagem que Amergin começou a atravessar. O caminho
não era longo, porém exigia cautela. O perigo espreitava a cada passo, e
Amergin, como um homem que cruzava a floresta em noite sem lua,
avançava lentamente.
Ele abriu os olhos na passagem. Um bosque sombrio, cerrado, onde as
copas das árvores entrelaçavam seus ramos para formar um manto espesso
que apenas os mais destemidos raios de sol penetravam aqui e ali. Os
pássaros estavam mudos, nenhum vento agitava as folhas, mas o mago
ouvia o som dos habitantes da terra, besouros desajeitados que se
arrastavam, vermes que cavavam túneis, os passos de centenas de formigas
em suas metrópoles escondidas. Ao longe, como nuvens de tempestade que
se acumulavam no horizonte, ouviu um som amorfo, inumano e
inquietante.
Uma rajada de vento, até então ausente, soprou o som para junto dele, que
se viu enredado num clamor de uivos, um manto hediondo grudado à sua
pele, cravejado de dentes pontiagudos e olhos de rubi em poças de sangue.
– O lobo é uma de tuas formas, ó filha de Ernmas, Morrígu! – clamou,
acreditando ter identificado meu atacante. – Não é próprio de tua grandeza
atacares desse modo um adversário que já derrotaste em combate honesto.
Os ganidos tonitruantes permearam seu espírito, atingindo sua ligação
com as divindades como um terremoto. Toda a clareza perdeu-se, as
palavras dos deuses tornaram-se uma algaravia incompreensível. Enquanto
tentava se desvencilhar da influência deletéria daquele som bestial,
subitamente ele compreendeu que o destino outra vez mostrou-se favorável
aos seus planos, pois a origem da doença espiritual que o impedia de
interpretar os presságios não era outra senão o berro do monstro
desconhecido que estava agora em seu caminho.
Viu-a aproximar-se. Uma fera negra de passos silenciosos e olhos
vermelhos como brasas, boca entreaberta guarnecida de três fileiras de
dentes e da qual pendia uma língua sanguinolenta e... o som... o som
desesperado, ansioso, que parecia emanar de seu corpo como um miasma.
Imaginou, de início, que a aparição fosse uma das formas mais dementes
jamais assumidas pela Senhora da Batalha. Ele caiu de joelhos, levando as
mãos aos ouvidos em uma tentativa de obter, ao menos, um momento de
alívio do som enlouquecedor, que brotava da criatura como o fedor da
decomposição de um túmulo aberto.
A aparição estacou a pouca distância do mago, fitando-o com seus olhos
incandescentes e movendo a língua de modo grotesco. Ele imaginou, em
meio à confusão, que o fim de seus caminhos havia chegado, porém o
monstro não o atacou fisicamente. Poderia ter se lançado sobre ele, mas não
o fez. Ficou a observá-lo no ambiente preenchido pelo uivo indescritível.
Amergin compreendeu então que o objetivo dela não era dar cabo de seu
corpo, mas aniquilar sua mente pelo terror e pela confusão.
Num esforço supremo, ele reuniu os últimos lampejos de sanidade
dilacerada e encarou fixamente o horror. Encheu os pulmões e exalou, na
direção da aparição, um sopro druídico. A besta não o atacou, porque não
possuía existência real. Com o sopro, a forma monstruosa perdeu
consistência e se desfez numa espiral de fumo escuro, revelando o poder
que a animava. Já o tinha visto junto ao Carvalho-Ancião e pressentido sua
animosidade com ele e seu povo: era o Homem de Folhas.
– Homem de Folhas, o que fiz para merecer tua ira?
– Não te devo explicações, humano! Respeito teu poder, poucos magos
são capazes de quebrar meus encantamentos! Estou aqui apenas para
alertar-te sobre a fúria de outro imortal ainda mais forte do que eu.
– Cessa agora este rugido estúpido!
– Mortal tolo. Não estás em posição de dar-me ordens ou exigir-me seja
lá o que for. Pagarás por tua insolência!
Seu coração gelou ao ouvir tais palavras. Excedeu-se em suas pretensões
e sentiu um calafrio ao perceber a ameaça ao frágil equilíbrio que acabara
de conquistar.
– Amergin, a ligação com Tír inna n-Óc está ficando mais frágil.
Necessito de tua força ou não conseguirei manter o portal aberto por muito
tempo! – gritou Mallach.
– Amigo, minha energia não é suficiente para enfrentar um dos deuses.
Peço-te que me ouças, Homem de Folhas! Desculpo-me por minha
impertinência. Contudo, se necessário for, morrerei enfrentando-te!
– Basta! – Uma ordem ríspida atravessou o vento circundante.
– Pelos deuses, Amergin! – espantou-se Mallach, antes de cair ao solo,
juntamente com Suthain, que despencou do céu.
O portal foi desfeito. Amergin estava preso no caminho para o Outro
Mundo. Seu corpo jazia inerte e sua alma vagava entre a clareira de onde
partiu e o santuário das pedras suspensas em Lios na Grainsi,24 no sul da
ilha.
O ferimento do falcão era evidente, e ele se contorcia em angústia
frenética, piando e agitando-se convulsivamente.
Vendo o pássaro sofrer no chão, Mallach se aproximou dele e, fazendo
uma concha com suas mãos, gentilmente o segurou, aconchegando-o junto
ao peito. Os olhos da ave fitaram os do jovem druida, suplicando por auxílio
e, tal como acontece com Amergin, Mallach entendeu o que o falcão
implorava em silêncio.
Se Suthain morrer, Amergin também estará condenado, pensou. Preciso
encontrar um modo de curá-lo.
Com bastante pressa, o sacerdote abandonou o local da cerimônia,
enveredando em uma trilha pela floresta e contando somente com a luz da
lua para guiá-lo. A urgência permitiu que ele ignorasse a fadiga da corrida,
e Mallach chegou à sua tenda, cuja localização fora escolhida pelo próprio
Amergin. Quando encontraram o lugar pela primeira vez, souberam que ali
existia um poder de cura incomparável. Ornada com símbolos místicos de
proteção, a tenda de Mallach erguia-se sob um carvalho de tronco grosso,
que a protegeria do vento e da tempestade, bem como do calor excessivo.
Ele entrou no abrigo segurando o falcão com uma das mãos, enquanto
com a outra vasculhava arcas e prateleiras. Decidiu então aconchegar a ave
em um cesto, para procurar mais rapidamente. E encontrou o objeto de sua
busca em uma arca ao lado de seu leito: um bastão de teixo, parte de um
grande conjunto de peças rituais, em que estava inscrito um poderoso
encantamento na língua antiga dos druidas.
Anatlānatrīkos
Runābāssiakbiīṷotutos
Teṷekaylondīgnīmoṷs.25
24 Lios na Grainsi, traduzido como “Pedras do Sol”, é o maior círculo megalítico da Irlanda, alinhado
ao nascer do sol no solstício de verão. Na manhã dessa data, o sol brilha diretamente acima de seu
centro. Foi construído por volta de 2100 a.C. Localiza-se a 300m de Loch Gair (Lough Gur, um dos
mais importantes sítios arqueológicos da Irlanda), em Contae Luimnigh (County Limerick), na
província de Munster.
26 “Homem Forte” (Trenfer), “Rosto de Sol” (Grianainech) e “Boca de Mel” (Milbél) são alguns dos
epítetos de Ogma. Filho do rei Elatha Mac Delbaeth, rei dos Fomoiri e meio-irmão do DagdaMór,
Ogma é o inventor do Ogham e um dos padroeiros da poesia e da eloquência, além de grande
guerreiro.
27 É a Ilha de Skye (An t-Eilean Sgitheanach em gaélico escocês), também conhecida como Eilean a’
Cheò (“Ilha das Sombras”). Sgitheanach é a maior e mais setentrional das Hébridas Interiores, o
arquipélago localizado na costa oeste da Escócia.
29 A Bean Síde (“Mulher dos Montes Encantados”, Banshee na grafia anglicizada) é, no folclore
irlandês, um espírito ou fada que pressagia a morte com terríveis lamentações. Associada às famílias da
antiga nobreza da Irlanda, a Bean Síde aproximava-se somente da casa onde uma pessoa devesse
morrer em pouco tempo. Se conseguissem capturá-la, ela seria obrigada a dizer o nome do indivíduo
fadado à morte. Uma forma da Bean Síde conhecida na Escócia é a Bean Nighe (“Lavadeira”), vista
lavando no vau de um rio as mortalhas dos que morrerão em breve. Sua aparência é ainda mais temível
que a da Bean Síde. Existe a possibilidade de que seja uma forma da Morrígu.
As pedras suspensas (Stonehenge)
Os sons do amanhecer ecoam pelas plantações
E misturam-se com a brisa da manhã
Pedras suspensas, deixando minha mente livre
Uma magia sagrada queima meu corpo
E chega até as raízes do campo
Pedras suspensas, tudo está crescendo verde!
O mar secreto
Amergin quase não suportou o impacto das forças que o atingiram em Tír
inna n-Óc. O fiel falcão, preocupado com seu estado físico e mental,
despertou-o bicando levemente sua face. Ele sentiu um pesar intenso no
olhar da ave e intuiu o que ocorreu.
– Não te inquietes, estou vivo: uma pequena lagoa inundada por um
oceano de exaustão. Dize: és Suthain ou Mallach? Minha percepção está
ainda nublada.
– Sou ambos – soou uma voz firme na mente de Amergin. – Mallach
entregou seu corpo físico para que esta forma não sucumbisse e nela
Mallach estará até que se completem os dias que deveria viver neste mundo.
Suthain agora desfruta das lembranças e do saber de Mallach, e este agora
possui a visão e a magia do falcão místico. Somos um e um é nosso
propósito: levar-te ao teu destino. Olha ao teu redor: as Pedras do Sol foram
muito danificadas, Lios na Grainsi tornou-se uma ruína! Que podemos fazer
agora?
– Mallach que habitas em Suthain, imenso foi o teu dom e tua lealdade é
maior que qualquer dos poderes do Outro Mundo. Nada te peço neste
momento. Acompanha-me à praia apenas. Preciso recompor-me, ordenar
meus pensamentos e compreender tudo o que testemunhei.
Dessa forma, ambos chegaram até a enseada. Amergin pediu ao seu
companheiro que o deixasse sozinho, o falcão abriu as asas e voou de volta
para a floresta, pois Amergin precisava da solidão e do mar. Quando busca
respostas, o mar é o seu refúgio e a Lua, sua conselheira!
O mar reluzia as estrelas como lâminas. Sereno e solitário, batia nas
pedras e revelava a sua dor.
O mago queria mergulhar naquelas tristes águas até as profundezas
abissais da alma. O infindo oceano é nossa morada, a escuma espraia nas
movediças praias, derrubando nossos castelos de areia, transformando ondas
em suspiros dormentes.
– Mar secreto, revela-me o céu, refletindo em tua pele azul a face
desconhecida da estrela da manhã, que esconderá todas as minhas
cicatrizes!
O mar calmo começou a criar ondas, a voz do druida elevou-se numa
correnteza de palavras. Uma vaga gigantesca veio em sua direção e, ao
prever o impacto iminente, Amergin protegeu a face com o braço direito,
mas não foi atingido. Como se detida por alguma barreira invisível, a onda
cristalizou-se em uma parede líquida a poucos metros dele. Uma forma de
contornos femininos começou a destacar-se da superfície.
Expectante, Amergin contemplou a figura que lentamente avançava em
sua direção e ia pouco a pouco assumindo aspecto humano. Atrás dela, a
parede de água repentinamente despencou. Sim, o druida já a conhecia. Ele
estava outra vez diante da Grande Rainha.
– Amergin, será temor o que percebo em teus olhos?
– Filha do Povo Nobre, seria estranho um mortal estremecer na presença
da Senhora da Matança? Nosso último encontro não foi feliz.
– Tranquiliza-te. É em teu auxílio que venho desta vez. Sabes que meu
povo deixará esta terra, e tu, o mais ardiloso de tua raça, foste escolhido
como guardião do conhecimento que será nosso legado ao mundo dos
mortais, para meu pesar. Coube-me ser tua guia e revelar-te o caminho para
alcançares essa dádiva... Caso a mereças.
– Curvo-me ao poder que me colocou sob tua orientação.
– Percebo que aprendeste a arte da cortesia desde o nosso último
encontro.
– Pelo mais duro caminho.
– Já conquistaste três dos quatro tesouros do meu povo. Apenas
Caladbolg ainda não está em teu poder.
– Sim, somente a espada e...
– E serás um mago de poder insuperável!
– Serei aquele que trará paz duradoura a esta ilha!
– Frágil é tua raça, sempre temendo a dor e a morte. Por isso, compreendo
o anelo de teu coração. Ainda uma vez, contudo, deves provar tua força e
teu merecimento para receberes a Espada da Vitória.
– E qual é a provação, nobre deusa?
– A espada está sob a guarda de Nuadu novamente. Quando as Tuatha Dé
Danann compreenderam que teriam de abandonar a superfície de Ériu,
migrando para os Síde ou para as Ilhas do Oeste, decidimos que nossos
feiticeiros esconderiam os tesouros. A espada, em especial, foi reivindicada
por Nuadu. Atravessarás o oceano para te encontrares com ele.
Enquanto Morrígu e Amergin dialogavam, uma jovem alva como a
espuma das ondas e de cabelo dourado como o trigo surgiu da água. Ao
contrário da deusa guerreira, já conhecida de confrontos passados, a recém-
chegada era estranha ao druida.
– Saudações, temível Morrígu, venho a ti pelo druida como ordenado por
meu pai.
– Eu esperava por ti. Amergin, esta é Niamh Cinn Oir,30 filha de
Manannán e Fand, princesa de Tír inna n-Óc. Em deferência ao meu pedido,
o Senhor das Brumas consentiu que ela fosse tua guia. Niamh conhece a
estrada dos navios tão bem quanto eu conheço e aprecio o som da carne que
se rasga.
– Ainda que obedeçais a poderes mais altos, descendentes de Danu, serei
sempre grato por vosso zelo.
A filha de Manannán virou-se para o mar e acenou em direção ao
horizonte, chamando:
– Eich na Mara!31
À distância a água borbulhava e um enorme cavalo totalmente branco
irrompeu da planície marinha, galopando até a praia com a rapidez do
vento. O animal abaixou a cabeça ao aproximar-se de Niamh, que acariciou
sua crina e montou com um movimento ágil, denunciando familiaridade
com a montaria. Com menos garbo, Amergin acomodou-se atrás dela.
Niamh disse uma frase inaudível na orelha do cavalo, que partiu com a
velocidade da águia que avista do alto um grande salmão nas águas do
lago.
Em tempo não maior do que o necessário para declamar uma estrofe de
quatro versos, os viajantes atingiram a enseada onde o velho rei Nuadu os
aguardava.
– Chegamos ao nosso destino, druida – disse Niamh. – É tempo de
enfrentares tua sina!
– Boas-vindas, peregrinos – saudou Nuadu. – Então és tu o sábio dos
filhos de Mil a quem Caladbolg foi designada? Em breve saberemos –
completou, com uma expressão levemente irônica.
– Nuadu generoso – respondeu Amergin, ignorando qualquer sinal de
sarcasmo –, curador magnífico, soberano entre todos os bravos e justos, a ti
minhas mais sinceras saudações. Suplico-te: indica o caminho para o último
tesouro. Ainda que uma chuva de fogo despenque do alto, a cada passo, e a
terra estremeça sob meus pés, eu o percorrerei sem duvidar.
– Não desejo testar teu corpo, mas tua mente. Passado e futuro
confundem-se em minha longa existência, pois tudo retorna ao mesmo
ponto na imensa espiral do tempo: onde tudo cresce para então diminuir.
Apenas o presente me parece turvo, pois a sombra das coisas vindouras e a
luz mortiça dos tempos idos projetam-se sobre ele. Sei que em algum
momento outro humano de linhagem igualmente nobre enfrentará o mesmo
desafio que te proporei, mas não posso ainda discernir quem será nem como
ele o resolverá. Quanto a ti, espero que uses o poder de tua inteligência,
mostrando-te assim capaz de triunfar sem iniciar qualquer batalha. O futuro
necessita de sábios pacificadores. Devemos partir e não deixaremos este
mundo para uma ralé que derrame o sangue sem qualquer preceito. Vês as
pedras que estão ali adiante? – Nuadu apontou para um aglomerado de
pedras litorâneas.
– Sim, venerável, claramente.
– É onde se encontra o prêmio que buscas. E que será teu se conseguires
retirá-lo do firme punho dos rochedos.
Amergin, assim, dirigiu-se ao grupo de pedras, três delas em pé, como
grandes dedos retorcidos assomando da areia. Além delas, havia uma
grande lousa horizontal, um retângulo quase perfeito, e uma longa espada
de lâmina larga profundamente cravada no centro do monólito.
Irrefletidamente, o druida tentou arrancá-la. Uma, duas, três vezes, sem
sucesso. A lâmina não se moveu uma polegada de sua bainha de pedra. A
questão aqui não é força, pensou Amergin. Nuadu disse-me que testaria
não meu corpo, mas minha mente. É um enigma que ele me propõe. Mas
qual a pista?
Repentinamente, uma das frases ditas por Nuadu refulgiu na mente do
druida: “Na imensa espiral do tempo... tudo cresce para então diminuir.”
Lembrou-se dos mestres-pedreiros de sua terra natal, de como obtinham os
grandes blocos de pedra que eram a matéria-prima de sua arte. Usavam os
princípios básicos do universo: fogo e água. Inseriam cunhas de madeira nas
fendas das pedras, depois as ensopavam com água. As cunhas então
inchavam, aumentando as rachaduras e permitindo que fossem
esquartejadas com malhos e cinzéis. Com o metal dava-se o contrário:
expandia-se ao ser aquecido, e contraía-se com o resfriamento. “Essa é a
resposta: crescer e diminuir, expandir e então contrair!”, Amergin exultou
em seu íntimo, louvando a ciência dos vates que fizeram dele um
observador atento de todos os fenômenos do mundo natural.
– Grande poder além dos deuses, firmeza da pedra e rugido do mar, fome
do fogo e sopro do tufão, união do céu e da terra; vem a mim agora,
serpente luminosa do firmamento!
Girando velozmente seu cajado, Amergin transformou-o na Lança dos
Reis.
– Invoco o poder do raio, mensageiro de Taranis! Invencível Lança de
Esras, liberta o raio!
Desse modo, a lança produziu uma intensa descarga elétrica que atingiu a
espada, tornando-a incandescente com o calor. Em poucos instantes, a arma
mágica voltou a ser cajado e o druida iniciou a segunda parte do feitiço.
Ao comando do mago, as ondas se enfureciam como um rebanho de
ovelhas saltando uma cerca, derramaram-se sobre a espada e uma nuvem de
vapor elevou-se com o choque. Com a espada abruptamente resfriada,
Amergin pôde retirá-la da pedra com pouco esforço. A exemplo dos demais
dons, o símbolo da espada incrustou-se no cajado assim que Caladbolg foi
absorvida.
Como imaginei, refletiu Amergin, o raio provocou na lâmina a mesma
dilatação que a água na madeira. O espaço entre a espada e rocha, que a
prendia, aumentou. Quando a água a resfriou, ela retornou ao seu tamanho
original e a folga resultante permitiu-me extrair o artefato. Triunfo da
mente sobre a força corpórea, como desejou Nuadu.
– Venceste, milesiano! Os presságios de nossos videntes outra vez se
confirmam – Morrígu veio anunciar, apoiando o pensamento de Amergin.
– Grande Rainha, abriste-me o caminho para o último tesouro e terás
sempre minha gratidão. Detenho agora a totalidade dos dons de Danu e
posso oferecer ao meu povo a liderança de que necessita!
– Esqueces, Amergin, que vejo no teu íntimo. O que me dizes, não o
sentes. Sabes que ainda há em ti uma mácula, tua força é corrompida pela
dúvida. A ferida em teu espírito impedirá que te assenhoreies de todo o
poder que os tesouros podem dispensar. Somente uma parte dele podes ter,
a qual não te bastará para os fins que almejas. Há ainda algo que somente
nós podemos te conceder. Dentro em pouco entenderás.
Morrígu tocou o ombro direito do druida e ambos foram transportados a
Tír inna n-Óc, onde o Homem de Folhas, a mando de Lugh, os esperava.
– Qual o propósito disto? – perguntou Amergin, exasperado ao vê-lo.
– Tua desconfiança é agora descabida, animal de carne – respondeu o
deus dos bosques rudemente.
– Chamas-me animal? Tu, abominação? Tu, que não és nem animal nem
planta, um lacaio despido de toda lealdade! – bradou o mago.
– Que haja paz entre vós! Agora vedes tudo como se refletido num
espelho, mas já vereis face a face e com clareza. O grande plano revelará
seu sentido – disse Danu.
A voz da deusa tornou-se mais grave, Amergin e o Homem de Folhas
escutam-na como se proveniente de uma funda caverna. Ela declarou:
– Em Tír inna n-Óc não há doença, não há velhice, não há morte, não há
mentira. Em Tír inna n-Óc o verão é eterno, revoadas de pássaros espalham
seu canto entre árvores sempre floridas e carregadas de frutos. Homem
mortal, foste trazido a este lugar para assumires a natureza de seus
habitantes. Mostraste coragem, dedicação, lealdade, poder, sagacidade e
conhecimento. Em nada diferes de nós, a não ser em tua mortalidade. Sou a
Rainha da Carnificina, mas também a Senhora da Vida e Conhecedora da
Toda a Magia. Neste momento, Amergin, filho de Mil, filho de Bilé, filho
de Breogan, retiro-te do reino da carne e do fluxo do tempo, para que vivas
a vida dos Filhos de Danu e possas contemplar passado e futuro igualmente,
movendo-te entre eles conforme tua sabedoria. Serás o elo entre os deuses
que partem e os homens que ficam.
Uma bola de luz prateada saiu da boca da Morrígu diretamente para a de
Amergin, que a engoliu. Ele estremeceu e gritou em agonia. Nas grandes
artérias e nas menores veias de seu corpo, o sangue foi devorado e
substituído pela luz das Tuatha Dé. Sua pele tornou-se translúcida, como
uma jarra de vidro cheia de vaga-lumes. Aos poucos, o ritmo retornou à sua
respiração. Seu corpo aprumou-se. O peso dos anos desapareceu. Amergin
olhou para a erva do chão e viu a seiva que nela corria e o espírito vivo que
rodopiava ao seu redor. Ele olhou para o céu, não sabia se era dia ou noite,
pois via a aurora e o poente a um só tempo, o sol dourado e as estrelas. O
tempo perdeu o sentido. Posso aprender a viver com isso, Amergin pensou.
Meu corpo e minha alma são um. Suthain, também estás comigo, sinto tuas
asas!
E assim Amergin, druida, juiz, poeta, foi chamado a viver na Terra da
Eterna Juventude como um de seus filhos.
30 Niamh Cinn Oir, “Brilhante Cabeça Dourada”.
A face desconhecida
Estrela da manhã, em breve esconderá minhas cicatrizes!
O mar secreto
Tempos de tempestade, revelam o céu para mim
(Refrão)
The secret sea
(Música: Marcelo Moreira / Letra: Eduardo Amaro e Alexei Leão)
The blades on your kingdom`s ground
Are like shining stars
Under the light of the moon
Confusion is surrounding you
(Chorus)
7
Vitória esmagadora
– Partamos para nossa primeira viagem. Mostrar-te-ei o semideus de tuas
visões.
– O menino atacado pelo cão?
– O menino que matou o cão! – corrigiu o Homem de Folhas.
– Como assim? Ele estava banhado em sangue! Como poderia
sobreviver?
– Já verás! – exclamou Morrígu.
Uma intensa névoa começou a se formar abaixo de nossa cintura. Uma
esfera azul brilhava intensamente acima de suas cabeças, emitindo raios que
começavam a piscar, e deixaram Amergin cego por alguns segundos.
– Vê e aprende, milesiano! – aconselhou a deusa. – Estamos em Emain
Macha32 e aquele é Conchobur Mac Nessa,33 rei de Ulaid.34 O pequeno,
enfrentando uma multidão de outros de sua idade, é seu sobrinho, Sétanta.35
– O rei será um de seus pais adotivos – acrescentou o Homem de Folhas.
– É ele o filho de Lugh? – perguntou Amergin.
– De Lugh e de Deichtire, meio-irmã do rei – respondeu o Senhor dos
Bosques.
– Gostaria de conversar com o jovem.
– Isso não será possível – explicou a Morrígu. – Somente os deuses
podem criar para si corpos semelhantes aos dos humanos. Estes que, como
tu, deixaram de viver no mundo mortal e não possuem essa capacidade. Se
chegarem a pisar novamente na terra dos mortais, transformar-se-ão em pó
de imediato. Portanto, olha e aprende!
Não conseguia tirar meus olhos daquele menino. No campo de jogos de
Emain, onde guerreiros e aprendizes desenvolviam e treinavam suas
habilidades marciais, Sétanta enfrentava uma tropa de outros garotos,
alguns mais crescidos e experientes, e dominava-os com uma só mão.
Desferindo golpes certeiros contra seus oponentes, era como um jovem urso
no meio de um bando de esquilos.
À distância, Amergin apenas observava as proezas do menino e
maravilhava-se com o desempenho, intuindo que tal vigor somente poderia
ser herança de Lugh, seu pai divino.
– Bravo, rapaz, mas já basta! – ordenou o rei, que havia se aproximado do
campo ao ouvir a algazarra. – Ele será um grande guerreiro para Ulaid, não
é mesmo? – perguntou a seu séquito.
E ninguém poderia contrariá-lo.
– Jovem, o ferreiro Culann36 convidou-me para uma celebração em sua
casa esta noite. Dezenas dos mais valentes de nossos guerreiros lá estarão, e
desejo apresentar-te a teus futuros irmãos de armas e ao grande artífice que
as forjará.
– Agradeço pelo convite, senhor. Posso antes terminar o que estou
fazendo? Prometo que não demorarei a segui-lo.
– Acredito que serás rápido – disse o rei, sorrindo. – Ninguém se iguala a
ti.
Conchobur partiu com seus cortesãos. O grupo figurava uma bela visão:
homens de várias idades, trajando túnicas multicoloridas e capas bordadas
com fios de ouro. Lanças com pontas de bronze e escudos cerimoniais do
mesmo metal com adornos em esmalte completavam o aparato do séquito
real, que seguia rumo à casa de Culann montado em altivos cavalos brancos,
negros e castanhos, finamente ajaezados e com belas testeiras ornadas de
chifres.
Como prometido, o jovem Sétanta em pouco tempo esgotou as forças de
seus oponentes, deixando-os prostrados e incapazes de voltar ao combate.
Cuidadoso com sua aparência, o jovem lavou o rosto em uma fonte
próxima, recompôs suas roupas e apropriou-se de uma das lanças deixada
no campo por algum adversário em fuga, partindo em seguida na mesma
direção que o cortejo do rei.
Invisíveis, eles foram em seu encalço, observando as brincadeiras infantis
do futuro guerreiro: Sétanta desferia golpes no ar com a lança e defendia-se
de inimigos imaginários.
– Lugh ficaria cheio de orgulho com este menino. Prevejo que será um
homem forte e valente, generoso e belo como o pai! – comentou Morrígu,
abrindo um leve sorriso.
– Eu não o achei tão generoso, Grande Rainha – respondeu Amergin.
– Lugh é senhor de muitas artes e possui várias faces, druida, nem todas
acessíveis aos mortais.
– A face que Lugh mostra aos filhos de Mil é a de alguém que suspeita de
forma desrespeitosa – resmungou o mago. – No entanto, se o consideras
generoso, é porque o conheces melhor do que eu. Pergunto-me apenas qual
a razão de estarmos enlevados atrás do bastardo de Lugh, embora não se
possa negar que seja um menino admirável.
Agastado com essa observação, o Homem de Folhas o alertou:
– Filho de mortais comedores de pão, que palavras mal concebidas deixas
escaparem de tua boca! Ó filha de Ernmas, Morrígu bravia, por que não lhe
tiraste a língua quando lhe deste a imortalidade? Tenho motivos para velar a
semente de Lugh, feiticeiro, e não são do teu interesse!
– Pela Árvore que sustenta os Três Mundos, quando há de cessar essa rixa
entre vós? Amergin, desejo que compreendas: Lugh pertence ao Povo de
Danu. Nosso exílio de Ériu, que conquistamos depois de terríveis batalhas,
foi obra sobretudo tua. A soberania da ilha agora pertence aos filhos de Mil,
que reinarão por séculos nesta terra. Aqui viemos para garantir que o sangue
de Lugh, que corre nas veias desse menino, alcance o destino que lhe está
reservado. O nome dele manterá viva a lembrança das Tuatha Dé Danann
quando a própria ciência dos druidas estiver sepultada.
Amergin estremeceu com essa possibilidade.
Ignorante de ser alvo das especulações de habitantes do Outro Mundo,
Sétanta brincava distraidamente pelo caminho. Sem perceber, por fim
alcançou a casa de Culann, uma grande construção circular, com paredes de
adobe pintadas de vermelho, coberta por um alto teto cônico de palha. De
sua única entrada, um grande portal, podia-se ver o brilho do fogo e uma
pequena parte do grande número de pessoas ali reunidas. Fumaça,
juntamente com as vozes dos convivas, subia de uma abertura no teto. Um
poço, a oficina do dono da casa, um cercado para os cavalos, tudo era
guardado por uma alta cerca.
– Deuses do Céu, da Terra e do Mar! Este é o lugar onde o cão atacará,
devemos proteger o menino para que minha visão não se concretize!
– Por que supões que não seja o destino dele ser atacado? Não nos cabe
fazer nada – afirmou Morrígu.
Cullan saudou Conchobur assim que ele chegou em sua casa, recebendo-o
com a devida atenção e, depois de conversarem sobre vários assuntos,
perguntou-lhe se havia ainda alguém a esperar. O rei se esquecera do
menino cujos feitos tanto o haviam impressionado no campo de jogos e
respondeu que não. Assim, o ferreiro deixou seu grande e feroz cão de
guarda solto na propriedade para proteger a casa durante o banquete.
Sem perceber a presença do temível animal, Sétanta adentrou o terreno. O
cão de Culann possuía a força de um touro e era quase tão grande quanto
um. Somente a seu mestre era leal e ninguém além de Culann podia
controlá-lo.
A fera avistou o pequeno Sétanta. Veio rapidamente por trás do menino e,
ficando sobre as patas traseiras, abocanhou-o o ombro. Alto foi o grito de
Sétanta, alertando todos que estavam dentro da casa. Não foi a dor, porém,
que fez o menino gritar; foi a surpresa do ataque. E a fúria.
Ele apertou o cão pelo pescoço, impedindo-o de respirar e fazendo-o abrir
a boca. Segurando a besta pela cabeça, Sétanta a girou como o fuso de uma
roca de fiar e subitamente largou-a, lançando o animal contra uma grande
pedra. A força do choque fez a cabeça do cão abrir-se como uma abóbora.
Ainda tremendo de fúria e com o ombro sangrando, o pequeno guerreiro
caminhou para a entrada da casa. Culann veio recebê-lo à porta.
– Bem-vindo sejas, rapaz. Bem-vindo em razão de teu pai e de tua mãe,
mas não por tua própria chegada.
– Que tens contra o menino, Culann? – Conchobur perguntou.
– O que tenho contra ele? Ora, melhor seria que eu não vos tivesse
oferecido uma festa em minha casa hoje, pois este garoto matou o guardião
de minha casa, dos meus rebanhos e manadas, de todas as minhas riquezas.
O que me roubaste, rapazinho, era um bom amigo.
– O cão atacou-me! – gritou Sétanta, ainda enfurecido.
– Respeite-me dentro de minha propriedade, jovem insolente! Era ele que
protegia a minha propriedade e tu eras um intruso! Ele te atacaste, é
verdade, mas tu precisavas matá-lo para defender-te?
O menino ficou sem saber o que dizer. O homem tinha razão. Ele o
desrespeitou e agora a dívida dobrou. Sétanta não sabia controlar a própria
força e, sobretudo, reprimir sentimentos como a raiva, algo tão importante
para um guerreiro em combate. Ter o equilíbrio, e Sétanta já sabia disso, é
muito importante em uma batalha.
– Qual teu julgamento a esse respeito, Sétanta? – perguntou Conchobur.
O garoto teve o ímpeto de responder de imediato, mas lembrou que,
tomado pela adrenalina e ainda com raiva, não responderia justamente
àquele a quem ele deve não somente respeito, mas um novo cão, pois, por
sua culpa, Conchobur tivera esta grande perda. O menino procurou acalmar-
se, a fim de encontrar uma boa solução para este impasse.
– Qual teu julgamento? – perguntou novamente de uma forma mais
ríspida, devido à demora da resposta.
O menino finalmente manifestou-se:
– Não te enfureças, meu mestre Culann, pois compensarei tua perda.
– Como podes compensar-me, menino?
– Não posso oferecer um cão igual, mas, se houver nesta ilha um filhote
da mesma raça, hei de criá-lo eu mesmo até que seja capaz de fazer tudo o
que era feito pelo cão que matei. Enquanto isso, para guardar tua casa, teus
rebanhos, tuas manadas e todas as tuas riquezas, eu mesmo serei o teu cão.
Serei o cão de Culann.
– Muito bom foi teu julgamento – disse o rei.
– Nós não teríamos chegado a decisão melhor – interveio Cathbad, o
druida do rei. – Não te agradaria, jovem, que a partir de agora fosses
chamado Cúchulainn?37
– Não, pai druida, gosto do nome que me foi dado, Sétanta, filho de
Sualtam.
– Não será assim, filho, é com o nome Cúchulainn que terás fama imortal
entre os homens de gerações que ainda não nasceram – profetiza o druida.
– Qualquer nome que me deis – Sétanta sorriu, encantado com a promessa
de fama perene – aceitarei de bom grado.
A plateia invisível daqueles acontecimentos também ficou
favoravelmente surpresa.
– Tanta honra e bravura e tão pouca idade...! – elogiou o Homem de
Folhas.
– Tenho de concordar, o menino é o jovem broto de uma cepa nobre. Na
minha visão, o sangue em seu ombro...
– Imaginaste que ele morreria – concluiu Morrígu.
– Exatamente! Que engano tolo! O filho de Lugh é imortal!
– Estavas enganado, druida, e agora erras... – Morrígu observou. –
Cúchulainn cairá pela lança de Lugaid Mac Con Roí.38 Assim como a
bravura e o vigor são o legado de seu pai, a mortalidade é a herança de sua
mãe. Ele ficará enfraquecido em seu corpo e em seu espírito, o peso da
tristeza tomará seu coração. Medb será então a rainha de Connacht e enviará
um exército em seu encalço, transferindo aos guerreiros sua magia. Eles
provocarão graves feridas e a lança mágica,39 que Cúchulainn ostentará,
será tomada dele. O herói cairá em pé, dignamente, mas terá o fim a que
todos os mortais são predestinados, e nem Lugh poderá salvá-lo. Esse é o
real destino do herói Cúchulainn e não há alteração no curso dos
acontecimentos que me faça duvidar desse fado.
Mergulhando séculos no futuro, Amergin finalmente compreendeu o
significado de suas visões: a fusão entre divindades e humanos que iria
realizar-se naquela terra onde seu povo passaria a habitar. O maior
ensinamento, contudo, ainda estava no porvir.
– Deixemos agora o mundo dos mortais, mago. Danu quer a tua
presença!
Envolvidos pela névoa mágica criada pela Morrígu, o grupo retornou a
Tír inna n-Óc, onde a ancestral dos deuses aguardava inquieta sua chegada
ao Palácio da Luz.
32 Emain Macha (“Gêmeos de Macha”), hoje Navan Fort, em Contae Ard Mhacha (County Armagh),
na Irlanda do Norte.
33 Conchobur (“aquele que ama cães”), é filho de Neas, filha de Eochaid Sálbuide, rei de Ulaid, e do
druida Cathbad. Graças aos ardis de sua mãe, tornou-se rei de Ulaid aos 7 anos de idade, substituindo
Fergus Mac Róich.
36 Culann é o ferreiro (gobae) do Síd de Sliabhg Callann (“Montanha das Alturas”), em Contae Ard
Mhacha (County Armagh), na atual Irlanda do Norte. Era parte das Tuatha Dé Danann e vivia em Ulaid
na época de Cúchulainn (por volta do começo da Era Cristã, pois o rei Conchobur teria nascido no
mesmo dia que Jesus), como fica claro nesta narração. Culann aparece também nas aventuras do rei
Cormac Mac Airt (Grande Rei da Irlanda de 227 a 283 d.C.) e do herói Find Mac Cumail. De acordo
com uma lenda irlandesa, a filha de Culann, Áine, apaixonou-se por Find, mas não foi correspondida.
Ela então o jogou num lago e Find, ao sair da água, percebeu que se tornara um ancião. Os Fianna
(grupo de guerreiros cujo líder era Find) encontraram-no assim, foram ao síde de Culann, em Sliabhg
Callann, e começaram a escavá-lo. Culann saiu do monte encantado e, furioso, perguntou-lhes por que
estavam destruindo sua morada. Os Fianna disseram-lhe o motivo e Culan retirou de Find todos os
sintomas da velhice, exceto os cabelos grisalhos. Desse modo, Find, embora um homem novo, ficou
com a cabeça de um velho.
38 Cúchulainn matou Con Roí (“Cão do Campo de Batalha”), rei de Mumhain (Munster, província ao
sul da Irlanda), pai de Lugaid, para obter Bláthnat, filha de Mend, rei de Inis Fer Falga (talvez a Ilha de
Man).
39 GáeBolga (“Lança da Dor Mortal”) era o nome da lança de Cúchulainn, que a recebeu de sua
mestra, a guerreira Scathach (“Sombria”), que apenas a ele ensinou a técnica para manejá-la. A
GáeBolga foi feita com o osso de um monstro marinho, o Coinchenn, que morrera em combate com
outro monstro marinho, o Curruid. De acordo com o Lebor Laignech (“Livro de Leinster”, do séc. XII),
havia um ritual para utilizar essa arma: deveria ser preparada para o uso em um córrego e lançada com
a forquilha do dedão do pé. Ela assim entraria no corpo de um homem provocando um único ferimento
e abrindo-se em trinta farpas, de modo que somente poderia ser extraída se a carne fosse cortada. Em
outras versões da lenda, a GáeBolga é uma lança com sete pontas, tendo cada uma sete farpas.
Vitória esmagadora
Ferida está a pele do guerreiro
Valente é a alma sem um pecado
Na mão dele, uma espada reluz
Na sua face, brilha um guerreiro
(Refrão)
Crushing Victory
(Música: Cláudia Barron e Marcelo Moreira / Letra: Eduardo Amaro e Alexei
Leão)
(Chorus)
8
O Templo da Luz
– Bem-vindos à minha morada! – Danu saudou.
– Trago o druida Amergin, como pediste, mãe Danu – Morrígu
respondeu. – Sua entrada em Tír inna n-Óc fez nascer a paz em seu espírito,
e toda a inquietação que antes o perturbava é agora uma lembrança de seu
passado mortal.
– Estás enfim pronto para compreender o que tenho a contar – Danu
concluiu, dirigindo-se a Amergin. – Deixai-nos por um momento.
Dessa forma, o Homem de Folhas e Morrígu saíram do recinto.
– Eis que chega o tempo das revelações, fiel mago. És o escolhido.
Aceitas saber a verdade sobre a razão de nossa vinda à Ilha Verde?
– Sim, Danu venerável! Conta-me desde o princípio! Tenho esperado
ardentemente por essa revelação.
– Assim seja. Em outra terra, de cujo nome apenas o vento e as ondas do
mar guardam lembrança, eu estava sentada em uma pedra, na margem de
um rio caudaloso que corria em direção à aldeia do meu povo. Livre estava
meu espírito naquele momento, como a borboleta que pousa descuidada de
flor em flor – suspirou Danu, ao lembrar o enlevo que a tomara naquela
oportunidade. – Eu observava o fluir tranquilo e constante das águas,
levadas pela surpresa de seu próprio desenrolar, e desejava ser como elas.
Peixes, a distância, emergiam da líquida planície, ávidos pelos insetos que
voejavam de um lado para outro. Cisnes altivos dirigiam-se para a margem
onde eu estava, alvos como as nuvens do céu luminoso que espiralavam
para formar uma imagem indefinida, enquanto a força cósmica da vida
realizava dentro de mim seu encantamento silencioso. Minha consciência
então adormeceu e, no morno torpor que me dominou, senti o pulsar da
força criadora e vital de tudo o que existe. Ela falou-me com voz clara e
irresistível: “Escolho-te para gerares uma nova raça que me há de conhecer
e honrar-me com o santuário onde habitarei entre meus filhos.” Naquele
instante, avistei pela primeira vez as praias desta ilha verdejante e, glorioso
entre todos os habitantes das florestas, vi o carvalho milenar cuja emanação
atingiu-me de imediato. Era a própria força da vida que me ordenava:
“Constrói o Templo da Luz, casa de sabedoria e paz. Essa é a mesma luz
que existe dentro de ti, segue-a e todas as outras luzes estarão a teu serviço.”
Assim me foi dito, filho de Mil, assim eu fiz, assim se realizou. O mesmo
poder inspirou-me a ordenar a construção das embarcações que trouxeram
meu povo das terras longínquas do norte para esta ilha. Peregrinamos
durante muito tempo em uma jornada perigosa e nos é difícil aceitar que,
depois de tantos esforços, fomos derrotados por uma gente que não ouviu o
mesmo chamado: teu próprio povo, Amergin! Jamais conhecemos revés
contra quaisquer inimigos, pois sabemos interpretar os sinais das estrelas e a
voz do vento, dominamos o fogo que sobe da terra e a tempestade que
cascateia do céu, compreendemos a voz dos pássaros e nada do que se
oculta nas sombras nos é desconhecido. A magia de Tír inna n-Óc a tudo
alcança, a luz de que somos portadores insinua-se nos recessos mais ocultos
desta terra!
– Abençoaste todos os seres viventes, deusa gentil, mesmo os teus
inimigos. Entre pequenas colinas és a montanha cujo pico oculta-se nas
nuvens.
– Contudo, o destino ordena que esta montanha busque em outra parte o
seu manto de nuvens, pois já não lhe pertence o céu que a cobre. Partimos
em busca de novos caminhos, mas a luz que nos guiou até aqui há de
permanecer, e serás tu o espelho em que as gerações dos homens a
contemplarão. O Templo da Luz serás tu, em ti deposito toda a magia de Tír
inna n-Óc, a memória do meu povo e a grandeza de nossas aspirações.
– Não compreendo...
– Não somos estas construções de pedra e metal, não somos as realizações
de nossos artífices, nem sequer os instrumentos mágicos criados por nossos
sábios expressam tudo aquilo que somos. Nossa identidade manifesta-se em
nossas ações, em nossa relação com o mundo e com todos os seres que nele
habitam: a dignidade que atribuímos a todos e o respeito que temos para
com eles, e uns com os outros, isso é o que somos. Em todas as provas que
atravessaste, ficou evidente que aquilo que somos, também tu o és. Podes,
assim, mostrar-nos a teus irmãos quando tivermos partido.
– Dizes que a luz que brilha em vós brilha em mim de modo que posso
refleti-la aos mortais? Por isso a Grande Rainha deu-me a vida das Tuatha
Dé?
– Compreendeste enfim. E sabes que deves entregar-me o cajado.
– Toma-o – disse Amergin, estendendo a Danu a arma mística.
A deusa iluminou-se ao tocar o artefato. Suas vestes, agitadas por um
sopro de origem desconhecida, esvoaçavam. Os símbolos dos Quatro
Tesouros desprenderam-se do bastão e adejaram ao redor da cabeça de
Danu como grandes e brilhantes borboletas, circundando-a cada vez mais
depressa até se tornarem indistinguíveis. Subitamente ficaram imóveis e,
com ligeiro estremecimento, precipitaram-se em direção ao druida. Um a
um, os Quatro Tesouros afundaram em seu peito, unindo-se à sua essência
vital. Cada impacto aproximava-o das Tuatha Dé e afastava-o de sua origem
milesiana. Amergin tornou-se menos tangível. E mais sábio.
Toda a existência pareceu revelar-se ao druida; os mistérios dissiparam-
se. Amergin pisou na realidade sem tempo onde Danu existe e ambos
partilharam a eternidade, renovação incessante do momento presente. O
sacerdote já não pertencia ao número dos mortais. Ele era agora um dos
deuses, o mediador e último guardião da herança das Tuatha Dé Danann.
O Templo de Luz
Eu estou sentada em uma pedra, ao longo do rio
O meu coração se sente livre
(eu observo as águas)
Movendo como um pássaro num dia ensolarado
Elas acalentam a enseada divina
(Refrão)
(Chorus)
Luz da manhã
A manifestação mágica ecoou por toda a Tír inna n-Óc, chegando à atenção
de Dagda, o Pai de Todos e Senhor do Grande Conhecimento. Este
entendeu a importância do acontecimento no Templo de Luz e convocou os
líderes das Tuatha Dé para um encontro urgente, enquanto manifestava o
desejo de previamente receber Danu e Amergin em seus domínios.
O druida já não mais necessitava da ajuda da deusa para manifestar-se no
tempo e no espaço, tampouco para sentir o chamado do Dagda. Entre
olhares, abrindo um leve sorriso ao notar a nova percepção de Amergin,
Danu descreveu um ligeiro arco com sua mão direita e as paredes de seu
palácio dissolveram-se de cima a baixo, dando lugar ao pomar do Dagda. O
robusto guerreiro descansava, sob um caramanchão totalmente coberto por
uma trepadeira salpicada de flores roxas e brancas, e dedilhava
preguiçosamente sua harpa de madeira clara de salgueiro, ornada de ouro e
joias. Dois grandes porcos,40 sonolentos diante do divã no qual o Dagda
estava reclinado, ergueram suas cabeças e olharam com pouca curiosidade
para os recém-chegados.
– Ouvimos teu chamado e aqui estamos – disse Danu.
– Mãe Danu e nosso novo irmão, sede bem-vindos à minha morada! –
cumprimentou Dagda. – Amergin, regozijo-me com o fato de que a escolha
tenha recaído sobre ti.
– Devo agora corresponder à confiança em mim depositada, Deus Bom.
– O dia de tua jornada entre os imortais apenas raiou. Por mais que teu
olhar avance no horizonte, seu ocaso não será visto. No ventre do tempo,
dois acontecimentos de profundo significado foram semeados e
desabrocharão como gigantes de longas sombras no mundo dos homens, de
onde foste tirado. De tais eventos, um será lembrado por eras, sem número
nas gestas dos heróis e soberanos da Ilha Verde, enquanto o outro há de
ficar coberto pelo manto das névoas espessas.
– Por esses sucessos serei o responsável?
– De um serás agente. Do outro, mero espectador.
Enquanto as divindades conversavam, uma corça castanho-avermelhada
começou a aproximar-se delas dissimuladamente. O animal mordeu a
grama, andou alguns passos e voltou a pastar como se contasse cada folha
que abocanhava, repetindo esse procedimento até chegar bem perto do
grupo. Amergin percebeu a movimentação sorrateira do animal. Habituado
a observar as criaturas da natureza, pareceu-lhe estranho o comportamento
do inesperado visitante, que contrariava a timidez usual da espécie ao
acercar-se de potenciais caçadores. Absorvido no diálogo, porém, o druida
não lhe deu maior atenção.
– Então por isso nos chamaste, Deus Bom?
– Um dos motivos é sem dúvida esse, mas não o único. Nasceste para
uma nova vida que te deu capacidades ainda fora do teu domínio. Assim
como o tenro infante que não aprendeu a usar as pernas, também tu não
aprendeste o que fazer de ti mesmo. Assim como a criança não sabe aonde
será levada por seus pés, também tu não percebes aonde podes chegar.
– É mais sábio aquele que aprende com a experiência alheia. O que me
cabe fazer?
– As árvores crescem, Amergin, mas não todas igualmente. Vai
perguntar-lhes como venceram o escuro abraço da terra e chegaram a erguer
seus ramos para o céu. Aprende com elas.
Ao ouvir as palavras de sabedoria, o druida acomodou-se ao lado da
divindade e contemplou os seus próprios pensamentos. A noite caiu e a
brisa fragrante que a anunciara tocou a face de Amergin com a suavidade de
um manto de penas. Intrigado com as palavras do Dagda, o druida saiu a
perambular entre macieiras sempre em flor, aveleiras delgadas, altas bétulas
e todos os demais habitantes silenciosos do grande jardim do poderoso Deus
Bom. Os acontecimentos das últimas semanas atravessavam sua mente e ele
lutou para ordená-los e discernir o padrão oculto que lhe permitiria retirar
dessas lembranças, o que ainda necessitava aprender. Ao caminhar, afastou
distraidamente os ramos mais baixos com sua mão e pisou em gravetos que
se quebraram com estalos secos. Aferroados pela inquietude obstinada que
era sua companheira, os pensamentos de Amergin voaram como as folhas
secas que o vento soprava num remoinho:
– Percebi quão importante sou no destino da Ilha Verde – disse a si
mesmo. – Apesar de ter chegado aqui como peregrino oriundo de outra
terra, senti desde o primeiro momento a ligação estreita e inegável com este
lugar especial, sagrado. É como se dele já fizesse parte, embora nascido sob
outros céus. A esperança posso mudar em realidade, possuo força capaz de
superar a daqueles que nasceram para jamais conhecer velhice ou morte,
mas escapa-me o futuro. Vejo emaranhados os fios do tempo e não percebo
onde haveria proveito em lutar ou onde seria sábio curvar-me ao fado e
aceitar sereno seu desígnio. Fui gerado na finitude que agora contemplo,
com estranhamento observo a eternidade que diante de mim se descortina.
Percebo-me híbrido, deslocado entre as crianças da terra, estrangeiro entre
os filhos do céu. Desejaria somente viver como o fluir das águas de um rio,
levadas pela surpresa de seu próprio desenrolar, compartilhando da
existência primordial que é incompreensível em sua simplicidade. Percebo a
relação e o entrelaçamento de todas as vidas e, em raros momentos, a
urdidura do tecido cósmico desvela-se em minha mente com o fulgor suave
da luz da manhã, que louvarei até o fim dos tempos, o brando clarão em que
minha criança interior pronuncia a indagação sempre feita e nunca
respondida: “Quem sou eu?”
– Esse é o momento certo para tal pergunta, Amergin. A luz matutina é
uma boa luz. O espírito fugirá, se sobre ele lançares o clarão do meio-dia.
Absorto que estava em seus pensamentos, a voz surgida do nada puxou
Amergin de volta ao jardim, para o meio das árvores em que a sombra do
poente já triunfava sobre a luz. Ninguém via, exceto a corça de
comportamento peculiar que o fitava com olhos de ônix. Ele percebeu
inteligência por trás daquele olhar de noite sem lua. Deslocou-se um passo
para a direita e ela o acompanhou. Recuou um passo, ela avançou e
subitamente ergueu o focinho, num gesto de desafio. “E então?”, pareceu
dizer. Amergin percebeu que não estava diante de um habitante da floresta.
– Ó tu, que te escondes sob a forma de um animal gentil, quem és? És do
Povo de Danu ou pertences à raça disforme que vive sob as ondas?
– É quase ofensivo que me confundas com os gigantes monstruosos – a
voz ressoou firme no cérebro de Amergin –, uma vez que és agora um dos
nossos. Desejas, pois, saber quem sou?
– Por isso lhe perguntei.
– Não vim a ti por mero capricho. Mostra-me antes que podes ter proveito
da informação que te darei. Fala-me sobre os Caldeirões.41
– Por que te importarias?
– Importa-me que aprendas.
– Aprender o que já conheço?! Certamente sabes...
– Os Caldeirões, mago! – reiterou a corça com veemência.
– Se te apraz, os Caldeirões são três. O primeiro deles denomina-se
“Caldeirão do Aquecimento” e é nossa conexão com a própria força da
vida. Tal energia...
Amergin emudeceu, desconcertado pela repentina ardência em seu ventre.
O animal pareceu encará-lo com divertimento enquanto o tácito diálogo
entre eles mudou de tom:
– Ousaste enfeitiçar-me?!
– Tu mesmo és o teu encantador. Possuis agora o poder mágico dos
Filhos de Danu, aquilo que tua palavra enunciar tornar-se-á realidade.
Invocaste o nome da força vital e é ela que agora se agita em ti. Abre tua
túnica e olha.
Incrédulo, o druida fez como lhe foi dito e percebeu que seu abdômen
tornou-se translúcido e brilhante como um vaso de alabastro cheio de
carvões incandescentes. Com um estremecimento, Amergin compreendeu
de súbito o poder do verdadeiro instrumento mágico que esculpia a
realidade: a palavra manifestada com sabedoria.
– Percebes? Dize-me agora sobre o segundo caldeirão!
Amergin empolgou-se e não fez mais perguntas. Prontamente, continuou
o discurso.
– Trata-se do “Caldeirão do Movimento”! Ele é a nossa conexão com as
emoções, localizado em nosso coração, relaciona-se com nosso dán,42 que é
ativado pelo comprometimento com os desejos profundos da alma!
O druida sentiu a força que borbulhava em suas entranhas, mas já não
temia ou se espantava. Desejou antes que o segundo caldeirão
transbordasse, cheio do fogo líquido que jorrava do âmago de seu ser. Sem
hesitação, ele prosseguiu, consciente de que agora falava por si mesmo.
– Na cabeça está o último caldeirão, que é o da “Sabedoria”, o vaso que
concede a profecia, a sabedoria e o poder de realizar milagres. Em cada
pessoa, o terceiro caldeirão nasce com a boca para baixo; o segundo, virado
de lado e o primeiro, na posição correta. A alegria, a tristeza, o prazer e a
peregrinação aos lugares sagrados, bem como o estudo e a disciplina, têm a
capacidade de virar os caldeirões que não se encontram na posição
adequada desde o nascimento, de modo que o homem seja assim levado da
ignorância ao perfeito conhecimento. A força vital nasce no Caldeirão do
Aquecimento, constrói sua morada no Caldeirão do Movimento e floresce
totalmente no Caldeirão da Sabedoria!
O mago silenciou, ansiando por sentir o calor místico preenchendo o
terceiro recipiente. Ficou desapontado, contudo.
– Onde falhei? – perguntou atônito.
– Não me podes ver como sou. O véu de tua origem humana ainda cobre
teus olhos.
– Ter recebido a vida dos deuses em lugar de minha mortalidade não
basta para tornar-me igual a eles. A dúvida que persiste em minha alma
impede-me de abandonar a correnteza do tempo – Amergin compreendeu.
– Sim, mago. És o grande druida entre os Filhos de Mil. Nos domínios do
Povo de Danu, porém, és um aprendiz. Como os homens, estás agarrado à
lembrança do passado e à expectativa do futuro, os pilares que expressam a
luta da Forma com a Força. Deves renunciar a essa batalha da ilusão e
escolher o pilar do meio, que não é nem Passado nem Futuro, mas o Agora,
a presença da Eternidade dentro do tempo, pois esse é também o “Caminho
do Conhecimento”. Pega, Amergin, essa pedrinha – disse a corça,
escavando a terra com uma das patas – e joga-a no lago.
Amergin abaixou-se, pegou o seixo e examinou-o. Não tinha nada de
especial.
O crescente fino da lua refletiu-se no laguinho, cuja água nenhuma brisa
perturba. O druida lançou a pedra, como lhe dissera a corça.
Uma, duas, três vezes o calhau bateu na superfície líquida antes de
afundar, cada choque provocando o aparecimento de círculos concêntricos
que se entrelaçavam. Ao observá-los, Amergin sentiu o fogo tomar seu
cérebro. “Sou o deus que faz o fogo na cabeça”, ele ouviu com clareza. O
último caldeirão estava cheio de luz e os olhos do mago, abertos para o que
antes não podia ser visto.
Ele se voltou para a corça, mas se deparou com uma mulher que ergueu a
mão para saudá-lo. Ela era alta e seu longo cabelo castanho a cobria como
um manto. Seus olhos eram totalmente negros, como os do animal cuja
forma antes exibia e do qual conservava as orelhas. Usava uma túnica de
fina lã verde, levantada na frente e presa ao cinto largo de couro para
facilitar a caminhada. De couro eram também as botas de cano alto que
protegiam seus pés, deixando descobertos os dedos.
– Sou Flidais,43 mago! Meu coração alegra-se nas florestas e todos os seus
habitantes são meus companheiros. Encontro beleza em seus ciclos e
percorro sem cessar meus domínios, punindo aqueles que abusam da
generosidade da terra e de suas criaturas. Honro, porém, aqueles que me
honram.
– Está além da minha capacidade agradecer...
– Não agradeças – a deusa o interrompeu. – O fado decretou que nosso
tempo em Ériu havia chegado ao fim. O domínio dos deuses nesta terra
terminou e começará a história dos homens. Não escolhemos o exílio que
nos é imposto, mas optamos por ti, druida, mago, juiz, poeta, o melhor do
teu povo, para conservares nossa herança e memória no mundo turbulento
que virá. Não agradeças. Interessamo-nos por ti como o ferreiro que se
aplica em forjar a melhor espada. Fui rebelde a esse desígnio e solicitei ser a
última a instruir-te para certificar-me de que estarias apto a enfrentar o
grande destino que te aguarda. Sei agora que serás capaz.
– Existe grande paz na inexistência do passado, na falta do futuro.
– O futuro não precisas conhecer.
– Tudo de que necessito é saber o próximo passo... Danu me chama ao
Templo da Luz.
– Muitos esperam por ti. Somente o perceberias se tivesses êxito em levar
tua força ao último caldeirão. A passagem está aqui – disse a mulher com
orelhas de corça indicando uma gruta que antes não estava ali. – Irei
contigo, pois há muito não visito a morada de Danu.
40 Os porcos do Dagda possuíam a seguinte virtude: um deles poderia ser assado e servido. Enquanto
isso, o outro ficaria maior. Quando este fosse abatido, o primeiro imediatamente se regeneraria, de
forma que sempre houvesse carne disponível para ser consumida no banquete.
41 Um antigo poema atribuído ao próprio druida Amergin foi localizado em um manuscrito jurídico do
séc. XVI, que hoje se encontra no Trinity College de Dublin, catalogado como H 3.18. Esse poema
recebeu dos estudiosos modernos o nome de “O Caldeirão da Poesia”. Citado no Glossário de
O’Davoren (1569), o nome desse texto aparece sob diferentes formas: In Coire, Coire Goiriath, In
Coire Éarmai, sempre fazendo menção à palavra coire (“caldeirão”). A primeira estrofe do poema diz:
Moí coirecoirgoiriath/ gorrond n-írDíadam a dúilednemrib;/ dliuchtsóirsóernabroinn/
bélraembilbrúchtasúad (“Meu perfeito caldeirão do aquecimento – ou sustento/incubação/ foi por Deus
retirado do abismo dos elementos;/ verdade perfeita que a partir do âmago enobrece/ vertendo uma
torrente aterradora de palavras”). De acordo com o poema, três caldeirões existem dentro de cada
indivíduo. O primeiro chama-se Coire Goiriath (“Caldeirão do Aquecimento/Sustento/Incubação”).
Desde o nascimento, esse recipiente encontra-se virado para cima. O líquido que nele borbulha é a
força vital responsável pela saúde física. O segundo é Coire Érmai (“Caldeirão do Movimento”). Desde
o nascimento, esse recipiente encontra-se virado de lado. O líquido que nele borbulha contém o
caminho de nossas ações e realizações, as emoções e os talentos. O terceiro é Coire Sois (“Caldeirão da
Sabedoria”). Desde o nascimento, esse recipiente encontra-se virado para baixo. Ele contém nossas
habilidades inatas e potenciais naturais que podem ser desenvolvidos a um grau máximo. A ideia de
total autorrealização reside em Coire Sois. Dán corresponde a Coire Goiriath; brí, a Coire Érmai; bua,
a Coire Sois.
42 Dán é um dos conceitos mais complexos na tradição irlandesa. A palavra pode ser traduzida como
“poesia, dom, talento, vocação, fado, destino”, conforme o contexto. Contudo, dán engloba todos esses
significados como um conceito unitário. O dán de um indivíduo atribui-lhe brí (“essência, vigor”), o
poder pessoal inerente que não pode ser obtido de outra forma, mas apenas desenvolvido. Bua (“vitória,
mérito”) é o poder pessoal obtido pelo indivíduo, sobretudo o que se manifesta em uma área específica.
As ações que permitem obter ou mantêm bua recebem a designação de buatha (o plural de bua).
Tairbhe é o nome dado ao lugar, objeto ou atividade (únicos para um indivíduo ou não) que levam à
obtenção de bua ou ao desenvolvimento de brí. Outro conceito importante que pode ser encontrado
com certa frequência na mitologia é geis (plural geasa), que significa um dever (ou proibição) de fazer
algo imposto por meio de magia, com força igual à do dán. A violação da geis leva a diach (“punição”),
quase sempre resultando em antecipação de bás (“morte”).
43 Flidais, também conhecida pelo epíteto Foltchain (“Bela Cabeleira”) era a esposa do rei lendário,
Adamair, e mãe do herói Nia Segamain, que, graças aos especiais poderes de sua mãe, tinha a
capacidade de ordenhar gamos como se fossem vacas. Flidais era também a mãe de Fand, esposa de
Manannán Mac Lir. Possuía um rebanho de vacas mágicas que, a cada sete dias, podia fornecer leite
suficiente para alimentar um exército inteiro. Em especial, a vaca chamada Mael (“Mocha”) podia
nutrir trezentos homens com o leite tirado na ordenha de uma só noite. O herói Fergus Mac Róich era
seu amante e, de acordo com a lenda, se ele não pudesse ter Flidais, sete mulheres seriam necessárias
para satisfazer seus apetites sexuais.
Luz da manhã
Enquanto caminho pela noite
Visito o que deixei para trás
Muitas dúvidas em minha mente
E me pergunto quem sou eu
O único a transformar
Esperança em realidade
Histórias contadas pelas cicatrizes na minha alma
E ainda assim me liberto de toda a minha pele velha
O único a transformar
Esperança em realidade
Histórias contadas pelas cicatrizes na minha alma
E ainda assim me liberto de toda a minha pele velha
(Refrão)
(Chorus)
Alma celta
– Desde que a suprema deusa concedeu-me a revelação, caminhei pelas eras
por dezenas de séculos. Permaneci vivo pela magia que havia em todos os
seres, caminhando eternamente pela estrada da vida, sentindo a natureza
dançar ao meu redor.
“Sou a mais potente força existencial, que guia a alma humana para sua
criança interior; sou aquele que afugenta os fantasmas e os temores mais
profundos durante a noite mais densa e escura.
“Detenho o poder para derrotar o infortúnio; sou o protetor dos segredos
ocultos da existência, guardião do tempo e historiador do cosmo; sou o mais
alto símbolo de liberdade, a bradar incansavelmente no coração humano.
Tenho a habilidade de espalhar a sabedoria e distribuo-a gratuitamente para
aqueles que me procuram. Posso consumir e multiplicar o conhecimento
armazenado no salmão que comeu a avelã da sabedoria, caída da árvore
sagrada.
“Procuro em cada espírito, incansavelmente, seus tesouros mais
profundos e faço-os aflorar. Glorifico o majestoso voo do falcão, saudando
mais um amanhecer até o fim dos tempos.
“Quando o Homem se volta para o que há de belo no cosmo e dele
absorve a essência vital, observo seu silêncio e choro. Todas as ilusões,
amores, desejos nobres e anelos do coração humano, absorvo-os; ouço os
pensamentos e mergulho no espírito, que se apaixona pela vida.
“Sou o lago em uma planície, o falcão da montanha, o carvalho da
floresta, a borboleta do campo, o verde-azulado do oceano, o rio que corre
velozmente pelo bosque, repleto de vida e constância.
“Quando ouço o silêncio dos pássaros, abençoo as manhãs, que se abrem
no infindo horizonte iluminando os seres da criação. Quando vejo a lua na
noite estrelada, alimento as paixões humanas e provoco suspiros no mais
radiante sol, que espreita o tempo lunar, esperando que sua luz banhe o
planeta uma vez mais, trazendo o regozijo do amor e o esplendor da beleza
universal.”
Tais palavras proferiu o druida no Templo da Luz, ao lado de Danu, para
uma multidão de sábios, mestres e poetas que mereceram conhecer Tír inna
n-Óc a convite dos próprios deuses. Sua mensagem era arrebatadora e, ao
mesmo tempo, muito simples, pois ela existia desde o momento em que o
homem foi criado, no coração dele, em sua parte mais íntima, em comunhão
com a natureza. Assim concluiu o druida:
– Segurai minha mão e confiai em mim! Levai essa mensagem a todos os
povos por todas as eras! Eis o meu convite para toda a humanidade: segurai
minha mão e senti a força do povo mágico! Segurai minha mão e confiai em
mim! Olhai para mim e vede meus olhos novamente por uma nova
perspectiva, acreditai na magia que há em vós e eles colocarão vossos
corações em chamas ardentes de amor sublime! Vinde voar com os falcões,
vinde cavalgar livremente no dorso do unicórnio branco! Não vos
preocupeis se não conseguirdes entender os mistérios, basta confiardes em
mim para começardes de novo, sem culpa ou dor alguma. Tornai belos os
vossos espíritos, pacíficos e reluzentes. Fazei-os comungar com a natureza.
Senti a beleza nas criaturas mais singelas e regozijai-vos a cada amanhecer.
Apenas confiai em mim e segurai a minha mão. Libertai-vos! Vinde! Vinde
voar com os falcões!
– Magnífico discurso, Amergin. Inspirador! – exaltou Morrígu.
– Deveras apropriado realmente, mago dos magos! – complementou
Danu. – Devemos agora nos reunir, pois um assunto de primordial
importância merece a nossa atenção.
Os deuses caminharam em direção a um esplendoroso corredor cujo piso
encontrava-se coberto por um único grande tapete multicolorido de finos
ramos entrelaçados a flores e aves, formando padrões de perfeição além da
capacidade humana; em suas paredes, painéis avermelhados de teixo,
ornados com apliques de ouro e prata, representavam antigas vitórias dos
maiores capitães das Tuatha Dé.
Enquanto a multidão de druidas, honrados pelo convite de Amergin para
ter com os deuses no Palácio de Luz, conversavam e aprendiam sobre as
artes mágicas, os dignitários do Povo de Danu aproximavam-se da pesada
porta de carvalho entalhada que dava acesso à sala especial onde
costumeiramente realizavam suas reuniões.
Uma mesa imponente destacava-se nesse lugar, redonda e dividida em 29
partes, separadas por filetes de cristal refulgente incrustados na madeira. Em
seu centro, um pequeno carvalho de ouro, esculpido com arte admirável,
que abrigava em seus ramos uma multidão de minúsculas aves feitas de
pedras preciosas. Em cada uma das divisões, um trono aguardava seu
ocupante, cujo nome nele estava inscrito. Atrás do assento de Amergin, que
agora ocupava lugar ao lado de Danu, guardava-se a espada forjada a
pedido do druida, na qual ele estava incutindo os mais poderosos
encantamentos. Amergin acreditava que a nova arma mágica seria
determinante no futuro das tribos da ilha e por esse motivo a protegia
cuidadosamente nessa sala a qual poucos tinham acesso.
Além do mago, estavam presentes Danu, Dian Cecht, Brigit, Morrígu,
Lugh, Dagda e Nuadu. Todos tomaram os seus respectivos lugares na távola
sagrada e Danu abriu o debate.
– Sejam todos bem-vindos ao meu palácio e a esta reunião! Esta data é
muito importante para nós por duas razões: comemoramos a entrada de
Amergin em nossa família e decidiremos se ainda nos cabe interferir no
destino desta ilha da qual já não somos mais os senhores.
Uma inquietação persistente dominou a mente da Morrígu, que aguardava
o momento para dividi-la:
– Uma trama astuta concebida pela rainha de Connacht veio ao meu
conhecimento. A filha de Eochaid Fedlech está agrupando um poderoso
exército.
– O limite de sua cobiça é tão desconhecido quanto o número dos grãos
de areia nas praias desta ilha – observou Dagda. – Contudo, nada há de
espantoso no esforço de Medb para reunir um formidável exército, uma vez
que as províncias estão sempre em guerra. Tu, filha de Ermas, sabes melhor
que qualquer um de nós que batalhas são inevitáveis.
– Bem o sei, sábio filho de Elatha. Afligem-me as escuras nuvens que
vejo acumularem-se ao redor de Cúchulainn.
– Que tempestade ameaça meu filho? – Lugh exclamou. – Seu
treinamento guerreiro tornou-o imbatível, nada há que ele deva temer.
– Não esqueças que não o geraste sozinho. Cúchulainn é mortal como a
raça a que sua mãe pertence. Se Medb alcançar êxito em reunir um exército
para invadir os domínios do Conchobur, a terra de Ulaid, como pressinto ser
o seu desejo, teu filho irá combater um inimigo formidável, e temo por seu
destino.
A assembleia dos deuses silenciou. Todos refletiram ensimesmados sobre
os receios de Morrígu. Poucos entre as Tuatha Dé compreendiam o papel a
ser desempenhado pelo filho meio-humano de Lugh, uma trama na qual
Morrígu ocuparia lugar de destaque.
Alma celta
Eu posso tocar a sabedoria poética da semente
Que cai da árvore divina
Alma celta
Eu ouço seu silêncio e eu choro
Alma celta
Eu ouço seu coração e eu voo
Alma celta
Eu ouço seus pensamentos e eu os liberto
Alma celta
Eu ouço sua alma e eu me apaixono
(Refrão)
“Venha cavalgar comigo” (Olhe aqui)
“Venha voar comigo” (Veja meus olhos)
“Venha cavalgar comigo” (Eles irão)
“Venha voar comigo” (Te libertar!)
(Refrão)
Celtic soul
(Música: Marcelo Moreira / Letra: Eduardo Amaro e Alexei Leão)
Celtic Soul
I hear your silence and I cry
Celtic Soul
I hear your heart and I fly
Celtic Soul
I hear your thoughts and I set them free
Celtic Soul
I hear your soul and I fall in love
(Chorus)
Bibliografia
BELLINGHAM, David. Introdução à mitologia céltica. Lisboa: Estampa,
1999.
CAESAR, Caius Julius. De Bello Gallico and Other Commentaries. Project
Gutenberg, 2004.
DAVIDSON, Hilda R. Ellis. Myths and Symbols in Pagan Europe: Early
Scandinavian and Celtic Religions. Nova York: Syracuse University,
1988.
GREEN, Miranda Jane Aldhouse. Celtic Myths. Londres: University of
Texas Press, 1995.
_____________. Exploring the World of the Druids. Londres: Thamesand
Hudson, 1997.
_____________. The World of the Druids. Irlanda: Irish Books & Media,
1997.
GUEST, Lady Charlotte. The Mabinogion [1887]. Santa Cruz: Evinity
Publishing Inc., 2009.
HAYWOOD, John. The Celts: from Bronze Age to New Age. Londres:
Pearson Education, 2004.
JUBAINVILLE, Henri-Marie D’Arbois. Os druidas, os deuses celtas com
formas de animais. São Paulo: Madras, 2003.
MACCULLOCH, John Arnott. The Religion of the Ancient Celts.
Edimburgo: T. & T. CLARK, 1911.
MACKILLOP, James. Dictionary of Celtic Mythology. Nova York: Oxford
University Press Inc., 2004.
MONAGHAN, Patricia. The Encyclopedia of Celtic Mythology and
Folklore. Nova York: Facts on File Inc., 2004.
POWELL, T. G. E. Os Celtas. Lisboa: Coleção Historia Mundi. Editorial
Verbo, 1965.
SQUIRE, Charles. Mitos e lendas celtas. São Paulo: Nova Era, 2003.
Mythical Ireland:
http://www.mythicalireland.com/mythology
The Mabinogion:
http://www.missgien.net/arthurian/mabinogion
Agradecimentos
MARMOR agradece a todos os familiares e verdadeiros amigos que fizeram
com que não desistíssemos dos nossos sonhos, mesmo com as eternas
dificuldades de seguir os caminhos não convencionais da vida. Os mais de
25 anos dedicados à arte serviram de aprendizado, como um estágio, para
criarmos algo novo e realmente único. Desenvolva a sua própria trajetória e
seja dono da sua estrada.
Sobre o Marmor
Índice
CAPA
Ficha Técnica
Nota ao leitor
Introdução
Aspectos histórico-mitológicos
Prólogo
1 O décimo sétimo dia da Lua
2 Do meu coração
3 Na floresta
4 Brilho solar
5 As pedras suspensas
6 O mar secreto
7 Vitória esmagadora
8 O Templo da Luz
9 Luz da manhã
10 Alma celta
Bibliografia
Agradecimentos
Sobre o Marmor