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Ficha Técnica

Copyright © 2014 Marcelo Carlos Moreira


Copyright © 2014 Casa da Palavra
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998.
É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.

Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Coordenador do selo Fantasy


Affonso Solano

Texto e pesquisa
Eduardo Amaro

Notas explicativas
Bellovesos Isarnos

Capa:
Zellig/www.zellig.com.br

Imagem de quarta capa


© Ruckzack/ Dreamstime.com

Ilustrações
Luciana Lebel

Desenhos dos artistas


Gabriel Fox

Copidesque
Luisa Ulhoa

Revisão
Luíza Côrtes

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
A522a
Moreira, Marcelo
Alma celta / Marcelo Moreira. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014.

ISBN 9788577345120
1. Ficção fantástica. I. Título.
14-17208 CDD: 869.93
CDU: 821.134.3(81)-3

CASA DA PALAVRA PRODUÇÃO EDITORIAL


Av. Calógeras, 6, sala 701, Centro
Rio de Janeiro RJ 20030-070
21.2222-3167 21.2224-7461
divulga@casadapalavra.com.br
www.casadapalavra.com.br
Dedico esta obra aos deuses antigos e a todos aqueles que conseguem
enxergar a poesia que existe na magia e na arte. Que a literatura, a
música, a dança e as artes cênicas possam despertar o que há de melhor
em todos nós. Particularmente, dedico esta obra à memória de meu pai,
José Manuel Amaro, que sempre honrarei, à memória do meu avô
materno, Lázaro Rodrigues, como a todos os meus antepassados.

– Eduardo Amaro

Este trabalho é dedicado também à memória de Paulo Schroeber. Um


talento único que passou muito rápido por aqui.
Nota ao leitor
Esta obra é uma interpretação do autor dos relatos da mitologia irlandesa.
Sua narração não deve ser considerada um reflexo fiel das lendas
conservadas nos manuscritos medievais, mas um tributo à riqueza dos
velhos mitos que formam uma parte fundamental – embora negligenciada –
da herança da cultura ocidental. Toda dessemelhança com a tradição é
intencional e com propósitos poéticos. Esta é uma obra de ficção, que
pertence ao gênero fantástico.
Introdução
A cultura do Ocidente nasceu da interação entre a herança judaico-cristã e a
civilização mediterrânea. Grécia e Roma, elas próprias herdeiras de
civilizações mais antigas, nos deram as artes visuais, a arquitetura, a
filosofia, o pensamento científico, o direito, o conceito de Estado, as
primeiras concepções sobre democracia e ideias de beleza que ainda
marcam nossa cultura e nosso cotidiano.
O pensamento judaico-cristão praticamente norteia todos os códigos
morais e legais do Ocidente moderno, afetando cristãos e não cristãos, pois
seus valores, após séculos de interação (nem sempre tranquila) com a
cultura greco-romana, passaram a ser considerados basilares por sociedades
espalhadas em todos os continentes.
Em meio a esse diálogo multissecular, que forma o pano de fundo e a
moldura de nossa existência, há um ator esquecido. Sua influência é como a
de um rio oculto, que aflora aqui e ali, revelando-se como lago ou fonte e
oferecendo um manancial que traz o sabor arcaico e mineral do ventre
escuro da terra. Essa correnteza, que irrompe inesperadamente, é a
mitologia celta.
Suas lendas e mitos não são estranhos para nós: o mago sábio e poderoso,
reis, rainhas, cavaleiros, florestas misteriosas povoadas por dragões e
animais falantes, seres encantados, jornadas em busca de objetos místicos,
tarefas perigosas que o herói tem que cumprir para obter a glorificação...
Conhecemos todas essas figuras que nos ligam diretamente à época – para
os que tiveram o privilégio de vivê-la – em que escutávamos, com os
ouvidos atentos e os olhos arregalados, as histórias de nossas avós. Pois isto
é mitologia celta: uma porta que se abre para a infância do homem. Suas
lendas fantásticas preenchem o espírito com a natureza vibrante e
imaginativa deste povo, cuja sensibilidade onírica remete o entendimento ao
imaginário antigo e primitivo, transfigurando as duras realidades da vida e
delas extraindo sua essência.
Este livro tenciona abrir uma fresta dessa porta, deixando que um
pequeno vislumbre do mundo passado-presente-eterno dos celtas flua para
nossas vidas e complete o cálice do coração de cada um.
Contamos com um seleto grupo de artistas, historiadores e peritos em
cultura celta que contempla essa alma, resgatando, revisitando e atualizando
os valores antigos ao expandir os potenciais dessa temática em uma obra
multiartística, essencialmente simbólica e multifacetada.
O esmero na construção das simbologias e alegorias, que dialogam
linguisticamente com as diferentes formas de arte (música, dança, literatura,
artes gráficas) evidencia Marmor como um projeto singular, agradável
àqueles que buscam o entretenimento com qualidade estética. A cada
acorde, a cada palavra poética, a cada coreografia, torna-se evidente a busca
pelas significações inerentes ao espírito atemporal de uma cultura que
sempre existiu em nós. Despertam-se os deuses antigos que libertam os
falcões e agora sobrevoam a montanha para mergulhar na essência humana.
Apenas a apreciação de Marmor!
Bellovesos Isarnos e Eduardo Amaro
Aspectos histórico-mitológicos
Em uma linguagem acessível, abordaremos alguns dos principais aspectos
históricos da mitologia céltica, para que o leitor se situe no mundo do livro.
Partes dessa introdução foram extraídas do livro The World of the Druids,
de Miranda Jane Aldhouse Green, doutora em arqueologia e chefe do
SCARAB (Centro de Pesquisas da Religião, Arqueologia, Cultura e
Biogeografia) da Universidade de Gales.
As primeiras referências históricas sobre os povos celtas encontram-se na
literatura grega, por volta de 500 a.C. Escritos gregos relatam que os celtas
habitavam uma vasta área geográfica, que incluía a França, a Espanha e se
estendia até o Danúbio superior, na Europa Oriental. Alguns arqueólogos
defendem a gradual “celtização” de culturas na Europa Setentrional e
Meridional por volta de 1500 a.C., indo desde a Bretanha céltica à Irlanda.
A palavra celta é derivada de “keltoi”, usada pelos antigos historiadores
gregos para denominar as tribos europeias do Norte. Entretanto, o termo
“celta”, dado aos povos de mesma língua, é uma designação relativamente
recente, datada a partir do século XVIII.
Durante os tempos antigos, podemos citar algumas tribos como os
gauleses, belgaes, celtiberos, lusitanos, gálatas, bretões e irlandeses. E,
conforme relata Júlio César em De Bello Gallico, durante a conquista da
Gália em 50 a.C., os povos que hoje consideramos celtas nunca se
descreveram como tal, eram reconhecidos por seus nomes tribais. Quanto à
Irlanda antiga, eles não tinham uma identidade comum até o início da Idade
Média, quando adotaram o nome gaels (gaélico ou goidélico).
As línguas celtas – aparentadas em terminologia filológica – pertencem
ao ramo da família indo-europeia, que inclui grego, latim, urdu (turco),
híndi (derivado do sânscrito), iraniano, germânico e línguas eslavas
(bálticos). As famílias indo-europeias formavam, provavelmente, o grupo
de língua mais difundido da Europa. As línguas célticas derivam de dois
ramos indo-europeus e são conhecidas como: o Celta-P (galo-britânico) e o
Celta-Q (goidélico). A divisão entre P e Q se refere a diferenças
fonológicas.
Os celtas também introduziram a metalurgia na Europa, dando origem à
Idade do Ferro, através das culturas de Hallstatt e La Tène. O sítio
arqueológico de Hallstatt, localizado no sudeste de Salzburgo, na Áustria,
foi predominante durante a Idade do Bronze, dando origem à Cultura de
Hallstatt (800-450 a.C.). E o sítio arqueológico de La Tène, localizado no
lado norte do lago de Neuchâtel na Suíça, deu origem à Cultura de La Tène
(450 a.C. até a conquista romana). Estes dois sítios arqueológicos
comprovam dois grandes períodos da história no desenvolvimento e manejo
de metais. Os achados arqueológicos dessas regiões atestam que os celtas
possuíam uma cultura sofisticada, caracterizada por um estilo distinto de
arte decorativa e adornos feitos em bronze, ferro e ouro. Apesar do aspecto
de bravos guerreiros que jamais temiam a morte, os celtas possuíam um
refinamento ímpar e inconfundível, sendo considerados uma sociedade
desenvolvida como a dos gregos, romanos e germanos.
A civilização celta não era constituída de um único povo, mas de várias
tribos que se distribuíam pela Europa Central, a Península Ibérica, as Ilhas
Britânicas (incluindo, portanto, a Escócia) e a Irlanda. Apesar de nunca
terem construído um império, essa cultura foi preservada e transmitida pela
tradição oral através dos mitos e das lendas; sua verdadeira origem,
portanto, acabou se perdendo no tempo.
As fontes clássicas greco-romanas, mesmo que sob a perspectiva de
conquistadores, são as grandes responsáveis por transmitirem as histórias
dos celtas e, apesar da cristianização, as fontes insulares medievais
irlandesas e galesas também apresentam um vasto campo para o estudo.
O universo irlandês foi o que melhor conservou as tradições celtas, pois a
Irlanda jamais foi invadida por Roma. Os mitos se mantiveram muito mais
precisos e, posteriormente, foram preservados em registros escritos por
monges cristãos, poetas e escribas medievais, que se ocupavam em traduzir
e copiar as lendas e histórias contadas entre os celtas e seus descendentes. A
escrita dos celtas, propriamente dita, surgiu por volta do século V d.C., com
a chegada do cristianismo através do monge São Patrício.
Os mitos irlandeses sofreram modificações conforme o contexto cristão,
como é o caso dos contos irlandeses de Lebor Gabála Érenn ou o Livro das
Invasões, uma coleção de manuscritos redigidos em forma de poema e
prosa, que narram as origens míticas e histórias da Irlanda, compilada por
um anônimo no século XI d.C.
Segundo as classificações modernas, os contos celtas mais conhecidos são
divididos em quatro grandes ciclos principais:

1º – O ciclo mitológico irlandês: descreve a história mítica da Irlanda e


suas origens, com uma série de invasões como as Tuatha Dé Danann
(povos mitológicos reconhecidos como deuses irlandeses) até a chegada
dos milesianos.

2º – O ciclo de Ulster: chamado antigamente de ciclo do Ramo


Vermelho, descreve o reinado de Conchobur Mac Ness, rei de Ulster, no
início da era cristã, os feitos do herói Cúchulainn e as aventuras dos
guerreiros Ulaid.

3º – O ciclo feniano: contos e baladas sobre a trajetória mítica de Finn


Mac Cumhail e o Salmão do Conhecimento, além do seu exército de
guerreiros, os Fianna.

4º – O ciclo histórico ou dos reis: histórias e feitos dos reis milesianos,


que incluem alguns períodos históricos do ciclo de Ulster, presente nos
anais irlandeses.

Há ainda outras histórias que não se enquadram em nenhum desses ciclos


e que falam sobre aventuras e viagens ao Outro Mundo, associados ao oeste
e à água, conhecidas como Immram ou seu plural Immrama, que significa
“navegação(ões)”. Nessas histórias são descritas as jornadas místicas de
heróis pelo mar rumo a Tír inna n-Óc, a Ilha da Eterna Juventude, repleta de
influência cristã.
Os mitos celtas galeses, por sua vez, foram conservados em onze contos
do livro Mabionogion, reunidos em três grupos, além do Livro de Taliesin,
numa coletânea de manuscritos em prosa, traduzidos por Lady Charlotte
Guest, em 1849. São eles:

– Os quatro ramos: “Pwyll, Príncipe de Dyfed”; “Branwen, a Filha de


Llyr”; “Manawyddan, o Filho de Llyr” e “Math, o Filho de
Mathonwy”.

– Contos nativos: “Culhwch e Olwen”; “O sonho de Rhonabwy”; “O


sonho de Macsen Wledig”; “Lludd e Llefelys”.

– Romances arthurianos: “Owain ou a Dama da Fonte”; “Peredur,


filho de Efrawg” e “Geraint, filho de Erbin”.

Ao estudarmos todo esse material, devemos ter em mente que as


traduções do irlandês ou do galês para outras línguas podem conter muitos
erros. Como se trata de um estudo complexo, leva-nos a refletir como a
história dos celtas foi estudada ao longo dos anos, principalmente depois
das interpretações romanceadas com o surgimento do renascimento celta.

As invasões míticas da Irlanda


Os antigos ancestrais irlandeses, segundo as lendas, descenderam de grupos
que povoaram a Ilha de Erin (Irlanda), com a chegada de Cessair e das
tribos – partholonianos, nemedianos, firbolg, Tuatha Dé Danann e
milesianos – descritas abaixo segundo a tradição do Livro das Invasões:

– Cessair: rainha que liderou o primeiro grupo à Irlanda. Conforme a


cristianização da lenda, ela era filha de Bith e neta de Noé, que partiu
de suas terras quarenta dias antes do dilúvio. Casou-se com Fintan Mac
Bochra.

– Partholonianos: vieram para Irlanda por volta de trezentos anos


depois de Cessair e seus seguidores. Eles lutaram contra os fomorianos,
raça de gigantes cruéis, violentos, opressivos e, possivelmente, piratas
do mar. Além dos partholonianos, os fomorianos lutaram contra os
nemedianos e as Tuatha Dé Danann.

– Nemedianos: tribo cujo nome significa “sagrado”, chegaram cerca de


trinta anos após a extinção dos partholonianos.

– Firbolg: o grupo seguinte a chegar à Irlanda foi o dos firbolgs, os


“homens de sacos” (a palavra irlandesa bolg é traduzida como barriga,
saco ou foles); são descendentes dos nemedianos. Eram ferreiros,
mestres do fogo e inventores, destinados à guerra e aos trabalhos
agrícolas. Chegaram 37 anos antes das tribos de Dana.

– Tuatha Dé Danann: a tribo da deusa Dana é o quinto grupo a invadir


a Irlanda, conquistando a ilha dos firbolgs. Considerados seres divinos
e heróis, vindos das “ilhas do norte do mundo”, introduziram na
Irlanda a ciência, a magia e o druidismo, além de todas as crenças
sobre as fadas. Eles são conhecidos como o grupo mais importante de
divindades da mitologia irlandesa.

– Milesianos: guerreiros que vieram da Península Hispânica, atual


Península Ibérica, descendentes do líder epônimo Mil Espaine, que era
filho de Bilé e neto de Breogan. Último grupo migratório a invadir a
Irlanda, os filhos de Mil derrotaram as Tuatha Dé Danann durante a
Batalha de Tailtiu, avançando da Espanha à Irlanda. Eram conhecidos
como Soldados da Hispania, nome dado pelos romanos à Península
Ibérica, encerrando assim o Livro das Invasões. Os descendentes de
Mil Espaine ou milesianos representam o ramo dos celtas goidélicos,
considerados ancestrais dos irlandeses modernos.

Ciclo mitológico dos Danann aos milesianos


Conforme as lendas, as Tuatha Dé Danann – tribo dos filhos de Dana, a
deusa-mãe desse povo – chegaram à Irlanda no início do mês de maio, na
época de Bealtaine, vindas numa nuvem mágica. Tudo indica que, ao
desembarcarem, incendiaram seus navios para que a fumaça ocultasse a sua
chegada.
As Tuatha Dé Danann tinham pele clara, porte grande, compleição
robusta e eram hábeis no trabalho de metais, especialmente na fundição e na
fabricação de ferramentas, armas e ornamentos. Eram habilidosas também
nas artes musicais, poéticas, bem como na arte de curar. Eram consideradas
as grandes mestres do druidismo.
Elas vieram das “ilhas do norte do mundo”, provenientes de quatro
cidades míticas: Falias, Gorias, Findias e Murias. Em cada uma destas
cidades, aprenderam as grandes ciências e estudaram os grandes ofícios
com quatro sábios: Fessus, Esrus, Uscias e Semias. Cada cidade tinha um
chefe como regente e de onde as Tuatha Dé Danann levaram os quatro dons
mágicos, como talismãs, para conquistar a Irlanda.
O primeiro tesouro veio da cidade de Falias: uma pedra chamada Lia Fáil,
conhecida como a Pedra da Soberania, uma pedra oracular que, ao ser
tocada, profetizava com um estrondo quem seria o próximo monarca apto a
governar a Ilha Verde (Irlanda). A pedra ficava sobre a colina de Tara.
O segundo tesouro veio de Gorias: uma lança invencível, chamada Gáe
Assail ou a Lança da Realeza, que mais tarde passa a pertencer a Lugh. O
terceiro tesouro veio de Findias: uma espada mágica pertencente a Nuada,
que se chamava Claiomh Solais ou Espada da Vitória, da qual ninguém
escapava. O quarto tesouro veio de Murias: o Grande Caldeirão de Dagda, o
Caldeirão da Abundância, que continha alimento inesgotável, podendo
alimentar um exército inteiro e ainda continuar cheio.
Com estes quatro tesouros mágicos, as Tuatha Dé Danann poderiam
derrotar qualquer inimigo. Elas ganharam a Primeira Batalha de Moytura
contra o firbolgs, devido a sua superioridade tecnológica e às armas
mágicas.
Logo após esse feito, as Tuatha Dé Danann aliaram-se aos fomorianos
(antiga raça sobrenatural vinda do mar), mas, depois de algum tempo,
ambos tornaram-se inimigos mortais. Sob a liderança de Lugh, as Tuatha
derrotam os fomorianos na Segunda Batalha de Moytura. Após essa batalha,
a Irlanda teve um longo período de paz e prosperidade.
Mais adiante, uma terceira batalha foi travada, dessa vez entre as Tuatha e
os milesianos, filhos de Mil. Quando Mil trouxe sua família da Irlanda para
a Espanha, se estabeleceram na Galícia, noroeste da Espanha. O seu avô
Breogan foi para Brigantia (Bragança em Portugal), onde construiu uma
torre bem alta para que seu filho Ith, tio de Mil, pudesse observar a Irlanda.
Um belo dia, Ith resolveu viajar e explorar a bela ilha, chegando
pacificamente à Irlanda com seus seguidores. Mas, após o mal-entendido de
um comentário de Ith sobre as terras verdes, os reis de Danann o
assassinaram. Os seguidores escaparam e conseguiram levar seu corpo.
Quando o corpo chegou de volta à família na Península Hispânica, os
filhos de Mil queriam vingar a morte do tio-avô. Então, eles embarcaram
com seus guerreiros e suas famílias em 65 navios rumo à Irlanda. O druida e
herói chamado Amergin, filho de Mil, foi quem os conduziu.
As Tuatha Dé Danann tentaram evitar o confronto com os milesianos,
usando da sua magia para ocultar a ilha em um nevoeiro. No entanto,
Amergin também usou dos seus poderes de druida, entoando um
encantamento para dissipar a magia deles.
Os milesianos foram recebidos por Erin, deusa-rainha, que decidiu
acolhê-los. Amergin aceitou as boas-vindas, mas não Éber Donn – chefe de
uma das frotas e filho de Mil –, ofendendo-a com sua atitude rude. Erin
abençoou Amergin e seus familiares e disse que eles iriam prosperar na
Irlanda, mas que não haveria futuro para Donn e seus descendentes.
Amergin prometeu que a terra seria nomeada em homenagem a Erin para
sempre. Ele se reuniu com as irmãs da deusa, Banba e Fotla, e depois
viajaram para Tara, onde se encontraram com os três maridos e reis da
Irlanda, Mac Cuill, Mac Cécht, e Mac Gréine. Em seguida, decidiram dar
um breve recuo por um período de três dias e três noites, atracados além da
nona onda, preparando-se para a batalha.
No entanto, quando os milesianos buscaram a terra de novo, as Tuatha Dé
Danann criaram um vento mágico, que levou suas embarcações para longe
da costa. Com a tempestade, o navio de Donn acabou naufragando e toda a
tripulação se afogou, inclusive ele. E, assim, a profecia de Erin se cumpriu.
Amergin, mais uma vez, entoou um encantamento sobre as ondas do mar
para acalmá-las e os milesianos conseguiram voltar à terra. Ao
desembarcarem novamente na Irlanda, na festa de Bealtaine em maio, no
décimo sétimo dia da Lua, Amergin, que foi o primeiro a colocar os pés em
solo irlandês, fez a seguinte invocação, em forma de poema, reivindicando
as terras da Irlanda.

A canção de Amergin

Sou o vento sobre o mar;


Sou a onda do oceano;
Sou o rugido das ondas;
Sou o poderoso boi de combate;
Sou o falcão no penhasco;
Sou a gota de orvalho no raio de sol;
Sou o javali selvagem;
Sou o salmão da sabedoria;
Sou o lago da planície;
Sou a força da palavra;
Sou a lança certeira;
Sou o fogo que cria o pensamento.
Quem ilumina a pedra da montanha, senão eu?
Quem sabe o lugar no qual o sol se deita?
Quem conhece as idades da Lua, senão eu?
Quem chama o gado de volta para casa, senão eu?
Quem é o deus da forma, da batalha e dos ventos?
Quem é que sabe o segredo do dólmen,1 senão eu?

Por fim, os três reis dos Danann e suas rainhas foram mortos na Batalha
de Tailtiu. As Tuatha Dé Danann foram derrotadas e obrigadas a recuar para
o Outro Mundo, através de colinas subterrâneas, o Sídhe, muito além-mar,
graças a um feitiço de invisibilidade de Manannán. A Irlanda foi dividida
entre os irmãos de Amergin, Érimón, que governou o norte, e Éber Finn, o
sul.
Em nossa visão pessoal, a canção de Amergin invoca os reinos do céu, da
terra e do mar com palavras de sabedoria e poder para reivindicar a
soberania da terra, a partir do “Eu sou”, pois cada ser carrega em si
elementos, ou dúile, que os une à natureza e aos deuses, ou seja, é a
integração do homem com o Todo – interligados como um nó celta.
Suas palavras são como um desafio, uma inspiração divina que, na língua
gaélica, é conhecida como Imbas, a inspiração poética, tal como a Awen
dos galeses, um frenesi conhecido como “fogo na cabeça”, promovido por
estados alterados da consciência. O poema de Amergin revela segredos
druídicos, centrados numa longa jornada xamânica, rumo ao Outro Mundo e
o seu retorno.
Encerra-se, assim, mais um ciclo da epopeia celta, mas ele se perpetua e
as Tuatha Dé Danann apareceriam em muitas outras histórias séculos
adiante, comprovando a sua existência divina e imortal.

Os druidas
A palavra druida é de origem celta e, segundo o historiador romano Plínio,
relaciona-se com a força do carvalho, considerada uma árvore sagrada. Os
druidas foram membros de uma elevada ascendência céltica. Ocupavam
cargos de juiz, médico, astrônomo, alquimista, mago, místico e grandes
conhecedores da religião, entre outras funções. Eles também eram filósofos,
cientistas, teólogos e intelectuais da sua cultura. Embora possuíssem uma
forma de escrita chamada Ogham, muito parecida com a escrita rúnica dos
nórdicos, eles não a usavam para registrar seus conhecimentos.
Estrabão, como outros autores clássicos, cita: “Entre todas as tribos,
falando de um modo geral, havia três classes de homens tidos com honra
especial: os bárdoi, os ouáteis e os druídai. Os bárdoi eram os cantores e
poetas; os ouáteis se ocuparam das coisas do culto e eram filósofos naturais;
enquanto os druídai, em acréscimo à ciência da natureza, estudaram
também a filosofia moral e ética.”
Os druidas possuíam o ofício sacerdotal, exercendo também a função de
conselheiros e filósofos naturais. Eram eles os responsáveis pelas
cerimônias religiosas, pelos rituais em geral e por todos os julgamentos da
tribo, dividindo-se em três tipos de funções ou castas sacerdotais: bardos
(fili), ovates (vates) e druidas. Possuíam ainda o dom da profecia e entravam
em transe xamânico para contatar o Outro Mundo. Considerados mestres da
magia, faziam encantamentos quando necessário e provocavam um sono
mágico nos inimigos, possivelmente hipnótico. Outra habilidade era
produzir brumas misteriosas para mudar de aparência ou se esconder, arte
conhecida como féth fiada. Eles podiam impor a uma pessoa um geis,
espécie de proibição, uma maldição ou um feitiço que, se quebrado,
acarretava terríveis consequências ao transgressor.
Ensinavam sobre a metempsicose, termo que descreve a transmigração da
alma de um corpo para outro, com a possibilidade de a alma humana habitar
provisoriamente corpos de animais. Entre seus ensinamentos, havia relatos
da doutrina pitagórica do renascimento da alma em outro corpo depois da
morte.
Na Gália (atual França), Grã-Bretanha e Irlanda, dedicavam-se ao ensino
daqueles que pretendiam tornar-se druida apenas de forma oral, e os seus
estudos podiam se estender até vinte anos de máxima dedicação. O
sacerdócio não era uma casta fechada, mas aberta a todos aqueles que
demonstrassem uma aptidão sincera, e, apesar de pouquíssimos relatos,
também se estendiam às mulheres. Os druidas, normalmente, constituíam
família.
Após o domínio do cristianismo muitas informações históricas da cultura
celta se perderam, exceto aquilo que permaneceu guardado nos registros de
antigos historiadores e nos achados arqueológicos. Por isso, muito da
história dos druidas ainda é considerado um grande mistério para os
pesquisadores. As fontes de pesquisa do druidismo são praticamente as
mesmas dos celtas, com um pouco mais de restrições, pois eles não estão
presentes em todas as sociedades celtas. Podemos compará-lo às escolas
bramânicas tradicionais da Índia, se tivesse sobrevivido aos tempos antigos.

O Outro Mundo e os seres da natureza


O Outro Mundo celta é descrito como um lugar sublime, habitado por seres
encantados, deusas e deuses, heróis e heroínas. Um lugar onde a música, a
dança, a arte e todas as atividades prazerosas se reuniam. Para os irlandeses,
o Outro Mundo é Tír inna n-Óc, a ilha da Eterna Juventude, narrado, por
exemplo, no conto irlandês de Oisín e Niamh. Para os galeses, o Outro
Mundo era Annwn, YnysAfallach ou Avalon, das lendas arthurianas. E,
para os gauleses, o Outro Mundo era Avallon, a ilha das Maçãs, local das
macieiras da sabedoria, responsáveis pela imortalidade, e onde a doença e a
morte não existiam.
Os povos celtas consideravam a natureza um princípio sagrado. Além do
culto que prestavam aos deuses e aos antepassados, cultuavam também as
árvores, as fontes, as pedras e os seres sobrenaturais, conhecidos como
espíritos da natureza ou seres feéricos. Atualmente, o que lemos a respeito
desses seres foi transcrito de uma tradição oral, que conservou um legado na
forma de poesias, cantigas, lendas e mitos.
Diferentemente da tradição grega, que classifica a natureza em quatro
elementos, os celtas descreviam o mundo em tríades ou Três Reinos: o Céu,
que está acima de nós e representa a luz, o fogo e os deuses; o Mar, que está
no horizonte e representa aquilo que está em nós, a água e os ancestrais; e a
Terra, que está abaixo de nós e representa as raízes, o solo firme e os
espíritos da natureza.
Apesar de não haver um mito de criação como em outras culturas, havia
entre eles a ideia dos Três Mundos, descritos da seguinte maneira:
– O Mundo Celestial: onde as energias cósmicas como o Sol, a Lua e o
vento se movem. Associado aos deuses da criação e o céu.

– O Mundo Intermediário: onde nós e a natureza vivemos. Associado


aos espíritos da natureza e a terra.

– O Submundo: onde os ancestrais e os seres feéricos vivem.


Associado ao Outro Mundo e o mar.

Na visão indo-europeia, o cosmos é uma estrutura central e ordenada, em


oposição ao caos. Muitas vezes é representado como uma grande árvore ou
uma montanha com uma árvore rodeada pelo mar e que, por sua vez, nos
lembra uma ilha. Esse mito está muito bem-preservado, principalmente, na
tradição nórdica.
O mundo antigo era totalmente animista. Acreditava-se que em todos os
aspectos do mundo natural havia um espírito ou uma entidade divina, com o
qual os seres humanos poderiam estabelecer um contato direto. Entre eles
havia uma forma de juramento céltico, muito usado nas religiões politeístas,
que atribuía características especiais aos elementos da natureza e seus
deuses tribais, como mencionamos, o Céu, a Terra e o Mar: “Eu juro pelos
deuses. Se eu quebrar o meu juramento, que o céu caia sobre minha cabeça,
que a terra se abra para me engolir e que o mar suba para me afogar.” A
arqueologia e o registro literário indicam que as sociedades celtas
indubitavelmente não faziam distinção entre o sagrado e o profano. Na
prática de seus rituais era comum fazer oferendas aos espíritos da natureza
para manter o equilíbrio entre os deuses, os homens e as forças
sobrenaturais, beneficiando-se assim dessa poderosa energia. As oferendas
aos espíritos locais era uma prática céltica e geralmente eram vistas com
bons olhos.
Conforme assinalou Miranda Jane A. Green, em seu livro Celtic Animals,
Life and Myth (“Animais, vida e mitos celtas”, em tradução livre), “a força
solar se manifesta como uma divindade antropomórfica que, no entanto,
manteve o seu motivo original para representar o Sol se movendo no céu. O
espírito do Sol era capaz de criar e destruir a vida. A água foi também
reconhecida como uma força poderosa, mais uma vez desde o começo da
pré-história europeia. Para os celtas, os rios, pântanos, lagos e nascentes
foram potentes seres sobrenaturais que, como o Sol, poderiam tanto cuidar
quanto destruir as coisas vivas. A água era percebida como misteriosa: ela
cai do céu e fecunda a terra, assim como as nascentes, que às vezes são
quentes e possuem propriedades minerais terapêuticas. Todas essas forças
eram veneradas e merecedoras de cultos e oferendas”.
Para os celtas, os fenômenos naturais eram forças sobrenaturais vistas, em
sua maioria, como divindades femininas na forma de deusas-mães e
veneradas de alguma forma. A mulher na sociedade celta era vista como a
imagem simbólica da soberania e da fertilidade. Eram reconhecidamente
guerreiras, mães, mulheres feéricas, rainhas, feiticeiras, druidesas ou
sacerdotisas.

Seres feéricos
Feérico, que vem do francês féerique e que pertence ao mundo das fadas ou
povo das fadas, são seres mágicos e imortais, dotados de grandes poderes
sobrenaturais e estão presentes em várias mitologias antigas, na literatura
medieval, no folclore e em vários textos modernos.
Para entender de onde vêm esses seres, devemos analisar atentamente os
encontrados na mitologia celta. Apesar de muitas outras culturas e
civilizações terem suas próprias versões de fadas e outros seres
sobrenaturais, como os elfos, por exemplo, a crença irlandesa veio através
da retirada das Tuatha Dé Danann para o Outro Mundo, após a derrota para
os milesianos, os últimos invasores da Irlanda.
Depois de um acordo entre eles, as Danann passaram a viver nas colinas
do subterrâneo, um mundo paralelo ao nosso conhecido como AesSídhe,
que significa “O povo dos montes”, o povo nobre ou os bons vizinhos do
Outro Mundo, considerados os antigos ancestrais, os espíritos da natureza
ou os próprios deuses que um dia habitaram a terra.
Por vezes, são tidos como espíritos guardiões que habitavam uma colina,
uma árvore ou um determinado local próximo às fontes de água, onde as
oferendas eram feitas para se manter a paz. Dentro deste contexto, os seres
feéricos podiam ser vistos ou percebidos ao anoitecer e amanhecer,
momentos considerados especiais, assim como nos grandes festivais celtas:
Samhain, com a entrada do inverno, e Bealtaine, com a chegada do verão.
A maioria das informações que temos sobre as fadas irlandesas vem do
poeta irlandês do século XIX, William Butler Yeats.

Ano celta
O ano celta era dividido em duas metades: uma metade clara e outra escura.
As duas eram associadas respectivamente ao verão e ao inverno. Além
disso, durante o ano havia comemorações agrícolas e pastoris celebradas
nos grandes festivais celtas: Samhain, Imbolc, Bealtaine e Lughnasadh.
Outros dias sagrados podiam ser adicionados aos ritos do ano.
Calendários antigos de origem céltica, como o Calendário de Coligny –
descoberta arqueológica feita em uma área ao norte de Coligny, próxima a
Lyon, na França, onde foi encontrada uma grande placa de bronze com 153
fragmentos datando aproximadamente de 50 d.C. –, indicam que o tempo
também era medido por eles com base nos ciclos da Lua e do Sol.
Possivelmente, marcavam a data de quando os festivais celtas eram
celebrados, havendo referências ocasionais para as celebrações dos
solstícios e equinócios.

Animais celtas
Os animais representavam partes inconscientes de um poder mágico que nos
revelava qualidades sobrenaturais, possibilitando a comunicação entre os
mundos. Os celtas como animistas acreditavam que todos os aspectos do
mundo natural eram dotados de espíritos e entidades divinas, com as quais
todos os seres humanos poderiam estabelecer contato.
Podemos observar como os animais míticos eram consultados e, ao
mesmo tempo, como eles carregavam em si qualidades protetoras e
amigáveis, atuando como emissários dos deuses que, em certas ocasiões,
também podiam se transformar em animais.
Os cães, por exemplo, geralmente, estavam associados à proteção, à caça
e às provas sobrenaturais. Os cavalos tinham um valor inestimável para os
celtas, fosse na guerra, fosse como meio de locomoção para o Outro
Mundo.
Tanto os animais domésticos quanto os selvagens estavam ligados à
fertilidade, à vitalidade, à força, ao movimento e ao crescimento,
fornecendo condições necessárias à subsistência de toda a tribo através de
sua carne, peles e ossos. Representavam também uma forte conexão entre a
terra e os céus, ligados a vários deuses, promovendo a busca de segredos e
de sabedoria ancestral.
Para os celtas, cada animal possuía um atributo específico e suas
características eram associadas a algum tipo de habilidade. Eram dignos de
veneração através de um ritual ou uma cerimônia religiosa.
As aves estavam sob os domínios do céu e eram vistas como um elo entre
os vivos e os espíritos ancestrais. Elas podiam ser tanto o mensageiro como
a própria mensagem, carregando em si um teor mágico, profético ou
divinatório.
O javali e os porcos representavam coragem, bravura, proteção e riqueza.
Os peixes, especialmente o salmão, estavam associados à sabedoria e ao
conhecimento. A lenda nos diz que o salmão adquiriu esse conhecimento ao
comer nove avelãs que caíram no poço da sabedoria de nove árvores que
ficavam ao redor da fonte sagrada, e a primeira pessoa que comesse sua
carne fresca ganharia todo esse conhecimento. Foi assim que Finn Mac
Cumhail recebeu seu conhecimento, após sete anos tentando pescar o
Salmão do Conhecimento, nos contos do ciclo feniano.
O veado era um animal reverenciado e perseguido ao mesmo tempo,
considerado por vezes emissário divino ou deus transformado em animal.
Exemplo dessa transformação é como Cernunnos, o senhor dos animais, da
natureza e da abundância, foi retratado no Caldeirão de Gundestrup, um
antigo artefato de prata, ricamente decorado em alto-relevo, encontrado na
Dinamarca, datado do século I a.C. e que pertence ao final do período de La
Tène.
Há uma infinidade de animais descritos nos contos e nos mitos celtas, o
que mostra uma profunda ligação com a natureza e, principalmente, a
conscientização de sua sacralidade e o respeito entre os mundos natural e
sobrenatural. Assim é descrita uma época em que os deuses viviam em
plena harmonia com os homens e os animais.

Os deuses celtas
Os celtas não misturavam panteões de outras culturas e nem cultuavam
deuses celtas de outras tribos. Apesar das semelhanças entre eles, cada tribo
celta celebrava seus deuses locais seguindo apenas as referências das
tradições pertencentes a sua terra natal, com exceção de algumas divindades
pancélticas. Para entender melhor seus atributos e funções é necessário um
maior aprofundamento nos estudos célticos, a fim de se evitar avaliações
equivocadas. A seguir, alguns dos principais deuses celtas e suas tradições.

Mitologia irlandesa
– Áine: deusa do amor, da fertilidade e do verão. Rainha dos reinos
feéricos das Tuatha Dé Danann, conhecida como CnocÁine (Monte de
Áine), era a soberana da terra e do Sol, associada ao solstício de verão,
às flores e fontes de água. Áine (pronuncia-se Enya), filha de
Manannán Mac Lir, representa a luz brilhante do verão. Como uma
deusa solar, podia assumir a forma de uma égua vermelha.

– Angus Mac Og/ Óengus: deus da juventude, do amor, da beleza e da


inspiração poética, uma Tuatha Dé Danann. Era filho de Dagda e
Boann e, assim como o pai, possuía uma harpa mágica, que produzia
um som doce e irresistível. Foi associado à Brugh na Bóinne – local
mítico associado à Newgrange, na Irlanda. Angus se apaixonou por
uma linda jovem do Sídhe, mas somente a via em sonhos. Essa é uma
lenda que faz parte do Ciclo Mitológico Irlandês, conhecida como “o
Sonho de Óengus”.

– Badb: deusa da guerra, dos campos de batalha e das profecias. Era


conhecida como o Corvo de Batalha ou a Gralha Escaldada. Com suas
irmãs, Macha e Morrighan, formava um trio de deusas guerreiras, as
filhas da deusa-mãe Ernmas, que morreu em “A Primeira Batalha de
MaghTuredh”, conto que descreve como as Tuatha Dé Danann
tomaram a Irlanda dos firbolg. Badb rege a morte, a sabedoria e a
transformação.

– Bilé: considerado o pai dos deuses e dos homens. Companheiro de


Dana e pai de Dagda, o principal líder das Tuatha Dé Danann. Alguns
mitos dizem que ele era o antepassado dos milesianos, último grupo de
soldados liderados por Mil Espaine, que invadiram a Irlanda na época
de Bealtaine e derrotaram as Tuatha Dé Danann. Bilé é o deus do
Outro Mundo, considerado o “primeiro ancestral”, associado às
fogueiras da purificação. Na tradição irlandesa Bilé significa “Árvore
Sagrada”, que pode representar uma árvore real ou um ponto de
referência central a um local religioso ou altar.

– Boann/ Boand/ Boyne: deusa que deu nome ao rio Boyne, na Irlanda,
descrito nos poemas “Dindshenchas”, que contam lendas relacionadas
à origem dos nomes dos lugares sagrados da Irlanda, do Ciclo
Mitológico Irlandês e na lenda do “Salmão da Sabedoria”. Ela era
esposa de Nechtan, o deus do rio. Também é mãe de Angus Mac Og
com o grande Dagda. Para esconder o adultério de Boann, Dagda usou
o seu poder para esconder a gravidez de Boann, fazendo uma viagem
de nove meses parecer ser de apenas um dia e uma noite. É a deusa da
fertilidade, da abundância e da prosperidade.

– Brigit/ Brigid/ Brighid/ Brig: deusa reverenciada pelos bardos, tanto


na Irlanda como na antiga Bretanha, cujo nome significa “luminosa,
poderosa e brilhante”. Brighid, a Senhora da Inspiração, era filha de
Dagda, associada à Imbolc e às águas doces de poços ou fontes, que
ficam próximos às colinas. É a deusa do fogo, da cura, do lar, da
fertilidade, da poesia e da arte, especialmente dos metais. Brighid
também é uma deusa guerreira, conhecida como Brig Ambue, a
protetora soberana dos Fianna. Brighid era consorte de Bres e mãe de
Ruadan, que foi morto ao espionar os fomorianos. Ela sentiu
profundamente a morte do filho, dando origem ao primeiro lamento
poético de luto irlandês, conhecido como keening.

– Cailleach: é a deusa da terra e das rochas. Diz a lenda que ela criou os
morros e as montanhas a sua volta, ao atirar pedras em um inimigo. Na
mitologia irlandesa e escocesa, é conhecida também como a Cailleach
Bheur, que significa “mulher velha” e é descrita, às vezes, de capuz
com o rosto azul-acinzentado. Geralmente é vista como a deusa da
última colheita (Samhain), dos ventos frios e das mudanças; aquela que
controla as estações do ano, a Senhora do Inverno.

– Dagda: deus da magia, da poesia, da música, da abundância e da


fertilidade. No folclore irlandês, ele era chamado de O Bom Deus.
Possuía todas as habilidades, era o Eochaid Ollathair (Pai de todos) e
Ruad Rofhessa (Senhor de Grande Sabedoria), considerado mestre de
todos os ofícios e senhor de todos os conhecimentos. Consorte de
Boann, teve vários filhos, entre eles Brighid, Angus, Midir, Finnbarr e
Bodb, o Vermelho. Dagda tinha um caldeirão mágico, o Caldeirão da
Abundância, que nunca se esvaziava, e uma harpa de carvalho
chamada Uaithne, que fazia com que as estações mudassem, quando
assim ordenasse. Além disso, tinha um casal de porcos mágicos que
podiam ser comidos várias vezes e que sempre reviviam, bem como
um pomar que, independentemente da estação, dava frutos o ano todo.

– Dana/ Danu/ Danann: considerada a principal deusa-mãe da Irlanda e


das Tuatha Dé Danann, o Povo de Dana ou o Povo Mágico (Daoine
Sídhe), a tribo dos seres feéricos. Às vezes, identificada como Anu ou
Ana, seu nome significa “conhecimento”. Era consorte de Bilé e mãe
de Dagda. Em Munster, na Irlanda, Dana foi associada a dois morros
de cume arredondados, chamados de Dá Chich Anann ou Seios de
Ana, por se parecem com dois seios. É a deusa da fertilidade, da terra e
da abundância.

– Dian Cecht/ Diancecht: deus da cura, foi o grande médico e curador


das Tuatha Dé Danann, responsável pela restauração do braço de
Nuada por outro braço de prata. Diancecht era irmão de Dagda e teve
vários filhos, entre eles Airmid, Etan, Cian, Cethé, Cu e Miach. Seu
nome significa “rápido no poder”.

– Erin/ Eriu: filha de Fiachna e Ernmas, descrito no Livro das Invasões.


Assim como suas irmãs Banba e Fotla, Erin era uma das três rainhas
das Tuatha Dé Danann, que deu seu nome à Irlanda, através de uma
promessa feita por Amergin após a invasão dos milesianos.

– Flidais: deusa da floresta, dos bosques, da caça e das criaturas


selvagens, representa a força da fertilidade e da abundância. Viajava
numa carruagem puxada por cervos e tinha uma vaca mágica que dava
muito leite. Seu nome significa “doar”, elucidado no conto de “Táin Bó
Flidais” (o roubo do gado de Flidais). Tinha o poder de se
metamorfosear em qualquer animal.

– Goibniu/ Goibhniu: era o grande ferreiro, construtor e mestre da


magia. Goibniu, Credne e Luchta formavam os três artesãos divinos,
conhecidos como os Trí Dé Dána. Foi quem forjou todas as armas das
Tuatha Dé Danann e criou o novo braço para o rei Nuada. Suas armas
sempre atingiam o alvo, e a ferida provocada por elas era fatal. Deus
dos ferreiros, das habilidades culinárias e do trabalho com metais em
geral.

– Lir/ Lear: no folclore irlandês, Lir era o deus do mar, considerado


também o Senhor do Submundo (o mundo dos ancestrais), da magia e
da cura. Lir era pai de Manannán Mac Lir e das crianças Fiachna,
Conn, Fingula e Aod, que foram transformadas em cisnes por causa do
ciúme da sua madrasta Oifa nos contos do Ciclo Mitológico Irlandês
conhecido como “O destino dos filhos de Lir”.

– Lugh/ Lug/ Lugus: um dos grandes heróis da mitologia irlandesa,


Lugh era filho de Cian (neto por parte dos Dananns de Dian Cecht) e
de Ethniu, filha de Balor, rei dos fomorianos. Uma profecia dizia que
Balor seria morto por seu neto. Para evitar esse destino, mandou dar
fim nos netos, mas Lugh sobreviveu e foi criado por Tailtiu, sua mãe
adotiva. Sua festividade é Lughnasadh, a festa da primeira colheita.
Ficou conhecido como Lugh Lámfada, que significa “Lugh dos braços
longos”, “Lugh Samildanach” ou “Lugh, o artesão múltiplo”. Lugh é o
deus dos ferreiros, cujo domínio incluía a magia, as artes e todos os
ofícios em geral, seu nome significa “luz” – belo como o sol. Guardião
da espada mágica e da lança invencível, vinda da cidade de Gorias, um
dos quatro tesouros das Tuatha Dé Danann.

– Macha: deusa da fertilidade e da guerra, filha de Ernmas, junto com


as irmãs Badb e Morrighan, podia lançar feitiços sobre os campos de
guerra. Após uma batalha, os guerreiros cortavam as cabeças dos
inimigos e ofereciam a Macha, costume chamado de a Colheita de
Macha. Deusa dos equinos, durante sua gravidez foi forçada a
participar de uma corrida de cavalos. Quando chegou ao final, entrou
em trabalho de parto e deu à luz gêmeos. Antes de morrer, Macha
amaldiçoou os homens da província na qual, em tempos de opressão e
maior necessidade, eles sofreriam dores como as de um parto.

– Manannán Mac Lir: filho de Lir, também é considerado um deus do


mar e do Outro Mundo, homenageado como uma das principais
divindades marítimas pelos irlandeses e reverenciado como protetor
dos marinheiros. Viaja pelo mar muito mais rápido que o vento em um
barco mágico puxado por um cavalo chamado Enbharr, que significa
“espuma de água”. Mestre na mudança de forma, Manannán era uma
divindade popular entre os bardos e todos aqueles que praticavam a
adivinhação. Quando os Dananns foram derrotados pelos milesianos,
foi Manannán quem os levou a Tír inna n-Óc, através de colinas
subterrâneas, o Sídhe. Ele tinha uma armadura que dizia ser
impenetrável e uma capa mágica do esquecimento e da invisibilidade.

– Morrígu/ Morrigan/ Morrighan: é a grande rainha Mor Rioghain, na


mitologia irlandesa, da tribo das Tuatha Dé Danann. Senhora suprema
da guerra, possuía uma forma mutável e o poder mágico de predizer o
futuro. Reinava sobre os campos de batalha e era conhecida, com suas
irmãs Badb e Macha, como uma das Três Morrígans, relacionadas à
triplicidade que, para os celtas, significava a intensificação do poder.
Associada aos corvos, ao mar, às fadas e à guerra, e também à Medb
ou Maeve, rainha de Connacht, casada com o rei Ailill e à Morgana,
das lendas arthurianas. Podia mudar sua aparência à vontade, como em
um lobo cinza avermelhado. Nos mitos, relacionou-se com Dagda e
apaixonou-se pelo grande herói celta, Cúchulainn, que despertou toda
sua fúria ao rejeitá-la. Deusa da morte e do renascimento, da
fertilidade, do amor físico e da justiça.

– Nuada: no folclore irlandês, era reverenciado como rei e grande líder


das Tuatha Dé Danann. Possuía uma espada invencível, vinda da
cidade de Findias e que fazia parte dos Tesouros de Dananns. Na
primeira Batalha de MaghTuredh, perdeu o braço ou a mão, órgão que
foi restituído, mas fez com que ele perdesse o trono da tribo. Ficou
conhecido como Nuada, braço de prata, ou Nuada, mão de prata. Era
irmão de Dagda e Dian Cecht.

– Ogma/ Oghma: deus da eloquência, da vidência e mestre da poesia


que, na tradição irlandesa, segundo o Livro de Ballymote, foi quem
inventou o alfabeto oracular Ogham, utilizado pelos antigos druidas,
baseado em árvores sagradas. Ogma, meio-irmão de Dagda, Bres e
Lugh, era um guerreiro, retratado como um ancião sorridente, vestindo
casaco de pele e carregando um arco e um bastão.

– Scathach/ Scatha/ Scath: seu nome significa “a sombra”, aquela que


combate o medo. Deusa guerreira e profetisa que viveu na Ilha de
Skye, na Escócia. Ensinava artes marciais para guerreiros que tinham
coragem suficiente para treinar com ela, pois era dura e impiedosa.
Considerada a maior guerreira de todos os tempos, foi a responsável
por treinar Cúchulainn.

Mitologia galesa
– Arawn: é o rei de Annwn ou Annwfn (Outro Mundo). O submundo
na tradição galesa que é visto como um castelo sobre o mar, chamado
de Caer Siddi, castelo de fadas, ou Caer Wydyr, palácio de vidro.
Como Tír inna n-Óc, Annwn era um lugar de doçura e encanto. Arawn
possuía um caldeirão mágico, descrito no poema do bardo Taliesin, em
“Os Espólios de Annwn”, em que descrevia a viagem de Arthur e seus
companheiros ao Outro Mundo para resgatarem o Caldeirão da
Abundância.

– Arianrhod: era filha de Dôn e Belenos, irmã de Gwydion; seu nome


significa “a roda de prata”, a virgem que dá à luz os filhos Lleu e
Dylan, depois de passar em um teste de magia feito pelo seu tio, Math.
Arianrhod é a deusa das iniciações, da terra e da fertilidade na tradição
galesa. Senhora do renascimento, vivia num castelo estelar chamado
Caer Arianrhod, associado à constelação Corona Borealis, retratada nos
contos do Mabinogion em “Math, filho de Mathonwy”.
– Arddhu/ Atho: o “escuro” no folclore galês, que representa Green
Man, o deus da natureza, ou o Grande Corvo Divino, uma divindade
que habitava as matas e as florestas. Deus dos bosques e animais, da
fertilidade e da renovação. É representado por um homem com o rosto
todo coberto por folhas verdes, descrito no romance arthuriano em “Sir
Gawain e o cavaleiro verde”.

– Blodeuwedd/ Blodeuedd: foi feita a partir de nove tipos de flores


silvestres, por Math e Gwydion, para ser a esposa de Lleu (filho de
Arianrhod), que depois foi transformada em coruja por causa da sua
traição ao marido. Seu nome significa “rosto de flor”, representada
muitas vezes como um lírio branco. Deusa do amanhecer nos mitos
galeses, é retratada nos contos do Mabinogion em “Math, filho de
Mathonwy”.

– Bran: o “abençoado”, Bran era um dos grandes heróis do ciclo galês.


Filho de Llyr, irmão de Manawydan e Branwen. Bran era um gigante,
muito mais alto que uma árvore. Ao ser mortalmente ferido na coxa em
um combate e, por ser muito grande, pediu que cortassem sua cabeça,
que se manteve viva por algum tempo. Bran possuía o Caldeirão do
Renascimento, com propriedades de restaurar a vida dos mortos.
Associado aos corvos, Bran é o deus da guerra, da caça e da música.

– Branwen: era esposa do rei da Irlanda Matholwch e foi punida pelo


marido ao insultar o povo irlandês mutilando seus cavalos. Branwen
foi obrigada a trabalhar como copeira e, da sua cozinha-prisão, treinou
um estorninho para levar mensagens de volta ao País de Gales,
descrevendo sua situação e pedindo ajuda. Bran, seu irmão, liderou
uma expedição para resgatá-la, mas foi ferido mortalmente e Branwen
morreu de tristeza ao saber. Branwen é a deusa galesa do amor, da
soberania e da justiça, descrita nos contos do Mabinogion em
“Branwen, a Filha de Llyr”.

– Beli: é consorte de Dôn, conhecido também como Beli Mawr. Beli é


um antigo deus galês, considerado um grande líder e o maior ancestral
dos galeses. Corresponde a Belenus, para os gauleses, e Bilé, para os
irlandeses.
– Cerridwen/ Ceridwen/ Kerridwen: esposa de Tegid Voel, o Calvo,
mãe de Morvran, da linda donzela Creirwy, e do feio rapaz Afagddu.
As lendas nos contam que Merlin pode ter sido o sucessor do bardo
Taliesin que, na forma de Gwyon, era filho de Cerridwen e se tornara
um grande mago, após tomar, acidentalmente, algumas gotas da poção
do conhecimento que o pai preparava para Afagddu no Awen,
Caldeirão da Inspiração, descrito em “Taliesin”. Por isso, os bardos
galeses chamavam a si mesmos de “Cerddorion”, os filhos de
Cerridwen. O caldeirão é um dos principais símbolos de Cerridwen,
associado à fertilidade, à regeneração, à mudança de forma e ao
renascimento.

– Dôn: a deusa-mãe galesa é consorte de Beli, filha de Mathonwy e irmã


de Math, nos contos do Mabinogion em “Math, filho de Mathonwy”.
Dôn era mãe de Amathon, Arianrhod, Gilvaethwy, Govannon,
Gwydion e Nudd. É considerada deusa da terra, da fertilidade e da
abundância.

– Dylan: filho das ondas do mar, o menino dos cabelos de ouro é o deus
do mar para os antigos galeses. Filho de Arianrhod, irmão gêmeo de
Lleu e sobrinho de Gwydion. Seu símbolo é um peixe prateado, dos
contos do Mabinogion em “Math, filho de Mathonwy”.

– Gwydion: filho de Dôn, foi o grande druida dos deuses, mestre da


magia e das ilusões. Regia as mudanças de forma, a poesia e a música.
Gwydion era irmão de Arianrhod e, provavelmente, pai dos seus filhos,
Lleu e Dylan. Foi ele quem ajudou Lleu a superar as maldições da sua
mãe, além de ajudar a criar uma esposa, Blodeuwedd, para o sobrinho,
segundo o Mabinogion em “Math, filho de Mathonwy”.

– Modron: deusa-mãe galesa, seu nome significa “mãe”. Modron era a


mãe de Mabon, mencionado no conto de “Culhwch e Olwen”. É a
deusa da terra e da fertilidade.

– Lleu: era irmão gêmeo de Dylan, filho de Arianrhod, sobrinho de


Gwydion e consorte de Blodeuwedd. Deus da terra, seu nome significa
“luz” e foi associado ao Sol, nos contos do Mabinogion em “Math,
filho de Mathonwy”.

– Llyr: antigo deus galês do mar, equivalente a Lir, o deus irlandês do


mar. Consorte de Penardun, filha de Dôn, é o pai de Manawyddan,
descrito nos contos do Mabinogion em “Manawyddan, o Filho de
Llyr”, de Bran e Branwen.

– Mabon: deus da juventude, do amor e das nascentes dos rios. Mabon


era filho da deusa Modron e, de acordo com os mitos galeses, foi
roubado de sua mãe quando tinha apenas três noites de vida, conforme
os contos do Mabinogion em “Culhwch e Olwen”. É ele quem ajuda
Arthur na caça ao javali com sua magia após ser libertado de Caer
Loyw, o Castelo Brilhante.

– Rhiannon: a grande rainha dos galeses, Rhiannon era a protetora dos


cavalos e das aves. É a deusa dos encantamentos e da fertilidade,
equivalente a Macha, na mitologia irlandesa, e Epona, na mitologia
gaulesa. Rhiannon teve seu filho roubado logo que ele nasceu e foi
acusada, injustamente, por sua morte. O bebê foi achado anos depois e
devolvido a sua mãe, que passou a chamá-lo de Pryderi, descrito nos
contos do Mabinogion em “Pwyll, Príncipe de Dyfed”.

Mitologia gaulesa
O termo gaulês se designa a um conjunto de povos celtas que vieram de
Gales e povoaram a Gália, que atualmente corresponde aos territórios da
França até a Bélgica e à Itália setentrional.

– Bel/ Belenus/ Belenos: seu nome significa “brilhante”. É considerado


o deus do fogo e da luz nos mitos gauleses. Belenos dá seu nome ao
festival de Bealtaine e está relacionado às fogueiras que são acesas em
colinas para promover a purificação. Foi associado à Beli, na tradição
galesa, e a Bilé, na tradição irlandesa.

– Cernunnos: um dos mais antigos deuses celtas, encontrado tanto entre


os celtas continentais como os insulares. Deus da fertilidade, dos
animais, do amor físico, da natureza, dos bosques e da abundância. Seu
nome é pronunciado com “k”: Kernunnos. Foi representado por um
homem sentado na posição de lótus, cabelo comprido, de barba, nu e
usando apenas um torque (colar celta) no pescoço ou ainda por um
homem de chifres, como no Caldeirão de Gundestrup, que tem os
seguintes símbolos: um torque em sua mão direita e a serpente na mão
esquerda, rodeado por um veado à sua direita e um javali à sua
esquerda. Cernunnos é o Guardião do Mundo Verde, conhecido como
Green Man.

– Epona: deusa gaulesa protetora dos cavalos, seu nome significa


“cavalo”. Foi representada montada em um cavalo ou égua, rodeada
por outros equinos. Epona é a deusa da fertilidade, da maternidade, da
abundância e dos animais, associada a proteção, prestígio e poder.
Podemos identificá-la com Rhiannon, na tradição galesa, e Macha, na
tradição irlandesa.

– Sucellus: deus gaulês da fertilidade, da cura e das florestas.


Considerado o rei dos deuses na mitologia gaulesa, seu nome significa
“atacante”. Usava uma coroa de folhas na cabeça, acompanhado por
um cão de caça e carregava um grande martelo, usado para bater na
terra e acordar as plantas, anunciando o início da primavera.

Os celtas na atualidade
Apesar do declínio das línguas celtas, a sua sobrevivência é certa graças
àqueles que buscam o regaste histórico dessa cultura. Em termos gerais, a
sua definição é uma questão que levanta a abordagem de como a linguagem
realmente é importante para a identidade céltica na visão moderna, presente
também nos nomes toponímicos. Mas devemos ter em mente que os
habitantes, por exemplo, da Escócia, da Irlanda, do País de Gales, da Ilha de
Man, da Cornualha e da Bretanha não se definem como celtas, embora o
atual movimento pancelta insista nesse conceito.
O número exato de celtas é incerto e as verdadeiras razões deste declínio
são complexas. Poderíamos descrever inúmeros motivos, desde a relutância
da Igreja Católica até problemas econômicos e sociais. Ainda assim, a
identidade celta está se desenvolvendo de forma independente, e suas raízes
linguísticas estão se espalhando e ganhando novos simpatizantes pelo
mundo afora.
No passado, o renascimento celta foi visto de maneira idealista e
platônica ao tentar resgatar os costumes celtas através dos movimentos
literários da época. Precisamos ter cuidado para não incorrermos no mesmo
erro nas práticas druídicas modernas. E o mesmo pode ser dito dos
estudiosos, particularmente dos acadêmicos e historiadores revisionistas.
Podemos afirmar que as principais fontes de informação sobre os antigos
celtas e druidas são descritas em relatos clássicos de historiadores greco-
romanos, em dados arqueológicos e nos registros de monges cristãos, entre
os séculos VIII e XII d.C. Outros meios possíveis para se entender os celtas
e os seus costumes nos dias atuais seriam através de analogias e estudos
comparativos entre eles e outras culturas indo-europeias semelhantes ou que
conviveram entre si em algum período da história.
Rowena Arnehoy Seneween
Pesquisadora autodidata da cultura celta e druidismo
1 Monumento megalítico funerário caracterizado por duas ou mais pedras verticais que sustentam uma
grande pedra horizontal (laje), formando assim uma câmara sepulcral.
Prólogo
Masa brec gach dan suad,
is brec brat ‘s as brec biad;
‘s as brec an domhan uli,
‘s as brec fos an duine criad.

Colm Cille Naomh2

Canto a alma dos antigos sábios em comunhão com a natureza. Os falcões


aqui voam livres em volta das montanhas, o carvalho sorri para as
cachoeiras com as borboletas dançando ao seu redor. Esta é a canção
verdejante do Povo Bom,3 que vive no espírito humano. Não te preocupes
se não a entendeste. Apenas ouve o chamado. Deixe o falcão fincar as
garras em teu coração e carregar-te pelo oceano azul.
2 “Se mentiras são do sábio os poemas,/ Roupa e alimento são mentiras,/ E mentira é o mundo inteiro/
E mentira é até o homem feito do barro da terra.” São Columba (Irlanda, séc. VI d.C.)

3 Em gaélico, Daoine Maithe. São as fadas do folclore irlandês contemporâneo.


1

O décimo sétimo dia da Lua


Em seus pensamentos ecoava o ruído do mar e apareciam os vultos dos seus
antepassados. A brisa oceânica acariciava levemente sua face, empurrando
mais uma gota salgada do seu suor para aquela imensidão azul-esverdeada
irrequieta. Já não via a dança das focas havia dois dias. Seus olhos vibravam
no ritmo dos seus pensamentos.
Mais um dia no mar.
A missão dele era guiar o espírito desses nobres guerreiros como um
falcão em pleno voo, sentindo a brisa marítima, conduzindo-os mais e mais
em direção ao próprio caminho, tendo o horizonte como guia. Seu coração,
despedaçado, previa infortúnios e glórias, correntes ascendentes e
descendentes. As fendas do tempo nublavam a sua visão para mais adiante.
O mago veio de uma terra distante, em que os deuses antigos cantavam
glórias e enobreciam o sangue. Uma vasta planície, um campo aberto por
onde ele corria livremente, aguçando seu espírito juvenil ao ouvir os
chamados distantes da sua mãe que ecoavam pelos ventos, de volta para
casa. Tal lugar, perdido no tempo mas vivo em seu coração, renovava
diariamente sua luz interior. É de onde retirava a energia mais potente, onde
se conectava com Tír inna n-Óc.4
As Terras Verdes aguardavam o retorno do nosso povo. As Tuatha Dé
Danann5 não mais representavam algo atemorizante. Por que então ele
sentiu essa aflição em sua energia vital, como uma tensão negativa que
quebrava sua paz, que o levava à exaustão naqueles dias? Enquanto seu
corpo se decompunha em cansaço, Amergin procurava fortalecer seu
espírito cada vez mais. Sentia as vibrações verdejantes do carvalho mais
antigo no bosque da ilha e, apesar da distância da terra firme, elas o
alimentaram. A hora da profecia chegara. O destino era inexorável.
– Precioso carvalho,6 brilha tua aura mística em meu ser de luz, acolhe em
tuas raízes este coração despedaçado, faze-o íntegro novamente com a terra
abençoada, como a noz na boca do salmão, como o orvalho na calma
manhã!
A oração de Amergin tinha fundamento: algo havia acontecido na mente
das Tuatha Dé Danann. Por décadas, o poder desse povo se manteve
inequívoco e avassalador. O assassinato impiedoso de Ith e seus irmãos
assim que puseram os pés naquelas terras fora apenas o começo. Haveria
realmente espaço para o diálogo?
Ao chegar à ilha, as Tuatha Dé Danann haviam escurecido o céu em
nuvens negras, dizimando os firbolg que ali moravam. Não era bom sinal
para o sábio druida Amergin. Apesar de seus ancestrais comungarem uma
essência comum, ele pressentiu que não deveriam estar no comando daquele
lugar. Havia algo de desarmônico naquela energia.
Era maio, a época do Bealtaine.7 Navegando através de nuvens mágicas
que intensificavam o laranja solar, as Tuatha Dé Danann8 chegaram à ilha.
Para aqueles que temiam o poder dessa tribo, há a lenda dessa magistral
nebulosa negra que os acompanhou e cobriu toda a terra naquele dia.
Poderosos magos ou deuses encarnados, seu poderio bélico e grandiosidade
cultural os colocavam acima de quaisquer outros. Homens fortes e de pele
clara eram simultaneamente exímios guerreiros e talentosos feiticeiros.
Diferentemente dos filhos de Mil, vieram do Norte, deixando as cidades de
Failias, Goirias, Findias e Muirias para alcançar essa terra.
Amergin abriu e fechou os olhos algumas vezes até fixar o olhar no vazio
das estrelas, que ardiam em fogo verde. Tudo começou a girar
freneticamente. A energia feérica do mago se conectava ao cosmo
onipresente de Tír inna n-Óc. Rostos repletos de dor, lanças, nuvens, um
templo, explosão de luz, agonia, relâmpagos, explosão de fogo, raízes,
pedras colossais, parábola, raios de sol. Seus lábios tremiam
involuntariamente, murmuravam, murmuravam, murmuravam... Vento,
mar, estrondo, ondas, falcão...
Havia pouco tempo que seu dom de pressentir os acontecimentos se
manifestara. Por vezes, parecia uma maldição e por outras, predestinação. O
peso que recaiu em seus ombros condensou a alma de mil guerreiros em
marcha. Possuído pelos pensamentos mais íntimos, ele nem sentiu o sono
chegar. A noite passava rápida como um raio.
Mais um alvorecer. Estavam no mar havia três dias, ancorados a nove
ondas de distância do porto. Não haviam se movido durante todo esse
tempo. Esse fora o acordo feito com os reis das Tuatha para o fim do
embate. Amergin não se sentira à vontade na ocasião e nem ele próprio
conseguia entender o motivo.
– Olha em meus olhos e vê, Amergin, sou o fantasma em tua mente! Olha
em meus olhos e vê, Amergin, sou a espada em tua mão! – ecoou uma voz
oriunda das profundezas do oceano.
Apareceu nas águas uma face humana contornada por algas e plânctons,
acentuando o verde das ondas murmurantes, ligando-se às vibrações do
druida. De repente, se dissipou, e o mar se agitou convulsivamente,
arremessando Amergin no chão do convés escorregadio. Ele ficou
atordoado por alguns minutos. Quando se recompôs, voltou seu olhar para
as águas turbulentas e viu a ilha.
– Deuses ancestrais, esse era o sinal! Um poderoso feitiço foi entoado
pelas Tuatha Dé Danann!
Pesadas nuvens começaram a encobrir a costa. Relâmpagos e chuva de
granizo caíam na direção dos barcos dos milesianos. O caos, em sua forma
mais primitiva, mostrava-se a todos! Gritando em trovões potentes, a fúria
dos inimigos se aproximava para estraçalhar as naus ancoradas mais à
frente.
Amergin correu para a proa, desesperado, tentando alertar Éber Donn,
mas a violência e a rapidez da tempestade alcançaram a nau antes do seu
alerta. A água, em cólera incontida, rebelava-se, convulsionando-se
braviamente e abraçando a embarcação, que rodopiava, alçava e era tragada
para o olho da perdição. O mago, sentindo-se impotente, ouviu os
tenebrosos gritos de agonia dos seus irmãos no momento em que o barco foi
ferozmente arremessado contra o mar, estilhaçando-se. Muitos outros
sofreram o mesmo destino. Como um alazão desenfreado a cavalgar pela
pradaria, assim a tormenta se dirigia ao feiticeiro.
Amergin sentiu sua energia interior vibrar fortemente, e a voz do oceano
profundo ecoava em sintonia. Seus olhos emanaram uma poderosa luz azul-
esverdeada: a imagem de um falcão etéreo, circundando um majestoso
carvalho, pairou a poucos metros do chão do navio e materializou-se através
das nuvens da tempestade. Batendo seu cajado incrustado de pedras
preciosas na madeira da embarcação, Amergin entoou uma canção poética –
com o vento em sua face e o terror tonitruante a sua espreita – emanada da
comunhão com os poderes naturais:
– Sou o lago na planície, sou o falcão na montanha, sou a gota no oceano,
sou o fogo em teu coração!
Após essas palavras encantadas, o falcão se atirou em direção à
tempestade, e uma áurea explosão de luz surgiu.
– Sou a onda que brinca no oceano, lágrima que despenca do sol. Sou a
mais formosa das flores, o sal na vastidão do mar!
Com essas palavras harmônicas, Amergin conseguia conter as trevas
elétricas. Um grande silêncio petrificou o tempo. Ele observou o lugar para
onde o falcão voou e viu uma nova explosão de luz, dessa vez rubra,
abrindo vários espaços entre as nuvens negras, por onde brilhantes raios
solares começaram a incidir, dissipando definitivamente a tormenta. A
magia das Tuatha Dé Danann foi superada e anulada.
Nossas embarcações então levantaram velas e seguiram em direção ao
porto. No décimo sétimo dia da Lua, desembarcamos novamente para o
derradeiro destino. As Tuatha Dé Danann estavam prestes a sentir nossa
ira!
As naus atracaram – cerca de duas dúzias haviam resistido à tempestade.
O primeiro a descer foi Amergin. Ele aconchegou seus pés na areia branca,
apoiou-se em seu cajado e curvou o joelho direito em reverência aos deuses.
O vento soprava no sentido norte, carregando sua canção para o centro da
ilha:

Sou o vento sobre o mar;


Sou a onda do oceano;
Sou o rugido das ondas;
Sou o poderoso boi de combate;
Sou o falcão no penhasco;
Sou a gota de orvalho no raio de sol;
Sou o javali selvagem;
Sou o salmão da sabedoria;
Sou o lago da planície;
Sou a força da palavra;
Sou a lança certeira;
Sou o fogo que cria o pensamento.
Quem ilumina a pedra da montanha, senão eu?
Quem sabe o lugar no qual o sol se deita?
Quem conhece as idades da Lua, senão eu?
Quem é o deus da forma, da batalha e dos ventos?

***

Enquanto isso, em Tír inna n-Óc, poderosos deuses dialogavam sobre os


acontecimentos transcorridos no outro plano.
– Estou muito preocupado com o futuro do nosso mundo – refletiu Lugh.
– Uma sensação estranha toma o meu ser.
– Sobre os milesianos? – indagou o Homem de Folhas.
– Sim, a respeito dos descendentes de Mil, que vieram do continente
guiados pelo druida Amergin, que é muito poderoso e possui uma liderança
ímpar.
– Meu senhor, ele é apenas um humano!
– Um humano de obstinação férrea e que pode, desse modo, alterar o
destino!
– Como assim?
– À minha semente está reservada a glória, o grande herói desta terra. Vi
o futuro claramente, antes da chegada dos milesianos. Agora ele está
nublado. Falo daquele que guiará a Ilha Verde para a glória e a
prosperidade! Um legítimo descendente das Tuatha Dé Danann, o
escolhido, não um humano qualquer, um semideus envolto em luz solar!
Meu sangue pulsará densamente nas veias do meu filho. Ele será um
guerreiro feroz e ensinará aos homens comuns o significado de ser um filho
dos deuses. Guiará o povo em busca do sol, tal qual uma andorinha
sobrevoando o mar antes do seu mergulho magistral! – Lugh se exalta,
fazendo gestos enquanto fala e, depois de uma breve pausa, continua: – Os
antigos deuses foram derrotados pelo mago milesiano, devemos ser mais
fortes que a nevasca, mais rápidos que a flecha!
– Enviarei um feitiço que fará o druida perder o caminho – sugere o
Homem de Folhas.
– Excelente!
– Colocarei a mente dele em uma confusão aterradora! Ele rezará por sua
alma diariamente e não encontrará o motivo de sua angústia, que será
intolerável!
– E assim, com o mago milesiano caído, cantaremos a glória do
escolhido! – exclama Lugh. – Minha semente trará a harmonia para todo o
sempre! Libere o feitiço, Homem de Folhas, libere a alma do poderoso
dragão que afetará o fluxo energético de Amergin!
– Considere feito! Meus poderes são mais antigos que a própria criação,
sou o supremo protetor das florestas, o druida não terá chance!

***

Uma parte do exército milesiano, liderada por Uar e Amergin, partiu de


Chiarraí,9 enquanto outro contingente, menor, ficou sob a liderança de
Eithear. Duas estratégias de batalha foram traçadas: os druidas usariam seus
dons mágicos para criar cópias fantasmas de cada integrante da tropa,
duplicando assim o seu número. Sabendo que as Tuatha Dé Danann
estavam enfraquecidas, Uar e Amergin tinham a missão de aprisioná-las e
reivindicar a Ilha Verde, enquanto Eithear, em prontidão no litoral, evitaria
uma possível fuga.
A caminhada do exército era imponente, constante e avassaladora. Ao
chegar às imediações da colina de Teamhair,10 encontraram a primeira
resistência. A tropa milesiana dividiu-se em três: os fantasmas avançaram
no flanco principal; Amergin com seus guerreiros no segundo bloco;
enquanto Uar e os demais se distanciavam, contornando a colina. Os
guerreiros Tuatha Dé desceram para o enfrentamento.
Quando viu o inimigo, Amergin ordenou que a legião a sua frente partisse
para o embate. Uma horda de fantasmas, armados com grandes lanças,
atingiu os súditos das Tuatha Dé. Vários caíram atravessados pelas armas
mágicas. Não entendiam o que estava acontecendo: haviam acertado os
milesianos, mas estes se desfizeram em pó e depois se recompuseram.
O caos tomou conta do ambiente. As Tuatha eram arrebatadas às dúzias, e
as cenas eram atordoantes. Os cavalos, espantados, derrubaram seus
cavaleiros e saíram em disparada.
Da parte mais alta, o druida das Tuatha percebeu o estratagema dos
milesianos e lançou um feitiço em forma de nebulosa. Ao chegar ao local, a
nuvem trovejou e emitiu raios, provocando uma tempestade que aniquilou
os fantasmas. Logo em seguida, ele ordenou que os sobreviventes se
aproximassem uns dos outros, a fim de dar novamente unidade ao seu
grupo.
No entanto, Amergin foi mais rápido. Seguiu com seus guerreiros em
peso e não permitiu que o inimigo conseguisse se reagrupar. Rios de sangue
jorraram. As clavas, as lanças e os escudos dos filhos de Mil foram
revestidos por um feitiço que tornava o bronze e a madeira praticamente
inquebráveis.
O sábio mago criou um pequeno tornado, que seguiu em direção ao céu e
explodiu. O som ecoou até Uar, que entendeu o sinal, retornou com sua
tropa e, dessa forma, surpreendeu os soldados das Tuatha Dé pela
retaguarda.
Nunca antes a ilha presenciara uma batalha de tal magnitude. Cabeças
literalmente rolavam pela colina, o sangue derramado formava pequenos
córregos que desciam por entre as pedras e a grama. Não havia lugar para a
clemência. Em um curto espaço de tempo, os milesianos dizimaram os
adversários, obrigando o druida Figol11 a retornar, ansioso, para alertar a
realeza sobre o avanço das tropas adversárias.
A empreitada continuou. As perdas humanas, devido à genialidade na
estratégia de batalha, foram mínimas. Eles chegaram a um pequeno monte
de cume plano e depositaram os restos mortais das pessoas carbonizadas.
Amergin e Uar logo perceberam que chegaram ao Forrad, o Monte da
Coroação, apesar de não haver indício algum da Pedra da Soberania, Lia
Fáil.12 Eles se entreolharam, impressionados.
– Guerreiros! Cessai a marcha! – bradou Uar.
Amergin e seu companheiro druida desceram do cavalo. Observaram todo
o lugar minuciosamente. Percorreram a grande elipse de pedra, seguindo
cada um em uma direção. Olharam dentro do fosso, levantaram pedras
pesadas com suas magias, criaram neblinas para neutralizar qualquer feitiço
de invisibilidade... e nada.
– Acredito que nossa impressão inicial esteja correta, irmão. A pedra
sagrada não está aqui. Nossos conhecimentos estavam...
– Corretos, irmão – completou Amergin. – Algo está muito errado, mas
não consigo compreender exatamente o que aconteceu.
A percepção do mago não era equivocada. Apesar de estar com seus
poderes parcialmente comprometidos pelo feitiço do Homem de Folhas, ele
acertara.

***

Em outro plano existencial, Lugh comentou:


– Os milesianos continuam avançando?
– Sim, grande ser divino. A força deles é descomunal. Fatalmente
chegarão até as rainhas. É uma questão de tempo.
– Eles conseguiram a Lia Fáil? Ela está na colina.
– Estava! Eu me antecipei e a retirei de lá, ocultando-a em outro lugar, a
salvo dos filhos de Mil.
– Perfeito! És extremamente sábio, meu valoroso aliado!
Nesse instante, a Morrígu aparece para discutir com os deuses.
– Irmão Lugh, saudações! Homem de Folhas, estou honrada em
encontrar-te!
– Tua presença alegra o meu ser! Preciso mesmo discutir um assunto
convosco. Como Senhora da Batalha, deves intervir a favor de teus filhos
mortais, os verdadeiros adoradores de Dana, os mortais em Teamhair –
orientou Lugh.
– Estou ciente das implicações, ponderei bastante. Por isso vim até aqui
para receber teu posicionamento a respeito dos fatos. E acabo de tomar a
minha decisão final. Estou a caminho.
– Que sábia, bela deusa!

***

Ainda sem entender ao certo como um artefato tão valioso desapareceria


do santuário, os druidas seguiram caminho, com o mesmo objetivo. O
batalhão avançava cada vez mais em direção ao ponto mais alto de
Teamhair.
Avistaram o fogo sagrado em pouco tempo, queimando em uma enorme
bacia de bronze sustentada por um grosso pilar de granito, bem em frente à
fortaleza. Aquele era o destino final do exército, e o enfrentamento era
inevitável. Eles atingiram o coração do poder, o centro da ilha. Restava-lhes
apenas atravessá-lo e tomá-lo.
A Senhora da Batalha surgiu, envolta em névoa espessa e leitosa, vestindo
uma túnica negra com detalhes de flores e folhas vermelhas. Seus longos
cabelos negros e lisos brilham como a prata ao sol. Todos se detiveram
diante de tal esplendor.
– Milesianos! Vosso caminho acaba aqui! Não vos atrevei a dar nem
sequer mais um passo!
– É Morrígu! – gritou um dos soldados. – Não podemos desafiar as
ordens da divindade!
– Cala-te! – repreendeu Amergin. Virando o rosto para a deusa, ele se
apresentou: – Sou Amergin Glúingel, supremo sacerdote dos filhos de Mil.
Não temo meu destino e meu povo me seguirá até a morte! Não te
obedecerei!
Tal afronta enraiveceu fortemente a deusa. O calor de sua irritação
irradiou a metros de distância. Ela disse com simplicidade:
– Se assim desejas...
Tão intensa quanto sua amargura foi a sua ira. Ela retirou de suas vestes
duas adagas de prata, cravejadas de pedras preciosas de várias cores e
formatos, e atacou.
A precisão do ataque foi aterradora. Morrígu apunhalou um guerreiro no
peito e outro no pescoço ao mesmo tempo. Pelo menos era só o que os
druidas enxergaram, pois a velocidade de seus movimentos foi tanta que a
deusa parecia estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Em questão de
minutos, um exército inteiro, centenas de homens fortemente armados e
treinados, caiu aos pés da Senhora da Batalha. Todos mortos ou exalando o
último suspiro, exceto pelos dois feiticeiros.
Sem se dar por vencido Uar levantou seus braços aos céus para entoar um
feitiço. Rapidamente seus braços foram decepados pela Morrígu, e ele
despencou do cavalo, estatelando-se no chão. Afogava-se em sua própria
poça de sangue.
Amergin insinuou gritar, mas a encarnação da guerra, soberana das artes
bélicas, já estava com o punhal apontado para queixo do mago, impedindo-
o, assim, de movimentar o maxilar. Com a boca encostada ao ouvido de
Amergin, ela sussurrou:
– Nem mais uma palavra sequer, humano insolente. Apenas escuta. – Ele
suava frio, com olhos arregalados. Sua vida estava por um triz, à mercê da
beldade divina. – Sê sábio.
Ele ouviu e suspirou. A deusa simplesmente desapareceu. O druida olhou
ao redor, viu toda aquela chacina, carne sem vida, morte em todo o lugar, os
olhos ardiam em lágrimas. Fracassara. Para sua surpresa, os portões da
fortaleza se abriram e as três rainhas da Ilha Verde, Ériu, Banba e Fodla,
filhas de Ernmas, vinham galopando ao encontro dele.
– Saudações, sacerdote – cumprimentou uma das rainhas.
– Saudações, rainhas.
– Viemos propor uma trégua. Desejamos a paz entre nossos povos.
Amergin pensou com cuidado na proposta de Ériu. Ele já foi enganado
uma vez, quando fizeram uma proposta parecida, que custou, inclusive, a
vida de Éber Donn e de muitos compatriotas. Enquanto meditava, dois
poderosos deuses se manifestaram – um deles com algo muito curioso nas
mãos.
– Sou Dagda e este é Manannán Mac Lir. Trouxemos este prêmio ao
descendente de Mil.
Vendo a coroa de folhas de carvalho, Amergin percebeu que o deus
interpretara a sua missão como vencedora e, assim, desceu do cavalo,
aproximou-se de Dagda e se curvou. O ser divino colocou a coroa simbólica
sobre a cabeça dele e orientou:
– Escolha o destino da Ilha Verde, Amergin.
– A parte iluminada pelo sol ficará conosco, sob a proteção de Érimón e
Éber Finn.13 A porção debaixo da terra será para onde as Tuatha Dé Danann
devem migrar.
Percebendo a astúcia do feiticeiro, Fodla enviou uma mensagem mental a
todos os deuses solicitando que eles escondessem todos os dons das Tuatha
Dé, para que o milesiano não tomasse conhecimento desse precioso poder.
Ao receber a mensagem, Dagda olhou consternado para Fodla.
– Que assim seja! Manannán garantirá que todos os derrotados cumpram
o seu desejo, ele os conduzirá a Tír inna n-Óc através das colinas
subterrâneas. Partiremos para os Síde14 e tu deverás retornar para o litoral.
Temos agora um acordo para honrar.
– Assim seja – concordou Amergin.
E, dessa forma inusitada, eles partiram para os seus destinos. Quando a
quietude imperou no local do acordo, o feitiço de invisibilidade de
Manannán, usado por Morrígu, desfez-se. Ela estivera presente durante toda
a negociação. Quais seriam as reais intenções da deusa?
4 Terra da Juventude, uma ilha mítica a oeste da Irlanda, paraíso sobrenatural no qual morte e doença
não existem, juventude e beleza são eternas, e a música, a força, a vida e todos os prazeres estão
reunidos. Embora apresentando notáveis diferenças, pode ser comparada ao Elísio, da mitologia grega,
ou ao Valhalla, dos nórdicos.

5 Povos (ou tribos) da deusa Dana. De acordo com a tradição registrada no Lebor Gabála Érenn (LGE,
“Livro das Conquistas da Irlanda”), as Tuatha foram o quinto grupo a estabelecer-se na Irlanda,
conquistando-a ao derrotar os firbolg. Pensa-se que as Tuatha Dé Danann derivaram das divindades
pré-cristãs da Irlanda.

6 O carvalho (duir) é uma das árvores de vida mais longa, levando setenta anos ou mais para ficar
madura o bastante para produzir bolotas. Por essa razão, a tradição irlandesa associa-o à força sólida e
bem-desenvolvida de uma pessoa em seus anos mais vigorosos. O carvalho simboliza a perícia
artesanal, a habilidade oriunda de uma longa prática e do trabalho duro. Essa forte e firme árvore está
intrinsecamente associada à magia, compreendida como a interação com o mundo natural desenvolvida
ao longo de extenso e árduo aprendizado. O carvalho ensina que qualquer habilidade difícil de obter
contém um elemento de magia. Como o Caldeirão da Abundância da lenda, que aparece vazio para o
covarde e o mentiroso, ele generosamente concede suas riquezas ao corajoso, sincero e persistente que
se mostrar digno de recebê-las.

7 Em gaélico, Bealtaine é o nome do mês de maio e também o do festival celebrado na noite que
precede o dia 1º de maio. O Bealtaine marca a metade do percurso do Sol entre o equinócio da
primavera e o solstício de verão no hemisfério norte. De acordo com o Sanas Chormaic (“Glossário de
Cormac”), do século IX, os druidas da ilha faziam fogos com grandes encantamentos na noite de
Bealtaine. O gado passava entre esses fogos para obter proteção contra doenças e as pessoas dançavam
ao redor das fogueiras, em busca de fertilidade e defesa contra maus espíritos. A origem do nome
Bealtaine seria a expressão bil tine, “fogo afortunado”. Todos os fogos da Irlanda deveriam ser
apagados na noite de Bealtaine e depois novamente acesos com brasas trazidas das fogueiras druídicas
de Uisneach, no reino de Mide, centro mítico da Irlanda antiga.

8 Deusa-mãe das Tuatha Dé Danann. Nenhum mito a seu respeito sobreviveu, embora o teônimo Danu
seja, supostamente, a origem de vários nomes de rios espalhados pela Europa, como Danúbio, Dniepr,
Dniestr e Dôn, assim apontando para sua origem como deusa aquática/fluvial. Sua correspondente mais
próxima é Dôn, figura mítica presente nas lendas do Mabinogion.

9 Kerry, condado da província de Munster, no sudoeste da Irlanda.

10 A Colina de Tara (Cnoc na Teamhrach, em gaélico), também chamada de Teamhair ou Teamhair na


Rí (“Tara dos Reis”), localiza-se no antigo reino de Mide (na província de Leinster). É um antigo local
sagrado ao qual a mitologia associa aos rituais da realeza da Irlanda, a capital política e espiritual da
ilha.

11 Figol foi o druida das Tuatha Dé Danann responsável por três chuvas de fogo que caíram sobre os
Fomoiri, inimigos das Tribos de Danu, por ocasião da Segunda Batalha de MaghTuredh.

12 De acordo com a lenda, a Pedra do Destino emitiria um rugido ao ser pisada pelo homem que
devesse ocupar a posição de Ard Ri Érenn (“Rei Supremo da Irlanda”). Era um dos principais símbolos
míticos da Soberania (Fláith), trazido de Falias pelas Tuatha.
13 Érimón ficou com a metade norte da Irlanda; Éber Finn, com a metade sul. Depois, insatisfeito com
sua parte na divisão, Érimón entrou em guerra com Éber e matou-o, tornando-se governante único da
ilha. De acordo com o historiador irlandês Seathrún Céitinn (Foras Feasa ar Éirinn, “Alicerce do
Conhecimento sobre a Irlanda”), o reinado de Érimón teria começado em 1.287 a.C. Os Annála nag
Ceithre Máistrí (“Anais dos Quatro Mestres”), contudo, indicam o ano 1.700 a.C.

14 Síde (plural de síd) são as colinas ou pequenos montes que pontilham a paisagem irlandesa. Em
vários textos mitológicos, cada um das Tuatha Dé recebe um síd próprio. Na literatura mais antiga, a
palavra síde refere-se aos palácios, salões ou residências subterrâneos que se tornaram moradas dos
deuses. Depois, síde passou a designar tanto os montes quanto os seus habitantes (Aes Síde, “Povo dos
Síde, Povo dos Montes Encantados”). Os Síde tornaram-se as fadas do folclore irlandês.
O décimo sétimo dia da Lua
Meu canto é a alma da natureza
O vento passa por mim
Meus olhos ficam verdes, como a terra sagrada
Minha alma – sua alma
Cresce – cresce rapidamente

Um lago em uma planície


Um falcão em uma montanha
O décimo sétimo dia da Lua
Um carvalho na floresta
O fogo em seu peito
Eu sou, eu sou, eu sou
O que eu sou

Olhe para os meus olhos e você verá


Eu sou o fantasma que vive dentro da sua cabeça
Olhe para os meus olhos mais uma vez e você verá
Eu sou a espada que você tem em sua mão

O poderoso som prossegue


E ecoa como o rugido de leões
Eu sou a verdade, mas não a única
Minha alma – sua alma
Cresce – cresce rapidamente

Uma onda no oceano


Uma lágrima vinda do céu
O décimo sétimo dia da Lua
O sal do mar
A luz do sol
Eu sou, eu sou, eu sou
O que eu sou

(Refrão)
Contemplo toda a minha vida
Espalhando pelo mundo

O tempo vai dizer


O que repousa por trás da verdade em minha vida
Um lago em uma planície
Um falcão em uma montanha
Eu sou, eu sou, eu sou
O que eu sou

(Refrão)
17th day of the moon
(Música: Marcelo Moreira / Letra: Eduardo Amaro e Alexei Leão)

My singing is the soul of nature


The wind passes me by
My eyes become as green as the holy land
My soul – your soul
Grows – grows fast

A lake on a plain
A hawk on a hill
The 17th day of the moon
An oak in the woods
The fire in your chest
I am, I am, I am
What I am

Look at my eyes then you will see


I’m the ghost that lives inside your head
Look at my eyes once again, you will see
I’m the sword that you have in your hand

The powerful sound keeps going on


It echoes as lions roar
I am the truth, not the only one
My soul – your soul
Grows – grows fast

A wave in the ocean


A tear from the sky
The 17th day of the moon
The salt in the sea
The light from the sun
I am, I am, I am
What I am

(Chorus)
Cherish all my life
Spreading through the world

The time is gonna tell


What lies behind the truth into my life
A lake on a plain
A hawk on a hill
I am, I am, I am
What I am

(Chorus)
2

Do meu coração
Após uma noite de descanso perto do riacho, que percorre a colina sagrada,
Amergin montou para retornar ao litoral. Imaginava a surpresa e o pesar de
Eithear no momento em que tivesse ciência dos acontecimentos.
A cavalgada não se mostrava cansativa nem para o mago, nem para o
animal. Estranhamente, ele nem sequer recordava do percurso. A lembrança
esvaíra-se como um sonho.
Chegou a uma floresta com altas árvores de troncos delgados, espaçados
o bastante para um homem a cavalo passar sem se preocupar com os galhos
mais baixos. O chão estava marcado por muitas trilhas, talvez indicando a
proximidade de algum povoado.
A temperatura caiu abruptamente. Um frio sem precedentes. O inverno
ainda estava longe, porém o sopro gélido cortava sua pele. Amergin viu
uma mulher sentada em um tronco caído, seu rosto tão enrugado quanto o
toco. Ela olhou atentamente para a copa de uma árvore. Não havia mais
ninguém por perto. Ele se aproximou.
– Senhora, estás sozinha nesta floresta! Moras nas redondezas?
– Moro onde o coração humano se encontra, mago: na sabedoria da
folhagem do carvalho, que desaba em honra da época mais fria.
– És uma druidesa? Vives da comunhão com a natureza?
– Procure em ti mesmo e descobrirás.
Após dizer tais palavras, a anciã voltou seu olhar do alto da árvore para o
semblante de Amergin e sorriu. Seu rosto não era corado como o de um ser
humano normal, porém de uma tonalidade cinzenta levemente azulada. Em
seus olhos, muito verdes e sem pupilas, o branco misturava-se e tremulava
como ondas no mar. Os cabelos grisalhos trocavam mechas com fios cor de
cobre.
O sacerdote ficou um pouco perplexo. Enfrentara uma fúria divina no dia
anterior e estava esgotado. Outro confronto seria fatal. Era uma deusa,
certamente, e não uma druidesa. Entretanto, como ela não demonstrava
ameaça, ele permaneceu tranquilo. Pensou nas peculiaridades do momento:
o frio repentino, a aparente velhice da mulher, seus olhos e rosto, a forma de
falar, a sutileza de suas palavras...
– És Cailleach Bheur,15 Senhora do Inverno!
– Ah, percebeste! Teu coração é teu guia, druida. Tua mente racionaliza
somente para que ele perceba as mensagens, e sua réplica é sempre
verdadeira. Segue-o.
– Por que estás aqui, nobre deusa?
– Neste momento, contemplo os pássaros, sentada à beira do lago, para
garantir que quatro cisnes brancos continuem a banhar-se em segurança.
Não deixarei que o lago congele e, dessa forma, pereçam os filhos de Llyr.
Eu os protegerei do inverno inclemente.
– Mas não há pássaro algum, tampouco um lago por perto!
– Justamente porque não estou aqui, Amergin.
Tão breve quanto intenso foi aquele momento de inverno. Tudo
desapareceu como em uma miragem. O feiticeiro entendeu então que, na
verdade, a deusa nunca estivera lá, mas habitava seu próprio interior.
Quando a visão se dissipou, ele percebeu que estava quase chegando em
seu destino. Viu o mar, as naus e seus irmãos. O acampamento depois da
colina, os cavalos e demais animais. Parte em trote rápido em busca de
Eithear.
Foi com euforia mesclada ao pesar que comunicou ao outro druida a
vitória sobre as Tuatha Dé Danann, a perda do irmão Uar, a ira de Morrígu
e o massacre de um exército inteiro.
Eithear perdeu as palavras. Misturaram-se sentimentos desconexos em
seu íntimo: alegria, dor, saudade, tristeza. Ele permaneceu calado, abaixou a
cabeça e partiu rumo à floresta, sem dizer uma única palavra, deixando
Amergin sozinho.
No limite de sua capacidade física e mental, Amergin realmente precisava
de repouso. Seu cavalo também não seria capaz de transportar nem sequer
uma criança. Ele retornou ao interior do acampamento a pé, para poupar o
animal. Seguindo-o desde que deixara a floresta, vários síabrai16
observavam a tristeza e o cansaço do homem cabisbaixo, que entrou em sua
tenda. Enternecidas, ficaram à entrada de prontidão, como se montando
guarda para assegurar o repouso do milesiano.
A noite descia com quietude inesperada, a mesma calma que veria o
nascer do dia seguinte. Ele saiu para caminhar logo cedo. Seus passos,
macios como flocos de neve recém-caídos do céu; sua mente, como uma
gaivota a aproveitar a brisa marítima, mergulhou distraída na imensidão
azul.
Uma espessa névoa matinal ofuscava a entrada da floresta. Passou por ela
e viu a colina. Seguiu uma trilha, feita por antepassados, para que chegasse
ao seu lugar de contemplação. Coletou alguns gravetos secos, colocou-os
uns sobre os outros e fez uma pequena fogueira. Sentou-se diante dela,
fixou seu olhar nas labaredas dançantes. Inspirou e expirou várias vezes.
Deixou a melodia dos pássaros e o sussurro longínquo do mar adentrarem
seus tímpanos. Inspirou e expirou repetidamente, cada vez com menos
intensidade, até que seu espírito vibrasse na mesma sintonia da natureza.
Ela e Amergin comungavam o mesmo canal.
– Conte-me, pequena colina, teus segredos mais profundos, tu, que aqui
chegaste antes dos homens. Abrigo do potente carvalho, abriga também
meu coração em teus braços fortes. Os rios, tuas veias, correm do teu ventre
escuro para o mar, desafogando as mágoas do universo. No inverno
congelante, encontro refúgio nos bosques que te adornam. Encontro o amor
em teu verdejante campo, em meio aos arbustos e árvores onde os pássaros,
mensageiros do céu, cantam juntos o mais puro amor que sinto, ressoando o
encanto de todos os espíritos dos três mundos.
Uma estranha voz, rouca e imponente, ecoou pela floresta:
– A terra e Dagda saúdam-te, milesiano. A prosperidade da Ilha Verde
depende de vós todos, especialmente de teus dons únicos, ó sábio. Reúna os
quatro tesouros que as Tuatha Dé Danann trouxeram das ilhas ao norte do
mundo: a Pedra da Soberania, a Lança da Realeza, a Espada da Vitória e o
Caldeirão da Abundância.17 Oferece-os a Danu, pois assim vencerás a besta
e desencadearás uma era de paz!
O espírito de Amergin regozijou-se com a revelação. Um fio de energia
subiu por sua espinha e ele começou a contemplar o passado e o futuro de
seu mundo, alimentado por ela.
Um escudo, um guerreiro, uma espada, em sua testa o emblema reluzente
de uma nação, um ser quase indestrutível que estava por vir. Seu coração
amedrontou-se diante das visões. A ilha mudaria após a chegada desse
bravo herói. Ele via luz. Via caos. Estava confuso perante essas imagens.
Multidões de seguidores, exércitos, druidas, feitiços, monumento de pedra,
oceano, sangue.
No céu, o falcão voou e crocitou alto – mas escutou também o silêncio de
sua alma alada. A melodia penetrou e reverberou do solo fértil da floresta.
Ao procurar por si mesmo, respirou esses sentimentos e seu ser se encheu
de alegria e bondade.
De seu coração, uma colorida chuva de cânticos espalhava-se por toda a
colina. Os abaicc18 acordaram com a cantoria, os síabrai se agitaram,
dançando em círculos, despertando as flores e as plantas.
Ele pensou: “Os quatro tesouros... Onde encontrá-los?” A voz em sua
mente silenciou. “Quem é a besta temível, que atormenta os meus
pensamentos? A natureza é a essência mais sábia e justa deste plano, nunca
erra. Cabe-me apenas confiar.”
O amanhecer finalmente mostrava sua soberania. Um sol magnífico
brilhava intensamente sobre as águas. Na mata, as árvores em coro com os
pássaros acompanhavam a melodia encantada.
Tudo resplandecia, a vida contagiava o ambiente. Cervos e seus filhotes
apareceram subitamente do meio da floresta em uma brincadeira inocente,
pulando e correndo uns atrás dos outros, para depois se esconderem de novo
nos arbustos.
Dois síabrai brancos foram ao encontro do mago para falar sobre os
mistérios do amanhecer.
– Sábio, as nuvens são o teu caminho. Contempla-as. O Caldeirão
Inesgotável do Dagda encontra-se no caminho nebuloso, oculto nas raízes
do carvalho.
– Obrigado por ouvirdes minhas preces, crianças da terra.
Sem parar, elas continuaram a sobrevoar o bosque, protegendo todo
aquele magnífico lugar. Era sempre assim.
Aquele dia era perfeito para que ele se recuperasse, aproveitando a
calmaria da enseada. Havia um radiante arco-íris! Muitas questões
atormentavam o seu ser: quem era esse homem invencível que via em seus
sonhos? Por que tamanha ira em seus olhos? Ele era realmente um dos
seus? Como poderia interpretar essas visões?
Antes de chegar a essa ilha, ele conseguia entender os próprios presságios
com muita clareza e tranquilidade. Inclusive em alto-mar, sentindo a
vibração do carvalho na selva, havia imaginado que essa dádiva seria
intensificada. Espantou-se que acontecia o oposto!
15 Cailleach é uma bruxa divina, uma criadora, uma deidade ancestral ou uma ancestral divinizada. No
folclore escocês, a criação de numerosas montanhas e grandes colinas é atribuída à Cailleach, formadas
quando pedras acidentalmente caíram do avental da deusa enquanto ela perambulava pela terra. A
Cailleach carrega um martelo para talhar montanhas e vales e é considerada a mãe de todos os deuses e
deusas. Ela personifica o inverno: é a pastora dos cervos, seu cajado congela o chão, ela domina o ano
do primeiro dia do inverno ao primeiro dia do verão, cedendo então seu lugar a Brigit, a filha de Dagda,
embora alguns considerem que a Cailleach e Brigit sejam duas faces da mesma deusa.

16 Significa “fantasmas”, síabair no singular. Originalmente, os síabrai eram aes síde menores,
semelhantes aos álfar (“elfos”) da mitologia nórdica.

17 O antigo poema Tuath De Danand na set soim (“As Tuatha Dé Danann das joias preciosas”),
preservado no Leabhar Buidhe Leacáin (“Livro Amarelo de Lecan”, século XV), menciona os quatro
tesouros das Tribos de Danu: “De Failias para cá a Lia Fáil/ Que gritava sob os reis da Irlanda./ A
espada na mão do ágil Lugh/ De Gorias – uma escolha de riquezas vastas.// De Findias distante sobre o
mar/ Trazida foi a lança mortal de Nuada./ Um grande e poderoso tesouro de Murias,/ O Caldeirão do
Dagda de feitos elevados.”

18 “Anões”, no singular abacc.


Do meu coração
Eu ouço o silêncio do falcão noturno
Eu respiro os sentimentos do meu coração

Pequena colina, conte-me sobre os segredos


As batidas do meu coração, o abrigo para seus braços
Rio precioso, brilhe em paz
Eu encontro amor neste inverno
Cante junto sobre o mais puro amor

Quando eu procuro por mim mesmo


Eu encontro uma águia
Procurando por mim mesmo, a única da espécie

Eu ouço o silêncio do falcão noturno


Eu respiro os sentimentos do meu coração

Evocando o feitiço das pequenas fadas


Perto do bosque, onde o vento carrega
O espírito abençoado de uma estrela brilhante
Encontrar o amor não está tão distante

Quando eu procuro por mim mesmo


Eu encontro uma águia
Procurando por mim mesmo, a única da espécie

(Refrão)

A natureza, no mundo selvagem


É onde fica minha casa, onde meu legado repousa

Procurando por mim mesmo, eu encontro uma águia


Procurando por mim mesmo
Quando eu procuro por mim mesmo, eu encontro uma águia
Procurando pela única da espécie
(Refrão)
From my heart
(Música: Marcelo Moreira / Letra: Eduardo Amaro e Alexei Leão)

I hear the silence of the nighthawk


I breathe the feelings from my heart

Little hill, tell me about secrets


My heartbeat, the shelter for your arms
Precious river, shine in peace
I find love in this winter
Sing together about the purest love

When I am searching for myself


I find an eagle
Searching for myself, one of a kind

I hear the silence of the nighthawk


I breathe the feelings from my heart

Evoking the spell of small fairies


Near the woods, where the wind carries
The blessed spirit of a shining star
Finding love isn`t way too far

When I am searching for myself


I find an eagle
Searching for myself, one of a kind

(Chorus)

The nature, into the wild


Is where my home is and my legacy lies

Searching for myself


I find an eagle
Searching for myself
When I am searching for myself
I find an eagle
Searching for one of a kind

(Chorus)
3

Na floresta
Caminhando em busca do precioso carvalho, já perto do meio-dia, sol a
pino, Amergin sentiu seu espírito desabrochar suavemente, tal qual uma
cachoeira na floresta, cuja alma bate nas pedras produzindo música, igual
uma árvore na primavera, sorrindo ao ver seus rebentos tomarem cor e
perfume, feito uma criança na chuva, brincando e deixando sua mente voar
livre como uma águia, ao sentir os pingos doces das nuvens acariciarem a
sua face.
Chegou a uma clareira e avistou uma trilha, rodeada de ciprestes e outras
árvores de gerações passadas. Foi seguindo uma revoada de síabrai, que se
agitava à sua frente. Os pequenos seres comunicavam-lhe seus pensamentos
e estimulavam-lhe a seguir as nuvens. Olhou para o céu e viu várias
formações singulares. Por vários minutos, não vislumbrou nada, até que
observou um formato específico e percebeu que era o de uma árvore. Seu
cajado começou a brilhar, projetando uma intensa luz verde que apontava
para uma formação de pedras cobertas de musgo, sobre a qual uma cobra
serpenteava e erguia a cabeça na direção do abrigo das árvores no limite da
floresta. Seguiu a luz mística até chegar ao lugar onde, iluminado, um
carvalho repousava. Resplendoroso, soberbo, imponente.
A luz do sol, que aquecia o gigante verde, inundou seu coração,
dissipando a noite. O voo do falcão era o horizonte da sua visão, a curva do
rio era a linha do seu sorriso, a força da terra era a canção do rouxinol, que
enternece a existência humana.
O carvalho-ancião, um recipiente de sabedoria que encarna as origens de
Amergin, saudava a sua chegada. Como pequenos vaga-lumes, que vão se
expandindo em fachos circulares, a aura mística do carvalho penetrou em
seus olhos, atingindo a sua energia.
– Sábio Amergin, o que aflige tua alma? Sinto vibrações rubras,
descompassadas e intensas percorrerem tuas emoções.
– Precioso Ancião de Luz, tenho várias visões sangrentas que me
atormentam incessantemente. Vencemos! As Tuatha Dé Danann foram
derrotadas! A terra encontra-se em paz! Por que tais presságios?
– O que antevês é o futuro, bravo sacerdote. Vês a glória dos povos da
ilha!
– Vejo um cão raivoso atacando uma criança! Vejo sangue de nobres
guerreiros, batalhas terríveis, excruciantes; vejo um homem invencível
derrotando exércitos. Quem é ele?
– Vês o futuro dos povos da ilha! – insistiu o ser iluminado.
– Mas não compreendo...
– Ouça atentamente, filho de Mil, ouça teus antepassados e vislumbre os
feitos dos que estão por vir! Mantenha sereno o teu espírito, ore e peça
proteção aos deuses, entre em comunhão com a natureza, e o universo dar-
te-á a resposta. Ouça atentamente, filho de Mil, o que vês é a glória! E isso
te basta no momento.
– Tua sabedoria é eterna. Apesar de não compreendê-la em sua plenitude,
guardarei teu ensinamento sempre em mim. Grandioso ancião, os seres
elementais me informaram que possuis um dos tesouros das Tuatha Dé, o
Caldeirão da Abundância.
– Sim, eu o possuo. E, segundo a minha inteligência atemporal, devo
entregá-lo a ti.
Um vento gelado se manifestou na mata densa, espalhando em rodopios
rápidos as folhas caídas da imensa árvore milenar, revelando o artefato.
Amergin intuitivamente sabia o que fazer: aproximou seu cajado da poção
dentro do Caldeirão, absorvendo toda a energia. Dos olhos do mago
milesiano saltaram raios, e o poder de seu cajado, como em um redemoinho
de cores, iluminou todo o lugar. Quando o lampejo multicolorido cessou, o
Caldeirão desapareceu. O amuleto azul do cajado do druida piscou uma vez
mais e passou a carregar a marca do Dagda.
Nesse instante, tudo se esvaiu em pétreo silêncio e apenas indagações
ficaram em seu espírito.
Na terra sagrada, ao redor do carvalho, aglomeraram-se folhas e galhos
secos, que logo tomaram uma forma humana. O Homem de Folhas abriu
vagarosamente os braços e, com um sinal de mão, apontou para a trilha de
onde o mago veio. Ele tinha de partir, então. Seus olhos, idênticos à luz da
árvore milenar, disseram-lhe que não era um pedido, mas uma ordem.
Caminhou até visualizar uma adjacência, por onde percebeu uma clareira,
um descampado. Era um ótimo lugar para orar e pedir orientações.
Preparou-se para realizar o chamado antigo, ensinado pelos seus mestres,
que havia muito cavalgavam com o séquito dos deuses junto aos seus
ancestrais.
– Pelo fogo, pela pedra, pela onda do mar turbilhonante, que se abra a
porta entre os mundos!
Cravou seu cajado no solo e absorveu o poder da terra que ele canalizava.
Erguendo os braços e jogando a cabeça para trás, lançou ao céu seu
chamado:

Na noite escura esperais


Para guiar-me na viagem.
Com voz forte na outra margem
Meu nome chamais:
Tremo ante a correnteza,
O urso e o javali são meus guias.
Guardiões escuros dos Portais,
Deuses terríveis dos caminhos
Que levam ao Outro Mundo,
Não me deixeis no meio do rio
Sob a fúria da tempestade.
Gamo e Touro muito sagrados,
Grandes espíritos curadores,
Que vossas lanças me protejam.
Sou fogo puro e brilhante,
As ondas não me vencerão.
Das profundezas ao alto
Estenda-se a Árvore da Vida.
Ó grande, santíssimo Lenho,
Verdejante, sempre em chamas,
Cresce dentro de mim!
– Que vibrações são estas? – espantou-se Danu, ao sentir o potente
encantamento proferido pelo druida. – Há algo muito errado acontecendo no
outro plano. Um fiel sacerdote em tamanha agonia, contradições
energéticas, pensamentos desfocados. É tempo de uma manifestação!
Um brilho intenso foi emitido a poucos metros do druida milesiano
quando este se preparava para deixar a clareira, assustando-o. Da esfera de
luz mágica, uma imponente voz o interpelou:
– Amergin, não te perturbes, sou Danu e vim em teu auxílio!
– Respondeste a um chamado que não se dirigia a ti. Honra-me tua
atenção, Mãe Venerável. Sei que a ti devo entregar os quatro tesouros. O
que acontecerá se não estiverem em tuas mãos?
– Pertencem-me porque sou fonte de poder eterno. Mais do que isso,
neste momento, não compreenderias.
– Talvez eu não seja o arauto mais indicado para essa empreitada, nobre
deusa. Sinto uma angústia inexplicável em meu âmago.
– Segue-me, sábio sacerdote. Talvez tua chaga espiritual tenha fim em
breve.
Eles continuaram o diálogo durante o percurso. O mago milesiano
aprendeu muito com a deusa-mãe. Ela, por outro lado, não desejava o
aprendizado, estava intrigada e decidida a descobrir o que se passava com
aquele mortal. Ela percebeu nele a ação de um feitiço de sua própria gente,
mas não havia indícios de sua origem. Algo muito poderoso o concebera.
Quem estava atacando Amergin sem que ele sequer percebesse?
A exemplo do tempo, o espaço, para os deuses, também é circunstancial.
Assim eles conseguem a onipresença: interferindo no tempo para encurtar
as distâncias, relativizando-o em uma espiral – nada é o que aparenta ser e
tudo está intrinsecamente relacionado, como em uma sobreposição e
interseção de fatos.
Eles chegaram sem demora a um local de cerimônia, cujo poder latente é
equiparável ao Templo das Pedras Suspensas, a longas noites de distância
de onde estavam.
O local era um descampado verdejante, com uma construção de pedra
projetada para que um raio de sol atravessasse um vasto corredor,
iluminando o piso da câmara central, onde jazia uma mesa de granito,
repleta de oferendas.
Amergin sente algo muito estranho, sua cabeça começou a rodar, seus pés
tremeram, como se houvesse um terremoto no chão que pisava. Uma
sensação de estranha familiaridade percorreu suas veias. Danu sabia do que
se trata – o druida está em contato com o cosmo infinito e a energia de
Cúchulainn19 o afetava. Ainda não era chegada a hora de o herói viver em
carne. No entanto, na presença da deusa, passado, presente e futuro eram
meros detalhes. O sangue do ainda não nascido atordoava o mago.
– Danu... – suspirou ele.
– Acalma-te. Concentra tua mente em teu coração. Pacifica teu espírito.
Em pouco tempo, Amergin conseguiu canalizar a energia divina e
centralizar o seu pensamento. Ainda um pouco enjoado, ele perguntou:
– Qual o motivo do meu mal-estar?
– Não te preocupes. Isso não é importante e passará. Entre em Brú na
Bóinne20 agora, siga o raio de sol e entrega-te à revelação.
O feiticeiro seguiu o caminho indicado pela deusa, que logo depois o
deixou sozinho, voltando para Tír inna n-Óc.
Ao chegar perto da mesa de granito, o raio de sol que incidia sobre ela
destacou alguns elementos. O druida colocou sobre ela um amuleto que
trazia em seu pescoço, como oferenda. Fechou os olhos e se concentrou,
mentalizando energias de cura.
As paredes laterais eram decoradas com algumas inscrições e várias
plantas; na parede central, havia um desenho circular de um carvalho, em
fios de prata, com sua copa espalhada para fora do contorno da esfera.
Conforme Amergin louvava, a luz solar subia até atingir o símbolo sagrado.
Quando isso ocorreu, ele brilhou aos poucos e ficou transparente, revelando
uma passagem secreta.
Ele a atravessou e se deparou com um recinto deveras perturbador, muito
escuro. A pouca luminosidade, oriunda de algumas tochas, projetava
sombras que pareciam vivas, contorcendo-se no chão e iluminando algo
desesperador: cadáveres, muitos putrefatos, por todo o lugar.
Uma silhueta projetou-se na sala. Uma das sombras tomou o aspecto de
uma mulher e se encarnou. Ela caminhou por cima dos corpos, como se
fosse a coisa mais natural do mundo, até chegar bem perto do feiticeiro.
Seus olhos felinos com pupilas amarelas fitaram Amergin. Somente isso
bastou para colocar o coração dele em pânico profundo.
– Temes minha presença! – disse a estranha criatura.
Ele não respondeu. O pavor cuidou de mantê-lo em silêncio aterrador. Era
Scathach, a deusa que provocava medo no coração de qualquer mortal. Sua
mera presença era capaz de transformar o mais corajoso guerreiro no mais
indefeso menino.
– Teus músculos não se movem, mas tua audição continua boa. Portanto,
ouça: deves ir a Tír inna n-Óc, lá encontrarás teu destino. A morte continua
à espreita, Amergin. Sê precavido.
Após a advertência, a deusa o transportou para a sua tenda, perto do
litoral. Ele meditou muito acerca das palavras dela, preocupou-se com sua
tribo, com seus familiares e consigo. Percebeu a sua pequenez perante os
deuses e a arrogância com que se dirigiu a eles. Teria ele forças suficientes
para ser o grande arauto de que o seu povo tanto necessita?
19 Filho de Lugh e de Dechtire, irmão do rei Conchobur Mac Nessa, seu nome na infância era Sétanta.
Passou a chamar-se Cúchulainn (“Cão de Culann”) depois de, desarmado, matar o feroz cão de guarda
do ferreiro Culann quando ainda um menino, oferecendo-se para tomar seu lugar enquanto não se
encontrasse um substituto. Cúchulainn é o maior guerreiro da mitologia irlandesa e a principal figura
nas lendas do “Ciclo de Ulster”, cujo mais importante relato é o Táin Bó Cúailnge (“Ataque às Vacas
de Cúailnge”).

20 Palácio do Bóinne [grande rio da província de Leinster, Boyne em inglês], também conhecido como
Newgrange, é o maior e um dos mais importantes sítios neolíticos da Europa. Anterior ao século XXX
a.C. (mais antigo que as pirâmides do Egito), o complexo é formado por tumbas de câmara, menires,
círculos de pedras e outros recintos pré-históricos. Newgrange (Sí an Bhrú, “Síd do Palácio”) é famoso
pelo alinhamento astronômico de sua entrada principal com o solstício de inverno, pela arte abstrata
(círculos, espirais, arcos, losangos e várias outras formas), que decora muitas de suas pedras, e por suas
ricas associações mitológicas (teria sido morada do Dagda e depois de Óengus Óc, filho do Dagda e de
Boand).
Na floresta
Andando pela floresta
Eu sinto este mundo que tenho vivido
Dentro da luz

A voz rouca que mostra o caminho


Não será curada
Não morrerá

O choro do meu coração


Salva minha alma esta noite

O rio corre como a água em minhas veias


O som trovejante de um rouxinol
Asas quebradas, ainda cantam na floresta
Os vaga-lumes dançam durante o voo

Fraco novamente eu rezo pela chuva

Abra meus olhos


Leve embora tudo o que eu chorei
Dê-me vida – dê-me mais vida
Traga de volta a luz
Mostre-me o caminho
Agora é hora de voar
Hora de viver a sua própria vida!

Eu sei que não me perdi nesta jornada


Oh, me salve!

(Refrão)
In the Forest
(Música: Cláudia Barron e Marcelo Moreira / Letra: Eduardo Amaro e Alexei
Leão)

Walking by the woods


I feel this world I’ve been living
Inside the light

The husky voice that shows the way


Would not be healed
It would not die

The cry from my heart


Save my soul tonight

The river runs like the water in my veins


The thundering song of the nightingale
Broken wings, it still sings in the forest
The fireflies, they dance in flight

Weak again I pray for rain

Open my eyes
Take away everything I have cried
Give me life – give me more life
Bring back the light
Show me the way
Now it’s time to fly
Time to live your own life!

I know that I’m not lost along this journey


Oh, save me!

(Chorus)
4

Brilho solar
Amergin voltou para o acampamento quando o sol começou a se deitar. Sua
ânsia pelo bem-estar daquelas pessoas era proporcional à sua exaustão
interior. A doce lua começou a emitir seu sorriso nas águas salgadas. Ao
longe, gaivotas voaram de volta às pedras nas quais muitas fizeram seus
ninhos. Era hora do descanso noturno.
O druida foi em direção às ondas. Um conjunto de pedras, logo adiante,
revelava um lugar ideal para contemplação.
Ele não compreendeu o motivo pelo qual continuava com angústia, a voz
de Tír inna n-Óc havia sido bem clara. Ele ficaria em paz após definir o
legado da batalha travada, mas a sensação errática insistia e crescia. Isso o
estava deixando deveras desgastado.
Quando olho para o céu distante e vejo teu semblante nas águas, desejo-
te mais do que deveria, meu ser clama por tua presença, Grande Mãe.
Busco regeneração e conhecimento, pensou Amergin, suplicando pela ajuda
da deusa.
– Ouve meus lamentos, Grande Mãe, dá-me teu encantamento e purifica
minha percepção! Concede novamente teu amor celeste a este servo terreno!
Que a magia de Tír inna n-Óc floresça intensamente em mim! – Ele falava
com a lua cheia, perguntando se o seu amor voltaria em breve, esquecendo-
se de que o verdadeiro amor nunca morrerá.
O amor adormeceu dentro dos Homens. Às vezes, quando eles enfrentam
adversidades que fogem à compreensão a que estão restritos neste plano
existencial, os seres humanos percebem isso. Apesar dessa fraqueza
aparente, a deusa o compreendia.
No alto céu, as estrelas começaram a dançar, aglomerando-se em um
único ponto, que aumentava conforme elas se uniam, explodindo em um
feixe de luz em direção à areia da praia. A Senhora se manifestava.
– A angústia que domina teu coração, mago, não condiz com a sabedoria
do teu espírito, nem com a firmeza de teus propósitos. Almejas
compreender os desígnios dos deuses. Pressentes o equívoco desse intento e
cruelmente te atormentas.
– Tu, que dominas as estrelas e vês com claridade minha agonia, sabes
como curar essa doença astral? Ajuda-me! Eu te suplico!
– Eis que não me está predestinado esse futuro, honrado filho de Mil!
– Vês e compreendes! Por que não me ajudas?
– Sim, compreendo-te e me compadeço. Ajudar-te-ei em teu caminho,
Amergin, na medida do possível.
– Peço por mim e por meu povo!
– Um presente daquela que reina soberana na noite estrelada!
Com um movimento circular de mãos, a deusa abriu um pequeno portal,
de onde saiu voando o falcão místico criado pelo feitiço de Amergin,
entoado no décimo sétimo dia da Lua. A ave foi ao céu e deu meia-volta,
pousando no braço estendido da deusa.
– O nome dele é Suthain.21 A partir de agora, que mago e falcão sejam um
só! Torna-te carne, ser emplumado, que tuas penas sejam o sangue deste
druida, torna-te carne, como carne é tua metade humana!
Relâmpagos e raios escaparam dos olhos da ave e do druida, atordoando-
os por alguns instantes.
– Consigo entender o falcão como se fosse um de meus irmãos!
– A ave te compreende da mesma forma, feiticeiro. Sois agora um só e
teu destino não mais me diz respeito. Devo partir, pois já interferi demais
nas lutas dos homens.
– Espera! Ainda preciso de tua orientação!
– Fecha teus olhos, Amergin.
– Por quê?
– Fecha-os apenas.
Sem titubear, Amergin acatou o comando da deusa, mantendo os olhos
fechados, enquanto protegia a cabeça de seu falcão, abraçando-o e
envolvendo-o na túnica. O sábio druida sentiu algo diferente no ar, as
frescas brisas marítimas cessaram e o solo ficou quente, como se ele pisasse
em brasas!
– Suporta o fogo, milesiano, prova teu valor aos deuses!
Amergin resistiu à provação corajosamente por vários minutos. Quando
os gritos da sensibilidade ultrajada de sua carne diminuíram de intensidade,
o mago percebeu que conquistou a vitória e a confiança da deidade, de
quem emanava forte energia. Amergin sentiu o ar que preenchia seus
pulmões como a luz pura de um novo dia esparramando-se pelo horizonte.
– Tu és quem? – indaga perplexo.
– Sou aquele que alimenta a mais inflamada paixão, que comanda a ação
mais temerária, que sopra a brisa no auge do verão. Ofereço calor quando a
roda das estações cobre a terra de branco. Sou o pensamento primordial,
guia do corvo em seu voo, força que colocou as estrelas em movimento e
determinou o eterno caminho que cada uma deveria seguir. Ao redor de
minha cabeça saltita o rebanho inquieto das nuvens. O trovão que te faz
estremecer é um eco distante do meu suspiro. Sou aquele que sussurra
respostas nos sonhos. Chamo-me Dian Cecht22 e em minha honra
vaticinarás a glória futura do teu povo!
– És fogo e sol, prosperidade e cura! És a fonte da grande proteção!
– Venho em teu auxílio a pedido de Danu. Em breve, tuas angústias terão
fim. A celebração em que sou honrado, o Bealtaine, aproxima-se. Ao chegar
esse dia, irás ao lugar sagrado onde se localiza o antigo santuário de pedras
suspensas e entoarás o feitiço. Assim chamarás a atenção dos habitantes de
Tír inna n-Óc. Deverás estar com teu falcão e na presença de teu confrade
Mallach, que te proverá a energia da cura para a realização desse
encantamento.
– Quais são as palavras sagradas, meu senhor? Esse encantamento curará
minha chaga?
– Teu espírito revelar-te-á a verdade, as palavras estão gravadas em teu
coração, nobre mago. Se ali não as encontrares, não estarão em lugar algum.
Confia em teu deus do fogo!
– Confio em tua honra e no cumprimento de tua palavra.
– Que assim seja. Enviar-te-ei para Tír inna n-Óc, onde enfrentarás um
oponente formidável. A Lança da Realeza está em teu poder. Se venceres,
ela será teu prêmio.
Em um instante etéreo, a luz solar da divindade fez o corpo do mortal
brilhar de poder. Ele foi transportado para Emain Ablach, a Fortaleza
Encantada das Macieiras. O caminho foi abert6o e ele sabia como segui-lo.
Ao longe, via-se o Templo de Luz resplandecendo, aves míticas voavam
ao seu redor. Tudo era tênue como em uma ilusão e, ao mesmo tempo, tudo
era nobre e radiante! As árvores que circundavam o descampado eram de
várias espécies, e o diâmetro de seus troncos denunciava uma idade
multissecular. Eram todas gigantes e imponentes – carvalhos, teixos,
aveleiras, amieiros e tantas outras, que pareciam abraçar-se em comunhão
ímpar. O vento crepuscular, que embalava as seculares árvores,
repentinamente se tornou um vendaval.
Um ponto luminoso surgiu entre as nuvens, o clamor retumbante de
trovões tomou conta de todo o lugar. Faíscas incandescentes laranja-
avermelhadas estrondearam pela atmosfera, atingindo vários pontos no solo,
atordoando o sábio druida. Uma carruagem revestida de placas de estanho e
adornada com incontáveis ametistas e topázios surgiu de uma pesada nuvem
púrpura, conduzida por dois enormes corcéis azuis que, com uma única
mão, um cocheiro de cabelos e barba negros e aspecto severo manejava. Sua
couraça de bronze ostentava o sinal da espiral dupla delineada em rebites de
prata.
Nascido em uma geração de seres divinos de idade incomensurável,
Taranis, o Mestre do Trovão, parou o veículo, cujas rodas quebraram o
silêncio do firmamento, e desceu à terra. Jogou a cabeça para trás e deu um
grito que fez estremecer os alicerces das montanhas. Ergueu seus braços
para o alto e duas formas apareceram em suas mãos. Na esquerda, a roda
áurea das estações, sua insígnia e seu escudo; na direita, a lança invencível
cobiçada pelos reis.
Taranis! Não posso vacilar diante do Senhor do Céu!, pensou Amergin,
sabendo o valor como guerreiro desse adversário, cujo nome seus próprios
antepassados nunca pronunciavam sem temor. Jamais homem ou imortal
conheceu o limite de seu poder. Com esse pensamento, o druida tomou a
iniciativa. Rodopiando seu cajado, ele abriu um vórtice energético que
atingiu Taranis, paralisando-o. Amergin, logo em seguida, bateu o artefato
no solo e, pela pedra azul em seu topo, libertou o poder do falcão místico,
que atacou a divindade, lançando-a longe da carruagem.
Taranis ficou enfurecido. Deu ordens a seus cavalos, que começaram a
trotar e, dos cascos, faíscas imensas surgiram. A roda dourada canalizou
energia e a Lança da Realeza a devolveu para Amergin com um raio
violento, que o derrubou com toda a força.
Agachado, pensou o sacerdote atordoado: “Não sou capaz de defletir
outro golpe assim, a força do raio é uma das mais poderosas da natureza.
Fatalmente sucumbirei, é questão de tempo. Mas como detê-lo?” Enquanto
isso, Taranis preparava-se para um novo golpe.
Observando como o deus produzia seu poder, Amergin deduziu: “Mas é
claro! O corpo de Taranis não é imune ao seu próprio poder, que emana dos
cavalos! Quando um raio cai sobre a água, ele se dissipa, afetando tudo o
que está ao seu redor, mas os navios não são afetados, pois a madeira dos
cascos os protege.”
Dessa forma, ele entoou o cântico de Emain Ablach, liberando o
Caldeirão da Abundância e, por um comando gestual, fez a água encantada
de dentro do artefato se transformar em uma onda, que foi arremessada
contra Taranis, ao mesmo tempo em que ele liberava uma nova descarga em
sentido oposto. O choque das duas potências fez o chão tremer. Para se
proteger do impacto, o druida transformou sua pele em casca de carvalho e
a energia residual foi absorvida pela árvore sagrada. Taranis não possuía tal
proteção mágica e caiu, arrebatado por sua própria força.
Nesse instante, a Lança ganhou vida e foi à mão de Amergin. Quando ele
a tocou, uma intensa luz azul-esverdeada a fez desaparecer: seu cajado
absorveu a essência do dom e uma nova inscrição foi gravada nele: a
insígnia da lança, bem abaixo do símbolo do Dagda.
– Louvo tua vitória, sacerdote!
– Dian Cecht!
– Derrotaste aquele que nunca tombou em batalha: um dos mais
poderosos dentre os deuses de sua linhagem. Com astúcia divina, soubeste
usar contra ele sua própria força. A Lança da Realeza é tua por
merecimento. Agora vai! A Noite dos Fogos aproxima-se, mas distante está
o fim de tua missão.
21 “Eterno.”

22 Dian Cecht é o curandeiro das Tuatha Dé Danann, deus da medicina e da regeneração. Filho do
Dagda e avô de Lugh Lamfhada, foi o criador do braço artificial que deu ao rei Nuadu seu epíteto
(Airgetlám, “Mão de Prata”). Seu nome pode significar “Mistura Rápida”, talvez referência ao preparo
de poções curativas. Entre os celtas, bem como em várias outras culturas da Antiguidade, uma das
formas mais populares para se descobrir a cura de uma enfermidade era orar por um sonho divinamente
inspirado, daí a ligação do deus da cura com sonhos e vaticínios.
Brilho solar
Quando eu olho para o céu distante
Eu sinto o meu espírito se libertar
Eu te desejo mais do que deveria

Eu sou o mais antigo pensamento


Eu dei penas aos falcões
Eu enviei o sol para iluminar suas caminhadas
Eu carreguei as nuvens em meus ombros
Eu fiz os trovões ressoarem
Eu sou a antiga questão

Ele fala com a lua cheia


Ele pergunta: "Meu amor volta logo?"
O mais alto amor nunca morrerá
Ele segue os raios do mais puro brilho solar

Eu sou o escolhido, o único


(ele é o escolhido, o único)
Aquele que alimenta a mais doce paixão
E comanda a mais louca ação
Aquele que refresca o verão
Esquenta o inverno

Assim como o mais antigo pensamento


Eu dei penas aos falcões
Eu enviei o sol para iluminar suas caminhadas
Eu carreguei as nuvens em meus ombros
Eu fiz os trovões ressoarem
Eu sou a antiga questão

Ele fala com a lua cheia


Ele pergunta: "Meu amor volta logo?"
O mais alto amor nunca morrerá
Ele segue os raios do mais puro brilho solar
(Refrão)
Sunshine
(Música: Marcelo Moreira / Letra: Eduardo Amaro e Alexei Leão)

When I look at the distant sky


I feel my spirit is setting free
I wish you more than I should

I’m the oldest thoughts


I gave feathers to the hawks
I sent the sun to light your walks
I carried clouds on my shoulders
I made thunders resonate
I am the ancient question

He talks to the full moon


He asks: “Is my love coming soon?”
The highest love will never die
He follows the ray of the purest sunshine

I am the one, the only one


(he is the one, the only one)
Who feeds the sweetest passion
And guides the craziest action
Who freshens the summer
Heats the winter

As the oldest thoughts


I gave feathers to the hawks
I sent the sun to light your walks
I carried clouds on my shoulders
I made thunders resonate
I am the ancient question

He talks to the full moon


He asks: “Is my love coming soon?”
The highest love will never die (will never die)
He follows the ray of the purest sunshine
(Chorus)
5

As pedras suspensas
Aquela era uma época importante para nós. A fertilidade de nossa terra
estava em foco, chegara o tempo do Bealtaine. O completo desabrochar das
flores, a continuidade da prole, o regozijo do espírito e do amor, a magia
por trás do desejo exacerbado, a sabedoria da aveleira e, principalmente, a
fertilidade dos campos e do gado. Devíamos celebrar todas essas dádivas
dançando, cantando, fazendo amor e oferendas.
Via meus companheiros atarefados, fazendo pilhas das nove madeiras
sagradas: o salgueiro das ribeiras, a aveleira dos rochedos, o amieiro dos
pântanos, a bétula das cachoeiras, o freixo da escuridão, o teixo da
invulnerabilidade, o olmo da ribanceira, o carvalho do sol, o espinheiro do
Povo Encantado, todos filhos do bosque, que generosamente doaram seus
corpos para que os homens pudessem chamar a força dos Imortais para o
gado, para as lavouras que seriam semeadas e para si mesmos.
Como uma adaga cravada em meu flanco, as visões afligiam minha
mente, sobretudo o aspecto sombrio do Homem de Folhas, que surgiu
taciturno junto ao Carvalho-Ancião. O silêncio dos Deuses era
atemorizante. Por que não poderiam ser claros em seus propósitos?
Enviaram-nos enigmas e sussurros obscuros, provocando o risco de
errarmos sua interpretação e pagarmos por isso. Mas ainda pior seria o
mutismo total e indiferente das deidades, revelando seu desinteresse pela
sorte dos homens.
O sol caiu e o povo agitou-se cada vez mais. Uma névoa peculiar
circundou o grande monumento de pedras suspensas, para cujo centro a voz
indistinta do meu sangue me impulsionara. Suthain abandonou seu voo
circular e pousou em meu ombro esquerdo. Recebi, na carne, o forte aperto
das garras da ave. Meu amigo de penas estava tomado de ansiedade.
Senti o fluxo da energia tépida que se desprendia dos corpos humanos e
era tragada pela terra. O mesmo cio perpassava as canções dos bardos, a
cadência de suas palavras formando uma nuvem cor de carne que um vento
morno acariciava com língua provocadora. A atmosfera estava carregada.
Dian Cecht escolhera bem a data do feitiço.
Ordenei que três fogueiras de madeira de espinheiro-negro fossem acesas
sob três caldeirões dispostos em triângulo. Ficaria no centro para absorver o
poder das chamas e dos vasos fumegantes, o que permitiria a minha voz ser
escutada naquele lugar em que meu corpo ainda não poderia ir.
Assim como Suthain, Mallach estava comigo. A previdência de Dian
Cecht outra vez me surpreendeu. O druida mais jovem seguiu de forma
exemplar minhas instruções, os caldeirões começam a fumegar e ele se
aproximou de mim, ansioso para cooperar no rito que libertaria todo o poder
do meu espírito, para que eu assegurasse em definitivo a posse dessa terra
para os filhos de Mil.
– Mestre Amergin – disse Mallach –, tudo foi preparado conforme tuas
ordens. Podemos iniciar a cerimônia quando desejares.
– Fiel amigo, quanto antes começarmos, melhor será. Agradeço o apoio e
a dedicação que me dispensaste.
Coloquei as ervas selecionadas nos caldeirões, e os aprendizes, usando
grandes pilões de madeira, maceraram-nas na água pura da cachoeira até a
seiva das plantas diluir-se ao líquido que começava a borbulhar. O aroma
pungente e característico das ervas que traziam a Visão espalhou-se no
ambiente. Enchi dois recipientes com uma pequena quantidade da forte
poção, oferecendo um deles a Mallach.
– Bebamos o leite da iluminação, que abrirá nosso caminho entre as
brumas que nos separam de Tír inna n-Óc!
– Assim espero, Amergin, e que nossa viagem seja segura!
– Voe, Suthain, dá-me o vórtice! – ordenou o druida a seu falcão místico,
que o obedeceu prontamente.
O vapor que subiu dos caldeirões ficou mais denso. Mallach levantou os
braços e jogou a cabeça para trás, já sentindo o efeito das ervas, enquanto
Amergin ergueu seu cajado descrevendo um círculo sobre sua cabeça.
Golpeado pela inspiração, o druida exclamou:
– Deuses desconhecidos, grandes divindades ocultas além dos deuses!
Protegei-nos ao cruzarmos o caminho obscuro. Ó filho de Lir, Manannán,
Rei da Terra das Mulheres, Rei da Terra sob as Ondas, Rei da Terra da
Promessa, Rei da Fortaleza Encantada das Macieiras,23 ouve-me! Por cima
das ondas de alvas cristas, vem a mim! Aqui, deus abençoado! Em tua
carruagem, o mar é para ti uma planície com profusão de flores, ó
Manannán, Soberano do Povo dos Montes Encantados, Senhor das Brumas,
caminha comigo e abre-me a porta do Outro Mundo!
Amergin desceu o cajado e o vapor espesso abriu-se, revelando à
distância as falésias brancas de uma ilha distante, cobertas por espesso
arvoredo. No alto de uma colina no centro da ilha, refulgia uma fortaleza de
prata com tetos dourados, suas muralhas adornadas por incontáveis
estandartes de todas as cores. Era Emain, o reino mágico do Mestre da
Névoa, Manannán. A visão de beleza indescritível sugou o espírito do
druida com uma força insuperável.
– Poderoso Carvalho-Ancião, escuda-me na jornada à Terra Imortal, que
lá eu encontre a cura para o mal que domina minha alma! – disse Amergin,
desfalecendo.
– Deuses antigos dos Três Mundos, Senhores da Grande Árvore –
Mallach invocou ao sustentar o corpo do druida mais velho –, tomai, se
precisardes, todas as minhas forças. Que seja aberto o caminho para
Amergin, filho de Mil, filho de Bilé, filho de Breogan!
Mallach desviou o olhar para que sua mente não fosse igualmente
capturada pela visão da ilha sobrenatural. Usando as habilidades de seu
treinamento druídico, ele assumiu a forma espiritual de uma árvore cujas
raízes penetravam fundo no solo do antigo santuário. Em segundos, ele
intuiu todas as gerações de folhas, flores, troncos e sementes que ali
vicejaram; adivinhou as mãos e os braços que ergueram aquelas pedras em
adoração a forças primordiais e terríveis invocadas em línguas há muito
esquecidas.
Verde e velho, pensou Mallach, brotando, amadurecendo, decompondo-se
no círculo sem fim das estações. Perpétuo retorno da primavera, mas nunca
as mesmas flores.
Apenas sua concentração impediu que se dissipasse o poder do ritual e
manteve aberta a passagem que Amergin começou a atravessar. O caminho
não era longo, porém exigia cautela. O perigo espreitava a cada passo, e
Amergin, como um homem que cruzava a floresta em noite sem lua,
avançava lentamente.
Ele abriu os olhos na passagem. Um bosque sombrio, cerrado, onde as
copas das árvores entrelaçavam seus ramos para formar um manto espesso
que apenas os mais destemidos raios de sol penetravam aqui e ali. Os
pássaros estavam mudos, nenhum vento agitava as folhas, mas o mago
ouvia o som dos habitantes da terra, besouros desajeitados que se
arrastavam, vermes que cavavam túneis, os passos de centenas de formigas
em suas metrópoles escondidas. Ao longe, como nuvens de tempestade que
se acumulavam no horizonte, ouviu um som amorfo, inumano e
inquietante.
Uma rajada de vento, até então ausente, soprou o som para junto dele, que
se viu enredado num clamor de uivos, um manto hediondo grudado à sua
pele, cravejado de dentes pontiagudos e olhos de rubi em poças de sangue.
– O lobo é uma de tuas formas, ó filha de Ernmas, Morrígu! – clamou,
acreditando ter identificado meu atacante. – Não é próprio de tua grandeza
atacares desse modo um adversário que já derrotaste em combate honesto.
Os ganidos tonitruantes permearam seu espírito, atingindo sua ligação
com as divindades como um terremoto. Toda a clareza perdeu-se, as
palavras dos deuses tornaram-se uma algaravia incompreensível. Enquanto
tentava se desvencilhar da influência deletéria daquele som bestial,
subitamente ele compreendeu que o destino outra vez mostrou-se favorável
aos seus planos, pois a origem da doença espiritual que o impedia de
interpretar os presságios não era outra senão o berro do monstro
desconhecido que estava agora em seu caminho.
Viu-a aproximar-se. Uma fera negra de passos silenciosos e olhos
vermelhos como brasas, boca entreaberta guarnecida de três fileiras de
dentes e da qual pendia uma língua sanguinolenta e... o som... o som
desesperado, ansioso, que parecia emanar de seu corpo como um miasma.
Imaginou, de início, que a aparição fosse uma das formas mais dementes
jamais assumidas pela Senhora da Batalha. Ele caiu de joelhos, levando as
mãos aos ouvidos em uma tentativa de obter, ao menos, um momento de
alívio do som enlouquecedor, que brotava da criatura como o fedor da
decomposição de um túmulo aberto.
A aparição estacou a pouca distância do mago, fitando-o com seus olhos
incandescentes e movendo a língua de modo grotesco. Ele imaginou, em
meio à confusão, que o fim de seus caminhos havia chegado, porém o
monstro não o atacou fisicamente. Poderia ter se lançado sobre ele, mas não
o fez. Ficou a observá-lo no ambiente preenchido pelo uivo indescritível.
Amergin compreendeu então que o objetivo dela não era dar cabo de seu
corpo, mas aniquilar sua mente pelo terror e pela confusão.
Num esforço supremo, ele reuniu os últimos lampejos de sanidade
dilacerada e encarou fixamente o horror. Encheu os pulmões e exalou, na
direção da aparição, um sopro druídico. A besta não o atacou, porque não
possuía existência real. Com o sopro, a forma monstruosa perdeu
consistência e se desfez numa espiral de fumo escuro, revelando o poder
que a animava. Já o tinha visto junto ao Carvalho-Ancião e pressentido sua
animosidade com ele e seu povo: era o Homem de Folhas.
– Homem de Folhas, o que fiz para merecer tua ira?
– Não te devo explicações, humano! Respeito teu poder, poucos magos
são capazes de quebrar meus encantamentos! Estou aqui apenas para
alertar-te sobre a fúria de outro imortal ainda mais forte do que eu.
– Cessa agora este rugido estúpido!
– Mortal tolo. Não estás em posição de dar-me ordens ou exigir-me seja
lá o que for. Pagarás por tua insolência!
Seu coração gelou ao ouvir tais palavras. Excedeu-se em suas pretensões
e sentiu um calafrio ao perceber a ameaça ao frágil equilíbrio que acabara
de conquistar.
– Amergin, a ligação com Tír inna n-Óc está ficando mais frágil.
Necessito de tua força ou não conseguirei manter o portal aberto por muito
tempo! – gritou Mallach.
– Amigo, minha energia não é suficiente para enfrentar um dos deuses.
Peço-te que me ouças, Homem de Folhas! Desculpo-me por minha
impertinência. Contudo, se necessário for, morrerei enfrentando-te!
– Basta! – Uma ordem ríspida atravessou o vento circundante.
– Pelos deuses, Amergin! – espantou-se Mallach, antes de cair ao solo,
juntamente com Suthain, que despencou do céu.
O portal foi desfeito. Amergin estava preso no caminho para o Outro
Mundo. Seu corpo jazia inerte e sua alma vagava entre a clareira de onde
partiu e o santuário das pedras suspensas em Lios na Grainsi,24 no sul da
ilha.
O ferimento do falcão era evidente, e ele se contorcia em angústia
frenética, piando e agitando-se convulsivamente.
Vendo o pássaro sofrer no chão, Mallach se aproximou dele e, fazendo
uma concha com suas mãos, gentilmente o segurou, aconchegando-o junto
ao peito. Os olhos da ave fitaram os do jovem druida, suplicando por auxílio
e, tal como acontece com Amergin, Mallach entendeu o que o falcão
implorava em silêncio.
Se Suthain morrer, Amergin também estará condenado, pensou. Preciso
encontrar um modo de curá-lo.
Com bastante pressa, o sacerdote abandonou o local da cerimônia,
enveredando em uma trilha pela floresta e contando somente com a luz da
lua para guiá-lo. A urgência permitiu que ele ignorasse a fadiga da corrida,
e Mallach chegou à sua tenda, cuja localização fora escolhida pelo próprio
Amergin. Quando encontraram o lugar pela primeira vez, souberam que ali
existia um poder de cura incomparável. Ornada com símbolos místicos de
proteção, a tenda de Mallach erguia-se sob um carvalho de tronco grosso,
que a protegeria do vento e da tempestade, bem como do calor excessivo.
Ele entrou no abrigo segurando o falcão com uma das mãos, enquanto
com a outra vasculhava arcas e prateleiras. Decidiu então aconchegar a ave
em um cesto, para procurar mais rapidamente. E encontrou o objeto de sua
busca em uma arca ao lado de seu leito: um bastão de teixo, parte de um
grande conjunto de peças rituais, em que estava inscrito um poderoso
encantamento na língua antiga dos druidas.

Anatlānatrīkos
Runābāssiakbiīṷotutos
Teṷekaylondīgnīmoṷs.25

O druida sentou-se no chão da tenda e, usando a chama de uma


lamparina, queimou algumas ervas aromáticas. Enquanto esperava que o
perfume se espalhasse pelo ambiente, Mallach leu várias vezes o texto
gravado na peça de madeira, repetindo-o em voz quase inaudível.
Ele sentiu então a chegada do momento adequado: um formigamento que
subia da terra, entrava pelas solas de seu pés e subia até desabrochar no topo
de seu crânio. O druida cerrou seus olhos e respirou profundamente,
entoando:
– Sou o vento rápido do norte, falcão no penhasco cinzento; sou forte
como a lança na mão do hábil guerreiro, flexível pele do tambor a retumbar
no anúncio da batalha. Sempre vivi na floresta e nos mares fortaleço-me; da
glória dos deuses imortais à fragilidade da carne humana, sou a corda da
harpa que ressoa a convocar o lutador poderoso, conhecedor das palavras de
poder. Ogma,26 campeão dos desafios de Tír inna n-Óc, que esta ponte que
construí possa levar-me à tua presença, que eu esteja diante do Homem
Forte Rosto de Sol.
Como desejado, o encantamento levou a visão de Mallach diretamente à
morada de Ogma no Outro Mundo, onde o deus vivia cercado por suas
armas e por palavras incontáveis que voavam ao seu redor como vaga-
lumes. Sua estatura estava muito além da humana, e a clava em sua mão
tinha pelo menos a metade do tamanho do carvalho sob o qual estava a
tenda de Mallach.
– Não necessito apresentar-me, pois certamente sabes quem sou. O que
desejas saber, pequeno druida?
– Preciso de um vaticínio, grande guerreiro. Ensina-me como curar a
chaga do falcão místico de meu irmão, para que eu possa trazê-lo de volta
ao mundo em que vivemos.
– Um presente exige um presente, rapaz. O que estás disposto a dar?
– O dom que me for solicitado, seja qual for! – exclamou Mallach, sem
titubear.
– Posso ver em ti toda a tua história. Sabes que a ave é um ser mágico e
não possui alma. Na verdade, sua essência vital é a mesma de Amergin e
dele proveniente. A vida do falcão não passa de um reflexo da existência do
próprio Amergin. Se um dos componentes dessa dupla perecer, a ligação
quebrar-se-á. Em consequência, a vida do outro também chegará ao fim.
Quando Amergin ficou preso em algum lugar no caminho para Tír inna n-
Óc, o fluxo entre ambos começou a cessar, levando o falcão à agonia. Sua
essência foi roubada e agora ele é como uma casca vazia murchando
rapidamente.
– Eu ouvi seu pensamento, e ele suplicou por ajuda.
– O que ouviste foi um eco do pensamento de Amergin, é ele quem clama
por socorro. A agonia do falcão é a do humano com quem ele compartilha
sua existência.
– O que devo fazer?
– Se quiseres seguir esse intento, o preço a pagar será muito alto.
– Nada me importa!
– Viajarás para o santuário em Sgitheanach27 e procurarás o druida
Muiredach.
– Mas esse santuário está a noites de distância! Se eu não trouxer
Amergin ao nosso mundo ainda nesta noite, tudo estará perdido!
– Tudo sei. Estás disposto a pagar e por isso é justo obteres o que desejas.
Não viajarás como viajam os homens de tua raça. Porém, também isso há de
custar-te algo.
Mallach observou atentamente o gigante à sua frente. O silêncio, por
instantes, formava entre eles uma muralha, a qual o sacerdote derrubou ao
exclamar com veemência:
– O preço não importa. Jurei proteger Amergin em sua viagem pelo bem
do meu povo, e a honra exige que eu cumpra meu juramento!
– Teu senso de honra é admirável, rapaz. Assim seja!
E, de forma tão enigmática quanto a que o conduziu à presença da
deidade, Mallach a viu desaparecer a distância. Antes que Ogma sumisse
totalmente de sua visão, Mallach escutou-o dizer:
– Não te esqueças, há um preço pelo teu caminho.
– Espera! Espera! Não me disseste como alcançarei o santuário a tempo!
– Já saberás, pequeno, já saberás...
Enquanto o oráculo desvanecia-se diante de Mallach, outro dos seres
encantados surgia às suas costas. Percebendo a presença desconhecida, ele
se voltou para encará-la:
– Não te reconheço. Dize-me como te chamas e qual tua posição para que
eu te saúde adequadamente – disse o druida, surpreso diante da estranha
beleza de uma mulher vestida em um manto de penas brancas, castanhas e
pardas.
– Dreolán28 eu me chamo, rainha das aves e mensageira dos senhores de
Tír inna n-Óc. Vim a ti a mando do filho de Elatha, Ogma Grianainech, pois
possuo o que necessitas para tua jornada.
– Ogma disse-me que tua ajuda terá um preço e digo-te de antemão que
estou disposto a pagá-lo.
– Sim, há um preço. Em troca dos meus favores, absorverei todo o teu
poder mágico.
– Mas sem meu poder mágico...
– Não mais serás druida! – complementa Dreolán.
– Não tenho escolha, pois esse é o compromisso que assumi – suspirou o
mago.
– Aproxima-te mais de mim, para que eu possa selar nosso acordo.
A deusa, em seguida, colocou suas mãos ao redor da cabeça de Mallach.
Uma intensa luz branca emanou de seus corpos. Em instantes, porém, a
luminosidade do druida arrefece, enquanto a da deusa aumenta.
– Está feito! Teu poder mágico é agora meu e, com ele, ajudar-te-ei.
Observa em tua mão a marca da magia: quando ela desaparecer, teu tempo
acabará.
– Como pode isso ocorrer?
– Usei tua força em um encantamento que fará o tempo de Tír inna n-Óc
fluir neste mundo. O tempo correrá muito lentamente no mundo dos
humanos, mas, conforme a energia se for consumindo, os fluxos distanciar-
se-ão até voltarem a correr em separado.
– A espiral tripla em minha mão é um marcador de tempo.
– Exatamente. Agora vai! Pega teu cavalo, a ave e segue para noroeste.

Enquanto isso, no Outro Mundo, Amergin se deparou com uma presença


reveladora.
– Filho de Mil, sábio sacerdote, tua coragem é proporcional à tua
arrogância! Ousas interferir nos planos divinos? Isso não tolerarei!
– Sou apenas um receptáculo do conhecimento de Tír inna n-Óc no
mundo humano, poderoso deus. Se Danu me tem como aliado e envia-me
visões do futuro, é meu dever, como druida, manifestá-las e profetizá-las!
– Danu também não interferirá nos planos de nascimento do meu filho, o
maior herói que existirá por todo o sempre, pois sou Lugh, filho de Cian das
Tuatha Dé Danann, neto de Dian Cecht, e minha mãe é Ethniu, princesa dos
Fomoiri! Sou o senhor da magia, guardião da espada mágica e da lança
invencível! Sou Lugh e minha vontade é a vontade do Povo de Danu!
– Não ouso desafiar tua autoridade ou teu poder imensurável. Também
não sou teu inimigo.
– Não te envergonhas da mentira que proferes? És o principal artífice da
derrota das Tuatha Dé! És um milesiano! E teus irmãos serão...
– Cessai essa discussão descabida! – Elevou-se com veemência uma voz
feminina.
– Danu venerável! És realmente cúmplice deste homem vil?
– Ele é nosso aliado, Lugh, não um inimigo. Cessai vossas hostilidades
agora.
– Venerável, se eu descobrir que pretendes mudar o destino do meu futuro
rebento...
– Cessai vossas hostilidades agora, ou terás contas a acertar comigo
futuramente.
– Como queiras, grande deusa. Sim, por enquanto...
– Entrega a Lia Fáil ao mago.
– Como ousas dar-me essa ordem? Um dos dons da nossa estirpe a um
mortal? Que desvario!
– Ouviste o que te disse. Não ajas como uma criança!
– Ele não é digno de ostentar a pedra primordial!
– Testa-o, irmão, e descobrirás a verdade!
– Assim o farei!
De volta à Ilha Verde, eles observaram o empenho de Mallach para
alcançar os domínios do Santuário de Sgitheanach. O druida possuía uma
vantagem e uma desvantagem: ele conhecia o caminho, pois todos os anos
celebrava ritos na ilha. Porém, seu cavalo estava quase sem forças. Apesar
de não terem se passado mais que duas horas no mundo humano, a realidade
do cansaço do animal era de doze noites.
O druida olhou para espiral tripla em sua mão... Estava opaca,
denunciando que os fluxos do tempo começaram a divergir. Observou o
horizonte e conseguiu ver os gigantescos pilares de pedra que delimitam a
área do santuário. A esta velocidade, em breve chegarei, pensou.
No entanto, a montaria parou de trotar e começou a andar vagarosamente.
Ele percebeu a exaustão do animal, saiu de seu dorso, pegou o pequeno
alforje, juntamente com a cesta em que Suthain repousava, praticamente
desacordado, e continuou sua jornada, correndo o máximo que pôde.
Seu coração pulsava velozmente e, de tempos em tempos, ele verificava o
símbolo e olhava o falcão. Era um homem obstinado, disposto a sacrificar
tudo pelo cumprimento de uma promessa. Poderia ser um grande guerreiro,
se não escolhesse outro caminho.
Encontrou um novo obstáculo: um rio. Depois dele, havia apenas uma
estrada e o santuário. Seria muito fácil, se ele ainda possuísse seus poderes
mágicos, mas era tão somente um homem comum. Contudo, um homem
que depositara grande confiança nos deuses e que era dotado de vontade
firme como a mais alta montanha. Ele teria que vencer com somente essas
qualidades.
Desse modo, confiando que a profundidade do rio não ultrapassaria seu
pescoço, Mallach levantou a cesta acima da sua cabeça e enfrentou o
desafio. Passo a passo, vagarosamente, os deuses guiaram seu caminho e, a
cada palmo vencido, crescia mais sua confiança.
Ele conseguiu, chegou à outra margem do rio, e, de modo inconcebível, a
travessia na correnteza gelada lavou a fadiga de seu corpo, descansando-o.
Mallach respirou fundo e tomou o rumo da tortuosa estrada, cheia de
pedregulhos. Conforme avançava, as pedrinhas do caminho eram
arremessadas pelo impacto de suas passadas ligeiras.
Ao longe, Lugaid, um dos aprendizes do santuário, observava a cena e o
que não era dito falava em seu coração. Ele adentrou o recinto, onde seus
irmãos preparavam ervas para procedimentos ritualísticos, e exclamou:
– Temos um visitante!
Os outros dois se entreolharam, estupefatos, e um curto silêncio se fez
presente. A voz de Muiredach rompeu-o:
– Um homem com uma cesta, foi o que viste?
– Exatamente, irmão!
– O momento do oráculo!
– Qual oráculo? – perguntou Niall, o outro aprendiz.
– Foi-me revelada pelo oráculo a vinda de um irmão, carregando um cesto
onde no qual repousa uma ave rapineira ferida na noite do Bealtaine. Nossas
próprias vidas nesta terra dependem do sucesso desse irmão. O oráculo é a
voz da sabedoria, meus filhos. Vamos acolhê-lo.
Assim, os três feiticeiros saíram da cabana, enquanto Mallach, exausto,
chegava até o local. Ao contemplar o druida e seus discípulos, ele desabou,
a cesta em que o falcão se encontrava despencou, projetando o animal para
fora dela, já praticamente morto.
– Pode ser tarde demais! – exclamou Niall. – O falcão parece morto!
Em Emain Ablach, Lugh envolveu Amergin em uma bolha de energia e
voou para perto do Palácio de Luz, onde existia uma arena feita para o
treinamento dos deuses. Danu e o Homem de Folhas não os seguiram. O
druida só contava consigo mesmo para sua proteção.
Lugh desfez a bolha de energia e Amergin caiu no centro da arena. O piso
era revestido de granito com símbolos heráldicos de bronze incrustados. O
lugar era uma espécie de arena e, ao mesmo tempo, um espaço mágico.
De repente, um grito ensurdecedor tomou conta do ambiente, tão forte
que os estandartes que ornamentavam as paredes se agitaram. Aos poucos, o
som tornou-se menos intenso, porém ainda alto, assemelhando-se ao
barulho do vento a soprar por entre as árvores do bosque. A bolha que o
trouxe à arena ainda conseguiu preservar a audição do mago dos efeitos
mais drásticos do grito. Mesmo assim, ele se encontrava confuso e
atordoado. E mais desorientado ainda ficou ao observar uma nuvem, a
alguns metros acima de seu corpo, tomar a forma de uma mulher, envolta
em uma grande túnica cinzenta com capuz sobre um vestido verde com
numerosas manchas de sangue.
A entidade removeu o capuz, mostrando a sua face de palidez cadavérica,
dentes pontiagudos, olhos injetados de sangue e cabelos semelhantes a teias
de aranha. Amergin a reconheceu.
– Vens anunciar minha morte! Fui trazido a este lugar para ser abatido –
exclamou com fúria, sentindo todo o sofrimento que o conduzira até aquele
momento. – Fracassei!
Não houve réplica. Somente o tenebroso e congelante silêncio, rompido
alguns momentos após pela voz fria de Lugh.
– Se é o que acreditas, feiticeiro, fracassarás. És realmente o ser vil que
imaginei. Desistes e aceitas teu destino entre os mortos?
Amergin sentiu em seu íntimo que a Bean Síde29 não estava ali para
anunciar sua morte. Se assim fosse, ela já estaria entre seus ancestrais. Mas
o druida não estava morto e a sensação mágica em seu interior deu-lhe
coragem.
– Não! Ainda há força em meu espírito para lutar!
– Que assim seja!
Com um sinal de mão, Lugh ordenou à criatura que partisse para o ataque.
Amergin levantou-se e lançou um feitiço de proteção ao redor de seu corpo.
A entidade era muito rápida, acertou vários golpes no estômago e no peito
do mago, os dedos dele eram como galhos pontiagudos. Ele tentava desviar-
se dos golpes e obteve êxito ocasional, mas acertá-la era quase impossível.
A Bean Síde recuou alguns metros, Amergin respirou por um momento, e
ela voltou abruptamente, usando a força do movimento para acertá-lo, e
derrubou-o quase instantaneamente. Desferiu uma mordida em sua clavícula
direita. A força da dentada era como a do malho que golpeia a bigorna. O
invólucro mágico que protegia o druida quebrou-se e ele urrou de dor.
A sensação terrível das presas perfurando a carne irradiou-se pelo corpo
do druida. Amergin inacreditavelmente encontrou forças para empurrar sua
oponente e livrar-se das lâminas de sua boca que arrancavam pedaços de
carne. O druida emanou uma labareda mística na direção da Bean Síde, que
se esquivou e urrou furiosamente por afastar-se da presa. Ele cobriu seus
ouvidos para proteger-se do berro sobrenatural, mas era inútil, seus
tímpanos estouraram e o sangue correu por entre seus dedos.
Sem motivo aparente, a dor cessou. Restava somente o latejar em sua
cabeça. Amergin não ouviu mais nada. O silêncio caiu sobre seu mundo.
Aproveitando-se da desorientação do milesiano, a criatura pulou em cima
dele e começou a rasgar sua face violentamente. Ele não resistiu mais e
sucumbiu.
Ao sentir que a vida de Amergin esvaía-se em definitivo, a Bean Síde
interrompeu a agressão. Olhou para Lugh, desdenhando do homem caído e
ensanguentado a seus pés, e partiu. Lugh ergueu Amergin em seus braços e
carregou-o de volta ao bosque, colocando-o sob um teixo muito antigo,
perto de uma fonte de água.
– Fracassei. Faze agora o que era teu desejo desde o princípio. Acaba com
minha agonia!
– Não fracassaste, druida. Não tinhas nenhuma chance contra a Bean Síde
em Tír inna n-Óc. Aqui todos somos imortais. Provaste a pureza da tua
magia e estavas disposto a entregar teu espírito pelo teu povo. Sei agora que
és digno.
Amergin ouviu essas palavras como se o deus estivesse muito longe. Não
podendo mais suportar a dor, ele mergulhou inexoravelmente na
inconsciência. Lugh pegou um pouco da água da fonte e jogou-a no rosto do
mago. Em seguida, repetiu o ato, derramando mais líquido no ombro
machucado pela Bean Síde, dizendo:
– Junta com junta, tendão com tendão, que tudo fique ligado. Que a cura
de Dian Cecht seja absorvida por teu espírito e teu corpo para uma nova
batalha. Quando acordares, estarás na Ilha Verde.
Enquanto a árvore sagrada curava os ferimentos do milesiano, Mallach
preparava-se para o ritual que tinha por objetivo salvar a vida de Suthain.
O grupo de magos se dirigiu para o círculo de pilares de pedra, em cujo
centro um monumento, feito com quatro grandes lajes, dispostas como uma
caixa com um dos lados aberto, abrigava uma pequena rocha achatada sobre
a qual Mallach acomodou Suthain.
Lugaid acendeu várias velas ao redor do monumento central, enquanto
Niall fervia ervas aromáticas em um caldeirão especialmente projetado para
aquele tipo de rito. Conforme as ervas destilavam na água, uma densa névoa
verde saía do recipiente e difundia-se pelo lugar.
Muiredach perguntou a Mallach:
– Estás preparado para o sacrifício?
– Darei minha alma, se preciso for! – exclamou Mallach.
– Esse é o preço!
– Estou pronto para cumprir minha parte! Que a lembrança de minha vida
seja minha recompensa.
O velho druida respirou profundamente e, para espanto de todos, o fumo
do caldeirão foi totalmente tragado por seu nariz e por sua boca. Seus olhos
fechados começaram a brilhar sob as pálpebras, e pequenas faíscas, como
fagulhas de uma fogueira, piscaram ao redor dele. Nesse momento, Mallach
sentiu muito medo, pois nunca contemplara um poder tão sereno e absoluto
em um mortal. Muiredach abriu os olhos, e toda a névoa aspirada fluiu de
sua boca em direção a Mallach, que desabou no chão com um suspiro. Seu
coração não batia mais. No mesmo instante, Suthain saiu do dólmen,
radiante, inteiro, renascido.
– O vaticínio foi cumprido! – exclamou o druida. – Vai, falcão místico,
encontra tua contraparte! Temos que fazer os procedimentos fúnebres para
honrar nosso irmão.
Suthain levantou voo, levando consigo não só o seu esplendor natural,
mas também a alma de Mallach, que o trouxe de volta à vida. O falcão
viajava na velocidade do pensamento, nenhuma ave do céu jamais cruzou as
nuvens com tal celeridade.
O fluxo temporal entre os dois mundos separou-se totalmente e o tempo
então readquiriu seu curso ordinário. Ao avistar Lios na Grainsi, Suthain
deu um voo rasante e começou a circular em espiral, refazendo o vórtice.
Ele viu Amergin do outro lado e piou fortemente, acordando o druida de seu
sono de cura.
Tudo fica cinza, sinto meu espírito dissipar-se e condensar-se novamente,
a névoa de Lios na Grainsi enfraquece enquanto as festividades continuam,
as pessoas dançam em torno das fogueiras. Ouço Suthain no alto e meu
amigo emplumado já não é o mesmo. Como voltei?... Sinto como se uma
manada de cavalos selvagens galopasse em minha cabeça... Mas o que é
aquilo?
– Pelos deuses da floresta imortal! Corram todos! Para o bosque, agora!
Corram! – gritou Amergin.
A visão do gigante era realmente aterradora. Uma figura humana, porém
desfigurada, maltratada. Seus olhos estavam fechados, como se as pálpebras
pesassem mais do que as rochas daquele lugar sagrado. Os povos da ilha o
conheciam como Balor na Suíle Neimhe. E todos o temiam. Amergin estava
prestes a descobrir o motivo.
Não posso crer que Lugh fez isso, pensou. Libertar o gigante aqui, onde
há tantas pessoas. Como ele ousa profanar a festividade do deus Sol e
colocar tantas vidas em risco?
Enquanto o druida se atinha a seus pensamentos, preciosos segundos eram
desperdiçados. Quase não havia tempo suficiente para levantar um feitiço
de proteção.
Os olhos do gigante começaram a se abrir e uma enorme devastação
tomou conta do lugar. As pedras de Lios na Grainsi foram derrubadas tão
facilmente quanto os grãos de trigo nas plantações. A terra tremeu e o céu
se enfureceu.
Após um encantamento druídico, o cajado do mago transformou-se em
Gáe Assail. Munido de toda a sua determinação, o mago mirou o olho
esquerdo do gigante, lançando a arma, que atravessou a proteção mágica e
acertou-o com todo o vigor. O colosso rugiu de dor. Antes que Balor
pudesse levar a mão até a lança, Amergin ordenou a Suthain que voasse e a
retirasse do olho ensanguentado, trazendo-a de volta. Em uma velocidade
que a visão não era capaz de acompanhar, o falcão obedeceu ao comando
mental de Amergin. A Lança da Realeza achava-se novamente nas mãos do
druida para um novo e derradeiro arremesso, que acertou o outro olho do
gigante. A montanha viva urrou outra vez, antes de desabar sobre o círculo
de pedras. Poucas eram as que se mantinham em pé. O cenário era
desolador.
Ao observar o ambiente, Amergin sentiu seu peito apertar-se em angústia,
e o pranto dominou-o. Ele apenas viu com os olhos marejados, por baixo de
uma das pedras, o brilho de uma magia se manifestar, bem ao lado do
gigante abatido.
O Homem de Folhas surgiu do solo, materializando-se em sua forma mais
típica, que se assemelhava a um homem com chifres de bode, cheio de
galhos e folhas por todo o corpo. Ele levantou a pedra milenar, derrubada
por Balor, e expôs a Lia Fáil.
– Eis a Pedra da Soberania, aquela que consagra os reis, mago milesiano.
O feitiço está entalhado nela. Entoa-o e deixa seu cajado fazer o restante.
O Homem de Folhas olhou fixamente para o mortal e de seus olhos
saíram faíscas verdes. Ele sorriu misteriosamente e desapareceu, rumo ao
Outro Mundo.
Amergin observou a Lia Fáil vibrar como um coração pulsante. A pedra
ansiava por aquilo que estava por vir. Ele viu as palavras sagradas na pedra
e proferiu:
– Somos puros diante dos deuses. O sangue do gamo majestoso e do
grande urso corre em nossas veias. Partilhamos a beleza do cisne no lago e
o vigor do touro de grandes chifres. Somos puros diante dos deuses,
banhados pelas águas de todos os oceanos, envolvidos pelo sopro de todos
os ventos. Somos puros diante dos deuses no céu, somos puros diante de
nossos irmãos na terra, somos puros diante de nossos ancestrais no mar
profundo. A Pedra da Soberania está em todo o lugar. A Pedra da
Soberania, fazedora de reis. A Lia Fáil que nos une à terra!
Ao entoar essas palavras, aconteceu a assimilação pelo cajado mágico.
A fadiga cobrou seu preço e Amergin, extenuado por mais uma prova,
caiu, ao contrário de Balor, apenas pelo cansaço.
23 Terra das Mulheres (Tír na mBan), Terra sob as Ondas (TírfoThuinn), Terra da Promessa
(TírTairngire), Fortaleza Encantada das Macieiras (EmainAblach), Planície Aprazível (MagMeld) são
vários nomes para o Outro Mundo da mitologia irlandesa, sendo a Terra da Juventude (Tír inna n-Óc) o
mais comumente mencionado. Os relatos medievais em geral os apresentam como ilhas situadas em
algum lugar a oeste da Irlanda, habitadas pelas Tuatha Dé que a abandonaram depois da derrota para os
filhos de Mil. Ao contrário do paraíso cristão, as ilhas do Outro Mundo gaélico não são o local de
descanso dos mortos, mas paraísos terrestres onde doença e morte não existem, e a beleza, a juventude
e o verão são eternos. Somente é possível atingi-los a convite de um de seus moradores encantados ou
após penosas jornadas. Dois gêneros da literatura irlandesa medieval tratam desse tema. Chamam-se
echtrai (“aventuras”) e immrama (“viagens de barco”). Títulos bem conhecidos são a Echtra Nerai(“A
Aventura de Nera”) e o Immram Brainmaic Febail (“A Viagem de Barco de Bran, Filho de Febal”).

24 Lios na Grainsi, traduzido como “Pedras do Sol”, é o maior círculo megalítico da Irlanda, alinhado
ao nascer do sol no solstício de verão. Na manhã dessa data, o sol brilha diretamente acima de seu
centro. Foi construído por volta de 2100 a.C. Localiza-se a 300m de Loch Gair (Lough Gur, um dos
mais importantes sítios arqueológicos da Irlanda), em Contae Luimnigh (County Limerick), na
província de Munster.

25 Essa escrita é o alfabeto ogâmico (Ogham). A língua do encantamento é o proto-céltico reconstruído


(c. 1300-1200 a.C.), suposto ancestral de todas as línguas célticas. A tradução em português é:
“Respiração da serpente/ Segredo de morte e vida/ Teu encantamento da criação.” Na verdade, é uma
versão do Charm of Making usado por Merlin e Morgana no filme Excalibur (John Boorman, 1981).

26 “Homem Forte” (Trenfer), “Rosto de Sol” (Grianainech) e “Boca de Mel” (Milbél) são alguns dos
epítetos de Ogma. Filho do rei Elatha Mac Delbaeth, rei dos Fomoiri e meio-irmão do DagdaMór,
Ogma é o inventor do Ogham e um dos padroeiros da poesia e da eloquência, além de grande
guerreiro.

27 É a Ilha de Skye (An t-Eilean Sgitheanach em gaélico escocês), também conhecida como Eilean a’
Cheò (“Ilha das Sombras”). Sgitheanach é a maior e mais setentrional das Hébridas Interiores, o
arquipélago localizado na costa oeste da Escócia.

28 Dreolán é o nome da carriça (Troglodytestroglodytes) em gaélico antigo. No folclore irlandês, a


carriça era conhecida como druien (ave druida), uma ave sagrada e ligada ao raio.

29 A Bean Síde (“Mulher dos Montes Encantados”, Banshee na grafia anglicizada) é, no folclore
irlandês, um espírito ou fada que pressagia a morte com terríveis lamentações. Associada às famílias da
antiga nobreza da Irlanda, a Bean Síde aproximava-se somente da casa onde uma pessoa devesse
morrer em pouco tempo. Se conseguissem capturá-la, ela seria obrigada a dizer o nome do indivíduo
fadado à morte. Uma forma da Bean Síde conhecida na Escócia é a Bean Nighe (“Lavadeira”), vista
lavando no vau de um rio as mortalhas dos que morrerão em breve. Sua aparência é ainda mais temível
que a da Bean Síde. Existe a possibilidade de que seja uma forma da Morrígu.
As pedras suspensas (Stonehenge)
Os sons do amanhecer ecoam pelas plantações
E misturam-se com a brisa da manhã
Pedras suspensas, deixando minha mente livre
Uma magia sagrada queima meu corpo
E chega até as raízes do campo
Pedras suspensas, tudo está crescendo verde!

Conectando o chão ao grande céu azul

O chamado virá da terra mais profunda


Pedras suspensas lavando a minha alma

O poder verde vem para encontrá-los


Folhas secas em um velho carvalho
As pedras suspensas curando a doença da vida

Pensamentos que gritam durante a procura


Na sombra de um lobo da noite

O chamado virá (o chamado virá) da terra mais profunda


Pedras suspensas lavando a minha alma
The Hanging Stones (Stonehenge)
(Música: Marcelo Moreira e Antônio Teoli / Letra: Eduardo Amaro e Alexei Leão)

The sounds of dawn echoes through the crops


And mingles with the morning breeze
The hanging stones leaving my mind free
A holy spell burns my body
And gets into the roots of the field
The hanging stones, everything is growing green!

Connects the ground to the great blue sky

The call will come from the deepest earth


Hanging stones washing my soul away

The power of green comes to find them


Dry leaves in an old oak tree
The hanging stones healing the sickness of life

Screaming thoughts appearing through the quest


In the shadow of a night wolf

The call will come (the call will come)


from the deepest earth
Hanging stones washing my soul away
6

O mar secreto
Amergin quase não suportou o impacto das forças que o atingiram em Tír
inna n-Óc. O fiel falcão, preocupado com seu estado físico e mental,
despertou-o bicando levemente sua face. Ele sentiu um pesar intenso no
olhar da ave e intuiu o que ocorreu.
– Não te inquietes, estou vivo: uma pequena lagoa inundada por um
oceano de exaustão. Dize: és Suthain ou Mallach? Minha percepção está
ainda nublada.
– Sou ambos – soou uma voz firme na mente de Amergin. – Mallach
entregou seu corpo físico para que esta forma não sucumbisse e nela
Mallach estará até que se completem os dias que deveria viver neste mundo.
Suthain agora desfruta das lembranças e do saber de Mallach, e este agora
possui a visão e a magia do falcão místico. Somos um e um é nosso
propósito: levar-te ao teu destino. Olha ao teu redor: as Pedras do Sol foram
muito danificadas, Lios na Grainsi tornou-se uma ruína! Que podemos fazer
agora?
– Mallach que habitas em Suthain, imenso foi o teu dom e tua lealdade é
maior que qualquer dos poderes do Outro Mundo. Nada te peço neste
momento. Acompanha-me à praia apenas. Preciso recompor-me, ordenar
meus pensamentos e compreender tudo o que testemunhei.
Dessa forma, ambos chegaram até a enseada. Amergin pediu ao seu
companheiro que o deixasse sozinho, o falcão abriu as asas e voou de volta
para a floresta, pois Amergin precisava da solidão e do mar. Quando busca
respostas, o mar é o seu refúgio e a Lua, sua conselheira!
O mar reluzia as estrelas como lâminas. Sereno e solitário, batia nas
pedras e revelava a sua dor.
O mago queria mergulhar naquelas tristes águas até as profundezas
abissais da alma. O infindo oceano é nossa morada, a escuma espraia nas
movediças praias, derrubando nossos castelos de areia, transformando ondas
em suspiros dormentes.
– Mar secreto, revela-me o céu, refletindo em tua pele azul a face
desconhecida da estrela da manhã, que esconderá todas as minhas
cicatrizes!
O mar calmo começou a criar ondas, a voz do druida elevou-se numa
correnteza de palavras. Uma vaga gigantesca veio em sua direção e, ao
prever o impacto iminente, Amergin protegeu a face com o braço direito,
mas não foi atingido. Como se detida por alguma barreira invisível, a onda
cristalizou-se em uma parede líquida a poucos metros dele. Uma forma de
contornos femininos começou a destacar-se da superfície.
Expectante, Amergin contemplou a figura que lentamente avançava em
sua direção e ia pouco a pouco assumindo aspecto humano. Atrás dela, a
parede de água repentinamente despencou. Sim, o druida já a conhecia. Ele
estava outra vez diante da Grande Rainha.
– Amergin, será temor o que percebo em teus olhos?
– Filha do Povo Nobre, seria estranho um mortal estremecer na presença
da Senhora da Matança? Nosso último encontro não foi feliz.
– Tranquiliza-te. É em teu auxílio que venho desta vez. Sabes que meu
povo deixará esta terra, e tu, o mais ardiloso de tua raça, foste escolhido
como guardião do conhecimento que será nosso legado ao mundo dos
mortais, para meu pesar. Coube-me ser tua guia e revelar-te o caminho para
alcançares essa dádiva... Caso a mereças.
– Curvo-me ao poder que me colocou sob tua orientação.
– Percebo que aprendeste a arte da cortesia desde o nosso último
encontro.
– Pelo mais duro caminho.
– Já conquistaste três dos quatro tesouros do meu povo. Apenas
Caladbolg ainda não está em teu poder.
– Sim, somente a espada e...
– E serás um mago de poder insuperável!
– Serei aquele que trará paz duradoura a esta ilha!
– Frágil é tua raça, sempre temendo a dor e a morte. Por isso, compreendo
o anelo de teu coração. Ainda uma vez, contudo, deves provar tua força e
teu merecimento para receberes a Espada da Vitória.
– E qual é a provação, nobre deusa?
– A espada está sob a guarda de Nuadu novamente. Quando as Tuatha Dé
Danann compreenderam que teriam de abandonar a superfície de Ériu,
migrando para os Síde ou para as Ilhas do Oeste, decidimos que nossos
feiticeiros esconderiam os tesouros. A espada, em especial, foi reivindicada
por Nuadu. Atravessarás o oceano para te encontrares com ele.
Enquanto Morrígu e Amergin dialogavam, uma jovem alva como a
espuma das ondas e de cabelo dourado como o trigo surgiu da água. Ao
contrário da deusa guerreira, já conhecida de confrontos passados, a recém-
chegada era estranha ao druida.
– Saudações, temível Morrígu, venho a ti pelo druida como ordenado por
meu pai.
– Eu esperava por ti. Amergin, esta é Niamh Cinn Oir,30 filha de
Manannán e Fand, princesa de Tír inna n-Óc. Em deferência ao meu pedido,
o Senhor das Brumas consentiu que ela fosse tua guia. Niamh conhece a
estrada dos navios tão bem quanto eu conheço e aprecio o som da carne que
se rasga.
– Ainda que obedeçais a poderes mais altos, descendentes de Danu, serei
sempre grato por vosso zelo.
A filha de Manannán virou-se para o mar e acenou em direção ao
horizonte, chamando:
– Eich na Mara!31
À distância a água borbulhava e um enorme cavalo totalmente branco
irrompeu da planície marinha, galopando até a praia com a rapidez do
vento. O animal abaixou a cabeça ao aproximar-se de Niamh, que acariciou
sua crina e montou com um movimento ágil, denunciando familiaridade
com a montaria. Com menos garbo, Amergin acomodou-se atrás dela.
Niamh disse uma frase inaudível na orelha do cavalo, que partiu com a
velocidade da águia que avista do alto um grande salmão nas águas do
lago.
Em tempo não maior do que o necessário para declamar uma estrofe de
quatro versos, os viajantes atingiram a enseada onde o velho rei Nuadu os
aguardava.
– Chegamos ao nosso destino, druida – disse Niamh. – É tempo de
enfrentares tua sina!
– Boas-vindas, peregrinos – saudou Nuadu. – Então és tu o sábio dos
filhos de Mil a quem Caladbolg foi designada? Em breve saberemos –
completou, com uma expressão levemente irônica.
– Nuadu generoso – respondeu Amergin, ignorando qualquer sinal de
sarcasmo –, curador magnífico, soberano entre todos os bravos e justos, a ti
minhas mais sinceras saudações. Suplico-te: indica o caminho para o último
tesouro. Ainda que uma chuva de fogo despenque do alto, a cada passo, e a
terra estremeça sob meus pés, eu o percorrerei sem duvidar.
– Não desejo testar teu corpo, mas tua mente. Passado e futuro
confundem-se em minha longa existência, pois tudo retorna ao mesmo
ponto na imensa espiral do tempo: onde tudo cresce para então diminuir.
Apenas o presente me parece turvo, pois a sombra das coisas vindouras e a
luz mortiça dos tempos idos projetam-se sobre ele. Sei que em algum
momento outro humano de linhagem igualmente nobre enfrentará o mesmo
desafio que te proporei, mas não posso ainda discernir quem será nem como
ele o resolverá. Quanto a ti, espero que uses o poder de tua inteligência,
mostrando-te assim capaz de triunfar sem iniciar qualquer batalha. O futuro
necessita de sábios pacificadores. Devemos partir e não deixaremos este
mundo para uma ralé que derrame o sangue sem qualquer preceito. Vês as
pedras que estão ali adiante? – Nuadu apontou para um aglomerado de
pedras litorâneas.
– Sim, venerável, claramente.
– É onde se encontra o prêmio que buscas. E que será teu se conseguires
retirá-lo do firme punho dos rochedos.
Amergin, assim, dirigiu-se ao grupo de pedras, três delas em pé, como
grandes dedos retorcidos assomando da areia. Além delas, havia uma
grande lousa horizontal, um retângulo quase perfeito, e uma longa espada
de lâmina larga profundamente cravada no centro do monólito.
Irrefletidamente, o druida tentou arrancá-la. Uma, duas, três vezes, sem
sucesso. A lâmina não se moveu uma polegada de sua bainha de pedra. A
questão aqui não é força, pensou Amergin. Nuadu disse-me que testaria
não meu corpo, mas minha mente. É um enigma que ele me propõe. Mas
qual a pista?
Repentinamente, uma das frases ditas por Nuadu refulgiu na mente do
druida: “Na imensa espiral do tempo... tudo cresce para então diminuir.”
Lembrou-se dos mestres-pedreiros de sua terra natal, de como obtinham os
grandes blocos de pedra que eram a matéria-prima de sua arte. Usavam os
princípios básicos do universo: fogo e água. Inseriam cunhas de madeira nas
fendas das pedras, depois as ensopavam com água. As cunhas então
inchavam, aumentando as rachaduras e permitindo que fossem
esquartejadas com malhos e cinzéis. Com o metal dava-se o contrário:
expandia-se ao ser aquecido, e contraía-se com o resfriamento. “Essa é a
resposta: crescer e diminuir, expandir e então contrair!”, Amergin exultou
em seu íntimo, louvando a ciência dos vates que fizeram dele um
observador atento de todos os fenômenos do mundo natural.
– Grande poder além dos deuses, firmeza da pedra e rugido do mar, fome
do fogo e sopro do tufão, união do céu e da terra; vem a mim agora,
serpente luminosa do firmamento!
Girando velozmente seu cajado, Amergin transformou-o na Lança dos
Reis.
– Invoco o poder do raio, mensageiro de Taranis! Invencível Lança de
Esras, liberta o raio!
Desse modo, a lança produziu uma intensa descarga elétrica que atingiu a
espada, tornando-a incandescente com o calor. Em poucos instantes, a arma
mágica voltou a ser cajado e o druida iniciou a segunda parte do feitiço.
Ao comando do mago, as ondas se enfureciam como um rebanho de
ovelhas saltando uma cerca, derramaram-se sobre a espada e uma nuvem de
vapor elevou-se com o choque. Com a espada abruptamente resfriada,
Amergin pôde retirá-la da pedra com pouco esforço. A exemplo dos demais
dons, o símbolo da espada incrustou-se no cajado assim que Caladbolg foi
absorvida.
Como imaginei, refletiu Amergin, o raio provocou na lâmina a mesma
dilatação que a água na madeira. O espaço entre a espada e rocha, que a
prendia, aumentou. Quando a água a resfriou, ela retornou ao seu tamanho
original e a folga resultante permitiu-me extrair o artefato. Triunfo da
mente sobre a força corpórea, como desejou Nuadu.
– Venceste, milesiano! Os presságios de nossos videntes outra vez se
confirmam – Morrígu veio anunciar, apoiando o pensamento de Amergin.
– Grande Rainha, abriste-me o caminho para o último tesouro e terás
sempre minha gratidão. Detenho agora a totalidade dos dons de Danu e
posso oferecer ao meu povo a liderança de que necessita!
– Esqueces, Amergin, que vejo no teu íntimo. O que me dizes, não o
sentes. Sabes que ainda há em ti uma mácula, tua força é corrompida pela
dúvida. A ferida em teu espírito impedirá que te assenhoreies de todo o
poder que os tesouros podem dispensar. Somente uma parte dele podes ter,
a qual não te bastará para os fins que almejas. Há ainda algo que somente
nós podemos te conceder. Dentro em pouco entenderás.
Morrígu tocou o ombro direito do druida e ambos foram transportados a
Tír inna n-Óc, onde o Homem de Folhas, a mando de Lugh, os esperava.
– Qual o propósito disto? – perguntou Amergin, exasperado ao vê-lo.
– Tua desconfiança é agora descabida, animal de carne – respondeu o
deus dos bosques rudemente.
– Chamas-me animal? Tu, abominação? Tu, que não és nem animal nem
planta, um lacaio despido de toda lealdade! – bradou o mago.
– Que haja paz entre vós! Agora vedes tudo como se refletido num
espelho, mas já vereis face a face e com clareza. O grande plano revelará
seu sentido – disse Danu.
A voz da deusa tornou-se mais grave, Amergin e o Homem de Folhas
escutam-na como se proveniente de uma funda caverna. Ela declarou:
– Em Tír inna n-Óc não há doença, não há velhice, não há morte, não há
mentira. Em Tír inna n-Óc o verão é eterno, revoadas de pássaros espalham
seu canto entre árvores sempre floridas e carregadas de frutos. Homem
mortal, foste trazido a este lugar para assumires a natureza de seus
habitantes. Mostraste coragem, dedicação, lealdade, poder, sagacidade e
conhecimento. Em nada diferes de nós, a não ser em tua mortalidade. Sou a
Rainha da Carnificina, mas também a Senhora da Vida e Conhecedora da
Toda a Magia. Neste momento, Amergin, filho de Mil, filho de Bilé, filho
de Breogan, retiro-te do reino da carne e do fluxo do tempo, para que vivas
a vida dos Filhos de Danu e possas contemplar passado e futuro igualmente,
movendo-te entre eles conforme tua sabedoria. Serás o elo entre os deuses
que partem e os homens que ficam.
Uma bola de luz prateada saiu da boca da Morrígu diretamente para a de
Amergin, que a engoliu. Ele estremeceu e gritou em agonia. Nas grandes
artérias e nas menores veias de seu corpo, o sangue foi devorado e
substituído pela luz das Tuatha Dé. Sua pele tornou-se translúcida, como
uma jarra de vidro cheia de vaga-lumes. Aos poucos, o ritmo retornou à sua
respiração. Seu corpo aprumou-se. O peso dos anos desapareceu. Amergin
olhou para a erva do chão e viu a seiva que nela corria e o espírito vivo que
rodopiava ao seu redor. Ele olhou para o céu, não sabia se era dia ou noite,
pois via a aurora e o poente a um só tempo, o sol dourado e as estrelas. O
tempo perdeu o sentido. Posso aprender a viver com isso, Amergin pensou.
Meu corpo e minha alma são um. Suthain, também estás comigo, sinto tuas
asas!
E assim Amergin, druida, juiz, poeta, foi chamado a viver na Terra da
Eterna Juventude como um de seus filhos.
30 Niamh Cinn Oir, “Brilhante Cabeça Dourada”.

31 Em gaélico antigo: “Ó Cavalo do Mar!”


O mar secreto
As lâminas no chão do teu reino
São como estrelas luzentes
Sob a luz da lua
A confusão lhe cerca

As mais fortes ondas de serenidade


Atravessam o mar silencioso
Alcançando os seus segredos internos
Derrubando todos os castelos

O infinito oceano é a nossa morada


Neste mundo sem fim
O mar não está acordado

A face desconhecida
Estrela da manhã, em breve esconderá minhas cicatrizes!
O mar secreto
Tempos de tempestade, revelam o céu para mim

Eu quero mergulhar neste oceano de tristezas


Até as profundezas da alma. Toda minha vida!

O infinito oceano é a nossa morada


Neste mundo sem fim
O mar não está acordado
O infinito oceano é a nossa morada
(é a nossa morada)
Neste mundo sem fim
(mundo sem fim)
O mar não está acordado

(Refrão)
The secret sea
(Música: Marcelo Moreira / Letra: Eduardo Amaro e Alexei Leão)
The blades on your kingdom`s ground
Are like shining stars
Under the light of the moon
Confusion is surrounding you

The strongest waves of serenity


Are crossing the silent sea
Reaching out your inner secrets
Taking all the castles down

The endless ocean is our home


In this never ending world
The sea is not awake

The unknown face


Morning star, soon will hide my scars!
The secret sea
Age of storm, reveals the sky to me

I wanna dive in this ocean of sorrows


Down to the depths of the soul. All my life!

The endless ocean is our home


In this never ending world
The sea is not awake
The endless ocean is our home
(is our home)
In this never ending world
(never ending world)
The sea is not awake

(Chorus)
7

Vitória esmagadora
– Partamos para nossa primeira viagem. Mostrar-te-ei o semideus de tuas
visões.
– O menino atacado pelo cão?
– O menino que matou o cão! – corrigiu o Homem de Folhas.
– Como assim? Ele estava banhado em sangue! Como poderia
sobreviver?
– Já verás! – exclamou Morrígu.
Uma intensa névoa começou a se formar abaixo de nossa cintura. Uma
esfera azul brilhava intensamente acima de suas cabeças, emitindo raios que
começavam a piscar, e deixaram Amergin cego por alguns segundos.
– Vê e aprende, milesiano! – aconselhou a deusa. – Estamos em Emain
Macha32 e aquele é Conchobur Mac Nessa,33 rei de Ulaid.34 O pequeno,
enfrentando uma multidão de outros de sua idade, é seu sobrinho, Sétanta.35
– O rei será um de seus pais adotivos – acrescentou o Homem de Folhas.
– É ele o filho de Lugh? – perguntou Amergin.
– De Lugh e de Deichtire, meio-irmã do rei – respondeu o Senhor dos
Bosques.
– Gostaria de conversar com o jovem.
– Isso não será possível – explicou a Morrígu. – Somente os deuses
podem criar para si corpos semelhantes aos dos humanos. Estes que, como
tu, deixaram de viver no mundo mortal e não possuem essa capacidade. Se
chegarem a pisar novamente na terra dos mortais, transformar-se-ão em pó
de imediato. Portanto, olha e aprende!
Não conseguia tirar meus olhos daquele menino. No campo de jogos de
Emain, onde guerreiros e aprendizes desenvolviam e treinavam suas
habilidades marciais, Sétanta enfrentava uma tropa de outros garotos,
alguns mais crescidos e experientes, e dominava-os com uma só mão.
Desferindo golpes certeiros contra seus oponentes, era como um jovem urso
no meio de um bando de esquilos.
À distância, Amergin apenas observava as proezas do menino e
maravilhava-se com o desempenho, intuindo que tal vigor somente poderia
ser herança de Lugh, seu pai divino.
– Bravo, rapaz, mas já basta! – ordenou o rei, que havia se aproximado do
campo ao ouvir a algazarra. – Ele será um grande guerreiro para Ulaid, não
é mesmo? – perguntou a seu séquito.
E ninguém poderia contrariá-lo.
– Jovem, o ferreiro Culann36 convidou-me para uma celebração em sua
casa esta noite. Dezenas dos mais valentes de nossos guerreiros lá estarão, e
desejo apresentar-te a teus futuros irmãos de armas e ao grande artífice que
as forjará.
– Agradeço pelo convite, senhor. Posso antes terminar o que estou
fazendo? Prometo que não demorarei a segui-lo.
– Acredito que serás rápido – disse o rei, sorrindo. – Ninguém se iguala a
ti.
Conchobur partiu com seus cortesãos. O grupo figurava uma bela visão:
homens de várias idades, trajando túnicas multicoloridas e capas bordadas
com fios de ouro. Lanças com pontas de bronze e escudos cerimoniais do
mesmo metal com adornos em esmalte completavam o aparato do séquito
real, que seguia rumo à casa de Culann montado em altivos cavalos brancos,
negros e castanhos, finamente ajaezados e com belas testeiras ornadas de
chifres.
Como prometido, o jovem Sétanta em pouco tempo esgotou as forças de
seus oponentes, deixando-os prostrados e incapazes de voltar ao combate.
Cuidadoso com sua aparência, o jovem lavou o rosto em uma fonte
próxima, recompôs suas roupas e apropriou-se de uma das lanças deixada
no campo por algum adversário em fuga, partindo em seguida na mesma
direção que o cortejo do rei.
Invisíveis, eles foram em seu encalço, observando as brincadeiras infantis
do futuro guerreiro: Sétanta desferia golpes no ar com a lança e defendia-se
de inimigos imaginários.
– Lugh ficaria cheio de orgulho com este menino. Prevejo que será um
homem forte e valente, generoso e belo como o pai! – comentou Morrígu,
abrindo um leve sorriso.
– Eu não o achei tão generoso, Grande Rainha – respondeu Amergin.
– Lugh é senhor de muitas artes e possui várias faces, druida, nem todas
acessíveis aos mortais.
– A face que Lugh mostra aos filhos de Mil é a de alguém que suspeita de
forma desrespeitosa – resmungou o mago. – No entanto, se o consideras
generoso, é porque o conheces melhor do que eu. Pergunto-me apenas qual
a razão de estarmos enlevados atrás do bastardo de Lugh, embora não se
possa negar que seja um menino admirável.
Agastado com essa observação, o Homem de Folhas o alertou:
– Filho de mortais comedores de pão, que palavras mal concebidas deixas
escaparem de tua boca! Ó filha de Ernmas, Morrígu bravia, por que não lhe
tiraste a língua quando lhe deste a imortalidade? Tenho motivos para velar a
semente de Lugh, feiticeiro, e não são do teu interesse!
– Pela Árvore que sustenta os Três Mundos, quando há de cessar essa rixa
entre vós? Amergin, desejo que compreendas: Lugh pertence ao Povo de
Danu. Nosso exílio de Ériu, que conquistamos depois de terríveis batalhas,
foi obra sobretudo tua. A soberania da ilha agora pertence aos filhos de Mil,
que reinarão por séculos nesta terra. Aqui viemos para garantir que o sangue
de Lugh, que corre nas veias desse menino, alcance o destino que lhe está
reservado. O nome dele manterá viva a lembrança das Tuatha Dé Danann
quando a própria ciência dos druidas estiver sepultada.
Amergin estremeceu com essa possibilidade.
Ignorante de ser alvo das especulações de habitantes do Outro Mundo,
Sétanta brincava distraidamente pelo caminho. Sem perceber, por fim
alcançou a casa de Culann, uma grande construção circular, com paredes de
adobe pintadas de vermelho, coberta por um alto teto cônico de palha. De
sua única entrada, um grande portal, podia-se ver o brilho do fogo e uma
pequena parte do grande número de pessoas ali reunidas. Fumaça,
juntamente com as vozes dos convivas, subia de uma abertura no teto. Um
poço, a oficina do dono da casa, um cercado para os cavalos, tudo era
guardado por uma alta cerca.
– Deuses do Céu, da Terra e do Mar! Este é o lugar onde o cão atacará,
devemos proteger o menino para que minha visão não se concretize!
– Por que supões que não seja o destino dele ser atacado? Não nos cabe
fazer nada – afirmou Morrígu.
Cullan saudou Conchobur assim que ele chegou em sua casa, recebendo-o
com a devida atenção e, depois de conversarem sobre vários assuntos,
perguntou-lhe se havia ainda alguém a esperar. O rei se esquecera do
menino cujos feitos tanto o haviam impressionado no campo de jogos e
respondeu que não. Assim, o ferreiro deixou seu grande e feroz cão de
guarda solto na propriedade para proteger a casa durante o banquete.
Sem perceber a presença do temível animal, Sétanta adentrou o terreno. O
cão de Culann possuía a força de um touro e era quase tão grande quanto
um. Somente a seu mestre era leal e ninguém além de Culann podia
controlá-lo.
A fera avistou o pequeno Sétanta. Veio rapidamente por trás do menino e,
ficando sobre as patas traseiras, abocanhou-o o ombro. Alto foi o grito de
Sétanta, alertando todos que estavam dentro da casa. Não foi a dor, porém,
que fez o menino gritar; foi a surpresa do ataque. E a fúria.
Ele apertou o cão pelo pescoço, impedindo-o de respirar e fazendo-o abrir
a boca. Segurando a besta pela cabeça, Sétanta a girou como o fuso de uma
roca de fiar e subitamente largou-a, lançando o animal contra uma grande
pedra. A força do choque fez a cabeça do cão abrir-se como uma abóbora.
Ainda tremendo de fúria e com o ombro sangrando, o pequeno guerreiro
caminhou para a entrada da casa. Culann veio recebê-lo à porta.
– Bem-vindo sejas, rapaz. Bem-vindo em razão de teu pai e de tua mãe,
mas não por tua própria chegada.
– Que tens contra o menino, Culann? – Conchobur perguntou.
– O que tenho contra ele? Ora, melhor seria que eu não vos tivesse
oferecido uma festa em minha casa hoje, pois este garoto matou o guardião
de minha casa, dos meus rebanhos e manadas, de todas as minhas riquezas.
O que me roubaste, rapazinho, era um bom amigo.
– O cão atacou-me! – gritou Sétanta, ainda enfurecido.
– Respeite-me dentro de minha propriedade, jovem insolente! Era ele que
protegia a minha propriedade e tu eras um intruso! Ele te atacaste, é
verdade, mas tu precisavas matá-lo para defender-te?
O menino ficou sem saber o que dizer. O homem tinha razão. Ele o
desrespeitou e agora a dívida dobrou. Sétanta não sabia controlar a própria
força e, sobretudo, reprimir sentimentos como a raiva, algo tão importante
para um guerreiro em combate. Ter o equilíbrio, e Sétanta já sabia disso, é
muito importante em uma batalha.
– Qual teu julgamento a esse respeito, Sétanta? – perguntou Conchobur.
O garoto teve o ímpeto de responder de imediato, mas lembrou que,
tomado pela adrenalina e ainda com raiva, não responderia justamente
àquele a quem ele deve não somente respeito, mas um novo cão, pois, por
sua culpa, Conchobur tivera esta grande perda. O menino procurou acalmar-
se, a fim de encontrar uma boa solução para este impasse.
– Qual teu julgamento? – perguntou novamente de uma forma mais
ríspida, devido à demora da resposta.
O menino finalmente manifestou-se:
– Não te enfureças, meu mestre Culann, pois compensarei tua perda.
– Como podes compensar-me, menino?
– Não posso oferecer um cão igual, mas, se houver nesta ilha um filhote
da mesma raça, hei de criá-lo eu mesmo até que seja capaz de fazer tudo o
que era feito pelo cão que matei. Enquanto isso, para guardar tua casa, teus
rebanhos, tuas manadas e todas as tuas riquezas, eu mesmo serei o teu cão.
Serei o cão de Culann.
– Muito bom foi teu julgamento – disse o rei.
– Nós não teríamos chegado a decisão melhor – interveio Cathbad, o
druida do rei. – Não te agradaria, jovem, que a partir de agora fosses
chamado Cúchulainn?37
– Não, pai druida, gosto do nome que me foi dado, Sétanta, filho de
Sualtam.
– Não será assim, filho, é com o nome Cúchulainn que terás fama imortal
entre os homens de gerações que ainda não nasceram – profetiza o druida.
– Qualquer nome que me deis – Sétanta sorriu, encantado com a promessa
de fama perene – aceitarei de bom grado.
A plateia invisível daqueles acontecimentos também ficou
favoravelmente surpresa.
– Tanta honra e bravura e tão pouca idade...! – elogiou o Homem de
Folhas.
– Tenho de concordar, o menino é o jovem broto de uma cepa nobre. Na
minha visão, o sangue em seu ombro...
– Imaginaste que ele morreria – concluiu Morrígu.
– Exatamente! Que engano tolo! O filho de Lugh é imortal!
– Estavas enganado, druida, e agora erras... – Morrígu observou. –
Cúchulainn cairá pela lança de Lugaid Mac Con Roí.38 Assim como a
bravura e o vigor são o legado de seu pai, a mortalidade é a herança de sua
mãe. Ele ficará enfraquecido em seu corpo e em seu espírito, o peso da
tristeza tomará seu coração. Medb será então a rainha de Connacht e enviará
um exército em seu encalço, transferindo aos guerreiros sua magia. Eles
provocarão graves feridas e a lança mágica,39 que Cúchulainn ostentará,
será tomada dele. O herói cairá em pé, dignamente, mas terá o fim a que
todos os mortais são predestinados, e nem Lugh poderá salvá-lo. Esse é o
real destino do herói Cúchulainn e não há alteração no curso dos
acontecimentos que me faça duvidar desse fado.
Mergulhando séculos no futuro, Amergin finalmente compreendeu o
significado de suas visões: a fusão entre divindades e humanos que iria
realizar-se naquela terra onde seu povo passaria a habitar. O maior
ensinamento, contudo, ainda estava no porvir.
– Deixemos agora o mundo dos mortais, mago. Danu quer a tua
presença!
Envolvidos pela névoa mágica criada pela Morrígu, o grupo retornou a
Tír inna n-Óc, onde a ancestral dos deuses aguardava inquieta sua chegada
ao Palácio da Luz.
32 Emain Macha (“Gêmeos de Macha”), hoje Navan Fort, em Contae Ard Mhacha (County Armagh),
na Irlanda do Norte.

33 Conchobur (“aquele que ama cães”), é filho de Neas, filha de Eochaid Sálbuide, rei de Ulaid, e do
druida Cathbad. Graças aos ardis de sua mãe, tornou-se rei de Ulaid aos 7 anos de idade, substituindo
Fergus Mac Róich.

34 Ulaid, a província ao norte da Irlanda.

35 Sétanta, “Descobridor dos Caminhos”.

36 Culann é o ferreiro (gobae) do Síd de Sliabhg Callann (“Montanha das Alturas”), em Contae Ard
Mhacha (County Armagh), na atual Irlanda do Norte. Era parte das Tuatha Dé Danann e vivia em Ulaid
na época de Cúchulainn (por volta do começo da Era Cristã, pois o rei Conchobur teria nascido no
mesmo dia que Jesus), como fica claro nesta narração. Culann aparece também nas aventuras do rei
Cormac Mac Airt (Grande Rei da Irlanda de 227 a 283 d.C.) e do herói Find Mac Cumail. De acordo
com uma lenda irlandesa, a filha de Culann, Áine, apaixonou-se por Find, mas não foi correspondida.
Ela então o jogou num lago e Find, ao sair da água, percebeu que se tornara um ancião. Os Fianna
(grupo de guerreiros cujo líder era Find) encontraram-no assim, foram ao síde de Culann, em Sliabhg
Callann, e começaram a escavá-lo. Culann saiu do monte encantado e, furioso, perguntou-lhes por que
estavam destruindo sua morada. Os Fianna disseram-lhe o motivo e Culan retirou de Find todos os
sintomas da velhice, exceto os cabelos grisalhos. Desse modo, Find, embora um homem novo, ficou
com a cabeça de um velho.

37 Cúchulainn (“Cão de Culann”).

38 Cúchulainn matou Con Roí (“Cão do Campo de Batalha”), rei de Mumhain (Munster, província ao
sul da Irlanda), pai de Lugaid, para obter Bláthnat, filha de Mend, rei de Inis Fer Falga (talvez a Ilha de
Man).

39 GáeBolga (“Lança da Dor Mortal”) era o nome da lança de Cúchulainn, que a recebeu de sua
mestra, a guerreira Scathach (“Sombria”), que apenas a ele ensinou a técnica para manejá-la. A
GáeBolga foi feita com o osso de um monstro marinho, o Coinchenn, que morrera em combate com
outro monstro marinho, o Curruid. De acordo com o Lebor Laignech (“Livro de Leinster”, do séc. XII),
havia um ritual para utilizar essa arma: deveria ser preparada para o uso em um córrego e lançada com
a forquilha do dedão do pé. Ela assim entraria no corpo de um homem provocando um único ferimento
e abrindo-se em trinta farpas, de modo que somente poderia ser extraída se a carne fosse cortada. Em
outras versões da lenda, a GáeBolga é uma lança com sete pontas, tendo cada uma sete farpas.
Vitória esmagadora
Ferida está a pele do guerreiro
Valente é a alma sem um pecado
Na mão dele, uma espada reluz
Na sua face, brilha um guerreiro

O mundo está quebrando!


Todas as nações caem em ruína!

Desta vez meu coração não terá medo


É uma vitória esmagadora
Não cairei de joelhos
Porque é uma vitória esmagadora

Agora tomando o centro da sua visão


Todos os sete fantasmas lutarão esta noite
Agindo rápido para sentir a leveza em minha mente
Tal qual dragões em um combate!

O mundo está quebrando!


Todas as nações caem em ruína!

(Refrão)
Crushing Victory
(Música: Cláudia Barron e Marcelo Moreira / Letra: Eduardo Amaro e Alexei
Leão)

Wounded is the warrior’s skin


Brave is the soul without a sin
In his hand, the sword is shinning
In his face, the hero glows

The world is crashing down!


Every nation crumbling!

This time my heart will have no fear


It`s a crushing victory
I won`t be falling on my knees
Cos it`s a crushing victory!

Now taking the center of his eyesight


All the seven ghosts will fight tonight
Acting fast to feel the lightness on my mind
It looks like dragons in a dungeon!

The world is crashing down!


Every nation crumbling!

(Chorus)
8

O Templo da Luz
– Bem-vindos à minha morada! – Danu saudou.
– Trago o druida Amergin, como pediste, mãe Danu – Morrígu
respondeu. – Sua entrada em Tír inna n-Óc fez nascer a paz em seu espírito,
e toda a inquietação que antes o perturbava é agora uma lembrança de seu
passado mortal.
– Estás enfim pronto para compreender o que tenho a contar – Danu
concluiu, dirigindo-se a Amergin. – Deixai-nos por um momento.
Dessa forma, o Homem de Folhas e Morrígu saíram do recinto.
– Eis que chega o tempo das revelações, fiel mago. És o escolhido.
Aceitas saber a verdade sobre a razão de nossa vinda à Ilha Verde?
– Sim, Danu venerável! Conta-me desde o princípio! Tenho esperado
ardentemente por essa revelação.
– Assim seja. Em outra terra, de cujo nome apenas o vento e as ondas do
mar guardam lembrança, eu estava sentada em uma pedra, na margem de
um rio caudaloso que corria em direção à aldeia do meu povo. Livre estava
meu espírito naquele momento, como a borboleta que pousa descuidada de
flor em flor – suspirou Danu, ao lembrar o enlevo que a tomara naquela
oportunidade. – Eu observava o fluir tranquilo e constante das águas,
levadas pela surpresa de seu próprio desenrolar, e desejava ser como elas.
Peixes, a distância, emergiam da líquida planície, ávidos pelos insetos que
voejavam de um lado para outro. Cisnes altivos dirigiam-se para a margem
onde eu estava, alvos como as nuvens do céu luminoso que espiralavam
para formar uma imagem indefinida, enquanto a força cósmica da vida
realizava dentro de mim seu encantamento silencioso. Minha consciência
então adormeceu e, no morno torpor que me dominou, senti o pulsar da
força criadora e vital de tudo o que existe. Ela falou-me com voz clara e
irresistível: “Escolho-te para gerares uma nova raça que me há de conhecer
e honrar-me com o santuário onde habitarei entre meus filhos.” Naquele
instante, avistei pela primeira vez as praias desta ilha verdejante e, glorioso
entre todos os habitantes das florestas, vi o carvalho milenar cuja emanação
atingiu-me de imediato. Era a própria força da vida que me ordenava:
“Constrói o Templo da Luz, casa de sabedoria e paz. Essa é a mesma luz
que existe dentro de ti, segue-a e todas as outras luzes estarão a teu serviço.”
Assim me foi dito, filho de Mil, assim eu fiz, assim se realizou. O mesmo
poder inspirou-me a ordenar a construção das embarcações que trouxeram
meu povo das terras longínquas do norte para esta ilha. Peregrinamos
durante muito tempo em uma jornada perigosa e nos é difícil aceitar que,
depois de tantos esforços, fomos derrotados por uma gente que não ouviu o
mesmo chamado: teu próprio povo, Amergin! Jamais conhecemos revés
contra quaisquer inimigos, pois sabemos interpretar os sinais das estrelas e a
voz do vento, dominamos o fogo que sobe da terra e a tempestade que
cascateia do céu, compreendemos a voz dos pássaros e nada do que se
oculta nas sombras nos é desconhecido. A magia de Tír inna n-Óc a tudo
alcança, a luz de que somos portadores insinua-se nos recessos mais ocultos
desta terra!
– Abençoaste todos os seres viventes, deusa gentil, mesmo os teus
inimigos. Entre pequenas colinas és a montanha cujo pico oculta-se nas
nuvens.
– Contudo, o destino ordena que esta montanha busque em outra parte o
seu manto de nuvens, pois já não lhe pertence o céu que a cobre. Partimos
em busca de novos caminhos, mas a luz que nos guiou até aqui há de
permanecer, e serás tu o espelho em que as gerações dos homens a
contemplarão. O Templo da Luz serás tu, em ti deposito toda a magia de Tír
inna n-Óc, a memória do meu povo e a grandeza de nossas aspirações.
– Não compreendo...
– Não somos estas construções de pedra e metal, não somos as realizações
de nossos artífices, nem sequer os instrumentos mágicos criados por nossos
sábios expressam tudo aquilo que somos. Nossa identidade manifesta-se em
nossas ações, em nossa relação com o mundo e com todos os seres que nele
habitam: a dignidade que atribuímos a todos e o respeito que temos para
com eles, e uns com os outros, isso é o que somos. Em todas as provas que
atravessaste, ficou evidente que aquilo que somos, também tu o és. Podes,
assim, mostrar-nos a teus irmãos quando tivermos partido.
– Dizes que a luz que brilha em vós brilha em mim de modo que posso
refleti-la aos mortais? Por isso a Grande Rainha deu-me a vida das Tuatha
Dé?
– Compreendeste enfim. E sabes que deves entregar-me o cajado.
– Toma-o – disse Amergin, estendendo a Danu a arma mística.
A deusa iluminou-se ao tocar o artefato. Suas vestes, agitadas por um
sopro de origem desconhecida, esvoaçavam. Os símbolos dos Quatro
Tesouros desprenderam-se do bastão e adejaram ao redor da cabeça de
Danu como grandes e brilhantes borboletas, circundando-a cada vez mais
depressa até se tornarem indistinguíveis. Subitamente ficaram imóveis e,
com ligeiro estremecimento, precipitaram-se em direção ao druida. Um a
um, os Quatro Tesouros afundaram em seu peito, unindo-se à sua essência
vital. Cada impacto aproximava-o das Tuatha Dé e afastava-o de sua origem
milesiana. Amergin tornou-se menos tangível. E mais sábio.
Toda a existência pareceu revelar-se ao druida; os mistérios dissiparam-
se. Amergin pisou na realidade sem tempo onde Danu existe e ambos
partilharam a eternidade, renovação incessante do momento presente. O
sacerdote já não pertencia ao número dos mortais. Ele era agora um dos
deuses, o mediador e último guardião da herança das Tuatha Dé Danann.
O Templo de Luz
Eu estou sentada em uma pedra, ao longo do rio
O meu coração se sente livre
(eu observo as águas)
Movendo como um pássaro num dia ensolarado
Elas acalentam a enseada divina

Mesmo no escuro eu caminho pela luz através da noite


Eu caminharei pela noite através da luz

Construa um templo de sabedoria e paz


As vozes gritam em minha face
Construa um brilhante templo de luz!
As vozes gritam para toda a minha raça

Eu estou sentada em uma pedra, ao longo do rio


E meu coração se sente livre
Movendo como um pássaro num dia ensolarado
Elas acalentam a enseada divina
O poder da natureza sussurra para mim:
O escolhido deveria construir um templo aqui!

Mesmo no escuro eu caminho pela luz através da noite


Eu caminharei pela noite através da luz

(Refrão)

Olhe para si mesmo, dia a dia


Você já possui o raio, você vai encontrar uma maneira
Leve o fogo, leve o poder
Trabalhe arduamente até a última hora

Construa um brilhante templo de luz!


As vozes gritam para toda a minha raça
The Temple of Light
(Música: Marcelo Moreira / Letra: Eduardo Amaro e Alexei Leão)

I’m sitting on a stone, among the river


My heart is feeling free
(I watch the water)
Moving like a bird on a sunny day
They rock to sleep the divine bay

Even in the dark I walk by the light through the night


I`ll walk by the night through the light

Build a temple of wisdom and peace


Voices are screaming out right on my face
Build a bright temple of light!
Voices are screaming for all my race

I’m sitting on a stone, among the river


And my heart is feeling free
Moving like a bird on a sunny day
They rock to sleep the divine bay
Nature’s power whispers to me:
The one should build a temple here!

Even in the dark I walk by the light through the night


I`ll walk by the night through the light

(Chorus)

Look at yourself, day by day


You own the ray, you’ll find a way
Take the fire, take the power
Work hard till the last hour

Build a bright temple of light!


Voices are screaming for all my race
9

Luz da manhã
A manifestação mágica ecoou por toda a Tír inna n-Óc, chegando à atenção
de Dagda, o Pai de Todos e Senhor do Grande Conhecimento. Este
entendeu a importância do acontecimento no Templo de Luz e convocou os
líderes das Tuatha Dé para um encontro urgente, enquanto manifestava o
desejo de previamente receber Danu e Amergin em seus domínios.
O druida já não mais necessitava da ajuda da deusa para manifestar-se no
tempo e no espaço, tampouco para sentir o chamado do Dagda. Entre
olhares, abrindo um leve sorriso ao notar a nova percepção de Amergin,
Danu descreveu um ligeiro arco com sua mão direita e as paredes de seu
palácio dissolveram-se de cima a baixo, dando lugar ao pomar do Dagda. O
robusto guerreiro descansava, sob um caramanchão totalmente coberto por
uma trepadeira salpicada de flores roxas e brancas, e dedilhava
preguiçosamente sua harpa de madeira clara de salgueiro, ornada de ouro e
joias. Dois grandes porcos,40 sonolentos diante do divã no qual o Dagda
estava reclinado, ergueram suas cabeças e olharam com pouca curiosidade
para os recém-chegados.
– Ouvimos teu chamado e aqui estamos – disse Danu.
– Mãe Danu e nosso novo irmão, sede bem-vindos à minha morada! –
cumprimentou Dagda. – Amergin, regozijo-me com o fato de que a escolha
tenha recaído sobre ti.
– Devo agora corresponder à confiança em mim depositada, Deus Bom.
– O dia de tua jornada entre os imortais apenas raiou. Por mais que teu
olhar avance no horizonte, seu ocaso não será visto. No ventre do tempo,
dois acontecimentos de profundo significado foram semeados e
desabrocharão como gigantes de longas sombras no mundo dos homens, de
onde foste tirado. De tais eventos, um será lembrado por eras, sem número
nas gestas dos heróis e soberanos da Ilha Verde, enquanto o outro há de
ficar coberto pelo manto das névoas espessas.
– Por esses sucessos serei o responsável?
– De um serás agente. Do outro, mero espectador.
Enquanto as divindades conversavam, uma corça castanho-avermelhada
começou a aproximar-se delas dissimuladamente. O animal mordeu a
grama, andou alguns passos e voltou a pastar como se contasse cada folha
que abocanhava, repetindo esse procedimento até chegar bem perto do
grupo. Amergin percebeu a movimentação sorrateira do animal. Habituado
a observar as criaturas da natureza, pareceu-lhe estranho o comportamento
do inesperado visitante, que contrariava a timidez usual da espécie ao
acercar-se de potenciais caçadores. Absorvido no diálogo, porém, o druida
não lhe deu maior atenção.
– Então por isso nos chamaste, Deus Bom?
– Um dos motivos é sem dúvida esse, mas não o único. Nasceste para
uma nova vida que te deu capacidades ainda fora do teu domínio. Assim
como o tenro infante que não aprendeu a usar as pernas, também tu não
aprendeste o que fazer de ti mesmo. Assim como a criança não sabe aonde
será levada por seus pés, também tu não percebes aonde podes chegar.
– É mais sábio aquele que aprende com a experiência alheia. O que me
cabe fazer?
– As árvores crescem, Amergin, mas não todas igualmente. Vai
perguntar-lhes como venceram o escuro abraço da terra e chegaram a erguer
seus ramos para o céu. Aprende com elas.
Ao ouvir as palavras de sabedoria, o druida acomodou-se ao lado da
divindade e contemplou os seus próprios pensamentos. A noite caiu e a
brisa fragrante que a anunciara tocou a face de Amergin com a suavidade de
um manto de penas. Intrigado com as palavras do Dagda, o druida saiu a
perambular entre macieiras sempre em flor, aveleiras delgadas, altas bétulas
e todos os demais habitantes silenciosos do grande jardim do poderoso Deus
Bom. Os acontecimentos das últimas semanas atravessavam sua mente e ele
lutou para ordená-los e discernir o padrão oculto que lhe permitiria retirar
dessas lembranças, o que ainda necessitava aprender. Ao caminhar, afastou
distraidamente os ramos mais baixos com sua mão e pisou em gravetos que
se quebraram com estalos secos. Aferroados pela inquietude obstinada que
era sua companheira, os pensamentos de Amergin voaram como as folhas
secas que o vento soprava num remoinho:
– Percebi quão importante sou no destino da Ilha Verde – disse a si
mesmo. – Apesar de ter chegado aqui como peregrino oriundo de outra
terra, senti desde o primeiro momento a ligação estreita e inegável com este
lugar especial, sagrado. É como se dele já fizesse parte, embora nascido sob
outros céus. A esperança posso mudar em realidade, possuo força capaz de
superar a daqueles que nasceram para jamais conhecer velhice ou morte,
mas escapa-me o futuro. Vejo emaranhados os fios do tempo e não percebo
onde haveria proveito em lutar ou onde seria sábio curvar-me ao fado e
aceitar sereno seu desígnio. Fui gerado na finitude que agora contemplo,
com estranhamento observo a eternidade que diante de mim se descortina.
Percebo-me híbrido, deslocado entre as crianças da terra, estrangeiro entre
os filhos do céu. Desejaria somente viver como o fluir das águas de um rio,
levadas pela surpresa de seu próprio desenrolar, compartilhando da
existência primordial que é incompreensível em sua simplicidade. Percebo a
relação e o entrelaçamento de todas as vidas e, em raros momentos, a
urdidura do tecido cósmico desvela-se em minha mente com o fulgor suave
da luz da manhã, que louvarei até o fim dos tempos, o brando clarão em que
minha criança interior pronuncia a indagação sempre feita e nunca
respondida: “Quem sou eu?”
– Esse é o momento certo para tal pergunta, Amergin. A luz matutina é
uma boa luz. O espírito fugirá, se sobre ele lançares o clarão do meio-dia.
Absorto que estava em seus pensamentos, a voz surgida do nada puxou
Amergin de volta ao jardim, para o meio das árvores em que a sombra do
poente já triunfava sobre a luz. Ninguém via, exceto a corça de
comportamento peculiar que o fitava com olhos de ônix. Ele percebeu
inteligência por trás daquele olhar de noite sem lua. Deslocou-se um passo
para a direita e ela o acompanhou. Recuou um passo, ela avançou e
subitamente ergueu o focinho, num gesto de desafio. “E então?”, pareceu
dizer. Amergin percebeu que não estava diante de um habitante da floresta.
– Ó tu, que te escondes sob a forma de um animal gentil, quem és? És do
Povo de Danu ou pertences à raça disforme que vive sob as ondas?
– É quase ofensivo que me confundas com os gigantes monstruosos – a
voz ressoou firme no cérebro de Amergin –, uma vez que és agora um dos
nossos. Desejas, pois, saber quem sou?
– Por isso lhe perguntei.
– Não vim a ti por mero capricho. Mostra-me antes que podes ter proveito
da informação que te darei. Fala-me sobre os Caldeirões.41
– Por que te importarias?
– Importa-me que aprendas.
– Aprender o que já conheço?! Certamente sabes...
– Os Caldeirões, mago! – reiterou a corça com veemência.
– Se te apraz, os Caldeirões são três. O primeiro deles denomina-se
“Caldeirão do Aquecimento” e é nossa conexão com a própria força da
vida. Tal energia...
Amergin emudeceu, desconcertado pela repentina ardência em seu ventre.
O animal pareceu encará-lo com divertimento enquanto o tácito diálogo
entre eles mudou de tom:
– Ousaste enfeitiçar-me?!
– Tu mesmo és o teu encantador. Possuis agora o poder mágico dos
Filhos de Danu, aquilo que tua palavra enunciar tornar-se-á realidade.
Invocaste o nome da força vital e é ela que agora se agita em ti. Abre tua
túnica e olha.
Incrédulo, o druida fez como lhe foi dito e percebeu que seu abdômen
tornou-se translúcido e brilhante como um vaso de alabastro cheio de
carvões incandescentes. Com um estremecimento, Amergin compreendeu
de súbito o poder do verdadeiro instrumento mágico que esculpia a
realidade: a palavra manifestada com sabedoria.
– Percebes? Dize-me agora sobre o segundo caldeirão!
Amergin empolgou-se e não fez mais perguntas. Prontamente, continuou
o discurso.
– Trata-se do “Caldeirão do Movimento”! Ele é a nossa conexão com as
emoções, localizado em nosso coração, relaciona-se com nosso dán,42 que é
ativado pelo comprometimento com os desejos profundos da alma!
O druida sentiu a força que borbulhava em suas entranhas, mas já não
temia ou se espantava. Desejou antes que o segundo caldeirão
transbordasse, cheio do fogo líquido que jorrava do âmago de seu ser. Sem
hesitação, ele prosseguiu, consciente de que agora falava por si mesmo.
– Na cabeça está o último caldeirão, que é o da “Sabedoria”, o vaso que
concede a profecia, a sabedoria e o poder de realizar milagres. Em cada
pessoa, o terceiro caldeirão nasce com a boca para baixo; o segundo, virado
de lado e o primeiro, na posição correta. A alegria, a tristeza, o prazer e a
peregrinação aos lugares sagrados, bem como o estudo e a disciplina, têm a
capacidade de virar os caldeirões que não se encontram na posição
adequada desde o nascimento, de modo que o homem seja assim levado da
ignorância ao perfeito conhecimento. A força vital nasce no Caldeirão do
Aquecimento, constrói sua morada no Caldeirão do Movimento e floresce
totalmente no Caldeirão da Sabedoria!
O mago silenciou, ansiando por sentir o calor místico preenchendo o
terceiro recipiente. Ficou desapontado, contudo.
– Onde falhei? – perguntou atônito.
– Não me podes ver como sou. O véu de tua origem humana ainda cobre
teus olhos.
– Ter recebido a vida dos deuses em lugar de minha mortalidade não
basta para tornar-me igual a eles. A dúvida que persiste em minha alma
impede-me de abandonar a correnteza do tempo – Amergin compreendeu.
– Sim, mago. És o grande druida entre os Filhos de Mil. Nos domínios do
Povo de Danu, porém, és um aprendiz. Como os homens, estás agarrado à
lembrança do passado e à expectativa do futuro, os pilares que expressam a
luta da Forma com a Força. Deves renunciar a essa batalha da ilusão e
escolher o pilar do meio, que não é nem Passado nem Futuro, mas o Agora,
a presença da Eternidade dentro do tempo, pois esse é também o “Caminho
do Conhecimento”. Pega, Amergin, essa pedrinha – disse a corça,
escavando a terra com uma das patas – e joga-a no lago.
Amergin abaixou-se, pegou o seixo e examinou-o. Não tinha nada de
especial.
O crescente fino da lua refletiu-se no laguinho, cuja água nenhuma brisa
perturba. O druida lançou a pedra, como lhe dissera a corça.
Uma, duas, três vezes o calhau bateu na superfície líquida antes de
afundar, cada choque provocando o aparecimento de círculos concêntricos
que se entrelaçavam. Ao observá-los, Amergin sentiu o fogo tomar seu
cérebro. “Sou o deus que faz o fogo na cabeça”, ele ouviu com clareza. O
último caldeirão estava cheio de luz e os olhos do mago, abertos para o que
antes não podia ser visto.
Ele se voltou para a corça, mas se deparou com uma mulher que ergueu a
mão para saudá-lo. Ela era alta e seu longo cabelo castanho a cobria como
um manto. Seus olhos eram totalmente negros, como os do animal cuja
forma antes exibia e do qual conservava as orelhas. Usava uma túnica de
fina lã verde, levantada na frente e presa ao cinto largo de couro para
facilitar a caminhada. De couro eram também as botas de cano alto que
protegiam seus pés, deixando descobertos os dedos.
– Sou Flidais,43 mago! Meu coração alegra-se nas florestas e todos os seus
habitantes são meus companheiros. Encontro beleza em seus ciclos e
percorro sem cessar meus domínios, punindo aqueles que abusam da
generosidade da terra e de suas criaturas. Honro, porém, aqueles que me
honram.
– Está além da minha capacidade agradecer...
– Não agradeças – a deusa o interrompeu. – O fado decretou que nosso
tempo em Ériu havia chegado ao fim. O domínio dos deuses nesta terra
terminou e começará a história dos homens. Não escolhemos o exílio que
nos é imposto, mas optamos por ti, druida, mago, juiz, poeta, o melhor do
teu povo, para conservares nossa herança e memória no mundo turbulento
que virá. Não agradeças. Interessamo-nos por ti como o ferreiro que se
aplica em forjar a melhor espada. Fui rebelde a esse desígnio e solicitei ser a
última a instruir-te para certificar-me de que estarias apto a enfrentar o
grande destino que te aguarda. Sei agora que serás capaz.
– Existe grande paz na inexistência do passado, na falta do futuro.
– O futuro não precisas conhecer.
– Tudo de que necessito é saber o próximo passo... Danu me chama ao
Templo da Luz.
– Muitos esperam por ti. Somente o perceberias se tivesses êxito em levar
tua força ao último caldeirão. A passagem está aqui – disse a mulher com
orelhas de corça indicando uma gruta que antes não estava ali. – Irei
contigo, pois há muito não visito a morada de Danu.
40 Os porcos do Dagda possuíam a seguinte virtude: um deles poderia ser assado e servido. Enquanto
isso, o outro ficaria maior. Quando este fosse abatido, o primeiro imediatamente se regeneraria, de
forma que sempre houvesse carne disponível para ser consumida no banquete.

41 Um antigo poema atribuído ao próprio druida Amergin foi localizado em um manuscrito jurídico do
séc. XVI, que hoje se encontra no Trinity College de Dublin, catalogado como H 3.18. Esse poema
recebeu dos estudiosos modernos o nome de “O Caldeirão da Poesia”. Citado no Glossário de
O’Davoren (1569), o nome desse texto aparece sob diferentes formas: In Coire, Coire Goiriath, In
Coire Éarmai, sempre fazendo menção à palavra coire (“caldeirão”). A primeira estrofe do poema diz:
Moí coirecoirgoiriath/ gorrond n-írDíadam a dúilednemrib;/ dliuchtsóirsóernabroinn/
bélraembilbrúchtasúad (“Meu perfeito caldeirão do aquecimento – ou sustento/incubação/ foi por Deus
retirado do abismo dos elementos;/ verdade perfeita que a partir do âmago enobrece/ vertendo uma
torrente aterradora de palavras”). De acordo com o poema, três caldeirões existem dentro de cada
indivíduo. O primeiro chama-se Coire Goiriath (“Caldeirão do Aquecimento/Sustento/Incubação”).
Desde o nascimento, esse recipiente encontra-se virado para cima. O líquido que nele borbulha é a
força vital responsável pela saúde física. O segundo é Coire Érmai (“Caldeirão do Movimento”). Desde
o nascimento, esse recipiente encontra-se virado de lado. O líquido que nele borbulha contém o
caminho de nossas ações e realizações, as emoções e os talentos. O terceiro é Coire Sois (“Caldeirão da
Sabedoria”). Desde o nascimento, esse recipiente encontra-se virado para baixo. Ele contém nossas
habilidades inatas e potenciais naturais que podem ser desenvolvidos a um grau máximo. A ideia de
total autorrealização reside em Coire Sois. Dán corresponde a Coire Goiriath; brí, a Coire Érmai; bua,
a Coire Sois.

42 Dán é um dos conceitos mais complexos na tradição irlandesa. A palavra pode ser traduzida como
“poesia, dom, talento, vocação, fado, destino”, conforme o contexto. Contudo, dán engloba todos esses
significados como um conceito unitário. O dán de um indivíduo atribui-lhe brí (“essência, vigor”), o
poder pessoal inerente que não pode ser obtido de outra forma, mas apenas desenvolvido. Bua (“vitória,
mérito”) é o poder pessoal obtido pelo indivíduo, sobretudo o que se manifesta em uma área específica.
As ações que permitem obter ou mantêm bua recebem a designação de buatha (o plural de bua).
Tairbhe é o nome dado ao lugar, objeto ou atividade (únicos para um indivíduo ou não) que levam à
obtenção de bua ou ao desenvolvimento de brí. Outro conceito importante que pode ser encontrado
com certa frequência na mitologia é geis (plural geasa), que significa um dever (ou proibição) de fazer
algo imposto por meio de magia, com força igual à do dán. A violação da geis leva a diach (“punição”),
quase sempre resultando em antecipação de bás (“morte”).

43 Flidais, também conhecida pelo epíteto Foltchain (“Bela Cabeleira”) era a esposa do rei lendário,
Adamair, e mãe do herói Nia Segamain, que, graças aos especiais poderes de sua mãe, tinha a
capacidade de ordenhar gamos como se fossem vacas. Flidais era também a mãe de Fand, esposa de
Manannán Mac Lir. Possuía um rebanho de vacas mágicas que, a cada sete dias, podia fornecer leite
suficiente para alimentar um exército inteiro. Em especial, a vaca chamada Mael (“Mocha”) podia
nutrir trezentos homens com o leite tirado na ordenha de uma só noite. O herói Fergus Mac Róich era
seu amante e, de acordo com a lenda, se ele não pudesse ter Flidais, sete mulheres seriam necessárias
para satisfazer seus apetites sexuais.
Luz da manhã
Enquanto caminho pela noite
Visito o que deixei para trás
Muitas dúvidas em minha mente
E me pergunto quem sou eu

O único a transformar
Esperança em realidade
Histórias contadas pelas cicatrizes na minha alma
E ainda assim me liberto de toda a minha pele velha

Até o fim dos tempos


Eu irei saudar a luz da manhã
Até o fim dos tempos
E ainda assim eu canto
A minha criança interior segue viva

Enquanto caminho pela noite


Visito o que deixei para trás
Muitas dúvidas em minha mente
E me pergunto quem sou eu

O único a transformar
Esperança em realidade
Histórias contadas pelas cicatrizes na minha alma
E ainda assim me liberto de toda a minha pele velha

(Refrão)

Até o fim dos tempos


Me pergunto quem sou eu...
Morning Light
(Música: Gus Monsanto e Marcelo Moreira / Letra: Gus Monsanto e Marcelo
Moreira)

As I walk through the night


Visit what I left behind
Many doubts are on my mind
And I ask myself who I am

The only one to make


Hope become reality
Stories told by the scars on my soul
And yet I shed all of my old skin

‘Til the end of time


I will hail the morning light
‘Til the end of time
And still I sing
My child within lives on

As I walk through the night


Visit what I left behind
Many doubts are on my mind
And I ask myself who I am

The only one to make


Hope become reality
Stories told by the scars on my soul
And yet I shed all of my old skin

(Chorus)

‘Til the end of time


Ask myself who I am…
10

Alma celta
– Desde que a suprema deusa concedeu-me a revelação, caminhei pelas eras
por dezenas de séculos. Permaneci vivo pela magia que havia em todos os
seres, caminhando eternamente pela estrada da vida, sentindo a natureza
dançar ao meu redor.
“Sou a mais potente força existencial, que guia a alma humana para sua
criança interior; sou aquele que afugenta os fantasmas e os temores mais
profundos durante a noite mais densa e escura.
“Detenho o poder para derrotar o infortúnio; sou o protetor dos segredos
ocultos da existência, guardião do tempo e historiador do cosmo; sou o mais
alto símbolo de liberdade, a bradar incansavelmente no coração humano.
Tenho a habilidade de espalhar a sabedoria e distribuo-a gratuitamente para
aqueles que me procuram. Posso consumir e multiplicar o conhecimento
armazenado no salmão que comeu a avelã da sabedoria, caída da árvore
sagrada.
“Procuro em cada espírito, incansavelmente, seus tesouros mais
profundos e faço-os aflorar. Glorifico o majestoso voo do falcão, saudando
mais um amanhecer até o fim dos tempos.
“Quando o Homem se volta para o que há de belo no cosmo e dele
absorve a essência vital, observo seu silêncio e choro. Todas as ilusões,
amores, desejos nobres e anelos do coração humano, absorvo-os; ouço os
pensamentos e mergulho no espírito, que se apaixona pela vida.
“Sou o lago em uma planície, o falcão da montanha, o carvalho da
floresta, a borboleta do campo, o verde-azulado do oceano, o rio que corre
velozmente pelo bosque, repleto de vida e constância.
“Quando ouço o silêncio dos pássaros, abençoo as manhãs, que se abrem
no infindo horizonte iluminando os seres da criação. Quando vejo a lua na
noite estrelada, alimento as paixões humanas e provoco suspiros no mais
radiante sol, que espreita o tempo lunar, esperando que sua luz banhe o
planeta uma vez mais, trazendo o regozijo do amor e o esplendor da beleza
universal.”
Tais palavras proferiu o druida no Templo da Luz, ao lado de Danu, para
uma multidão de sábios, mestres e poetas que mereceram conhecer Tír inna
n-Óc a convite dos próprios deuses. Sua mensagem era arrebatadora e, ao
mesmo tempo, muito simples, pois ela existia desde o momento em que o
homem foi criado, no coração dele, em sua parte mais íntima, em comunhão
com a natureza. Assim concluiu o druida:
– Segurai minha mão e confiai em mim! Levai essa mensagem a todos os
povos por todas as eras! Eis o meu convite para toda a humanidade: segurai
minha mão e senti a força do povo mágico! Segurai minha mão e confiai em
mim! Olhai para mim e vede meus olhos novamente por uma nova
perspectiva, acreditai na magia que há em vós e eles colocarão vossos
corações em chamas ardentes de amor sublime! Vinde voar com os falcões,
vinde cavalgar livremente no dorso do unicórnio branco! Não vos
preocupeis se não conseguirdes entender os mistérios, basta confiardes em
mim para começardes de novo, sem culpa ou dor alguma. Tornai belos os
vossos espíritos, pacíficos e reluzentes. Fazei-os comungar com a natureza.
Senti a beleza nas criaturas mais singelas e regozijai-vos a cada amanhecer.
Apenas confiai em mim e segurai a minha mão. Libertai-vos! Vinde! Vinde
voar com os falcões!
– Magnífico discurso, Amergin. Inspirador! – exaltou Morrígu.
– Deveras apropriado realmente, mago dos magos! – complementou
Danu. – Devemos agora nos reunir, pois um assunto de primordial
importância merece a nossa atenção.
Os deuses caminharam em direção a um esplendoroso corredor cujo piso
encontrava-se coberto por um único grande tapete multicolorido de finos
ramos entrelaçados a flores e aves, formando padrões de perfeição além da
capacidade humana; em suas paredes, painéis avermelhados de teixo,
ornados com apliques de ouro e prata, representavam antigas vitórias dos
maiores capitães das Tuatha Dé.
Enquanto a multidão de druidas, honrados pelo convite de Amergin para
ter com os deuses no Palácio de Luz, conversavam e aprendiam sobre as
artes mágicas, os dignitários do Povo de Danu aproximavam-se da pesada
porta de carvalho entalhada que dava acesso à sala especial onde
costumeiramente realizavam suas reuniões.
Uma mesa imponente destacava-se nesse lugar, redonda e dividida em 29
partes, separadas por filetes de cristal refulgente incrustados na madeira. Em
seu centro, um pequeno carvalho de ouro, esculpido com arte admirável,
que abrigava em seus ramos uma multidão de minúsculas aves feitas de
pedras preciosas. Em cada uma das divisões, um trono aguardava seu
ocupante, cujo nome nele estava inscrito. Atrás do assento de Amergin, que
agora ocupava lugar ao lado de Danu, guardava-se a espada forjada a
pedido do druida, na qual ele estava incutindo os mais poderosos
encantamentos. Amergin acreditava que a nova arma mágica seria
determinante no futuro das tribos da ilha e por esse motivo a protegia
cuidadosamente nessa sala a qual poucos tinham acesso.
Além do mago, estavam presentes Danu, Dian Cecht, Brigit, Morrígu,
Lugh, Dagda e Nuadu. Todos tomaram os seus respectivos lugares na távola
sagrada e Danu abriu o debate.
– Sejam todos bem-vindos ao meu palácio e a esta reunião! Esta data é
muito importante para nós por duas razões: comemoramos a entrada de
Amergin em nossa família e decidiremos se ainda nos cabe interferir no
destino desta ilha da qual já não somos mais os senhores.
Uma inquietação persistente dominou a mente da Morrígu, que aguardava
o momento para dividi-la:
– Uma trama astuta concebida pela rainha de Connacht veio ao meu
conhecimento. A filha de Eochaid Fedlech está agrupando um poderoso
exército.
– O limite de sua cobiça é tão desconhecido quanto o número dos grãos
de areia nas praias desta ilha – observou Dagda. – Contudo, nada há de
espantoso no esforço de Medb para reunir um formidável exército, uma vez
que as províncias estão sempre em guerra. Tu, filha de Ermas, sabes melhor
que qualquer um de nós que batalhas são inevitáveis.
– Bem o sei, sábio filho de Elatha. Afligem-me as escuras nuvens que
vejo acumularem-se ao redor de Cúchulainn.
– Que tempestade ameaça meu filho? – Lugh exclamou. – Seu
treinamento guerreiro tornou-o imbatível, nada há que ele deva temer.
– Não esqueças que não o geraste sozinho. Cúchulainn é mortal como a
raça a que sua mãe pertence. Se Medb alcançar êxito em reunir um exército
para invadir os domínios do Conchobur, a terra de Ulaid, como pressinto ser
o seu desejo, teu filho irá combater um inimigo formidável, e temo por seu
destino.
A assembleia dos deuses silenciou. Todos refletiram ensimesmados sobre
os receios de Morrígu. Poucos entre as Tuatha Dé compreendiam o papel a
ser desempenhado pelo filho meio-humano de Lugh, uma trama na qual
Morrígu ocuparia lugar de destaque.
Alma celta
Eu posso tocar a sabedoria poética da semente
Que cai da árvore divina

Assim como eu posso sentir que o rock and roll


Assim como eu posso sentir que o rock and roll está lá para você
A natureza está lhe chamando
Você tem que sentir, está no seu coração
Você tem que sentir, está no seu coração e na sua alma
Todo este amor celta

Pegue minha mão e sinta a força esta noite


Apenas pegue minha mão e sinta o outro lado
Seguindo assim, pegue minha mão

Alma celta
Eu ouço seu silêncio e eu choro
Alma celta
Eu ouço seu coração e eu voo
Alma celta
Eu ouço seus pensamentos e eu os liberto
Alma celta
Eu ouço sua alma e eu me apaixono

Assim como eu posso agitar, assim como posso rolar


Assim como eu posso agitar, assim como posso rolar para espalhar a palavra
Não há medo ou dor
Você tem que ver, está no seu coração
Você tem que ver, está no seu coração e na sua alma
Todo este amor celta

Pegue minha mão e sinta a força esta noite


Apenas pegue minha mão e sinta o outro lado
Seguindo assim, pegue minha mão

(Refrão)
“Venha cavalgar comigo” (Olhe aqui)
“Venha voar comigo” (Veja meus olhos)
“Venha cavalgar comigo” (Eles irão)
“Venha voar comigo” (Te libertar!)

Pegue minha mão e sinta a força esta noite


Apenas pegue minha mão e sinta o outro lado
Seguindo assim, pegue minha mão

Eu ouço seu silêncio e eu choro


Eu ouço seu coração e eu voo
Eu ouço seus pensamentos e eu os liberto
Eu ouço sua alma e eu me apaixono

(Refrão)
Celtic soul
(Música: Marcelo Moreira / Letra: Eduardo Amaro e Alexei Leão)

I can touch the poetic wisdom of the seed


That falls from the holy tree

As I can feel that rock and roll


As I can feel that rock and roll is there for you
Nature is calling you
You got to feel, it’s in your heart
You got to feel, it’s in your heart and in your soul
All this Celtic love

Take my hand and you will feel the strength tonight


Just take my hand and feel the other side
On and on, on and on, take my hand!

Celtic Soul
I hear your silence and I cry
Celtic Soul
I hear your heart and I fly
Celtic Soul
I hear your thoughts and I set them free
Celtic Soul
I hear your soul and I fall in love

As I can rock, as I can roll


As I can rock, as I can roll to spread the word
There’s no fear or pain
You got to see, it´s in your heart
You got to see, it’s in your heart and in your soul
All this Celtic love

Take my hand and you will feel the strength tonight


Just take my hand and feel the other side
On and on, on and on, take my hand!
(Chorus)

“Come ride with me” (Look here)


“Come fly with me” (See my eyes)
“Come ride with me” (They will set)
“Come fly with me” (You free!)

Take my hand and you will feel the strength tonight


Just take my hand and feel the other side
On and on, on and on, take my hand!

I hear your silence and I cry


I hear your heart and I fly
I hear your thoughts and I set them free
I hear your soul and I fall in love

(Chorus)
Bibliografia
BELLINGHAM, David. Introdução à mitologia céltica. Lisboa: Estampa,
1999.
CAESAR, Caius Julius. De Bello Gallico and Other Commentaries. Project
Gutenberg, 2004.
DAVIDSON, Hilda R. Ellis. Myths and Symbols in Pagan Europe: Early
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GREEN, Miranda Jane Aldhouse. Celtic Myths. Londres: University of
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_____________. Exploring the World of the Druids. Londres: Thamesand
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_____________. The World of the Druids. Irlanda: Irish Books & Media,
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GUEST, Lady Charlotte. The Mabinogion [1887]. Santa Cruz: Evinity
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JUBAINVILLE, Henri-Marie D’Arbois. Os druidas, os deuses celtas com
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SQUIRE, Charles. Mitos e lendas celtas. São Paulo: Nova Era, 2003.

Sites recomendados (em inglês):

Corpus of Electronic Texts (UCC):


http://www.ucc.ie/celt/index.html

Mary Jones – Celtic Literature:


http://www.maryjones.us/ctexts/index_irish.html

Mythical Ireland:
http://www.mythicalireland.com/mythology

Sacred-texts – Celtic Folklore:


http://www.sacred-texts.com/neu/celt/index.htm

Shee-Eire – Stories, Myths and Legends:


http://www.shee-eire.com/magic&mythology/Myths/main.htm

Timeless Myths – Celtic Mythology:


http://www.timelessmyths.com/celtic/index.html

The Celtic Art and Cultures:


http://www.unc.edu/celtic/index.html

The Internet Archive Text:


http://www.archive.org/details/texts
The Project Gutenberg:
http://www.gutenberg.org

The Mabinogion:
http://www.missgien.net/arthurian/mabinogion
Agradecimentos
MARMOR agradece a todos os familiares e verdadeiros amigos que fizeram
com que não desistíssemos dos nossos sonhos, mesmo com as eternas
dificuldades de seguir os caminhos não convencionais da vida. Os mais de
25 anos dedicados à arte serviram de aprendizado, como um estágio, para
criarmos algo novo e realmente único. Desenvolva a sua própria trajetória e
seja dono da sua estrada.
Sobre o Marmor
Índice
CAPA
Ficha Técnica
Nota ao leitor
Introdução
Aspectos histórico-mitológicos
Prólogo
1 O décimo sétimo dia da Lua
2 Do meu coração
3 Na floresta
4 Brilho solar
5 As pedras suspensas
6 O mar secreto
7 Vitória esmagadora
8 O Templo da Luz
9 Luz da manhã
10 Alma celta
Bibliografia
Agradecimentos
Sobre o Marmor

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