necessária
por Leonardo Boff
Esta compreensão não é errônea. Ela contem muita verdade. Mas é reducionista.
Não explora as riquezas presentes no ser humano quando entendido de forma mais
globalizante. Então aparece a espiritualidade como modo- de-ser da pessoa e não
apenas como momento de sua vida.
Antes de mais nada importa enfatizar fato de que, tomado concretamente, o ser
humano constitui uma totalidade complexa. Quando dizemos “totalidade” significa
que nele não existem partes justapostas. Tudo nele se encontra articulado e
harmonizado. Quando dizemos “complexa” significa que o ser humano não é
simples, mas a sinfonia de múltipas dimensões. Entre outras, discernimos três
dimensões fundamentais do único ser humano: a exterioridade, a interioridade e a
profundidade.
O ser humano precisa sempre cuidar e orientar seu desejo para que ao passar
pelos vários objetos de sua realização – é irrenunciável que passe - não perca a
memória bemaventurada do único grande objeto que o faz descansar, o Ser, o
Absoluto, a Realidade fontal, o que se convencionou chamar de Deus. O Deus que
aqui emerge não é simplesmente o Deus das religiões, mas o Deus da caminhada
pessoal, aquela instância de valor supremo, aquela dimensão sagrada em nós,
inegociável e intransferível. Essas qualificações configuram aquilo que,
existencialmente, chamamos de Deus.
O espírito nos permite fazer uma experiência de não-dualidade. “Tu és isso tudo”
dizem os Upanishads da India, apontando para o universo. Ou “tu és o todo” dizem
os yogis. “O Reino de Deus está dentro de vós” proclama Jesus. Estas afirmações
remetem a uma experiência vivida e não a uma doutrina. A experiência é que
estamos ligados e re-ligados uns aos outros e todos à Fonte Originante. Uma fio de
energia, de vida e de sentido perpassa a todos os seres, constituindo-os em
cosmos e não em caos, em sinfonia e não disfonia.
A planta não está apenas diante de mim. Ela está como ressonância, símbolo e
valor dentro de mim. Há em mim uma dimensão montanha, vegetal, animal,
humana e divina. Espiritualidade não consiste em saber disso, mas em vivenciar e
fazer disso tudo conteúdo de experiência. Bem dizia Blaise Pascal: “ crer em Deus
não é pensar em Deus mas sentir Deus”. A partir da experiência tudo se
transfigura. Tudo vem carregado de veneração e de sacralidade.
Pertence ao processo de individuação acolher esta energia, criar espaço para esse
Centro e auscultar estes apelos, integrando-os no projeto de vida. É a
espiritualidade no seu sentido antropológico de base. Para ter e alimentar
espiritualidade a pessoa não precisa professar um credo ou aderir a uma instituição
religiosa. A espiritualidade não é monopólio de ninguém, mas se encontra em cada
pessoa e em todas as fases da vida. Essa profundidade em nós representa a
condição humana espiritual, aquilo que designmos espiritualidade.
Obviamente para as pessoas religiosas, esse Centro é Deus e os apelos que dele
derivam é sua Palavra. As religiões vivem desta experiência. Articulam-na em
doutrinas, em ritos, celebrações e em caminhos éticos e espirituais. Sua função
primordial reside em criar e oferecer condições para que cada pessoa humana e as
comunidades possam fazer um mergulho na realidade divina e fazer a sua
experiência pessoal de Deus.
Essa experiência porque é experiência e não doutrina tem como efeito a irradiação
de serenidade, de profunda paz e de ausência do medo. A pessoa sente-se amada,
acolhida e aconchegada num Utero divino, O que lhe acontecer, acontece no amor
desta Realidade amorosa. Até a morte é exorcizada em seu caráter de espantalho
da vida. É vivida como parte da vida, como o momento alquímico da grande
transformação para poder estar, de fato, no Todo e no coração de Deus.
Esta espiritualidade é um modo de ser, uma atitude de base a ser vivida em cada
momento e em todas as circunstâncias. Mesmo dentro das tarefas diárias da casa,
trabalhando na fábrica, andando de carro, conversando com os amigos, vivendo a
intimidade com a pessoa amada, a pessoa que criou espaço para a profundidade e
para o espiritual está centrado, sereno e pervadido de paz. Irradia vitalidade e
entusiasmo, porque carrega Deus dentro de si. Esse Deus é amor que no dizer do
poeta Dante move o céu, todas as estrelas e o nosso próprio coração.
Esta espiritualidade tão esquecida e tão necessária é condição para uma vida
integrada e singelamente feliz. Ela exorciza o complexo mais difícil de ser
integrado: o envelhecimento e a morte.
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