Anda di halaman 1dari 173

Depois da Morte

O Quê?
CÉU E INFERNO
Ensino bíblico sobre as doutrinas do céu e
do inferno

Edward Donnelly

PUBLICAÇÕES EVANGELICAS SELECIONADAS


Caixa Postal 1287 - 01059-970 - São Paulo, SP
www.editorapes.com.br
Copyright:
Edward Donnelly, 2001
Publicado originalmente em inglês sob o título
Heaven and Hell pela editora
The Banner of Truth Trust, Edimburgo, EH 12 6 EL, UK.
Todos os direitos reservados. Permissão gentilmente
concedida pela editora The Banner of Truth Trust
Tradução do inglês:
Odayr Olivetti
Revisão:
Antonio Poccinelli
Cooperador:
Luís Christianini
Capa:
Sergio Luiz Menga
Primeira edição em português:
2005
Impressão:
Imprensa da Fé
DEDICATÓRIA
Aos nossos amigos
Conferência de Famílias do Sudeste.
Dayton, Tennessee,
com am or e gratidão
ÍNDICE
1. Pensando o Impensável...................................................... 9
2. Fundamentos Bíblicos.................................................... 30
3. Destruição E terna..............................................................52
4. O Inferno e o C rente..........................................................72
5. O Céu Im porta................................................................... 93
6. Criado para a Glória de Deus.........................................102
7. O Cordeiro É a Lâmpada do C éu.................................114
8. Seremos Semelhantes a Ele............................................134
9. Plenitude de Alegria....................................................... 154
1
Pensando o Impensável
Inferno! Que assunto macabro! Tem sido chamado o horror
supremo do universo. Que espécie de pessoa quereria escrever
sobre o inferno, e quem estaria interessado em ler sobre ele?
Parece uma preocupação mórbida, estranha, tendente a con­
firmar a suspeita de que os cristãos são congenitam ente
melancólicos. Suponhamos que um conhecido pergunte:
“Que é que você tem nas mãos?”. Quando você estiver lendo
estas páginas. “É um livro sobre o inferno”, você responde.
Acharia isso embaraçoso? Não parece essa a melhor maneira
de ganhar amigos e influenciar pessoas. Você quer realmente
passar o tempo comigo pensando numa coisa tão terrível?
Certamente inferno é um tópico desagradável, e é natural
que relutemos em considerá-lo. Tantas outras verdades das
Escrituras são intensamente atraentes! Estudá-las é um prazer.
Elas elevam o nosso espírito e ficamos ávidos por aprender
mais. Mas sentar-nos e refletir sobre o destino dos condena­
dos enche o nosso coração de opressivo pesar. Um sentimento
de terror nos domina, pois o tema é sombrio e terrível. A vida
já é bastante dura. Por que se esforçar em ficar deprimido?
Instintivamente procuramos assuntos mais animadores.
Então, por que pensar no inferno? Precisamos ter bons
motivos, pois, se não nos convencermos de que tal estudo nos
vai ajudar, ele não nos despertará nenhum apetite. Temos que
poder antecipar que isto nos fortalecerá espiritualmente. Temos
que nos persuadir de que negligenciar esta doutrina porá em
perigo a nossa alma e a alma das gerações futuras.
Pensar no inferno é importante por três principais razões:
9
CÉU E INFERNO
SUA IMPORTÂNCIA INTRÍNSECA
A primeira razão é sua importância intrínseca. Tudo na
Bíblia é importante, claro. Contudo, algumas verdades são
mais vitalmente importantes que outras. Se ignorarmos os
sublimes pontos da doutrina dos anjos, por exemplo, ou alguns
pormenores das leis do Velho Testamento sobre alimentos,
seremos mais pobres. Mas não seremos condenados. Outras
doutrinas, porém, são indispensáveis. Richard Baxter conci-
tava os pastores a pregar “principalmente sobre as verdades
mais grandiosas, mais definidamente certas e mais necessárias”.
“Muitas outras coisas”, diz ele, “é desejável conhecer, porém
esta tem que ser conhecida, ou então o nosso povo será
destruído para sempre”.1 A doutrina sobre o inferno é dessa
categoria. Ela “tem que ser conhecida”.
Podemos ilustrar sua importância em quatro aspectos:
O primeiro é o peso massivo do testemunho bíblico. O inferno
não é mencionado apenas ocasionalmente nas Escrituras, em
uma ou duas passagens obscuras. Ao contrário, extensas porções
da Palavra de Deus tratam desta doutrina. A Bíblia se refere
mais vezes à ira de Deus do que ao Seu amor. O Velho Testa­
mento está repleto de irados juízos do Senhor contra os Seus
inimigos, prefigurações do inferno. O nosso Senhor Jesus
Cristo falou muito mais sobre o inferno do que sobre o céu.
Isso pode parecer surpreendente, mas é verdade. Cristo, o
amor encarnado, cheio de compaixão e misericórdia, entre­
tanto fala muito freqüentemente do juízo e das penas eternas.
Até o Seu título de “Salvador” chama a atenção para o inferno.
Um salvador salva de alguma coisa, e o inferno é o temível
destino do qual Ele nos resgata. Conforme vai chegando ao
fim do livro do Apocalipse, Deus leva à conclusão a Sua
1 TheReformedPastor 1656;ediçãoampliada,Edimburgo: BannerofTruth
Trust, 1974, p. 113. {O Pastor Aprovado, tradução de Odayr Olivetti, baseada
noutra edição do original, Publicações Evangélicas Selecionadas (PES),
Ia. edição em português, 1989).

10
Pensando o Impensável
Palavra escrita. É um fato espantoso que, ao lado das lem­
branças das glórias dos céus, as páginas finais das Escrituras
deixam ecos terríveis em nossa consciência: “o abismo... o lago
que arde com fogo e enxofre; o que é a segunda morte... fora”
(Apocalipse 20:3; 21:8; 22:15). Ora, se Deus, em Sua sabedoria,
decidiu prover-nos de tanta informação sobre o inferno, não
seria óbvio que isso é enormemente importante? Só isso já
seria razão suficiente para estudá-lo.
Em segundo lugar, a doutrina sobre o inferno é intrin-
secamente im portante em razão do conteúdo da doutrina
propriamente dita. O inferno é revelado como um lugar de
tormento onde milhões de seres humanos estarão encerrados
para sempre. Os especialistas em estatística nos dizem que
m orrem aproxim adam ente noventa e cinco m ilhões de
pessoas por ano. Quer dizer que a cada segundo três seres
humanos entram no inferno ou no céu. Dentro da próxima
hora, onze mil homens, mulheres e crianças irão para sempre
para um lugar de gozo eterno ou para um lugar de sofrimento
eterno. Imagine-os morrendo agora, enquanto você lê estas
palavras - um, e outro, e outro. Quando você exalar a sua
próxima expiração, diversas outras pessoas estarão deixando
esta terra. Quando um avião se faz em pedaços e duas ou três
centenas de pessoas são de repente despachadas para a
eternidade, todo o mundo fala sobre isso. E um desastre
pavoroso, vai para os cabeçalhos das notícias. Ficamos aflitos
e esse acontecimento enche a nossa cabeça. E, todavia, onze
mil dos nossos companheiros de existência como seres
humanos, a cada hora de cada dia do ano estão chegando ao
seu destino eterno. Seguramente, por esta única razão tal
doutrina tem que ser importante.
Em terceiro lugar, não estamos longe desta catástrofe.
Alguém observou que “a morte não é um mero espectador de
esportes”. Os espectadores não se envolvem pessoalmente
conosco. Podemos assistir com imenso interesse e ansiedade

11
CÉU E INFERNO
uma partida de rúgbi ou de futebol americano. Gostamos
de observar a habilidade dos jogadores e ficamos alegres se
o “nosso” time vence. Mas não entramos no jogo e, no final
das contas, o que acontece realmente não nos importa. Não se
fará nenhum a exigência da nossa energia ou da nossa
habilidade. Não corremos o risco de sofrer ferimentos. Somos
apenas espectadores. Contudo, isso não é verdade quanto à
doutrina do inferno, pois todos e cada um de nós, por natureza,
estamos indo para lá. Não é algo que não nos interessa. Todos
nós pecamos, fomos destituídos da glória de Deus, e o salário
do pecado é a morte. Cada um de nós vai morrer e depois
da morte nós todos enfrentaremos o Juízo. Todos nós, sem
exceção, estamos intimamente envolvidos.
Você pode pensar que algumas doutrinas da Bíblia não
se aplicam diretamente a você. Se, por exemplo, você não é
pai ou mãe, pode achar que as instruções bíblicas dirigidas
aos pais não envolve você. Ou pode passar ligeiramente pelo
ensino da Palavra de Deus dirigido aos empregadores, ou aos
ricos, e assim por diante. Você pode dizer: “Bem, isso é
interessante, é certo, porém não é do meu interesse imediato”.
Isso seria um erro da sua parte, porquanto “toda a Escritura
é... proveitosa” (2 Timóteo 3:16), mas seria uma reação com­
preensível. Todavia, nenhum de nós pode jamais ousar dizer
isso acerca da doutrina do inferno. E o destino certo de todo
pecador não salvo, e nós somos pecadores natos.
Finalmente, a doutrina sobre o inferno é intrinsecamente
importante porque há um caminho, mas só um caminho, pelo
qual podemos escapar dele. Não temos uma série de opções. Não
podemos abrandar a nossa ansiedade imaginando que muitas
categorias de pessoas não vão para lá. Não podemos dizer a
nós mesmos: “Bem, o inferno é terrível, o inferno é real. Mas,
afinal de contas, há muitas maneiras de evitar o inferno, e,
portanto, não tenho necessidade de ficar indevidamente
preocupado”. As Escrituras são claras. Dizem elas: “Aquele
12
Pensando o Impensável
que crê no Filho tem a vida eterna; mas aquele que não crê
no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus sobre ele perma­
nece” (João 3:36). O único meio de escapar do inferno é pela fé
em Jesus Cristo, o Filho de Deus. Todos os demais estarão
perdidos. Por que pensar no inferno? Porque vamos para lá, a
não ser que sigamos o único e exclusivo caminho de fuga.
E há um caminho. O inferno não é inevitável. Se fosse, se
não houvesse prospecto de salvam ento, que adiantaria
incom odar-nos com ele? A atitude mais sensata seria
expulsá-lo da nossa mente para tão longe quanto possível.
Mas, devido haver uma segura e certa promessa de socorro
para todos quantos queiram ser libertados da condenação de
Deus, nada é mais crucial do que dar a este assunto a mais
completa atenção. A Bíblia mostra com abundante clareza o
caminho da salvação: “Porque Deus amou o mundo de tal
m aneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo
aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”
(João 3:16).
Aí está, pois, a nossa resposta àqueles que nos acusam
dizendo que somos mórbidos e melancólicos. Fariam eles a
mesma acusação contra uma conferência de médicos reuni­
dos para discutir o câncer? Acusá-los-iam de serem indivíduos
distorcidamente inclinados a interessar-se morbidamente
por algo desagradável? Claro que não! Somos agradecidos ao
fato dos médicos darem atenção a estas coisas, dedicarem sua
capacidade e seu discernimento ao trato de realidades tão
terríveis. Seu propósito é levar saúde e cura a muitos, e nós
nos dispomos a animá-los a tal empreendimento. Longe de
criticá-los, apreciamos o fato de que eles estudam esta ou
aquela doença, não porque gostem de fazê-lo, e sim porque é
um horrível fato que precisa ser encarado. Mas o inferno é
uma realidade muito mais terrível e muito mais permanente.
A coisa mais positiva, mais desejável e de maior respon­
sabilidade que podemos fazer é estudar essa doutrina para

13
CÉU E INFERNO
equipar-nos m elhor para livrar outros de um lugar tão
indescritivelmente horrível.
O PREDOMÍNIO DA INCREDULIDADE
A segunda razão para estudar o inferno é a presença
generalizada da incredulidade concernente a ele. Se fosse
algo aceito universalmente, se a maioria das pessoas acreditasse
no inferno e estivesse acuradamente informada sobre ele, talvez
não precisássemos tomar tanto tempo em seu estudo. Mas, em
nossa geração, a crença no inferno quase desapareceu.
Podemos distinguir três níveis de incredulidade.
Há, primeiramente e antes de tudo, a zombaria popular. Há
alguns anos eu e minha esposa assistimos a um concerto
numa escola local, onde as crianças apresentaram esquetes e
pequenas peças. Foi uma noite agradável, até que, para nosso
assombro, algumas crianças apareceram em cena vestidas de
diabos, com chifres e caudas de papel. Dando voltas no
palco, elas cantaram uma canção sobre o inferno, no qual as
pessoas “se retorciam e frigiam”. As pessoas presentes riam às
gargalhadas, enquanto nós ficamos ali sentados, confran-
gidos. Dentro de nós, as palavras de Cristo foram quase
audíveis aos nossos ouvidos: “Qualquer que escandalizar
um destes pequeninos ... melhor lhe fosse que se lhe pendu­
rasse ao pescoço uma mó de azenha,e se submergisse na
profundeza do mar” (Mateus 18:6). Para muitos, o inferno é
uma piada.
Ou, na melhor das hipóteses, é um truque de propaganda.
Em nossos jornais e em nossas telas de televisão os condena­
dos são aqueles que têm que passar sem o produto que está
sendo anunciado. O céu é comer a barra de chocolate, usar o
perfume, dirigir um carro novo. Numa recente viagem na
América paramos num centro de atenção a visitantes, onde
pegamos um folheto de propaganda de um restaurante
instalado num edifício que anteriormente era uma igreja. Isso

14
Pensando o Impensável
dera aos novos proprietários uma idéia. O folheto começava:
“Quanto à comida, é tão celestial que só pode ser um pecado.
O nosso cozinheiro-chefe usa os ingredientes mais puros
disponíveis para produzir uma culinária que enche a alma
de satisfação. Assim como Eva tentou Adão, vamos tentar
você com as criações para a sobremesa de hoje. Imagine o
diabólico êxtase do chocolate...” etc. E terminava: “Bom
desfrute, e que Deus o abençoe”. Não há necessidade de
apresentar mais exemplos destas blasfêmias. O inferno é
visto como tema humorístico, e os que realmente acreditam
nele são objetos de riso ou são evitados, ou, de preferência
ambas as coisas. E matéria de zombaria popular.
Em segundo lugar, a crença no inferno é rejeitada por aqueles
que lhe dedicam sériopensamento. Pois, no meio da fútil ostentação
e da frivolidade da cultura popular, muitos são os que pen­
sam seriamente. Os que estão sem Cristo estão espiritualmente
mortos; eles odeiam Deus; estão cegos, e os seus processos
mentais são distorcidos. Tudo isso é verdade. Mas entre eles há
homens e mulheres donos de grande saber, capazes de pensar
e que refletem profundamente sobre questões importantes.
Para eles, a idéia de inferno é repulsiva, e eles se sentem
ofendidos por ela. Consideram-na uma superstição primitiva,
algo fantasmagórico usado por uma igreja tirânica para
aterrorizar e manipular os seus crédulos adeptos. O filósofo
Bertrand Russell escreveu: “Não creio que qualquer pessoa
que seja de fato profundam ente hum ana possa crer nas
penas eternas. E uma doutrina que pôs crueldade no mundo

2 Citado por Robert A. Peterson em Hell on Trial: The Case for Etemal
Punishment (O Inferno em Julgamento: A Causa das Penas Eternas),
Phillipsburg, Nova Jersey: P & R Publishing, 1995, pp. 4,5. Esse livro
e o de John Blanchard, Whatever Happened to Hell? (Que Aconteceu
com o Inferno?), Darlington: Evngelical Press, 1993) são os que tratam
melhor do assunto do inferno. Sou-lhes devedor muitas vezes nas
páginas subseqüentes.
15
CÉU E INFERNO
e que deu ao mundo gerações de tortura cruel”.2
Muitos daqueles entre os quais vivemos e trabalhamos
nos desprezarão por acreditarmos no inferno. Para onde quer
que nos voltemos no mundo moderno, estamos cercados de
pessoas inteligentes que consideram tal crença desprezível
ou iníqua. Mais adiante veremos por que elas pensam dessa
maneira. Mas nós precisamos dar-nos conta de como este
ensino sofre objeção.
Em terceiro lugar, e muito trágica e surpreendentemente,
esta doutrina está sendo questionada por alguns evangélicos3 que
declaram crer na Bíblia como a Palavra de Deus inspirada. E de se
esperar que os liberais teológicos rejeitem a idéia do inferno, e
já faz muito tempo que eles a têm rejeitado. Mas muitos
evangélicos proem inentes agora se põem a desafiar uma
doutrina que durante mais de dezenove séculos tem sido
artigo de fé unânime da Igreja Cristã. Eles estão abandonando
a ortodoxia e aderindo ao ensino do extincionismo ou da
“im ortalidade condicional”, uma afirmação de que só os
justos viverão para sempre e de que, nalgum estágio, Deus
permitirá que os ímpios impenitentes passem ao nada.
Essa estranha teoria ganhou a corrente maior e reivindica
ao menos paridade de estima com a doutrina tradicional. No
Reino Unido um recente e influente relatório concluiu:
“Cremos que o debate tradicionalista-condicionalista sobre
o inferno deve ser considerado um tema secundário, não
primário, para a teologia evangélica”. E a conclusão prosse­
gue: “Entendemos que a Base da Fé da Aliança Evangélica
3 Como tenho feito noutras traduções e noutros escritos, declaro que
uso o termo “evangélico” na tentativa de resgatá-lo da diluída, empobre­
cida e confusa “conceituação” moderna. Evangélica é a pessoa que se
mantém firme nos fundamentos da fé cristã, da fé bíblica. A julgar
pelos cultos que se vêem, pelos escritos que se lêem e pelas pregações
que se ouvem, somente alguns protestantes atualmente fazem jus ao
título de evangélicos. Nota do tradutor.

16
Pensando o Impensável
admite as duas interpretações do inferno, a tradicionalista e a
condicionalista”.4 Há o registro de um pronunciamento de
John Stott questionando o conceito ortodoxo: “A extinção
final dos ímpios deveria ao menos ser aceita como uma
alternativa legítima, biblicamente fundam entada, ao seu
consciente tormento eterno”.5 Philip Edgcumbe Hughes se
pôs fortemente contra a doutrina das penas eternas: “Com a
restauração de todas as coisas nos novos céus e na nova terra...
não haverá lugar para um segundo reino de trevas e morte...
Quando Cristo encher todas as coisas... como se pode conce­
ber que possa haver um segmento ou uma esfera da criação
que não pertença a essa plenitude e que por sua só presença
a contradiga?” 6 Sua idéia sobre o destino final dos ímpios
não é nada ambígua: “O destino que eles modelaram para si
mesmos os lançará sem esperança ao abismo da obliteração”.7
Outros escritores sugerem uma “evangelização post-mortem”,
a idéia de que após a morte haverá uma oportunidade para
que creiam aqueles que não ouviram o evangelho durante a
sua vida na terra. Clark Pinnock mudou-se para o que ele
chama “inclusivismo”, a fé em que Deus vai perdoar e receber
para Si os seguidores de outras religiões que viveram à luz
do que lhes fora dado.8
Esses homens não só questionam o inferno, mas alguns
4 The Nature of Hell: A Report by the Evangelical Alliance Commission of
Unity and Truth Among Evangelicals (A Natureza do Inferno: Relatório da
Comissão de Unidade e Verdade Entre os Evangélicos, da Aliança
Evangélica), abril de 2000, citado em Christianity Today, 23 de outubro
de 2000, p. 36.
5David L. Edwards ejohn Stott,Essentials: A Liberal-Evangelical Dialogue
(Pontos Essenciais: Diálogo Liberal-Evangélico), Londres: Hodder &
Stoughton, 1988, p. 320.
6 The True Image (A Verdadeira Imagem), Grand Rapids: Eerdmans, 1989,
p. 406.
1M d., p. 407.
s Ver Peterson, Hell on Trial, pp. 150-152,229-234.

17
CÉU E INFERNO
atacam a doutrina com vigor quase blasfemo. John Wenham,
notável erudito, especialista em grego do Novo Testamento,
evangélico, declarou numa conferência em 1991: “Eu creio
que o tormento sem fim é uma doutrina hedionda e anti-
-escriturística, doutrina que tem sido um fardo terrível sobre
o pensam ento da Igreja durante m uitos séculos e uma
mancha em sua apresentação do evangelho. Eu verdadeira­
mente me sentiria feliz se antes de morrer pudesse ajudar a
varrê-la de vez”.9Clark Pinnock vai mais longe: “Considero o
conceito de inferno como tormento interminável do corpo e
da mente uma doutrina ultrajante, uma atrocidade moral e
teológica. Como podem os cristãos sequer pensar numa
deidade tão cruel e tão vingativa? Certamente um Deus que
fizesse tal coisa seria mais parecido com satanás do que com
Deus”.10 Para esses homens o tormento eterno é moralmente
intolerável. Apresenta Deus como um monstro, punindo
Suas pobres vítimas com sofrimento sem fim.
Em face de tanto questionamento e de tanta increduli­
dade, seria fácil eliminar o povo do Senhor. Seu povo poderia
ser tentado a pensar: “Bem, estes homens são inteligentes,
são grandes eruditos, são líderes eminentes na Igreja, e o
inferno é uma doutrina desagradável. E não seria possível
que eles estejam certos? Talvez lhes tenha vindo uma nova
luz, e nós deveríamos seguir a sua liderança”.
Mesmo onde os evangélicos sustentam a doutrina, eles
tendem a fazer isso em tom de pedido de desculpas. Será
verdadeira a história do pregador que advertiu os seus ouvin­
tes dizendo: “Aqueles que não forem convertidos a Cristo
sofrerão graves ramificações escatológicas”? Fatual ou não,
ela representa em resumo o acanhamento de muita pregação
contemporânea. Os modernos livros de teologia evangélica

9Citado na obra de Blanchard, Whatever Happened to Hell?, p. 209.


10Citado em Hellon Trial,àe. Peterson,p. 161.

18
Pensando o Impensável
dedicam poucas páginas à doutrina sobre o inferno. Ela é
negada, diluída, ou tratada como um embaraçador segredo
de família, não devendo ser mencionada em público.
Por que deveríamos pensar a respeito do inferno? Porque
a doutrina sobre ele é muito importante. Porque é uma dou­
trina que está sob ataque selvagem e constante, tanto do mundo
como da Igreja professante. Por que é aí que a batalha está
sendo travada furiosamente. A definição que Martinho Lutero
deu de um bom soldado foi de um homem que se levantava
e lutava onde o combate era mais feroz. É fácil ser soldado
em tempos de paz, alegre por m archar em paradas para
cima e para baixo trajando uniforme colorido, brandindo
ao ar uma refulgente arma. Também não é muito difícil
manter guarda numa isolada e tranqüila área do campo de
batalha. Mas é no sangue e no perigo do conflito mais duro
e amargo que se prova o verdadeiro guerreiro.
Há uma feroz batalha sendo travada sobre esta doutrina.
Esta é atacada pelo diabo. Homens habilidosos e persuasi-
vos, alguns com merecida reputação de apoio à ortodoxia,
estão procurando derrubar a verdade de Deus. Isso é razão
suficiente para pensarmos na doutrina sobre o inferno. Não
nos atrevemos a desertar. E muito possível uma doutrina
ficar perdida por séculos. Já aconteceu isso. O próprio evan­
gelho foi distorcido e ficou submerso. Durante centenas de
anos, gerações morreram em seus pecados porque os cristãos
não lutaram pela verdade. Você quer que os seus filhos
cresçam num mundo no qual ninguém acredita no inferno
e no qual o inferno é visto como uma superstição de uma era
passada? Temos que saber no que cremos e por que cremos
nisso. Temos que estar seguros e firmes, e ver tudo isso com
clareza, a fim de lutarmos para manter viva esta doutrina.

19
CÉU E INFERNO
A INCREDULIDADE COMO UM SINTOMA DE UM
PROBLEMA BEM MAIS PROFUNDO
Por que devemos pensar a respeito do inferno? A sua
importância intrínseca e a incredulidade que o cerca são
razões válidas. Todavia, há uma terceira razão, mais signifi­
cativa do que qualquer dessas duas. A incredulidade é
sintomática de um problema bem mais profundo.
Um sintoma é assim chamado porque tem uma impor­
tância que o ultrapassa. Um dia você descobre uma pequena
protuberância no seu corpo. Não é dolorida e não lhe causa
nenhuma inconveniência. Você pode viver normalmente e
continuar fazendo o seu trabalho. Nesse sentido, a pro­
tuberância em si é insignificante. No entanto, seria assim que
você reage? Não, se você se preocupa com a sua saúde e se tem
algum bom senso. Você procura o seu médico e se submete a
um exame. Você procura tratamento. Não tanto pela pro­
tuberância, mas pelo que ela pode significar - alguma coisa
mais perigosa e da qual ela pode ser uma evidência.
Naturalmente, a incredulidade é mais que sintoma. E em
si um pecado. Entretanto, a ilustração é válida até este ponto:
a incredulidade também é uma evidência de algo pior. E um
sintom a do problema mais profundo da hum anidade, o
antropocentrismo - a centralidade do homem. Aí está a causa
radical de todas as nossas dificuldades. Fazemos de nós o centro
do nosso universo. Nós nos fazemos os seres ao redor dos quais
tudo mais gira. Tudo isso vai de volta ao Éden, onde satanás
disse a Eva: “Sereis como Deus” (Gênesis 3:5), e ela lhe deu
ouvidos. Na verdade, vai além disso. O próprio satanás tinha
dito: “Serei semelhante ao Altíssimo” (Isaías 14:14).
Esse pecado do antropocentrismo, ou do humanismo
(pois esse é outro nome para isso), tem estado presente no
mundo desde a Queda. Mas em nossos dias veio a dominar
a cultura ao ponto de saturar o mundo em que vivemos. A
centralidade do homem é tão penetrante e tão imperceptível

20
Pensando o Impensável
como o ar que respiramos. Não há ninguém que não seja
afetado por ela. Como a poluição da atmosfera, aí está ela, e
nós a absorvemos, e ela nos está envenenando.
A centralidade do homem está na raiz das objeções à
crença no inferno, as objeções evangélicas inclusive. Dizem-
-nos os inovadores que as suas mudanças de idéia são devidas
a seu maior entendimento. Eles se aprofundaram no sentido
das palavras originais, examinaram os antecedentes à luz de
novos conhecimentos, suas habilidades exegéticas são mais
precisas do que as das gerações passadas. O resultado é que
estes métodos de interpretação mais acurados os levaram
inevitavelmente a pôr em questão a doutrina tradicional
sobre o inferno.
Eles podem acreditar que é esse o caso, porém não é
verdade. Não foi uma abordagem interpretativa melhorada
que mudou o pensamento deles. Foi o espírito do mundo. Sem
se aperceberem disso, eles foram afetados pelo antropo-
centrismo da nossa época, e isso torceu o seu julgamento.
Eles são emocionalmente avessos à idéia de inferno, mas têm
sido suficientemente espertos para construir um conjunto
persuasivo de razões para suporte de conclusões às quais
chegaram irracionalmente. Suas mentes foram ajeitadas de
antemão, e eles fazem mau uso das suas habilidades exegé­
ticas para que estas os ajudem a chegar a uma conclusão
predeterminada. A verdade está sendo abandonada, não por
ser demonstrada falsa, mas devido a acharem impopular e
embaraçosa. A mudança ocorre “não porque houvesse nova
luz vinda da Bíblia, e sim porque há novas trevas cobrindo
a cultura”.11
Examinemos por um momento três evidências deste
espírito do humanismo, notando que em cada caso a doutrina
sobre o inferno se lhe opõe.
11 Peterson, Mellon Trial,p. 10.

21
CÉU E INFERNO
Vê-se isso primeiramente na idéia antropocêntrica do próprio
homem. O mais alto valor imaginável em nossa sociedade é
o bem-estar humano, a felicidade humana. Esta é a chave,
o propósito de toda a nossa atividade, o alicerce sobre o qual
a nossa civilização foi construída. As pessoas têm que ser
felizes.
Mas a doutrina sobre o inferno, como uma garra brutal,
rompe caminho através da estrutura dessa visão humanista do
mundo. Pois ela nos diz que milhões de seres humanos estarão
para sempre numa condição indescritivelmente miserável,
num lugar de tormento. Ora, as pessoas não conseguem dar
abrigo a essa idéia. Acham-na intolerável, pois ela põe em
questão tudo aquilo pelo que o homem moderno vive e que
ele aceita. A felicidade é o sumo bem, e o bem-estar do
homem e a sua meta. Milhões condenados? Não, não, elas
simplesmente não aceitarão isso. Elas são emocionalmente
preconceituosas contra isso, e os seus corações persuadem
as suas mentes, inclinando-as para a incredulidade.
Até os cristãos podem ser afetados. Você alguma vez se
perguntou como é que nós poderemos ser felizes no céu, se
soubermos que outros seres humanos estão sofrendo no
inferno? Para muitos essa é uma pergunta angustiante, e
voltarem os a ela mais adiante. Mas, para o m om ento,
imagine-se no céu, contemplando a glória de Deus. Jesus
Cristo, o Cordeiro morto em favor dos pecadores, lá está, em
todo o Seu esplendor. Você está rodeado de hostes de anjos
e da imensa multidão dos remidos. Os novos céus e a nova
terra jazem diante de você em toda a sua riqueza e maravilha.
Você se sente infeliz? Se estar com Cristo para sempre não
for suficiente para você, se você acha que a condenação de
pecadores estragaria o seu gozo na presença de Deus, não
seria isso antropocentrism o? Não seria a influência do
mundo se insinuando e afetando você? Todavia, em nossa
condição de decaídos, em nossa auto-absorção e em nossa
22
Pensando o Impensável
auto-importância, é muito natural que nos sintamos desse
jeito.
Em geral as pessoas não têm nenhuma dificuldade com o
céu, naturalmente. Ou ao menos com o seu distorcido con­
ceito do céu como um lugar designado pura e simplesmente
para a felicidade humana. Um tal céu é inteiramente aceitável.
Ele encaixa em nossa visão do mundo. Contudo, o inferno
contradiz essa sua suposição confortável. Ele corta em
pedaços a visão antropocêntrica do homem.
Em segundo lugar, a idéia de pecado que o mundo tem é
centralizada no homem. Que é pecado hoje em dia? Nem é
chamado “pecado”, claro. Mas, o que é considerado errado ou
vergonhoso? Que tipo de conduta devemos evitar? A melhor
resposta geral talvez seja que o pecado é algo que fere outros.
Devemos fazer o melhor que pudermos para não ferir ou
causar dor ou pesar às outras pessoas. E isso que é visto
como sendo o mal.
Desafortunadamente, o critério é aplicado seletivamente.
Parece não haver problema em ferir aqueles que são incon­
venientes ou que se põem em nosso caminho. Nascituros são
assassinados aos milhões. A nossa sociedade “civilizada” não
se importa em passar a tesoura nos pescoços de bebês no
ventre, extrair seu cérebro e esmagar seus crânios. E se a
presente tendência continuar, não se importará em eliminar
os inválidos ou de pôr para dormir os mais velhos, quando
cuidar deles ficar muito caro. Estamos avançando rumo ao
mundo de horror, a menos que Deus, em Sua misericórdia,
traga para Si as nossas nações.
Contudo, embora incoerentemente, as pessoas decentes
em geral defendem a idéia de que não devemos ferir os outros.
Não devemos mentir, nem explorar o próximo, nem usar
violência. Não se deve abusar das crianças. Não se deve que­
brar promessas. Tais pessoas concordam com o sexto e o
oitavo mandamentos: “Não matarás. Não furtarás”, e, embora

23
CÉU E INFERNO
num grau rapidamente decrescente, com o sétimo: “Não
adulterarás”. Envergonham-se de praticar tais coisas ou, em
todo caso, de serem surpreendidas praticando-as. Estes
mandamentos parecem regras prudentes para a sociedade.
As pessoas sabem que o mundo seria um lugar muito melhor
se esses males fossem banidos, e freqüentemente se inquie­
tam em sua consciência se causam dor ou dano a outros.
Tente, porém, falar-lhes sobre o segundo, o terceiro e o
quarto mandamentos - não adorar a Deus de nenhuma outra
maneira que não a determinada por Ele em Sua Palavra, não
tomar o nome de Deus em vão, santificar o dia semanal de
descanso. Esses são considerados ridículos. Se num dia do
Senhor (domingo) você fosse bastante destituído de tato
para abordar o seu vizinho e, o mais bondosamente possível,
dizer-lhe que não deve fazer consertos em sua casa ou que a
mulher não vá ao seu encontro social, porque essas coisas
não se harmonizam com a santa observância do descanso
semanal, como responderiam eles? Tanto se zangariam como
julgariam você um louco. “Que tipo de religioso excêntrico
você é?” eles retorquiriam. “Que mal estou fazendo? A quem
estou ferindo?”
Por que a diferença? Por que as pessoas aceitam alguns
m andam entos como válidos, enquanto rejeitam outros?
Porque elas têm uma idéia do pecado centralizada no
homem. Ferir as pessoas é pecado, e elas sabem que não
devem fazer isso. Mas não se apercebem de que é pecado ser
ou estar contra Deus. Os mandamentos que parecem não ter
nenhum a relação com o bem -estar hum ano não fazem
impacto algum em sua consciência. Deus simplesmente não
importa. No que se refere à culpa e ao mau procedimento,
pode-se deixar Deus fora de consideração.
Mas o inferno despedaça essa fachada. O inferno nos diz
que há um Deus santo e temível, a cujos olhos somos ter­
rivelmente culpados. Esta doutrina nos informa que o pecado

24
Pensando o Impensável
é tão grave, tão condenável aos olhos de Deus, que precisa
ser punido por uma eternidade de sofrimento. Ela eleva a
prática humana do mal a um plano inteiramente diferente
e a coloca no contexto da necessidade de prestação de
contas, do juízo e das conseqüências eternas. Primeiramente
e antes de tudo, o pecado não é ferir os nossos semelhantes.
“O pecado é a transgressão da lei” (1 João 3:4, ARA), e a lei
transgredida é de Deus. As pessoas não querem ouvir falar
do inferno porque ele lhes diz que o pecado é mais grave
e mais terrível do que elas jamais quiseram im aginar.
Quando um homem que cometeu assassinato e adultério
foi convencido do pecado pelo Espírito Santo, ele não
lamentou primeiro que tinha ferido outras pessoas. Em vez
disso, bradou a Deus: “Contra ti, contra ti somente pequei, e
fiz o que é mau à tua vista” (Salmo 51:4). O inferno salienta
o fato de que o pecado tem uma dimensão eterna como
uma afronta ao Todo-poderoso.
Terceiro, e o pior de todos estes erros, é a idéia antropocên-
trica acerca de Deus. Você já notou que a nossa cultura está
sistem aticam ente m inando todos os nossos sentim entos
naturais de respeito e de admiração? Já não temos heróis
autênticos. As pessoas são celebradas por comportamento
extravagante ou por consumo ostensivo, não por seu valor
para a sociedade. A riqueza é preferida à dignidade, a beleza
à virtude. “Personalidades” existem muitas, mas poucas dão
evidência de caráter. A pureza é escarnecida. Prevalece uma
atitude cínica, a crença em que ninguém é nobre ou altruísta.
A “imprensa da sarjeta” esquadrinha os segredos sujos das
pessoas famosas para deleite dos seus leitores. Biógrafos
caçadores de escândalos rasgam de alto a baixo a reputação
daqueles sobre quem eles escrevem. Ninguém que valha a
pena nos é exposto, ninguém que nos desafie ao sacrifício
próprio ou a esforços de alto nível. Todo o mundo é arras­
tado para a sarjeta moral com um risinho de quem sabe.

25
CÉU E INFERNO
Ao que parece, os heróis não são populares. Por quê? Por
que essa loucura de reduzir tudo ao mais baixo denomina­
dor comum?
A razão é: porque o povo odeia o Herói, o Ser Supremo.
O mundo tem medo de pensar que a bondade e a santidade
levantam-se para julgá-lo. O Deus de que o povo fala - se é
que Ele existe - é só para benefício do homem. Seu propósito,
parece, é suprir nossas necessidades, providenciar a nossa
felicidade. Deus é um criado do hotel celestial. Quando
você precisa dele, toca a campainha, e quando não precisa,
diz-lhe que se vá. Reescreveram a prim eira resposta do
Breve Catecismo, que passa a dizer: “O fim principal de Deus
é satisfazer ao homem e provê-lo para sempre”. Até em
igrejas evangélicas a impressão dada é que Deus existe
para fazer-nos felizes, para resolver os nossos problemas,
para responder às nossas orações, para curar as nossas en­
fermidades, para melhorar o nosso casamento, para ajudar-
-nos a manter uma dieta.
Lutero descreveu isso como “usar Deus”. Que expressão
repulsivamente acurada! Você já foi usado alguma vez? Você
pensava que certa pessoa era seu amigo. Supunha que ele
gostava da sua companhia e que avaliava você pelo que você
é. Você confiava nele, mas depois viu que ele o estavam
usando. Ele cultivava a sua amizade só pelo que queria de
você, e então ria de você por trás. Que é que você pensaria de
um homem que falasse que usava a sua própria esposa? Que
crápula ele seria! Todavia, é exatamente isso que as pessoas
estão tentando fazer com Deus. É desse jeito que elas pen­
sam que podem tratar o Senhor dos céus e da terra. Não há
noção da Sua santidade, da Sua terribilidade nem da Sua
majestade. Ele é visto como um boneco de mola que fica
numa caixa até pressionarmos o botão para fazê-10 sair.
Mas a doutrina do inferno nos confronta com um Deus
que é invencível em Sua ira, irresistível em Seu poder,

26
Pensando o Impensável
terrificante em Sua justiça. Um poderoso Soberano que
segura a terra entre Seus dedos como se fosse uma pitada de
pó. “Todos os moradores da terra são reputados em nada; e
segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os
moradores da terra: não há quem possa estorvar a sua mão e
lhe diga: que fazes?” (Daniel 4:35). O inferno nos fala do
Deus que está no controle, fazendo conosco o que Lhe agrada,
o Deus que não podemos ignorar nem marginalizar nem
manipular.
Hoje em dia as pessoas não querem um Deus como esse,
e banirão qualquer doutrina que O traga am eaçadora­
mente para diante delas. É por isso que é tão vitalmente
im portante que pensemos a respeito do inferno. Ele nos
coloca face a face diante do Deus vivo. Aqui está como que
um teste de tornassol para a nossa alma: você está centralizado
em Deus? O inferno provará você.
Mas o inverso também é verdade. Se você estiver inseguro
quanto ao inferno, Deus o convencerá. Enquanto as pessoas
não conhecerem Deus, não crerão no inferno. Esta doutrina
não pode ser ensinada isoladamente. Primeiro precisamos
ver Deus em Sua santidade e majestade, pois, enquanto não
fizermos isso, o inferno não terá sentido. Não podemos captá-
-lo. É por isso que as igrejas que honram Deus e os cristãos
que temem Deus têm um ministério tão vital. Quem mais
falará do grande e todo-poderoso Senhor?
No entanto, uma vez que tenhamos sido confrontados
pelo Deus verdadeiro, uma vez que eu e você tenhamos con­
templado o rosto desse Ser majestoso, então sim estaremos
prontos para crer em tudo o que Deus diz. Os que duvidam
podem levantar suas tolas objeções e apresentar os seus
pueris questionamentos, mas o problema básico deles é que
eles nunca viram Deus como Ele é, ou por algum tempo
O perderam de vista.
No dia do juízo ninguém vai rir ou produzir seus

27
CÉU E INFERNO
petulantes folhetos sobre o céu e o inferno. Ninguém irá
questionar a moralidade das penas eternas. Nenhum prega­
dor de mente aberta irá insistir: “Não creio que um Deus
de amor mande alguém para o inferno”. Todos nós estaremos
prontos a cair sobre o nosso rosto, dominados pela intensa
realidade do Deus vivo.
Por que devemos pensar acerca do inferno? Porque ele nos
faz lembrar a nossa insignificância. Porque ele indica de
maneira impressionante a terribilidade do pecado. Porque
ele nos coloca face a face diante da presença irresistivel­
mente dominadora de Deus. É por isso que o diabo tem
atacado tão persistentemente esta doutrina.
Talvez alguns de vocês ainda precisem encontrar-se com
Deus. Dêem meia-volta, eu insto com vocês, e encarem a
realidade do Deus que os criou e contra quem vocês têm
pecado; o Deus a quem vocês terão que prestar contas; o
Deus que certamente os condenará, se vocês não clamarem a
Ele por misericórdia; o Deus que também tão certamente
salvará todos os que crêem em Seu Filho.
Outros de nós, embora crentes, talvez tenhamos sido
influenciados mais do que percebemos pelo pensamento
do mundo. A nossa visão de Deus foi ficando opaca e a
nossa fé tornou-se muito egocêntrica. “Que é que há nisso
que me sirva?”, somos propensos a perguntar. “Que dizer
dos meus desejos? Onde os verei cumpridos?” Mais do que
qualquer outra coisa, precisamos aperceber-nos novamente
do nosso Deus em Sua santidade e em Sua glória. Queira
Ele usar esta doutrina para trazer estas realidades para
diante de nós.
E alguns de vocês vivem numa tristeza mais profunda
que as lágrimas por seus entes queridos que partiram desta
terra e que, até onde vocês podem saber, não se interessaram
por Cristo. Eles eram osso dos seus ossos, carne da sua carne.
Vocês os amavam, estavam certos em amá-los, e pensar em
28
Pensando o Impensável
que eles estão perdidos causa insuportável dor. Não posso
consolar vocês, porém posso dirigi-los a Deus. Se vocês
forem à Sua presença com as suas perguntas e com a sua
angústia, Ele porá Seus braços paternais em torno de vocês.
Pode ser que não lhes sejam dadas respostas, mas vocês
conhecerão o Deus de amor, que não pode ferir nenhum dos
Seus filhos e cujos caminhos são absolutamente justos, e o
coração de vocês se encherá de paz.
Lembrem-se das palavras dos remidos no céu, palavras
que um dia vocês tomarão como de vocês mesmos: “Graças te
damos, Senhor Deus Todo-poderoso... que tomaste o teu grande
poder e reinaste. E iraram-se as nações, e veio a tua ira, e o
tempo dos mortos, para que sejam julgados... Grandes e
maravilhosas são tuas obras, Senhor Deus Todo-poderoso!
Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei dos santos.
Quem te não temerá, ó Senhor, e não magnificará o teu nome?
Porque só tu és santo... porque os teus juízos são manifestos”
(Apocalipse 11:17,18; 15:3,4).
Esta é a única resposta: ver Deus. “Bem-aventurados os
que choram, porque eles serão consolados... Bem-aventurados
os limpos de coração, porque eles verão a Deus.”

29
2
Fundamentos Bíblicos
Algumas doutrinas bíblicas são particularmente com­
plexas. Pense, por exemplo, na Trindade - um só Deus que
subsiste em três Pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Quem pode sequer começar a explicar este mistério? Nem
mesmo os mais poderosos intelectos humanos são capazes
de penetrar a fundo tal conceito. Está muito além do nosso
entendimento.
Outros ensinos das Escrituras são encantadoramente
inesperados. Jamais poderíamos descobri-los com a nossa
razão sem ajuda. Se Deus não os tivesse revelado, teriam
permanecido desconhecidos. O exemplo supremo é, natu­
ralmente, o Pai dar Seu Filho pelos pecadores. Que o Senhor
pessoalmente se tornasse homem, vivesse, sofresse e morresse
em lugar de Seu povo é totalmente estonteante. Nem em um
milhão de anos nenhum ser humano projetaria um tal plano
de salvação. Foi inquestionavelmente feito no céu, selado
indelevelmente com a marca por excelência da divindade.
A doutrina do inferno não pertence a nenhuma dessas
categorias.
Embora haja muita coisa sobre ela que não podemos
entender, a idéia básica, em si, não é especialmente complexa.
Pode-se definir o inferno simplesmente como o lugar de
punição consciente e eterna para os ímpios. Isso é bastante claro
e direto. Uma criança não terá dificuldade em compreendê-lo.
Tampouco o inferno é algo que nunca nos teria ocorrido
sem possuir a revelação de Deus por escrito. Através de toda a
história os povos de quase todas as culturas têm tido uma
30
Fundamentos Bíblicos
noção do inferno. Encontram-se versões do inferno nas outras
grandes religiões do mundo - hinduísmo, budismo, islamismo.
Uma consciência do juízo vindouro parece fazer parte da nossa
herança como seres criados à imagem de Deus. Impressa na
consciência humana há uma inquietante noção de que além
desta vida há um lugar de punição para aqueles que praticam
o mal. Isso é negado tão freqüentemente, não por ser irracio­
nal, mas por ser extremamente desagradável.
Na Igreja do Novo Testamento a doutrina do inferno
parece ter sido uma das lições do ABC para os neófitos. O
escritor da Epístola aos Hebreus refere-se ao “juízo eterno”
como um dos “rudimentos da doutrina de Cristo” (Hebreus
6:1,2), noutras palavras, era o ensino fundamental introdu­
zido no início da vida cristã. Em nossos dias, porém, ela tem
sido negligenciada e precisamos tomar tempo para esclarecer
o nosso entendimento.
Podemos sumariar os principais aspectos da doutrina
bíblica sobre o inferno em cinco proposições simples. Depois
consideraremos duas dificuldades que freqüentemente as
pessoas têm com este ensino.
QUE É O INFERNO?
Um lugar real criado por Deus
Uma idéia popular e contemporânea sobre o inferno é que
ele não é mais que uma metáfora para figurar a infelicidade
que experimentamos nesta vida. Nas palavras memoráveis do
filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre, “Nada de
enxofre ou grelha. O inferno são os outros”. Para ele o inferno
era a dor causada pela crueldade dos nossos semelhantes, seres
humanos como nós. O povo descreve experiências assolado-
ras como “infernais”. “Passei por um verdadeiro inferno”, em
geral se diz. O inferno é visto como o lado escuro da vida, a
tristeza e o sofrimento pelos quais o povo passa.
Nada disso é verdadeiro. O inferno é um lugar real. Não é
31
CÉU E INFERNO
uma metáfora ou um símbolo, não é uma descrição da nossa
aflição interior nem dos nossos atuais sofrimentos, não importa
quão agonizantes eles sejam. Não é um estado mental. E um
lugar, com dimensões espaciais. Na parábola do rico e Lázaro,
0 rico fala sobre “este lugar de tormento” (Lucas 16:28), e é
empregada a palavra grega normal para “lugar”, da qual vem
a nossa palavra “topografia” - a ciência da descrição de luga­
res. É-nos dito que o condenado Judas Iscariotes foi “para o
seu próprio lugar” (Atos 1:25). Não sabemos em que parte do
universo fica esse lugar, porém ele tem algures uma localiza­
ção precisa. A Bíblia indica a sua grande distância da vida de
Deus e da luz descrevendo-o como estando “fora”, “do lado de
fora”, nas “trevas exteriores”.
O nome mais característico dado ao inferno no Novo Testa­
mento é Geena,1 palavra que tem uma história interessante.
Refere-se ao vale de Hinom, fora de Jerusalém, onde os
israelitas tinham queimado os seus filhos em sacrifício ao
deus amonita Moloque (2 Crônicas 28:3; 33:6; 2 Reis 23:10).
Era um lugar de práticas diabólicas e que causava profunda
aflição. Lá pelo século primeiro esse vale de Hinom havia se
tornado um depósito de lixo, onde o despejo era queimado
dia e noite. O povo do tempo de Jesus o associava a fumaça,
mau cheiro e vermes - a tudo o que era repugnante e imundo.
Esse foi o termo horrivelmente vivido que o nosso Senhor
escolheu para descrição do inferno real.
Uma vez que é um lugar, foi criado por Deus. Visto que
ele criou todas as coisas, e por Sua vontade elas existem e foram
criadas (Apocalipse 4:11), a expressão “todas as coisas” neces­
sariamente inclui o inferno. Deus o trouxe à existência. Foi
por sua ordem que o fogo eterno foi “preparado para o diabo
e seus anjos” (Mateus 25:41). Mais adiante veremos a signifi­
cação disso.
1 Mat. 5:22 etc, no grego. Do hebraico Gehinnon, “vale de Hinom”. Nota
do tradutor.

32
Fundamentos Bíblicos
Penas eternas, terríveis ejustas
Em segundo lugar, o inferno é um lugar de punição.
Haveria idéia mais impopular hoje? Não quanto a todas as
espécies de punição, claro. A punição corretiva, destinada a
fazer do ofensor uma pessoa melhor, chega a ser aceitável. As
forças da política corretiva ainda não conseguiram persuadir
os governos a retirarem dos pais o direito de disciplinar seus
filhos. O propósito da disciplina é ensiná-los a não agirem mal.
A nossa esperança é que os nossos filhos aprendam dessa
experiência desagradável e que não tenhamos que puni-los de
novo. O sistema prisional segue a mesma filosofia, onde o
objetivo expresso do encarceramento é a reabilitação do
criminoso. E alguns admitem o papel da punição preventiva,
empregando-a como um dissuasor para impedir outros de
praticarem o mesmo delito e assim sofrerem pena semelhante.
Esse tipo de ação serve de bandeira de advertência para a
comunidade, e a correção de uns poucos culpados visa garan­
tir a continuada obediência dos cumpridores da lei, mais
numerosos.
Mas a punição que o mundo atual não se dispõe a tolerar
é a retributiva2 - punição infligida sim plesm ente como
recompensa pelo mal praticado, por ser justo que os malfeitores
sofram; punição que assinala a aversão pelo erro e o compro­
misso com o que é certo. Tal punição é considerada bárbara e
imoral. Não porque as pessoas se tornaram mais humanas ou
civilizadas, porém porque se apavoram ante um tenebroso
espectro. A negrura do inferno as persegue. Perturbadores
sussurros do juízo por vir ecoam nas fímbrias da sua cons­
ciência. Esses avisos da ira de Deus as aterrorizam tanto que
elas fazem tudo o que podem para eliminar toda e qualquer
idéia de punição retributiva da nossa sociedade. Como
2 Tenho empregado essa forma, que não consta em nossos dicionários,
por me parecer mais expressiva e do que “remunerativa” e mais abrangente
do que “retribuível” (Caldas Aulete). Nota do tradutor.

33
CÉU E INFERNO
crianças que escondem a cabeça debaixo dos lençóis, essas
pessoas se abaixam por trás de uma suposta brandura de
coração para que o pesadelo se vá. Talvez esperem que, se nós
abolirmos a punição, Deus resolverá fazer o mesmo.
Sim, pois a punição no inferno é retributiva. Não é
correcional. Não melhora ninguém. O purgatório, a idéia de
que seres humanos serão purificados e melhorados por seus
sofrimentos após a morte, é um mito. As penas do inferno
absolutamente não são de nenhum benefício para os que
estão sendo punidos. Tampouco é preventiva, exceto no sen­
tido de que saber disso pode levar pessoas a deixarem o pecado
e a serem convertidos a Cristo. Quando Deus abrir os livros
do juízo e proclamar o destino final de todos, a punição
pronunciada será o que o povo odeia e teme acima de tudo:
punição retributiva, imposta porque o mal é o mal, e Deus é
contra o mal. A nossa sociedade treme em face dessa idéia.
Ela penetra nas consciências endurecidas e toca num nervo
de culpa enterrado profundamente.
Esta punição será justa, porque im posta pelo santo
Senhor Deus, cujos juízos são totalmente verdadeiros e retos.
Dizem-nos as Escrituras que, conquanto seja fato que todos os
ímpios serão punidos, não serão todos punidos no mesmo
grau. Uns sofrerão mais que outros. Quanto maior a culpa,
maior a pena. Deus tratará os pecados cometidos na ignorância
menos severamente do que os atos conscientes de desobe­
diência: “O servo que soube a vontade do seu senhor, e não...
fez conforme a sua vontade, será castigado com muitos açoi­
tes; mas o que não a soube... com poucos açoites será castigado.
E, a qualquer que muito for dado, muito se lhe pedirá, e ao
que muito se lhe confiou muito mais se lhe pedirá” (Lucas
12:47,48).
Privilégios negligenciados aumentarão a pena recebida,
pois Cristo faz uma séria advertência às cidades da Galiléia
onde Ele tinha pregado e tinha realizado muitos milagres:

34
Fundamentos Bíblicos
“Ai de ti, Corazim, ai de ti, Betsaida... haverá menos rigor
para Tiro e Sidom... (e) para os de Sodoma, no dia do juízo, do
que para ti” (Mateus 11:21-24). Essa deve ter sido uma
declaração estonteante para os que a ouviram na primeira
ocasião. Respeitáveis cidades pesqueiras da Galiléia mais
culpadas aos olhos de Deus do que a pagã Tiro e a corrupta
Sodoma! Entretanto, essa é a enormidade da culpa de ouvir
e rejeitar o Filho de Deus. Os escribas, que tinham contato
com as Escrituras como ninguém, mas que constantemente
se mostravam hipócritas, gulosos ou desonestos, “receberão
mais grave condenação” (Marcos 12:38-40). Temos aqui uma
séria consideração para todo aquele que, tendo sido criado
num lar cristão, ainda não assumiu um compromisso com o
Salvador. Os abismos mais profundos do inferno podem
estar reservados, não para os notoriamente iníquos, e sim
para aqueles que, desde a infância, conheceram a mensagem
de salvação e, todavia, não a abraçaram.
Não nos é revelado como será a graduação da pena. Pode
ser que Deus inflija maior pena a uns. Pode ser que haja
uma consciência mais aguda das oportunidades negligencia­
das, um remorso mais profundo. O verme da memória, o
ensino de um pai ou as orações de uma mãe podem ser parte
da tortura dos condenados no inferno. A Bíblia não no-lo diz,
e não devemos especular. Mas sabemos que a punição será
incontestavelmente justa. Ninguém poderá queixar-se de que
não é justa ou de que não a merece. O inferno é justo.
É também terrível, pois é um lugar de “pranto e ranger de
dentes” (Mateus 8:12), “onde o seu bicho não morre, e o fogo
nunca se apaga” (Marcos 9:44). Quem estiver no inferno “beberá
do vinho da ira de Deus, que se deitou, não misturado, no
cálice da sua ira; e será atormentado com fogo e enxofre... E o
fumo do seu tormento sobe para todo o sempre; e não têm
repouso nem de dia nem de noite...” (Apocalipse 14:10,11).
Não é apenas um tapa na mão. E medonho.
35
CÉU E INFERNO
E é eterno. Apesar das especiosas “dificuldades” moder­
nas, este ensino das Escrituras é cristalinamente claro. A Bíblia
fala em “eterna perdição” (2 Tessalonicenses 1:9), “em fogo
eterno... tormento eterno” (Mateus 25:41,46), e em cada caso é
empregada a mesma palavra grega aplicada à vida “eterna”.
Assim como as alegrias do céu serão eternas, assim também
serão eternos os sofrimentos do inferno. Judas fala da “pena do
fogo eterno” (versículo 7) e da “negrura das trevas” que sofre­
rão os ímpios “eternamente” (versículo 13).
Quão pavorosa será essa punição - justa, terrível e eterna!
Diz João Calvino: “Com tais expressões o Espírito certamente
tencionou perturbar com temor todos os nossos sentidos”
(.Institutas, III. xxv. 12).
Para o diabo, seus anjos e os não salvos
“Todas as pessoas interessantes vão estar no inferno”,
escreveu o dramaturgo George Bernard Shaw, numa peça
gritantemente blasfema. Mas não é isso que a Bíblia nos diz.
O diabo estará no inferno, “lançado no lago de fogo e
enxofre” (Apocalipse 20:10). Far-lhe-ão companhia os “seus
anjos” (Mateus 25:41), no presente reservados pelo Senhor “na
escuridão, e em prisões eternas até ao juízo daquele grande
dia” (Judas, versículo 6). Estes demônios, já cientes do seu
destino final quando Jesus estava na terra, humilharam-se
diante do poder do Salvador: “Ah, que temos contigo, Jesus
Nazareno? Vieste destruir-nos?” “E rogavam-lhe que não os
mandasse para o abismo” (Marcos 1:24; Lucas 8:31).
O inferno é também para os que são notoriamente maus.
“Quanto aos tímidos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e
aos homicidas, e aos fornicários, e aos feiticeiros, e aos idóla­
tras e a todos os mentirosos, a sua parte será no lago que
arde com fogo e enxofre” (Apocalipse 21:8). Que repelente
galeria de patifes! Essas são as “pessoas interessantes” de
Bernard Shaw.

36
Fundamentos Bíblicos
No entanto, não são somente os declaradamente maus
que estarão no inferno. O apóstolo identifica para nós aqueles
de quem Deus vai tomar vingança com Seu poder “como
labareda de fogo”. Quem são eles? Que monstros de depravação
poderão ser? Os Hitler? Os Stalin? Sim. Mas também aqueles
“que não conhecem a Deus e... que não obedecem ao evangelho
de nosso Senhor Jesus Cristo” (2 Tessalonicenses 1:8). Pessoas
exteriormente íntegras, decentes, muitas delas. Bons cidadãos,
pais atenciosos, empregados confiáveis, vizinhos camaradas.
Mas nunca confiaram em Cristo como Salvador. Recusaram-
-se a “obedecer ao evangelho”.
Você está nessa situação? Você pode se julgar uma pessoa
razoavelmente boa. Pode achar que não é culpado de nenhum
grande crime, que nunca fez nada de que realm ente se
envergonhe. Mas o evangelho diz: “Crê no Senhor Jesus
Cristo”, e você não obedeceu a essa ordem. Mesmo que não
tenha cometido jamais outro pecado, Deus tomará vingança
de você com Seu poder como labareda de fogo, se você não
obedecer ao Seu evangelho. Só estão livres do inferno aqueles
que confiam em Cristo. “Aquele que não crê no Filho não verá
a vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece” (João 3:36).
Disse, porém, Jesus: “Quem ouve a minha palavra, e crê na­
quele que me enviou, tem a vida eterna, e não entrará em
condenação, mas passou da morte para a vida” (João 5:24).
O destino irrevogável de quem morre incrédulo
No dia do Juízo, os corpos dos incrédulos que tiverem
morrido serão levantados dos túmulos, reunidos às suas almas
e lançados no inferno. Mas precisamos lembrar-nos de que
suas almas já estão no inferno. Não há uma terra-de-ninguém
no universo, uma sala de espera entre o céu e o inferno, um
sono da alma ou um período de inconsciência até à segunda
vinda de Cristo. As almas que já não habitam seus respectivos
corpos estão no céu ou no inferno.

37
CÉU E INFERNO
Quando os crentes morrem, suas almas vão imediata­
mente estar com Cristo. Paulo queria “partir, e estar com Cristo,
porque isto é ainda muito m elhor” (Filipenses 1:23). O
Salvador disse ao ladrão que estava para morrer: “Hoje estarás
comigo no Paraíso” (Lucas 23:43), e é precisamente isso que
acontece com todos os cristãos quando morrem. Inversa­
mente, quando o incrédulo morre, vai estar com satanás, o que
é muito pior. Quando ele se vai da terra, o diabo sussurra
gozando: “Hoje você vai estar comigo no inferno”. Não há
nenhuma outra possibilidade. A nossa alma vai estar ou com
Cristo ou com satanás.
O sheol do Velho Testamento e o hades, do Novo, têm sido
entendidos por alguns como um estado interm ediário,
neutro, ocupado por todos os seres humanos antes do retorno
de Cristo. Mas isso é devido a um entendimento errado, pois
essas palavras são empregadas nas Escrituras ao menos em
dois sentidos. As vezes se referem à sepultura, para a qual
todos vão, e às vezes ao lugar de punição, para o qual os crentes
não vão. A Versão do Rei Tiago (Autorizada) corretamente
varia a sua tradução desheol conforme o contexto, mudando-a
de “sepultura” ou “fossa” para “inferno”.
Embora as Escrituras falem muito mais sobre o destino
dos crentes do que dos perdidos, não obstante o seu ensino é
m uito claro com relação aos que morrem sem Cristo. A
parábola do nosso Senhor sobre o rico e Lázaro refere-se
claramente ao período anterior à ressurreição geral; o rico
morreu e foi sepultado, e seus cinco irmãos ainda estão vivos
na terra. O fim do mundo não chegou. Mas, embora morto, o
rico falecido está consciente, pois “no Hades, ergueu os olhos,
estando em tormentos, e viu...”. Seu corpo está se decompondo
no solo, porém sua alma está experimentando agonia no
inferno. “Estou atormentado nesta chama”, ele grita (Lucas
16:23,24).
Todos os que morreram na incredulidade estão sofrendo
38
Fundamentos Bíblicos
neste momento. “Sabe o Senhor livrar da tentação os piedo­
sos, e reservar os injustos para o dia de juízo, para serem
castigados”. Traduzindo a frase final literalmente, “e manter
os injustos num estado de permanente castigo para o dia do
juízo” (2 Pedro 2:9). Não há uma segunda oportunidade, não
há esperança futura, não adianta orar pelos mortos. Eles estão
fora do alcance das nossas orações, as quais não os podem ajudar
mais. Nem mesmo o Deus todo-poderoso os ajudará.
E por isso que o evangelho é tão urgente. E por isso que
Deus nos conclama a crer hoje, pois uma vez que morramos,
será tarde demais. Nesse mesmo momento, a alma estará
irrevogavelmente perdida, só aguardando sua reunião com o
corpo, igualmente condenado, no último dia.
O inferno é governado por Deus e existe para a Sua glória
Precisamos acentuar que o inferno é governado por Deus,
pois há uma idéia popular segundo a qual o inferno está de
algum modo fora da Sua presença e do Seu alcance. O povo
pensa que o inferno é uma espécie de depósito de lixo nuclear
no qual Deus encerrará os ímpios. Então ele será selado,
enterrado e esquecido, e as almas que estiverem nesse terrível
lugar de tormento serão deixadas entregues a seus próprios
recursos. Talvez John Milton, embora fosse grande puritano,
seja parcialmente responsável por essa conceituação errônea.
Em Paradise Lost (Paraíso Perdido) ele dedica muita atenção
a satanás, o anjo-mor. Quando o diabo está para entrar no
inferno, Milton o faz dizer: “Aqui ao menos estaremos livres...
Aqui podemos reinar seguros, e, em minha escolha, reinar é
ambição que vale a pena, ainda que no inferno: é melhor
reinar no inferno do que servir no céu”.
O poeta dá com isso um tipo macabro de esperança. “Aqui
estaremos livres... Aqui podemos reinar seguros”. Talvez seja
isso que na verdade satanás pensasse e esperasse. “Posso ser
infeliz, mas serei meu próprio senhor. Este pode ser um lugar
39
CÉU E INFERNO
de miséria, porém ao menos poderei ficar longe de Deus.”
São muitos os que concordam com ele e que vêem o inferno
como o lugar onde satanás reina.
Contudo, isso não é verdade. O inferno é um lugar onde
só Deus reina. Não é um domínio demoníaco fechado em si
mesmo e independente. Deus, que “tem poder para lançar no
inferno” (Lucas 12:5), governa-o e preparou seu fogo (Mateus
25:41). Ele está presente no inferno, pois as almas condena­
das são atormentadas “diante dos santos anjos e diante do
Cordeiro” (Apocalipse 14:10). Que declaração estranha e
terrível! Voltaremos a ela mais adiante.
Não, o diabo não reina no inferno. Não devemos represen-
tá-lo como uma figura tipo James Dean, um rebelde trágico
e heróico que fica sozinho e ergue seus punhos contra Deus.
Milton comete esse erro quando põe na boca de satanás as
seguintes palavras: “Que será se o campo for perdido? Nem
tudo estará perdido; a vontade invencível... e a coragem nunca
se sujeitarão nem se renderão. Essa glória nunca a Sua ira ou
o Seu poder arrancará de mim. Inclinar-me e implorar a
graça com joelhos suplicantes, e divinizar Seu poder... Essa
seria uma ignomínia e uma vergonha sob esta condição de
queda”.
Isso toca uma corda profunda dentro de nós, não toca?
Por terrível que seja, há algo magnífico num a vontade
indômita, na cabeça que, em sangue, não se inclina, no espírito
inquebrantável. Tal desafio exerce atração sobre a nossa
arrogante natureza decaída. Mas isso e falso. “Ao nome de Jesus
se (dobrará) todo joelho dos que estão nos céus, e na terra, e
debaixo da terra, e toda língua (confessará) que Jesus Cristo é o
Senhor, para glória de Deus Pai” (Filipenses 2:10). Satanás
não estará “livre”, sua vontade não é “invencível”, sua cora­
gem será inexistente, sua “ignomínia e vergonha” será total.
“Tudo” já “está perdido”. Ele não será um príncipe das trevas,
temível em sua perversa dignidade, mas um ser desprezível,

40
Fundamentos Bíblicos
agachado diante do poderoso Rei e Senhor de tudo e de todos.
Deus exerce o Seu governo no inferno como o exerce no céu.
Também devemos lembrar-nos de que o inferno existe
para a glória de Deus. Uma vez sendo isso bem entendido, não
deveria ser causa de embaraço para nós. Não temos por que
falar disso aos sussurros, ou preferindo que ele não existisse.
No inferno, só podemos dizer isso com trêmula reverência, a
glória de Deus se manifestará de novas e admiráveis manei­
ras. Sua autoridade de Rei será vista mais claramente, como
nunca terá sido possível antes. Novos aspectos da Sua santidade
e justiça serão revelados ao Seu extasiado povo.
Podemos ousar crer nisto porque as Escrituras no-lo
ensinam. O derradeiro livro da Bíblia mostra-nos os habitan­
tes do céu, sem pecado, louvando a Deus e dando-Lhe graças
pelo inferno. Os vinte e quatro anciãos caem sobre os seus
rostos diante dEle, dizendo: “Graças te damos, Senhor Deus
Todo-poderoso... que tomaste o teu grande poder, e reinaste.
E iraram-se as nações, e veio a tua ira, e o tempo dos mortos,
para que sejam julgados” (Apocalipse 11:17,18).
O anjo das águas louva o Senhor por Seus juízos: “Justo és
tu, ó Senhor... porque julgaste estas coisas.... tu lhes deste o
sangue a beber; porque disto são merecedores” (Apocalipse
16:5,6).
DUAS DIFICULDADES
Por mais racionalmente justas e retas que estas proposi­
ções sejam, elas levantam certas perguntas em nossa mente.
Nem todos os problemas que as pessoas têm com a doutrina
bíblica do inferno brotam da incredulidade ou de uma
relutância em aceitar o ensino de Deus. Existem dificuldades
genuínas que os homens e as mulheres piedosos discutem e
que podem causar-lhes considerável aperto. Talvez seja
proveitoso exam inar abreviadam ente duas das m ais
comuns.

41
CÉU E INFERNO
O inferno é desproporcionalmente severo?
Eis a primeira: acaso os sofrimentos do inferno, tanto em
sua duração como em sua severidade, não são desproporcio­
nais às ofensas? Será justo que os seres humanos sejam punidos
por seus pecados tão terrivelmente e para todo o sempre?
Como podemos evitar acusar Deus de injustiça neste ponto?
Será que a pena não ultrapassa o peso do crime?
Uma resposta é que não estamos em condições de criticar
a penalidade porque temos pouco entendimento da extensão
da culpa envolvida. O nosso conceito de pecado é inteiramente
inadequado. Mesmo a consciência mais sensível tem pouca
ciência da verdadeira malignidade do pecado e nós simples­
mente não somos competentes para avaliar quanto castigo
ele merece. Não podemos apreciar quão terrível coisa é
desobedecer a Deus, nem somos capazes de calcular a relativa
gravidade das nossas diversas transgressões da Sua lei.
A sociedade contemporânea encontra-se num estado de
caos ético. Imaginemos um grupo de jovens profissionais
desfrutando uma refeição num restaurante de qualquer
grande cidade. Nem um levantar de sobrolhos ocorrerá se
alguém mencionar que recentemente teve um aborto. Uma
referência, feita por outro, a seu “parceiro” sexual do mesmo
sexo não fará surgir nenhuma reprovação. Mas, se algum
membro do grupo acender um cigarro numa seção para não
fumantes do restaurante? Choque, horror, repulsa unânime!
A exalação de fumaça de tabaco é mais repreensível do que a
perversão sexual ou do que matar um nascituro? Seriam tais
pessoas competentes para emitir juízos morais, para decidir
como Deus deve tratar o pecado? Elas não conseguem nem
distinguir entre maldade e maneiras más.
Os líderes, para tomarmos outro exemplo, geralmente
desaprovam a pena capital - a não ser para um crime extra­
ordinariam ente grave. N orm alm ente eles se recusam a
considerar que um ser humano seja levado à morte, mesmo
42
Fundamentos Bíblicos
por assassinato. Todavia, quando um criminoso especialista
em bombas mata centenas de pessoas no centro de uma cidade
ou a bordo de um avião, ou quando uma criança é degolada
em circunstâncias de revoltante crueldade, alguns poderão
dispor-se a abrir uma exceção, a pôr de lado os seus escrúpu­
los, porque “isto, naturalm ente, é diferente, e uma coisa
realmente má...”.
E aí está precisamente o ponto: o pecado é realmente mau.
E a pior coisa que se pode imaginar. Um ser mortal põe a sua
vontade contra o Criador. Recusamo-nos a servi-10. Rejeitamos
a autoridade do Senhor que nos criou. O pecado é tão grave
porque é dirigido contra Deus, e a gravidade da ofensa depende
da dignidade do Ser contra o qual foi cometida.
Se víssemos uma pessoa fazendo em pedaços um verme,
ficaríamos irritados diante de uma maneira cruel e sem obje­
tivo de tratar uma criatura viva. Mas não nos abalamos. Não
ficaríamos horas sem dormir, angustiados pelo seu destino. Se
um gato fosse mutilado, ficaríamos muito mais transtornados
e provavelmente interferiríamos, porque em nossa escala de
valores um gato é um animal muito mais nobre que um
verme. E se víssemos alguém torturando um a criança,
ficaríamos horrorizados e a lembrança disso ficaria conosco
para sempre. Em cada um desses casos, o ato é o mesmo, porém
contra diferentes espécies de ser. Cortar um verme em dois
pedaços não é tão mau como cortar em dois um ser humano.
Mas, quão grave, então, há de ser uma ofensa contra Deus,
que está m uito acima de todas as criaturas, o Criador, o
Incriado? Como podemos sequer começar a avaliar tão
pavorosa maldade?
Outra coisa é que a culpa do pecado não tem neces­
sariamente conexão com o tempo que leva para que o referido
pecado seja cometido. As pessoas perguntam por que devem
ser punidas eternamente por um pecado que durou apenas
algumas horas ou alguns dias. Mas a sua lógica é falha. Você

43
CÉU E INFERNO
pode matar alguém num segundo ou fraudá-lo nas economias
de sua vida durante um período de dez anos. O primeiro crime
é “mais curto” do que o segundo, porém deveria por isso
incorrer em pena menor? A extensão do tempo é irrelevante
para a culpa envolvida. Mesmo um pecado momentâneo tem
dimensão eterna, porque é contra Deus, que é infinito.
Devemos lembrar também que os que estão no inferno
continuam a pecar, incorrendo em mais culpa por toda a
eternidade. A sentença divina é: “Quem é injusto, faça injustiça
ainda; e quem está sujo, suje-se ainda” (Apocalipse 22:11).
Como John L. Dagg o expressa, “O pecador não se torna
inocente por ser confirmado no pecado... A condição futura
dos ímpios é terrível principalmente porque eles são aban­
donados por Deus e por Ele deixados ao pleno exercício e à
plena influência das suas paixões impuras, e ao conseqüente
acúmulo da culpa para todo o sempre”.3 Noutras palavras, os
que estão no inferno tornam-se cada vez mais culpados e
acumulam cada vez mais pecado, o que merece crescente
punição. Depois de incontáveis eras eles terão que responder
por mais do que quando foram condenados pela primeira
vez.
Mas a prova final da gravidade do pecado e da justiça das
penas eternas é dada pela cruz de Cristo. Ouça de novo o que
Dagg diz: “Se a ira e a condenação fossem coisas triviais, o fato
de Deus enviar Seu Filho único ao mundo e de lançar os
nossos pecados sobre Ele, e todos os expedientes adotados para
libertar-nos destes males considerados insignificantes, seriam
indignos da sabedoria divina”. Você percebe o argumento? Se
o pecado é trivial, uma questão relativamente pequena, teria
Deus enviado Seu Filho para lidar com ele? Se fosse fácil
expiar o pecado, se uma penalidade leve fosse suficiente para

3 A Manual of Theology [Manual de Teologia], 1857, reeditado em


Harrisonburg, Va.: SprinklePublications, 1990,p. 373.

44
Fundamentos Bíblicos
compensá-lo, que desperdício seria derramar o precioso sangue
do Unigênito! Dagg continua: “O poder da ira de Deus a
inteligência finita não pode conceber; mas Deus o entende
bem, a estimativa completa disto foi feita nos profundos
conselhos que projetaram o esquema da salvação”.4 É ina­
creditável que o sapientíssimo Deus triúno planejasse e
oferecesse um tão estupendo sacrifício de Si mesmo a fim de
remover um mal meramente finito. A morte de Cristo no
Calvário é incompatível com um entendimento limitado da
culpa do pecado. W. G. T. Shedd m ostra um profundo
discernimento quando comenta: “A doutrina da expiação
vicária de Cristo logicamente fica de pé ou cai com a das
penas eternas”.5
Falemos com clareza. Se perderm os a realidade do
inferno, acabaremos perdendo a da cruz, pois, se não houver
inferno, não haverá razão de ser para a cruz. Jesus não precisa­
ria ter vindo e ter sido feito maldição pelo pecado. Ele não
precisaria ter experimentado o horror do desamparo do Pai. A
cruz e o inferno ficam de pé ou caem juntos. O inferno é algo
extremo, mas o é porque o pecado é algo extremo e porque
medidas extremas foram tomadas para a nossa salvação. Não
podemos contemplar a maravilhosa cruz, meditar no que o
Salvador sofreu e afirmar que o inferno é uma inadequada
punição do pecado.
Mas Deus é amor. Não seria o inferno contrário ao caráter de Deus?
Esta pergunta apresenta outra dificuldade. Deus “tem
prazer na misericórdia” (Miquéias 7:18, ARA), e, portanto,
como pode Ele suportar o envio de algumas das Suas criaturas

‘4 A Manual ofTheology [Manual de Teologia], 1857, reeditado em


Harrisonburg, Va.: Sprinkle Publications, 1990, pp. 365,6.
5 The Doctrine of Endless Punishment (A Doutrina da Punição Sem Fim),
1885, reeditado em Edimburgo: Banner of Truth, 1986, p. 153.

45
CÉU E INFERNO
para o tormento eterno? Você faria isso com uma criança, ou
mesmo com um cão? Naturalmente que não. Nenhum de nós
poria um animal nas chamas do inferno para sempre. Como
então Deus pode fazê-lo? Porventura Ele não é um Deus de
amor?
É, de fato. Mas também é santo e justo, e os Seus atributos
se entrosam harmoniosamente. Eles não se opõem uns aos
outros. O amor de Deus nunca pode pôr-se contra a Sua
santidade pois essas qualidades são mutuamente amigas, não
inimigas. Quando Ele age retamente, isso não compromete a
Sua misericórdia de modo nenhum. Na plenitude da Sua
perfeição, todos os Seus atributos são exercidos e revelados,
sem exceção. Nenhum deles pode ser cancelado ou omitido,
pois Deus não pode negar a Si mesmo.
Certamente concordamos que é correto Deus odiar o
pecado. Este é um elemento essencial do Seu Ser e, visto que
Ele é infinito, odeia o pecado com ódio infinito. Mas, se esse
ódio é bom, não deve expressar-se? Deus revela Seu amor e
Sua graça, porém também manifesta a Sua justiça e a Sua
ira. Não fazer isso seria mutilar-Se e dar um quadro parcial
da Sua glória. Contudo, não há contradição, porquanto Ele
é santo em Seu amor, e a Sua bondade não é ameaçada pela
Sua justiça.
Pensemos ainda que, se formos contestados quanto a
razão por que Deus simplesmente não passa por alto as práti­
cas do mal, poderemos perguntar se a indiferença para com o
pecado é uma virtude. Será que admiramos as pessoas que
não têm um claro senso do certo e do errado? Quando uma
democracia está querendo eleger canalhas sem princípios para
um alto cargo, que é que isso nos diz sobre a saúde moral da
nação? Que pensaríamos de alguém que insistisse em manter-
-se amigo chegado de um impenitente assassino de crianças
ou de um juiz que impusesse a sentença mais leve possível a
um tal criminoso? Recomendaríamos tais pessoas por seu

46
Fundamentos Bíblicos
bom coração e por sua índole bondosa? Absolutamente não.
Nós nos sentiríam os mal diante da sua insensibilidade.
Desprezaríamos ou teríamos dó de quem tivesse tão fraco
desprazer pela maldade. Então, por que pensar que Deus
deveria comportar-se diferentemente, que Ele deveria fechar
os olhos para o mal no interesse de uma benevolência cordial?
Robert L. Dabney dá-nos uma vigorosa ilustração tomada
da experiência de duas pessoas que ele conhecia. Uma era uma
piedosa mulher que confiava no Senhor, tinha uma vida de
santidade e de amor e, contudo, foi dominada pela dor e pela
enfermidade todos os seus dias, vindo a morrer em agonia. A
outra era um miserável ímpio e imoral, um homem cruel, que
tinha cometido homicídio. Ele passou os seus dias gozando
saúde e felicidade, e foi tirado deste mundo de repente, sem se
sentir mal e sem nenhuma dor. Nas palavras de Dabney:
Não vamos supor que estas duas pessoas, ao comparecerem
quase ao mesmo tempo na presença de Deus, foram
introduzidos no mesmo céu... Se essa fosse a justiça de Deus,
Ele deveria ser mais temido que o acaso cego, mais do que o
próprio príncipe das trevas. Acreditar que o destino eterno está
nas mãos de uma tal onipotência sem princípios seria mais
horrível do que morar na enganosa crosta de um vulcão.6
Que espécie de Deus trataria o bem e o mal da mesma
forma? Se Deus olhasse para o pecado e dissesse: “Isso não
importa; não é de nenhum real interesse para mim; esqueça
tudo sobre isso, pois é o que eu quero; bem vindo ao meu
céu”, Ele já não seria Deus.
Ou poderíam os abordar o problem a focalizando os
óbvios fatos dos sofrimentos desta vida. Muitos perguntam

6 Systematic Theology (Teologia Sistemática), 1871, reeditado em


Edimburgo: Banner ofTruth, 1985, p. 861.

47
CÉU E INFERNO
como um Deus de amor pode infligir miséria sem fim às Suas
criaturas. Mas nós podemos igualmente perguntar como Ele
pode permitir que as Suas criaturas sofram qualquer miséria.
Todavia, Ele permite isso. O mundo está repleto de dor e de
infelicidade. Vê-se claramente que Deus julga o pecado, e
que Ele tem feito isso desde a Queda. Cremos, porém, que
Ele é amor, apesar dos Seus juízos que prefiguram o futuro.
Como John Blanchard se expressa a respeito, “Os juízos de
Deus freqüentemente caem sobre este mundo o bastante para
fazer-nos saber que Deus julga, mas raramente o bastante para
fazer-nos saber que tem que haver um juízo por vir”.7
Se um Deus de amor não pudesse infligir sofrimento, a
salvação seria automática. Se Deus fosse obrigado a perdoar,
se o Seu amor exigisse que Ele sempre mostrasse misericór­
dia e recebesse os pecadores no céu, a graça seria uma coisa
inexistente, e não seriamos devedores a Ele de forma alguma.
A redenção seria obrigatória, seria nosso direito inalienável.
A cruz seria uma suprema irrelevância. Se um Deus de amor
não tivesse nenhuma possibilidade de mandar alguém para
o inferno, que sentido teria João 3:16?
Os incrédulos usam o inferno para acusar Deus de falta de
amor, da incapacidade de ser misericordioso. Mas a verdade é
que há misericórdia. Pois em Cristo “Deus prova o seu amor
para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda
pecadores” (Romanos 5:8).
Os pecadores ouvem falar do amor de Deus; eles são
concitados a aceitar o Seu amor. Mas, se o rejeitam e o recusam,
e depois se queixam de que Deus não é amoroso, estariam
sendo razoáveis? Ele ama, porém eles não querem o Seu amor.
Eles o pisoteiam e depois têm a petulância de criticá-10 e de
pôr-se, digamos, aos pés do Calvário no qual o Seu Filho
unigênito derramou Seu sangue e morreu, e se queixam de
7 Whatever Happened to Hell? (Que Aconteceu com o Inferno?), p. 101.

48
Fundamentos Bíblicos
que não podem crer em Sua misericórdia. À luz da cruz de
Cristo, pode alguém atrever-se a dizer que Deus não ama?
Insinuar que a existência do inferno põe em questão o amor
de Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo é blasfêmia.
O PROPÓSITO DA DOUTRINA BÍBLICA
O que estivemos considerando é sem dúvida inquietante.
A Bíblia contém muitas declarações sobre o inferno que são
em extremo apavorantes, e por isso ela tem sido criticada de
ser sedenta de sangue e transtornadora. Por que, perguntam os
críticos, essas idéias bárbaras têm que ser incluídas num livro
religioso? Não seria mais próprio que a Bíblia fosse uni­
formemente consoladora e animadora? Por que Deus revelou
uma doutrina tão assustadora como esta em Sua Palavra?
Quem vai querer ler tal entulho?
Ninguém, provavelmente. Mas o que talvez queiramos
erra o alvo. Eu não quero ser acordado às três da manhã por
alguém bradando “Fogo!” do lado de fora da janela do meu
quarto de dormir. Eu não quero ter que pular de uma cama
quente, tropeçar na perna de uma cadeira na escuridão, vestir
um roupão, fazer levantar a família inteira e ficar com ela na
rua fria. Se, ao fazer isso, eu descobrisse que tinha sido vítima
de uma brincadeira esperta, ficaria consideravelm ente
aborrecido e acharia aquilo uma peça de irresponsável tolice.
Se, porém, eu visse as chamas engolirem parte da m inha
casa, seria então agradecido a quem me acordara do sono e
salvara as nossas vidas. A questão não seria a voz alta, a hora
inconveniente, as palavras assustadoras e o transtorno e a
tensão. A questão seria antes, a advertência foi verdadeira?
Se foi, então, quanto mais alto for o grito, melhor.
As advertências são desagradáveis e geralmente não são
bem vindas. Mas, se estão baseadas na realidade, são bondo­
sas e benéficas. Precisamos delas e devemos aproveitar-nos
delas. Deus nos adverte sobre o inferno, e o faz alarmantemente,
49
CÉU E INFERNO
porque o inferno é uma realidade apavorante, e o Senhor nos
concita a fugirmos dele.
Suponhamos que a Bíblia não falasse nada sobre o inferno,
nem uma só palavra sobre o juízo e a condenação futuros. Isso
faria dela um livro mais amoroso? Ocultar uma realidade
desagradável seria prova de carinhoso cuidado? Nada disso, é
justamente o oposto. O povo se queixa das advertências de
Deus quando deveria cair de joelhos e dar-Lhe graças por
elas. E com amor e misericórdia que Ele nos adverte sobre o
inferno, para podemos ficar livres dele.
Jesus Cristo tem sido descrito como o teólogo do inferno,
porque Ele fala mais sobre isso do que sobre qualquer outra
coisa. Contudo, pode ser que passemos por alto o que a Sua
ênfase ao inferno realmente implica. Certamente significa
que o inferno só pode ser real, visto que a nossa informação
sobre ele vem dos lábios dAquele que é “a Verdade”. Mas há
uma coisa ainda mais maravilhosa.
Pela graça de Deus, aquele que mais nos fala do inferno é
o único que pode salvar-nos dele. Que mais poderíamos
pedir? A Pessoa que Deus envia para advertir-nos é justamente
a Pessoa que nos pode livrar. Essa é a beleza e a maravilha da
advertência de Deus. Ele envia a advertência por meio do
Libertador. Esta não é uma mensagem dura e sádica. É infi­
nitamente bondosa e embebida em esperança.
Talvez você tenha ouvido falar sobre o inferno em muitas
ocasiões. Vez por outra você tem sido advertido do dia do
juízo e da inevitável condenação que Deus imporá aos peca­
dores. Mas pode ser que você ainda não se tenha convertido a
Cristo, sendo que somente Ele o poderá salvar deste terrifi-
cante prospecto. Você não se arrependeu dos seus pecados.
Você não clamou ao Senhor Jesus para que o salve. As adver­
tências feitas a você têm caído em ouvidos moucos.
Que é que você vai dizer quando estiver na presença de
Deus? Ele fará você lembrar-se de que foi advertido mais de

50
Fundamentos Bíblicos
uma vez. Mas você não quis ouvir. Você pisou “o Filho de
Deus” e fez “agravo ao Espírito da graça” (Hebreus 10:29). Se
você se recusar a crer em Cristo, se não O receber como o seu
Salvador, será condenado e merecerá a condenação.
Trate de “fugir da ira futura” (Mateus 3:7).

51
3
Destruição eterna
Poderíamos imaginar como é o inferno? Deveríamos
tentar imaginá-lo? Não haveria algo de crasso em tentar retra­
tar os sofrimentos dos condenados?
Pois, quanto ao que concerne a muitas pessoas, isso não e
um exercício acadêmico. As almas dos seus entes queridos
que morreram sem nenhum a evidência da fé salvadora,
provavelmente estão no inferno neste momento. Pensar em
sua presente e futura existência só pode ser intensamente
penoso para aqueles crentes que cuidavam deles. Não seria
melhor estender um bondoso véu sobre o destino dos perdi­
dos, deixar oculta a verdade numa reticência decente? Talvez
algumas realidades sejam pavorosas demais para que as
contemplemos.
Vamos ficando cada vez mais relutantes em pensar e em
falar sobre o inferno quando observam os a pavorosa
insensibilidade com que tantas vezes ele é descrito. Um escri­
tor, por exemplo, retrata os ímpios “pendurados pela língua
enquanto o fogo em chamas os atormenta por baixo”. Outro
fala sobre alguém que está no inferno: “As chamas de fogo
saem por seus ouvidos e olhos e narinas e por todos os seus
poros”. Os condenados são descritos como devorando uns
aos outros, cortando uns aos outros com os dentes. Numa
passagem particularmente horrível de uma obra do século
dezenove o tom é quase sádico: “A criança está nesse forno
rubro de tão quente. Ouçam como ela grita para sair. Vejam
como ela revoluteia e se contorce nas chamas. Ela bate a

52
Destruição eterna
cabeça no teto do forno e sapateia com seus pequenos pés no
piso”.1 Declarações bizarras como essas vão muito além das
sóbrias verdades das Escrituras. Devem-se mais a imagina­
ções superestimuladas do que ao ensino do Espírito Santo.
Essas caricaturas são cruas, imprecisas e antibíblicas. Elas nos
causam embaraço e nós nos sentimos vis ao pensarmos em
ser associados com elas.
Todavia, devemos encarar o horror dos sofrimentos do
inferno, pois a Bíblia no-los revela, vivida e extensamente. O
Senhor Jesus Cristo descreve o inferno em detalhe, e certamente
nós não somos mais perceptivos nem mais sensíveis do que
Ele face aos sentimentos do povo de Deus. Alegar que somos
refinados demais e demais humanos para considerar essas
coisas seria criticar o nosso Salvador. Ele falou de maneira
impressionante sobre como será o inferno, e devemos pensar
em Suas palavras tão seriamente quanto pudermos.
O que é importante é manter firmemente as rédeas da
nossa imaginação, evitando especulação e recusando-nos a ir
além do que a Palavra de Deus realmente diz. Se nos restrin­
girmos às frases e aos quadros descritivos que se acham nas
Escrituras, não erraremos muito.
Mas isso pode levantar uma questão em muitas mentes.
Não seria grande parte da linguagem das Escrituras figurada
e simbólica? Seus escritores humanos gostam de símiles e
metáforas. Eles expressam verdades em colorida hipérbole,
com o amor oriental pela ênfase e pelo exagero. Não seria
necessário, então, que tenhamos o cuidado de não interpretar
muito literalmente as descrições do inferno? As passagens
poéticas, por exemplo, podem tornar-se absurdas, se forem
tratadas dessa maneira. Este ponto é válido. Há algumas
declarações acerca do inferno que não podemos interpretar
com uma rude falta de imaginação. E-nos dito, por exemplo,
1Citações da obra de Blanchard, Whatever Happened to Hell?, p. 124.

53
CÉU E INFERNO
que o diabo é lançado nas chamas. No entanto, o diabo é
espírito; não tem corpo. Daí, sejam o que forem essas chamas,
não podemos restringi-las a chamas literais.
Também reconhecemos que a realidade do inferno está
tão longe da nossa experiência que a linguagem não pode
descrevê-lo adequadamente. Com certeza, isso é verdade
acerca de muitas coisas da vida, freqüentemente as que são
mais significativas para nós. Através de toda a história, os
poetas e os dramaturgos têm rebuscado os seus vocabulá­
rios tentando descrever o amor. Seus esforços têm sido
magníficos, resultando em obras geniais. Mas será que eles
nos dizem adequadamente o que é o amor? Acaso não existe
ainda m uita coisa para se dizer? Ou, num nível menos
romântico, como você se poria a explicar o gosto do seu
alimento favorito a alguém que nunca o provou? As palavras
não são suficientes. Elas só vão até certo ponto, desenhando
figuras, porém ficam aquém da realidade. João Calvino
entendia que o inferno, literalmente, é indescritível: “Ora,
uma vez que nenhuma descrição pode lidar adequadamente
com a seriedade da vingança de Deus contra os ímpios, os seus
tormentos e torturas nos são expressos figuradamente medi­
ante coisas físicas”.2
Podemos concordar, pois, que grande parte da linguagem
das Escrituras é simbólica. Mas isso leva muitos à inferência
errônea de que por trás destes símbolos não há nenhuma
realidade objetiva. Estas expressões terríveis que a Bíblia
emprega sobre o inferno são, dizem eles, apenas figuras,
quadros, que não devem ser entendidos literalmente. Não
devemos ficar alarmados por causa delas, pois o inferno, dizem
eles, não é desse jeito.
Todavia isso é um entendimento completamente errôneo
do que é um símbolo. Por sua própria natureza, um símbolo
2Institutas, III.xxv. 12.

54
Destruição eterna
ou sinal é sempre menos do que a realidade que ele repre­
senta. A realidade que está por trás do símbolo é sempre mais.
Se estamos dirigindo e vemos um sinal em que três crianças
estão retratadas atravessando a estrada, sabemos que há uma
escola por perto. Mas nem por um momento imaginamos
que o sinal é uma descrição completa da escola. O pão que
comemos à mesa do Senhor é um sinal e selo de Jesus Cristo.
É um símbolo maravilhoso, que fala do meio de vida, de fé
humilde, de aceitação pessoal. Entretanto o nosso Senhor é
infinitamente mais que este símbolo do Seu corpo.
P ortanto, não há nenhum consolo em dizer que a
linguagem que descreve o inferno é simbólica. Isso não torna
o inferno menos medonho. Antes nos lembra que a realidade
é pior do que o mais terrificante dos símbolos.
Queremos tentar, por breve tempo, imaginar como será
estar no inferno. Se você não é cristão, isto lhe interessa urgente
e diretamente, pois, se não confiar no Senhor Jesus, um dia
você se verá no inferno. Então você não terá que imaginar
como ele é, porque o conhecerá por experiência. Oro rogando
que não seja esse o caso. Queira Deus o Espírito Santo agir em
seu coração quando você ler estar palavras, de modo que seja
esta a hora da sua salvação, quando Cristo Jesus o liberte.
Podemos fazer um sumário do ensino bíblico sob quatro
títulos, considerando o inferno como: pobreza absoluta, dor
angustiante, presença irada e prospecto pavoroso.
POBREZA ABSOLUTA
Primeiramente, o inferno é um lugar de pobreza absoluta
porque envolve separação de Deus. Os perdidos serão puni­
dos com “penalidade de eterna destruição, banidos da face do
Senhor” (2 Tessalonicenses 1:9, ARA). “Apartai-vos de mim,
malditos”, será o veredicto de Cristo sobre todos aqueles que
não são Seus (Mateus 25:41). Ele os vai banir, vai mandá-los
embora. Talvez seja por causa desta separação que o inferno é

55
CÉU E INFERNO
freqüentemente mencionado como um lugar de trevas. “Deus
é luz, e não há nele trevas nenhumas” (1 João 1:5), mas os
ímpios serão “lançados nas trevas exteriores” (Mateus 8:12). Ir
para o inferno significa ser separado de Deus.
Você pode não achar essa perspectiva inquietante. Você
não gosta de pensar em Deus. Ele o perturba. A existência
dEle não é bem vinda, e seria um alívio ficar longe dEle para
sempre. Você se sente muito feliz agora em viver sua vida sem
referência a Deus, e ser separado dEle eternamente dele seria
na verdade uma boa notícia. Essa é uma idéia comum, mas se
baseia num entendimento profundamente errado.
Sim, pois ninguém vive sem Deus. Ninguém jamais
viveu, e ninguém jamais viverá, sem Ele. E Ele que lhe dá

cada sopro da sua respiração. Sua bondade circunda e sustenta


cada momento da sua existência. Ele faz com que o Seu sol se
levante sobre maus e bons e com que a chuva desça sobre
justos e injustos (Mateus 5:45). Ele lhe dá a beleza de uma
tarde de verão, o frescor de uma brisa reconfortante, o esplen­
dor de um cenário de montanha. Ele o deleita com o sabor de
uma fatia de pão fresco ou do suco de pêssego maduro.
Talvez você tenha experimentado o encanto arrebatador
do amor. Seu coração derrete-se de afeto por seu marido ou
por sua mulher, por seus pais ou por seus filhos. Sem dúvida
muitas vezes você sentiu-se aquecido pelo ardor de uma
amizade verdadeira. Essas coisas são dádivas de Deus. Pode
ser que você seja um apreciador da arte, da literatura ou da
música. Pode ser que goste da jovialidade do esporte e dos
exercícios físicos. Provavelmente você tem ambições na vida,
talvez seja suficientemente afortunado para ter um trabalho
desafiador e gratificante, e projetos ou atividades de passa­
tempo que você acha estimulantes. Você é todo sorrisos e se
sente feliz. Você se deita para dormir e tem um sono reparador.
Todas estas coisas são bênçãos de Deus. Você Lhe deve tudo o
que faz com que a vida seja suportável e valha a pena.
56
Destruição eterna
Mas no inferno tudo isso lhe será tirado. Todos os que você
ama, tudo o que você valoriza será retirado da sua experiência.
Nenhum sol brilhará. Nenhuma flor desabrochará. Não haverá
risos nem vibração nem realização de nenhuma espécie. Estas
coisas vêm de Deus, e ser separado dEle é ser separado de
todas as Suas dádivas. Agora você as toma como coisas líqui­
das e certas; você nunca dá graças ao Doador e não tem idéia
de quanto Lhe deve. Contudo, quando lhe são tiradas, que
pobreza!
Mais que isso, no inferno a sua verdadeira personalidade,
o “você” real, vai se deteriorar para sempre. Você será despido
de toda a dignidade que agora tem como portador da imagem
de Deus. Toda a sua humanidade se decomporá, todos os seus
valores se perderão. A palavra chave do Novo Testamento aqui
é “destruição” ou “perdição”. Não significa aniquilação, mas a
ruína de tudo quanto vale a pena. O que se perde ou perece
vem a ser inútil para o propósito antes visado, irreconhecível
quanto ao que era. Falamos do “perecer” tipo goma elástica.
Ainda pode ser dito tipo goma elástica, porém a sua elasticidade
e a sua firmeza se foram. Já não possui o que supria a sua
identidade, já não pode cumprir a sua verdadeira função. Tudo
o que resta é uma imitação, uma falsificação.
Perecer significa que você vai se degradando e se tornando
cada vez mais desprezível, mais solitário. Você estará cercado
de demônios e de seres humanos ímpios e condenados. Eles o
odiarão, e você os odiará. Tudo o que é bom em você lhe será
tirado, e tudo o que é mau em você será liberado. Todas as suas
más paixões arderão e ficarão mais fortes, consumindo você,
até você se tornar completamente torpe.
Assim será a sua existência. Que miséria! Nada de bom,
nada que tenha alguma dignidade; será uma sequidão
monótona e horrível, sem que você receba nenhum estímulo
de sequer um raio de luz, enquanto você se enche de chagas e
se inflama nas condições mais repugnantes. É isso que vai

57
CÉU E INFERNO
acontecer com você. Pense no marginalizado mais desespe­
rado na sarjeta. A existência dele é um paraíso, comparado
com a pobreza do inferno.
DOR ANGUSTIANTE
Mas existe coisa pior. Dor angustiante. Muito freqüen­
temente a Bíblia descreve o inferno como um lugar em que o
fogo lavra. Os ímpios terão sua parte “no lago que arde com
fogo” (Apocalipse 21:8). O Senhor nos exorta a amputar da
nossa vida toda ocasião de pecado, porque “melhor te é entrar
na vida coxo, ou aleijado, do que... seres lançado no fogo eterno”
(Mateus 18:8).
Por que fogo? Uma razão é que o fogo fala de dor. Hoje se
afirma que isso se refere à aniquilação. O inferno é visto por
alguns como um incinerador que reduz a nada o que quer
que seja posto nele. Mas isso não se enquadra nas evidências
bíblicas. O homem rico da parábola pediu uma gota d’água
para a sua língua porque, disse ele, “estou atormentado nesta
chama” (Lucas 16:24). O fogo não o aniquilou, causou-lhe dor.
A Bíblia nos fala que o idólatra será “atormentado com fogo e
enxofre” (Apocalipse 14:10), e o termo empregado é o verbo
regular grego que significa “torturar”. O fogo tortura; causa a
mais forte e intensa agonia.
Pense na dor causada mesmo por uma pequena quei­
madura. Tocar num fogão quente produz uma bolha que fica
latejando horas e horas. Algumas gotas de água fervendo
fazem com que nos encolhamos aos gritos. Uma simples
fagulha dói e irrita. Como há de ser, então, a dor de ser lançado
nas chamas, corpo e alma, para sempre? Não podemos imagi­
nar o que será isso para os corpos ressurretos dos condenados.
Não nos é revelado quanto do sofrimento será físico. Todavia
podemos estar certos de que, no mínimo, o fogo do inferno
significa uma agonia excruciante. Por isso foram escolhidas as
palavras empregadas. Será uma horrível réplica da sarça que
58
Destruição eterna
se queimava e não se consumia (Êxodo 3:2). O fogo queimará
os ímpios, mas eles não serão consumidos.
Cristo faz uso de uma expressão particularmente horrí­
vel para descrever o inferno quando se refere ao mesmo como
o lugar onde “o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga”
(Marcos 9:46). Ele está citando o último versículo do livro de
Isaías, onde o profeta estivera falando dos novos céus e da nova
terra. Deus terá reunido uma grande multidão de todas as
nações para adorá-10 em Seu templo. E os adoradores “sairão
e verão os corpos mortos dos homens que prevaricaram
contra mim; porque o seu bicho nunca morrerá, nem o seu
fogo se apagará” (Isaías 66:24). A referência é a cadáveres
deixados insepultos após uma batalha, o que era a maior
desgraça nos tempos antigos. Recusar um enterro honroso a
um inimigo era infligir a ele a suprema humilhação. Os
vencedores que quisessem degradar definitivamente os seus
inim igos m ortos, ou queim ariam os corpos deles ou os
deixariam decompor-se. Mas ao menos o fogo se extinguia
depois de haver consumido todo o seu horrendo combustí­
vel. E quando os vermes consumiam os corpos mortos até aos
ossos, eles próprios morriam. Aqui, porém, o fogo nunca se
apaga e os vermes nunca ficam satisfeitos. Os judeus ficavam
tão apavorados com essa profecia que usualmente mudavam
de lugar o que agora são os versículos 23 e 24 em seus cultos
nas sinagogas, para que a leitura pública das Escrituras não
terminasse com uma nota tão macabra.
Contudo, essa é a tremenda descrição que o nosso Senhor
faz dos tormentos do inferno. O bicho que não morre é algo
im undo que rói os habitantes do inferno, comendo-os
incessantemente e não lhes dando repouso. Isso provavel­
mente se refere à consciência. Conhecemos algo da dor de
consciência nesta vida. Pode ser terrível. Uma percepção de
culpa moral pode levar à loucura ou ao suicídio. Pergunto:
quantos daqueles que buscam terapia para estresse ou

59
CÉU E INFERNO
depressão realm ente estão padecendo de consciência
atribulada? Eles pecaram, mas nada conhecem da paz com
Deus mediante Jesus Cristo. Não percebem que o que os
perturba é uma consciência violada. A consciência abafada
ou violentada é responsável por grande parte da intranqüili­
dade interior que domina a sociedade moderna.
Contudo, nesta vida a nossa consciência é relativamente
insensível. A dos ím pios, certam ente, m uitas vezes é
cauterizada e em pedernida. Não registra como devia a
terribilidade do pecado. Mas é muito possível que no inferno
a consciência dos condenados seja resensibilizada. John Flavel
escreveu: “A consciência, que deveria ter sido o freio do peca­
dor na terra, torna-se o látego para açoitar sua alma no inferno.
Também não há nenhuma faculdade ou poder pertencente à
alma do homem tão próprio e tão capaz de fazer isso como a
sua consciência. Esta, que era a sede e o centro de toda culpa,
agora torna-se a sede e o centro de todos os tormentos”.3
Se você for para o inferno, como a sua consciência vai
recriminá-lo! Talvez você se lembre do seu pai dirigindo sua
família na adoração, na leitura da Bíblia e na oração por você
e com você. Ou, que dizer de sua mãe, que lhe falou sobre
Jesus? Ela o amava e daria tudo para ver você tornar-se cris­
tão. Você se lembrará de cada culto de que participou, de
cada sermão que ouviu. Você talvez recorde ocasiões em que
Cristo chegou perto de você, em que o seu coração se como­
veu e em que você soube que devia render-se ao Salvador.
Excelentes cristãos virão à sua mente, e o cativante exemplo
que eles deram estarão diante de você. Ou talvez você não
teve o benefício de antecedentes cristãos, e, contudo, houve
ocasiões em que você sentiu medo ou necessidade, e prome­
teu servir a Deus, se Ele o ajudasse. Ele o fez, mas as suas

3A Treatise of the Soul of Man (Um Tratado Sobre a Alma do Homem),


Obras,Vol. 3, reeditado em Londres: Banner of Truth, 1968, pp. 137,138.

60
Destruição eterna
promessas não foram cumpridas. Como lhe parecerão tais
lembranças no inferno? Porventura não serão amargas? “Por
que não dei ouvidos, por que não aproveitei todas aquelas
oportunidades?”, você gritará. “A culpa é toda minha por eu
estar aqui.” Sua consciência o atormentará. Será um bicho
que não morre, um verme voraz, que não deixará você em
paz por toda a eternidade.
E “haverá pranto e ranger de dentes” (Mateus 8:12). Esta
é a expressão mais freqüente de Cristo sobre a experiência do
inferno (ver, por exemplo, Mateus 13:42; 22:13; 24:51; 25:30).
“Pranto”, “choro”. Quantas vezes em sua vida você chorou -
chorou realmente, com o coração quebrantado sentindo-se
desolado, angustiosamente infeliz, a aflição crescendo por
dentro como um dolorido peso ao ponto de você pensar que
ia murchar ou explodir? Pode ser que você tenha derramado
lágrimas quando foi mal compreendido ou traído ou, por
vezes, quando você se sentiu insuportavelmente só. Dor in­
tensa faz a gente chorar. Todos nós choramos amargamente
pela morte de alguém que amávamos. E esse o tipo de tristeza
A

descrito aqui, pois a palavra empregada por Jesus refere-se a


forte gemido, a uma aflição inconsolável.
Pense nisso. Diz o Senhor Jesus que no inferno você
derramará lágrimas e que o seu corpo será sacudido por
incontroláveis soluços. Tristeza a mais amarga encherá o seu
coração, não mera tristeza de aflição, mas de culpa e de des­
gosto consigo mesmo. E ainda que se juntassem todas as
lágrimas derramadas na terra desde o Eden, mal se compa­
rariam com as lágrimas de um só indivíduo no inferno. Você
vai chorar mais do que o mundo jamais viu. Você chorará, e
chorará para sempre.
E não vai só chorar; também “haverá ranger de dentes”.
E algo que lembra fúria ou insanidade. “O ímpio maquina
contra o justo, e contra ele range os dentes” (Salmo 37:12). O
profeta descreve como os inimigos de Jerusalém “abrem as
61
CÉU E INFERNO
suas bocas contra ti, assobiam , e rangem os dentes”
(Lamentações 2:16). E o quadro de um cão raivoso, boca
arreganhada mostrando as presas em louca fúria. Assim os
condenados estarão remoendo os dentes furiosamente, com
inapelável ira contra os seus companheiros, contra si pró­
prios, contra os seus pecados, e contra o próprio Deus. O pai
de um rapaz endemoninhado descreve como, sob o controle
de um mau espírito, seu filho “escuma, e range os dentes”
(Marcos 9:18). E uma tênue prefiguração da endoidecida
A

fúria dos perdidos.


Quem pode im aginar a agonia do inferno? Com os
anestésicos e analgésicos de todas as descrições que temos,
pouco sabemos da dor no mundo moderno. Mas a tortura do
fogo, o tormento interior de um verme devorador, o soluçar
amargo e furioso dos condenados - serão essas as condições
de todos os ocupantes do inferno. Será isso o que você vai
escolher? Você quer experimentar isso pessoalmente?
Dor angustiante - poderia haver algo pior? Na verdade,
sim.
PRESENÇA IRADA
Porque, em terceiro lugar, há uma presença irada. Uma
idéia comumente defendida é que o inferno é o único lugar
do universo do qual Deus está ausente. Essa idéia encontra
expressão típica na conhecida declaração: “Pecado é o homem
dizer a Deus: vai-Te e deixa-me só. O inferno é Deus dizer ao
homem: faça o que quiser”. Soa bonito, mas não poderia ser
mais errôneo. Deus está presente em toda parte, em toda a
Sua criação, e o inferno faz parte do que Ele criou. O pecador
perdido não será punido nalguma área da qual Deus se
prive, porém será “atormentado com fogo e enxofre diante
dos santos anjos e diante do Cordeiro” (Apocalipse 14:10). Deus
está presente no inferno.
No entanto, não seria isso uma contradição? Já vimos que
62
Destruição eterna
o inferno é separação de Deus. “Apartai-vos de mim” será a
sentença divina pronunciada contra os condenados (Mateus
7:23). Eles receberão ordem para afastar-se de Deus, para
irem para as trevas exteriores. Daí, como podemos falar da
presença de Deus na morada daqueles que foram separados
dEle?
A explicação é muito simples. A distância geográfica tem
pouco a ver com proximidade chegada ou separação. Um dos
meus melhores amigos mora na costa ocidental da América, a
cerca de onze mil quilômetros da minha casa. Raramente
podemos passar alguns momentos juntos, talvez em três ou
quatro ocasiões nos dez anos passados. Todavia, fora a minha
família, não há ninguém de quem eu me sinta mais perto.
Mantemo-nos em contato, oramos um pelo outro, buscamos
instintivamente um ao outro em situações de crise. Sempre
que nos encontramos, desfrutamos nosso companheirismo
sem perder um segundo. Apesar da distância entre nós, essa
é a real intimidade que temos.
Por outro lado, posso recordar vividamente um casal
que eu e minha esposa aconselhamos há alguns anos. Durante
toda aquela tarde que passamos conversando com os dois, eles
estavam sentados juntos, separados apenas por algumas
polegadas. Contudo, bem que poderia haver um continente
entre eles. Um casamento que se deteriorava empurrara-os
para longe um do outro, e a sua tensa linguagem corporal
que empregaram proclamava aos gritos a sua alienação mútua.
Tão desgastada se tornara a relação deles que a própria presença
de um dos cônjuges era insuportavelmente irritante para o
outro. Estando juntos, odiavam-se. A proximidade era uma
tortura. Podíamos sentir que alívio seria quando saíssemos e
eles pudessem fugir da companhia um do outro. Próximos?
Não, trágica e dolorosamente distantes.
É isso que significa estar separado de Deus. É assustador
pensar em que todos vão passar a eternidade na presença
63
CÉU E INFERNO
im ediata de Deus. Mas, pensar nisso é pensar na pura
realidade. Deus, que será o céu de uma pessoa, será o inferno
de outra. Os condenados estão separados da graça, do amor e
da misericórdia de Deus. É a pura verdade que entre o céu e o
inferno foi posto um abismo. Contudo, Deus está perto dos
que estão no inferno, porque Ele está presente ali em Sua ira.
O inferno é onde Deus derrama a Sua ira sobre os condenados,
não apenas num julgamento inicial, porém para sempre,
pessoal e ativamente. Aqueles que estão no inferno verão
Deus em sua santa fúria. Eles serão compelidos a contemplar
o seu Juiz, incapazes de cerrar os olhos. A visão deles, intole­
ravelmente penosa, será a sua condenação e o seu castigo.
E coisa tremenda refletir no fato de que os homens e
mulheres não convertidos odeiam Deus em Sua bondade,
pois “a inclinação da carne é inimizade contra Deus” (Romanos
8:7). Muito mais grave, porém, é a percepção de que o próprio
Senhor é inimigo dos ímpios. “A sua alma odeia (o ímpio)”
(Salmo 11:5, NVI), quer dizer, Ele o odeia com todo o Seu ser.
E vai expressar esse ódio com tremenda ferocidade. “Eu
procederei com furor”, diz ele a Judá, povo idólatra. “O meu
olho não poupará, nem terei piedade: ainda que me gritem
aos ouvidos com grande voz, eu não os ouvirei” (Ezequiel 8:18).
Não se pode imaginar nada que seja mais terrível. Na
verdade, “Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo. Por­
que o nosso Deus é um fogo consumidor” (Hebreus 10:31;
12:29). A essência do fogo do inferno é a ira de um Deus santo,
a ardente e justa fúria do Senhor. “A sua cólera se derramou
como um fogo” (Naum 1:6), um desatado e extraordinário
derramamento de ira, irrestrito e indescritível. Os incrédulos
ridicularizam a idéia de fogo do inferno. Parece-lhes
absurdamente melodramática e “além das medidas”. Mas
eles vão mudar de opinião. No inferno eles não vão mais rir
das chamas literais. Eles ansiarão por elas. “Se tão-somente o
castigo fosse óleo fervente ou carvão em brasa!”, clamarão. “Se
64
Destruição eterna
tão-somente fosse suportável quanto isso!”
Temos aqui o supremo horror do inferno; não a pobreza
absoluta, nem mesmo a dor angustiante, mas a presença
irada de Deus. O profeta faz uma pergunta assombrosa e
irrespondível: “Quem dentre nós habitará com o fogo
consumidor? Quem dentre nós habitará com as labaredas
eternas?” (Isaías 33:14). E, todavia, há mais um elemento na
punição do pecado.
PROSPECTO PAVOROSO
Pois há um prospecto pavoroso; isso nunca terá fim. O
fogo é eterno, as penas são eternas, a destruição é eterna (Mateus
18:8; 25:46; 2 Tess. 1:9). “E o fumo do seu tormento sobe para
todo o sempre” (Apocalipse 14:11). “E de dia e de noite serão
atormentados para todo o sempre” (Apocalipse 20:10). O
supremo horror do inferno é sua duração eterna.
Não podemos penetrar isso. E grande demais, é enorme.
Assim como somos incapazes de compreender o que significa
estar com Deus para sempre, assim também não podemos
entender o tormento eterno. Os insônicos sabem muito bem o
que é esse lento avanço de lesma das horas durante uma noite
em claro. Você tenta repousar e fica horas de olhos fechados,
depois olha no relógio e vê que não se passaram quinze
minutos. Você se põe a perguntar se algum eclipse solar
bloqueou o irromper da aurora. Parece que o amanhecer não
vai chegar nunca. E quando à insônia se acrescenta dor, as
horas da escuridão parecem muito mais longas. E a eternidade
do inferno, como será?
N inguém o descreveu mais vigorosam ente do que
Jonathan Edwards em, por exemplo, seu sermão sobre The
Eternity of Hell Torments (A Eternidade dos Tormentos do
Inferno). Quando ele pregou essa mensagem, alguns dos seus
ouvintes foram despertados para o perigo que corriam e
foram trazidos à fé salvadora. Ouçamo-lo agora, quando a
65
CÉU E INFERNO
sua voz passa por cima dos séculos e ele torna a pregar:
Considerem o que é sofrer tormento extremo para todo o
sempre; e sofrê-lo dia e noite, ano após ano, era após era,
milênio após milênio, e assim acrescentando-se era a era, e
milhares a milhares, sofrendo dor, gemendo e lamentando-se,
rugindo e berrando, e rangendo os dentes; com suas almas
cheias de medonho desgosto e assombro, seus corpos domina­
dos por atroz tortura, sem nenhuma possibilidade de obterem
alívio; sem nenhuma possibilidade de mover Deus a apiedar-
-Sepor causa dos seus prantos; sem nenhuma possibilidade de
se esconderem dEle; sem nenhuma possibilidade de distraí­
rem seus pensamentos afastando-os da sua dor. Considerem
quão terrível desespero será estar em tal tormento; saberem com
toda a certeza de que nunca jamais serão libertados desses
sofrimentos; não terem nenhuma esperança: quando vocês
quererão ser reduzidos a nada, mas não terão nenhuma
esperança disso... quando vocês se alegrariam se pudessem ter
algum alívio, depois de terem sofrido esses tormentos por milhões
de eras, mas não terão nenhuma esperança disso. Quando
vocês tiverem ultrapassado a idade do Sol, da Lua e das
estrelas... sem repouso dia e noite, ou sem um minuto de alívio,
continuando ainda sem nenhuma esperança de libertação;
depois de consumirem mais mil dessas eras, continuarão sem
esperança... sempre com os mesmos rugidos, os mesmos berros,
os mesmos lamentos melancólicos que vocês estarão lançando
incessantemente, e o fogo do seu tormento contnuará subindo
para sempre e sempre.
Quanto mais os condenados pensarem na eternidade dos
seus tormentos, mais espantosos estes lhes parecerão; e eles
não conseguirão mantê-los fora da sua mente. Que lástima!
Suas torturas não os distrairão, mas fixarão a atenção de sua
mente. Que terrível lhes parecerá a eternidade, depois de

66
Destruição eterna
terem pensado nela durante eras, e tiverem tão longa expe­
riência dos seus tormentos! No inferno os condenados terão
dois infinitos para perpetuamente assombrá-los e engolfá-los;
um é o Deus infinito, cuja ira eles sofrerão e em quem eles
verão seu inimigo perfeito e irreconciliável. O outro é a infinita
duração do seu tormento.4
As vezes os incrédulos blasonam sobre como, se necessário,
eles farão frente ao inferno. John Stuart Mill disse: “Não
chamarei bom nenhum ser, não sendo este aquilo que eu quero
dizer quando aplico esse epíteto aos meus companheiros,
criaturas como eu; e se tal ser puder me condenar ao inferno
por eu não lhe chamar bom, para o inferno irei”.5 O desafio
feito por W. E. Henley tornou-se a canção tem ática do
humanismo:
Minha cabeça sangra, mas não se inclina...
Não importa quão estreita seja a porta,
E quantas punições constem na lista.
Eu sou o senhor do meu destino:
Eu sou o capitão da minha alma.6
Ora, isso não passa de bazófia estulta. Deixemos que o
pecador pare diante das portas do inferno, junte todas as suas
forças e o seu vigor e ative toda a sua resoluta disposição para
suportar o que o espera. Dentro de um segundo sua coragem
ter-se-á derretido e ele estará clamando por misericórdia.
Se você não confia em Jesus Cristo e continuar a rejeitá-
-10, é isso que o esperará. “Não posso agüentar isso!”, você
4 Works (Obras), vol. 2,1843, reedição feita em Edimburgo: Banner of Truth,
1974, p. 88.
5 Citado na obra de Paul Helm, The Last Things (As Ultimas Coisas),
Edimburgo: Banner of Truth, 1989, p. 122.
6 Do poema de Hemley, Invictus (Invicto).

67
CÉU E INFERNO
gritará. Mas terá que agüentá-lo mesmo, e por toda a
eternidade. Os tormentos do inferno continuarão sempre e
para sempre.
NÃO DÊ OUVIDOS AO DIABO
O objetivo de satanás é conduzir você gentilmente para
o inferno, e ele é o mestre das trevosas artes da persuasão. Se
você tem algum conhecimento da Bíblia, ele pode adotar
uma abordagem teológica, concitando você a esperar por
uma experiência tipo “caminho de Damasco”, por alguma
intervenção cataclísmica e irresistível de Deus. Aqui está
satanás, o estudioso da Bíblia, persuadindo você a raciocinar
desta maneira: “Deus é soberano, não é? Ele tem os Seus
eleitos, dos quais nenhum se perderá. E ninguém poderá crer,
se Deus não lhe der capacidade para isso. Muito bem, pois, se
eu sou um dos eleitos, que Deus desça do céu, detenha meus
passos, e me desperte e me leve à fé. Quando Ele fizer isso, vou
crer. Enquanto não chegar esse momento especial, continua­
rei como estou”.
Você se lem bra do rico da parábola que queria um
momento especial como esse para os seus irmãos incrédulos?
Ele na verdade pediu que lhes fosse enviado um mensageiro
do além. “Rogo-te, pois, ó pai, que o mandes à casa de meu
pai. Pois tenho cinco irmãos; para que lhes dê testemunho, a
fim de que não venham também para este lugar de tormento”
(Lucas 16:27,28). Que reunião evangelística sensacional teria
sido essa! Im aginem os quão dram ático seria o convite
impresso: “Na próxima semana, na Igreja Reformada Betânia
- Orador Especial, Vindo Diretamente da Eternidade. Somente
uma apresentação. Não deixe de ouvir esse visitante que vem
do mundo futuro!” Mas a resposta de Abraão foi água fria na
caldeira: “Têm Moisés e os profetas; ouçam-nos. Se não ouvem
a Moisés e aos profetas, tampouco acreditarão, ainda que
algum dos mortos ressuscite” (Lucas 16:29,31). Para a sua

68
Destruição eterna
conversão você não pode depender de intervenções extra­
ordinárias de Deus. Nem precisa disso, pois Ele proveu na
Bíblia toda a informação de que você necessita para a salva­
ção. Se você recusar-se a crer no que Ele lhe diz, nenhuma
exibição de som e luz mudará o seu destino.
Se você ainda é jovem, forte e saudável, o diabo pode
indicar a você o absurdo de se incomodar agora com a morte
e com o juízo. Ora, você tem muitos anos pela frente! Haverá
bastante tempo quando você ficar velho. Mas, como você sabe
que viverá até à velhice? A um homem que estava convencido
de que contava ainda com muitos anos e que dissera a si
mesmo: “descansa, come bebe e folga”, Jesus disse: “Mas Deus
lhe disse: louco, esta noite te pedirão a tua alma” (Lucas
12:19,20). Na memorável ilustração de Jonathan Edwards, os
ímpios são como pessoas que estão andando sobre um poço
cuja cobertura apodrecida em muitos pontos está fraca de­
mais para lhes suportar o peso. Mas elas não sabem onde estão
os lugares fracos, e cada passo está cheio de perigo. A qual­
quer momento você pode escorregar através da estrutura do
tempo, e cair no mundo por vir. Deus o está mantendo vivo
até agora e, se você não é um convertido, Ele está tão irado
com você quanto o está com os que já estão no inferno. Esta
noite você vai para a cama nas mãos de um Deus irado. Que
motivo você tem para acreditar que vai acordar? E, se não
acordar, onde estará você?
Talvez você tenha medo de que riam de você. Você sabe
que deve fazer as pazes com Deus, mas, e os seus amigos? Eles
são espertos, sofisticados, irreverentes. Você tem ouvido as
zombarias que eles fazem da religião, e provavelmente se
juntou a eles nisso. Que diriam eles, se você se tornasse cristão?
Você já pode ouvir as críticas deles, ver as suas expressões de
desprezo e dó. Mas você vai deixar que outras pessoas o envi­
em para o inferno? Vai permitir que o riso escarninho delas o
mantenha fora da salvação? Que horrível paródia de amizade!

69
CÉU E INFERNO
Quantos “amigos” amaldiçoarão uns aos outros no mundo
vindouro? “Cristo Se aproximou de mim”, eles rosnarão, “mas
eu pensei dem ais na boa opinião de vocês. Vocês me
arruinaram. É em parte por causa de vocês que eu estou aqui”.
E se odiarão uns aos outros por toda a eternidade. A condenação
eterna é um preço demasiado alto para pagar pela amizade.
Ou talvez você esteja gostando muito dos prazeres deste
mundo pecaminoso, e reluta em abandoná-los. Há uma ter­
rível ironia nas palavras de Abraão ao rico que estava no
inferno: “Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em
tua vida” (Lucas 16:25). “Os teus bens.” Como essas palavras
devem ter raspado angustiosam ente a alma daquele ser
condenado e atormentado! “Meus bens! Sim eu achava que
eram “bens”, que eram “coisas boas” (VA). Eu me entreguei a
elas, ao dinheiro, ao luxo e ao egocentrismo. Eu as avaliei
colocando-as acima de tudo mais e vendi por elas a minha
alma im ortal. Contudo, que penso dessas “coisas boas”
agora?”
Haverá freqüentadores de igreja no inferno. No dia do
Juízo alguns pregadores, evangelistas e líderes estarão diante
de Cristo com anelante sorriso no rosto, esperando receber o
Seu “Bem está”. Mas, para seu assombro e horror, Ele dirá:
“Apartai-vos de mim”. Eles protestarão: “Senhor, Senhor, não
profetizamos em teu nome? E em teu nome não expulsamos
demônios? E em teu nome não fizemos muitas maravilhas?
(Mateus 7:22,23). Certamente não vamos para o inferno”.
Entretanto irão, pois nunca nasceram de novo, nunca foram
feitas novas pessoas. Sua fé era superficial e irreal.
Pode ser que, mesmo agora, você não creia. Você não vai
deixar um pregador intimidá-lo com um espantalho primitivo
como esse. Você não aceita - nem aceitará - que existe inferno,
ou, se aceita, não admite que vai para lá. Certamente esse é o
ponto de vista da maioria. Numa recente pesquisa da Gallup,
nos Estados Unidos, não mais que quatro por cento das

70
Destruição eterna
pessoas consultadas achavam que poderiam acabar indo
parar no inferno. Outrora muitas almas perdidas pensavam o
mesmo. Não acreditavam no inferno. Acreditam agora por­
que é onde elas estão. Mas para elas é tarde demais. Para você
não é tarde demais - ainda. Deus lhe está dando uma
oportunidade de livrar-se clamando a Seu Filho para que
seja o seu Salvador.
Que mais posso dizer? Pela Palavra de Deus você viu um
pouco de como é o inferno. Não posso acreditar que você
queira ir para lá. Todavia, se não clamar a Cristo para que o
salve, esse é o destino que você estará escolhendo. Estaria você
realmente determinado a escolher tal desgraça?
E o aspecto mais estulto de todos é que a sua condenação
eterna é desnecessária. Pois o Senhor Jesus Cristo está pleite­
ando com você neste exato momento. Enquanto você lê
estas palavras, ele o está chamando a Si, ordenando-lhe que
abandone o pecado, que só leva à destruição. Ele é infinitamente
misericordioso e bondoso. Se Lhe pedir que seja o seu Salvador,
Ele o receberá e lhe perdoará. Ele o lavará e o purificará, e o
tornará salvo e seguro para sempre, e você será santo e feliz,
aguardando uma eternidade de gozo e glória no céu. “Hoje,
se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações”
(Hebreus4:7).

71
4
O Inferno e o Crente
Assim como o irromper de um incêndio num edifício
importa mais para quem está preso no edifício do que para
os que estão fora, assim também é para os incrédulos que a
realidade do inferno deve ser de interesse primário. Sim, pois,
se você ainda não se arrependeu dos seus pecados e não se
voltou com fé para o Senhor Jesus, o inferno continua sendo
o seu destino. A menos que clame a Cristo para que o salve,
você experimentará pessoalmente os tormentos do inferno.
Como livrar-se da condenação deve ser a sua prioridade nú­
mero um.
Isso não significa que os crentes podem esquecer o
inferno. E certo que fomos libertados da condenação pela
fé no Salvador. Os que nEle confiam não perecerão, mas têm
a vida eterna (João 3:16). No entanto, a doutrina do inferno,
revelada na Palavra de Deus, objetiva ser permanentemente
proveitosa para nós, destinada a promover o nosso cresci­
mento como cristãos. A séria realidade da existência do inferno
não pode deixar de nos influenciar profundamente. Não se
dá simplesmente o caso de que, uma vez que fomos salvos,
podemos pôr de lado todo e qualquer pensamento sobre as
penas eternas como deixando de ser relevante. Ao invés disso,
devemos pedir ao Espírito Santo que mantenha o inferno
impresso profundamente em nossa consciência redimida. É
vitalmente importante que permaneçamos cientes dele.
Posso lembrar como fui relutante quando pela primeira
vez fui convidado para falar numa conferência nesta linha do
ensino da Bíblia, e lembro em que miseráveis condições os
72
O Inferno e o Crente
meus primeiros estudos fizeram com que eu me sentisse.
Quem pode pensar sem tristeza na condenação de milhões?
Contudo, como eu perseverei, os meus sentimentos começa­
ram a mudar. Ainda continuou o peso em meu coração,
naturalmente, porém já de mistura, em crescente medida, com
temor e gratidão. Agora me alegro porque aprendi um pouco
mais sobre o inferno. Espero que isso tenha operado uma
mudança em mim para o melhor, e oro nesse sentido.
Há muitas maneiras pelas quais esta doutrina deve afetar-
-nos, mas vamos focalizar resumidamente seis delas.
MORTIFICANDO O PECADO
Primeiro, ele deve produzir em nós um compromisso
de mortificar o pecado. O nosso Senhor faz esta desafiadora
aplicação, quando diz aos Seus discípulos: “Se o teu olho
direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te con­
vém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu
corpo lançado no inferno. E, se a tua mão direita te faz
tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te convém que se perca
um dos teus membros, e não vá todo o teu corpo para o infer­
no” (Mateus 5:29,30, ARA). Jesus cita a doutrina do inferno e
a faz pesar na consciência dos Seus seguidores. Praticamente
Ele lhes diz que tratar radicalmente do pecado pessoal é a única
alternativa para a condenação eterna. “Ampute o seu pecado”,
diz Ele, “arranque-o, atire-o para longe, jogue-o fora. Se não
o fizer, você se achará no inferno.”
Pode parecer estranho Cristo fazer uma declaração como
essa. Não seria pela fé nEle que somos salvos? O ladrão que
estava prestes a morrer na cruz dificilmente poderia arrancar
seu olho direito ou cortar sua mão direita, e, contudo, Jesus
lhe garantiu: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lucas 23:43).
Quando chegamos a confiar no Salvador, nós não somos
libertados da condenação uma vez por todas? Acaso os crentes
não são “guardados na virtude de Deus para a salvação”, para

73
CÉU E INFERNO
“uma herança... guardada nos céus”? (1 Pedro 1:4,5). Nenhum
dos Seus se perderá, não é? (João 17:12). Onde entra essa
amputação? Como será “lançar no inferno” uma possibili­
dade quanto àqueles que, uma vez convertidos, estão seguros
para sempre?
Seguros uma vez convertidos, sim. Mas, será que eles são
convertidos? Sua fé é genuína? Só o tempo o dirá. Crer em
Jesus nos livra do inferno, porém nos primeiros estágios é
difícil distinguir a fé verdadeira da falsa. A fé salvadora é o
princípio de uma progressiva relação de confiança. Os “crentes
são homens e mulheres caracterizados pelo exercício diário
da fé. Os que crêem continuam crendo. Eles dependem de
Cristo hoje e dependerão dEle amanhã, exatamente como
dependeram dEle quando foram originalmente salvos. Eles
continuam a reconhecer o seu desvalimento, a confessar o seu
pecado e a afastar-se dele, a lançar-se renovadamente a Cristo
buscando misericórdia. Por outro lado, a fé superficial é uma
incipiente chama de entusiasmo que logo bruxuleia e morre.
A perseverança é a prova mais certa da realidade da vida
espiritual.
E é a isso que Jesus se refere quando contrasta o inferno
com a radical amputação do pecado, pois Ele está indicando
que deixar de tratar dos nossos pecados dessa maneira é mos­
trar que nunca fomos convertidos. Se você quiser assegurar-se
de que Deus o salvou do inferno, ponha mãos à obra e mate os
seus pecados. Tenha em vista uma vida de consciente e
escrupulosa obediência - a vida inteira. Determine em seu
coração abandonar toda prática do mal e lutar contra a tenta­
ção. Leia a Bíblia, busque Deus em oração, ouça a pregação
da Palavra, cultive a comunhão e o companheirismo cristão.
Evite tudo o que o afaste de Deus. Faça disso o seu compro­
metimento resoluto e permanente, e peça ao Senhor que o
ajude. Rogue a Ele: “Desvia os meus olhos de contemplarem
a vaidade, e vivifica-me no teu caminho” (Salmo 119:37).
74
O Inferno e o Crente
Conforme você perseverar, pela graça de Deus, dia a dia, em
seu coração se aprofundará a convicção de que Cristo é de fato
o seu Salvador.
O nosso Senhor lhe está dizendo que nunca trate o inferno
como algo irrelevante. A perseverança dos santos significa
perseverar no arrependimento, perseverar na fé, perseverar
na obediência. Não importa quanto tempo faz que você é
cristão professo, a prova de que você não vai para o inferno é a
maneira pela qual você lida com o pecado pessoal. Nas pala­
vras de Paulo, “se pelo Espírito mortificardes as obras do
corpo, vivereis” (Romanos 8:13). John Owen expande este
processo de mortificar o pecado e escreve: “Faça disso o seu
trabalho diário; dedique-se sempre a isso, enquanto viver; não
cesse um dia de fazer esse trabalho; mate o pecado, ou, se não,
ele mata você5’.1 Matar o pecado é o sinal de nascimento do
cristão.
E uma poderosa motivação, não é? Toda vez que você for
tentado, quando o pecado lhe parecer irresistivelmente atra­
ente e o preço da obediência desagradavelmente alto, reflita
em Mateus 5:29,30. Lembre a si mesmo: “Se eu for adiante e
cometer este pecado, estarei de fato dizendo ao Senhor que eu
quero ir para o inferno”. Quantas vezes o crente verdadeiro
dirá isso a Deus? Se pensar no inferno não o faz parar de
pecar, você precisa fazer a si mesmo algumas perguntas
básicas sobre o seu estado espiritual.
CONTENTAMENTO
Em segundo lugar, a doutrina do inferno deve produzir
em nós um espírito de inquebrantável contentamento, não
importa quais sejam as nossas circunstâncias. Paulo, estando

1“On the Mortification of Sin in Believers”, Works (Sobre a Mortificação


do Pecado nos Crentes”, Obras), reeditado em Londres: Banner of Truth,
1967, Vol.6,p.9.

75
CÉU E INFERNO
na prisão e escrevendo a amigos que estavam preocupados
com o seu bem-estar, pôde testificar isso, dizendo: “Já aprendi
a contentar-me com o que tenho” (Filipenses 4:11). Foi difícil
assimilar essa lição, mas, embora lhe tenha tomado tempo,
finalmente ele pôde dizer, sem afetação ou orgulho: “Aprendi
a contentar-me com o que tenho. Sei estar abatido2, e sei
também ter abundância: em toda maneira, e em todas as coisas
estou instruído, tanto a ter fartura como a ter fome, tanto a ter
abundância como a padecer necessidade” (Filipenses 4:12).
Você pode dizer que já aprendeu a estar contente?
M uitos cristãos ainda não aprenderam . Um pastor
puritano, Jerem iah Burroughs, comenta que “estar bem
adestrado no mistério do contentamento cristão é o dever, a
glória e a excelência do cristão”. Dever, glória e excelência,
talvez, e, contudo, Burroughs, curiosamente, deu ao seu livro
o título de The Rarejewel of Christian Contentment3 (A Jóia Rara
do Contentamento Cristão). As jóias são raras, não constituem
lugar-comum, e o contentamento é uma virtude rara e um sinal
de graça incomum.
Claro está que é fácil estar contentes quando estamos
bem de saúde, felizes e prósperos, sem nenhuma nuvem no
horizonte da vida. Mas quando os dias são maus, quando
estamos desapontados com nós mesmos e com outros, quando
nos defrontam os com o que se costum ava denom inar
“providências com olhar carrancudo” de Deus, o contenta­
mento fica mais esquivo. A sociedade na qual vivemos não
incentiva o contentamento. As economias capitalistas são
sustentadas pela produção de descontentamento artificial. A
propaganda visa fazer-nos insatisfeitos com o nosso carro,
com os nossos utensílios domésticos, com a nossa aparência,

2No sentido de ser “humilhado” (ARA) ou de “passar necessidade” (NVI).


Nota do tradutor.
3 1648; reeditado em Londres: Banner ofTruth, 1964, citação da página 9.

76
O Inferno e o Crente
com tudo. Os governos descrevem os cidadãos da pátria com
hum ilhante precisão como “consum idores”. Que frase
enobrecedora! Os porcos junto à gamela são consumidores, e
é isso que muitas vezes parecemos. É difícil alguém per­
manecer contente numa atmosfera de ávida rivalidade.
O descontentam ento dá prazer ao diabo, porque é
pecado, um dos principais. Nunca foi mais irracional do
que quando ocorreu com Adão e Eva. Deus os tinha cercado
de abundância e de beleza no Jardim do Éden. Tudo o de
que pudessem necessitar lhes foi provido para seu proveito.
Mas eles queriam mais - e caíram na maior desgraça. Diz o
apóstolo Paulo que o epítome do pecado deu-se quando as
criaturas de Deus “não o glorificaram como Deus, nem lhe
deram graças” (Romanos 1:21). A insatisfação dos israelitas
no deserto, quando protestaram contra o maná e quiseram
voltar para o Egito, levou Deus a irar-Se e a perguntar: “Até
quando sofrerei esta má congregação, que murmura contra
mim?” (Números 14:27). O descontentamento não só é uma
ofensa contra Deus, mas também nos priva da felicidade e
da paz mental. Ademais, o descontentamento se evidencia
uma pedra de tropeço para a fé. Quem será levado a Cristo
pelo queixume dos cristãos? O contentamento é uma lição
que, como aconteceu com Paulo, temos necessidade de
aprender.
Há muitas coisas que deveriam fazer-nos contentes. A
soberania de Deus, por exemplo, a maneira pela qual Ele
ordena com sabedoria e misericórdia todas as coisas para o
nosso bem. As bênçãos de Deus deveriam produzir conten­
tamento em nós. Devemos estar contentes por Suas grandes
e preciosas promessas, tanto para esta vida como para a vida
por vir. Mas também devemos contentar-nos simplesmente
porque não vamos para o inferno. João Wesley uma vez
escreveu em seu diário: “Por volta das onze horas me veio à
memória que foi justamente neste dia, há quarenta anos, que
77
CÉU E INFERNO
eu fui salvo das chamas. A voz de louvor e de ação de graças
subiu às alturas, e grande foi o nosso regozijo perante o
Senhor”.4 A lembrança da libertação do inferno fez Wesley
feliz.
Uma das melhores curas da autopiedade é observar alguém
que está em situação muito pior que a nossa. Durante um
período de doença não grave, há algum tempo, quando eu
tive a tendência de me lamentar, casualmente olhei do púlpito,
num domingo de manhã, para uma ouvinte. Era uma cristã
que recendia graça divina e que estava confinada num a
cadeira de rodas devido a uma enfermidade que a aleijara.
Seu semblante era sereno, firme no sofrimento, e a minha
autopiedade derreteu-se no calor da sua coragem.
Mas todos nós estamos nessa situação, porque estamos
rodeados de multidões que estão infinita e eternam ente
piores do que nós, milhões que estão a caminho do inferno.
Pela graça de Cristo, nós não estamos destinados à condena­
ção, e, todavia, ousamos queixar-nos! Quando depois disso
você pensar que a vida o está tratando duramente e que Deus
poderia dispor as suas circunstâncias mais amorosamente,
dê uma olhada no abismo do inferno e lembre-se: “Eu estava
indo para lá, porém agora não estou. Em vez disso, estou a
caminho do céu, porque Deus me salvou. Que importam todas
as decepções, dores e tristezas desta vida? Não são nada, em
comparação com o que eu mereço, não são nada, comparadas
com o que vou herdar”. Foi o que o salmista fez: “De todo o
meu coração te louvarei, Senhor, meu Deus; glorificarei o teu
nome para sempre. Pois grande é o teu amor para comigo; tu
me livraste das profundezas do Sheol” (Salmo 86:12,13, NVI).
A doutrina do inferno deveria fazer os crentes supre­
m am ente contentes, agradecidos a Deus em todas as
circunstâncias da vida.
4Citado no livro de Blanchard, Whatever Happened to Hell?, p. 287.

78
O Inferno e o Crente
SERIEDADE
Em terceiro lugar, a realidade do inferno deve refletir-se
numa seriedade que sature todo o nosso pensamento e toda
a nossa conduta.
Ao que parece, para alguns evangélicos atuais o erro
cardeal é a melancolia, e o seu maior temor é o de parecerem
mórbidos. A ênfase predom inante de m uita publicidade
da Igreja é que o cristianismo é muito divertido. Em muitas
igrejas a atmosfera predom inante é de jovialidade com­
pulsória, ou m elhor, frenética. Quem quer que dirija
reuniões terá uma parte humorística e se mostrará experto
em “esquentar” o auditório (não mais a congregação). Os
testemunhos cristãos são incessantemente ruidosos e pon­
tuados por explosões de risadas. Os que nos recepcionam à
porta ficam sorrindo tão abertamente que concluímos que
eles acabaram de m andar polir os dentes ou que estão
praticando ventriloqüismo. (Será que arreganhar os dentes
é em geral considerado um índice de racionalidade?) Mas
parece que eles acreditam que isso faz parte integrante do
testemunho cristão.
Todavia, os Evangelhos não retratam o Senhor Jesus
Cristo como uma figura alegre e risonha. Ele mesmo disse:
“Bem-aventurados os que choram” (Mateus 5:4). Isaías O
descreveu como “homem de dores, e experimentado nos
trabalhos” (Isaías 53:3). Deveríam os im itar os nossos
contemporâneos ou o nosso Mestre? Deveríamos ser mais sérios
que joviais?
Sim, devemos, considerando que há um inferno aguar­
dando novos ocupantes. Como podemos passar pela vida
rindo, quando milhões ao redor de nós estão a caminho da
condenação eterna? Se se propagasse uma peste e jazessem
corpos mortos por toda parte, que pensaríamos das pessoas
que andassem impassivelmente por entre os cadáveres rindo
porque haviam encontrado a cura para si mesmas? O salmista

79
CÉU E INFERNO
ficava triste pelo pecado circundante, pois ele testificou a
Deus que “Rios de águas correm dos meus olhos, porque (os
homens) não guardam a tua lei” (Salmo 119:136).
Isso não significa que os crentes devem ser insociáveis ou
rabugentos. Nós experimentamos um “gozo inefável e glorioso”
(1 Pedro 1:8). Alegramo-nos constantemente. Brincamos,
rim os, jogamos, gozamos mancheias de boas dádivas de
Deus. Mas há uma diferença entre felicidade e frivolidade. Uma
consciência do inferno deve produzir em nós uma seriedade
subjacente um senso de gravidade, um realismo entre os
perdidos e os que estão morrendo.
Particularmente é esse o caso quando tratamos de tre­
mendas verdades como a morte, o juízo e a condenação eterna.
Há lugar para humorismo, porém não aqui. Aqui, acima de
tudo, o cômico cristão é uma abominação. E, contudo, estas
realidades são tratadas chistosamente, e às vezes por pessoas
que nos causam surpresa com isso. Perguntaram recentemente
a um famoso m inistro se todos os da sua igreja eram
convertidos, e ele respondeu sorrindo: “Bem, certamente eu
não gostaria de estar algemado a alguns dos membros da
minha igreja quando eles morrerem”. Seus ouvintes caíram
na risada. Mas seria isso divertido? Você faria esse comentário
acerca de um amigo chegado ou de um dos seus filhos ainda
não convertidos? Acaso não revela uma alarmante falta de
sensibilidade uma comunidade cristã poder rir do inferno?
Nossas falhas e fraquezas podem ser divertidas. A vida tem
um lado jocoso, e muitas vezes os seres humanos são risíveis,
não menos o escritor destas páginas. Mas o pecado e as suas
conseqüências nunca são divertidos. J. P Struthers, um m inis­
tro escocês m uito amado, nos prim eiros anos do século
dezenove, caminhava certa noite pelas ruas de Greenock,
cidade em que vivia e exercia o seu ministério. A distância
um bêbado cambaleava girando em círculos, gritando e
cantando, fazendo papel de bobo e cercado por um grupo

80
O Inferno e o Crente
local que se ria. Quando Struthers chegou perto, viu no meio
da multidão alguns membros da sua igreja. Calmamente o
ministro andou para o meio deles, olhou em redor e disse:
“Porque muitos há, dos quais muitas vezes vos disse, e agora
também digo chorando - chorando - que são inimigos da
cruz de Cristo” (Filipenses 3:18). Envergonhadas e caladas,
as pessoas se retiraram.
Os que não são convertidos podem cham ar-nos de
melancólicos. Podem considerar as nossas reuniões obso­
letas e maçantes, e sem o brilho dos polidos comediantes
eclesiásticos. Não há como evitar isso. Entretanto, quando
eles estiverem em dificuldade, em crise real, será que irão
recorrer aos palhaços? Procurarão alguém que lhes conte
anedotas e os faça rir? De vez em quando vemos que as
pessoas que se acham em dificuldade são atraídas instin­
tivamente por aqueles que são sérios, agem com sobriedade e
mantêm contato com a vida real. Percebem neles um caráter
rijo, uma capacidade de prestar ajuda em nível profundo. Com
o passar do tempo, o brincalhão faz menor impacto do que o
homem ou a mulher que derrama lágrimas de compaixão.
Aqueles que zombavam de nós podem vir a descobrir que
“Melhor é ouvir a repreensão do sábio, do que ouvir alguém a
canção do tolo” (Eclesiastes 7:5).
Sejamos sérios, sejamos ponderados, enquanto viver­
mos num mundo no qual tantos semelhantes nossos, criaturas
de Deus como nós, estão perecendo.
APRECIAÇÃO DE CRISTO
Em quarto lugar, a doutrina do inferno deve levar-nos a
apreciar mais do que temos feito o amor e os méritos do
Senhor Jesus Cristo. Diz Pedro que, apesar de não O termos
visto, O amamos (1 Pedro 1:8). E verdade, e anelamos amá-10
mais profundamente. Como podemos? Reconhecendo um
princípio que Ele mesmo estabeleceu: “Aquele a quem

81
CÉU E INFERNO
pouco é perdoado pouco ama) (Lucas 7:47), implicando que
a quem muito é perdoado muito ama.
Quanto fomos perdoados? De quanto fomos poupados?
Que preço foi pago para que fôssemos salvos? Sabemos que
Cristo veio à terra por nós, e que Ele viveu, sofreu e morreu
por nossa causa. Tudo isso é maravilhoso, fora de comparação.
Mas só depois de observar o inferno é que realmente apre­
ciamos o amor do nosso Salvador.
Temos procurado, de maneira limitada e inadequada,
imaginar como deve ser o inferno, e vimos que o prospecto é
pavoroso. Mas o Senhor Jesus não precisa usar Sua imagina­
ção, pois Ele o experimentou pessoalmente. Ele sabe o que
significa a separação de Deus. Ele sofreu dores angustiantes,
bebeu as escórias do cálice da ira divina. O Senhor lançou
sobre Ele a iniqüidade de nós todos. Deus não poupou o Seu
próprio Filho, mas Lhe infligiu toda a fúria do Seu santo juízo.
Cristo aceitou contra Si a minha condenação, sofreu o meu
inferno. Levou sobre Si esse horror porque me amou. E eu,
não devo amá-10?
Mais que isso, o inferno nos propicia uma nova percep­
ção do valor da morte de Cristo. Nós vislumbramos algo de
quão terrível será o castigo para cada pecador condenado. A
eternidade no inferno não esgotará a ira de Deus. Todavia, isso
é totalmente merecido. O pecado contra um Deus infinito
exige uma penalidade infinita e eterna. Mas a m orte do
Senhor Jesus Cristo foi suficiente para expiar plenamente
todos os pecados de todo o Seu povo. No Calvário Ele fez
total pagamento pela culpa dos eleitos. Quão infinitamente
valiosa essa m orte realm ente é! D ificilm ente podemos
sequer conceber o Seu valor. Que pessoa grandiosa Ele de
fato é, quão inimaginavelmente preciosa é a oferta que Ele fez
de Si, podendo Ele terminar os Seus sofrimentos com o grito
triunfal: “Está consumado” (João 19:30). Seu sangue pode
purificar-nos de todo pecado. Deus o Pai pronunciou-Se

82
O Inferno e o Crente
satisfeito com a expiação feita naquela tarde por um tão
oneroso peso do mal. É algo estupendo! Paulo pôde muito
bem declarar: “Longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na
cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gálatas 6:14).
O inferno faz com que caiamos de joelhos, movendo-nos
ao encantamento e à gratidão. O inferno nos inspira, levando-
-nos a uma renovada adoração dAquele que nos amou e Se
entregou por nós. Sua morte destruiu e cancelou o inferno
para nós. Esse é o seu valor; é isso que Ele é.
Quando cremos em Jesus, ficamos ligados a um ser de
inimaginável poder, glória e graça. Não é coisa pequena
confiar em Cristo. Não é trivial o convite que Ele nos faz:
“Vinde a mim” (Mateus 11:28). Ele é o Deus infinito, cujo
amor enche e transcende a nossa compreensão. Este poderoso
Salvador, em Sua majestade e em Sua bondade, chama-nos
para a salvação que Ele nos proveu ao preço da Sua morte
angustiosa. Se não passamos a amar mais intensamente o
Senhor que nos salva do inferno, tendo-o experimentado Ele
próprio, significa que estudamos este tópico em vão.
ZELO PELA EVANGELIZAÇÃO
Um dos mais óbvios resultados de uma consideração do
inferno deve ser um renovado zelo pela evangelização. Já o
conteúdo da doutrina o requer. Ao nosso redor muitos há
que vão indo direto para esse lugar. Unicamente o evangelho
lhes indicará o caminho da salvação. Foi-nos confiada essa
mensagem e nós mesmos fomos libertados do inferno somente
porque alguém no-la comunicou. A nossa responsabilidade
é imensa e inevitável. Temos o dever de falar aos nossos
semelhantes sobre o Salvador. A evangelização é um dos
principais deveres cristãos, e nós temos motivo para dar
graças a Deus pelos incontáveis esforços feitos no mundo
inteiro para trazer as pessoas a Cristo.
Mas, estaríamos evidenciando que estamos à altura?

83
CÉU E INFERNO
Estamos sendo tão fiéis como devemos ser na comunicação
do evangelho? Ou será que, como acontece com a oração, essa
é uma questão acerca da qual sentimos as mordidas de uma
consciência intranqüila? Robert L. Dabney faz um comentário
interessante em sua discussão da heresia do universalismo,
a crença em que finalmente todos serão salvos. Pois ele afirma
que, independentemente de todos os argumentos filosóficos e
teológicos, “o principal argumento prático em favor do
universalismo é, sem dúvida, a dureza pecaminosa dos cris­
tãos para com este tremendo destino dos nossos semelhantes,
criaturas como nós. Podemos contemplar a exposição dos
nossos amigos, vizinhos e filhos a um destino tão terrível e
perm anecer tão insensíveis e fazer tão poucos e débeis
esforços para que eles sejam libertados? Como podem os nossos
amigos incrédulos dar crédito à sinceridade das nossas
convicções? Temos aí o melhor argumento de satanás em
favor do ceticismo deles”.5
A avaliação feita por Dabney é igualmente penetrante e
perturbadora. Se não evangelizarmos, estaremos com efeito
dizendo que realmente não cremos no inferno. Se de fato
visarmos o que dizemos crer, seguramente faremos mais
pela salvação dos perdidos. Ele continua e afirma que “a melhor
refutação dessa heresia é a demonstração feita pelo povo de
Deus de um zelo santo, terno e humilde, mas ardente, por
arrancar os homens como se arrancam tições das chamas”.6
Q uantos de nós estávam os ansiosam ente zelosos
para testemunhar nos dias em que éramos cristãos recém-
-convertidos? No alvorecer do nosso com prom etim ento
tínhamos uma espécie de simplicidade inocente. Ansiávamos
pela salvação dos nossos amigos. Esperávamos que eles
chegariam à fé. Uma parte chave das nossas devoções diárias

sSystematic Theology, pp. 861.2.


6Ibid.

84
O Inferno e o Crente
era a oração rogando por oportunidades para lhes falarmos
de Cristo. Temos mais conhecimento agora, claro, ou assim
pensamos. Esse entusiasmo do passado distante pode pare­
cer superficial, e até embaraçoso. Mas talvez devamos
envergonhar-nos mais do nosso presente do que do nosso
passado. O nosso zelo esfriou-se, e nós abandonam os o
primeiro amor.
O diabo é bastante esperto para transformar as nossas
forças em fraquezas. Os cristãos saudáveis amam a Palavra de
Deus. E puro deleite para nós, individual e corporativamente,
explorar a profunda revelação da Sua sabedoria e da Sua graça
nas Escrituras. Sentimos que só começamos a examinar este
tesouro, que ainda estamos nas fímbrias do que o Senhor nos
falou. Na melhor das hipóteses, temos um apaixonado anseio,
implantado por Deus, de aprender cada vez mais da Sua
verdade. Mas o perigo é nos absorvermos tanto no estudo e
nos dedicarmos tanto a desenvolver o nosso entendimento
doutrinário, que olvidemos as multidões que, arruinadas,
perecem ao redor de nós.
Como cristãos, temos muitas responsabilidades. Algu­
mas das nossas igrejas precisam ser reestruturadas segundo
linhas mais bíblicas. O povo de Deus tem necessidade de
treinam ento e de nutrição. M uitas questões da sociedade
reclamam impulso energético cristão. Mas negligenciar a
evangelização é falhar em alta escala.
E é nessa área que outros crentes podem, desafiar-nos
com seu zelo engolfante, com sua paixão pelos perdidos, com
seu com prom etim ento com a oração e com atividades
imaginativas e ousadas. A teologia deles pode ser defeituosa,
sua evangelização pode ser feita sem equilíbrio, sua meto­
dologia pode ser suspeita, sendo que nenhuma dessas coisas
pode ser defendida. Todavia, o seu entusiasmo é recomendável,
o seu zelo é uma repreensão e um estímulo para nós. Deus
que, como os puritanos gostavam de dizer, “pode escrever

85
CÉU E INFERNO
direito em linhas tortas”,7 abençoa as Suas testem unhas
compadecidas e confiantes, e faz uso delas para levar muitos
à fé.
Não estou argum entando em favor de um ativism o
irrefletido, de uma ação negligente ou superficial. Mas,
estaríamos nós em condições de poder criticar aqueles que
estão fazendo imperfeitamente o que talvez não estejamos
fazendo de maneira nenhuma? Onde está o nosso zelo? Onde
está o nosso comprometimento explosivo que nos faria sair
“pelas ruas e bairros da cidade” em busca dos “pobres, e
aleijados, e mancos e cegos” - e ir “pelos caminhos e vaiados”
e forçá-los “a entrar”? (Lucas 14:21,23). Talvez a voz de Deus
venha como uma repreensão àqueles que gostam de criticar
de fora, sem fazer nada. “Hipócrita! Por que atentas no argueiro
que está no olho do teu irmão, e não reparas na trave que está
no teu próprio olho? Faz seis meses que você falou com outro
ser humano sobre a fé em Cristo, e, todavia, você se atreve a
ver defeito naquele irmão ou naquela irmã que, em sua
opinião, está agindo impropriamente?”
A doutrina sobre o inferno deve motivar-nos a falar. Temos
que arrepender-nos da nossa apatia e da nossa dureza de
coração. Devemos fixar o nosso olhar no inferno até que
possamos sentir a dor que aguarda os que não são convertidos.
John Blanchard fala-nos de uma ocasião em que Francis
Schaeffer ficou visivelm ente emocionado ao pensar no
inferno. Em seu chalé, na Suíça, ele estava explicando as
Escrituras a um grupo de jovens. Inteligentes e inquisitivos,
eles ficaram admirados ante a singular habilidade com que
seu mestre relacionava a Palavra de Deus com a cultura
contemporânea. Vários tópicos foram considerados, até que
finalmente um jovem perguntou: “Dr. Schaeffer, que dizer

7Mais literalmente, “pode desenhar uma linha reta com um pincel torto”.
Nota do tradutor.

86
O Inferno e o Crente
daqueles que nunca ouviram o evangelho?” O grupo espe­
rava ansiosamente uma resposta incisivamente brilhante.
Mas Schaeffer não disse nada. Em vez disso, baixou a cabeça
e chorou.8
Hudson Taylor, o grande líder missionário do século
dezenove,9 disse algo semelhante, mas de maneira diferente.
Em seu período de furlough (temporada de volta à Grã-
-Bretanha), palestrando a um grande auditório (na Inglaterra),
falou sobre um homem que caiu num rio da China. Enquanto
ele lutava na água, os que estavam na margem simplesmente
ficaram ali, observando. Ninguém se moveu para socorrê-lo, e
o pobre homem morreu afogado. Os ouvintes de Taylor sus­
piraram horrorizados com tanta indiferença, porém ele tinha
pronto o seu desafio. “Homens e mulheres da Inglaterra,
milhões estão perecendo neste momento. Que é que vocês
estão fazendo para resgatá-los?”
Haveria alguém a quem você deveria falar - um vizinho,
um colega, um membro da sua família? Cada um de nós
deve ter um fardo específico de preocupação por uma pessoa,
ao menos, e devemos determinar-nos a fazer tudo o que
pudermos por sua salvação. Devemos amá-las, cultivar a sua
amizade, orar por elas diariamente, falar do nosso Salvador
conforme a oportunidade o permita, convidá-las para ouvi­
rem a pregação da Palavra. Se você não fez isso recentemente,
não quer começar agora? Por quem você vai orar antes de
dormir esta noite?

8Ver Whatever Happened to Hell?, pp. 114,5.


9 Foi para a China em 1853, dedicou-se desgastantemente à obra missionária
durante três anos, enfermou-se, voltou para a Inglaterra, trabalhou
vigorosamente pela criação da Missão do Interior da China, que veio a ser
um importantíssimo empreendimento missionário. Em 1866, partiu
definitivamente para a China, com sua família e com um grupo de outros
missionários (quinze). Experimentou tremendas provações, mas sempre
foi acolhido e fortalecido pela graça de Deus. Nota do tradutor.

87
CÉU E INFERNO
HUM ILDE ACEITAÇÃO DOS PROPÓSITOS
SOBERANOS DE DEUS
O inferno deve produzir em nós, finalmente, uma humilde
aceitação dos propósitos soberanos de Deus, tanto com
referência à nossa presente responsabilidade quanto com
referência à própria existência do inferno.
Se nós não nos interessamos profundamente pelos incré­
dulos, há algo errado conosco. Paulo escreveu: “Tenho grande
tristeza e contínua dor no meu coração... por amor de meus
irmãos, que são meus parentes segundo a carne” (Romanos
9:2,3). Ele sentia sobre si um peso pelos judeus, seus patrí­
cios, e a perspectiva da condenação deles era uma agonia
para ele. Devemos experim entar uma sem elhante dor.
Devem os com over-nos pelos perdidos, devemos estar
apaixonadamente comprometidos com o dever de espalhar
o evangelho por todos os meios que estejam ao nosso
alcance. Como já vimos, não se deve perm itir que coisa
alguma embote esse senso de responsabilidade.
Mas, seria o caso que o nosso dever de evangelizar tem
prioridade sobre todas as outras coisas da vida? É justificável
concluir que, em vista da existência do inferno, devemos
abandonar todas as outras atividades e entregar-nos à
evangelização de tempo integral? Seria correto supor que a
única ocupação digna para os crentes é a proclamação do
evangelho àqueles que estão a caminho do Juízo?
Não, se é que entendemos o ensino equilibrado das
Escrituras. Deus chama poucos do Seu povo para esse
ministério especificamente centralizado. A vida diária na
terra deve continuar. Os seres humanos devem semear e
colher, casar-se e reproduzir-se, exercer domínio sobre a
criação em suas diversas vocações. A vontade de Deus para
você é que você viva a sua fé na situação em que Ele o
colocou, sustentando a sua família, talvez, fazendo o seu
trabalho diário de maneira piedosa, usando os seus dons
O Inferno e o Crente
para servir na igreja e na comunidade.
A nossa responsabilidade pelos outros, conquanto real, é
limitada. Em última instância, se estas ou aquelas pessoas
forem para o inferno, não terão ninguém para culpar, senão
a si mesmas. “A alma que pecar, essa morrerá; o filho não
levará a maldade do pai, nem o pai levará a maldade do filho;
a justiça do justo ficará sobre ele, e a impiedade do ímpio
cairá sobre ele” (Ezequiel 18:20). Se nós não falarmos sobre
Cristo aos nossos amigos, seremos em parte responsáveis
por sua condenação, mas a responsabilidade final está com
o indivíduo em foco.
Não aceite mais responsabilidade do que a que Deus põe
sobre você. Se o fizer, você rebentará. Tenho visto pastores
sensíveis rebentados. Em sua consciência assumiram um
fardo pesado demais para qualquer mortal suportar. Deus é o
Senhor. Não precisamos temer que, por não evangelizarmos
imediatamente todas as pessoas que conhecemos, elas irão
para o inferno por engano. Cristo salvará todos os Seus esco­
lhidos. Ele nos reforça a segurança: “Todo aquele que o Pai
me dá, esse virá a mim”, e “Tenho guardado aqueles que tu me
deste, e nenhum deles se perdeu” (João 6:37 (ARA); 17:12).
Por paradoxal que possa parecer, precisamos relaxar,
repousar na soberania de Deus. Alguns de vocês talvez estejam
carregando um fardo pela salvação dos seus filhos. Vocês têm
orado por eles, têm-lhes ensinado as Escrituras e os têm
concitado a crer, sem nenhum resultado até aqui. Sua profunda
preocupação com eles continuará - e deve continuar. Não
permita Deus que vocês venham a ficar apáticos ou indife­
rentes. Talvez vocês lamentem os seus erros e incoerências do
passado. Quanto a estes vocês buscarão perdão, e o receberão.
Mas devem exercer fé no Senhor. Lembro que uma vez, em
Edimburgo, estive conversando com um homem que estava
com sessenta e quatro anos de idade e que tinha acabado de
se tornar cristão. Seus pais, crentes piedosos, tinham morrido
89
CÉU E INFERNO
anos antes, tinham vivido com o coração atribulado por seu
filho rebelde, que tinha repudiado a fé e o exemplo dos seus
pais. No entanto, chegou o tempo da sua conversão, e ele me
disse que, abaixo de Deus, atribuía a sua conversão às orações
do seu pai e da sua mãe. Eles tinham morrido sem vê-lo crente,
mas suas orações por ele não tinham sido em vão. Isso nem
sempre acontece, claro, porém devemos confiar no Todo-
-poderoso. O dom da salvação não está em nossas mãos, não
está em nosso poder conferi-lo, e temos que confiar os nossos
entes mais chegados e mais queridos a Ele. Não podemos ser
responsabilizados pelas almas dos outros. Pode ser que
tenhamos que viver a angústia de vê-los rejeitarem Cristo, mas
não devemos deixar-nos esfrangalhar pela incredulidade
deles. Deus não comete enganos. O nosso dever é confiar nEle.
Finalm ente, temos que aceitar hum ildemente os pro­
pósitos de Deus na criação do inferno. Pensar nele é terrível, e
não podemos deixar de sentir profundamente pelos nossos
semelhantes que se perdem. Não é errado isso. Temos ordens
de amar os nossos inimigos, bem como o nosso próximo, pois
eles também foram criados à imagem de Deus. Por tudo
quanto sabemos, eles podem ser muito mais que isso. O
indivíduo mais perverso que você já encontrou pode ser um
dos eleitos. Ele pode ser um demônio encarnado, um Saulo
de Tarso, e, contudo, pode acontecer de se evidenciar que ele
é um daqueles que Deus escolheu na eternidade e que ele
planeja redimir. Devemos entristecer-nos profundamente
pela condenação de um só indivíduo que seja.
Todavia, a nossa compaixão natural pode escorregar muito
facilmente para uma aversão pela doutrina do inferno. John
Stott escreveu sobre as penas eternas que “Emocionalmente
acho esse conceito intolerável, e não entendo como as pessoas
ainda podem conviver com ele, ou sem cauterizar as suas
emoções, ou sem rebentar sob a tensão”.10 Essa é uma idéia
10Edwards and Stott, Essentials, A Liberal-Evangelical Dialogue, p. 314.
90
O Inferno e o Crente
cada vez mais comum, não só sobre as penas eternas, porém
com relação à idéia geral de inferno. Em geral as pessoas estão
dizendo, noutras palavras, que prefeririam que não houvesse
tal lugar.
Esses sentimentos são compreensíveis. Mas seriam certos?
Deveríamos ver o inferno como uma realidade repulsiva e
embaraçosa, algo que na verdade gostaríamos que não exis­
tisse? O problema dessa idéia e que as Escrituras nos mostram
os santos glorificados louvando a Deus por Seu juízo imposto
ao pecado, e adorando-0 por Ele ter derrotado a impiedade:
“Graças te damos, Senhor Deus, Todo-poderoso... porque
julgaste estas coisas. Visto como derramaram o sangue dos
santos e dos profetas, também tu lhes deste o sangue a beber;
porque disto são merecedores” (Apocalipse 11:17; 16:5,6).
Vê-se que os santos que estão no céu louvam Deus pelo
inferno. Acaso devemos nós louvá-10 por ele agora? Sejamos
cautelosos aqui. Certamente podemos dar graças a Deus
pela existência de um inferno para o pecado. Podemos
dizer: “Graças te dou, Senhor, porque preparaste fogo para
o diabo e seus anjos. Alegra-me saber que o diabo vai estar
ali para todo o sempre. Regozijo-me em que a impiedade
vai ser condenada, e eu Te louvo, Senhor, por esse lugar
de punição”.
Mas, podemos ir mais longe? Podemos dar graças a Deus
pela existência de um inferno para as pessoas ímpias? Eu
relutaria em fazer isso. Quando sondo o meu próprio coração,
vejo m uito pecado, muito egocentrismo, m uita malícia e
muito orgulho. E unicamente pela graça do Salvador que
eu mesmo não vou estar no inferno. Sim plesm ente não
posso olhar para outro pecador, homem ou mulher, e dar
graças a Deus pela punição que o aguarda. Há certamente
um amargor de alma nada parecido com Cristo em quem
pode sentir qualquer coisa que não seja angústia pelo destino
final dos perdidos.
91
CÉU E INFERNO
Todavia, quando estivermos no céu, louvaremos Deus por
tudo quanto Ele realiza por meio do inferno. Pois, estaremos
purificados do pecado, os nossos motivos serão inteiramente
santos e estaremos dominados pela mente de Cristo. O justo e
reto juízo de Deus será revelado. Todas as desigualdades desta
vida serão varridas de vez. Todos os aparentes mistérios e
injustiças do tempo serão solucionados. Tudo será plenamente
endireitado. A majestade do Senhor brilhará e todos aqueles
que se levantaram arrogantemente contra Ele serão humilhados
e derribados. Deus será glorificado no inferno e se, para nós, a
glória de Deus significa mais do que qualquer outra coisa,
poderíamos lamentar a existência do inferno? Não podemos;
e no céu estaremos transformados e capacitados a adorar a
Deus por tudo quanto Ele fez, o inferno inclusive.
Que tremendo mistério! Nas palavras cuidadosamente
escolhidas de Jonathan Edwards: “Convém aos santos anuir
plena e perfeitamente ao que Deus faz, sem nenhuma relutân­
cia ou oposição de espírito; sim, convém-lhes regozijar-se em
tudo o que Deus acha que deve ser feito”.11
Não ousamos nem aspirar a isso. Mas é o que faremos.
Agora não podemos compreender como, nos propósitos de
Deus, Ele é glorificado por meio do inferno. Contudo vamos
compreender. Esta verdade, como todas as demais, faz-nos cair
sobre os nossos joelhos e nos move à adoração.

11 “The end of the wicked contemplated by the righteous” (O fim dos


ímpios contemplado pelos justos), Works (Obras), Vol. 2, Edimburgo:
Banner ofTruth, 1974, p. 210.
5
O Céu Importa
E nquanto qualquer pensam ento sobre o inferno é
anátem a para m uita gente, a dou trina sobre o céu é
provavelmente o mais popular de todos os ensinos cristãos.
Uma pesquisa feita nos Estados Unidos, em 1990, informou
que setenta e oito por cento dos entrevistados diziam crer
no céu. N um a era supostam ente m aterialista há um
generalizado fascínio pela vida após a morte. Bem mais de
uma centena de livros sobre os anjos estão a venda atual­
mente. Títulos tais como Embraced by the Light (Envoltos pela
Luz) e Caught up into Paradise (Arrebatados ao Paraíso)
encimam as listas dos livros mais vendidos. Programas de
televisão que tratam do sobrenatural comandam grande
número de telespectadores. O céu é assunto da moda.
Não se trata de um desenvolvimento recente, pois a
crença na vida após a morte é comum a toda a humanidade.
Diz-nos a Escritura que Deus “pôs a eternidade no coração
do homem” (Eclesiastes 3:11, ARA), e parece que os seres
humanos sabem instintivamente que existe outra vida além
desta. Nas pirâm ides do Egito os corpos embalsamados
tinham mapas ao seu lado como um guia para o mundo
futuro. Os gregos e os romanos criam num mundo espiritual
no qual os mortos entravam. Os nativos americanos enterra­
vam arcos e flechas em suas sepulturas tribais para serem
usados nos felizes campos de caça. Hoje em dia ouvimos falar
de mulheres que pedem que os seus estojos de maquiagem e
suas revistas favoritas sejam enterrados com elas. A fé numa
vida por vir é um elemento comum da cultura humana.
93
CÉU E INFERNO
E, todavia, há um paradoxo em tudo isso. São muitos os
que dizem que crêem no céu, mas o seu interesse por ele é
superficial. Essa crença não parece fazer qualquer diferença
quanto ao seu modo de viver. Não faz nenhum impacto sobre
a sua conduta. Com relação a todos os seus intentos e propó­
sitos, eles ignoram esse futuro que esperam experimentar e
gozar.
O que nos deixa mais perplexos ainda é ver dentro do
cristianism o menos interesse pelo céu do que em quase
qualquer outro período da história. Poucos livros modernos
e de algum valor têm sido escritos sobre este tópico. Um dos
grandes manuais de teologia reformada é Systematic Theology,
de Louis Berkhof,1 porém, estranhamente, Berkhof dedica
apenas uma das suas 784 paginas ao assunto céu. Não se prega
freqüentem ente sobre esse tema. Os cristãos, quando se
reúnem, raramente discutem a vida por vir e a prospectiva
da glória. Podemos ficar surpresos pelo fato dos incrédulos
serem tão pouco afetados pelos pensamentos sobre o céu, no
qual eles dizem que crêem. Contudo, é certamente mais
frustrante que nós, que pela fé em Cristo temos boa razão para
prelibar a ida para o céu e a permanência lá para sempre,
dediquemos a ele tão pouco tempo ou tão pouca atenção.
Por que a doutrina sobre o céu é negligenciada? E por
que essa negligência é tão danosa?
POR QUE O CÉU É NEGLIGENCIADO?
Uma razão óbvia pela qual muitos de nós não refletimos
sobre o céu tão seguidamente quanto devíamos é que nos
preocupam os demais com o presente m undo. Estam os
rodeados do que podemos ver, ouvir, tocar, saborear e cheirar.
Se eu pegar uma moeda e a segurar junto a meu olho, ela
1 Teologia Sistemática, tradução de Odayr Olivetti, Campinas, Luz para
O Caminho, Ia. ed. 1990. Atualmente: Cultura Cristã, São Paulo. Sobre
o céu: página 743. Nota do tradutor.

94
O Céu Importa
bloqueará a luz do sol e eu não verei nada senão essa pequena
e brilhante moeda. Ora, o sol é maior que uma moeda, mas,
porque a moeda está junto ao meu olho, ela impede a visão de
uma coisa incomparavelmente maior. As realidades da vida
diária podem não ser nem grandes nem, em última instância,
importantes, porém estão junto de nós e nos causam forte
impacto. E o perigo é que a própria proxim idade deste
mundo bloqueie a perspectiva infinitamente mais vasta do
glorioso mundo vindouro.
Outra razão da negligência do céu é que, ao menos no
mundo ocidental, estamos passando bem. Quanto à maior
parte da população, somos relativamente ricos, razoavelmente
sadios, sofrivelmente felizes. A vida é doce e, sem que o perce­
bamos, somos dopados pelo bem-estar e pela prosperidade.
As tragédias nos espetam, nos acordam e de repente nos
fazem lancinantemente cientes do céu e do inferno. Um ser
amado adoece gravemente e num instante vemos que o céu
já não é algo teórico ou muito distante. E muito real, e ansia­
mos descobrir mais sobre ele. Entretanto, por muito tempo
ficamos contentes como estamos. Outras gerações de crentes
tinham mais do espírito dos peregrinos. “Este mundo não é
meu lar”, eles cantavam, “Estou simplesmente passando por
aqui”. Eles se descreviam como “peregrinos passando por
esta árida terra”. Mas o nosso mundo é um mundo rico, um
mundo aprazível, e fincamos raízes. Negociamos o “doce
porvir” trocando-o pelo próspero aqui e agora. Esta é uma
era de gratificação imediata, e há muita coisa para se desfru­
tar no presente. A sociedade nos oferece uma deslumbrante
gama de experiências, desde as novas tecnologias de
entretenim ento interativo até as mais exóticas férias no
estrangeiro. As comodidades deste mundo tornam o céu
menos atraente.
Ou pode ser que negligenciemos o céu porque o vemos
como nada mais que um próximo estágio inevitável da nossa
95
CÉU E INFERNO
existência. É certamente assim que os incrédulos pensam.
Todavia, m uitos cristãos professos pensam de m aneira
semelhante a essa. Cremos no céu, é algo que vai acontecer no
futuro, e, quando acontecer, sem dúvida vamos gozá-lo. Mas,
por enquanto, por que gastar tempo inquirindo sobre ele?
Como é que devaneios podem nos ajudar? Quando o céu vier,
virá. Haverá então bastante tempo para pensar nele.
Pode acontecer que negligenciemos o céu simplesmente
porque ele não nos atrai. Quando eu era criança, não queria
ir para o céu porque me parecia um lugar maçante. Minha
visão era a de um culto que durava milhões de anos, enquanto
eu tinha que ficar sentado ali, num banco de mármore, vestindo
um imaculado terno branco, e sem ter permissão para mover-
-me por toda a eternidade. Tal idéia do céu exercia pouca
atração sobre um rapazelho! Naturalmente, quando o assunto
vinha à baila em casa, eu fingia um decente entusiasmo, porém
este era em grande parte artificial. Eu não gostava do céu como
este me parecia, e não tinha nenhuma pressa de ir para lá.
Pode ser que tenhamos superado essas idéias infantis
errôneas, mas talvez continuem os sendo estranham ente
apáticos quanto ao céu, entendendo-o mal ou comunicando
im propriam ente a sua beleza. Os críticos literários têm
comentado a diferença que existe entre os dois grandes
poemas de John M ilton, Paradise Lost e Paradise Regained
(Paraíso Perdido e Paraíso Recuperado). Paraíso Perdido é
um livro superior, mais vivido, colorido e cativante, ao
passo que Paraíso Recuperado é, por vezes, insípido, na verdade
sem vida. Parece que M ilton achava mais fácil escrever
sobre o inferno do que sobre o céu. Nalguns aspectos, o céu
não tem atrativos para nós. Há verdade, como também há
uma trágica comicidade, na história da m ulher a quem
perguntaram sobre uma sua amiga que tinha morrido e que
respondeu até com impaciência: “Bem, suponho que ela
está gozando a bem-aventurança eterna, mas eu não quero

96
O Céu Importa
falar sobre um assunto tão desagradável”!2
Às vezes parece que os cristãos passaram por uma lavagem
cerebral que os levou a negligenciar o céu. Também pode ser
que estejamos ávidos de agradar os de fora da Igreja, per-
guntando-Ihes ansiosamente o que eles esperam de nós e
garantindo-lhes que procuraremos prover-lhes o que esperam
receber. E o mundo alega que quer o que lhe é obviamente
relevante. “Se vocês não têm nada prático para nos ensinar”,
dizem eles, “não queremos ouvi-los. Precisamos de ajuda para
o aqui e agora, para hoje e amanhã. Que benefício concreto a
sua mensagem me traz agora? Como posso pô-la em uso? Não
me falem sobre “castelos no ar”. Não estou interessado num
futuro mundo de fantasia.” E com muita freqüência na Igreja
nós temos capitulado a esse pensamento e temos negligen­
ciado a glória por vir. Um dos mais danosos lemas de satanás
é a crítica que ele faz dizendo que os cristãos pensam demais
no céu para terem alguma utilidade na terra. Queremos ser
úteis na terra, claro, e ficamos achando que a resposta é pensar
menos no céu. Ao contrário, como veremos, só os que têm o
coração posto no céu é que, em última análise, são de muita
utilidade na terra.
Essa acusação é um golpe de mestre do diabo. Sua influ­
ência está por trás de grande parte da nossa negligência do
céu. Pois é do seu interesse fazer com que o negligenciemos,
cegar a nossa mente para esta gloriosa possibilidade, e fazer
com que focalizemos a nossa atenção de vista curta no
presente imediato.
Finalmente, pode ser que negligenciemos o céu por ser
uma realidade demasiado formidável para que a nossa mente
o compreenda. E magnífico demais para nós, transcendental
2 Faz pensar em expressões que tenho ouvido, semelhantes a esta:
“Espero que ele sare, mas, se Deus o quiser levar, que se vai fazer?”,
quando a lógica da fé cristã seria: “Se Deus o quiser levar, que glória
será para ele!” Nota do tradutor.

97
CÉU E INFERNO
demais, glorioso demais. O nosso pequeno cérebro não pode
lidar com o conceito do céu. Como Paulo escreve, “As coisas
que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao
coração do homem, são as que Deus preparou para os que o
amam” (1 Coríntios 2:9, citando Isaías 64:4). Está simplesmente
além da nossa compreensão.
Por essas razões, entre outras, o céu é uma doutrina
negligenciada.
POR QUE O CÉU É ASSUNTO QUE IMPORTA?
Será que importa pensar no céu tão freqüentemente como
o fazemos? Importa profundamente.
Im porta prim eiram ente porque m uitos que tomam
como coisa líquida e certa que vão para o céu não vão. Na
vida deles não há nenhuma prova de que eles estão ligados a
Cristo. Eles estão nutrindo falsa esperança. Ouvimos petu­
lantes comentários feitos quando homens e mulheres famosos
morrem. Alguém diz que eles estão lá em cima, olhando para
baixo e que estão agradavelmente surpresos com o numeroso
e impressionante comparecimento ao seu funeral. Ouvimos
dizer que os golfistas estão felizes jogando golfe e que os
pescadores estão pegando enorme quantidade de peixes no
céu. Eles podem ter m ostrado dim inuto interesse pelas
coisas de Deus, podem nunca ter professado a fé no Salvador,
mas é tomado como coisa certa e segura que o céu é onde eles
se encontram agora. Insinuar outra coisa é ser taxado de
fanatismo mórbido. Conversamos com pessoas que presu­
mem que vão para o céu e que, todavia, não têm boa razão
para presumir isso. Eles vão sofrer o mais pavoroso choque.
Sua negligência do céu é letal.
Também importa pensar no céu porque muitas idéias
populares sobre a vida futura são grotescamente enganosas.
Muitos dos atuais livros sobre o céu, livros que estão entre os
mais vendidos, são uma tóxica mistura de versículos bíblicos
98
O Céu Importa
mal citados, a filosofia da Nova Era, o m orm onism o, o
ocultismo, o sentimentalismo vazio e a superstição. Essa
confusa salada de falsidade está enganando as pessoas, muitas
das quais, lamentavelmente, não estão fora da Igreja. As
mentes estão sendo envenenadas. “A natureza detesta o vácuo”
e, se não se ensina a verdade, o erro toma o seu lugar.
A nossa negligência im porta porque, como cristãos,
estamos jogando fora uma das nossas mais poderosas armas
evangelísticas. Deus oferece aos seres humanos miseráveis e
pecadores uma eternidade de inimaginável felicidade. Que
possibilidade estupendamente gloriosa! Mas a Igreja não está
proclamando dos telhados esta mensagem. O romancista
francês Victor Hugo foi impreciso em sua teologia mas
preciso em seu sentimento quando escreveu “Eu sou um
girino de arcanjo”. Noutras palavras, ele acreditava que os
seres humanos estão destinados a um maior e melhor futuro.
Todavia, a Igreja Evangélica atual está se concentrando em
ajudar as pessoas a se tornarem melhores girinos, melhores
sapinhos. Vá a qualquer livraria evangélica e veja sobre o que
muitíssimos livros falam: não sobre Deus ou sobre o céu, não
sobre o mundo por vir. Falam sobre como as pessoas podem
tornar-se melhores girinos, sobre como fazer limitados e
temporários melhoramentos em nossa vida aqui e agora.
Porventura isso é tudo que a Igreja pode oferecer - “Cristo
pode dar-lhe paz mental; Cristo pode dar-lhe um melhor
casamento; Cristo pode ensinar a você a educar seus filhos”?
O povo pode encontrar pessoas que se oferecem para elimi­
nar suas dores e que dão aulas para os pais, e elas prometem
muito. Mas, que dizer do fato de que Jesus Cristo pode levar
você à glória eterna? Não estamos dizendo isso às pessoas, e
depois ficamos surpresos quando elas não se interessam pelo
evangelho. Não estamos fazendo uso de uma das mais
maravilhosas verdades que Deus colocou em Sua Palavra. Está
claro que é pernicioso negligenciar o céu.

99
CÉU E INFERNO
Contudo, em último lugar, o céu é im portante para o
nosso próprio bem - para o nosso crescimento espiritual e
para a nossa efetividade no serviço. Por negligenciarmos o que
a Bíblia diz sobre o céu, entregamo-nos a uma situação em
que nos tornamos crentes muito mais pobres, mais fracos e
mais inquietos do que é necessidade ser. A maior parte do
ensino sobre o céu nas Escrituras não é para evangelização, e
sim para o pastoreio do povo de Deus. Deus explica o céu em
Sua Palavra primariamente por amor de Seus filhos, para
ajudar-nos e consolar-nos, para animar-nos e fortalecer-nos,
para tornar-nos mais santos, para encher-nos de alegria. A
doutrina do céu é revelada para lançar luz sobre a minha vida
e a sua aqui e agora, para habilitar-nos a ser pessoas melho­
res hoje e amanhã. Faremos trapaça contra nós mesmos, se
não fizermos uso deste maravilhoso ensino. E uma imensa
bênção conhecer mais e mais o céu. E podemos conhecê-lo.
Não temos por que ficar na ignorância.
Você assinalou a citação parcial e enganosa que fiz alguns
parágrafos acima? Mencionando a transcendência do céu, eu
citei 1 Coríntios 2:9: “As coisas que o olho não viu, e que o
ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são
as que Deus preparou para os que o amam”. Mas parei ali -
indesculpavelmente! Pois, que diz o versículo seguinte? “Mas
Deus no-las revelou pelo seu Espírito”. Quantas vezes essa
passagem é mal empregada! O céu é grande demais para que
o entendamos, em geral dizem os escritores e os pregadores,
e citam o versículo nove. Entretanto isso não é tudo o que
Paulo está dizendo. Muito ao contrário. Ele nos está dizendo
que, embora o céu seja grande demais para os que não são
convertidos o entenderem , magnífico demais para que a
razão humana, não ajudada, o possa compreender, Deus nos
revelou estas coisas pelo Seu Espírito. Com Sua Palavra em
mãos, podemos conhecer o céu; Ele quer que aprendamos
sobre ele e que não o negligenciemos mais.
100
O Céu Importa
Por onde devemos começar? Considerando o contexto
dentro do qual o nosso entendim ento do céu deve ser
colocado.

101
6
Criado para a Glória de Deus
O céu é um tema fascinante, e há muita coisa sobre ele
que ansiamos descobrir. Mas é vitalmente importante come­
çar da maneira certa, pois, se estivermos mal orientados no
princípio, nunca nos recobraremos. Seria um erro impacientar-
-nos e precipitar-nos ao nosso estudo sem fazer uma pausa
para verificar as nossas bases. Podemos encontrar um ponto
de partida apropriado nas palavras de Deus registradas em
Isaías 43:7: “Criei para a minha glória”. Originalmente Ele
aplicou essa frase a Seu povo, a “todos os que são chamados
pelo meu nom e”. Mas isso é verdade, num sentido mais
geral, quanto a tudo o que Deus cria e a tudo o que Ele faz. E
é verdade particularmente quanto ao céu. O céu foi criado
para a glória de Deus. Este é o fundamento sobre o qual todo
o nosso pensamento deve repousar.
A GLÓRIA DE DEUS MANIFESTADA
As primeiras palavras da Bíblia são: “No princípio criou
Deus os céus e a terra”. Alguma vez você se perguntou por
que Deus decidiu criar os céus e a terra? Ele não tinha neces­
sidade de fazê-lo, pois Ele não precisava nem de ninguém
nem de nada. Como Pai, Filho e Espírito Santo, Ele sempre
foi perfeitamente auto-suficiente. Sempre o será. Ele é o Deus
que não tem necessidade de coisa alguma (Atos 17:25). Mas
Ele deve ter tido um propósito na criação dos céus e da terra.
Qual foi? Ele não agiu por capricho; não o fez por estar
enfastiado ou necessitado de alguma coisa para preencher o
tempo.
102
Criado para a Glória de Deus
A resposta mais satisfatória que já encontrei está
no discurso de Jonathan Edwards intitulado: “The End for
which God Created the World”1 (O Fim para o qual Deus
Criou o Mundo). Com sua típica eficiência, ele se propõe a dar
atenção a essa questão. Sua resposta é: “Para que houvesse
uma gloriosa e abundante emanação da Sua infinita pleni­
tude de bondade ad extra, ou para fora dEle próprio. Ele
continua: “Esta disposição de comunicar-Se ou de difundir a
Sua própria plenitude foi o que O moveu a criar o mundo”.
Deus teve “disposição para comunicar-Se”, para propagar
amplamente a Sua plenitude. Seu propósito foi que a Sua
bondade transbordasse do Seu Ser, por assim dizer. Ele
decidiu criar os céus e a terra para que a Sua glória pudesse
derramar-se de Si com abundância. Ele trouxe à existência
uma realidade física para que essa experimentasse a Sua
glória, se enchesse dela e a refletisse. “E viu Deus tudo quanto
tinha feito, e eis que era muito bom” (Gênesis 1:31). Os céus e
a terra manifestaram a Sua glória.
OS “CÉUS”
Quando lemos que Deus criou os céus e a terra, que
significa a palavra “céus”? O sentido original dos termos
hebraico e grego é incerto, mas eles vieram a descrever algo
que é super-elevado, altíssimo, as regiões mais altas. Céus
são as alturas. Na Bíblia o termo é empregado com referência
a três entidades separadas e, contudo, interconexas.
Refere-se primeiramente à atmosfera: o ar que, sobre nós,
envolve este planeta. “Desce a chuva e a neve dos céus” (Isaías
55:10). “O orvalho do céu” (Daniel 4:15) é chamado assim
porque desce do alto, dos ares. Lemos também sobre “as aves
do céu” (Jeremias 4:25). A geada, o vento, as nuvens e os
vapores, o trovão e a saraiva, todas estas coisas vêm do céu. E
1 Works (Obras), Vol. 2, pp. 94-121.

103
CÉU E INFERNO
entendemos o que é esse céu. É a atmosfera, é o ar sobre nós.
Em segundo lugar, há o que agora chamamos “espaço”. A
Bíblia às vezes descreve essa região como “firmamento” ou
“expansão”. Em Gênesis 1:14, Deus chama à existência
“luminares na expansão dos céus (“NIV” e ARC), para haver
separação entre o dia e a noite”. O que Deus quer dizer com
essas palavras? Ele está Se referindo à colocação e localização
do sol, da lua e das estrelas. Os planetas e as galáxias estão
nestes céus. Portanto, a palavra “céu”, nas Escrituras, refere-se
à atmosfera e também ao espaço, os céus planetários, o
espaço sideral.
Naturalmente, quando pensarmos na doutrina bíblica
do céu, não tomaremos tempo nem com a atmosfera nem com
o espaço. Mas devemos refletir por um momento, antes de
passarmos ao nosso real assunto, porque não é um acidente
de vocabulário que estas entidades são denominadas pela
mesma palavra aplicada ao lugar de habitação de Deus. Isso
não acontece devido à falta de palavras no hebraico e no
grego. Não, a intenção é que vejamos uma relação entre elas.
A atmosfera superior e o espaço nos falam do verdadeiro céu.
Eles dão testemunho da glória e do poder do Criador. “Os céus
manifestam a glória de Deus”, diz o salmista, “e o firmamento
anuncia a obra das suas mãos” (Salmo 19:1). O arco-íris
estabelecido por Deus nos céus nos garante que a Sua promessa
pactuai é certa e segura (Gênesis 9:13-17). As estrelas nos
lembram a promessa feita por Deus de inumeráveis des­
cendentes do Seu servo escolhido, pois Ele disse a Abraão:
“Conta as estrelas, se as pode contar. E disse-lhe: assim será
a tua semente” (Gênesis 15:5).
Estes céus também nos falam das nossas limitações e da
nossa pequenez. O salmista exclama: “Quando vejo os teus
céus, obra dos teus dedos... Que é o homem mortal para que
te lembres dele?” (Salmo 8:3,4). Os astrônomos nos dizem que
a estrela mais próxima do nosso sistema solar está a vinte e
104
Criado para a Glória de Deus
oito bilhões e trezentos e cinqüenta e três milhões de quilô­
m etros.2 Entretanto, Deus “conta o número das estrelas,
chamando-as a todas pelos seus nomes” (Salmo 147:4). Quão
formidável e quão majestoso Ele certamente é! Nas palavras
do profeta Isaías, “Quem mediu com o seu punho as águas,
e tomou a medida dos céus aos palmos, e recolheu numa
medida o pó da terra?” (Isaías 40:12).
Vivemos em cidades iluminadas de maneira artificial e
raramente temos uma clara visão das estrelas na amplidão
noturna. Os especialistas nos predizem o tempo e nós pensa­
mos na neve e na chuva, não como descendo do alto, e sim em
termos de “compressões” e de “frentes frias”. Nem sempre
olhamos para os céus ou pensamos neles. Mas não é mera
coincidência de linguagem que na Bíblia a atmosfera e o
espaço são chamados céus. E de esperar que alcemos o olhar
e admiremos a glória, a majestade e o poder do Criador.
Devemos observar a Sua bondade para conosco, dando-nos do
céu chuvas e tempos frutíferos (Atos 14:17). Estes céus nos
falam sobre “o” céu e sobre o Deus do céu. São testemunhas
do Senhor para toda a humanidade.
“O CÉU PROPRIAMENTE DITO”
Mas chegamos agora ao céu propriamente dito. Essa é
uma frase escriturística. É-nos dito que Cristo entrou “no céu
propriamente dito” (Hebreus 9:24, VA): não na atmosfera,
não no espaço, e sim no céu mesmo. O Velho Testamento
chama este lugar de “o mais alto céu”, “os céus dos céus” (2
Crônicas 2:6). Paulo, talvez pensando na atmosfera como o
primeiro céu e no espaço como o segundo, refere-se a ele como
o “terceiro céu” (2 Coríntios 12:2). Não nos é dito onde é este
céu, o céu mais alto, mas a Bíblia o descreve como o lugar de
habitação de Deus. “Atenta desde os céus... a tua santa e
2No original inglês, “dezessete bilhões de milhas”. Nota do tradutor.

105
CÉU E INFERNO
gloriosa habitação”, ora o profeta (Isaías 63:15). O rei Davi
espera habitar “na casa do Senhor por longos dias”, ou “para
todo o sempre” (Salmo 23:6, ARC e ARA). O céu é o lar de
Deus. Nós oramos: “Pai nosso, que estás nos céus”.
Se você tem mente filosófica, talvez faça objeção a esta
idéia. Certamente Deus está presente em toda parte, e não
pode ser limitado nem pelo espaço nem pelo tempo. Sim, isso
é perfeitamente certo. Diz o rei Salomão que os céus e o céu
dos céus não O podem conter (1 Reis 8:27). Não se pode
restringir Deus a lugar algum, não importa quão vasto. Em
que sentido, então, podemos dizer que o céu é o lugar de
habitação de Deus? Se Deus está presente em toda parte, como
então o céu é Seu lar?
Talvez tenhamos uma indicação na palavra “lar”. Lar é
onde podemos estar à vontade. Se você quer conhecer uma
pessoa, deve vê-la em seu lar. Você não vai saber muita coisa
sobre ela no emprego, ou na sociedade, onde ela se apresenta
brilhantemente vestida e com o seu melhor comportamento.
Mas no lar você vê a pessoa como ela realmente é.
Em bora Deus esteja presente em toda parte em Seu
poder e sabedoria, em Sua santidade e justiça, o céu é Seu lar.
E quando dizemos isso, queremos dizer que o céu é onde
Deus Se revela mais claramente, e onde O vemos como Ele
realmente é na plenitude do Seu Ser. John Owen expressa esta
verdade desta maneira: “A razão pela qual se diz que Deus
está no céu é, não porque a Sua essência está contida num certo
lugar assim chamado, mas por causa das mais eminentes
manifestações da Sua glória ali”.3O céu é onde a magnificên­
cia de Deus é revelada expressamente, as Suas perfeições
refulgindo com inimaginável esplendor e beleza. O céu é o
lugar da glória de Deus.
E por isso que às vezes o céu e descrito na Bíblia e em
3 Works (Obras), Vol. 12. Londres: Banner of Truth, 1966, p. 90.

106
Criado para a Glória de Deus
nosso falar diário como “glória”. Os crentes dizem sobre os
seus amigos que morreram que eles “foram para a glória”,
querendo com isso dizer que eles foram para o céu. Diz o sal-
mista: “Tu me guias com o teu conselho e depois me recebes
na glória” (Salmo 73:24, ARA). Ele confia em que Deus o vai
receber no céu. Diz a Escritura que Jesus leva muitos filhos à
glória (Hebreus 2:10). O céu identifica-se tão intimamente
com a glória que os dois termos são quase intercambiáveis.
“Criado para a minha glória.” O céu é a arena da glória.
Por isso Deus criou os céus e a terra. Era um universo de
atordoante variedade e riqueza, o homem e a mulher portado­
res da esplêndida imagem de Deus, o Senhor andando com
eles num intocado companheirismo no jardim pela viração
do dia. Tudo refletia as excelências de Deus. A glória de Deus
refulgia. Era tudo muito bom.
A GLÓRIA DE DEUS DIMINUÍDA
Mas o bem-aventurado estado de coisas não teve con­
tinuidade. O diabo tentou Adão e Eva, e eles lhe deram
ouvidos. Desobedeceram a Deus, caíram da sua alta posição
e o brilho da Sua imagem neles desvaneceu-se. Os seres
humanos foram separados de Deus. A morte adentrou o
mundo. Deus amaldiçoou a terra e as criaturas da terra.
Paulo nos diz que “a criação ficou sujeita à vaidade”, à “servi­
dão da corrupção” (Romanos 8:20,21). A glória de Deus foi
diminuída no mundo que Ele tinha feito.
Que tragédia! Deus criou esta terra e seus habitantes para
a Sua glória, mas, poucos capítulos adiante, em Gênesis, lemos
que “a maldade do homem se multiplicara sobre a terra, e que
toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má
continuamente... A terra porém estava corrompida diante da
face de Deus; e encheu-se a terra de violência (Gênesis 6:5,11).
São palavras que arrebentam o coração. Verdadeiro vagalhão
de pecado e de miséria engolfando a criação. Mas a tragédia
107
CÉU E INFERNO
mais terrível da Queda não é o que ela fez conosco ou com a
terra, e sim o que ela fez com o produto da obra das mãos de
Deus, o furor de destruição que ela despejou no teatro da
glória de Deus.
Observem o m undo em que vivem os. Como está?
Observem os que ocupam alta posição, os poderosos, os
formadores de opinião, a elite. Que tipo de gente eles são?
Seriam, muitos deles, nobres ou puros ou verdadeiros ou
afetuosos? Considerem a crescente corrupção da nossa
sociedade. Não seria absolutam ente óbvio que os seres
humanos “destituídos estão da glória de Deus”? (Romanos
3:23). Observem o nosso planeta com o seu ar e a sua água
poluídos, com as suas inundações, os seus tufões, as suas
guerras, as doenças e a fome.
O que parece é que satanás teve uma grande vitória,
esfacelando o que Deus tinha criado, tornando desprezível a
revelação da glória de Deus. A glória de Deus ainda é visível,
claro. Podemos ver lampejos dela aqui e ali e uma vez ou outra.
Todavia, lamentavelmente diminuta, em comparação!
A glória de Deus foi manifestada; a glória de Deus foi
diminuída; mas também a glória de Deus é restaurada.
A GLÓRIA DE DEUS RESTAURADA
Aqui, louvado seja Deus, é onde entra o céu. Apesar de
todo o pecado e tragédia, há uma esfera criada que permanece
intocável e não poluída, uma esfera na qual a glória de Deus
continua brilhando com beleza transcendental - e essa esfera é
o céu. Satanás foi banido do céu. Nesse lugar repleto de ale­
gria os santos anjos adoram e servem o Senhor em todo o
Seu esplendor e majestade. No céu a glória de Deus sempre
brilhou. No céu a glória de Deus continua brilhando.
É dessa refulgente região que vem o contra-ataque
esmagador. O céu é o lugar do qual a glória de Deus retorna
à terra para tornar a terra e seu povo gloriosos. A história da

108
Criado para a Glória de Deus
Bíblia é a história do céu vindo de volta a este mundo,
assumindo-o e enchendo-o novamente. Está prestes a ocorrer
a revelação e a restauração da glória de Deus, e de maneira
muito mais rica e muito mais maravilhosa em Cristo do que
a que se viu no Éden ou em Adão.
E assim Deus começa a agir na história. Tudo o que Ele
faz é por uma só razão - para a Sua glória. Esse é o propósito
e a paixão de Deus. Ele elege um povo na eternidade. Por
quê? Para a Sua glória. Ele escolhe Israel para a Sua glória.
Ele o liberta do Egito para a Sua glória. Ele o restaura após o
exílio para a Sua glória. Quando você lê o Velho Testamento,
diga a si próprio: “A glória vem, a glória vem!” Em cada página,
em cada período da história de Israel, a glória vem.
Então, afinal, Deus envia Seu Filho. Quando Cristo nasce,
os céus se abrem e uma multidão das hostes celestiais canta
louvores a Deus. Seu tema? “Glória a Deus a Deus nas alturas,
paz na terra, boa vontade para com os homens” (Lucas 2:14).
Diz o apóstolo João que a glória de Deus era visível em Jesus
de Nazaré, “glória como a glória do unigênito do Pai” (João
1:14). Jesus destroçou o diabo, o inimigo da glória. Ele viveu
uma vida perfeita e sofreu morte expiatória para pagar pelos
pecados do Seu povo. Quando Se encaminhava para a cruz,
Ele resumiu a Sua vida e a Sua obra com estas palavras: “Eu
glorifiquei-te na terra, tendo consumado a obra que me deste
a fazer” (João 17:4). Depois da Sua morte e da Sua ressurrei­
ção, Ele retornou à glória da qual tinha vindo.
E a glória do céu, que Cristo tinha e revelou, e pela qual
Ele viveu e morreu, é transmitida a outros. No exato momento
em que as pessoas crêem nEle, pode-se dizer que elas entram
no céu. Os crentes recebem glória e entram na glória. Passa­
mos da morte para a vida, e Deus nos faz “assentar nos lugares
celestiais, em Cristo Jesus” (Efésios 2:6). Depois, lentamente,
passo a passo, crescemos na graça e a glória começa a brilhar
em nós e de nós. Semana após semana, ano após ano, vamos

109
CÉU E INFERNO
sendo “transformados... de glória em glória” (2 Coríntios 3:18)
na imagem de Jesus Cristo. Vemos a glória de Deus na face
uns dos outros, e vemos o céu descendo à terra e a glória se
espalhando. Quando morremos, nossa alma entra im edi­
atamente no céu, na glória.
Depois Jesus virá de novo nas nuvens do céu. Nós
seremos ressuscitados e o nosso corpo será transformado e
será glorioso. Todo o universo criado será renovado, ocasião
em que Deus, mediante Cristo, reconciliará conSigo todas
as coisas. Todos os efeitos do pecado serão removidos e tudo
o que Deus fez será cancelado. A Nova Jerusalém descerá de
Deus, baixando do céu à terra, e haverá novos céus e nova
terra: uma realidade maravilhosa se encherá do resplendor
de Deus, palpitante de vida com a Sua presença imediata e
com a Sua glória transcendental. A glória de Deus será
restaurada completamente.
Ouçam Jonathan Edwards:
No conhecimento, na apreciação, no amor.; no regozijo e
no louvor da criatura a Deus, a glória de Deus é demonstrada
e reconhecida... Os luminosos raios de glória vêm de Deus,
são algo de Deus, e são restituídos ao seu original. E assim,
tudo é de Deus, está em Deus e épara Deus; e Ele é o princípio,
o meio e o fim.4
O céu foi criado para a glória de Deus. É o lugar onde Sua
glória é conhecida mais plenamente.
A NOSSA PERSPECTIVA DO CÉU
O que dissemos até aqui deve servir para lembrar-nos
que o céu não existe primariamente para nosso benefício.
Seu principal propósito não é fazer-nos felizes, oferecer-nos
uma série seleta de prazeres, ou prover-nos uma eternidade
de bem-estar. Ele fará todas estas coisas, como veremos; mas
4 Works, Vol. l,p. 120.

110
Criado para a Glória de Deus
não foi por isso que Deus criou o céu e não é por isso que Ele
trará o céu à sua gloriosa consumação por ocasião da volta de
Cristo. O céu existe para a glória de Deus.
É essencial que isso esteja absolutamente claro, antes de
prosseguirmos. Se não estiver, todo o nosso conceito do céu
estará envenenado pelo egocentrismo. Teremos uma pers­
pectiva degradada, interessados no céu unicamente pelo que
esperamos obter dele. E isso é um erro profundo. Recentemente,
num a discussão pelo rádio, os “painelistas”, todos bem
conhecidos, foram inquiridos sobre o céu. Fato bastante
incomum, todos eles acreditavam no céu e esperavam ir
para lá. Mas nem uma só pessoa mencionou a existência de
Deus. Este era irrelevante para eles. A mesma noção - “Que é
que há nele para mim?” - pode estar presente em muitos de
nós, sem que nos apercebamos disso.
Todavia, temos que expulsar da nossa m ente toda e
qualquer idéia desse tipo como totalmente indigna. E para
a glória de Deus que o céu existe. De fato, na Bíblia, os
termos “céu” e “Deus” às vezes são empregados um pelo
outro. O filho pródigo disse ao pai: “Pequei contra o céu e
perante ti” (Lucas 15:21), querendo dizer com isso que, como
havia desonrado seu pai, igualmente havia pecado contra
Deus. Quando Mateus fala do “reino dos céus”, ele se refere ao
reino de Deus. O céu existe para Deus e, sem Deus, ele não
tem sentido. Jamais, nem por um momento, devemos pensar
no céu à parte dEle. Nossos estudos bíblicos só serão sadios
e seguros se no primeiro plano do nosso pensamento estiver
este conceito: o céu é para Deus e para a Sua glória.
Que impacto isso nos causa? Como algo remoto? Dema­
siado teórico? Temos aqui um valioso teste do nosso estado
espiritual. Você está ansioso por ouvir sobre o que vai gozar
no céu, seus prazeres e deleites. Deus e Sua glória não lhe
interessam muito. Mas, pense um momento. Se você não se
interessa pela glória de Deus, significa que não está interessado
CÉU E INFERNO
na razão pela qual este universo foi criado. Não está interes­
sado na realidade mais im portante que há. Você precisa
prostrar-se diante de Deus e Lhe confessar sua cegueira: “O,
Senhor Deus, sou tão insensível para conTigo que nem sequer
atento para a coisa mais im portante do universo! Estou
envergonhado e triste porque a idéia de Tua glória não me
cativou como devia. Perdoa o meu pecado. Dá-me um coração
renovado e uma nova perspectiva, rogo-Te”.
A PRESENÇA DO CÉU
Se você é crente, pensar na glória de Deus não o emoci­
ona? Não enche você de prazer refletir em que neste mesmo
momento há um lugar onde a glória de Deus está brilhando
perfeitamente, ininterruptamente, sem sombra ou mancha?
Soldados têm descrito como, no meio dos horrores da guerra,
eles se sentem confortados pela lembrança do lar - lugar de
paz e felicidade em que os seus amados estavam seguros.
Saber que o lar existia, seguro e inviolado, os fortalecia para a
batalha. De modo semelhante, podemos fazer uma pausa nas
lutas e nas decepções da vida e louvar a Deus pelo céu que,
nalgum lugar, é, agora mesmo, uma realidade.
E a glória não se lim ita ao reino invisível. Podemos
observar este mundo maculado pelo pecado e alegrar-nos
porque raios da glória celestial estão descendo e propagando
sua luz cada vez mais na vida do povo de Cristo. Uma vez que
o céu foi criado para a glória de Deus, certamente se segue
que recebemos, como adiantamento, algo do céu onde quer
que se veja a glória de Deus. Sua obra de salvação no coração
humano se manifesta poderosamente. Como diz Matthew
Henry: “A graça é a glória iniciada”. Se em seu coração você
tem a graça divina, então a glória já se iniciou em seu coração.
E a glória pode ser vista nos lugares mais estranhos e
mais terríveis. O sofrimento pode ser glorioso, como também
a fraqueza e a morte. Acaso você se lembra como, em Sua

112
Criado para a Glória de Deus
oração, o nosso Senhor predisse a Sua “hora” de sofrimento,
a hora em que Ele ia ser pregado na cruz? “Pai, glorifica o teu
nome” (João 12:28). O Calvário foi uma demonstração da
glória. A Pedro foi dito que ele haveria de glorificar a Deus, e
essa promessa referia-se, não a seus milagres ou à sua prega­
ção, e sim à sua morte (João 21:19). Podemos ver o céu num
leito de hospital, no semblante de um crente que está morrendo.
Podemos ver o céu num cristão fiel que luta contra dificul­
dades diariamente.
De fato, é nosso alto privilégio começar a viver a vida do
céu aqui, na terra, de modo que as pessoas possam ver o céu
em nós, porquanto Paulo diz: “Quer comais quer bebais, ou
façais outra qualquer coisa, fazei tudo para glória de Deus”
(1 Coríntios 10:31). Podemos mostrar o céu onde trabalhamos,
em nosso lar, ou quando nos sentamos e adoramos com a nossa
família. Podemos mostrar o céu pela bondade, pela paciência,
pela honestidade e pela ternura que se vêem em Cristo. “A
graça é a glória iniciada” e, onde quer que se veja a graça, vê-se
a glória de Deus, e ali está o céu.
Podemos, em certa medida, viver no céu agora, pois ele
está em qualquer lugar onde nos encontremos com Deus.
Após uma das maiores experiências da sua vida, Jacó excla­
mou: “Na verdade o Senhor está neste lugar... Este não é
outro lugar senão a casa de Deus; e esta é a porta dos céus”
(Gênesis 28:16,17). Aqui, na terra, todos nós podemos expe­
rim entar o céu diariamente. Estejamos onde estivermos, ali
pode ser verdadeiramente a casa de Deus. Enquanto lê estas
palavras, você pode fazer uma pausa e adentrar a porta do
céu. Roguemos a Deus que a Sua glória em Cristo encha de tal
modo o nosso coração, a nossa mente e a nossa vida que
habitemos no céu, agora e para sempre.

113
7
O Cordeiro E a Lâmpada do Céu
A

Algumas descrições bíblicas do céu são na verdade


difíceis de entender. Isso devido à linguagem simbólica que
é empregada. As realidades aludidas acham-se tão longe da
nossa experiência que Deus emprega metáforas e figuras para
transm itir-nos uma idéia de como será o céu. Vejam, por
exemplo, Apocalipse, capítulo 21, onde “a santa cidade, a nova
Jerusalém”, é retratada como um enorme cubo de dois mil
e duzentos quilômetros1 de comprimento, de largura e de
altura. “A cidade”, diz-nos o texto, era “de ouro puro,
semelhante a vidro puro” (versículo 18). Tinha doze portas de
pérola, e “um grande e alto muro” (versículo 12), feito de jaspe,
com doze fundamentos “adornados de toda pedra preciosa”
(versículo 19). Que descrição intrigante e evocativa! Ela apela
para a nossa imaginação, para o nosso senso do belo e da
maravilha. Mas devemos admitir que, ao mesmo tempo, é
misteriosa. Atrativa, sim, porém não fácil de visualizar.
Contudo, na Bíblia, a maneira favorita de descrever o céu
não é nem um pouco difícil de entender, mas é tão clara que
uma criança a pode entender. No Novo Testamento o céu é
estar com Jesus. Certa ocasião o Senhor estava falando com os
Seus discípulos inquietos, procurando tranqüilizá-los acerca
do futuro que parecia incerto e ameaçador. Como Ele o fez?
Com que detalhes acerca da vida futura Ele procurou aliviar
as suas ansiedades e manter viva no coração deles a esperança?
“Virei outra vez”, disse Ele, “e vos levarei para mim mesmo,
1Cf. Apocalipse 21:16, NVI. Nota do tradutor.

114
O Cordeiro É a Lâmpada do Céu
para que onde eu estou estejais vós também” (João 14:3).
Declaração simples e, no entanto, totalmente abrangente. “No
mundo por vir vocês estarão comigo”, é tudo o que Ele lhes
diz acerca do céu. Mas não são necessários mais detalhes,
pois isso é suficiente. Similarmente, em Sua grande oração
sacerdotal ele faz um pedido em favor dos Seus seguidores:
“Pai, aqueles que me deste quero que, onde eu estiver, tam­
bém eles estejam comigo” (João 17:24). “Comigo” - aqui está
a plenitude da bênção, o supra-sumo da glória. O ladrão
m oribundo que chegou à fé quando pendia de uma cruz
recebeu a mesma promessa, ligeiramente ampliada: “Hoje
estarás comigo no Paraíso” (Lucas 23:43). A mensagem é
clara. “Estarás comigo.” Acima e além de tudo mais, o céu é
estar com Jesus.
É interessante que em parte nenhuma o Novo Testamento
fala dos crentes irem “para o céu” quando morrem. Em vez
disso, eles vão estar “com Cristo”. Paulo escreve da prisão aos
cristãos de Filipos, explicando quão ansioso estava pela vida
futura, “tendo desejo de partir” da presente existência. Mas o
quê, ou quem, é a atração desse reino futuro? Vê-se que não é
tanto o céu propriamente dito. O grande desejo do apóstolo é
“partir, e estar com Cristo, porque isto é ainda muito melhor”
(Filipenses 1:23). “Deixar este corpo” é, acima de tudo mais,
“habitar com o Senhor” (2 Coríntios 5:8). Para Paulo o céu
significa Jesus, tanto assim que o lugar e a Pessoa são quase
igualados. Assim como céu é muitas vezes sinônimo da glória
de Deus, assim também é inextricavelmente identificado com
o Filho de Deus, em quem a glória de Deus é revelada.
Por que será que estar com Cristo é um componente de
tão central importância do céu? Por que João diz da cidade
santa, “o Cordeiro é a sua luz”, ou melhor, “a sua lâmpada”
(Apocalipse 21:23)? Por que esta ênfase à associação entre o
Senhor Jesus Cristo e o mundo por vir? Sabemos que o céu é
Seu lar. Sabemos que Ele desceu do céu à terra e que foi para
115
CÉU E INFERNO
o céu que Ele voltou após a Sua ressurreição. Mas deve haver
algo mais que isso nesta conexão. Exploremos algumas razões
pelas quais Cristo e o céu são interligados tão intimamente.
CRISTO NOS LEVA PARA O CÉU
A prim eira razão é que é Cristo que nos leva para o
céu. Sendo assim, não podemos pensar no céu sem pensar
nAquele que é responsável por estarmos lá. Cristo e o céu
são inseparáveis.
A grande questão prática em todo o nosso estudo do céu
é: como podemos nós, que somos pecadores, chegar a esse
lugar maravilhoso? Como vamos lembrar mais adiante, é ali
que, afinal, a felicidade humana se tornará perfeita. Já vimos
que o céu é a esfera na qual a glória do Senhor brilha com
refulgente esplendor, sendo ali o lugar de habitação do Deus
Altíssimo. Portanto, é certamente óbvio que jamais podere­
mos obter o céu por nossos méritos ou alcançá-lo por nossos
esforços. Pensemos em nossos pecados, inumeráveis e graves.
Eles nos desqualificam completamente. O céu é um lugar
santo, e nada que contamine poderá entrar ali (Apocalipse
21:27). Eu e você o poluiríamos. Pensemos na obscuridade e
nas limitações do nosso entendimento. Como poderia o nosso
indigente espírito suportar o incriado fulgor da presença de
Deus? Criaturas finitas que somos, seriamos aniquilados. A
glória de Deus nos esmagaria. Seriamos desintegrados.
Como podem os supor que, mesmo fazendo o mais
tremendo esforço, poderemos fazer-nos dignos de atravessar
o abismo que há entre a terra amaldiçoada e o céu em que não
há pecado? Todavia, há uma idéia quase universal de que os
seres humanos podem merecer a vida eterna. Essa é a ativa
presunção das outras religiões. É a incoerente esperança do
homem das ruas. O povo acha que é uma coisa natural e pró­
pria que todos vão para o céu. Apesar de todas as evidências
contrárias, eles acreditam que têm direito à bem-aventurança
116
O Cordeiro É a Lâmpada do Céu
eterna. Se o seu destino feliz é questionado, eles se sentem
feridos e ofendidos. Mas o mais simples vislumbre da glória
do céu tornaria essa idéia absurda. Num instante veríamos a
nossa indignidade de estar ali, a nossa total incapacidade de
subsistir naquele santo lugar. É mais fácil um verme aspirar a
ser um cirurgião talentoso do que um pecador poder esperar
conseguir passagem para a glória. Em nós e de nós não há
nenhuma esperança de podermos chegar ao céu, não importa
o que façamos, não importa quão enérgica e persistentemente
lutemos. Isso não acontecerá! Há somente um caminho, e esse
é Jesus Cristo. Ele disse: “Eu sou o caminho, e a verdade e a
vida. Ninguém vem ao Pai, senão por mim” (João 14:6). Ele é
a única vereda possível pela qual podemos entrar no céu.
Sabemos como Ele nos leva para lá. Ele nos redime por
meio da Sua morte. Ele veio à terra para que aqueles que
nEle crêem não pereçam, mas tenham a vida eterna. Ele é o
Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Ele foi punido
por causa dos nossos pecados em Seu corpo no Calvário, quando
fez completo pagamento por nossas transgressões e satisfez a
justiça de Deus. A morte de Cristo na cruz destranca (e abre)
as portas do céu para os pecadores. “O céu”, diz Richard
Baxter, “é fruto do sangue do Filho de Deus; sim, o principal
fruto.” 2
O Senhor leva-nos para o céu também fazendo-nos santos,
equipando-nos para a vida eterna. Ele proveu para todo o Seu
povo uma justiça perfeita. Em Sua natureza humana sem
pecado Ele cumpriu integralmente a lei, e a veste alva e ima­
culada da Sua obediência é dada a cada um de nós quando
cremos nEle. Agora que ressuscitou e está à destra do Pai, Ele
continua a modificar-nos por Seu Espírito. Dia a dia vamos
crescendo na graça, aproximando-nos cada vez mais, em

2 The Saints’ Everlasting Rest (O Repouso Eterno dos Santos), edição


abreviada, Londres, 1842, p. 30.

117
CÉU E INFERNO
nossa nova natureza, da semelhança com Cristo. Não somente
temos direito ao céu por Sua morte, mas também somos
feitos aptos para o céu por Sua justiça.
Em terceiro lugar, Ele nos leva para o céu mantendo-nos
no caminho por meio do Seu ministério atual. Esta é uma
doutrina negligenciada, porém tem os necessidade de
compreender que nenhum de nós poderia continuar, nem
por um segundo, na vida cristã, se o Senhor Jesus Cristo não
estivesse intercedendo, momento a momento, junto ao Pai,
no céu, sustentando-nos por Seu Espírito. Se Ele retirasse de
nós a Sua mão, cairíamos imediatamente. Às vezes falamos
sobre a perseverança dos santos como se isso fosse uma
qualidade natural depositada em nós, uma nova firmeza que
nos permite permanecer fortes na fé. Mas não é esse o caso. A
nossa perseverança é certa porque, em cada segundo da
nossa vida, Jesus nos sustenta e nos guarda. Só perseveramos
porque estamos sendo preservados por Ele.
O nosso misericordioso e fiel Sumo Sacerdote pode
ajudar-nos quando somos tentados. Podemos chegar confi­
antemente ao trono da graça para obter misericórdia e achar
graça que nos ajude em tempo de necessidade. Ele pode salvar
inteira e completamente aqueles que por Ele se chegam a
Deus, visto que Ele vive sempre para interceder por eles
(Hebreus 2:17,18; 4:16; 7:25). Se você é cristão, Ele o está
levando para o céu enquanto você lê estas palavras. Ainda
que satanás queira circundá-lo como trigo, o Senhor Jesus ora
por você para que a sua fé não falhe.
Não seria emocionante e animador pensar no ministério
atual de Cristo, que Ele nos está guardando e nos está levando
para o céu? Foi-lhe dada toda a autoridade. Ele é o Rei do
universo, o chefe soberano sobre todas as coisas para a Sua
Igreja, e assim, porque Ele controla tudo e todos, os Seus
propósitos serão cumpridos inevitavelmente, Sua obra se
provará eficaz. E certo e seguro que cada um dos filhos de
A

118
O Cordeiro É a Lâmpada do Céu
Deus chegará ao céu, pois Ele mesmo diz sobre as Suas ove­
lhas: “Dou-lhes a vida eterna, e nunca hão de perecer, e
ninguém as arrebatará da minha mão” (João 10:28).
“Da m inha mão.” Note-se a implicação. Se você está
numa rua movimentada com uma criança pequena, a mão de
quem está segurando? A criança está segurando a sua mão, ou
você segura a dela? A resposta é óbvia. No momento em que
pudesse, ela correria para o tráfego. Mas você não afrouxará
a sua mão da mão dela. Você segura firmemente a mão dela
com a sua, e sabe que ela está segura. E por isso que Asafe,
um dos salmistas, estava certo de que chegaria ao céu. Não é
que o agarrar-se a Deus por ele era especialmente seguro, mas
sim que ele estava sendo mantido seguro pelo Senhor pode­
roso. “Tu me seguras pela minha mão direita”, disse ele. “Tu
me guias com o teu conselho e depois me recebes na glória”
(Salmo 73:23,24). Graças a Deus por esse pronome da segun­
da pessoa. Onde estaríamos, se tudo dependesse de nós
segurarmos o Senhor? Contudo Ele nos segura. E Jesus que
nos leva para o céu.
Meu pai tinha um amigo milionário. Não fora sempre
milionário, pois na juventude tinha sido pobre. Mas depois
que ele se enriqueceu, a amizade deles continuou. Ele
considerava meu pai seu melhor amigo, o homem que não
queria nada dele, que gostava dele simplesmente por sua
pessoa. Certa ocasião, porém, ele persuadiu meu pai a aceitar
um presente. Eram férias, nas quais ele queria companhia. No
início da década de 1950 os dois cruzaram o Atlântico num
transatlântico para os Estados Unidos, e depois percorreram
aquele país. Foi uma viagem nada comum para aqueles dias,
a experiência de toda uma vida. Posteriormente, quando meu
pai falava daquela viagem, raramente dizia: “Quando eu fui
para a América”. Geralmente dizia: “Quando eu estive com
Noble”. A viagem foi tão completamente um presente e uma
provisão do seu amigo que ele não podia pensar nela sem se

119
CÉU E INFERNO
lembrar daquele que a tornou possível.
E nós jamais devemos pensar no céu sem pensar em Jesus,
pois a Ele o devemos completamente e em todos os aspectos
imagináveis. Nas palavras de Richard Baxter, “Assim, pois,
que a palavra “Merecido” seja escrita no chão do inferno, mas
que na porta do céu e da vida se escreva: “O Presente Gratuito”.3
Como podemos, então, distinguir entre o presente e seu
Doador? Cristo é central porque é unicamente Cristo que
nos leva para o céu.
CRISTO É VISTO CLARAMENTE NO CÉU
Em segundo lugar, Cristo é central na doutrina do céu
porque o céu é o lugar onde, pela primeira vez, vamos vê-10
claramente. Como crentes, neste momento estamos “em
Cristo”. Ligados a Ele numa união íntima e irrompível, somos
“m em bros do seu corpo” (Efésios 5:30). M as, a nossa
experiência nesta terra está longe de ser perfeita, e um aspecto
dessa incom pletitude é que ainda não vemos o nosso
Salvador. O Novo Testamento se refere muitas vezes à Sua
atual invisibilidade. “A fé”, é-nos dito, “é... a prova das coisas
que se não vêem” (Hebreus 11:1). Pedro descreve Cristo como
Aquele que “não o havendo visto, amais” (1 Pedro 1:8). E o
Senhor, pessoalmente, promete bênção aos “que não viram e
creram” (João 20:29). Nós confiamos em Cristo, porém nunca
O vimos.
Há ocasiões em que parece que quase O vemos. Durante
uma crise ou um período de provação podemos clamar ao
Senhor Jesus em nosso desespero e senti-10 chegar
especialmente perto em resposta à nossa oração. Ou quando
somos tocados durante a adoração, quando o Espírito de
Deus opera poderosamente em nosso coração, podemos ser
elevados aos páramos celestiais e o véu que O oculta de nós
3 The Saints ’Everlasting Rest, edição abreviada, p. 33.

120
O Cordeiro É a Lâmpada do Céu
torna-se por um m om ento quase transparente. Samuel
Rutherford estava pensando em ocasiões como essa quando
escreveu: “Quando Cristo vem, fica pouco tempo, mas o sopro
do Seu hálito sobre uma pobre alma é céu na terra”. Nesses
momentos podemos experimentar “o sopro do Seu hálito”,
porém, lamentavelmente, tudo isso é muito raro. Anelamos
ver o nosso Senhor mais claramente e mais perm anente­
mente, anelamos poder penetrar a atmosfera enevoada da fé
e contemplá-10 sem interrupção.
No céu veremos o nosso Salvador, e não mais seremos
descritos como aqueles que “não o havendo visto...”. Jó, um
dos mais antigos vultos do Velho Testamento, foi convencido,
não somente de “que o meu Redentor vive”, mas também de
que “em minha carne verei a Deus” (Jó 19:25,26). Isaías pro­
meteu: “Os teus olhos verão o Rei na sua formosura” (Isaías
33:17). Paulo antecipa uma visão futura mais distinta do que
a que pode ser propiciada atualmente pela fé: “Agora vemos
por espelho em enigma, mas então veremos face a face” (1
Coríntios 13:12). E João, no texto clássico sobre este assunto,
garante-nos que “assim como é o veremos” (1 João 3:2). O céu
é onde veremos Cristo plena e claramente pela prim eira
vez. C ontem plarem os Seu rosto e verem os Sua beleza
incomparável.
Que significa para você saber que verá o seu Salvador
glorificado? Acaso isso desperta uma dor de expectante
ansiedade em seu coração? Será uma experiência formidável.
João era o discípulo amado, o mais íntimo amigo terreno de
Jesus. Ele conhecia bem o Senhor, reclinava-se sobre o Seu
peito, confiava nEle sem reserva. Entretanto, quando viu seu
Senhor no céu, “(caiu) a seus pés como morto” (Apocalipse
1:17). Com Pedro e Tiago, ele tinha captado um incipiente
lampejo da Sua glória, e Pedro tinha falado por todos eles
quando disse: “Bom é estarmos aqui” (Mateus 17:4). Diremos
a m esm a coisa quando virm os o Rei? Até que ponto
121
CÉU E INFERNO
percebemos que é “bom” Ele estar conosco?
O nosso Senhor quer que O vejamos, pois Ele orou: “Pai,
aqueles que me deste quero que, onde eu estiver, também eles
estejam comigo, para que vejam a m inha glória que me
deste” (João 17:24). Ele está expressando um tocante desejo
natural e humano, pois nós queremos que os nossos amigos
e a nossa família nos vejam em nossas melhores condições.
Quando realizamos alguma coisa ou recebemos um prêmio,
gostamos que eles estejam ali. O gozo das crianças quando
recebem prêmios por algum trabalho escolar ou quando estão
competindo num dia de esportes é engrandecido, se sabem
que os seus pais estão observando. Assim aqui é quase como
se o Senhor Jesus estivesse dizendo: “Pai, há tanta coisa a meu
respeito que os meus discípulos nunca viram! Desejo muito
que eles me vejam no melhor que sou e que tenho. Quero
mostrar-lhes quem realmente Eu sou. Quero que Tu lhes
mostres toda a minha glória”.
E quando virmos o nosso Salvador seremos dominados
pelo amor, pela admiração e pela adoração. Adorando-O,
bradaremos: “Faze-me ouvir a tua voz, porque a tua voz é doce
e a tua face aprazível... O meu amado... traz a bandeira entre
dez mil... ele é totalmente belo” (Cantares de Salomão 2:14;
5:10,16 - VA). Para nós, mesmo agora, Ele é “mais formoso
do que os filhos dos homens” (Salmo 45:2). Mas não vemos
nada, em comparação com o que veremos de toda a Sua
formosura e glória, e seremos enchidos de gratidão e de
encantamento. O Cristão Constante de João Bunyan, pouco
antes de morrer, alegra-se, exclamando: “Agora vou ver aquela
Cabeça que foi coroada com espinhos e aquele rosto no qual
cuspiram por minha causa. Antes eu vivia pelo ouvir dizer e
pela fé, mas agora vou para onde viverei pelo ver, e vou estar
com Aquele em cuja companhia me deleito”.
Numa famosa ilustração, Samuel Rutherford compara a
nossa esperança do céu com o prazer de uma noiva no dia do

122
O Cordeiro É a Lâmpada do Céu
seu casamento. Que é que a emociona acima de tudo? Seu
vestido? As flores? Os convidados? Nada disso. “A noiva não
sente, nem em mil graus de diferença, tanto prazer pelo seu
vestido de noiva como por seu noivo; assim também nós, na
vida por vir... não seremos tão tocados pela glória que nos
cercará como pelo alegre rosto e a jubilosa presença do
Noivo”.4 É por isso que quando a Bíblia fala sobre o céu,
fala-nos sobre Cristo. Ele é o desejo do nosso coração. E Ele
que ansiamos ver lá.
CRISTO, O CENTRO DAS BÊNÇÃOS DO CÉU
Mas, uma vez que tenhamos entrado no céu, como será?
Naturalmente seremos gratos. Cristo nos ter levado para o céu
será uma alegria que não há palavras para descrever. Mas, que
acontecerá depois disso? Será possível que, tendo admirado
e dado graças a Cristo, estejamos dispostos a partir para
outras coisas, deixando-0 para trás e dedicando-nos a explorar
todas as maravilhas que o céu contém? Uma vez salvos, dis­
pensaremos o Salvador?
Nunca! Isso é inimaginável. Pois Cristo está no âmago
de todas as bênçãos do céu. Para entender isso temos que
entrar por um momento na esfera da teologia da aliança. Essa
expressão pode parecer intimidante, mas é essencialmente
uma pura e emocionante verdade. A aliança é o meio pelo qual
Deus leva as pessoas ao céu, e no cerne da aliança está a idéia
de um Representante. Deus trata com os seres humanos por
intermédio de um cabeça da aliança, um mediador, alguém
que age em nosso favor.
Uma das ilustrações mais brilhantes da teologia da aliança
é a que foi utilizada pelo teólogo puritano Thomas Goodwin.
Em sua exposição intitulada Christ Set Forth (Cristo Exposto)

4 Carta 21 da obra Rutherford’s Letters (Cartas de Rutherford), edição de


Andrew Bonar.

123
CÉU E INFERNO
ele explica que “Adão foi reconhecido como uma pessoa
com um , pública, não ocupando uma posição pessoal,
unicamente por si e para si, mas como representante de toda
a humanidade que procederia dele”. Nisso ele foi um tipo de
Cristo, que também é uma figura representativa. Por isso o
apóstolo Paulo, em 1 Coríntios 15:47, fala de Adão e de Cristo
como “o prim eiro Adão” e “o segundo homem”, respec­
tivamente. “Paulo fala deles”, diz Goodwin, “como se nunca
tivesse existido nenhum outro homem, nem jamais viesse a
existir nenhum no porvir, exceto estes dois. E por quê?
Apenas porque estes dois, dentre todos os demais, tinham e
têm todos os restantes filhos dos homens pendentes do cinto
deles”.5
Você pode visualizar o quadro que Goodwin desenha
para nós? Ele imagina dois gigantes enormes, um chamado
Adão e o outro, Cristo. Cada um deles está usando uma grande
“cinta”, ou um cinto, de couro com milhões de ganchos nele.
Eu e você, e toda a humanidade, estamos pendentes, ou do
cinto de Adão, ou do de Cristo. Não existe terceira opção, não
há outro lugar para nós. E Deus trata conosco só por meio
de Adão ou só por meio de Cristo. Se você está pendendo do
cinto de Adão, você compartilha a experiência do Adão peca­
dor e decaído, e toda a sua relação com Deus é por meio dele.
Mas se você está pendendo do cinto de Cristo, todos os
procedimentos de Deus com você são por meio de Cristo.
Quando você recebeu Jesus como o seu Salvador, você se
envolveu numa imensa e momentosa transferência. O Todo-
-poderoso desenganchou você do cinto de Adão e o enganchou
no de Cristo. E assim agora você tem um Cabeça ou Chefe
diferente, um novo Mediador, um novo Representante. Você
passou de Adão para Cristo, e, enquanto que Deus anterior­
mente tratava com você só por meio de Adão, agora o faz só
5 IP&r&s (Obras) de Goodwin, edição de James Nichol, 1862,Vol.4.,p. 31.

124
O Cordeiro É a Lâmpada do Céu
por meio de Seu Filho. Você está em Cristo, imutavelmente
e para sempre.
Esta união com Cristo é fundamental em todas as partes
da vida cristã. É por isso que um crente verdadeiro nunca
pode cair permanentemente da fé. Como pode alguém que
está pendendo do cinto de Cristo desligar-se e perder-se? Isso
está ao centro do nosso crescimento em santidade, pois a
santificação se baseia na união com Cristo em Sua morte e
em Sua ressurreição. Esse é o argum ento de Paulo em
Romanos, capítulo 6: “Vocês morreram com Cristo e foram
ressuscitados com Ele. Vocês não estão mais em Adão. Viva­
mos em conformidade com isso”. Por que o povo de Deus
sofre neste mundo? Por causa da nossa união com Cristo.
Como Paulo se expressa a respeito: “As aflições de Cristo
abundam em nós” (2 Coríntios 1:5). A própria morte, esse fator
que separa a alma do corpo, não pode ameaçar a nossa
união com o Senhor, porquanto os crentes “dormiram em
Cristo” (1 Coríntios 15:18). E depois, qual é a origem da nossa
ressurreição? Cristo, que “foi feito as prim ícias dos que
dormem” (1 Coríntios 15:20). A nossa união com Cristo é
fundamental nisso tudo. Toda oração que fazemos e toda
resposta que recebemos é mediante Jesus Cristo. Todas as
bênçãos que Deus concede e todo perdão que obtemos vêm
unicamente por meio de Cristo. Ele é a nossa única vereda
de acesso a Deus.
Pois bem, no céu essa união vai terminar? Irá o Pai rom­
per esse laço e soltar-nos do Salvador? Haverá a possibilidade
dEle dizer: “Bem, foi importante para vocês estarem em Cristo
enquanto estavam na terra, mas isso agora não é mais
relevante”? Fazer essa pergunta é respondê-la. O Pai “nos
abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celes­
tiais em Cristo” (Efésios 1:3). No céu Ele continuará a ser o
nosso Chefe, o nosso Mediador, o nosso Representante. Deus
seja louvado, estaremos pendentes para sempre do cinto do
125
CÉU E INFERNO
Salvador. Nas palavras de Thomas Boston “Desde que a
união entre Cristo e os santos nunca vai se dissolver, mas
eles continuarão sendo Seus membros para sempre, e os
membros não podem derivar sua vida senão da cabeça... por­
tanto, Jesus Cristo permanecerá sendo o laço eterno de união
entre Deus e os santos; dEle fluirá a sua vida eterna”.6
Só chegaremos ao céu porque estamos em Cristo. Mas é
igualmente certo que só permaneceremos no céu porque ali
ainda estaremos em Cristo. Na glória dependeremos dEle,
como sempre. Ele significará até mais para nós no céu do
que significa atualmente.
Ilustremos este ponto com mais duas verdades.
CRISTO CONTINUARÁ A REVELAR-NOS DEUS
Temos a promessa de que os limpos de coração verão
Deus. Mas, que significa ver Deus? Como podemos ver Aquele
que “é Espírito” (João 4:24)? Certamente haverá no céu uma
tão nova consciência da natureza e das perfeições divinas que
agora nem podemos imaginar. Thomas Boston fala disso
como um “ver” mental: “Não com os seus olhos corporais,
com respeito aos quais Deus é invisível (1 Timóteo 1:17),
porém com os olhos do seu entendimento; sendo abençoados
com o mais perfeito, completo e claro conhecimento de Deus
e das coisas divinas de que a criatura é capaz. Chama-se a isso
visão beatífica, e é a perfeição do entendimento”.7E o cerne da
visão será Deus o Pai, porque “também o mesmo Filho se
sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus
seja tudo em todos” (1 Coríntios 15:28).
Todavia, não devemos descartar inteiramente a idéia de
visão física. Tampouco devemos separar a visão do Pai da

6 Human Nature in Its Fourfold State (A Natureza Humana em Seu


Quádruplo Estado), Londres: Banner of Truth, 1964, p. 453.
7Ibid., p. 455.

126
O Cordeiro É a Lâmpada do Céu
presença e da Pessoa do Filho. Pois as evidências parecem
apontar para a continuidade do Seu ministério como revela­
dor da Deidade. No céu Cristo continua sendo a Palavra,
continua sendo o Mediador entre Deus e o homem.
John Owen trata deste assunto em sua obra sobre a
m entalidade espiritual, e os seus comentários desafiam a
capacidade de pensar. A visão beatífica ele define como
“uma tal apreensão da natureza e das perfeições divinas, com
infalível amor, que dá à alma o máximo repouso e a máxima
bem -aventurança que as capacidades hum anas podem
alcançar”. No entanto, esse prospecto pode parecer abstrato
e intangível a muitos crentes. Estas coisas “estão acima das
capacidades dos cristãos comuns - eles não sabem elaborá-las
em suas mentes, nem exercer seu pensamento sobre elas.
Eles não conseguem reduzi-las a uma utilidade presente”.
Contudo, diz ele, “as Escrituras nos dão outra noção do céu
e da glória”. O céu é onde a fé torna-se vista. “Qual seria, então,
o principal objeto atual da fé, em cujo campo a vista deve ter
bom êxito? As excelências infinitas e incompreensíveis da
natureza divina não são apresentadas nas Escrituras como o
objeto imediato da nossa fé.” Antes, o objeto imediato da
nossa fé aqui é a manifestação dessas excelências em Cristo. E
essa fé se tornará vista. Noutras palavras, o objeto da nossa
fé aqui será o objeto da nossa vista depois. “A glória do céu... é
a plena, aberta e perfeita manifestação da glória da sabedo­
ria, da bondade e do amor de Deus em Cristo.” 8Portanto, como
Cristo é o principal revelador de Deus no céu, veremos Deus
supremamente nEle.
João, o apóstolo, nos diz que “a cidade não necessita de
sol nem de lua, para que nela resplandeçam, porque a glória
de Deus a tem alumiado, e o Cordeiro é a sua lâmpada”
(Apocalipse 21:23). O Cordeiro é o portador de luz, e quando
8 Works, Londres: Banner of Truth, 1965, Vol. 7, pp. 336-8.

127
CÉU E INFERNO
olhamos para o Cordeiro vemos a glória de Deus. Cristo é
central no céu porque Ele nos revela Deus. No céu vamos servir
a Deus na manifestação plena e amplíssima das Suas perfei-
ções, especialmente na gloriosa Pessoa do Seu Filho.
A REDENÇÃO ESTÁ NO CENTRO DA GLÓRIA
Uma das partes mais “celestiais” das Escrituras é o livro
do Apocalipse, e Cristo está em toda parte nele. Uma
característica imagem dEle nesse livro é a de “Cordeiro”:
“Depois destas coisas olhei, e eis aqui uma multidão, a qual
ninguém podia contar... diante do trono, e perante o Cordeiro...
Salvação ao nosso Deus, que está assentado no trono, e ao
C ordeiro... O Cordeiro que está no meio do trono os
apascentará” (Apocalipse 7:9,10,17). Cristo, o Cordeiro, está
no centro de tudo: “Estava no meio do trono e dos quatro
animais viventes e entre os anciãos um Cordeiro, como
havendo sido morto” (Apocalipse 5:6). E Ele que recebe a
arrebatada adoração dos “milhões de milhões e milhares de
milhares, que com grande voz diziam: digno é o Cordeiro,
que foi morto, de receber o poder, e riquezas, e sabedoria, e
força, e honra, e glória, e ações de graças” (Apocalipse 5:11,12).
Por que esta ênfase a Jesus como o Cordeiro de Deus?
Porque a redenção dos pecadores está no âmago da glória.
Deus Se revela perfeitamente no céu. Todos os Seus atributos
serão desfraldados em plenitude ali. Mas o Seu propósito
supremo é “mostrar nos séculos vindouros as abundantes
riquezas da sua graça, pela sua benignidade para conosco
em Cristo Jesus” (Efésios 2:7). É para a salvação que “os anjos
desejam bem atentar” (1 Pedro 1:12), e é acima de tudo pela
salvação que eles louvam o Senhor.
Isso é algo insopitável, é de tirar o fôlego! Faz com que
queiramos cair de joelhos em extasiada adoração. A glória
das glórias no novo céu e na nova terra será o amor de Deus
pelos pecadores em Cristo Jesus. O crente mais fraco, mais

128
O Cordeiro É a Lâmpada do Céu
insignificante, um dia vai incentivar os anjos e os redimidos
ao louvor eterno pela graça e misericórdia de Deus. Nós
olharemos uns para os outros e adoraremos Deus, o nosso
Salvador, por Sua bondade incomparável. E isso tudo será
em Cristo, tudo por causa do Cordeiro de Deus que terá tirado
o pecado do mundo.
O que é quase igualmente maravilhoso é refletir em
nossa posição em C risto, nas estupendas altitudes de
bem-aventurança a que Ele nos vai elevar. No céu veremos o
Senhor, nosso Salvador, exaltado acima de tudo e de todos.
Mas essa supremacia, essa tremenda altitude, não O afastará
de nós. Ele não Se tornará Alguém distante, inefavelmente
remoto. Recordemos a nossa teologia da aliança, a nossa
união com Cristo. Estamos “nele”, e em Sua exaltação nós
também seremos exaltados.
Você pensou alguma vez nisso? Você está em Cristo para
sempre. Você estará sempre onde Ele estiver. A glória de
Cristo será a sua glória. E por isso que Ele diz: “Ao que vencer
A

lhe concederei que se assente comigo no m eu tro n o ”


(Apocalipse 3:21). Nas palavras de Paulo, somos “herdeiros
de Deus e co-herdeiros com Cristo” (Romanos 8:17, ARA). O
diabo sabia que estava mentindo quando disse a Eva: “Sereis
como Deus” (Gênesis 3:5). No entanto, de fato ele falou mais
verdadeiramente do que ele próprio poderia ter imaginado.
A distinção entre a criatura e o Criador nunca será dim inu­
ída. Deus sempre será Deus e nós sempre seremos obra das
Suas mãos. Contudo, é um fato que em Cristo somos unidos à
segunda Pessoa da Deidade, somos elevados a uma estupenda
intimidade com o Todo-poderoso.
Por isso Agostinho pôde atrever-se a dizer, a respeito de
Adão e Eva: “O feliz pecado!” Ele quis dizer que em Cristo as
tribos de Adão ufanam-se de mais bênçãos do que as que seu
pai perdeu. Os crentes são elevados a maiores alturas do que
se o homem nunca tivesse pecado, pois Deus desceu à terra,

129
CÉU E INFERNO
fez-Se um de nós e nos tomou para Si.
Jesus Cristo está no âmago da glória do céu. Estamos só
nas fímbrias da possibilidade de compreensão do que está
envolvido em sermos ressuscitados e exaltados nEle. Mas disto
podemos estar certos: no céu Ele estará - e permanecerá - mais
íntimo e mais preciso para nós do que nunca.
A MORTE NOS LEVA A CRISTO
Entender que Cristo é central no céu é de grande valor
para nós aqui e agora, pois faz com que o mundo por vir
venha a ser mais compreensível e mais atraente. O fato de que
estaremos com Jesus é, de longe, a verdade mais importante
acerca do nosso destino futuro. A abordagem feita por Paulo
para consolar e fortalecer os novos crentes de Tessalônica
ilustra isso perfeitamente. Aparentemente eles estavam mais
preocupados com que os seus irmãos na fé que tinham morrido
iam perder as bênçãos da volta do Senhor, e o apóstolo se dispõe
a tranqüilizá-los, “para que não vos entristeçais, como os
demais, que não têm esperança” (1 Tessalonicenses 4:13).
Sua descrição do que acontecerá é bastante pormenori­
zada: “Porque o mesmo Senhor descerá do céu com alarido e
com voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus; e os que
morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os
que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles
nas nuvens, a encontrar o Senhor nos ares” (1 Tessalonicenses
4:16,17). Quase que há mais informação do que se poderia
esperar - o arcanjo, a trombeta etc. Mas, como acontece com a
antecipação que fizemos da continuação da descrição precisa,
Paulo encerra a discussão com um glorioso sumário: “E assim
estaremos sempre com o Senhor. Portanto, consolai-vos uns
aos outros com estas palavras” (1 Tessalonicenses 4:17,18). De
que mais outra informação necessitamos?
E saber que morrer é estar “com o Senhor” nos tranqüiliza
acerca da nossa própria morte, como também acerca da de
130
O Cordeiro É a Lâmpada do Céu
outros. Peter Pan, no livro do mesmo nome de J. M. Barrie,
observa que: “Morrer será uma aventura formidavelmente
grande”. E será, de fato! O prospecto nos atemoriza às vezes.
Em nossa fragilidade e ignorância o céu pode parecer
m isterioso e estranho. Ficam os apreensivos acerca do
desconhecido e o achamos ameaçador. Mas o mundo por
vir não é desconhecido, pois é onde vamos encontrar-nos
com o nosso Salvador.
Se você está em Cristo, não tenha medo da morte. Aquele
que venceu esse “último inimigo” está esperando por você
no outro lado. Tão logo nossa alma passe para a glória, vere­
mos Jesus. Aquele que nos conheceu e nos amou desde o
princípio dos tempos nos acolherá à Sua presença imediata.
Não nos sentiremos estranhos nem fora de lugar, mas sim
profunda e perm anentem ente em casa. Saberemos que
estamos no lugar a que pertencem os e nos sentirem os
seguros para sempre.
PODEMOS EXPERIMENTAR MAIS DO CÉU NA TERRA
Visto que o céu é estar com Jesus, estar com Jesus é o céu.
E podemos estar com Ele agora. Como cristãos, é nosso imenso
privilégio comungar com Cristo diariamente, ouvir Sua voz
na Bíblia, buscá-10 em oração, partilhar com Ele nossas
ansiedades e preocupações, expressar-Lhe o nosso amor e a
nossa adoração. Chegamos a Cristo com pedidos por nossas
necessidades e pelas de outros, e pelo progresso do Seu reino.
Recebemos dEle direção, fortalecim ento e consolo. Não
seria isso prelibar o céu?
Porventura não é trágico que haja cristãos professos que
têm que ser bajulados ou pouco menos que aguilhoados para
que adorem Deus? A “hora tranqüila” da devoção pessoal é
negligenciada por tantos, como se fosse um fardo tedioso! Os
cristãos modernos estão prontos a ocupar-se em quase todo
tipo de atividade religiosa, mas isso de serena comunhão com

131
CÉU E INFERNO
o seu Senhor é considerado mais como um dever do que
como um prazer. Eles esperam ir para o céu, afirmam que o
aguardam anelantes. Todavia, a essência do céu que eles
declaram esperar é essa comunhão com Cristo pela qual eles
mostram tão pouco interesse!
Há subjacente a essa apatia espiritual alguma coisa
profundamente perturbadora. “Se não chegarmos ao céu antes
de morrermos”, dizia Spurgeon, “nunca chegaremos lá depois.”
Deveríamos passar mais tempo no céu do que o temos feito.
Deveríamos aproveitar-nos mais dos meios da graça que Deus
providenciou para nosso benefício, praticar a presença de
Cristo com maior entusiasmo, entrar mais completamente
em comunhão com Ele aqui na terra. Quanto mais rica e mais
profunda for a nossa comunhão com Ele agora, mais celestial
será a nossa presente experiência e mais bem preparados
estaremos para a glória. Isaak Walton escreveu sobre o
puritano Richard Sibbes:
Sobre este abençoado homem, basta fazer-lhe este elogio:
O céu estava nele antes dele estar no céu.
Isso deveria ser verdade a respeito de todos nós. Não
temos que ficar esperando! Podemos viver nos subúrbios do
céu hoje. E quão diferentes isso nos faria! Quanto é que o céu
significa para você? O seu presente relacionamento com
Cristo dá a resposta.
NINGUÉM PODE CHEGAR AO CÉU SEM CRISTO
Mas talvez você esteja numa categoria totalmente dife­
rente. Você acredita que existe um lugar como o céu e deseja ir
para lá. Você não é cristão. Que dizer, você nunca se arrepen­
deu dos seus pecados e nunca invocou Jesus para que Ele o
salvasse. Você nunca O recebeu com fé como seu Senhor.
Todavia, você espera que, de algum modo, de um jeito ou de
132
O Cordeiro É a Lâmpada do Céu
outro, você vai chegar ao céu.
Essa é uma esperança comum. Entretanto, será que você
não pode entender agora quão absurda e sem base é essa
esperança? Já vimos que o céu e Cristo são, em m uitos
aspectos, quase sinônimos. Ele é central ali, a essência da
glória do céu; foi Ele que assegurou o céu para os pecadores,
é Ele que revela Deus no céu. Se Ele fosse uma figura peri­
férica do mundo por vir, talvez fosse possível conceber o
céu sem Ele. Mas “o Cordeiro é a sua lâmpada” (Apocalipse
21:23).
Você pode visualizar a si próprio explicando a Deus por
que Ele deve deixar você entrar no céu? “Não me interessei
por Teu amado Filho”, você dirá. “Eu o repudiei, fiz pouco
caso da Sua morte, fechei meus ouvidos para os Seus convi­
tes, desconsiderei suas advertências. Jesus Cristo não significou
- nem significa - nada para mim. No que me concerne, ter
enviado o Teu Filho à terra era desnecessário, foi um vão
desperdício. Contudo, noutros aspectos eu tentei ser uma
pessoa decente. Por algum tempo eu fiz o melhor que pude.
Portanto, espero que Tu, ó Deus, me permitas entrar no céu
do Cristo que eu desprezei e recusei.”
Porventura essa idéia não faz você estremecer? Você
não consegue sentir quão grosseiramente blasfemas essas
palavras soam? Todavia, essa é, na essência, a alegação do
incrédulo, e nada poderia ser mais estulto. Sem Cristo não
há esperança do céu. Portanto, venha a Ele agora. Clame aò
Salvador dos pecadores que mude e perdoe você, e que o receba.
Se você pedir isso de todo o seu coração, Ele o fará, e você
terá o céu.

133
8
Seremos Semelhantes a Ele
Pelo que parece, eu falei em público pela primeira vez
quando tinha dois anos de idade. Minha mãe se lembra disso
vividamente. Estávamos tendo um tipo de festa, estando
presentes meus avós, minhas tias e meus tios, e só eu de criança.
Foi um pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial,
quando os alim entos, principalm ente o açúcar, estavam
racionados no Reino Unido, e o melhor quitute da refeição,
posto no centro da mesa, era um prato de bolinhos de passas.
Eu comi devagar meu pão com manteiga, mas todos os outros,
para meu desânimo, acabaram rapidamente o deles e avan­
çaram nos suculentos bolinhos, que davam água na boca. Um
por um eles foram desaparecendo do prato central. Durante
uma pausa na conversa, ouviu-se uma pequena e esganiçada
voz gritar: “E eu?”
Alguns da minha família fazem a ultrajante afirmação
de que nada mudou através dos anos e que aquela criança era
na verdade o pai do homem - guloso e egoísta até à alma.
Contudo, não é nada desarrazoado uma criança, ou na verdade
qualquer pessoa, perguntar, numa variedade de circunstân­
cias? “E eu?”
Talvez nos sintamos como se estivéssemos fazendo essa
pergunta quando pensamos no céu. Nós aprendemos que é no
céu que a glória de Deus é revelada supremamente. Vimos
algo sobre a centralidade, ali, do Senhor Jesus Cristo. Mas, e
eu? E você? Que significa o céu para nós?
O apóstolo está antecipando avidamente as alegrias do
céu quando escreve que “as aflições do tempo presente não
134
Seremos Semelhantes a Ele
são para comparar com a glória que em nós há de ser reve­
lada” (Romanos 8:18). Ao compartilharmos o seu prazer
nessa prospectiva, facilmente podemos passar por alto as
duas pequenas e admiráveis palavras que ocorrem nessa
frase: “em nós”. A glória será revelada “em nós”, em mim, em
você e em cada um dos que pertencem a Deus. A revelação
da glória no céu será mais extensa do que a que se vê em
Deus o Pai e o Filho e o Espírito Santo. Os crentes, seres
hum anos redimidos, também serão extraordinariam ente
gloriosos. Será glória de Deus, claro, não nossa. Ele no-la
conferirá e nós simplesmente a refletiremos. Não será para
nosso crédito, de forma alguma. Contudo, será em nós que
a Sua glória será revelada.
Pensemos agora em como seremos gloriosos no céu. Em
sua Primeira Epístola, João, o discípulo amado, dá expressão
clássica à maravilha do nosso destino. Ele reconhece que há
muita coisa sobre o nosso estado futuro que ainda não sabe­
mos: “Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é
manifestado o que havemos de ser” (1 João 3:2). Instintiva­
mente sabemos que isso é verdade. As plenas dimensões da
nossa existência celestial ainda não nos foram explicadas, e,
de qualquer form a, se tal revelação nos fosse dada no
presente, não poderíamos entendê-la. Mas em meio a uma
deliciosa incompletitude de conhecimento, há uma verdade
da qual podemos estar certos, e assim o apóstolo continua
e faz esta estupenda declaração: “Mas sabemos que, quando
ele se manifestar, seremos semelhantes a ele”. “E eu? E
nós?” Seremos semelhantes ao Senhor Jesus Cristo quando
O virmos como Ele é.
“Seremos semelhantes a ele.” Que significa isso? Con­
sideremos o que a semelhança com Cristo envolve quanto à
nossa alma em primeiro lugar, e, depois, quanto ao nosso
corpo.

135
CÉU E INFERNO
A NOSSA ALMA É APERFEIÇOADA
“As almas dos crentes”, diz o Breve Catecismo, “na hora da
morte são aperfeiçoadas em santidade” (Resposta 37). O verbo
aperfeiçoar é tomado de Hebreus, capítulo 12, onde o escritor
descreve a gloriosa companhia do céu em cuja comunhão
entramos toda vez que nos engajamos na adoração: “Chegas-
tes... à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial... e a Deus, o
juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados, e a
Jesus...” (Hebreus 12:22-24). Esses espíritos dos justos, homens
e mulheres, estão na presença imediata de Deus, e o texto nos
diz que eles foram “aperfeiçoados”.
É óbvio que só pode ser esse o caso. O céu é um lugar de
pureza transcendental. “Não entrará nela (na cidade celes­
tial) coisa alguma que contamine” (Apocalipse 21:27). As
almas dos seres humanos pecadores contaminariam o céu e,
todavia, nos é assegurado que tais almas entraram na glória,
o que implica que elas têm que ter sido santificadas com­
pletamente. Sem santidade “ninguém verá o Senhor” (Hebreus
12:14), e, todavia, os redimidos O vêem. Isso só é possível
porque eles foram tornados perfeitam ente santos. A
transformação ocorre à morte, quando a alma do crente vai
estar com Cristo.
Esta é uma verdade que nos enche de júbilo. O propó­
sito de Deus para o Seu povo é que sejamos “santos e
irrepreensíveis diante dele em amor” (Efésios 1:4), e assim,
quando as nossas almas estiverem prestes a entrar em Suja
presença, serão purificadas completamente, lavadas de todo
traço de pecado. É por isso que sobre os m ártires somos
informados de que “foram dadas a cada um compridas vestes
brancas” (Apocalipse 6:11). A veste branca é um sinal da sua
isenção do pecado. Eles “lavaram os seus vestidos e os
branquearam no sangue do Cordeiro” (Apocalipse 7:14).
Quando morrermos, as nossas almas serão aperfeiçoadas
em santidade. Reflitamos nisso por um momento.

136
Seremos Semelhantes a Ele
PECADO, NUNCA MAIS
Três palavras apenas, mas quanto significado elas con­
têm! Suponha que você pudesse acordar amanhã cedo e não
ver nenhum a mudança no mundo, exceto esta - pecado,
nunca mais. Acaso as coisas seriam muito diferentes? Natu­
ralmente! Todo o planeta seria transformado, a vida seria
alterada com pletam ente em todos os aspectos, seria
irreconhecível em relação ao que tinha sido. Essa é a imensa
revolução que acontecerá em todo cristão no momento em
que as nossas almas deixarem os nossos corpos e forem
aperfeiçoadas em santidade. Pecado, nunca mais. Certamente,
nas palavras de Hamlet, de Shakespeare, essa é “uma con­
sumação que se deve desejar fervorosamente”.
Não seria verdade que, para nós, crentes, o pecado é o
maior fardo, a tristeza mais profunda? Nunca pude entender
por que existe tanta confusão sobre a correta interpretação do
capítulo sete de Romanos. Não seria óbvio que ali Paulo
descreve o nosso coração, as nossas lutas diárias como cristãos?
“Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse
faço... o mal está comigo... Miserável homem que eu sou!”
(Romanos 7:19,21,24). Haveria alguma coisa complicada ou
incomum nessas palavras? Não seria isso tudo uma declara­
ção muito acurada da nossa triste experiência, tão freqüente?
“Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós
mesmos, e não há verdade em nós” (1 João 1:8).
Como povo de Deus, já fomos libertados de muito erro
gritante que cometemos. Não somos ladrões ou assassinos
ativos. O nosso falar obviamente não é cru ou blasfemo.
Levamos uma vida razoavelmente honesta. Pode ser que
muitos dos nossos conhecidos pensem que somos pessoas
bondosas, de caráter admirável. Mas nós podemos penetrar
o nosso coração, e o conhecemos melhor.
Há uma horrível corrupção dentro do melhor de nós.
Somos egocêntricos, im puros, im pacientes, desonestos,

137
CÉU E INFERNO
insinceros. Podemos ser cruéis com aqueles que conhecemos
melhor, frios com os nossos filhos, escolher deliberadamente
as palavras mais bem calculadas para ferir o nosso cônjuge,
mostrar-nos inclementes para com algum ponto fraco de um
amigo do qual ficamos sabendo devido a uma longa intim i­
dade. E, nessa momentânea perda de equilíbrio emocional,
de fato queremos ferir; agrada-nos ver o ar de dor no rosto de
um ser amado. Quando nos sentimos maltratados, podemos
abrigar ressentimentos durante horas ou mesmo dias. As
vezes, quando estamos no erro e sabemos disso, somos
orgulhosos demais para dizer simplesmente: “Sinto muito!”
Proferir tais palavras seria um sufoco para nós. E somos
filhos de Deus!
Também não somos nem um pouco melhores quando
lidamos com as coisas mais santas. Lemos a Bíblia, e a ver­
dade que deveria derreter o nosso coração não nos comove.
Oramos pelos perdidos porque é nosso dever cristão, porém
na realidade pouco nos importamos com eles. Fingimos
adorar o Senhor enquanto a nossa mente está noutras coisas,
de modo que, um momento depois de entoarmos louvores
a Deus, mal lembramos as palavras que cantamos. Temos
inveja de outros cristãos. Em vez de nos alegrarmos pelos
dons e graças que Deus lhes deu, ficamos com inveja e
tentamos derrubar os nossos irmãos e as nossas irmãs. Os
pregadores, que têm o privilégio de proclamar o evangelho de
salvação, justo no ato de pregar podem estar felicitando a si
mesmos por realizarem uma apresentação com petente.
E xteriorm ente estam os apresentando o Salvador, mas
interiormente estamos ocupados em cevar o nosso pequeno
e deteriorado ego.
Que coisa vil! Quando pensamos nisso, ficamos enver­
gonhados e detestamos a nós mesmos. Sabemos que fomos
perdoados em Cristo. Regozijamo-nos na certeza de que o Seu
sangue continua a purificar-nos de todo pecado. Mas há em

138
Seremos Semelhantes a Ele
nosso coração uma ferida que não sara, há em nossa experiên­
cia diária uma dor que não pára de latejar. Juntamente com
Paulo, cada um de nós deve admitir que “o mal está comigo”.
“Pois já as minhas iniqüidades ultrapassam a minha cabeça:
como carga pesada são demais para as minhas forças. As minhas
chagas cheiram mal e estão corruptas, por causa da minha
loucura. Estou encurvado, estou muito abatido, ando lamen­
tando todo o dia. Porque as minha ilhargas estão cheias de
ardor, e não há coisa sã em minha carne. Estou fraco e muito
quebrantado; tenho rugido por causa do desassossego do meu
coração” (Salmo 38:4-8).
Até o céu. Até chegarmos ao lugar em que não haverá mais
pecado. Nunca mais quebraremos nenhum dos mandamentos
de Deus. Nunca mais falharemos com o nosso Salvador, nem
causaremos dor a ninguém. Nunca mais teremos que pedir
perdão. Deus nos predestinou para sermos “conformes à
imagem de seu Filho” (Romanos 8:29), e é o que vamos ser. A
perfeição sem pecado não é fantasia, embora nunca a concre­
tizemos nesta vida. Mas no céu vamos estar livres do pecado
para sempre, imutavelmente voltados para o bem. A nossa
oração, elevada tantas vezes e com tanta angústia aqui, será
afinal plenamente respondida - “Livra-nos do mal”.
As nossas almas perfeitas gozarão uma nova intimidade
de jubilosa comunhão com Deus. Saberemos pela primeira
vez o que significa “amá-10 com um coração sem pecado”.
Não haverá nem sombra da tristeza do arrependimento em
nossas almas. Entre nós e o nosso Senhor não haverá nenhuma
barreira, nenhum pecado, não haverá nenhuma nuvem entre
nós e Ele.
OS NOSSOS PECADOS SÃO CO N D EN A D O S À
DESTRUIÇÃO
Porventura isso não é imensamente animador em nossa
presente luta contra os nossos pecados? Estamos cansados

139
CÉU E INFERNO
deles. Algum opressivo pecado se enroscou nas fibras da
nossa personalidade e não parece que vamos livrar-nos dele.
Há uma tentação particular na qual sempre caímos. Apesar
das nossas orações e das resoluções que tomamos, ela sempre
nos derruba. Temos consciência de que há em nosso caráter
muita coisa suja e falsa, imprópria para os olhos de pessoas
decentes. As vezes somos tentados a ver-nos como irremedi­
avelmente fracassados e concluímos em desespero que jamais
vamos mudar. Pode ser que tenhamos duvidado da nossa
salvação. Todavia, o fato de que vamos ser perfeitos no céu é
um toque de clarim cham ando-nos para a coragem e a
esperança. “Coragem, filhos de Deus!”, é o que nos diz. “Esses
seus pecados são temporários. A sentença de morte deles foi
pronunciada, e eles já foram destinados à destruição. No
momento em que suas almas entrarem no céu, os seus peca­
dos deixarão de existir - serão apagados, extintos, lançados nas
profundezas do mar.”
Conta-se a história de um gatuno, no Japão, que se tornou
cristão. Ele praticamente não sabia nada sobre a Bíblia, mas
no primeiro dia do Senhor1depois da sua conversão, foi a um
local de culto. A semana toda ele estivera lutando contra o
seu hábito de roubar - hábito de toda a sua vida até então. Ele
compreendeu que, como nova criatura, tinha que desistir
disso, mas não estava certo de que conseguiria. Roubar tinha
sido o seu modo de vida e ele não conhecia outra maneira de
passar o tempo. Como conseguiria mudar os padrões de
comportamento por tantos anos arraigados? Na parede do
edifício da igreja à qual ele foi estavam pintados os Dez
Mandamentos. O neófito nunca ouvira falar deles. Entre­
tanto, quando ia entrando, as primeiras palavras em que os
seus olhos caíram foram: “Não furtarás”. Em sua ignorância
1 É interessante essa expressão. Lembre-se o leitor de que o primeiro dia
da semana em inglês é Sunday (literalmente, dia do sol) e para alguns, the
Lord’s day (domingo = dia do Senhor). Nota do tradutor.
140
Seremos Semelhantes a Ele
ele não entendeu que se tratava de mandamento, e o tomou
como uma promessa. Seu rosto encheu-se de alegria e ele deu
graças ao Senhor em seu íntimo por esta certeza de que ele
seria livrado do seu pecado.
Estava ele inteiramente errado? Não seria verdade que,
num sentido, cada um dos mandamentos de Deus também é
uma promessa? Claro está que estas leis apresentam o padrão
que devemos colimar. Mas acresce que eles são uma emocio­
nante descrição do que Deus intenta fazer conosco. Os
mandamentos nos dizem, não somente o que Deus requer
de nós, porém também o que Ele planeja para nós e vai fazer
em nós. Eles são uma descrição do nosso caráter no céu.
Uma vez ali, não teremos outros deuses diante do Senhor;
não tomaremos o Seu nome em vão; não mataremos nem
roubaremos; não daremos falso testemunho. No céu amare­
mos o Senhor de todo o nosso coração, alma, entendimento e
força, e amaremos o nosso próximo como a nós mesmos.
Devemos apaixonar-nos pelos M andam entos. Devemos
abraçá-los e regozijar-nos neles, tendo sempre em mente que
eles não somente são a nossa meta atual, mas também o
anteprojeto do nosso destino. Eles dão testemunho do que o
Senhor vai fazer por nós na glória. Seremos isentos de pecado.
Que incentivo à santidade isto deveria ser!
PREPARANDO-NOS PARA O CÉU
Se pretendem os passar férias num país estrangeiro,
fazemos os preparativos adequados. Alguém que nos visi­
tasse na véspera da nossa partida notaria as malas meio feitas,
os passaportes e as passagens de avião, os guias turísticos e os
frascos de protetor solar. Não seria preciso ser um gênio para
concluir que estávamos planejando viajar para o exterior,
pois por toda parte haveria sinais da nossa partida. De igual
modo, deveria ser óbvio para os que nos visitam que nos
estamos preparando para mudar-nos, para ir viver noutro lugar.

141
CÉU E INFERNO
Seria esse o caso? Porventura os nossos amigos podem ver
evidências em nossa conduta diária de que nos estamos
preparando para o céu? Vê-se claramente que não planeja­
mos estabelecer-nos na terra, mas que temos em vista um
destino mais glorioso?
Uma importante maneira de preparar-nos para o céu é
declarar guerra ao pecado. Este é infenso à nossa nova natu­
reza, grotescamente impróprio à luz do nosso destino. Nós
morremos com Cristo e fomos ressuscitados nEle para uma
novidade de vida. Ter consciência disso deveria influenciar-
-nos profundam ente. Por que nos degradamos, por que
negamos a nossa identidade envolvendo-nos estultamente
com o pecado? Nas palavras do apóstolo, “qualquer que nele
tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como também ele é
puro” (1 João 3:3). A esperança do céu leva inevitavelmente à
busca da santidade. Como Lenski comenta: “Não há exceção.
Quem pára de purificar-se deixou cair do seu coração esta
esperança”.2
Toda a nossa maneira de viver deve ser dominada pela
antecipação do céu. Isso deve influir em nossas atividades, em
nossas ambições, em nossa recreação e em nossas amizades,
como também em nossa maneira de gastar nosso dinheiro e
nossas forças. A vida terrena, por mais longa que seja, é curta
demais para nos prepararmos para a eternidade.
Em particular, a nossa consciência de um futuro sem
pecado nos ajuda a encarar a morte sem temor, pois sabemos
que ela significa estar “com Cristo”, o que “é ainda muito
melhor” (Filipenses 1:23). Devemos formar o hábito de figurar
as nossas almas na glória, lembrando que, para aqueles para
os quais “o viver é Cristo”, “o morrer é ganho” (Filipenses
1:21). Nas palavras de um velho comentarista, “Para viver,
2 R. C. H. Lenski, Interpretation of 1 & 2 Peter, 1, 2 & 3 John and Jude
(Interpretação de 1 & 2 Pedro, 1,2 & 3 João e Judas), Minneapolis: Augs-
burg Fortess Publishers, 1930, p. 453.

142
Seremos Semelhantes a Ele
Cristo; para morrer, mais Cristo”. Esta alegre percepção
arranca de nós o aguilhão do nosso último inimigo.
E essa consciência nos consola quanto aos nossos entes
queridos que entraram no céu antes de nós e que, neste pre­
ciso momento, estão se regozijando na presença do Senhor
Jesus. Não podemos evitar a dor do luto. Nós nos entristece­
mos, às vezes em verdadeira agonia, porém não “como os
demais, que não têm esperança” (1 Tessalonicenses 4:13).
Pensem neles agora na glória. Tentem imaginar o êxtase da
santidade perfeita. Se Deus Se oferecesse para trazê-los de volta
a você, você aceitaria? Seria realmente cruel. Lamentamos
nossas perdas, mas a nossa tristeza é tragada por um gozo
maior.
João Bunyan, em O Peregrino, conta-nos como Cristão e
Esperançoso entraram na cidade celestial: “Agora vi em meu
sonho que estes dois homens passaram por aquela Porta; e,
vejam só, quando entraram foram transfigurados; e suas
vestes brilhavam como Deus... e, quando vi isso, queria estar
entre eles”. Os nossos entes queridos estão fora e além do
pecado. Estão perante o rosto de Deus para sempre. Se
pudéssemos ver como eles estão neste momento, querería­
mos estar entre eles.
Apesar disso tudo, glorioso quanto em bora seja, é
incom pleto, razão pela qual os teólogos estão certos em
descrever a presente existência dos crentes que morreram
como “estado intermediário”. Pois os mortos em Cristo ainda
não foram redimidos completamente. Sua presente condição
vai mudar para melhor quando for alcançado o estágio final
da salvação. A isso agora vamos dar atenção.
NOSSOS CORPOS RESSUSCITADOS EM GLÓRIA
Seremos semelhantes a Cristo, não só em que as nossas
almas serão aperfeiçoadas em santidade, mas também em que
os nossos corpos serão ressuscitados em glória.

143
CÉU E INFERNO
A idéia da imortalidade da alma não é distintivamente
cristã. Durante muitos séculos antes de Jesus, os egípcios, os
persas e os gregos partilhavam com os judeus a convicção de
que há uma parte imaterial no homem, uma parte que nunca
morre. Mesmo em nossa era materialista a maioria tem uma
crença vaga e, contudo, persistente num “ser pessoal inte­
rior” imperecível, uma parte de nós que continua a existir
depois da sua separação do corpo.
O que é peculiar à fé escriturística é o ensino de que os
nossos corpos também sobreviverão à morte. Na afirmação de
uma ressurreição física, a Bíblia é única, e, apesar disso,
m uitos crentes têm, no máximo, uma tênue idéia desta
doutrina. A culpa dessa hesitação funda-se em parte num
antigo filósofo grego.
Platão (427-347 a.C.) influenciou o pensamento humano
num a variedade de aspectos durante quase dois m il e
quinhentos anos, mas em nosso presente contexto ele é
significativo pela maneira como desvaloriza o material em
favor do espiritual. Anthony Hoekema explica que, no ensino
de Platão, “A alma é... considerada uma substância superior,
inerentemente indestrutível e portanto imortal, ao passo que
o corpo é de substância inferior, m ortal e condenado à
destruição total. Daí o corpo é imaginado como um túmulo
para a alma, a qual é realmente melhor sem o corpo”.3 O
memorável lema de Platão soma sema - “o corpo um túmulo”,
capsula esta idéia. Ele ensinava que os seres humanos são
almas imortais aprisionadas em corpos de carne, inferiores.
Só o que é espiritual é que vale a pena. Tudo o que é material
e físico finalmente será deixado para trás, descartado para
sempre.
Desafortunadamente, este veneno de antimaterialismo

3 A. A. Hoekema, The Bible and the Future (A Bíblia e o Futuro), Grand


Rapids, Eerdmans, 1972, p. 87.

144
Seremos Semelhantes a Ele
im pregnou o pensam ento cristão, de modo que m uitos
crentes são inconscientemente platônicos. Suas idéias do
“mundo”, da “carne”, e até da “alma” foram distorcidas por
uma hiperespiritualidade instintiva. Os escritores de obras
sobre devoção esperam ir para a glória porque as suas almas
estarão afinal livres para adorar desembaraçadas da casa-prisão
da carne. Os evangelistas falam em salvação de “almas” mais
vezes do que em redenção de “pessoas”, de “homens”, de
“mulheres”. Contudo, essa hiperespiritualização revela uma
falsa idéia do céu e negligencia a doutrina cristã fundamental
da ressurreição do corpo. E da máxima importância apegar-
-nos à realidade da carne humana ressurreta e glorificada.
Sim, pois Platão estava completamente errado em afirmar
que só a alma é boa e que o que é material é necessariamente
inferior. A Bíblia é incondicionalmente contra esse tipo de
dualismo, e nós devemos atribuir pleno peso à declaração de
que “viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito
bom” (Gênesis 1:31). A matéria era boa quando saiu das mãos
de Deus. Ele não dividiu a realidade em espiritual e material.
Ele fez tudo, fez tudo muito bom, tudo de valor eterno.
E por isso que dizemos que o ser humano é uma unidade
A

físico-espiritual, não uma alma permanente num corpo tem­


porário. “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e
soprou em seus narizes o fôlego da vida; e o homem foi feito
alma vivente” (Gênesis 2:7). O homem não é sua alma. O pó
da terra e o sopro da vida foram postos juntos para formarem
quem somos.
Quando Deus enviou Seu Filho para morrer por nós,
foi por nossos corpos como também por nossas almas. Jesus
Cristo veio para redimir, não só o “sopro da vida”, mas também
“o pó da terra”. Ele comprou os nossos corpos com o Seu san­
gue. “O nosso corpo é o templo do Espírito Santo...; fostes
comprados por bom preço; glorificai pois a Deus no vosso
corpo” (1 Coríntios 6:19,20). Note-se que Paulo não diz “a

145
CÉU E INFERNO
vossa alma foi comprada”, mas, “fostes comprados”. Deus deve
ser glorificado em nossos corpos, e, quando a nossa salvação
estiver completa, os nossos corpos, bem como as nossas almas,
estarão no céu.
Como podemos estar certos disso? Porque estaremos em
Cristo, e Seu corpo foi ressuscitado dos mortos. Acerca disso o
Novo Testamento é enfático, quase chocante em sua terre-
nalidade. “Vede as minhas mãos e os meus pés... apalpai-me”,
foi o convite de Jesus a Seus discípulos (Lucas 24:39).
“Toquem-me com os seus dedos e sintam a textura da
minha pele, a infra-estrutura dos meus ossos.” João afirma
que “as nossas mãos tocaram... a Palavra da vida” (1 João 1:1).
Ele estava escrevendo a platônicos de certo tipo, gente que
não cria na encarnação, nem na ressurreição do corpo, e o
seu testemunho foi em função da carne e foi básico: “Peguei
no Filho de D eus com m inhas próprias mãos suadas”.
A ressurreição foi física a esse ponto!
Assim como o corpo de Jesus Cristo foi ressuscitado do
túmulo, assim também os nossos corpos serão ressuscitados,
“cada um por sua ordem: Cristo as primícias, depois os que
são de Cristo, na sua vinda” (1 Coríntios 15:23). Isso vai cum­
prir o propósito original de Deus, quando Ele disse: “Façamos
o homem à nossa imagem”, e a imagem era o corpo, como
tam bém a alma. No céu essa im agem será restaurada
completamente.
O MESMO E, CONTUDO, DIFERENTE
A ressurreição do corpo - que estupendo evento será na
história da redenção! Acontecerá simultaneamente com todos
os crentes no momento em que o Senhor voltar. “Todos sere­
mos transformados, num momento, num abrir e fechar de
olhos, ante a última trombeta; porque a trombeta soará, e os
m ortos ressuscitarão in co rru p tív eis, e nós serem os
transformados” (1 Coríntios 15:51,52).

146
Seremos Semelhantes a Ele
Como serão os nossos corpos ressurretos? Precisamos ter
o cuidado de não fazer uma analogia que assemelhe demais o
que vai acontecer conosco ao que aconteceu com o corpo
ressurreto do nosso Salvador, pois isso é descrito muito
sucintamente nos Evangelhos. Pois, enquanto que nós sere­
mos ressuscitados, transformados e introduzidos no céu
numa experiência instantânea, isso parece que aconteceu com
o nosso Senhor em dois estágios. Durante quarenta dias após
a ressurreição, Seu corpo permaneceu neste universo de tempo
e espaço, ainda adaptado, até certo ponto, à vida na terra. Será
que houve uma alteração adicional em Seu novo corpo em
Sua ascensão? Suas mãos continuam feridas? Continua a cica­
triz em Seu lado? (João 20:27)? Não sabemos. Mas estamos
certos de que, seja como for o Seu corpo agora, os nossos
corpos serão semelhantes.
Serão os mesmos corpos habitados por nossas almas na
terra. Paulo acentua que estes nossos corpos atuais, muito
embora “mortais” e “abatidos”, serão ressuscitados pelo poder
do Espírito. “Aquele que dos mortos ressuscitou a Cristo
também vivificará os vossos corpos mortais. Esperamos o
Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que transformará o nosso corpo
abatido” (Romanos 8:11; Filipenses 3:20,21). Deus nunca
desiste. No que se refere a Seu povo, Ele não quer deixar que
satanás tenha a menor vitória que seja. O corpo com o qual
fomos criados foi danificado pelo pecado, foi corrompido pela
influência do diabo. Mas Deus não o abandonará e começará
de novo. Ele nunca permitirá que satanás se gabe de que
conseguiu arruinar irrem ediavelm ente pelo menos uma
coisa pela qual Cristo morreu, colocando os nossos corpos fora
do alcance da Sua obra redentora e compelindo Deus a
providenciar substitutos. Não, Deus derrotará satanás em todos
os aspectos e transformará o próprio corpo da nossa mortali­
dade e humilhação em algo glorioso e eterno. Os nossos corpos
- estes corpos atuais - serão transformados.

147
CÉU E INFERNO
Contudo, ao mesmo tempo, eles serão profundamente
diferentes. A analogia de Paulo é a da semeadura, onde a
identidade essencial está ligada à transformação total. Semeie
trigo, e trigo será o produto, não milho nem cevada. Há uma
continuidade, uma igualdade. No entanto, o que observamos
é que o elemento por excelência da semeadura é que a nova
planta é maravilhosamente diferente da semente matriz.
“Como ressuscitarão os mortos? E com que corpo virão?... E
quando semeias, não semeias o corpo que há de nascer... Mas
Deus dá-lhe o corpo como quer... Assim também a ressurrei­
ção dos m ortos” (1 Coríntios 15:35,37,38,42). Então, na
discussão escriturística mais completa sobre a natureza do
corpo da ressurreição, o apóstolo menciona quatro diferenças
chaves entre o nosso corpo atual e o seu futuro estado
glorificado. Examinemos uma por vez.
RESSUSCITADO EM INCORRUPÇÃO
“Semeia-se o corpo em corrupção; ressuscitará em
incorrupção” (1 Coríntios 15:42). Richard Baxter diz-nos que
ele “nunca pregava certo de que tornaria a pregar, E (pregava)
como homem que estava morrendo a homens que estavam
morrendo”.4Isso é a pura e literal verdade. Eu estou morrendo
quando escrevo estas palavras, e você está morrendo quando
as lê. A decadência vai nos enfraquecendo sorrateira e irre-
versivelmente. Um processo inevitável de deterioração está em
ação em nossos corpos, continuando sua ação corruptora sem
dó, momento após momento, até o nosso último alento.
Alguma coisa dentro de nós protesta contra isso. Sentimos
o urgente chamado para a “luta contra o fenecer da luz”. Uma
sociedade incrédula odeia a idade avançada e vai ridiculamente
longe em suas tentativas de manter a sua juventude evanes-
cente. Comprar ações de clínicas de cirurgia plástica ou de
4Citado emAmong God’s Giants (Entre os Gigantes de Deus), de J. I. Parker,
Eastbourne: Crossway, 1991, p. 379.

148
Seremos Semelhantes a Ele
companhias que fabricam pílulas de vitamina ou corantes de
cabelo seria um sólido investimento hoje em dia. Um médico
de família me contou que alguns dos seus pacientes estão de
fato padecendo males físicos e estão querendo queixar-se,
digamos, ao fabricante sobre o inesperado mau funcionamento
da aplicação de algo que eles esperavam que fosse mais
confiável. Vivendo só para este mundo, eles relutam pateti­
camente em aceitar o fato de que seus corpos vão ficar cada
vez mais fracos, desfalecer e morrer. E esse problema não é só
dos incrédulos. Se sobrevivermos à meia-idade, todos nós
começaremos a experimentar as disfunções e as m esqui­
nhas humilhações do envelhecimento, quando “cessarem os
moedores, por já serem poucos, e se escurecerem os que
olham pelas janelas” (Eclesiastes 12:3). Reconhecemos a
nossa “corrupção” física e a consideramos uma realidade
crescentemente detestável.
Paulo nos diz, porém, que no céu nada dessa deteriora­
ção será possível. Seremos rejuvenescidos, ficando para sempre
fora do alcance das doenças, dos ferimentos, da dor e da morte.
As nossas presentes experiências de fraqueza, fragilidade e
sofrimento terão fim. Ressuscitados “em incorrupção”, nenhum
processo de m udança e decadência poderá tocar-nos
novamente.
RESSUSCITADO EM GLÓRIA
“Semeia-se em ignomínia” (1 Coríntios 15:43). Parte da
m inha vocação para o m inistério envolve estar presente
junto a leitos de morte e ver o corpo daqueles que passaram
desta vida. Que é que o caixão contém? Uma pobre e fraca
casca, nada mais. A alma partiu, deixando para trás a deca­
dente e lamentável carne de um cadáver. Ele será colocado
na terra para decompor-se. Não há vida ali, não há nele
nenhuma beleza, nada agradável. É semeado em desonra, em
ignomínia.
149
CÉU E INFERNO
Mas essa mesma carne “ressuscitará em glória”. Não
sabemos o que exatamente isso envolve, porém certamente
significa que no céu nossos corpos serão caracterizados por
venerável esplendor. “Os justos”, diz Jesus, “resplandecerão
como o sol, no reino de seu Pai” (Mateus 13:43). Rugas e cabelos
grisalhos não mais haverá, todos os sinais de velhice e de
fraqueza terão desaparecido. Seremos jovens para sempre, com
a beleza da nossa força, brilhantes, Deus honrando a huma­
nidade masculina e feminina. Nas palavras de C. S. Lewis,
“Ele fará do mais débil e ignóbil de nós... uma criatura
refulgente, radiosa, imortal, sempre vibrante de tal energia,
gozo, sabedoria e amor que sequer podemos imaginar agora”.5
RESSUSCITADO EM PODER
“Semeia-se (o corpo) em fraqueza, ressuscitará com vigor”
(1 Coríntios 15:43). Como somos fracos! Com que facilidade
nos cansamos! Faltam-nos forças, somos dominados pela
fadiga, achamos que não poderemos fazer frente a coisa
alguma. “Fadiga crônica” é um mal cada vez mais comum
em nossa sociedade frenética e sobrecarregada.
Mas Deus nos diz que no céu o nosso corpo será cheio de
energia. Não saberemos o que é cansaço. Um novo dinamismo
tomará posse de nós, novas forças físicas, de modo que o mais
rápido e mais forte atleta olímpico pareceria fraco em com­
paração com qualquer crente na glória. “As nossas energias
não se abaterão com fadiga, nem se esgotarão por causa da
idade. Sem inércia ou atrito, os nossos propósitos serão
executados espontaneamente mediante energias inexaurí-
veis, para as quais o exercício será um prazer e a atividade
contínua será o rapto sem sombras de uma vida imortal.” 6

5Mere Christianity (O Cristianismo Puro e Simples), Collins, 1952, p. 172.


6 A. A. Hodge, Evangelical Theology (Teologia Evangélica), 1890, reedit.
em Edimburgo: Banner of Truth, p. 381.

150
Seremos Semelhantes a Ele
Experimente por um momento imaginar o puro bem-
-estar físico do céu. Assim como os sofrimentos do inferno
são mais excruciantes do que qualquer dor desta terra, assim
também os prazeres do céu são infinitamente mais deleitáveis
do que qualquer prazer que possamos imaginar presentemente.
Aqui o nosso corpo está sujeito às conseqüências da Queda.
Mesmo os mais jovens e mais fortes não sabem o que é saúde
real. Não temos idéia da hilariante sensação de bem-estar que
correrá por nossas veias no céu. Será um prazer físico da mais
intensa qualidade.
RESSUSCITADO UM CORPO ESPIRITUAL
“Semeia-se corpo animal” (ou “natural”, VA), “ressuscitará
corpo espiritual” (1 Coríntios 15.44). Precisamos ser cautelo­
sos aqui. “Espiritual” não significa “não material” ou “não
físico”. E aí que muitos erram. O termo se refere, neste contexto,
a um corpo dominado pelo Espírito Santo. O homem “espi­
ritual” (1 Coríntios 2.15) é habitado e dirigido pelo Espírito.
Os “cânticos espirituais” (Efésios 5.19) são inspirados pelo
Espírito. De igual modo, “corpo espiritual” é um corpo
completamente subordinado ao controle do Espírito.
Cornelis P Venema explica a distinção entre “natural” e
“espiritual” da seguinte maneira: “Estes termos não contras­
tam um corpo feito de “substância material” com um corpo
feito de “substância espiritual”, como se insinuassem que o
corpo da ressurreição será imaterial ou não carnal. Antes, eles
distinguem agudamente o corpo atual como um corpo que
pertence à presente era que está passando e que está sob
maldição, e o corpo da ressurreição, que pertence à vida do
Espírito na era por vir”.7
No presente, o nosso corpo é um obstáculo para o nosso
viver cristão. Ele tem fome, tem desejos, cansa-se. Suas
1 The Promise of the Future (A Promessa do Futuro), Edimburgo: Banner
of Truth, 2000, p. 374.

151
CÉU E INFERNO
exigências podem distrair-nos e afastar-nos de Deus. Mas no
céu não. Ali o nosso corpo nos ajudará como obediente servo
do nosso espírito. “A nossa vontade não estará limitada a uma
ação indireta e difícil por meio de um maquinismo incô­
modo, porém a alma toda agirá diretamente sobre todas as
forças subservientes.” 8 Corpo e alma juntos nos habilitarão a
adorar e a servir o Senhor.
Essa é a glória que será revelada em nós. Nossa alma será
sem pecado, perfeita. Seremos como o nosso Salvador,
conformados à Sua imagem. Os anjos olharão para nós e
darão glória a Deus. Não seria emocionante pensar no que o
nosso Pai vai fazer conosco, que riquezas de bênçãos Ele
planeja derramar sobre nós?
O PRAZER DO SENHOR EM NÓS
Todavia, o que é ainda mais espantoso é que o nosso
Senhor e Salvador se emocionará quando nos vir no céu.
Contemplando o Seu povo, Ele Se encherá de afeto e de
prazer. “O trabalho da sua alma ele verá, e ficará satisfeito”
(Isaías 53:11). Isso diz respeito à Sua obra em geral. Cristo
verá todas as Suas ovelhas recolhidas em segurança, cada
um dos eleitos na glória. Lá não haverá espaços vazios,
ninguém estará ausente ou perdido. Ele não terá nenhum
sentimento de incompletitude ou de pesar. Ele estará satis­
feito com os resultados da obra da Sua alma.
Mas o Senhor Jesus estará satisfeito também com cada um
de nós individualmente. Podemos achar difícil de acreditar,
porque estamos longe de satisfazer-nos com nós mesmos.
Totalmente cientes das nossas fraquezas, freqüentemente
ficamos desanimados com nós mesmos, envergonhados do
que somos. Não nos vemos como dignos de amor; como
então Cristo poderia amar-nos? Penetra a nossa mente um
8A. A. Hodge, Evangelical Theology, p. 381.

152
Seremos Semelhantes a Ele
temor importuno de que, apesar dEle ser misericordioso e
bondoso e nos acolher bem no céu, ao mesmo tempo terá um
nítido sentimento de decepção. Pode ser que sejamos o que
Ele não esperava.
Não precisamos ficar com medo, pois então estaremos
todos transformados, conformados à Sua semelhança. A obra
da graça de Deus em cada um de nós terá sido levada a um tal
extremo de perfeição que o Senhor será arrebatado de amor
por Sua noiva, “igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem
coisa semelhante, mas santa e irrepreensível” (Efésios 5:27).
Todos nós seremos o que Ele quer, seremos tudo o que Ele
deseja. Seremos o povo escolhido por Ele para estar com Ele
para sempre. “Eis que és formosa, ó amiga minha”, exclamará
Ele à Sua esposa (Cantares de Salomão 1:15). Então estare­
mos habilitados a dizer, com jubilosa certeza: “Jesus me ama,
isto eu sei”. Isso será o céu.
E a Si próprio que Cristo verá em nós, a Si próprio que
Ele amará em nós. E por isso que nos é prometido que “seremos
semelhantes a ele” (1 João 3:2). Porquanto não é nenhuma
outra coisa que Ele admirará, senão a Sua própria santa
beleza.

153
9
Plenitude de Alegria
Um cético vivia amolando João Bunyan com perguntas
tolas e irrespondíveis sobre o céu, na esperança de fazer o
cristianism o parecer ridículo. O pastor puritano acabou
transformando a sua irritação num bom conselho, dizendo
ao seu inquiridor que confiasse em Cristo e tivesse uma vida
santa para poder ir para o céu e encontrar as respostas
pessoalmente. A Bíblia foi escrita para habilitar-nos a fazer
justam ente isso. Seu propósito não é satisfazer a nossa
curiosidade, mas chamar-nos à fé. Muita coisa sobre o céu
que talvez gostaríamos de saber não é revelada nas Escrituras,
não porém por incompetência dos escritores humanos, que
teriam tentado descrever o céu e fracassaram. E antes porque
o propósito deles era evangelístico e pastoral. As Escrituras
nos revelam tudo o que precisamos saber sobre o céu no
presente.
Acima de tudo, temos a revelação de que o céu é um lugar
de felicidade. Davi estava certo disso quando escreveu: “O
Senhor, tenho-o sempre à minha presença... Alegra-se, pois, o
meu coração... até o meu corpo repousará seguro... Tu me farás
ver os caminhos da vida; na tua presença há plenitude de
alegria, na tua destra, delícias perpetuam ente” (Salmo
16:8,9,11, ARA). Essa magnífica declaração podemos ter
como a confissão de fé proclamada por todos os crentes do
Velho e do Novo Testamentos. E continua sendo uma convicção
cristã central. “Plenitude de alegria.” Cremos nisso e o
esperamos de todo o nosso coração.
Mas poderíamos ser um pouco mais específicos? Deus,
154
Plenitude de Alegria
o nosso Pai, entende a nossa curiosidade natural, a nossa
ansiedade por termos conhecimento da vida por vir, e por
isso nos proveu de uma considerável soma de informações
sobre ela. Neste estudo final vamos considerar o meio-ambiente
em que viveremos, as nossas relações com os seres humanos
redimidos, nossos companheiros, e do que nos ocuparemos lá.
NOVO CÉU E NOVA TERRA
Já vimos que o céu pode parecer intangível e elusivo.
Para nós é difícil imaginar como será a vida ali, e essa incer­
teza pode significar que não ansiam os por ela quanto
deveríamos. Sabemos que estaremos com Cristo e que vere­
mos Deus em Sua glória. Então, por que não vibramos mais
ante essa prospectiva? Por que não podemos dizer com toda a
sinceridade com Paulo que temos “desejo de p a rtir” ?
(Filipenses 1:23). Por que é que desejamos, mais vezes sim do
que não, que a nossa entrada no céu seja postergada indefi­
nidamente? Uma parte do problema certamente é a nossa
insensibilidade espiritual, porém haveria outras razões pelas
quais o céu parece pairar além do horizonte do nosso
entendimento e do nosso desejo?
A nossa falta de interesse pode ser devida, em parte, ao
fato de que a Bíblia fala com muita freqüência do céu em ter­
mos que parecem negativos. Ela nos diz como o céu não é: não
haverá pecado ali, nem tristeza, nem dor, nem noite, nem
morte (Apocalipse 21:4,27; 22:5). A clássica descrição de
Pedro é expressa similarmente quando ele escreve sobre “uma
herança incorruptível, incontaminável, e que se não pode
murchar, guardada nos céus para vós” (1 Pedro 1:4). Ele não
nos diz diretamente como é o céu, mas o descreve fazendo uma
lista das desvantagens das quais o céu está livre.
Pois bem, essa linguagem é perfeitamente própria para
algo que é maravilhoso além de toda descrição. Quando um
jovem fala sobre o seu amor, não dá à sua mãe um sumário

155
CÉU E INFERNO
clínico da altura, do peso, do tipo físico e dos sinais distin­
tivos da sua amada. Ele simplesmente balbucia: “Ela é a
garota mais maravilhosa!” “Nunca encontrei ninguém que se
compare com ela. Ela é absolutamente indescritível!” Isso
comunica perfeitamente o seu ardor. Expressa exatamente
como ele se sente. Todavia, se a jovem desaparecesse, essa
descrição dificilmente serviria de base para uma busca poli­
cial. Sua linguagem causa uma vivida impressão, porém
inegavelmente carece de detalhes.
Por isso as Escrituras descrevem o céu como o faz. Essa
linguagem não é negativa, ainda que pouca. Ela expressa
encantamento, temor reverente, transcendental admiração e
deleite. Ela nos alerta para o fato de que o céu é emocionante
e glorioso além da nossa compreensão, m uito além da
capacidade máxima dos nossos poderes de fala. Mas também
podemos facilmente entender mal essa linguagem, deixar de
ver a glória e ficar injustificavelmente frustrados pela falta
de pormenores positivos.
Outra dificuldade pode ser com o que os eruditos quali­
ficam como figuras “enfeitadas” ou “cheias de jóias”, o mar
de vidro, as portas de pérola, as coroas e as ruas de ouro
(Apocalipse 15:2; 21:21; 4:4). É evidente não há o propósito
de que essas descrições sejam entendidas literalmente. São
metáforas vividas e poéticas referentes a uma realidade que
é indestrutível, fulgurante e incalculavelmente preciosa.
Contudo, de novo pode acontecer que leiamos mal as descri­
ções figuradas e que nos deixemos levar pela impressão de
que o céu é um lugar frio e inatural. Se formos convidados
para um passeio, muitos de nós preferiremos uma estradinha
rodeada de plantas no campo a uma rua pavimentada com ouro.
A primeira é natural e instantaneamente nos atrai; a segunda
parece um produto manufaturado e sem vida. Fazer pobre
interpretação das Escrituras é coisa grave! Ela pode distorcer a
glória e enfraquecer a nossa aspiração do mundo vindouro.
156
Plenitude de Alegria
Mas talvez o maior obstáculo a uma verdadeira aprecia­
ção do céu seja a nossa incapacidade de imaginar nossos
corpos ali. Embora creiamos na ressurreição do corpo, “céu”
ainda traz à mente uma esfera imaterial, não física em nenhum
real sentido. Todos nós somos muito propensos a pensar nele
como um lugar fundamentalmente impróprio para corpos
físicos.
Contudo, a Bíblia nos diz que o céu é o ambiente ideal
para eles. Na segunda vinda de Cristo esta terra, que Deus criou
para nossa habitação e para a Sua glória, será restaurada e
renovada. Todos os vestígios de pecado serão removidos do
planeta, o céu e a terra se juntarão numa unidade maravilhosa,
e “a terra se encherá do conhecimento da glória do Senhor,
como as águas cobrem o mar” (Habacuque 2:14). Comentando
as palavras “Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens,
pois com eles habitará” (Apocalipse 21:3), A. A. Hoekema
declara: “Desde que onde Deus habita, é céu ali, concluímos
que na vida por vir o céu e a terra não mais estarão separados
como agora, mas se fundirão. Portanto, os crentes continua­
rão a estar no céu como continuarão a viver na nova terra”.1
Mas este ensino, claro como está nas Escrituras, tem sido tão
negligenciado que parece uma heresia para alguns que o
ouvem pela primeira vez.
A explicação mais clara disto acha-se no capítulo oito de
Romanos, onde Paulo liga o destino da criação material ao
dos seres humanos. Lembra ele que foi devido ao pecado do
homem que a terra foi arruinada. “Porque a criação ficou
sujeita à vaidade” (Romanos 8:20) quando Deus disse a Adão:
“Maldita é a terra por causa de ti” (Gênesis 3:17). Mas este
mesm o m undo decaído se beneficiará da salvação do
homem. Assim como o pecado de Adão trouxe maldição,
assim também a obediência de Cristo trará bênção. Paulo
‘1The Bible and the Future (A Bíblia e o Futuro), p. 285.

157
CÉU E INFERNO
personifica a criação, que “Significa os animais; que significa
os rios e os demais cursos d’água, os montes e as colinas;
significa a própria terra”.2Ele a descreve como estando em pé,
como que andando na ponta dos pés, em viva e “ardente
expectação”, pois avidamente “espera a manifestação dos
filhos de Deus” (Romanos 8:19). Por que essa ansiosa aspira­
ção? “Também a mesma criatura (criação) será libertada da
servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos
de Deus” (8:21).
Alguma coisa maravilhosa vai acontecer com esta nossa
terra. Cristo fala sobre “quando, na regeneração, o Filho do
homem se assentar no trono da sua glória” (Mateus 19:28), e
nesta passagem a palavra “regeneração” poderia ser traduzida
por “segundo gênesis”. Pedro lhe chama “restauração de tudo”
(Atos 3:21). Tudo será renovado. A terra na qual vivemos
agora vai ser transformada gloriosamente. “O céu na terra - é
onde passaremos a eternidade. O plano divino de redenção
não estará completo enquanto não houver uma terra para
nela o homem viver, no corpo, para sempre”.3
É assim que Deus sempre age na redenção. Quando os
nossos primeiros pais pecaram e caíram, Deus não Se desfez
dela para começar tudo de novo. Não, o Seu propósito foi
salvar essa mesma humanidade que fora escravizada pelo
pecado. Quando confiamos em Cristo, Deus não nos provê
de nova personalidade com nova marca. Em vez disso, pelo
poder do Seu Espírito, Ele nos transforma gradativamente
segundo a imagem do Seu Filho, a qual foi danificada. Os
2D. M. Lloyd-Jones, The FinalPerseverance of the Saints, Romans 8:17-39,
Edimburgo: Banner of Truth, p. 49. Publicado em português: Romanos:
Exposição sobre Capítulo 8:17-38- A Perseverança Final dos Santos, São Paulo,
Publicações Evangélicas Selecionadas, primeira edição em português: 2002,
p. 72.
3 Ibid., p. 89. Parte do texto citado encontra-se na edição em português
citada na nota anterior, p. 120.

158
Plenitude de Alegria
pais da Igreja continuaram dizendo: “A graça não destrói a
natureza, mas a restaura”. Como novas criaturas em Cristo,
nós nos tornamos mais “naturais”, mais nós mesmos, do que
jamais fomos. E no capítulo anterior vimos que Deus não joga
fora os nossos corpos para nos dar corpos completamente
novos. São estes nossos mesmos corpos que Ele vai glorificar.
“A continuidade entre o corpo pré e pós-ressurreição do
crente encontra a sua contraparte na continuidade entre a
criação atual e a renovada.”4Assim como Deus está renovando
a raça humana, e como vai glorificar o corpo humano, assim
também Ele vai restaurar e glorificar o presente mundo.
Satanás não vai ter a última palavra quanto ao destino do
nosso planeta. Nas palavras de Robert L. Dabney, “Esta conclu­
são nos dá uma nobre visão da imutabilidade do propósito
da graça de Deus, e da glória da Sua vitória sobre o pecado e
satanás... o Messias virá e restabelecerá Seu trono no meio do
seu domínio desfigurado e devastado; Ele o limpará de toda
mancha do pecado e da morte, e fará esta terra florescer com
esplendor maior que o esplendor original”.5
A consciência da renovação futura da terra lança torren­
tes de luz sobre muitas declarações dos profetas e dos salmistas
que provavelm ente passemos por alto. Alguns cristãos
acreditam que essas profecias se referem a uma idade de ouro
anterior ao retorno de Cristo. Entretanto, outros as espiri­
tualizam completamente, esvaziando-as de todo e qualquer
cum prim ento m aterial e vendo-as como nada mais que
figuras de bênçãos espirituais. Há, porém , aqui uma
literalidade que não devemos ignorar, pois elas estão nos
dizendo o que na verdade vai acontecer com este presente
mundo. “E morará o lobo com o cordeiro, e o leopardo com o
cabrito se deitará, e o bezerro, e o filho de leão e a nédia

4Venema, ThePromise ofthe Future (A Promessa do Futuro)) p. 377.


5Systematic Theology (Teologia Sistemática), p. 852.

159
CÉU E INFERNO
ovelha viverão juntos, e um menino pequeno os guiará”
(Isaías 11:6). “O deserto e os lugares secos se alegrarão disto; e
o ermo exultará e florescerá como a rosa” (Isaías 35:1). A própria
criação é conclamada a alegrar-se face à prospectiva da sua
glória que virá: “Alegrem-se os céus, e regozije-se a terra;
brame o mar e a sua plenitude. Alegre-se o campo com tudo
o que há nele; então se regozijarão todas as árvores do bosque,
ante a face do Senhor, porque vem” (Salmo 96:11-13).
Quando o Senhor Jesus disse: “Bem-aventurados os
mansos, porque eles herdarão a terra” (Mateus 5:5), Ele quis
dizer exatamente isso. Quando oramos “Seja feita a tua
vontade, assim na terra como no céu” (Mateus 6:10), não
estamos usando uma vã forma de palavras, nem nos entregando
a uma fantasia piedosa. Todavia, seria nesse sentido que fazemos
essa oração? Ficamos na expectativa de ver o seu cumprimento?
Dia virá em que a vontade de Deus será feita em toda superfície
desta terra - perfeitamente, completamente e para sempre.
A mudança será imensa, pois “os elementos, ardendo, se
desfarão, e a terra e as obras que nela há, se queimarão” (2
Pedro 3:10). A nossa mente é incapaz de conceber uma
transformação tão cataclísmica, tão completamente abrangente,
que Deus pode dizer: “Eis que eu crio novos céus e nova terra”
(Isaías 65:17). Mas a palavra “novo(s)” na antiga tradução grega
deste texto e nas passagens paralelas do Novo Testamento não
significa absolutamente novo, mas novo em qualidade, em viço.
Justamente como acontecerá com o nosso novo corpo da
ressurreição, assim também será retida a identidade básica. O
cauteloso A. A. Hodge comenta: “Quanto à localização do
lugar onde Cristo e Sua glorificada esposa terão o seu lar
central por toda a eternidade, ergue-se uma forte probabili­
dade de que será a nossa presente Terra, primeiro destruída
pelo fogo e depois gloriosamente aperfeiçoada”.6 Temos aí a
6 The Confession of Faith (A Confissão de Fé), 1869, reedit. em Londres:
Banner of Truth, 1958, p. 383.

160
Plenitude de Alegria
resposta final às preocupações ecológicas.
Que prospecto! O céu descerá à terra e ambos juntos
formarão uma radiosa entidade, refulgindo com a glória de
Deus. “E vi um novo céu, e uma nova terra. Porque já o
primeiro céu e a primeira terra passaram... E eu, João, vi a
santa cidade, a nova Jerusalém, que de Deus descia do céu... E
ouvi uma grande voz do céu, que dizia: “Eis aqui o taberná-
culo de Deus com os hom ens, pois com eles habitará”
(Apocalipse 21:1-3). Aí está a grande escala do propósito do
Pai no Filho, “de tornar a congregar em Cristo todas as
coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as
que estão nos céus como as que estão na terra” (Efésios 1:10).
Note-se a expressão “todas as coisas”. Não apenas as almas e
os corpos dos eleitos, mas “todas as coisas”. “Porque foi do
agrado do Pai... que reconciliasse consigo mesmo todas as
coisas, tanto as que estão na terra como as que estão nos céus”
(Colossenses 1:19,20).
O nosso presente mundo é belíssimo. Foi desfigurado
pelo pecado, claro, e não é o que outrora foi nem o que será.
Mas ainda manifesta a glória de Deus e podemos alegrar-nos
com os seus encantos. Sentimos dolorosa tristeza ao pensarmos
em deixá-lo, pois todos nós temos lugares especiais - pano­
ramas espetaculares, cenários favoritos ilum inados pela
memória, o pedacinho de chão a que chamamos lar. A beleza
de montes e várzeas, de mar e céu e rios, mexe com as fibras
do nosso coração.
E justo que amemos a terra que Deus providenciou para
nós. Não devemos amar a má ordem do mundo, o rebelde
sistema do mundo (1João 2:15). Mas, “Do Senhor é a terra e a
sua plenitude” (Salmo 24:1), e, num sentido muito real, não
fomos destinados a viver à parte dela, pois, “sem a glorifica­
ção da criação, a glorificação da nova humanidade seria um
evento isolado e estranho”.7 Que alegria, então, compreender
7 Venema, The Promise of the Future, p. 377.

161
CÉU E INFERNO
que não teremos que dizer um adeus final à terra, mas que a
habitaremos para sempre na vida vindoura! Talvez não a
recordemos como nosso lar anterior, pois sobre os novos
céus e a nova terra Deus nos diz que “não haverá lembrança
das coisas passadas, nem mais se recordarão” (Isaías 65:17),
texto que J. A. Motyer comenta: “A consciência será de uma
total novidade, sem nada que sequer sugira uma lembrança
daquilo que era”.8 Todavia, por certo haverá um profundo
sentim ento de familiaridade, um sentim ento de que lhe
pertencemos. Ela não nos será alheia, porém sentiremos que
esse é o nosso lugar. “Nessa nova terra esperamos passar a
eternidade, curtindo as suas belezas, explorando os seus recursos
e usando os seus tesouros para a glória de Deus.” 9
A FAMÍLIA DO CÉU
O comentário feito por Sartre de que “O inferno são os
outros” é palpavelmente falso, pois o que ele quis dizer foi
que o inferno só existe nas crueldades humanas desta vida.
Mas é verdade que uma parte dos sofrimentos do inferno
consistirá da horrível sociedade desse lugar. De semelhante
m aneira, um elemento vital das alegrias do céu serão os
gloriosos seres em cuja companhia vamos viver. O indivi­
dualismo da nossa era pode descolorir a nossa visão do céu,
levando-nos a centralizar o foco estreitam ente em nós
mesmos. Mas as grandes figuras da Bíblia são corporativas: a
cidade santa, o reino que não pode ser abalado, a ceia das
bodas do C ordeiro (Apocalipse 21:2; H ebreus 12:28;
Apocalipse 19:9). Elas retratam a existência celestial como,
essencialmente, vida em comunidade, onde uma parte vital
da plenitude de alegria será a nossa múltipla relação e intera­
ção pessoal.
8 The Prophecy oflsaiah (A Profecia de Isaías), Leicester: Inter-Varsity Press,
1993, p. 529.
9 Hoekema, The Bible and the Future, p. 274.
162
Plenitude de Alegria
Consideramos anteriormente as relações mais importan­
tes - a nossa comunhão com o Deus Triúno, o Pai, o Filho e o
E spírito Santo. Também vamos associar-nos aos anjos,
aqueles espíritos puros, não decaídos. Quão fascinados
estarão eles ao conhecerem melhor a nossa redenção (1 Pedro
1:12)! Que será que vamos descobrir sobre o seu ministério
terreno em nosso favor? (Hebreus 1:14). Que emocionante será
juntar-nos a eles em adoração ao redor do trono de Deus!
Mas a nossa relação criatura com criatura será sem dú­
vida com os nossos semelhantes, seres humanos como nós, os
eleitos “que estão inscritos no livro da vida do Cordeiro”
(Apocalipse 21:27). Antecipemos por alguns m omentos
alguns dos prazeres dessa comunhão celestial.
QUE DIZER DOS NOSSOS AMIGOS NÃO
CONVERTIDOS?
Há, porém uma questão trágica que precisamos encarar
primeiro. Pois muitos não estarão lá, inclusive alguns que
conhecemos e amamos na terra. Como nos sentiremos acerca
disso? Acaso não arruinará o céu sabermos que alguns dos
nossos amigos estão no inferno? Como poderemos gozar os
prazeres da glória quando uma pessoa amada - mãe, marido
ou irmã - está excluída para sempre? Todos os ministros do
evangelho são interrogados sobre isso em meio à mais grave
agonia.
A resposta é clara, mas indizivelmente séria. Eles não
serão mais nossos entes queridos. A nossa amizade com eles
terá terminado e nós não sentiremos falta deles nem tristeza
por eles. Os santos na glória louvam Deus pela manifestação
da Sua justiça aplicada para punir o pecado: “Aleluia: Salva­
ção, e glória, e honra, e poder pertencem ao Senhor nosso Deus;
porque verdadeiros e justos são os seus juízos” (Apocalipse
19:1,2). Nas prudentes palavras de Jonathan Edwards, “Os
habitantes do céu... vão estar então em perfeita conformidade
163
CÉU E INFERNO
com Deus em Sua vontade e em Seus afetos. Amarão o que
Deus ama, e amarão somente isso. Por mais que os santos no
céu possam ter amado os condenados enquanto na terra,
especialmente aqueles dentre eles que lhes eram mais chega­
dos e mais queridos, daí por diante não os amarão mais”.10
Demonstramos verdadeiro amor por outros, não obje­
tando sentimentalmente o inferno, mas fazendo agora tudo o
que está em nossas forças para levá-los para o céu. Somente a
amizade que está em Cristo vai estender-se para além desta
vida. Se isso não nos leva a orar diariamente e a fazer tudo o
que podemos pela salvação dos nossos familiares e dos nossos
amigos não convertidos, então o que nos motivaria a faze-lo ?
UMA FAMÍLIA PERFEITA
No céu vamos experimentar perfeita vida familiar na
com panhia dos nossos irmãos e irmãs em Cristo, todos
aqueles que pela fé nEle são filhos de Deus o Pai. Em vários
aspectos será uma família ideal.
Será uma família numerosa. Na terra os crentes estão em
minoria. Podemos sentir-nos isolados ou vulneráveis, e para
alguns a vida é solidão. Mas no céu pertenceremos a uma
família enorme, com um número imenso de relações. É um
lugar em que há “muitas moradas” (João 14:2), e os salvos são
“uma multidão, a qual ninguém podia contar” (Apocalipse
7:9). Por toda a eternidade teremos a alegria de encontrar-nos
com milhões de irmãos e irmãs de cuja existência nada
sabíamos anteriormente.
Será uma família variada. A multidão é de “todas as nações,
e tribos, e povos, e línguas” (Apocalipse 7:9). Vamos encontrar-
-nos com cristãos de todos os séculos, nacionalidades e culturas.
Todos os tipos de personalidade estarão presentes. Toda
espécie de experiência estará representada. Todo crente,
10 Works, V61.2, p. 209.

164
Plenitude de Alegria
homem ou mulher, terá sua própria história sobre a mise­
ricórdia divina a seu favor - cada qual única, singular. Não
haverá monotonia. Assim como Deus enriqueceu a criação
com incrível variedade, assim fará também com a Sua nova
criação, pois a Sua graça é “multiforme” ou “multicolorida” (1
Pedro 4:10). Teremos o fascínio de saber e de aprender de
muitíssimos, todos com semelhança familiar, embora sendo
todos diferentes.
Será uma família unida. Não haverá brigas nem rixas. As
disputas teológicas terão sido resolvidas e os desacordos serão
uma impossibilidade. Não haverá denominações nem mal-
-entendidos nem ignorância nem orgulho. “Então, que
abençoada sociedade a família do céu será, com aqueles
pacíficos habitantes da nova Jerusalém, onde não há divisão,
nem estranheza, nem amizade enganosa, não, nenhum a
expressão menos bondosa, nenhum olhar ou pensamento
irritado; mas são todos um em Cristo, que é um com o Pai, e
todos vivem em Seu amor, sendo que Ele próprio é amor!”11A
unidade do povo de Deus será completa e visível. A oração do
Senhor, “para que todos sejam um” (João 17:21) terá sido
plenamente respondida. Saberemos, enfim, “quão bom e quão
suave é que os irmãos vivam em união!... Porque ali o Senhor
ordena a bênção e a vida para sempre” (Salmo 133:1,3).
Será uma família cativante. Aqui há cristãos que tentamos
amar, porém de quem achamos difícil gostar. (Vem alguém
imediatamente à mente?) Mas no céu não haverá membros
da família desagradáveis, pois todos os crentes serão santos e
admiráveis. Suas personalidades irradiarão beleza como a
de Cristo. Serem eles tais seres será uma alegria, não um
dever. Estar com eles será um privilégio emocionante, um
prazer inexaurível.

11 Richard Baxter, The Saints’ Everlasting Rest (O Repouso Eterno dos


Santos), edição abreviada, Londres, 1842, pp. 290,1.

165
CÉU E INFERNO
Será uma família satisfatória. Nesta vida podemos ser
maltratados, desvalorizados, negligenciados. A amizade está
entre as maiores bênçãos, mas amigos verdadeiros nem
sempre é fácil ter por perto. Cristãos solteiros às vezes gosta­
riam que Deus lhes providenciasse um parceiro ou uma
parceira na vida. Muitos outros experimentam súbita solidão
no luto. Mas em nossa família celestial teremos dezenas de
milhares de relações satisfatórias. A solidão terrena será tragada
por um oceano de amigos mais verdadeiros do que os
conhecidos anteriormente. Seremos engolfados para sempre
por um amor puro e perfeito. Pela primeira vez a conhecida
frase significará o que ela diz: “Uma família grande e feliz”.
RELAÇÕES CHEGADAS
Ora, que dizer daqueles que nos são mais chegados na
terra? Continuarei tendo uma relação especial com a minha
esposa no céu? Você continuará a tratar os seus progenitores
como pai e mãe? Nossos amigos íntimos aqui serão nossos
amigos íntimos lá? Está muito bem esperarmos encontrar
dezenas de milhares. Mas nós não fomos criados de molde a
ainda querermos um círculo mais íntimo? Essas perguntas
são naturais, porém não é fácil respondê-las.
Certamente vamos conhecer uns aos outros no céu. O rei
Davi esperava unir-se lá a seu pequeno filho falecido. “Eu irei
a ela”, à criança, disse ele (2 Samuel 12:23). Paulo concita os
cristãos que estavam de luto a que não se entristecessem “como
os demais, que não têm esperança. Porque... aos que em Jesus
dormem Deus tornará a trazer com ele” (1 Tessalonicenses
4:13,14). A razão para não se entristecerem como os incré­
dulos é que a sua partida não é permanente. Eles tornarão a
encontrar-se. Não podemos conhecer no céu menos que na
terra, e, portanto, reconheceremos aqueles que eram nossos
conhecidos aqui. Certamente isso é um consolo.
Também nos é dito que muitos aspectos do casamento

166
Plenitude de Alegria
não serão próprios na glória, onde “nem casam nem são
dados em casamento” (Mateus 22:30). Não haverá reprodução.
O marido não precisará de uma auxiliadora, nem a esposa
precisará de alguém que lhe dê carinho protetor. As crianças
não vão requerer cuidado paterno. A relação entre Cristo e
Sua Igreja será tão óbvia que tornará desnecessária uma
ilustração humana.
Significaria, então, que o seu marido ou o meu melhor
amigo não serão para nós mais do que qualquer pessoa entre
as multidões de remidos? Não penso assim.
Todas as coisas boas serão melhores no céu do que na terra.
Se Deus deu a você um cônjuge cristão, um pai ou filho ou
irmão, ou amigo, você pode estar certo de que, sejam quais
forem os parâmetros das suas relações futuras com eles, a
amizade será mais chegada do que agora. Você os conhecerá
mais intimamente, os amará mais intensamente, deleitar-se-á
neles mais plenamente. E impossível que percamos alguma
/

coisa boa nesse lugar repleto de coisas boas. Podemos obser­


var os cristãos que amamos especialmente e louvar a Deus
por continuarmos a amá-los, e cada vez mais, para todo o
sempre.
Richard Baxter toca num perfeito equilíbrio entre super
e subvalorizar os nossos amigos: “Quando eu contemplo o
semblante dos preciosos filhos de Deus, e confiantemente
penso naquele dia, que reanimador pensamento é!... Devemos
ser cautelosos para que em nossos pensamentos não vejamos
nos santos o que só há em Cristo, nem esperemos que grande
parte do nosso conforto esteja em desfrutar sua presença e
companhia; somos muito propensos a esse tipo de idolatria.
Todavia, Aquele que nos manda amá-los agora, vai nos deixar
amá-los então, quando Ele próprio vai torná-los muito mais
amoráveis. Eu sei que Cristo é tudo em tudo; e que é a presença
de Deus que faz com que o céu seja céu. Contudo, adoça muito
os meus pensamentos sobre aquele lugar saber que lá existe

167
CÉU E INFERNO
essa multidão de amigos meus em Cristo, os mais queridos e
os mais preciosos”.12
QUE DESAFIO A EVANGELIZAR!
Paulo falou dos seus convertidos tessalônicos como “nossa
esperança... gozo... coroa de glória” (1 Tessalonicenses 2:19).
Como nos vamos sentir quando nos encontrarmos na glória
com aqueles que o nosso testemunho ajudou a levar para lá?
Vamos lamentar então os esforços que fizemos, a energia que
gastamos, as decepções que sofremos? Nós vamos entender
o que Samuel Rutherford quis dizer quando, da prisão,
concitou seu povo a receber Cristo porque “O céu de vocês
será dois para mim, e a salvação de vocês será duas para mim”.13
Que significará para as mães cristãs que deram sua vida para
criar os seus filhos para o Senhor? Elas não eram valorizadas
neste mundo, a sociedade tinha dó delas, considerando-as
escravas improdutivas. Mas imagine a alegria^ delas quando
seus filhos se reunirem ao seu redor no céu e elas puderem
dizer: “Eis-me aqui a mim, e aos filhos que Deus me deu”
(Hebreus 2:13). Que melhor maneira de ajuntar “tesouros
no céu” do que falar do evangelho aos perdidos?
QUÃO IMPORTANTE É AMAR-NOS UNS AOS OUTROS!
No céu nós amaremos os nossos irmãos na fé perfeita­
mente e para sempre. Daí, por que não podemos amá-los mais
agora? Por que as brigas infernais entre os cristãos, as incom-
preensões, as críticas, e as separações? “Acaso não basta o mundo
estar contra nós, mas nós também temos que estar uns contra
os outros? Oh, felizes dias de perseguição, que nos fizeram

12 Citado na obra de John MacArthur, The Glory ofHeaven (A Glória do


Céu), Tain, Ross-shire, Christian Focus, 1996, pp. 173,4.
13Letters ofSamuel Rutherford (Cartas de S. R), Edimburgo, Banner of Truth,
1973, p. 111; Carta 225 na edição que Bonar publicou d&Letters,

168
Plenitude de Alegria
unir-nos em amor, a nós a quem o sol da liberdade e da
prosperidade despedaça e lança ao pó!” 14 Que arma as nossas
disputas dão a satanás! Que desonra lançam sobre Cristo!
Procuremos ver uns aos outros como seremos na glória e
tratar uns aos outros aqui como o faremos lá.
O NOSSO SERVIÇO NO CÉU
“Serviço” será uma palavra apropriada? Não seria o céu
um lugar de descanso? Com toda a certeza! O escritor da
Epístola aos Hebreus garante-nos que “resta ainda um
repouso para o povo de Deus” (Hebreus 4:9). Diz-nos a Bíblia:
“Bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no
Senhor... para que descansem dos seus trabalhos” (Apocalipse
14:13). “Repouso”, uma das palavras mais belas, sempre tem
sido uma cativante prospectiva para os cansados e sobre­
carregados.
No céu gozaremos um repouso mais profundo do que
todo repouso experimentado antes. Repousaremos do cansaço
do pecado - tanto dos seus ataques externos como das suas
instigações em nosso ser interior. Teremos repouso de nossos
sofrimentos e pesares, pois “Deus limpará de seus olhos toda
lágrima, e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor,
nem dor” (Apocalipse 21:4). Nenhuma frustração ou decep­
ção fará verter e esgotar-se as nossas forças. Nunca mais a
oposição a nós nos deixará exaustos. Fazer o nosso dever
num mundo perfeito não nos fatigará, mas nos dará energia.
Que repouso será! Ele completará o cumprimento de
uma das mais agradáveis promessas do nosso salvador:
“Vinde a mim, todo os que estais cansados e oprimidos, e
eu vos aliviarei” (Mateus 11:28).
Todavia, repouso não é a mesma coisa que ociosidade.

14 Richard Baxter, The Saints’ Everlasting Rest, (O Repouso Eterno dos


Santos), edição abreviada, Londres, 1842, p. 44.

169
CÉU E INFERNO
Que tedioso seria passar a eternidade sem fazer nada! Fomos
destinados ao trabalho, e nos sentiríamos miseravelmente
mal sem ele. Mesmo atualmente o repouso semanal não é um
dia de ociosidade, mas de gostosa atividade. Portanto, o repouso
no céu não é um eterno jazer numa espreguiçadeira celestial,
porém o revigoramento que vem do cumprimento, com todo
o nosso ser, do propósito para o qual fomos criados e redimi­
dos. “Os seus servos o servirão. Estão diante do trono de Deus,
e o servem de dia e de noite no seu templo” (Apocalipse 22:3;
7:15). De que maneiras serviremos a Deus no céu?
Como o verbo grego “servir” nos versículos citados acima
indica, o nosso serviço será de adoração. No céu Deus é louvado
e adorado por Sua criação e o livro do Apocalipse, por exem­
plo, retrata com incomparável beleza o culto no paraíso:
“Digno és, Senhor, de receber glória, e honra, e poder... Porque
foste m orto, e com o teu sangue com praste para Deus
homens de toda tribo, e língua, e povo, e nação. E para o nosso
Deus os fizeste reis e sacerdotes; e eles reinarão sobre a terra. E
ouvi a voz de muitos anjos ao redor do trono, e dos animais, e
dos anciãos; e era o número deles milhões de milhões e
milhares de milhares, que com grande voz diziam: digno é o
Cordeiro, que foi morto, de receber o poder, e riquezas, e
sabedoria, e força, e honra, e glória, e ações de graças. E ouvi
a toda criatura que está no céu, e na terra, e debaixo da terra,
e que está no mar, e a todas as coisas que neles há, dizer: ao
que está assentado sobre o trono, e ao Cordeiro, sejam dadas
ações de graças, e honra, e glória, e poder para todo o sempre”
(Apocalipse4:11; 5:9-13).
Esse serviço de adoração nos aprofundará cada vez mais
no conhecimento de Deus. Através de todas as intermináveis
eras, descobriremos novos aspectos da Sua infinita majestade,
santidade, poder, graça e encantadora bondade. Nossa alma
ficará extasiada ao aprender mais e mais do Seu ser e dos Seus
procedimentos. Estudaremos tudo o que o Senhor realizou, o
170
Plenitude de Alegria
entrelaçamento dos Seus propósitos, como o movimento de
cada átomo desde a criação, o cair de cada folha e o vôo de
cada pardal, contribuíram juntam ente para a Sua glória.
Conforme estas coisas nos forem crescentemente reveladas,
vamos sendo tomados de encanto, amor e louvor.
Devemos dedicar mais atenção do que costumamos
dedicar ao culto que prestamos aqui na terra. Devemos bus­
car a capacitação do Espírito quando nos derramamos em
adoração, praticando agora o que estaremos fazendo na
glória sempiterna.
Mas não devemos definir o serviço demasiado estrei­
tamente, pois toda a nossa existência será adoração. Como já
vimos, o céu será uma realidade tanto física quanto espiritual,
“um novo céu, e uma nova terra” (Apocalipse 21:1). Seremos
mordomos dessa nova terra, administrando-a para a glória de
Deus. O escritor da Epístola aos Hebreus cita o Salmo 8
lembrando-nos que Deus fez do homem o governador da
terra (Hebreus 2:7,8). Esta posição de autoridade, diminuída
pela Queda, ainda não foi restaurada plenamente, pois “agora
ainda não vemos que todas as coisas lhe estejam sujeitas; vemos,
porém, coroado de glória e de honra aquele Jesus...” (Hebreus
2:8,9). A implicação é clara. Ainda não vemos todas as coisas
sujeitas ao homem, mas veremos. Isso porque Jesus foi antes
de nós por amor de nós, e chegará o dia em que a completa
administração da criação será devolvida a nós e cantaremos o
salmo com um novo significado: “Que é o homem mortal para
que te lembres dele?... Fazes com que ele tenha domínio sobre
as obras das tuas mãos; tudo puseste debaixo de seus pés... Ó
Senhor, Senhor nosso, quão admirável é o teu nome sobre
toda a terra! (Salmo 8:4,6,9).
Nesse novo mundo nos serão dadas novas e extraordiná­
rias tarefas. Emocionantes alamedas de serviço serão abertas
diante de nós, convocando-nos para o uso de todos os nossos
dons e talentos, m uitos deles nem suspeitados ou mal
i

171
CÉU E INFERNO
desenvolvidos em nossa presente existência. “A razão, a
curiosidade intelectual, a imaginação, os instintos estéticos,
os santos afetos, as afinidades sociais, os inexauríveis recursos
de força e poder natos na alma humana, haverão de encontrar
pleno exercício e satisfação no céu”.15 Por toda a eternidade
viveremos vida plena, vida verdadeiramente humana, explo­
rando e gerenciando a criação de Deus para a Sua glória.
Panoramas fascinantes se desdobrarão diante de nós quando
aprendermos a servir a Deus num universo renovado. “Toda
atividade legítima da (nova) vida própria das criaturas será
incluída dentro da vida de adoração do povo de Deus.” 16
É um verdadeiro desafio refletir em que, quanto maior
for a nossa fidelidade agora, mais amplas e satisfatórias serão
as nossas responsabilidades no céu. “Bem está, bom e fiel servo.
Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei” (Mateus
25:23). Cristo nos recompensa pelo trabalho bem feito
confiando-nos mais responsabilidades.
Mas não estragaria a nossa alegria no céu, se for dada maior
recompensa a uns que a outros? Não ficaríamos com inveja ou
não nos sentiríamos despojados ou carentes ao vermos outros
santos honrados acima de nós? Nem um pouco! O céu é um
lugar de perfeito amor onde, pela primeira vez, amaremos o
nosso próximo como a nós mesmos. Ver suas maiores bênçãos
não nos trará nada senão felicidade. Que pai fica ressentido
quando é sobrepujado por um dos seus filhos ou filhas? O
nosso prazer com o seu sucesso é maior do que se a realização
fosse nossa.
Em todo caso, a cada um de nós será dada tantas responsa­
bilidades e tantas bênçãos quantas somos capazes de receber.
“Apesar de haver graus de glória, contudo, todos se verão
cheios, tendo tanto quanto podem ter; embora alguns sejam

15A. A. Hodge, Evangelical Theology (Teologia Evangélica), p. 400.


16Venema, The Promise o f the Future (A Promessa do Futuro), p. 478.

172
Plenitude de Alegria
capazes de ter mais que outros. Não haverá falta para nenhum
deles; todos ficarão plenamente satisfeitos, e se sentirão
perfeitamente abençoados no pleno gozo da bondade divina,
de acordo com a sua capacidade, então aumentada. É como
quando se enchem garrafas de diferentes tamanhos, uma
contêm mais, outras menos; contudo, todas elas têm o que
podem conter.” 17 O que devemos fazer agora é, pelo cresci­
mento na graça e no serviço devotado, aumentar a nossa
capacidade para a bênção futura.
CRIADOS PARA A ETERNIDADE
O prospecto de vida para sempre num universo renovado
responde à frustração que sentimos pela brevidade da existên­
cia terrena. Pois os seres humanos sentem que, por mais longa
que seja a vida, é muito curta. Há tanta coisa para descobrir­
mos neste m undo, tanta variedade de experiências para
desfrutarmos, e, todavia, dispomos de muito pouco tempo.
Quantos lugares há que nunca visitaremos, livros que nunca
leremos, pintura que nunca contemplaremos, música que
nunca ouviremos! E perturbador ver tanta riqueza esvair-se
de nós a cada tique-taque do relógio.
Quão pouco sabemos até dos nosso amigos mais chega­
dos! Que reservatórios não abertos são eles de características
pessoais e de introspecção! Mas levaria muito tempo para
sabermos tudo o que seria possível saber deles. E que dizer
dos milhões que nunca encontramos - suas personalidades e
suas histórias? Seriamos enriquecidos além da conta se os
conhecêssemos. Entretanto, nunca os conheceremos - não
nesta terra.
Em nós mesmos estamos cônscios de dons, recursos,
talentos e qualidades não desenvolvidos e dos quais temos

17Thomas Boston, Human Nature in Its Fourfold State (A Natureza Humana


em Seu Quádruplo Estado), p. 478.

173
CÉU E INFERNO
obscura percepção. Uma vez perguntaram a um amigo da
nossa família se ele sabia tocar violino. “Não sei se sei”,
respondeu ele, “nunca tentei”. Ele estava brincando, porém
num sentido estava certo. Em cada um de nós existem mais
coisas que ainda não vieram à luz. Ninguém ainda viu o você
real. Nem a nós mesmos conhecemos apropriadamente. Mas
não estaremos aqui pelo tempo suficiente para o descobri­
mento do nosso potencial.
Depois de passar a vida inteira estudando a Bíblia, é
simples realismo, não falsa modéstia, reconhecer que ainda
estamos patinhando nas águas rasas da verdade revelada.
Quanto à oração e à comunhão com Deus somos os mais
simples principiantes. Pois ainda somos noviços na vida
cristã. Queremos ser pessoas melhores, queremos ser mais
bondosos e mais altruístas, mas ainda estamos em conflito com
personalidades prejudicadas e estamos desfigurados pelas
cicatrizes do passado. As circunstâncias atravancaram o nosso
desenvolvim ento. O portunidades dadas a outros nunca
passaram pelo nosso caminho. É tão curto o tempo para tudo!
Você sente essas frustrações? Você não tem fome voraz de
mais e mais coisas da vida? Você não sente o coração dolorido
diante da veloz passagem dos anos? Não há um incômodo
sentimento de não realização, não importa quão feliz você seja?
Tais seres é como somos - num tal mundo - com tão pouca
coisa possível!
Louvado seja Deus pelo céu! Sim, pois, cada bom anelo
sentido dentro de nós é uma insinuação da imortalidade, um
eco da eternidade em nossa alma, um sinal de indicação da
vida eterna. Não fomos criados apenas para setenta anos, “não
nascemos para morrer”, nas palavras do poeta. O nosso Cria­
dor não projetou seres dotados de tanta complexidade e
capacidade para um simples punhado de décadas. Deus “pôs
a eternidade no coração do homem” (Eclesiastes 3:11, ARA) e
não fomos redimidos para ficar frustrados. “A vida aqui é

174
Plenitude de Alegria
demasiado curta, demasiado circunscrita, para que a consi­
deremos o fim dos maravilhosos dotes e aspirações dados
por Deus ao hom em . Ele quase não tem feito os seus
preparativos para uma vida plena e inteligente antes de
chegar a sua hora de partir.” 18
Deus tem uma eternidade planejada para que nela
floresçamos. A existência no céu não será estática, mas um
desenvolvimento continuado, pois, embora perfeitos quanto
formos, poderemos continuar m udando e crescendo. O
menino Jesus era perfeito e, contudo, lemos que ele crescia
“em sabedoria, e em estatura, e em graça para com Deus e os
homens” (Lucas 2:52). Os anseios e aspirações dos incrédulos
permanecerão sem cumprimento para sempre, uma des­
perdiçada zombaria. Deus, porém, trará à luz em Seus filhos
tudo o que Ele implantou em nós, num universo de ilimitada
riqueza e beleza.
O melhor é que tudo isso nunca acabará. A presente vida
é ensombrecida pela consciência de que nada dura, mas essa
sombra será levantada no céu. Richard Baxter denominou a
eternidade “a coroa das coroas”. Em momentos de felicidade
completa, uma voz dentro de nós sussurra: “Eu gostaria que
isto continuasse para sempre”. No céu continuará!
O CÉU NOS CHAMA
Para onde vamos daqui? Tudo depende de onde o “aqui”
está. Qual é a sua relação com o céu?
Você ainda está fora? Até aqui você tem levado uma vida
de rebelião contra Deus. Nunca chegou a confiar em Cristo
como Salvador. Seus pecados permanecem não perdoados e o
dia da sua condenação vem chegando. Contudo, nas páginas
anteriores você leu um pouco sobre a felicidade e a glória do

18 Loraine Boettner, Immortality (Imortalidade), Filadélfia: Presbyterian &


Reformed, 1956, p. 66.

175
CÉU E INFERNO
céu. Você não quer ir para lá? Não seria uma tragédia para
você, descobrir tanta coisa sobre o céu e perdê-lo afinal? A
única porta do céu é o Senhor Jesus, e essa porta ainda está
aberta. Venha a Ele e, por meio dEle, entre no gozo da vida
eterna. Por que você O recusa? Que boa razão você pode dar
para rejeitar Cristo e escolher o inferno? Se você pedir a
Jesus Cristo que o receba agora, Ele o fará. Abandone o pecado
e a morte e clame a Cristo para que o salve. “Porque Deus
amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigê-
nito, para que todo aquele que nele crê não pereça mas tenha
a vida eterna” (João 3:16).
Ou pode ser que você seja um crente necessitado do
presente encorajamento que o céu nos propicia. A vida pode
ser dura, e palavras bonitas não mudam isso. Mas “as aflições
deste tempo presente não são para comparar com a glória que
em nós há de ser revelada” (Romanos 8:18). O céu vai chegar
rapidamente, e “nossa leve e momentânea tribulação pro­
duz para nós um peso eterno de glória muito excelente” (2
Coríntios 4:17). Quanto maiores forem as nossas dificuldades,
maior será depois a nossa glória. Estas coisas logo passam, e
nós estaremos com o Senhor para sempre.
E todos nós que somos de Cristo devemos viver mais
coerentemente à luz do céu. Devemos ter a mente mais voltada
para o céu, pois a nossa cidade está lá (Filipenses 3:20). Esta
doutrina nos concita a que paremos de correr atrás das
ninharias desta vida e acumulemos tesouros no mundo por
vir. Não devemos negar com nossa vida o que professamos
com os nossos lábios.
Espero encontrar-me com você na glória eterna. Até
então, queira Deus fazer de nós homens e mulheres em cujos
rostos esteja brilhando a luz do céu, vivendo nós de tal
maneira que os outros vejam que somos diferentes. Então
poderemos levar muitos para o céu conosco.

176
Depois da Morte
O Quê ?
Este livro ocupa-se com o mais popular e o mais impopular de
todos os ensinamentos cristãos - o céu, por um lado, e o inferno,
por outro. Todavia, os dois ensinos precisam estar sempre juntos, e a
Bíblia e o ensino cristão ao longo dos séculos sempre têm feito o que
Ted Donnelly faz nesta série de palestras - m antido os dois juntos
sem perm itir que um dos ensinos seja enfatizado em detrim ento do
outro.
Nesta obra extraordinária, Donnelly salienta o pano de fundo
sombrio de ensino bíblico sobre o inferno, para que sejamos
alertados a fugir dele, a fim de que a realidade gloriosa do céu possa
tornar-se cada vez mais brilhante e atrair-nos fortemente.
Semelhante à obra anterior do autor publicada pela Banner of
Truth, Peter, Eyewitness ofHis Majesty (Pedro, Testemunha Ocular de
Sua Majestade), este livro transborda com realismo bíblico e calor
pastoral.
Edward Donnelly é ministro da Trinity Reformed Presbyterian
Church (Igreja Trinity Presbiteriana Reformada), Newtownabbey e
Professor de Novo Testamento no Reformed Theological College
(Seminário Teológico Reformado) de Belfast, Irlanda do Norte. Ele é
apreciado como pregador e conferencista.

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS


Rua 24 de Maio, 116 - 3o andar - salas 14-17
01041-000 - São Paulo - SP

Anda mungkin juga menyukai