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FocaiiZéllll se, r1este l1vro, o rnClmento h1stc'mco
cultural e os L_1tores que mfluíré11n 110
desenvolv1mer1to llngLIÍStlco. Estud<-lrn se o lóx1co
e as característrcas gera1s forlét1co-ortoqrM1célS,
-morfológicas e smtát1cas da lír1gua Vélr1os textos
comentados St:r\jem de exempl1f1cacão aos tracos
ling(iísticos Jpontados
Dulce de F<-ma: Pa1va ó éx professora de I

Filolog1a e Língua Portuguesa dél Un1vers1dade de lt


São Paulo.
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Língua Portuguesa Lrngüíst1cil Literatura

éJm-ra-r CÚ'e.tM ela .rb<ie


Admmistr3cão Antropologia Artes
CiênCias Clvliizacão Comunicacões D1re1to
Educacão Estét1ca F1losof1a Geograf1a
H1stória Polít1ca Ps1cologia Soc1olog1a J
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Direção
Benjamin Abdala Junior
Sarnira Youssef Campedelli
Sumário
Preparação de texto
lldete Oliveira Pinto
Projeto gráfico/miolo
Antônio do Amarai Rocha
Coordenação de composição
(Produção/Paginação em vídeo)
Neide Hiromi Toyota
Capa
Ary Normanha
Antonio Ubirajara Domiencio

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I··' . Nota prévia _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 5
I - Notações histórico-teóricas _ _ _ __ 7
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1. A língua literária no século XV - - - - - - - - -
Fatores educativos e culturais - - - - - - - - -
8
9
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•d., ' -." -~\(\" Importância da Gramática 10
Bt I 1rr::. '• 2. O léxico
A prosa
12
14
Pragmática e preceptiva, 14; Retórica, 15; Narrativa, 17;
Vocabulário básico, 23; Arcaísmos, 26; Neologismos, 27.
00:.-."0
r:'·. .::: 13
A poesia 29
Vocabulário básico, 30; Arcaísmos, 31; Neologismos, 31.
3. Fonética e ortografia - - - - - - - - - - - - - - 33
ISBN 85 08 02816 4 Morfofonética - - - - - - - - - - - - - - - - 41
4. Morfologia - - - - - - - - - - - - - - - - - 42
Substantivos 42
Adjetivos 43
1988 Gradação, 44.
Todos os direitos reservados
Pronomes - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 44
Editora Ática S.A. - Rua Barão de lguape, 110
Tel.: (PABX) 278-9322 - Caixa Postal 8656 Artigos - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 47
End. Telegráfico "Bomlivro" - São Paulo Verbos 47
Numerais 51
51
Palavras invariáveis
Advérbios, 51; Conjunções, 53; Preposições, 53; Interjei- Nota prévia
ções, 54.
5. Sintaxe e recursos estilísticos
Pronomes
56
56
I
~
Partitivo 57
Distributivos 58
Verbos 59
Regência verbal, 62; Verbos pronominais, 69; Perífrases,
70; Expressões de tempo, 71.
Conjunções - - - - - - - - - - - - - - - - - 72
A frase------------------ 76
Períodos 77
Recursos estilísticos 79
Colocação 81 ~
Verbos, 81; Sujeito, 82; Pronomes átonos, 82; l Este livro integra um conjunto de seis volumes, organizados pelo
Adjetivos qualificativos, 84. Prof. Dr. Segismundo Spina, da Universidade de São Paulo, com o
6. Considerações finais - - - - - - - - - - - - - - 86 título História da Língua Portuguesa, dentro da Série Fundamentos.
Foram efetuados, nesse sentido, os seguintes recortes:
11 -Textos anotados 89 I - Século XIII e século XIV (Fundamentos n. 21, por Oswaldo
1. Leal conselheiro, de D. Duarte 90 Ceschin);
Notas 91 II - Século XV e meados do século XVI (Fundamentos n. 22, por
2. Crônica de D. João I, de Fernão Lopes 95 Dulce de Faria Paiva);
Notas 96 III - Segunda metade do século XVI e século XVII (Fundamentos
3. Crônica da tomada de Ceuta, de Gomes E. de Zurara _ 100 n. 23, por Segismundo Spina);
Notas 101 IV- Século XVIII (Fundamentos n. 24, por Rolando Morei Pinto);
4. Menina e moça, de Bernardim Ribeiro _ _ _ _ _ 104 V - Século XIX (Fundamentos n. 25, por Nilce Sant' Anna Mar-
Notas ____________________________ 105 tins) e
5. Écloga Basto, de Sá de Miranda _ _ _ _ _ _ _ 109 J. VI -Século XX (Fundamentos n. 26, por Edith Pimentel Pinto).
Notas ____________________________ 111 Embora cada volume guarde certa independência, eles não dei-
6. Romagem de agravados e Auto pastoril português, de Gil xam de respeitar entre si padrões de uniformidade (internos e exter-
Vicente 114 nos) para uma visão sintética e objetiva da história de nossa língua,
Notas 115 desde suas origens portuguesas até às formas da apropriação brasi-
leira. Permanece um mesmo sistema lingüístico, conforme poderá ser
Vocabulário crítico - - - - - - - - - - - 120 verificado nos estudos teóricos que precedem as análises de text?s re-
presentativos dos períodos que marcaram nossa língua literána.
Bibliografia comentada - - - - - - - - - - - - 122
Os editores

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-- ... --
FATORES EDUCATIVOS E CULTURAIS 9

1 O português comum, decalcado progressivamente no padrão so-


cial e regional de Lisboa e Coimbra, serviu de base não só para o de-
senvolvimento da prosa de caráter informativo, mas também para o
aparecimento da prosa literária.
A língua literária no século XV Para o desenvolvimento da língua da prosa contribuíram diver-
sas fontes, entre as quais as mais importantes foram as que resulta-
ram de traduções do latim, feitas por religiosos, principalmente dos
mosteiros de Alcobaça e de Santa Cruz, centros afamadíssimos de
J. cultura.
Destinadas a instruir e edificar os fiéis sobre assuntos religio-
sos, e já não entendendo eles o latim, estudado e conhecido, na épo-
ca, apenas pelos clérigos, tais traduções foram de suma importância
para o enriquecimento da cultura e da língua, mormente pelo fato
de alargarem o vocabulário, fornecerem exemplos de construção sin-
tática e de tipos de frase, além de outros processos de ampliação de
capacidade expressiva.

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Fatores educativos Com o passar do tempo, a expansão e
Nos meados do século XIV, em razão de diversos acontecimen-
tos históricos, o galego-português cedeu lugar à língua portuguesa.
e culturais o progresso da Universidade, bem co-
A língua galego-portuguesa prestava-se a diversos fins: não só mo o constante intercâmbio de portu-
era veículo de expressão lírico-literária, em poesia, mas também, em gueses com outros institutos universitários e personalidades ilustres
forma de prosa, aparecia em documentos, de preferência cartulários, de diferentes países, o conhecimento do latim difundia-se cada vez
bem como na fala. mais, tornava-se acessível também a leigos, sobretudo da classe no-
Entretanto, com a independência de Portugal, as circunstâncias bre ou a ela ligados, crescendo sua influência a tal ponto, que até mes-
sociais, econômicas e culturais tomaram outros rumos e o galego- 4 mo as mulheres se aplicariam ao seu estudo no século seguinte.
português já não correspondia mais às novas necessidades; o portu- O latim, na época, funcionava como língua internacional, ser-
guês seguiu então seu curso, em separado, passando a assumir carac- vindo de veículo de comunicação da filosofia, da ciência e das letras;
terísticas próprias como instituição da nova nacionalidade. por conseqüência, foi um dos elementos mais relevantes da educação
Após a independência, a primeira dinastia dos reis de Portugal e da cultura.
tendeu a localizar-se na região entre o Mondego e o Tejo; o mecena-
Na Igreja seu uso já se tornara corrente de há muito e, como
tismo, que favorecia os trovadores, tornava-se cada vez menos inten-
so; a Universidade ora se estabelecia em Coimbra, ora em Lisboa; ~ a hegemonia do ensino sempre estivera em suas mãos, em todas as
a Corte, transferindo-se constantemente para as cidades de Coimbra, escolas monacais e episcopais, o estudo da língua latina tinha presen-
Santarém, Évora, Lisboa, fixou-se nesta última; vários outros even- \I ça constante.
tos históricos levaram, assim, o eixo político da nação a deslocar-se As informações e os documentos acerca da organização dos cur-
do Norte para o Sul do país e, aos poucos, foi-se formando uma lín- rículos naquelas escolas, em Portugal, pouco nos esclarecem sobre
gua de livre trânsito entre as camadas sociais, denominada comum particularidades do ensino durante a Idade Média; contudo, algumas
(coiné) por Serafim da Silva Neto (1). notícias esparsas dão-nos conta de que, em 1269, o abade D. FreiEs-
têvão Martins organizou as escolas alcobacenses, determinando que
(I) História da língua portuguesa, p. 404. \ no mosteiro houvesse aulas de Teologia, Lógica e Gramática (língua

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10 A LÍNGUA LITERÁRIA NO SÉCULO XV
IMPORTÃNCIA DA GRAMÁTICA 11

latina), não só para religiosos, mas também para escolares não desti- gente ainda no século XVI. Tratava-se de um manual de sentenças
nados a abraçar carreira eclesiástica (1). e máximas, que servia ao mesmo tempo de "vocabulário de leitura,
Da Universidade de Coimbra, estabelecida por D. Dinis, em Lis- de pauta escrita e de enquirídio (coleção) de ensinamentos morais" (1).
boa, no século XIII, têm-se informes mais circunstanciados por uma
No segundo grau, completava-se a aprendizagem com os ''li-
carta do rei, datada de 1309, que regulamentava os Estudos Gerais
vros maiores", de nível mais elevado, provavelmente a Ars Maior de
(primeiras designações dadas às Universidades, para indicar escolas
Donato, o Doctrinale de Alexandre de Villedieu (ou Villa Dei), do
abertas a alunos de toda parte) e se referia ao currículo dos cursos
século XII, ou as Institutiones de Prisciano, todos versando assuntos
desenvolvidos pelas "cadeiras" de Direito Canônico, Direito Civil,
gramaticais e outros correlatas (2).
Medicina e Artes, que abrangiam Gramática, Dia/ética e Retórica.
Há uma alusão aos dois graus, no alvará de outubro de 1357,
dirigido por D. Pedro I ao reitor da Universidade de Coimbra, com
a determinação expressa de que "bacharéis e escolares", no caso de
Importância A iniciação aos conhecimentos elementares da darem aulas fora do âmbito universitário (aulas particulares), só ti-
da Gramática Gramática, nos Estudos Gerais, consistia em nham licença de usar os "livros menores", isto é, as Partes ou Re-
aprender a ler e a escrever em latim; quanto à gras, o Gaton e a Cartulla; quanto aos "livros maiores", proibia-lhes
língua portuguesa, embora convertida em língua oficial desde o rei- sua adoção por serem destinados aos cursos de grau superior da com-
nado de D. Dinis, continuava a ser aprendida espontânea e natural- petência exclusiva da Universidade.
mente, fora dos bancos escolares, através da comunicação usual do
dia-a-dia, assim permanecendo até o século XVI.
A Gramática era, pois, elemento imprescindível no elenco das
sete artes liberais que compunham, nos cursos universitários, o Tri-
vium - Gramática, Dia/ética e Retórica- e o Quadrivium - Músi-
ca, Aritmética, Geometria e Astronomia. Sua importância, porém,
cresceu tanto, que ela acabou por assumir prioridade nos cursos es-
colares conventuais da Idade Média, convertendo-se praticamente em
a "arte por excelência", o que levou alguns letrados a criticarem o
demasiado relevo dado a ela pelos mestres da época (2).
Seu estudo desenvolvia-se em dois graus: no primeiro, os alu-
nos aprendiam a ler na Cártula (Cartulla), espécie de cartilha, passa-
vam às Regras, talvez de composição escrita, e, em seguida, ao estudo
de sintaxe, nas Partes ou Partes orationis, mais conhecida como Ars
Minor de Donato e, finalmente, ao Gaton, denominação provável do
Disticha Catonis, de autor desconhecido, mas muito em voga nas es-
colas medievais.
Deste Gaton há uma tradução castelhana, Castigos e Enxem-
pros de Caton, impressa em 1531, o que prova sua influência vi-

(I) BRANDÃO, Mário & D'ALMEIDA, M. Lopes- A Universidade de Coimbra. Es-


boço da sua história. Lisboa, Academia Real das Ciências, 1892, t. I, p. 6.
(I) Joaquim de Carvalho, Estudos sobre a cultura portuguesa do século XV, v.
(2) BRAGA, Teófilo- História da Universidade de Coimbra. Lisboa, Academia
I, p. 302 et seqs.
Real das Ciências, 1892, t. I, p. 106.
(2) Idem, ibidem, p. 308.
O LÉXICO 13

2 Na obra mais importante do príncipe, o Leal conselheiro, te-


mos provas desse constante exercício da leitura, pelas freqüentes ci-
tações de autores clássicos como Aristóteles, Cícero, Sêneca, Júlio
César, Valério Máximo, Vegécio, bem como de Santos Padres da Igre-
O léxico ja. Além disso, também traduziu textos latinos, aos quais aludiu na-
quela obra, e encarregou outras pessoas do mesmo trabalho.
No Prólogo do Leal conselheiro afirmava haver escrito seu Tra-
tado para agradar à Rainha, sua esposa, distrair-se dos encargos do
governo, testemunhar sua experiência e transmitir ensinamentos, o
que fez por meio de conselhos e observações a respeito de diversos
assuntos, sobretudo de ordem moral.
Seus "avysamentos" (conselhos), concernentes à tradução do
latim, ainda são válidos, até certo ponto: conhecer bem o texto que
se vai traduzir, não empregar palavras /atinadas, mas termos de uso
corrente no falar, manter a ordem que se deve ter em qualquer texto
escrito, expressar-se de modo claro e correto, paragrafar e apontar
(pontuar) bem.
Contrariando os próprios conselhos para evitar o emprego de
palavras /atinadas, ele mesmo as adotava quando, à míngua de ter-
mos portugueses, não conseguia expressar conceitos abstratos ou de-
O estudo da Gramática não se restringia à escolas religiosas ou finir estados subjetivos.
às Universidades: o próprio D. Duarte, no segundo quartel do século Nessas condições, a necessidade de exatidão no emprego de tais
XV, preconizava que logo de começo os jovens de boa linhagem fos- palavras levava-o, muitas vezes, a acrescentar imediatamente expli-
sem ensinados a ler, escrever, e a falar latim, com a finalidade de ad- cações.
quirirem, em bons livros, não só escritos em língua latina, mas também
Da yra, seu próprio nome em nossa lingoagem he (é) sanha, que vem
em linguagem (língua portuguesa), os conhecimentos formadores de de hüu (um) arrevatamento (arrebatamento) do fervor de coraçom, por
uma vida virtuosa. Aconselhava ainda leiturâs de textos de filosofia desprazer que sente, com desejo de vyngança ...
moral e de "ensinança de guerra" (1). (D. Duarte, Leal conselheiro, p. 56)
A cultura do príncipe, atualizada e de nível considerável para ... do odio ou segundo nosso lingoagem malquerença, que he hüu con·
a época, contudo, não fora adquirida em bancos escolares, pois se- tinuado desejo de mal ...
gundo o cronista Rui de Pina, D. Duarte (Idem, ibidem, p. 61)
era amador de sciencias, de que teve grande conhecimento, e nom per Da occiosidade, em nosso lingoagem seu nome mais apropriado he
descurso (por cursar) d'esco//as, mas per continuar d'estudar, e leer per priguiça ...
bõos livros (por estudar constantemente e ler bons livros), ca (pois) so- (Idem, ibidem, p. 98)
mente foi gramatico (prosador de vasto vocabulário) e algum tanto lo-
gico (escritor que adotava artifícios retóricos e argumentativos) ... (2). Em casos de sinonímia, muitas vezes fazia questão de esclare-
cer as diferenças existentes entre palavras de sentido semelhante; as-
(1) DUARTE, D. -Livro da ensinança de bem cavalgar toda sela. Ed. crítica com sim, distinguia tristeza, pesar, nojo, aborrecimento e suidade (saudade)
notas e gloss. por Joseph M. Piei. Lisboa, Bertrand, 1944. p. 120 et seqs. ou então, avisado, percebido, previsto, circunspecto.
(2) Chronica do Senhor Rey Eduarte. Colleção de livros inéditos de história portu- Quando D. Duarte introduzia latinismos, aportuguesava as for-
guesa, t. I, p. 79-80. Apud D. Duarte, Leal conselheiro (ed. críL e anot. por Joseph
M. Piei. Lisboa, Bertrand, 1942), p. 7. mas latinas, acomodando-as à pronúncia e à ortografia da época.
14 O LÉXICO A PROSA 15

Mais tarde, na segunda metade do século XVI, este processo Propuseram-se então este trabalho, criando uma prosa com mui-
repetiu-se de novo, em grande escala, mas de modo inteiramente di- tas imperfeições, talvez pouco literária, mas extremamente fecunda,
verso: os neologismos latinos incorporavam-se à língua, conservan- no sentido de possibilitar o desenvolvimento, quer da prosa de fundo
do a ortografia original, com adaptação mínima à fonética portuguesa. filosófico, de construção lógica, adequada a trabalhos teológicos, ju-
Freqüentemente os escritores reintroduziram termos que já fa- rídicos, de tipo universitário, quer da de fundo subjetivo, de funda-
ziam parte do léxico, porém haviam sofrido modificações através da mento moral, mais propícia a interpretações da psicologia humana.
evolução fonética. Ex.: chama (evolução de)jlama, alegre (evolução Podem, pois, ser considerados os criadores da prosa pragmática e pre-
de) álacre e muitas outras que constituíram as chamadas formas di- ceptiva.
vergentes. Sua contribuição, porém, revelou-se muito mais produtiva e efi-
caz, na parte referente ao vocabulário, do que na da sintaxe e na da
construção da frase.
A explicação deste fato é simples: D. Duarte e D. Pedro, habi-
A prosa tuados aos padrões da frase latina (escrita) de períodos longos, com
inversões e muitos nexos subordinativos, mas, igualmente sensíveis
Pragmática e preceptiva
às formas frouxas da língua falada, à qual D. Duarte se reporta mui-
tas vezes, optaram, de um lado, pelos modelos latinos, construindo
Os esforços de D. Duarte foram sumamente relevantes para o frases enredadas, períodos extensos e com muitas orações subordina-
desenvolvimento da prosa; entretanto, mesmo levando-se em conta das, colocando freqüentemente os verbos no fim dos períodos ou fra-
ses, e usando, com freqüência, orações infinitivas e gerúndios. Por
muitas de suas páginas, em que demonstra aguda observação psico-
lógica, bastante sensibilidade e até certa habilidade no manejo da lín- outro lado, recorrem à coordenação e abusam da conjunção coorde-
nativa e, apondo-a sempre no início dos períodos, como veremos em
gua, trata-se de importante precursor da prosa artística.
Ele mesmo afirma no Prólogo do seu Tratado, exemplificação posterior.

... ter mais tençom (intenção) de bem mostrar a sustancia (conteúdo)


do que screvia que a fremosa e guardada (formosa e cuidada) maneira Retórica
de screver... (os grifos são nossos).
Outro príncipe da Casa de Avis, o infante D. Henr!q~. irmão
O irmão de D. Duarte, o infante D. Pedro, também extrema- de D. Duarte e D. Pedro, teve contribuição de natureza diversa para
mente devotado à cultura, escreveu, em parte, a Virtuosa benfei- o desenvolvimento da prosa literária: além de ampliar a Universida-
toria e fez algumas traduções (Cícero e Sêneca). Dedicado ao latim de de Coimbra (1431), com doação de imóveis, alterou seu currículo,
e à escolástica, e deparando as mesmas dificuldades, sobretudo lexi- dando realce aos estudos de Retórica, ao considerá-Ia como discipli-
cais, já encontradas pelo irmão, de igual modo, incorporou à prosa na independente, pela primeira vez, na história da Universidade. Com-
inúmeros latinismos, reforçando o processo que se avolumaria no sé- pletava, desse modo, o Trivium, até então constituído apenas pela
culo XVI. Gramática e a Dia/ética ou Lógica. A par disto, introduzindo a Arit-
Como, na redação de suas obras, ambos os príncipes encontras- mética, a Geometria e a Astronomia, fazia o mesmo com o Quadri-
sem grandes dificuldades, em virtude da ausência de textos em língua vium, que só constava da Música até essa época.
portuguesa, sobre assuntos abstratos, de ordem filosófica ou moral, Na prática, parece que tais inovações não se caracterizaram: em
tornava-se necessário, não só criar termos, introduzir neologismos, 1504, por ocasião da reforma dos estudos universitários, foram cita-
mas também desenvolver um tipo de construção sintática que pudes- das diversas "cadeiras", inclusive as de Gramática e Lógica, sem que
se expressar as relações lógicas do pensamento racional. se mencionasse a de Rerórica, embora Cataldo Sículo (Epístolas) de-
A PROSA 17
16 O LÉXICO

Os fatos apontados e a inexistência (assim afirmam os autores)


clarasse que viera aos reinos (de Portugal) ensinar Retórica na Uni-
versidade de Lisboa (1). de obras preceptivas literárias ou de artes poéticas, escritas em portu-
A não inclusão desta disciplina, como autônoma e com profes- guês, talvez em decorrência da posição secundária da língua portu-
sor específico, não implicava fosse ela desconhecida ou ignorada. guesa em relação ao latim, levam-nos a concluir que os modelos
Religiosos e leigos conheciam a Retórica, dada sua importân- literários medievais eram os clássicos, no original, ou em excertos,
cia, na época, para fins de pregação doutrinária, preleção política sob e, eventualmente, através dos espanhóis.
pretexto religioso (discursos em Fernão Lopes e Zurara), ou subsídio Em suma, a Retórica constitui capítulo à parte, quer dos ângu-
para aperfeiçoamento do estilo de prosadores e poetas. los literários ou lingüísticos, quer dos pontos de vista profano oure-
Grande número de manuscritos medievais, nas bibliotecas dos ligioso, de modo que escapa aos objetivos e ao caráter desta obra
mosteiros, comprovam o interesse pela arte oratória, nesse período. maior prolongamento do assunto, apesar de sua relevância.
Os estudos de Retórica a serviço da religião faziam-se quer pela
leitura dos clássicos, quer através de sermonários, repertórios de tex-
tos, coletâneas de exempla (exemplos-historietas, apólogos, parábo- Narrativa
las, fábulas etc.) e artes praedicandi (artes de pregar), abundantes em
tais bibliotecas (2). À medida que a língua progredia na forma prosaica e se enri-
A Retórica profana era estudada em obras de Cícero, sobretu- quecia não só com as traduções latinas religiosas ou profanas, mas
do (Da invenção), e na obra do espanhol Santo Isidoro de Sevilha também com as obras de portugueses- príncipes da Casa de Avis
(Retórica). J; -, foi-se desenvolvendo outro tipo de prosa cujas raízes vinham de
Os leitores que não tinham acesso aos textos originais recorriam manifestações literárias ou não, que se haviam tradicionalizado nos
aos excertos constantes de antologias, extremamente comuns, na Idade séculos XIII e XIV.
Média (João de Gales, Aretino e outros). Tais manifestações, entre as quais se contavam as Crónicas e
Os estudos retóricos contribuíam para a organização do pensa- os Nobiliários, bem como os romances ou novelas de cavalaria, eram
mento e a disposição esquemática dos assuntos (segundo as regras da do gênero narrativo, de linguagem muito próxima da língua falada.
Lógica), via processos escolásticos rígidos, mas que, apesar disto, não Na linha dessa tradição é que surgiu a Historiografia.
constituíam entrave para o desenvolvimento da linguagem, em face Seu criador- Fernão Lopes - foi o primeiro cronista-mar do
da suma importância atribuída às palavras, nos seus significados lite- reino português, encarregado pelo rei D. Duarte de:
ral e alegórico.
Ao tratar dos métodos pedagógicos na Idade Média, Antônio poer (pôr) em caronyca (crónica) as estoryas dos Reys que antygamen-
te em Portugal forom (existiram).
J. Saraiva chega mesmo a afirmar que o texto e as suas palavras eram
o objeto do ensino nas Universidades medievais (3).
A despeito de sua importância, a Retórica só teve relevo no pe- Atribuíram-lhe as crônicas de todos os reis de Portugal, porém,
ríodo renascentista, no segundo quartel do século XVI, quando foi após longos estudos, os críticos concluíram que escreveu efetivamen-
colocada em destaque nos currículos das escolas oficiais e enfatizado te: Crónica de D. Pedro, Crónica de D. Fernando e Crónica de D.
seu cunho literário, ao ser transformada em método novo de filoso- João I (nas duas primeiras partes).
far, em contraposição à escolástica dos fins da época medieval (4). Os objetivos do cronista estão expostos com clareza no Prólo-
go da Crónica de D. João I:
~
(1) BRAGA, Teófilo - História da Universidade de Coimbra, p. 292. Se outros por ventuira (porventura) em esta cronica buscam fremosura
(2) CARVALHO, Joaquim de- Estudos sobre a cultura portuguesa do século XVI. e novidade de pa/lavras (beleza e emprego de palavras novas), e nom
Coimbra, Universidade, 1948, v. II, p. 222-3. a certidom das estorias (e não a verdade da história), desprazer lhe ha
(3) História da cultura em Portugal. Lisboa, Jornal do Foro, 1950, v. I, p. 119. de nosso rrazoado (desagradar-lhe·á nosso escrito (crónica) ... (os gri-
(4) CASTRO, Aníbal P. de- Retórica e teorização literária em Portugal. Do Hu- tos são nossos).
manismo ao Classicismo. Coimbra, Universidade, 1973, p. 17-8.
18 O LÉXICO A PROSA 19

No mesmo Prólogo mais duas passagens reforçam seus pontos parações, de metáforas, tipos de linguagem figurada indicadores de
de vista: expressar a verdade e não preocupar-se em aformosear seus sensibilidade estética.
escritos: Vejamos, a exemplo, algumas comparações:
... antepoemos (antepomos) a simprez (simples) verdade, que a afremo- ... quantas vezes o Meestre (Mestre) cavalgava pela vila, era acompa-
sentada (embelezada) falssidade (os grifos são nossos).
nhado do comüu poboo (do povo comum), como se das mãos dei/e cais-
sem tesouros que todos ouvessem (houvessem) d'apanhar (de apanhar).
E mais adiante pergunta: ("Crónica de D. João /", cap. 20. Apud Rodrigues Lapa,
Que logar nos ficaria pera a fremosura e aleitamento (adorno) das História da Literatura Portuguesa. Época Medieval,
pallavras, pois (visto que) todo nosso cuidado em isto despeso (des- 8. ed. rev. e acresc. Coimbra, Coimbra Ed., 1973, p. 389)
pendido) nom abasta (não basta) pera hordenar (pôr em ordem) a nua
Como estrella da manhãa foi claro (ilustre) em sua geeraçom (geração,
verdade? (1).
filiação), seendo (sendo) de honesta vida e homrrosos feitos, no qual
parecia que rrelluziam os avisados (sensatos) costumes dos antigos ...
Dono de cultura bastante razoável, adquirida no Estudo Geral (Fernão Lopes, obra cit., p. 57)
ou em alguma escola monástica, conhecendo bem o latim e autores
clássicos do porte de Aristóteles, Cícero, Ovídio, Fernão Lopes não Os fidalgos que acompanhavam (acompanhavam) com o Comde e os
tinha por costume ostentar erudição. que com elle viviam ... viinham (vinham) já todos armados pera (para)
Apesar de sua modéstia intelectual e do propósito confesso de o Paaço (Paço) da Rainha e viimdo (vindo) muito acerca (próximos) del-
les, a volta da gente que começava de ferver pela rua, e algüus (alguns)
ater-se à verdade e de não ter preocupação com a maneira de escre-
que sahirom (sairam) de dentro lhe disseram (disseram) que nom fos·
ver, suas obras d'!notam extrema sensibilidade artística, não só no
se la ...
processo de organização da narrativa, inspirado nas novelas de cava-
(Idem, ibidem, p. 57)
laria, mas também na qualidade expressiva e estética da sua linguagem.
. Seu estilo narrativo é dramático, isto é, ao invés d.e expor os
acontecimentos em ordem cronológica, intercala exposições com diá- Na parte grifada temos exemplo do emprego metafórico do ver-
logos, faz descrições vivas e coloridas, estabelece nexos entre um epi- bo ferver, significando que as ruas estavam muito cheias de gente
sódio e outro e vai chamando a atenção do leitor, como se seus textos agitada.
fossem feitos para leitura em voz alta, à moda dos contadores ou lei- ... e os genetes (ginetes) sse apartaram (afastaram) com a carriagem
tores de "estórias". (carro) em hüa ladeira dhüu (de um) pam verde, logo açerca dhu (perto
A linguagem é simples, corrente e espontânea, dentro das limi- de onde) avia (havia) de seer a pelleja.
tações que a prosa de então náturalmente apresentava, comparada (Idem, ibidem, p. 102)
à dos escritores citados anteriormente; é de clara e fácil compreen-
são, seja pelo vocabulário, seja pela construção sintática da frase, pos-
Em ladeira de umpam (pão) verde (cereal verde) há uma meto-
sivelmente mais decalcada na linguagem falada do que na retórica.
nímia em que se substitui a substância de que alguma coisa é feita,
Seus períodos ainda são longos, com bastante subordinação, mas
sem obscuridade; seus diálogos fluem naturalmente, cheios de viva- pelo produto.
cidade e, associados às ações das personagens, contribuem para Estas passagens e muitas outras que poderiam exemplificar a
"pintá-las" com extraordinária veracidade. prosa e a linguagem de Fernão Lopes, justificam o título de "pai da
Neste ponto do desenvolvimento da prosa, já se pode falar de prosll portuguesa", como alguém o denominou, e marco inicial da
estilo literário, visto que, em suas obras, Fernão Lopes fez uso de com- prosa literária.
Seu sucessor, o cronista Gomes Eanes de Zurara (ou Azurara),
(I) Crónica de D. João I. Pref., notas e gloss. de Joaquim Ferreira. 2. ed. Porto, que continuou a Crônica de D. João I (terceira parte a que denomi-
Domingos Barreira, p. 43-4 (Coleção Portugal). nou Crônica da tomada de Ceuta), escreveu também a Crônica dos
20 O LÉXICO
~ A PROSA 21

feitos de Guiné, a Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, primeiro de sua vertude, segundo mais compridamente (mais extensamente) reza
capiHio de Ceuta, e a Crónica de D. Duarte de Meneses, filho do ca- (escreve) Vallerio (Valério Máximo- historiador romano), na soma (sú-
mula) que fez da Estoria Romãa (História Romana) (1).
pitão (1).
Foi inteiramente diverso de seu antecessor tanto na maneira de
trabalhar quanto na de usar a língua. Note-se como o Autor nomeia Santo Agostinho, Tito Lívio e
A erudição de Zurara era leiga e fora adquirida em idade ma- Valério Máximo para abonar um feito de pequenas proporções.
dura, talvez de modo autodidático, dada a variedade dispersiva com Esta passagem, como outras de Zurara, atesta, de igual modo,
que demonstrava a leitura de clássicos gregos e latinos, de padres da os primeiros sinais da formação do espírito clássico humanístico re-
Igreja, de tratados de teologia ou de filosofia escolástica e de histo- nascentista e suas implicações em relação à prosa clássica.
riadores medievais e clássicos, entre os quais Salústio, Valério Máxi- Em outro passo, referindo-se às diversas maneiras de que se ser-
mo e, de preferência, Tito Lívio. vem os homens para serem lembrados após sua morte:
, Fazia citações constantemente, via de regra, de segunda mão e, E porem (por isso) dezia Alexamdre (Alexandre Magno) ho (o) gram (gran-
"mais do que o conhecimento dos fatos", foi cativado pelas "digres- de) rrey de Macedonia, que elle seria bem comtemte de trocar a pros-
sões", as tiradas declamatórias e as reflexões morais do escritor latino (2). peridade que lhe os deoses tijnham (tinham) aparelhada, e afastar sua
mãao de toda parte que lhe no ceo (céu) podiam dar, por aver (haver)
Tais processos de expressão devem ter contribuído muito para
hüu tam alto e tam summo autor pera seus feitos, como ouvera (hou-
a constituição da prosa retorizante que prenunciava a de João de Bar- vera) Achille (Aquiles, herói da llfada) em Omero (Homero) (2).
ros no século seguinte.
Foi mais um "bonus Grammaticus" (Mateus Pisano), isto é, E para não se alongar muito apresenta-se um exemplo de hi-
um bom gramático (3), do que propriamente um historiador. pérbole:
Alguns autores consideram-no o primeiro representante da lite-
ratura apologética e imperial da expansão ultramarina, que deu lu- Mas he de consijrar (mas é de considerar) com quaaes comtenenças
(semblantes) os lffantes (Infantes) podaram ouvir semelhantes palia·
gar à literatura heróica e épica da segunda metade do século XVI, vras, ca (porque) no trautamento (desenvolvimento, decorrer) de seme-
cujo maior representante foi Camões (4). lhante rreziado (conversa) nom podia seer, que escusassem (deixassem
No que concerne a citações, qualquer fato inspirava a Zurara de) gramde multidom de lagrimas ...
uma série delas, nem sempre necessárias e, algumas vezes, até pouco (Crónica da tomada de Ceuta, p. 71)
oportunas.
A respeito da homenagem que certo cavaleiro português dese- Depois da morte de Zurara, na segunda metade do século XV
jou prestar a um patrício: (1473 ou 1474), ocuparam o cargo dois cronistas sucessivos, de me-
nor importância, seguindo-se logo um terceiro, Rui de Pina, que efe-
... ca costume era antre os Romãaos (romanos), segundo poem
(põe = escreve) Santo Agostinho, naquelle livro que fez De Civitate Dei tivamente deu continuação à Crônica Geral do Reino.
(Da cidade de Deus), e Tito Lívio em suas Décadas, que todos aquelles Este cronista elaborou as Crónicas de D. Duarte, D. Afonso V
que primeiramente feriam (atacavam) nas batalhas, ou entravam em mu- e D. João II, além de uma série de outras referentes a reis portugue-
ros, ou saltavam (entrar de improviso) em navios, per conseguinte lhe ses, anteriores a D. Pedro, que ele reescreveu, decalcando-as nas de
(lhes) davam avantajados acrecentamentos (acréscimos, vantagens) em
Fernão Lopes, não só as autênticas, mas também as atribuídas a ele,
sua honra, os quaaes levavam no dia do triumpho, em Testemunho
sem tocar no nome do autor.
(1) Em Portugal, a palavra crónica leva acento agudo (crónica).
(2) Joaquim de Carvalho, Estudos sobre a cultura portuguesa do século XV, v. I, p. 60. (I) Crónica dos jeitos de Guiné. Pref., se!. e notas de Álvaro Júlio da Costa Pim-
(3) Bom gramático: pessoa versada na prosa, de vasto vocabulário e estilo retórico. pão. Lisboa, Livr. Clássica, 1942, p. 50 (Clássicos Portugueses).
(4) SARAIVA, A. J. & LOPES, Óscar -História da literatura portuguesa. Porto, (2) Crónica da tomada de Ceuta. Intr., se!. e notas de Alfrédo Pimenta. Lisboa,
Porto Ed., s.d., p. 105. Livr. Clássica, 1942, p. 61 (Clássicos Portugueses) .

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22 O LÉXICO A PROSA 23
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Sendo homem da época de transição, entre os séculos XV e XVI, "' a literária narrativa, iniciada por Fernão Lopes, seguem seus cursos
não teve consciência do momento histórico em que viveu, e "deixa- respectivos, cada uma com características próprias, tornando-se, por
nos a impressão do provinciano impermeável ao alheio, nunca a do sua vez, fontes de gêneros e estilos novos, no século XVI e nos se-
letrado que andou pelas grandes nações onde se respirava a atmosfe- guintes.
ra vibrante do Renascimento" (1).
Em resumo, não obstante haver vivido as duas últimas décadas
Vocabulário básico
de sua existência no século XVI, o cronista conservou-se um homem
da Idade Média, deixando um legado típico do século XV.
Sua linguagem é sóbria, condensada e talvez até um pouco se- • O léxico do século XV apresenta bastante interesse, mas, em ra-
zão de sua variedade, será dada apenas uma visão das formas léxi-
ca, mas já denota um avanço, principalmente em relação à de Zura-
cas, mais generalizadas ou predominantes, nos textos de todos os
ra. Um tanto parca em adornos, com algumas antíteses, aliterações
autores quatrocentistas e nos de alguns quinhentistas.
e expressões metafóricas, não tem a vibração da linguagem de Fer-
não Lopes, todavia é correta, de fácil leitura, com períodos bem or-
ganizados e de certo equilíbrio: Substantivos

E os negros veendo (vendo) com tamanho destroço (devastação) des-


No acervo vocabular básico destacam-se preponderantemente
troir (destruir) os seus Sanctos Penedos sentiram tanto, como se viram os nomes em mento e os terminados em ança, ença. As palavras do
(vissem) quebrar a esperança de toda sua salvaçam (salvaçãoy, e ace- primeiro tipo formavam-se de temas verbais do infinitivo e davam
sos todos em grande furia tomaram suas armas, e assy (assim) deram idéia de ação, sendo sumamente comuns nos autores do século XV
rijo nos officiaaes (ajudantes) ...
(Crónica de El-Rei D. João II, p. 12)
' e até em alguns do século XVI; porém, a partir da época quinhentis-
ta, começam a cair em desuso e, sob o influxo do latim, passam a
f ser substituídas por outras de diferentes terminações.
Na expressão "quebrar a esperança" temos uma metáfora e uma Sendo difícil escolher algumas, dentre as centenas registradas
concretização do termo esperança; e em "acesos em grande juria", nos textos da época, preferiu-se levantar especialmente as que se tor-
igualmente encontramos uma metáfora. naram desusadas ou acusam alterações, quer do significante, quer do
... veo (veio) a elle hum (um) Nücio (Núncio) com Breve do Papa Sixto significado: avysamento (conselho, ensino, advertência- D. Duar-
quarto, per que (pelo qual) por causas e cousas nelle apontadas, por te), em Fernão Lopes, com sentido de "prudência", "cautela" e, em
que parecia principalmente meter indevidamente as mãaos na Igreja, Zurara, "aviso", "informação"; falicimento (falta - D. Duarte),
ho (o) emprazou (intimou) que por sy (si), ou seu Procurador parecesse em Fernão Lopes, também na forma desjallicimento (com igual sig-
(aparecesse) em a Corte de Roma dar dellas razam (razão).
nificado em Zurara e Rui de Pina); lembramento (D. Duarte), a par
(Idem, ibidem, p. 51)
de nembrança e lembrança, que, posteriormente, suplantou as ante-
riores; mostramento (ato de mostrar- D. Duarte) a par de mostran-
Observe-se a aliteração em causas, e cousas, e a metáfora "me- ça (também em Zurara e Rui de Pina); tiramento (ato de tirar - D.
ter as mãaos na Igreja" para significar intrometer-se. Duarte); mudamento (ato de mudar- D. Duarte), a par de mudan-
Com os dois cronistas, Rui de Pina e Garcia de Resende, pra- ça; desprezamento (D. Duarte), a par de despreço (desprezo- D.
ticamente se encerra o ciclo dos historiógrafos medievais. A prosa Duarte); soltamento (ato de soltar - D. Duarte) (1).
informativa e preceptiva, criada pelos membros da Casa de Avis, e Algumas palavras como leyxamento (ato de deixar), empeeci-
mento (impedimento), aqueecimento (acontecimento), comuns em to-
(I) PINA, Rui de - Crónica de EI-Rei D. João II. Nova ed. com pref. e notas de
Alberto Martins de Carvalho. Coimbra, Atlântica, 1950, p. XXXIV (Coleção de Iné-
ditos da Academia das Ciências). (I) M. Said Ali, Gramática histórica da língua portuguesa, p. 240-1.

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24 O LÉXICO .\PROSA 25

dos os autores quatrocentistas, tornaram-se desusadas, em menos tem- são dada em remuneração de serviços), ordenança (hoje, regulamen-
po do que outras. Muitos vocábulos mantiveram-se e outros acusam to ou soldado às ordens de autoridade militar) (1).
alterações do significante e/ ou do significado. Substantivos como coita (aflição, mágoa), so/az (consolo; alí-
Q~ntre os antigos nomes em mento, que chegaram até nós com vio), domaa (semana), trebelho (jogo, diversão) e outros logo se ar-
significados diferentes, temos: instrumento que, somente em lingua- caizaram.
gem jurídica, recorda o sentido primitivo (instrumento público = ata,
Adjetivos
auto, escritura autêntica que serve de provar alguma coisa em juízo)
(1); falicimento (falta) e passamento (ato de passar), só se empregam Muito produtiva era a formação de adjetivos em a/ e em vel:
no sentido de morte; mantümento (ato de manter) usado com o sig- communa/1 (comum - Fernão Lopes); terrea/ (terreno - Zurara);
nificado de manutenção ou comestíveis, manteve esta última signi- humanal (humano- D. Duarte, Fernão Lopes); mundanal/ (mun-
ficação. dano- D. Duarte); eternal (eterno- D. Duarte); afora outros co-
O mesmo processo de formação léxica continua, no entanto, pro- mo: spritual (espiritual), divinal, temporal, correntes até hoje.
dutivo: posicionamento, ao lado de posição; enfrentamento, a par Em vel: convynhave/ (conveniente - Fernão Lopes, Zurara);
de confronto; posteamento, por colocar postes etc. (Academia Brasi- empeecivel (que serve de empecilho, nocivo- D. Duarte); concor-
leira de Letras, Vocabulário ortográfico da língua portuguesa). davel (concordante - D. Duarte); prazível, com forma posterior
aprazível.
Os nomes em ança, ença (terminações resultantes da evolução
Dos adjetivos em a/, uns permaneceram, outros caíram em de-
fonética de antia, entia latinas) que passaram para o "português po- suso; dentre os em vel, igualmente, alguns se mantiveram - amável,
pular" ou nele se criaram de acordo com aquele modelo, foram pos- estável (are. stavil), móvel (are. movi/), razoável (are. razõavil).
teriormente substituídos por outros, buscados diretamente no latim No século XVI, houve a introdução de adjetivos eruditos em
clássico, ou voltaram a aproximar-se da forma latina original (2). i/: ágil, fácil, fértil, que mantêm a mesma terminação, e outros como
Assim, peendença, substituída por penitência (do lat. paeniten- affabil, implacabil, incansabil, terribil, vo/ubil etc. que, posteriormen-
tia); pestenença ou pestellença, por pestilência (do lat. pestilentia); te, passaram a afável, implacável, incansável etc. A terminação~
femença (atenção), por veemência (do lat. vehementia). continua muito produtiva na formação de adjetivos, ora exprimindo
Desapareceram: perdoança (perdão - D. Duarte); abastança possibilidade de ação, em sentido ativo - durável, inflamável-, ora,
(abundância- Rui de Pina), na forma avondança em Fernão Lo- com mais freqüência, no sentido passivo - vulnerável, desejável, re-
pes; trigança (pressa) etc. mediável, suportável etc. (2).
Conservaram-se em derivados: querença, em benquerença e mal- Existiam também muitos adjetivos em oso que caíram em desu-
querença; aveença ( = concórdia), em desavença; nacença foi substi- so: omyldoso ou humildoso (humilde- D. Duarte); sobervoso (so-
tuída por nascimento, mas permanece nas expressões mal de nascença berbo- Idem); empachoso (que põe embaraço, que estorva- Idem);
ou defeito de nascença. querençoso (afetuoso- Fernão Lopes); trigoso (apressado - Fer-
não Lopes). O sufixo oso ainda é muito fecundo na formação de ad-
Outras foram substituídas por vocábulos formados mediante ou-
jetivos. Outros nomes como camanho (tamanho); hétego, étigo ou
tro sufixo: ensinança, por ensinamento; conhecença, por conhecimen-
to, perdurando apenas em linguagem de marinha (conhecença = sinal
que dava a conhecer as paragens e terras aos navegantes; ou ponto
' ético (tísico) foram substituídos.

Verbos
determinante de um rumo, na costa).
Finalmente, conservaram-se, entre muitos: mudança, andança, Dentre os verbos: /eyxar (deixar), registrado amplamente, alter-
folgança, governança, parecença, temperança, doença, tença (pen- nando com deixar, ainda em Gil Vicente: "Leyx'os tu ... " (Obras com-

(l) M. Said Ali, obra cit., p. 240. • (l) Idem, ibidem, p. 234.

t
(2) Idem, ibidem, p. 234. (2) Idem, ibidem, p. 245.

IACULDA t)J: DJ: Lft'&d·


•••, ••l'aç&
te ' M !THh $ ' .. ~' '
26 O LÉXICO A PROSA 27

pletas, 4. ed., Lisboa, Sá da Costa, 1968, v. V, p. 353), "Deyxevossa Em 1536, na obra considerada como a primeira gramática por-
mercê isso" (ibidem, v. V, p. 337); /ilhar (tirar, apanhar, roubar) (D. tuguesa, mas que o próprio autor, Fernão de Oliveira, denominou
Duarte, Fernão Lopes, Zurara); aqueecer (acontecer- Fernão Lo- uma primeira anotação da língua portuguesa, há citação de algumas
pes); aficar (teimar, insistir- Fernão Lopes); consirar (considerar); palavras já em desuso ("dicções velhas") na época: samica(s) (por-
gançar (ganhar); prasmar (vituperar, blasfemar); trebelhar Uogar, ventura); ajuso (abaixo); acajuso (cá em baixo); suso (acima); a/gar-
brincar); trigar (apressar); formas verbais irregulares (prouguer, rem (alguma coisa); ogano (este ano).
trouguer = prouver, trouxer). De modo geral, muitos caíram em de- Mais tarde, em 1606, Duarte Nunes do Leão, em Origem da lín-
suso e foram substituídos por outros. gua portuguesa, alinha muitas outras, das quais algumas aqui regis-
tradas, como "vocábulos antigos que se acham em scripturas (em
Pronomes escritos) ... " (1).
Os pronomes possessivos- ma, ta, sa (minha, tua, sua)-, os O autor, nascido em 1530, conviveu com o processo de renova-
demonstrativos- aqueste, aquesta, aquesto (este, esta, isto), aquel- ção da sociedade portuguesa e, tomando consciência de que a língua
lo (aquilo), esto (isto), esso (isso)-, o indefinido- a/garrem (algu- de cultura gerada pelas circunstâncias socioculturais da época se im-
ma coisa); a/ (outra coisa) -, via de regra, também deram lugar a punha a formas lingüísticas já desgastadas pelo uso e, até certo pon-
outros. to, rústicas, pôde meditar sobre os fatos e efetuar uma espécie de
triagem entre o "moderno" e o arcaico, no campo da língua.
Advérbios Tanto assim é, que ainda permanecem formas medievais, em
autores renascentistas da importância de Camões e João de Barros,
As formas adverbiais: acinte (de propósito); aficadamente ou afin- embora tornando-se mais raras, com o passar do tempo, e trans-
cadamente (teimosamente; de onde o termo afinco, trabalhar com afin- formando-se em recurso estilístico.
co); asinha ou azinha (depressa); nego ou nega (talvez); tamalavez ou
tamalaves (um pouco, de algum modo); (h)i (aí), h(u) (onde) etc.
A série toda do vocabulário básico está longe de ser completa, Neologismos
podendo ler-se um extenso elenco na obra de J. Pereira Tavares (1 ).
O léxico quatrocentista enriqueceu-se extraordinariamente, atra-
vés da incorporação de grande soma de palavras novas ou neologismos.
Arcaísmos É natural que os autores do século XV tenham buscado forjar
palavras novas, dentro do próprio quadro geral da língua, acres-
Alguém poderá surpreender-se ao notar que grande parte das centando-as ao núcleo primitivo herdado do latim vulgar, já acomo-
palavras do vocabulário básico esteja incluída entre as denominadas dado pelo processo natural da evolução fonética; entretanto, sendo
formas arcaicas ou populares, arroladas pelo autor citado acima. To- quase impossível indicar a data precisa em que tais vocábulos teriam
davia, percorrendo-se as obras de escritores do século XV, do Can- sido introduzidos no vocabulário geral da língua, serão levantados
cioneiro geral (séculos XV e XVI) e dos da primeira metade do século somente alguns neologismos latinos e alguns buscados em línguas mais
XVI - Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda e Gil Vicente, em especial modernas -francês, italiano, espanhol.
-, verifica-se que muitas delas eram correntes na língua da época. Neologismos latinos: O estudo sobre os latinismos, incorpora-
Com efeito, deveria haver arcaísmos integrando o léxico desse dos ao léxico português no século XV, parece precário e cheio de
século; contudo, as informações, a esse respeito, são vagas e difusas
lacunas.
e, via de regra, apontadas somente a partir do século XVI, quando
começam a surgir as gramáticas da língua portuguesa.
(1) LEÃO, Duarte Nunes do - Origem e orthographia da lingoa portugueza. No-
va ed. corr. e emend., conforme a de 1784. Lisboa, Tipografia do Panorama, 1864,
(1) Como se devem ler os clássicos, p. 32-5, 40-2, 53-7. p. 70 et seqs.
28 O LÉXICO A POESIA 29

Joseph M. Piei, no Prólogo do Livro dos oj(cios, traduzido pe- Quanto a castelhanismos ou hispanismos, sua indicação ainda
lo infante D. Pedro, afirma: "À falta de estudos parciais sobre lati- é mais precária, devido principalmente a dois fatos: o bilingüismo e
nismos medievais, é, por enquanto difícil, senão impossível, deter- a grande semelhança existente entre ambos os idiomas (português e
minar quais os cultismos aclimatados no primeiro quartel do século espanhol) nesse período arcaico.
XV e qual a possível contribuição de D. Pedro para este trabalho de O bilingüismo predominou dos meados do século XV à primei-
ampliação do léxico. Muitos dos termos alatinados que ele usa vêm ra metade do século XVII, em virtude do estreitamento cada vez maior
certamente de longe. das relações políticas, sociais e culturais entre Portugal e Castela.
Outros como pretor, consul, senador, devem porventura a sua A supremacia hispânica alcançou tal importância, que o caste-
divulgação" (1) a uma obra anterior à tradução de D. Pedro. lhano, falado e escrito, era usado como segunda língua, não só pelos
Resta, pois, registrar os latinismos colhidos por Rodrigues La- aristocratas, mas também pelas pessoas cultas e ktradas de Portugal.
pa em o Leal conselheiro, de D. Duarte: circonstancia, vicioso, absti- No que concerne à semelhança das línguas portuguesa e caste-
nencia, pertinaz, infinito, solícito, obstinaçom, subsldio, fugitivo, lhana, grandes autores como Sá de Miranda, Gil Vicente e Camões,
enterpretar, /etradura (literatura, palavras), evidente, torpe, soturno deixaram produções de alto valor literário, em ambos os idiomas, sem
(triste, lúgubre), intelectual, insensibilidade, sobrepojar ~sobrepujar), fazerem contaminação.
notar, abranger, circonspecto (sério), reputar, encorrer (incorrer), lo- Teyssier, ao estudar a obra vicentina, indica apenas dois exem-
grar, infruencia (influência), restituiçom, meritorio, satisfaçam, efi- plos de hispanismos léxicos: castelhano, que substituiu a forma anti-
cacia, reduzir, malícia, apropriar, perseverar (2). ga castelão, e mochacho (moço); cita, de igual modo, alguns lusismos,
O processo, usado pelo escritor, que consistiu na introdução dos nos textos em espanhol, mas afirma que a intromissão deste, no por-
latinismos, aportuguesando-os e acomodando-os à pronúncia e à or- tuguês, praticamente inexiste no autor estudado (1).
tografia da época, foi repetido mais tarde (século XVI), de modo in-
teiramente diverso.
Com referência a estrangeirismos, isto é, vocábulos estrangei-
ros incorporados à língua portuguesa, nesse século, tendo em vista A poesia Enquanto a prosa evoluía em marcha crescente e pro-
a dificuldade de conhecer-se a época de sua incorporação, optou-se gressiva, a poesia escrita, após o período do trovado-
por um número pequeno de exemplos, a cujo respeito parece não ha- rismo galego-português, no século XV parece ter hibernado, durante
ver dúvida, quanto a esse particular. meio século, à procura de estímulos e padrões diferentes dos anteriores.
Galicismos: galante (de galant), ga/anteria ou galantaria; pagem A literatura castelhana sempre exerceu forte influência em Por-
(de page); vianda (de viande = alimento, carne), viandeiro; arauto
tugal e, no século XV, a prosa de Castela deu grandes subsídios à
(de héraut = pregoeiro);jorro (defeurre = guarnição interna deves-
prosa portuguesa, ainda incipiente, visto ser muito conhecida e culti-
tes); chapeeo (de chape/ = chapéu); livrees (de livree = uniforme
vada pelos infantes D. Duarte e D. Pedro, Fernão Lopes, Zurara e
ou vestuário de casas nobres), hoje libré; chamjnees (de chemi-
née = chaminé). outros.
Sob o influxo dessa literatura e favorecida pelo mecenatismo
Italianismos: piloto ou pilota; bombardada (tiro de bombarda,
que ressurgiu nos reinados de D. Afonso V e seus sucessores- D.
termo já existente no século XIV, com o significado de engenho de
João II e D. Manuel-, começou a aparecer uma poesia que se deno-
atirar pedras); brocado (de broccato = tecido de seda com desenhos
minou palaciana, por haver surgido na Corte e nela permanecido, a
em relevo, realçados por fios de ouro ou prata).
partir da segunda metade do século XV em diante.

(1) CíCERO, Marco Túlio- Livro dos oficias. Ed. crít. prefac., anot. e com gloss.
de Joseph M. Piei. Coimbra, Universidade, 1948, p. XXXVI. Os grifos são nossos. (1) TEYSSIER, Paul -La tangue de Gil Vicente. Paris, Klincksieck, 1959, p. 293
(2) M. Rodrigues Lapa, Lições de literatura portuguesa, p. 332. et seqs.
30 O LÉXICO )A POESI"À)' f'li)

Iniciavam-se, neste período, as conquistas ultramarinas, que fo- Nas composições poéticas não-amorosas, mormente do gênero
ram de suma importância para o engrandecimento econômico, polí- sat(rico, o número de vocábulos aumenta sensivelmente, com bastante
tico, social e cultural da nação portuguesa. diversificação e há emprego bem variado de recursos estilísticos,
O comércio da pimenta e de outras especiarias carreava gran- notando-se, em algumas composições, muitas metáforas de origem
des riquezas ao Reino, e a Corte, em clima faustoso e de ostentação, náutica, talvez por influência do ambiente histórico, pleno de notí:
divertia-se em constantes festas e serões. cias relacionadas às conquistas ultramarinas.
Nestas reuniões havia jogos de salão, música, dança, represen- Na poesia satírica, temos uma composição bastante caracterís-
tações teatrais, competições entre poetas, e as produções poéticas eram tica de Diogo Fogaça, a respeito de uma dama obesa, que o desagra-
lidas ou recitadas, passando de mão em mão, manuscritas. dara profundamente e a cuja anatomia aplica palavras como: querena
Tal acervo de poesias, aproveitado pelo poeta e cronista Garcia (carena, parte do costado da embarcação que fica submersa), quilha,
de Resende, constituiu o Cancioneiro geral, também conhecido co- costado e outras mais irreverentes.
mo Cancioneiro de Resende, a exemplo de Cancioneiros espanhóis O emprego de tais metáforas, porém, não visava somente a efei-
(o de Baena e o Cancionero general). tos humorísticos, visto que podia aparecer em formas poéticas de fun-
O Cancioneiro geral, englobando mais de setecentas composi- do subjetivo e sentimental, a exemplo da composição de Álvaro de
ções poéticas, em português e em castelhano, espelhava a linguagem _!!ti!Q, que se refere a sua desilusão e a seu desgosto, com as expres-
e os costumes da época. sões: ir de foz em fora (navegar), com forte tempestade ... sem poder
Os assuntos abordados nesse Cancioneiro vão do lirismo amo- portar vella (sem velas), correr arvor seca (navegar com mastro sem
roso à elegia e à épica histórica, embora tratada superficialmente; dos vela), antre baixas (entre baixios ou rochedos), levar rota de trestura
tópicos fúteis e irrisórios, ou mesmo obscenos e escatológicos, aos (seguir rota de tristeza), ver-se remeyro preso em centina (sentina, fun-
religiosos; da sátira individual às criticas sociais; além de temas de do da embarcação onde se ajuntava água deteriorada, cloaca), de ga-
influência italianizante ou de inspiração clássica greco-latina. lee (galé, embarcação antiga de baixo bordo, movida a vela e a remos)
etc.
Vocabulário básico
Arcaísmos
Tais assuntos condicionaram o alargamento da linguagem poé-
tica, sobretudo do ponto de vista do léxico. A par do vocabulário básico, a língua do Cancioneiro também
Evidentemente, além do. vocabulário básico, de emprego co- oferece um amplo quadro de arca(smos, incluindo-se os já citados e
mum, a poesia implica escolha de termos, até certo ponto específi- muitos outros correntes na época.
cos, diferentes dos da prosa, mesmo literária, devido à sua adequação
a imperativos estéticos e às imposições da métrica. Neologismos
Andrée Crabbé Rocha distribui o vocabulário poético do Can-
cioneiro geral em dois campos fundamentais: o da poesia amorosa Naturalmente, havia também neologismos, que podiam ser oca-
e os restantes. sionais como tribulança (atribulação), mitrar (tornar-se bispo ou aba-
O da poesia amorosa é bem mais pobre, se comparado com o de), benaventear (deslocar-se para Benavente); ou eruditos como
das outras modalidades poéticas. Neste campo aparecem com muita pryminencia (proeminência), seneytude (senectude, velhice), propin-
freqüência "verbos de sentir" e substantivos abstrat::ls da área semân- co (próximo), multi/óquio (falador) (1).
tica da dor, do sofrimento, do desencontro amoroso -pena, triste-
za, morte, coita de amor (comum igualmente no trovadorismo); os (l) RESENDE, Garcia de- Cancioneiro geral. Nova ed., introd. e notas de Andrée
adjetivos variam pouco e as metáforas são raras. Crabbé Rocha. Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, 1973, t. I, p. XIII et seqs.

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32 O LÉXICO

Os hispanismos, ligados ao fato já assinalado de serem bilín-


gües os cortesãos, continuam eventualmente ocorrendo: (falar) antre
soylos (esp. entresuelos = sobreloja), metaforicamente "falar escon-
3
dendo segredos"; doylos (esp. duelos = dores, dó); manilhas (esp.
manillas = pulseiras, argolas de metal usadas nos braços ou nos pés; Fonética e ortografia
adorno ou grilhão); firmal (esp. firmal = broche); gabardyna (esp.
gabardina = vestimenta, pano de lã).
Além destas, começam a surgir palavras de outra origem: mon
cor de moy; ou então termos empregados geralmente por judeus ou
relacionados com seus costumes e religião: anahym (homem sem prés-
timo); tafalym (oração); cadoz (homem velho e gasto); sabá (sába-
do). Em certas passagens registram-se imitação do linguajar dos
pretos, bem como uso de formas exóticas do tipo: lomarmey (talvez
palavra litúrgica); mazaganys (soldados mercenários). Estes artifícios
são precursores de outros tantos empregados por Gil Vicente, repeti-
das vezes, com suma propriedade, arte e humor.
A par das características léxicas, a língua do século XV e da pri-
meira metade do século XVI distingue-se por certos traços de: fonéti-
ca e ortografia, morfofonética, morfologia, sintaxe (incluindo-se a Embora o período quatrocentista seja considerado ou denomi-
construção frasal) e estilo. nado período fonético da ortografia, porquanto a escrita procurava
espelhar a pronúncia, é difícil comprovar-se isto, pelo fato de as edi-
ções dos textos nem sempre conservarem as formas ortográficas ori-
ginais.
Além disso, ainda deve ser levado em conta que "um manuscri-
to, mesmo antigo, do século XV ou anterior, pode ser cópia menos
feliz de um mais velho, e, portanto, sujeito a enganos e interpreta-
ções erradas" (1).
Nestas condições, em vista da flutuação ortográfica que depa-
ramos, trataremos dos dois aspectos conjuntamente.
No que se refere às vogais, havia desde a época do galego-
português grande variedade de hiatos, resultantes da queda de con-
soantes intervocálicas nas palavras latinas: maa (má), paaço (paço),
caaveira (caveira), seer (ser), meestre (mestre), pee (pé), triinta (trin-
ta), cobiiça (cobiça), poboo (povo), moor (mor), coobra (cobra), nuu
(nu), cruu (cru), lãa (lã), dõo (dom). Estes hiatos, que a princípio cons-
tituíram duas sílabas, foram desaparecendo progressivamente, porém
a grafia conservou-os por longo tempo.

(I) Sr LVA NETO, Serafim da - Textos medievais portugueses e seus problemas. Rio
de Janeiro, Casa de Rui Barbosa [1956] p. 24.
34 FO:\ETI(.\ l Cl!UOCR \l-I\ FONÉTICA E ORTOGRAFIA 35

Até em Sá de Miranda, já no século XVI. ainda encontramos São mantidos os ditongos au e ui que resultam da vocalização
"poo (pó) de farinha" (1). de c, I, p latinos: escuytar (auscultare, "escutar"), cuytelo (cultellu,
O estudo das grafias, das rimas e da métrica, nos textos do Can- "cutelo"), muyto (multu, "muito"), luita (lucta, "luta"), fruyta ([rue-
cioneiro geral, comprova igualmente que a grafia arcaizante ainda não tu, "fruto"), bautizado (de baptizare, "batizar"), trautar (tractare,
acompanhara a evolução da língua. "tratar"), trautado (tractatu, "tratado"), auto (actu, "ato")- mais
Bernardim Ribeiro, em Cantigua sua, apresenta moor rimando tarde, na época renascentista, refeitos por influência latina: baptiza-
com favor, contando-se a primeira palavra como uma só sílaba (2). do, tractar, tractado, acto. Aliás, em o Leal conselheiro, já encon-
Em Diogo Brandão temos fee rimando com he (é), contando tramos as duas formas: trautado e tractado (p. 1).
ambas uma sílaba {3). Em diversas palavras observa-se o fenômeno da ditongação de
Em outras composições poéticas satisfaçãao e vãao rimam com vogais simples: seysto (sexto), eyxercitar (exercitar), eycelente (a par
farão, sendo inúmeros e variados os exemplos da mesma ordem. de excellente, em D. Duarte), eycelencea (excelência), augoa ou auga
Em certos hiatos em que uma das vogais era nasal desenvolveu-
(água), oufano (ufano), oulhar (olhar), apousentar (aposentar), oucy-
se um novo fonema entre elas: vi-o passou a vinho; gal/i-a a galinha,
oso (ocioso); por outro lado, há o fenômeno oposto da redução do
vizi-o a vizinho; todavia, outros do mesmo tipo mantiveram-se por
ditongo: baxo, embaxada, odiança (audiência).
tempo mais longo: iia ou hüa, feminino de hüu (um), passou mais
tarde para uma; algüa para alguma, nenhiia para nenhuma. A pala- Os hiatos ea, eo - cadea, alhea, area (areia), feo, rreceo (re-
vra lüa, hoje lua, perdeu a nasalação, bem como: teer, ter; viir, vir; ceio), creo (creio), meo (meio)- começaram a ditongar-se na segun-
cõelho, coelho; mõesteiro, mosteiro; quintã, quinta. da metade do século XVI. Em Camões há rimas receio- alheio (Lus.,
As vogais orais simples alternaram-se constantemente na pas- II, 9), alheio- arreceio- creio (Lus., III, 4), mas tambémfea-
sagem do latim para o português. Assim, encontramos a em lugar de area- arrecea (Lus., II, 81), Cyterea- Dea- arrecea (Lus., I, 34).
e ou e por a: piadade (piedade), piadoso, brasfamar (blasfemar), sal- Já no Cancioneiro geral se observavam rimas meo- descreo- cre-
vagem (selvagem), treiçom (traição), menhã (manhã),jantesya (fan- yo (II, 168), veyo- cheo (II, 283-284) (1).
tasia), rezam (razão), Caterina (Catarina), desestrado (desastrado, Tratando-se de consoantes, há um fenômeno fonético e fono-
malfadado); e por i ou i por e: sesudo (sisudo), fegura, devino, de- lógico que influi diretamente na ortografia das palavras. Entre as con-
zer, vertude, tevesse (do v. ter), princepe, oreginat, arteficial, ope- soantes sibilantes havia distinção na pronúncia de s intervocálico e
nyam (opinião), milhar, ynsynar (ensinar), syntymento, gingiva, z, ss e ç, eh ex. Assim, entre coser e cozer havia diferença de pronún-
myntira; a por o: acupar (ocupar), devaçam (devoção); e por o: tres- cia, visto que z soaria /dz/; entre passo e paço, em que ç soaria /ts/;
quiar (tosquiar), fermoso (também fremoso), preposito (propósito), entre chaga, em que o eh soaria /tch/, e luxo, em que x equivaleria
pessoyr (possuir), velume (volume); o por u ou u por o: soma (su- a /eh/.
ma), fogyr (fugir), sogygar (subjugar), sojeyto (sujeito), someter (sub- Não havendo teorizadores, nem gramáticas portuguesas no sé-
meter), custume, pussuyr (possuir). culo XV, temos de basear-nos nas formas ortográficas documenta-
Há, de igual modo, alternâncias entre an e en ou entre en e an: das em obras de edição fidedigna, ou então nos louvarmos nos estudos
antre (entre), antremes (entremês), emparar (amparar), desemparo, gramaticais da primeira metade do século XVI, que registram esses
aventagem (vantagem), estendarte; entre en e in: fengyr (fingir), ten- fatos ainda vigentes na língua.
gir, enveja, sengular, encrynações (inclinações), emportunar, enven- Assim, a respeito de se z, Fernão de Oliveira, primeiro gramá-
çam (invenção). tico da língua portuguesa, diz:
quando pronunciamos o s, levantamos a ponta da língua para o céu
(I) C\RVALHO, Carlota Almeida de- Glossário das poesias de Sá de Miranda. da boca e o espírito (ar) assobia pelas ilhargas (lados) da língua, (ao
Lisboa, Sá da Costa, 1953, p. 317.
(2) RESDmE, Garcia de- Cancioneiro geral. Nova ed., intr. e notas de Andrée
Crabbé Rocha. Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, 1973, t. V, p. 99. (I) VASCONCELI.OS, J. Leite de- Lições de filologia portuguesa. 2. ed. melh. Lis-
(3) Idem, ibidem, t. lll, p. 13. boa, Biblioteca Nacional, 1926, p. 169.

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36 FONÉTICA E ORTOGRAFIA
FONÉTICA E ORTOGRAFIA 37

passo que a) pronunciação do z zine entre os dentes cerrados, com a


língua chegada a eles e os beiços apartados um do outro (1). Havia inúmeros substantivos e formas verbais terminados em
am, an, om, on. Os substantivos convergiram para ão: devaçam
O mesmo autor diz a respeito do ss dobrado que se "pronuncia (devoção), rezam (razão), repartiçom (repartição), perfeiçom (perfei-
como o outro, pregando mais a língua no céu da boca". E sobre ç, ção); as formas verbais passar?m para am ou ão: passam (passam
"que esta letra c com o outro c debaixo de si virado para trás, nesta - pres. ind.), andavam (andavam - imperf. ind.), erom (eram -
forma ç, tem a mesma pronunciação que z, senão que aperta mais imperf. ind.), som (são- pres. ind. do v. ser), secaram (secarão-
a língua nos dentes" (A gramática da linguagem portuguesa, p. 56). fut. ind.), passaram (passarão- fut. ind.), quiseram (quiseram-
"Ao x", diz ele, "chamamos eis, mas eu lhe chamaria antes xi, pret. perf. ind.).
porque assim o pronunciamos na escritura. Pronuncia-se com as quei- A forma nom, também grafada non, nõ, raramente era grafa-
xadas apertadas no meio da boca, os dentes juntos, a língua ancha (li- da não no século XV.
vre) na boca e o espírito ferve na humidade da língua" (ibidem, p. 55). O grupo se inicial ou medial perdia o s na passagem do latim
Quanto ao fonema eh, chama ele de consoante "aspirada", para o português: nacimento, nacer, crecer, conciencia, jlorecer, vol-
colocando-o ao lado de /h e nh com a explicação de que " ... te- tando a recompor-se no período renascentista; o mesmo aconteceu
mos três aspiradas, para as quais, posto que não temos próprias figu- com o grupo gn entre vogais, no qual desaparecia o g: inorante, di-
ras mais que só aspiração com elas misturadas, todavia as vozes são no, malino (maligno), benino (benigno), ssino ou syno (signo), ynoto
bem assinadas (distintas) por si e diferentes das outras aspiradas" (ibi- (ignoto), rrepunante (repugnante).
dem, p. 57). Nas palavras latinas em que havia n seguido de s, a nasal desa-
No início do século XVI, segundo Teyssier, z ldzl e ç lts! ti- parecia em português (aliás, fenômeno que também ocorria em la-
nham perdido o elemento oclusivo inicial d e t, embora ainda hou- tim, provavelmente popular, assim cosul por consul): costranger
vesse pequena diferença na articulação dos fonemas, o que também (constranger), cossentir (consentir), mesagem (mensagem), costante
se espelhava na grafia: só se encontrava z em cozer, vazio, vizinho (constante), demostrar (demonstrar).
etc.; sem coser (costurar), casa, rosa, quiseste; ss em passo, nosso, As consoantes b e d, principalmente de prefixo em início de pa-
disse; ç em moça, pareçer, paço {2). lavras, caíam: amoestar (admoestar), avogado (advogado), aversay-
Entretanto, por volta de 1550, começa a haver confusão entre ro (adversário), aso/ver (absolver), so (sob), sotyl (subtil = sutil),
os fonemas, grafando-se ç por ss ou ss por ç; s por z e vice-versa. sojigar ou sogygar (subjugar).
Daí as dificuldades que ainda se encontram hoje na grafia de sons É muito freqüente a substituição da líquida I dos grupos fi, pi,
semelhantes como ç e ss e s intervocálico e z (3). gl, c/, bl: fror oujrol (flor), pruma (pluma), copra (copia), grosa (glo-
No século XVI, em 1574, o gramático Pera de Magalhães de sa), grorea (glória), crarão (clarão),Jrama (flama),Jreuma (fleugma),
Gândavo, em sua Orthographia, criticava tais confusões; contudo, rresprandor (resplendor), framengo (flamengo), ingres (inglês), pu-
elas ainda permanecem. bricar (publicar), concrudir (concluir), brasfemar (blasfemar).
Quanto ao fonema eh /tch/, parece ter permanecido até o sé- O grupo qu muitas vezes era representado por c ou, ao contrá-
culo XVIII, em algumas regiões de Portugal, e do Brasil, segundo rio, c por qu: corenta (quarenta), coresma (quaresma), ca (qua(m)),
Amadeu Amaral (4). contia (quantia), calidade (qualidade), camanho (de quam magno);
quomo (como), cinquo ou cimquo (cinco), desquansso (descanso),
nunqua (nunca). Dava-se o mesmo com o grupo gu, substituído por
(I) A gramática da linguagem portuguesa. lntrod., leit. atual. e notas por Maria g, ou g por gu: gerra (guerra), correge (carregue), asesege (assosse-
. L. Carvalhão Buescu. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1975, p. 55.
(2) Paul Teyssier, Histoire de la tangue portugaise, p. 60 et seqs. gue), chegey (cheguei); joguo (fogo), antigua (antiga), brigua (briga),
(3) Idem, ibidem, p. 60 et seqs. guanhar (ganhar), periguo (perigo); j também podia ser empregado
(4) AMARAL, Amadeu- O dialeto caipira. Pref. de Paulo Duarte. São Paulo, Ed. por g: jentil (gentil), jente (gente), tanjer (tanger); e mais raramente
Anhembi, 1955, p. 48.
g por}: fuga (fuja), rrygamente (rijamente), goelho (joelho).

tiMúf-e>*
FONÉTICA E ORTOGRAFIA 39
38 FONÉTICA E ORTOGRAFIA

Os impuro ou mudo era muito comum, na primeira metade do cípio para indicar o hiato com a vogal final da palavra precedente'',
século XV: screver, spirito ou sprito, scusar, spargir, speriencya (Leal depois, perdida essa noção, incorporou-se à grafia desordenadamen-
conselheiro e Virtuosa benfeitoria). Já os forte com o som de ss po- te; daí huso, homde (onde), horaçam (oração), hordenança (ordem),
dia aparecer no início ou no interior da palavra, sem reduplicação: husança (uso). Por outro lado, palavras com h, original, como hu-
servise (servisse), desemular (dissimular), podesem (pudessem), misa mano, podiam ser grafadas ou não com esta letra, o mesmo ocorren-
(missa), aseseguar (assossegar), asentar (assentar); do mesmo modo do com homem. Não aparece em oje (hoje), ora (hora), epocresya
podia aparecer duplicado no início e no interior da palavra: sservir (hipocrisia), ereje (herege). Era usado, igualmente, no interior da pa-
(servir), ssy (si), ssonhar, ssentença, ssentimento, emssejo, enssyno lavra, depois de consoante, com valor de i: sabha (sabia- do v. sa-
(ensino), defenssor, consselho. Acrescente-se ainda que s intervocáli- ber), saibham (saibam), termho (por termio arcaico = termo), mha
co, com o som dez, também aparecia duplicado: coussa (cousa), aus- (por mia arcaico = minha), veher (vier) (1).
sencia (ausência), dessy (desy ou des y = desde que), vassylha Aparece constantemente um p "intruso", já em latim vulgar e
(vasilha), assinha (asinha ou azinha = depressa). em latim medieval, com a finalidade inicial de preservar o som de duas
O r duplo também podia ser grafado no início ou no interior nasais consecutivas m e n; continuou no português arcaico, talvez,
da palavra: rrey, rredondo, rrecado, rrepartimento (ato de repartir, por mera tradição ortográfica, como em: dampno (dano), so/epne-
divisão); homrrosa (honrosa), terrey (terei), verria (viria); por outro mente, solepne (solene, anteriormente solemne), mas igualmente em:
lado, pode-se encontrar r simples com valor de r duplo: recorer (re- compdenar (condenar, anteriormente condemnar), escripvam (escri-
correr), tera (terra), barete (barrete). vão), sem razão nenhuma.
O I inicial, medial ou final, freqüentemente era duplicado: llãa Além de todos estes fenômenos, há outros de acréscimo ou per-
(lã), cavallgara, malldade, pallavras, natural!, humanal! (humano), da de fonemas, ou então de deslocamentos de fonemas no interior
mundanal! (mundano), sotill (sutil), ell (ele). do vocábulo.
A nasalidade podia aparecer em forma de m, n ou til: coraçam, Assim, se observam muitas formas proféticas, isto é, com acrés-
som e son (são- do v. ser), senpre, cimquo, homees (homens),feze- cimo no início da palavra: abastante, arrejem (refém), assesseguo (sos-
rõ (fizeram). sego), alembrar, assoprar, ajuntar, alimpar, amostrar, aprejyar ou
O uso de y e j era muito irregular: serviam para substituir avo- aperfyar (porfiar); ajeréticas- com queda de vogal inicial: tiraar (ati-
gal i: ysto ou jsto; ynteiro, jnteiro; yda, }da; }jante, yfante; ydade; rar), conselhar, crecentar, magynar, rrepender; sincopadas- com
hyr (ir); tynha (tinha- imperf. ind. de ter); vynha. Em ditongos pre- perda de fonemas no interior de sílabas: sprito ou spritu (espírito),
valecia y: poys, muy, jamays, coyta (preocupação, cuidado, so- jurdiçam (jurisdição), per/a (pérola); epentéticas - com acréscimo
frimento). de fonemas vocálicos (anaptixe), para desfazer grupos consonânticos:
As grafias u e v também se equivalem: brauo (bravo), palaura caronica (crônica), caronysta (cronista); celestryal (celestial). Formas
(palavra), enueja (inveja), viuer (viver), vsar (usar), vmano (huma- com metátese, transposição de fonemas no interior da palavra: prove
no), vua (uva). ou probe (pobre), bu/rra (burla), torvões (trovões), estrovar (estor-
O emprego de h ainda é mais arbitrário: aparece em hyr, hyrmos, var), percurar (procurar), detreminar (determinar), aguardecer (agra-
hyr vos, hyreis, mas nunca em i (ide), is (ides); no verbo haver é nor- decer), fa/sayro (falsário), cossairo (corsário) e muitas outras pala-
mal não ser usado, assim: aver, aveys, ajays; contudo, a terceira pes-
vras em ario (do latim ariu), airo (are.).
soa do presente do indicativo é sempre ha. Em contrapartida, no verbo
Como se pôde observar, a ortografia é extremamente arbitrá-
ser, apenas essa forma é sempre grafada com h - he ou hee. Aparece
ria, havendo palavras até com mais de quatro ou cinco formas, como
ainda nos artigos definidos ho, ha, hos, has, nos indefinidos hiiu, hiia,
hiius, hiias e na interjeição oh!, porém, no início, ho!; os advérbios
arcaicos i (aí) eu (onde) podem ser ou não acompanhados de h. "Esta (I) WILLIAMS, Edwin B.- Do latim ao português. Trad. de Antônio Houaiss. Rio
de Janeiro, INL - MEC, 1961, p. 35-6.
letra foi usada, talvez, antes de vogais iniciais c1e palavras, a prin-
40 FONÉTICA E ORTOGRAFIA MORFOFONÉTICA 41

afirma o Prof. Costa Pimpão, e se pode comprovar com a leitura de Morfofonética Fenômenos morjojonéticos são aqueles em que
textos quatrocentistas fidedignos. a morfologia está intimamente relacionada à
A palavra inimigo podia apresentar as seguintes grafias: ymi- fonética e à fonologia ou estas à primeira, sendo mais evidentes em
go, imygo, jmigo, jmiguo, emmigo, inmiguo, inmiigo, ynmyguo; a formas verbais: sento ou sinto com as flexões syntimos, syntiram, sen-
forma deveis: devees, deves, deveys, deveis; o advérbio não: nam, nã, tam, ou syntyam (sintam, do v. sentir); jaço ou jazo Uazo) e as fle-
nom, nõ, nãao, não e assim muitas outras (1). xões jouve ou jougue Uazi ou jazeu, do v. jazer), jouvera, jouguera
Ainda a respeito de grafia e ortografia, pode-se notar que, mes- etc.; arço (ardo), arça (arda); menço ou mento (minto, do v. mentir),
mo após a contração das vogais em hiato, muitos hiatos se mantive- minte (mente); sigue (segue), sigui (segui); pugi ou podi, pudi (pude,
ram, seja em razão de a grafia não acompanhar a evolução dos do v. poder); pugeste (puseste), pugera etc., pose (pôs); trager (tra-
fonemas, seja, no caso de vogais orais, para indicar a acentuação tô- zer), trage ou trougue, trouve (trouxe), trouguera, trouvera etc.; ques
nica ou a abertura das vogais como em: estaa, caa,jaa, leedo,joora, (queres), quigi (quis), querra (quererá), querria (quereria); di (dize),
noova, em que nunca houve hiatos. dixe (disse), dixeste (disseste); faes (fazes), jeze (fez), fig e (fiz), figera
Quanto aos ditongos nasais, cuja vogal tônica é a ou o, no sin- (fizera); moyro ou mouro (morro, do v. morrer), moyra ou moura
gular, pode aparecer reduplicação ou não da vogal: presunçãao, ope- (morra); sabia ou sabhia (saiba), saibham (saibam); i (ide, do v. ir),
nyãao, bastãao, tenção, mão; no plural a reduplicação está presente, is, hys (ides ou vais), imos, ymos ou hymos (vamos); estê (esteja, do
mas tende a desaparecer: Romãaos (romanos), Capitãaes, Capellãaes, v. estar), esteis ou estês (estejais), estem (estejam); sam, som, sejo (sou,
reprensões ou reprensõoes, sermõens ou sermõoes, gratidões, enfor- do v. ser), sodes ou sondes (sois), see (sê, imperat. de ser); vür (vir),
mações, em Rui de Pina (Crónica de El-Rei D. João II). vynra (virá), vynram (virão), veher (vier); põer (pôr), posi, pusi, pu-
À medida que o latim foi aumentando sua influência, acusam- ge (pus) etc.
se variantes gráficas no mesmo texto como: feito, feto ou jeicto, di-
no e digno, sustancia e substancia (parte principal de um texto escri-
to), sprito e (e)spiritu, craro e claro (Leal conselheiro); ynorancia e
ygnorancia, douctrina, auctivos, auctoridade e autoridade (Virtuosa
benfeitoria) (2).
Em Rui de Pina (fins do século XV e começo do século XVI),
já aparecem muitas palavras com ortografia erudita: ejecto, dicto,
nocte, Octubro, aceptar, preceptura, baptizados, excepçam (exceção),
emmenda, excellentes, perpetuu, gloria, injelice, serpe (serpente); po-
rém, ainda está presente o p intruso em escripvam e solepne como
no português medieval (Crónica de El-Rei D. João II, p. 58 e 69).
As grafias alatinadas vão-se multiplicando e alcançam tais ex-
tremos que, na segunda metade do século XVI, os humanistas Da-
mião de Góis e André de Resende, especialmente, chegam a desfigurar ~
l
!
palavras: oclhos (do lat. oculu = olho), cognescer (do lat. cognosce-
re = conhecer), septe (do lat. septem) (3).

(l) A. J. da Costa Pimpão, História da literatura portuguesa, v. I, p. 440.


(2) Conta-se com a fidelidade dos textos, porquanto a edição do Leal conselheiro .
foi organizada por Joseph M. Piei e a Virtuosa benfeitoria é reprodução de manuscri- f.
to da Biblioteca Municipal do Porto. ·
(3) Paul Teyssier, Histoire de la tangue portugaise, p. 87.

1
ADJETIVOS 43

4 com predominância desta última terminação, embora nem sempre haja


concordância entre os plurais antigos e os atuais: sserãaos (are.), se-
rões (mod.); castellãos (are.), castelões (antigo termo para designar
Morfologia castelhano); gaviãaes (are. - D. Duarte), gaviões (mod.); dejama-
çõoes, difamações (mod.); cidadães (are.- Sá de Miranda e Gil Vi-
cente), cidadãos (mod.). Certa flutuação na formação destes plurais
persiste até hoje.
Os nomes com terminação em consoante, de modo geral, pas-
saram a formar o plural com acréscimo de es; os terminados em s
ou z, muitos dos quais atualmente não admitem plural, flexionavam-
se: ourivez, ourivezes (Leal conselheiro), aljerez, aljerezes (Camões),
simprez, simprezes (simples) ou simplezes (Leal conselheiro); hoje,
porém, todos terminam em se são invariáveis no plural: os ourives,
os alferes, os simples (adj. ou subst.); cos (parte do vestuário) faz co-
ses, no plural arcaico, contudo, nos dias atuais, admite as duas for-
mas no plural.
Os nomes (substantivos e adjetivos) terminados em or, ol, es,
nte eram uniformes quanto ao gênero: senhor portugues (senhora por-
tuguesa}, mia pastor (minha pastora), molher espa.'lhol (mulher es-
No século XV e nas primeiras décadas do século XVI, a língua panhola), lingoa espanhol, ifante ou iffante (masc. ou fem.) aos
foi-se organizando e se regulamentando, progressivamente, confor- poucos passaram a formar o feminino com acréscimo de a: senhora,
me normas determinadas pelo uso; porém, as primeiras gramáticas portuguesa, espanhola, ifanta ou infanta.
- a de Fernão de Oliveira, em 1536, e a de João de Barros, em 1540 Os nomes em om que tinham o feminino em oa: injançom, in-
-procederam à sistematização de algumas normas que, por sua vez, fançõa, infançoa; varam, varõa, varoa, passaram, em parte, a tê-lo
manejadas e enriquecidas pelo trabalho artístico dos escritores renas- em ã: irmão, irmã, são, sã, ancião, anciã.
centistas, eliminaram grande parte das variantes. Os nomes em age ou agem, de origem francesa, masculinos, co-
A morfologia passou por inúmeras modificações e alguns auto-
meçaram a generalizar-se como femininos, nos fins do século XV.
res já a consideram "moderna", nos fins do século XV, embora ex-
Em o Leal conselheiro já encontramos nosso lingoagem, nossa lin-
cetuando as formas verbais e uma série de partículas ainda tidas como
goagem; em Fernão Lopes (Crônica de D. João!), seu linhagem; por
bastante arcaicas (1).
outro lado, nomes do gênero feminino comofim,jym oufyn, plane-
Sem chegar a tanto, não se pode negar haver um ritmo gradual
ta (perneta, em Gil Vicente), e outros, passaram a masculinos.
e crescente de regularização, apesar de perdurarem muitas formas an-
tigas até mesmo no século XVI, antes e após a aceleração violenta
do processo renascentista "modernizador".
Adjetivos Os nomes com final em vel (geralmente adjetivos) que
suplantaram os em vil ou bil, talvez por serem latinis-
Substantivos Os nomes terminados em om, am que convergi- mos, segundo Sousa da Silveira, formavam o plural com a mesma
ram para ão, fixaram os plurais em ãos, ães, ões, terminação es (1). O I intervocálico desaparecia, resultando o plural

(I) A. J. da Costa Pimpão, História da literatura portuguesa, v. I, p. 443 et seqs. (I) SousA DA SILVEIRA, Álvaro Ferdinando de- Lições de português. 5. ed. Coim-
bra, Atlântida - Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1952, p. 102.
PRONOMES 45
44 MORFOLOGIA

Deixam dos sete ceus o regimento (governo, direção) I que do Poder


eys ou eis e iis ou is: ynumeravel, ynumeravees, ynumeraveys ou ynu-
mais alto lhe (lhes) foi dado.
meraveis; fyel, jyees, jyeys; empeecivel, empeecivees (Leal conselhei-
ro), empeeciveis (que causam danos ou dificuldades); convinhave/, (Camões, Lus., /, 21)
convinhavees, convinhaveys, às vezes, convinhavis (convenientes); de-
fiei/, deficies, dejiciis, dejicis; vil, vies, viis, vis. No século XVI, Ca- Atualmente ainda há vestígios deste emprego nas combinações,
mões introduziu novamente grande número de adjetivos em bit: raríssimas no Brasil, mas ainda usadas em Portugal, com os prono-
implacábil, inexpugnábil etc. Os outros nomes em/, de modo geral, mes de terceira pessoa o(s), a(s); lhe+ o(s) = lho(s); lhe+ a(s) =
flexionavam-se de acordo com a regra acima: ssygnal, ssygnaes ou lha(s).
ssignays (sinais), sol, soes, sois (sóis). Os possessivos apresentavam, no gênero feminino, duas séries:
átona e tónica:

Gradação átona tônica


ma- correspondente a mha ou mia, que passou a minha
O grau superlativo dos adjetivos formava-se com a anteposição ta tua
de mui ou muito ao grau positivo do adjetivo. Ex.: '' ... a muyto ex- sa sua
ce/lente Reynha dona Leonor sua molher. .. " (Leal conselheiro); em
Rui de Pina encontramos '' ... tynha o acatamento (aspecto, aparên- As formas átonas femininas, usadas com alguma freqüência na
cia) de sua presença muy gracioso ... ";" ... joy muy piadoso ... ". época arcaica e no início do século XVI, ainda são encontradas rara-
Os superlativos sintéticos ainda são raros mesmo na primeira mente no Cancioneiro geral, em Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda
metade do século XVI e, quando aparecem, de modo geral são em- e Gil Vicente, em cujas obras, a par de ta e sa, temos mia com as
pregados para reis, príncipes, grandes personagens. Em Garcia de Re- variantes enha, inha ou nha, empregadas sobretudo com as palavras
sende (Crónica de D. João II) encontram-se: "grandíssimas virtudes", mulher e mãe: "enha molher", "enha mãy". A última variante nha
" ... Christianissimo Dom Joam", "excellentissimo Princepe", "Se- ainda se mantém na fala popular, em algumas regiões do Brasil.
reníssima e muy Excellente Princesa"; até mesmo em Gil Vicente es- Os correspondentes masculinos: meu, teu, seu, e os restantes nos-
tes superlativos são raríssimos e, via de regra, são empregados em so (noso), vosso, não apresentavam irregularidades.
dedicatórias a personagens nobres, religiosas ou célebres: " ... Sere- Os demonstrativos distribuíam-se em duas séries:
níssima e mui alta Rainha D. Caterina ... '' (Tragicomédia pastoril da
Serra da Estrela); " ... ilustríssima senhora ijante dona Beatriz ... ". aqueste (lat. *accu + iste) este
O advérbio muito formava o superlativo à semelhança do adjetivo: aquesta (lat. *accu + ista) esta
" ... chorareys por my muy muyto ... " (Cancioneiro geral, II, p. 161). aquisto (lat. *accu + istu) isto
aquesse (lat. *accu + isse por ipse) esse
aquessa (lat. *accu + issa por ipsa) essa
aquesso (lat. *accu + issu por ipsu), esso isso
aquel(l)e (lat. *accu +ii/e) aquele
Pronomes Entre os pronomes pessoais a forma lhe era invariá-
vel e só passou a ter flexão de plural, séculos mais aquel(l;a (lat. *accu +i/la) aquela
tarde. Exs.: aquel(l)o (lat. *accu +i/lu) aquilo

" ... praz·me que ... levees (leveis) as novas a vossos jrmãaos (irmãos) Antes do século XV predominavam as formas do primeiro gru-
e lhe (lhes) declarees (declareis) ... po ou havia diferença no emprego das duas séries, sendo a primeira,
talvez mais enfática, visto ser "reforçada" (composta de uma parti-
(Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, p. 41)
46 MORFOLOGIA ARTIGOS 47

cula mais o demonstrativo); todavia, no século XV, parece não ter Os leitos, mesas e os lumes/todo cheira ...
havido nenhuma diferença entre elas, sendo umas usadas pelas ou-
tras; na segunda metade do século XVI, começou a predominar a se- (Sá de Miranda, Obras completas, v. II, p. 81)
gunda série, que chegou até nós. Acrescente-se ainda a forma medês
(mesmo) que desapareceu no século XVI, substituída por mesmo Quanto aos pronomes relativos, era freqüente o emprego de que
(meesmo). por quem ou o qual, os quais, a qual, as quais. Exs.:
Dentre os indefinidos, homem, omem, ome, como a partícula
on, em francês, equivalia a alguém, uma pessoa ou sujeito indetermi- ... e disse comtra (para) aquelles a que (quem) sse fazia tall rrequeri-
nado. Muito freqüente, no século XV, em todos os autores, ainda mento (pedido) ...
é bastante encontrado no Cancioneiro geral, em Sá de Miranda e Gil (Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 73)
Vicente. Exs.:
... nom chegou mais que aas ilhas de Cana ria donde trouxe certos cati·
Trarias fruitas de Valença que está homem (alguém) pasmando ... (1). vos, com que (com os quais) se tornou ...
... e por mais que homem se mata, I de birra nom quer fallar (2). (Zurara, Crónica dos feitos de Guiné, p. 47)

Em Camões há um exemplo:
... ou por segredos que homem não conhece.
(Lus., III, 69)
Artigos Os artigos tinham as formas o, a, os, as, encorpadas de
Outros indefinidos antigos: ai (outra coisa); a/garrem (alguma h inicial ho(s), ha(s); porém, as formas arcaicas lo(s), la(s)
coisa), ambos muito freqüentes na fala de pastores serranos ou per- persistiam ainda e, usadas depois de vocábulos terminados em r ou
sonagens populares, cuja língua é marcadamente arcaizante, em pe- s, havia assimilação destas consoantes ao/, assim: pello, pelo (de per
ças de Gil Vicente. Além destes, nengu substituído por nehu (nenhum), lo); palio, paio (de por lo); todo/los, todolos (de todos los); ambolos
nemigalha (nada, nenhuma coisa, com a mesma partícula inicial ne- (de ambos los); volo(s) (de vos lo(s)); nolo(s) (de nos lo(s)); eylo(s)
gativa ne ou nem).
(de eys lo(s)) = ei-lo(s); sobolo(s) (de saber (sobre) lo(s)). Com ver-
O adjetivo indefinido todo(s), toda(s) geralmente acompanha-
va substantivos sem a determinação do artigo. Ex.: bos, os pronomes oblíquos, na mesma forma lo(s), la(s), uniam-se
diretamente: da/lo (dar lo); dizeelo (dizees lo = dizei-lo); depois de
Todos seus dias passou em grandíssimo trabalho ...
consoante final nasal, também havia assimilação do /: no, resultado
(Zurara) (3)
de em ou en (lo(s)) = enno(s) = eno(s); davamno = davam-no.
O pronome todo significava tudo. Exs.:
... e lhe daremos todo quanto temos ...
(Fernão Lopes) (4)

(1) MIRANDA, Francisco de Sá de - Obras completas. Texto fixado, notas e pref.


Verbos Como já se comentou, as formas verbais foram-se disci-
pelo Prof. Rodrigues Lapa. 4. ed. Lisboa, Sá da Costa, 1937, v. II, p. 81. plinando de acordo com determinados modelos, em ra-
(2) VICENTE, Gil - Obras completas. Pref. e notas do Prof. Marques Braga. 4.
ed. Lisboa, Sá da Costa, 1968, v. I, p. 223. zão da analogia.
(3) ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica dos feitos de Guiné. Pref., sei. e notas de As segundas pessoas do plural dos verbos terminavam em des,
Álvaro J. da Costa Pimpão. Lisboa, Clássica Ed., 1942, p. 30.
de: cuidades (cuidais), guardedes (guardeis), morássedes (morásseis),
(4) LOPES, Fernão- Crónica de D. João I. Pref., notas e glossário de Joaquim
Ferreira. 2. ed. Porto, Domingos Barreira [s.d.] p. 67. metede (metei); o d intervocálico caiu cerca do primeiro quartel do

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48 MORFOLOGIA VERBOS 49

século XV, assim: cuidaes, guardaees, guardeis, morassees, morás- Em se tratando de pretéritos perfeitos, havia vários verbos abun-
seis, metee, metei (1). Entretanto, permaneceram vestígios daquelas dantes, isto é, com diversas formas:
formas nos verbos em que as terminações estão após r ou nasal - Pretérito Perf e Derivados
amardes, quiserdes, tendes, vinde, ponde- e nos verbos de infiniti- jouve jouvera, jouvesse
jazer
vo monossilábico - vedes, vede, do v. ver; ides, ide, vades, do v. jougue jouguera, jouguesse
ir; rides, ride, do v. rir e, de igual modo, nos verbos crer e ler: crede, jazi jazera, jazesse
lede. prazer (agradar) prouve prouvera, prouvesse
Na linguagem de Gil Vicente, as formas com d ainda aparecem, prougue prouguera, prouguesse
trazer (are. trager) tragi tragera, tragesse
para caracterizar certas personagens. trouguera, trouguesse
trougue
As terceiras pessoas do singular do presente do indicativo de ver- trouve trouvera, trouvesse
bos como pesar, querer, valer eram respectivamente: pês, quer, vai. trouxe trouxera, trouxesse
Mais tarde, talvez por analogia, restabeleceu-se o e final depois de (talvez de forma anti-
s, r, 1: pese, quere (no Brasil quer, mas no composto, requere), vale. ga *treixe) (1)
Havia, ainda, outras formas reduzidas, comuns em vários autores: jazer fige, figi figera, fi gesse
feze, fize fezera, fizera, jezesse,
di (dize); faes, fais (fazes); qués (queres); traes (trazes); guar-te
fizesse
(guarda-te); vai (valha-me). pugera, pugesse
poder pugi
Os verbos mentir, sentir, arder, jazer, tinham, na primeira pes- pode, pudi podera, pudera,
soa do singular do presente do indicativo e em todas do subjuntivo, podesse, pudesse
um ç resultante da evolução natural do latim. Entretanto, os dois pri- querer quigi quigera, quigesse
meiros já apresentavam t nas outras pessoas, e, por analogia, t subs- quise, quisi quisera, quisesse
tituiu ç; assim, meço e senço passaram a mento e sento; as formas
atuais minto, sinto, talvez por analogia com servo (de servir), sofre- O verbo morrer tinha as formas: moyro ou moiro e mais a con-
corrente mouro; o infinitivo morer; o futuro morerei e o antigo pre-
ram metafonia de e para i, visto que servo se conjugava: servo, sirves
sente do condicional (hoje futuro do pretérito) moreria; estas duas
e mais tarde sirvo, serves (2). últimas formas perderam o e átono, entre consoantes, e passaram a
Arder e jazer - arço, jaço - tinham, respectivamente, d e z morrei, morrás e morria, morrias, respectivamente, que, por sua vez,
nas pessoas restantes e também, por analogia, substituíram o ç: ar- exerceram influência sobre o infinitivo, originando a forma morrer.
do, ardes, jazo, jazes. cujo presente do indicativo correspondente se tornou morro, morres
Em contrapartida, pedir, cuja primeira pessoa também era com etc., o futuro morrerei e o condicional morreria.
ç, peço, pedes com formas paralelas pido, pides, no subjuntivo peça, A respeito de futuros do tipo morrei, morrás, há vários verbos
com formas semelhantes; assim, de querer: querrei, querria; de ter:
pida, conservou formas com de com ç.
ferrei, terria; vir (are. viir): verrei, verria com formas paralelas veirei
O verbo cumprir, igualmente, apresentava irregularidade: alter- ou viirei, vfirá ou vynrá (D. Duarte), vfiria; pôr (are. põer): porrei,
nância entre u e o na raiz: compro ou cumpro, compres, cumpres; porria. Querer e ter passaram a ter futuro e condicional, respectivos,
por analogia com verbos do tipo de sumir, manteve o u em toda a quererei, quereria; terei, teria. Vfir e põer perderam a nasalação do
conjugação. infinitivo e tiveram as formas virei, viria; porei, poria.

(1) J. Leite de Vasconcellos, Lições de filologia portuguesa, p. 187. (I) Idem, ibidem, p. 347. Para maiores esclarecimentos ver cap. III desta obra, p.
(2) J. J. Nunes, Compêndio de gramática histórica portuguesa, p. 297 et seqs. 280 et seqs.
50 MORFOLOGIA NUMERAIS 51

Grande número de verbos que terminavam em er, como corre- encontrados em todos os autores da época. Aos poucos essas formas
ger, aduzer, caer, finger etc., passaram posteriormente a ir: corrigir, foram sendo substituídas pelas terminadas em ido; contudo, perma-
aduzir, cair, fingir. necem até hoje: conteúdo, já substantivado, e a expressão jurídica
Entre muitos verbos bastante irregulares da época arcaica, vá- "teúda e manteúda" de nítida conotação arcaica. Contavam-se ain-
rios desapareceram e outros chegaram até os dias de hoje, após muitas da particípios em eito: colheita (colhido), escolheito (escolhido), co-
modificações, processadas entre o século XV e o início do século XVI. seito (cosido), maltreito (maltratado). Em Bernardim Ribeiro
Um deles é ir, originado de três verbos latinos: ire, vadere (ir), registra-se colheita (colhida, reprimida) (Écloga II); em Sá de Miran-
esse (ser); entre as formas bastante encontradas nos autores do sécu- da escólheito, encolheita (encolhida), temudo (temido). Havia igual-
lo XV, e mais raramente na primeira metade do século XVI, temos: mente particípios em eso: despesa (despendido); defeso (defendido,
proibido}, ainda usado nos dias atuais, com a segunda significação.
i ou hy, hi (ide), is ou hys, his (ides), imos ou ymos (vamos). Exs.:
Hyvos d'hi. .. (ide-vos daí. .. ).
(Rui de Pina, Crónica de El-Rei D. João II, p. 161)
Numerais Os numerais não apresentam muitas peculiaridades:
I lá tomar cuidac,lo de filhos alheos.
entre os cardinais havia as formas dezesseis ou dezas-
(Sá de Miranda, Obras completas, v. II, p. 125) seis em virtude da formação latina *dece et sex ou *dece ac sex; assim
/-vos, minhas cabras, i-vos ... dez e seis, hoje dezesseis, dez e sete, hoje dezessete ou então dez a
(Bernardim Ribeiro, Obras completas, v. II, p. 65) seis, dezasseis, dez a sete, dezassete.
Ao invés de vinte e um, vinte e três, encontrava-se vinta um,
O verbo estar teve as formas estê (esteja), esteis ou estês (este- vinta três (1). Cem tinha a forma cento- cento annos, cento olhos
jais), estem (estejam) substituídas por esteja, estejais, estejam por in- -, que hoje só se usa com dezenas e unidades; entre os ordinais ha-
fluência de seja do verbo ser. Estas formas são registradas em diversos via a forma seitimo, seitemo ou seytemo (seytemo ou septimo- Leal
autores. Exs.: conselheiro); o distributivo senhas (a cada um seu) ainda é registrado
em Gil Vicente: " ... durmamos senhas bocados ... " (durmamos cada
Não estês assim pasmado ... um seu bocado) (Auto da Mofina Mendes); " ... dai-nos cá senhas
(Bernardim Ribeiro, Obras completas, v. II, p. 74) ducados." (dai-nos cá a cada um seus ducados) (Farsa de Inês Pereira) .
... não hei medo que me comas, I por anojado (magoado) que estês.
(Sá de Miranda, Obras completas, v. I, p. 155)
Daquillo que mais quero estê (esteja) tão fora ...
Palavras invariáveis
(Camões, soneto 72)

O verbo ser, que se originou de dois verbos latinos (sede- Advérbios


re = estar sentado, e esse = ser), aparece freqüentemente nas for-
mas: seja, sõo, som, sam, são, so para designar sou (prim. pes. do Entre formas adverbiais ou advérbios temos:
sing. do pres. ind.), sodes ou sondes (sois); siia, seia, ousia, ou era, Adhur, aadur, adur: dificilmente- freqüentes em todos os autores
eras (no imperf. ind.); sevi, sivi ou sive, ou foi ou fui (fui), fuste ou do século XV; raras no século XVI.
foste (foste). Asinha, azinha: depressa- comuns até o século XVI, registradas ain-
Os particípios da segunda conjugação terminavam em udo, da em Camões.
atualmente ido: perdudo (perdido), conhoçudo (conhecido), teudo (ti- I

do}, escondudo (escondido), manteudo (mantido), avudo (havido), (1) A. J. da Costa Pimpão, História da literatura pbrtuguesa, v. I, P· 444.

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52 MORFOLOGIA
PALAVRAS INVARIÁVEIS 53

Samica(s): talvez - considerada já arcaísmo (Fernão de Oliveira),


ainda aparece em Sá de Miranda e Gil Vicente. Cadano: cada ano.
Aosadas, a osadas, a ousadas: certamente- usadas por Sá de Mi- Ate/i, te/i: até ali.
randa e Gil Vicente.
Ategora: até agora.
Nego, nega: senão } comuns em No mais, nomais: não mais, não - comum ainda em Camões.
Ar, er: também - reforçavam formas verbais Gil Vicente.
Entonce(s), entances: então - comuns em Gil Vicente. Conjunções
Estonces (de orig. cast.) - registrada em Sá de Miranda.
Antãoce, antonce, intonces- registradas no linguajar paulista (1). As conjunções modificaram-se ou foram substituídas:
Ogano: este ano Pero, empero, emperol: mas- geralmente são adversativas, porém
Eire: ontem bastante empregadas até o século XVI (Sá de Mi- há exemplos de pero como concessiva, cau-
Cras: amanhã randa, Gil Vicente). sal ou conclusiva (Cancioneiro geral, Sá de
Ora: agora Miranda).
Alhur: em outro lugar } Substituídas por: alhures,
Algur: em algum lugar algures, Apesar de muito usadas, desapareceram gradualmente, dando lugar
Nenhur: em nenhum lugar nenhures, ainda lexicalizadas. a mas, porém.
Hu, u: onde -logo substituída por onde. Em conexão com o artigo Mes: passou a mas.
lo, formava o advérbio interrogativo: Ca: podia ser causal, porque (do lat. quia), ou comparativa, que (do
UIo: onde o. Ex.: lat. quam). Bastante freqüente no século XV, com estes valores,
E u/as cavalarias ... (E onde [estão] as proezas?). no século XVI, parece ter sido empregada, de preferência, como
(Gil Vicente, Obras completas, v. V, p. 121)
causal, por Gil Vicente e João de Barros. Ex.:
Ca sempre os sabios disseram I pois do falar vêm os p'rigos.
Hi, i: aí (forma composta que substituiu a primeira). (Gil Vicente, Obras completas, v. V, p. 45)
Des y, desy, desi: depois, desde então } b t d · h"
u 1,
na · h"1 a: h,
a 01, am ascompos as et, 1. Tanto que: significava assim que.
En, em: ~isso, ~aí } e em compostos: Como, quomo, come, coma: significava logo que, quando, ou equi-
Ende: dai, por 1sso valia a uma conjunção integrante com
Por en, por em, porem: por isso- atualmente conjunção adversa- verbos dizer, contar etc.- hoje, como.
tiva porém; Em que: significava ainda que - muito freqüente até o século XVI.
Porende, perende: por isso - que desapareceu.
Canto: quanto - geralmente combinada com palavra seguinte ini- Que desacompanhado de preposição, neste mesmo século, já era
ciada por vogal, sofre elisão de o final: empregado como conjunção integrante, concessiva, causal, final, con-
Canta, cant'a: quanto a. secutiva, comparativa, coordenativa copulativa, além de partícula de
Cantaquela, cant'aquela: quanto àquela. realce, não se contando seu valor como pronome (estas funções to-
Canteu, cant'eu, cantami: quanto a mim. das podem ser registradas em Sá de Miranda, algumas em Bernardim
Ribeiro e em Gil Vicente).
À semelhança destas, outras formas adverbiais admitem tais
combinações: Preposições
I

(I) Amadeu Amaral, O dialeto caipira, p. 88.


Das preposições há pouco a dizer-se.
Note-se que per e por, usadas uma pela outra, confundiram-se,
P,.\LA\'R.\~ 1'..;\ARIAVEIS 55
54 MORFOLOGIA

randa). Existem também as expressões, consideradas interjeições por


com predominância da segunda, que acabou por fixar-se, permane-
J. J. Nunes, que denotam antipatia, como eramá, eremá, aramá, ea-
cendo a primeira, em combinação com o artigo lo(s), la(s) - pello,
ramá, ieramá, com a significação de em má hora, na forma compos-
pelo(s), pella, pela(s); na forma pera (de per + a de ad latino), de-
ta, muit'ieramá (em muito má hora) (1). A todas estas opunha-se em
pois para; em perante (per + ante), e nas expressões vigentes até ho-
boa hora que assumia a forma embora (atualmente advérbio ou con-
je de per si, de per meio, de permeio, pouco usada, via de regra,
junção). Em Gil Vicente encontra-se um número muito grande de ex-
substituída por em meio a ou através de. A respeito de per, havia ain-
pressões dos tipos citados e de uma rica série de outros da mesma
da uma forma paralela par, que só aparecia em expressões invocati-
vas par des, pardes, pardez, pardelhas, par nostro Senhor, equivalentes ordem.
a por Deus!, por nosso Senhor!, e que Dona Carolina Michaelis con-
siderava galicismo (1).
As variantes ata, ataa, atee, atee, fixaram-se na forma até.
A preposição antre passou a entre.
Escontra ou contra, significando em direção a, desapareceram,
permanecendo a segunda com o significado de: em oposição a, em
frente de.
Assim como existiam combinações ou junções de advérbios, tam-
bém as havia entre preposições ou entre estas e palavras de outra na-
tureza: com a preposição de encontravam-se: dum (de um), dir ou
dhir (de ir), dahi (daí); desde (que acabou substituindo des, arcaica
de sentido semelhante); entrellas (entre elas); sobre/las (sobre elas).
A preposição com, de igual modo, contraía-se com o artigo o(s), a(s),
principalmente em composições poéticas, assumindo as formas co(s),
coa(s), registradas até hoje.

Interjeições

Ainda que, a rigor, não façam parte do discurso, merecem men-


ção algumas interjeições, dados os gêneros então cultivados: além de
oo ou ho, equivalente a oh! (Fernão Lopes), há locuções ou expres-
sões interjectivas invocativas, a exemplo de: Jesu!; Santa Maria vai (1)!
(Santa Maria valei-me!), em Fernão Lopes e em outros autores como
Gil Vicente; abofé ou bofé, a par das formas bojá ou bofelhas, con-
sideradas populares (em Gil Vicente sempre em falas de personagens
do povo ou rústicas), à semelhança das quais se registra, ig~almente,
entre alguns autores, outra similar: a la fe, ou alia fe, que significa
por Deus, em verdade (Fernão Lopes, Bernardim Ribeiro, Sá de Mi-

(!)VASCONCELOS, Carolina Michaelis de- Lições de filologia portuguesa. Lisboa,


(1) Compêndio de gramática hislórica portuguesa, p. 369-70 .
Edição da Revista de Portugal [1964] p. 416.

...,,.cw. 'tb
PARTITIVO 57

5 ... e por Capitam moor (Capitão-mor) della ... O qual descorrendo pola
dieta costa (percorrendo a dita costa) com assaz perigo ... aportou com
a dieta armada ao dicto Regno ...

Sintaxe e recursos estilísticos (Idem, ibidem, p. I49, et passim)

Tais exemplos, que parecem indicar influência do latim, são re-


gistrados regularmente em Fernão Lopes, Zurara, mas ainda com
maior freqüência, em Rui de Pina.
O pronome cujo tinha empregos diferentes do atual:
a) podia ter a função de predicativo do verbo ser. Exs.:
/
Linda dama cujo sam ... (dama de quem sou).
(Cancioneiro geral, v. I, p. 280)
... tive amor e lealdadelhoo (ao) princepe cuja sam, .. .i.
(lbidem, v. V, p. 362)
ó Alma .. ./ que dais o seu a cujo é ... (àquele de quem é).
(Gil Vicente, Obras completas, v. II, p. 35)
b) podia ser pronome interrogativo (de origem latina) e era emprega-
Apresentando os fenômenos sintáticos e/ou sintático-estilísticos do por alguns autores, sobretudo em textos poéticos. Exs.:
número relativamente pequeno de ocorrências gerais, com algumas Cujo (de quem) he o fato (rebanho)?
exceções, serão focalizados principalmente aqueles de maior incidên- (Gil Vicente, Obras completas, v. V, p. 352)
cia nos autores quatrocentistas e em alguns quinhentistas. Cuja he esta barca que preste?
(Idem, ibidem, v. II, p. 67)

Em Vieira ainda se encontram alguns exemplos.


Pronomes O pronome relativo, encabeçando períodos ou fra-
ses, estabelecia conexão com os que o precediam e
equivalia a um demonstrativo anafórico, semelhante à conexão rela-
tiva latina, na qual o relativo tinha o valor de uma conjunção coor-
Partitivo A construção de partitivo a que Epifânio da S. Dias
denomina "artigo partitivo", à semelhança do francês
denativa e mais um demonstrativo. No exemplo seguinte, Zurara
(Sintaxe histórica portuguesa, p. 102), e nós aproximaríamos do ge-
refere-se à conquista da cidade de Ceuta, citada no período anterior: nitivo partitil!o latino que indicava o todo do qual se tirava uma par-
te, era muito encontrada com palavras indicadoras de quantidade (os
f Na qual conquista (e nesta ... ) este principe foe (foi) capitam de mui gran-
de e, mui poderosa frota .. . "quantificadores"); freqüente na prosa e na poesia do século XV,
passou a circunscrevercse, de preferência a esta última, no século XVI,
(Zurara, Crónica dos feitos de Guiné, p. 35)
tornando-se, por assim dizer, figura de estilo. Exs.:
r ... ser medeaneiro (mediador) de paz antre (entre) elles. A qual empre- E assy poderemos dizer quanto de occíosídade e príguyça somos to-
[ sa ... EI-Rey ... foy muyto contente de a aceptar.
(Rui de Pina, Crónica de El-Rei D. João II, p. 82)
f cados (por quanta ociosidade e preguiça somos tomados ou dirigidos).
(D. Duarte, Leal conselheiro, p. 106)
58 SJ~TAXE E RECURSOS ESTJLISTJCOS VERBOS 59

... Disseram algüus que desse volta e tornasse (voltasse) aa pelleja ca ... mulheres de casa, delas (umas, algumas) fiando e outras dobando
(porque) assaz erã (eram) de gentes pera elles ... (porque tinham muita (enrolar fios em novelos) ...
gente com eles ou por eles). (Bernardim Ribeiro, Obras completas, v. I, p. 18)
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 105)
... e ficando-lhe ainda hüa pequena de sperança ... (pequena esperança). Said Ali aponta outras formas em Zurara e em João de Bar-
(Zurara, Crónica dos feitos de Guiné, p. 78) ros. Exs.:
As humas com as outras
... e forom muitos feridos ... e cativaram (aprisionaram) del/es antre (en·
(Zurara, D. Pedro de Meneses, p. 441)
tre) homes e molheres quatrocentos ...
(Rui de Pina, Crónica de EI-Rei D. João II, p. 77) Desculpando-se o hum e o outro ...
(Idem, ibidem, p. 448)
... emprestai-me do azeite ...
Duas cousas: a huma que se saqueasse a cidade primeiro; e a outra
(Gil Vicente, Obras completas, v. VI, p. 237 et passim) que cometessem (atacassem) o palmar (palmeiral).
-r ... que assaz de mal lhe quero ... (quero-lhe muito mal). (João de Barros, Década, /, 8, p. 8) (1)
(Camões, Lus., II, 40)
Em João de Barros ainda encontramos outra construção. Ex.:
... deles (uns) pera levarem o fato (carga) dos nossos e delles (outros)
que serviam de espada ...
Distributivos Existe ainda uma construção de distributivos - (Década, 1, 4, p. 71)
delles, dellas ... outros, outras- muito comum
no século XV, sobretudo em Fernão Lopes, que alternava, algumas Às vezes, mesmo não estando em correlação com a forma ou-
vezes com a equivalente uns ou umas, alguns, algumas ... outros, ou- tros, outras, deles ou delas, que, segundo Epifânio da S. Dias, são
tras. Exs.: "expressões elíticas arcaicas" equivalentes a alguns (deles), algumas
(delas), podem ser empregadas com esse valor. Exs.:
E Deites (alguns ou uns) bradavam (bradavam) por lenha ... outros sse afi-
cavom (teimavam) ... ... delas (algumas) morrem de cançadas (sic) ...
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 61) (Bernardim Ribeiro, Obras completas, v. 11, p. 5)
~: ... e deites nadando sem armas nenhüuas, outros amergulhando so (sob) O sol de dia, as estrelas/de noite, quantas que vemos!/nacem delas,
·~- a agua, cobraram (retomaram) seu batel (bote, canoa) ... põem-se delas ...
(Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, p. 113 et passim) (Sá de Miranda, Obras completas, v. I, p. 174)

Há outra construção já bem semelhante à moderna. Exs.: No século XVI apareceram outras construções empregadas por
Camões: quem ... quem; este ... este.
Hüas vinham com feixes de lenha, outras tragiam (traziam) carqueyja
(carqueja- planta silvestre que se usa como acendalha para alimen-
tar o fogo) pera acender o fogo ...
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 61)
Verbos Os particípios, que, com os verbos ter e haver, consti-
... e os cavalleiros topamdo (indo de encontro a) em ellas (lanças), a/-
tuem locuções verbais ativas, concordavam em gênero e
güus delles cahirom ... ; outros amte que de todo chegassem topar na
batalha (entrar na batalha), eram feridos ...
(Idem, ibidem, p. 103) (I) M. Said Ali, Gramática histórica da /(ngua portuguesa, p. 115.
VERBOS 61
60 SINTAXE E RECURSOS ESTILÍSTICOS

número com o objeto direto do verbo; esta prática parece perdurar ... a qual cousa poderom (poderiam) fazer segundo sua multidom (com
durante todo o século XVI. Exs.: seu grande número), se os nossos foram (fossem) homêes de mais baixo
avisamento (de menos prudência).
Avendo (havendo) scripta esta repartiçom dos pecados suso (acima) de- (Zurara, Crónica dos feitos de Guiné, p. 58)
clarada ... (tendo escrito ou descrito esta classificação ... ).
(D. Duarte, Leal conselheiro, p. 273) Não tomeis de aqui (não penseis por isto) que eu folgarei de ouvir a
historia, porque isto pudera (poderia) ser se nom fora (fosse) de
El-Rei de Castella, com tanta multidom de gente ... teer cercada Iam no-
tristezas ...
bre cidade.
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 118 et passim) (Bernardim Ribeiro, Obras completas, v. /, p. 15)

... e hüa daquellas Mouras que tiinham presas ... Este emprego é freqüentíssimo em todos os autores do século
(Zurara, Crónica dos feitos de Guiné, p. 57 et passim)
XV e em muitos do século XVI.
O uso do gerúndio muito mais freqüente do que hoje, em Por-
... fazenda (bens) ... que por sua deslealdade tynha perdida tugal, aproxima-se do uso brasileiro. Em certos períodos encontram-
(Rui de Pina, Crónica de El-Rei D. João II, et passim) se até quatro ou cinco formas gerundiais. Ex.:
E porque, como vistes, têm passados/na viagem tão ásperos perigos ... Non afroxando (afrouxando) per (por) fraqueza de voontade, nem nos
(Camões, Lus., /, 29) torvando (perturbando) por trigança (pressa) com grande acrecentamen-
to (acréscimo) deli a, mas determynando seguramente o que he (é) bem
O complemento agente da voz passiva geralmente é introduzi- em cadahüu (cada um) feito, nom se recrecendo (aumentando) em el
(ele) tal caso que seja razom (em tal oportunidade em que haja razão)
do pela preposição de e não por, mesmo no caso de estar o particípio
fazer mudamento (de fazer mudança) no começado (no que foi come-
afastado dele. Exs.:
çado), nom leixemos (deixemos) nosso proposito por suas mudanças,
E praz-lhe (agrada-lhe) muyto seer de sseu amygo perfeitamente ante (antes) ... contynuemos ataa (até) viir (vir) a fynal conclusom (con-
amado ... clusão) de nosso desejo.
(D. Duarte, Leal conselheiro, p. 177) (D. Duarte, Leal conselheiro, p. 105)

... outros ante (antes) que de todo chegassem topar na batalha (che- Ainda com respeito ao emprego do gerúndio, há uma constru-
gassem a entrar na batalha), eram feridos de viratõoes (setas) ... ção especial, encontrada em Fernão Lopes, Bernardim Ribeiro, Cris-
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 103 et passim) tóvão Falcão, e até registrada em outros autores, como Frei Tomé
de Jesus e Bernardes, o primeiro da segunda metade do século XVI,
... a qual perda era muyto chorada·d'algüus (de alguns) daquelles de e o segundo, do século XVII. Trata-se do emprego de dois gerúndios
vill geraçam (de baixa condição) ... juntos, como se constituíssem uma locução. Exs.:
(Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, p. 99 et passim)
E hindo (indo) assi fugindo disserom (disseram) algüus ao Almirante
... seu desejo que era desejar sua salvaçam, por ser dei/e certificado dos que hiam com elle, que desse volta (voltasse) ...
que era Rey nobre ... (Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 105)
(Rui de Pina, Crónica de El-Rei D. João II, p. 151 et passim)
Não tardou muito que, estando eu assi cuidando sobre hüu (um) verde
ramo ... se veio pousar hüu rouxinol. ..
Comumente era empregado o mais-que-perfeito do indicativo (Bernardim Ribeiro, Obras completas, v. I, p. 9)
para expressões temporais hoje indicadas pelo imperfeito do subjun-
Algüas horas falavam, I andando o gado pascendo, I e então apascen-
tivo e pelo futuro dó pretérito. Exs.: tavam os olhos ...
(Cristóvão Falcão) (1)
E sem duvida se elles entraram (entrassem) demtro, nom sse escusara
(escusaria, pouparia) a Rainha de morte, e fora (seria) maravilha (uma
maravilha) quantos eram da sua parte ... (I) FALCÃO, Cristóvão. Crisfal. Not. hist. e liter. e texto fix. e anot. por F. Costa
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 63) Marques. Lisboa, Clássica Ed., 1943, p. 32.
62 SINTAXE E RECURSOS ESTILÍSTICOS VERBOS 63

Tais construções foram substituídas mais tarde, em Portugal, por Exs.:


per{jrases do tipo: indo a fugir, estando a cuidar, andando a pascer. cumprir:
Na língua portuguesa do Brasil, ou permaneceu somente o ge-
rúndio, que indicava a ação principal -fugindo, cuidando, pascen- ... nom tardemos de comprir as cousas ...
do -, ou apareceram outras formas substitutivas. (D. Duarte, Leal conselheiro, p. 11 7)
No período em questão, como ainda se observa nos dias de ho- ... e que lhes nom compria teer em isto outro contrairo geito (sic) (não
je, o gerúndio podia vir acompanhado de preposição: geralmente em lhes era conveniente agir de modo contrário) ...
e sem, esta de valor negativo. Exs.: (Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 73)
E ssemelhante he (é) em filharem sandia delleitaçom (tirarem ou des-
frutarem tolo prazer) em algüas cousas com pecado, sem sperando (sem
esperar) boa nem virtuosa fim.
desejar:
(D. Duarte, Leal conselheiro, p. 245) ... dessejava ver-te aqui. ..
Sem lhe poendo (sem pôr) tall contradiçO (contradição), confesso-o ... (Bernardim Ribeiro, Obras completas, v. Il, p. 43)
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 349)
... namorado (enamorado) sem conforto, I desejando antes ser morto ...
Tornaram (voltaram) com este ;ecado, sem fazendo (sem fazer) outra
cousa que contar seja. (Gil Vicente, Obras completas, v. V, p. 181)
(Zurara, Crónica dos feitos de Guir,é, p. 49)
determinar:
Regência verbal ... nem determinavam nehOa cousa ...
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 61)
A regência verbal, no século XV e no começo do século XVI,
apresentava muita flutuação; é difícil, pois, organizar um quadro bas- ... determinava em sua voomtade de ficar ...
tante abrangente e bem definido das variadas regências. (Idem, ibidem, p. 68)
Havia uma série numerosa de verbos que, de modo geral, ad-
mitia a preposição de e/ou regime direto, principalmente antes de in- ... detriminou (ei-Rei) ... apagar sua furia ...
finitivo, em todos os autores deste período:
(Rui de Pina, Crónica de El-Rei D. João II, p. 32)
Acerrar (ajustar, acontecer) Fiar
Acordar (pôr-se de acordo) Folgar (divertir-se) ... detriminou de nom esperar os messegeiros (mensageiros) ...
Cessar Merecer (Idem, ibidem, p. 150)
Começar - também regime Ordenar, hordenar - reg. dir.
direto Ousar
Consentir, cosentir, cossentir - Outorgar - reg. dir. E dever:
reg. dir. Prazer (agradar) - reg. dir.
Convir Prometer ... devemos aver (haver = ter) todas virtudes ...
Costumar, acostumar Propor, propoer - reg. dir. (D. Duarte, Leal conselheiro, p. 80)
Cumprir, comprir - reg. dir. Recear, recear-se
Curar (cuidar de) Refusar (recusar) E devees (deveis) de ssaber que per desfallecimento ...
Desejar - reg. dir. Soer, soher (costumar) (Idem, ibidem, p. 88)
Determinar, determinar-se - Temer, temer-se - reg. dir.
reg. dir. Trabalhar, trabalhar-se
Dever- reg. dir. Usar, husar- reg. dir. ordenar:
Duvidar, dovidar - reg. dir.
Entender (pretender)· ... quero ordenar hOas festas ...
Esforçar-se (Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, p. 18)

.•
L.~----illlliiililliiiiiiÍIIIíii _ _ _ _ _____,
64 SINTAXE E RECURSOS ESTILÍSTICOS VERBOS 65

ousar: Em Zurara, o verbo pode vir acompanhado de em:


... nom ousavom sahir polias portas ... ... querer consentir no rrequerimento (pedido) de seus filhos ...
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 55) (Crónica da tomada de Ceuta, p. 21)

outorgar: prazer:
... os senhores dam (dão) e autorgam graadas (generosas) ... mercees
(mercês, favores) ... (I) ... disserem que lhes prazia de o servir...
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 69)
temer: ... era a elles rrequerido (pedido) se lhes prazia outorgar aquello ...
... temendosse (temendo) cayr por ello (por isto) em pecado ... (Idem, ibidem, p. 70)
(D. Duarte, Leal conselheiro, p. 122)
... cousas que a homem (alguém, pessoa) praz que sejam ...
(D. Duarte, Leal conselheiro, p. 94)
usar:
... esse no tempo da paz nom husarmos as armas, quando vehesse (vies· propor:
se) a guerra nom as poderiamos soportar.
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 50) ... cousas que por deos (sic) proposermos fazer ...
(Idem, ibidem, p. 117)
Do grande grupo citado, alguns verbos admitiam também apre-
... propoendo e despoendosse (dispondo-se) logo a fazer ...
posição a- começar, consentir, prazer, propor- e, outros, apre-
(Idem, ibidem, p. 82)
posição em -duvidar, fiar, cuidar. Exs.:
C.:-- começar: Com preposição em:
... e começaram de sobir acima ...
duvidar- Exs.:
(Fernão Lopes)
... começavam (começavam) sahir do arravallde (arredores) ... ... dovidando a rressurreiçom ...
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 99) (Idem, ibidem, p. 29)
Donde vos começarei, I magoas minhas a contar? E naquesto (nisto) nom devemos duvydar...
(Bernardim Ribeiro, Obras completas, v. 11, p. 95) (Idem, ibidem, p. 155)

consentir: fiar- Exs.:


... conssentir ser theudo (ser tido) em conta ...
Assi fiei eu de vós/ toda a minha esmolaria (esmolas).
(D. Duarte, Leal conselheiro, p. 46)
(Gil Vicente, Obras completas, v. V, p. 335)
Que eu vos não consentira I entrar em tanta privança (intimidade)
(Gil Vicente, Obras completas, v. V, p. 101) Nunca mais ey (hei) de fiar I em fidalgo desta sorte.
(Idem, ibidem, v. V, p. 362)
... nem consentisse a algum seu nelles creer. ..
(Rui de Pina, Crónica de El-Rei D. João II, p. 151)
Em Camões encontram-se ambas as regências também. Exs.:

(I) PEDRO, D. - Virtuosa bemjeitoria. Intr. e notas de Joaquim Costa. 3. ed. Por- ... e que tanto fiou de um fraco pau ...
to, Empresa Industrial Gráfica, 1946, p. 25. (Lus., V, 74)

~
66 SINTAXE E RECLRSCJS ESflllSTICO', VERBOS 67

... fiado na promessa e consciencia ... Os verbos que indicam movimento para um lugar admitiam vá-
(lus., !li, 36) rias regências: Entrar podia ser usado sem preposição ou com as pre-
posições em ou a. Exs.:
cuidar - Exs.: ... elle foy o primeiro que entrou a cidade ...
(Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, p. 82)
... cuidamdo queimar o muro ...
E a primeira bandeira rreal que entrou em a cidade foy a do lffante ...
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 61)
(idem, ibidem, p. 82)
... assi que cuidar em virtuosas cousas ...
... quem com elle em e/la entrar ...
(Idem, ibidem, p. 123) (Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 88)

Há ainda outros verbos que podem admitir três regências, co- ... amte que entrasse aa batalha.
(Idem, ibidem, p. 101)
mo crer e o arcaico consirar (considerar): sem preposição, em ou a.
Exs.:
Em Camões o regime direto só é admitido com as expressões
crer:
a barra, a boca (de rio), as portas. Exs.:
... creer devemos os que ... som aprovados ... ... entres a barra ...
(D. Duarte, Leal conselheiro, p. 143) (Lus., II, 3)
Não creais a Satanás ... ... entrando a boca já do Tejo ameno ...
(G. Vicente, Obras completas, v. II, p. 87) (lbidem, III, 58)

... que arrenegasse os idollos e feitiçarias em que adoravam e criam ... primeiro entrando as portas da cidade ...
e que nom creesse, nem conssentisse a algum seu (algum dos seus) (lbidem, VIII, 37)
nelles creer ...
(Rui de Pina, Crónica de El-Rei D. João II, p. 151) Atualmente o composto adentrar conserva o regime direto.
Outros verbos como:
Em Camões encontramos duas regências na mesma estrofe: Encaminhar } .
. . podiam ser acompanhados de pera (para).
Oh! não na creias (ventura) porque eu quando a cria ... I me mentia.
P arllr, partir-se
(lus., IX, 77) Exs.:
... assi encaminhou pera os Paaços ...
consirar: (Fernão Lopes, Crónica de D . .João J, p. 64)
E... conssiirando estes mal/es que de tal cuydado sse recebem ... E o Prior se partia pera suas terras ...
rn. Duane, Leal conselheiro, p. 96) (Jdem, ibidem, p. 81)

... mais conssiirem aa substancia (conteúdo) e boa teençom que ao muy·


Vir, vir-se { também admitiam pera, mas o primeiro po-
to saber ...
Tornar, tornar-se ~ dia ser usado com a e o segundo com a e em.
(Idem, ibidem, p. 141)
Vir, vir-se -'Exs.:
... consiirando nas grandes cousas que no reino eram (estavam) por
fazer ... ... que sse fossem armar e se vehessem (viessem) pera elle.
(Zurara, Crónica dos feitos de Guiné, p. 42) (Idem, ibidem, p. 49)
68 SINTAXE E RECURSOS ESTILÍSTICOS VERBOS 69

... e hordenarom (determinaram) de viinr aa batalha de cavallo (a cavalo) ... O verbo socorrer, hoje com regime direto, era transitivo indire-
(Idem, ibidem, p. 102) to. Exs.:
... os quaes üudeus) ... se socorreram a E/ Rey ...
Tornar, tornar-se- Exs.: (Rui de Pina, Crónica de El-Rei D. João II, p. 179)
Todos santos marteirados (martirizados), I socorrei ao marteirado, I ...
... tornaromsse (voltaram) pera a vil/a. (Gil Vicente, Obras completas, v. V, p. 164)
(Idem, ibidem, p. 83) ... mano, socorrede-me ora (agora),/ ...
(Idem, ibidem, v. VI, p. 230)
... que desse volta e tornasse aa pel/eja ...
(Idem, ibidem, p. 105) Obedecer também tinha regência indireta. Exs.:
... procede mais que da rrezom (mais da razão), pois (porque) nom obe-
... que despois de aprenderem a lingoa ... tornariam em suas terras ... dece ao que ella manda.
(Rui de Pina, Crónica de El-Rei D. João II, p. 150) (D. Duarte, Leal conselheiro, p. 45)
... a EIRey por lhe obedecer e comprazer ...
Ir, ir-se (Rui de Pina, Crónica de El-Rei D. João II, p. 76)
} podiam estar acompanhados de a ou em. Os fracos de coração/ obedecem à vontade, /...
Sair, sair-se
(Bernardim Ribeiro, Obras completas, v. II, p. 12)
Ir, ir-se- Exs.:
... foisse (foi-se) ao Paaço do meestre ...
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 91)

... hir ao monte e aa caça ...


,
i
Nos séculos XV e XVI este verbo também foi empregado como
transitivo direto, tendência que se nota ainda hoje, em linguagem dis-
tensa (não-culta), no Brasil.

Verbos pronominais
(Idem, Crónica de D. Fernando, p. 51) I
... forom (foram) a suas casas. Havia uma série grande de verbos pronominais, muitas vezes
(Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, p. 23)
intransitivos, a que Epifânio denomina reflexos, mas sem diferença
sensível dos ativos (sem partícula se) (1):
... veeo (veio) pera embarcar em Lisboa, e se hir em sua terra ... Acontecer-se
(Rui de Pina, Crónica de El-Rei D. João II. p. 70) Decer, decer-se (mais raro) ( = descer)
Ir-se: já exemplificado
Sair, sair-se- Exs.: Partir-se: já exemplificado
Recear, recear-se
As gentes ... sahiam aa rrua veer... Sair, sair-se
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 59) Soar, soar-se (mais raro)
Temer, temer-se: já exemplificado
... nom sahissem aa sua voomtade, em /ogares nom vistos ... Tornar, tornar-se: já exemplificado
(Idem, Crónica de D. Fernando, p. 11 1) Trabalhar, trabalhar-se ( = esforçar-se)
Vir-se: já exemplificado
... e ao domingo seguinte sahio (saiu) el Rey em terra ...
(Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, p. 75 e 78) (1) Epifânio da Silva Dias, Sintaxe histórica portuguesa, p. 104.
70 SINTAXE E RECURSOS ESTILÍSTICOS ' VERBOS 71

Exs.: ... depois que elas (as patas) foram idas (saíram, foram embora) ...
Acontecer-se (Bernardim Ribeiro, Obras completas, v. II, p. 31)

E quando taaes se acontecerem ... pemssar devemos que he pelleja ...


Esta construção ainda perdurou no século XVI. Ex.:
(D. Duarte, Leal conselheiro, p. 78)
... fermosura/ que é tal que de ventura (por sorte)/outra tal não ... que a cidade lá eram idos (foram) dizer missa ...
s'acontece. (João de Barros, Década, I, IV)
(Gil Vicente, Obras completas, v. V, p. 246)
Expressões de tempo
Decer, decer-se
... deceosse (desceu) comtra (para, em direção a) a rrua dereita ... Há certas expressões de tempo em que aparecem palavras co-
(Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, p. 86) mo; dia, mês, ano, dia da semana e outras, consagradas pelo uso e
com sentido tão definido, que geralmente dispensam o emprego da
Recear-se preposição em (1).
Escritores quatrocentistas, "quinhentistas e seiscentistas" ten-
E rreceamdosse dos homees de pee (homens a pé = peões, que com· dem a estender este emprego a locuções de tempo semelhantes àque-
batiam a pé) que lhe nom fallecessem (faltassem, falhassem) ... las: "datas, dias do mês ou dias de denominação particular segundo
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 99) o calenddrio cristão" (2). Exs.:

Sair-se E começarom de lavrar o muro della (cidade), postumeiro (último) dia


de setembro da era ... de quatrocentos e onze anos ... (1373)
... como sse o lffante Duarte sahira ... da gallee (embarcação, bote) ... (Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, p. 75 e 76)
(Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, p. 94) E foe (foi) o filhamento (conquista) della cidade (daquela cidade) hüa
quinta feira, XXI dias do mes d'agosto, anno de Christo de 1415.
Soar-se (Zurara, Crónica dos feitos de Guiné, p. 36)
... trouxesse azo (ocasião) de se soar per as partes estranhas (terras ... partiu do porto de Lisboa, um domingo de Ramos, seis dias de mar·
estrangeiras) a honra deste feito. ço do ano de quinhentos e seis ...
(Idem, ibidem, p. 27) (João de Barros, Década, I, VII, p. 189)

Trabalhar-se Quando a palavra dia está seguida de que, de modo geral, tam-
bém não é usada a preposição em, fato que, no português do Brasil,
... que se trabalhasse (se esforçasse) de passar aquelle cabo ... se torna cada vez mais freqüente. Exs.:
(Idem, Crónica dos feitos de Guiné, p. 47)
Aquel dia que o lffante de Tomar fez partida ...
(Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, p. 97)
Perifrases
Ho dia que os christãos entraram na corte, foram de gentes (pessoas)
Encontram-se alguns verbos, principalmente intransitivos, em sem conto (sem conta, inúmeras) recebidos ...
perífrases de forma passiva com significação ativa. Exs.: (Rui de Pina, Crónica de El-Rei D. João II, p. 165)
... sendo navegados (navegando) em mar junto com as ilhas do Cabo
Verde ... o Capitam morreu ... (I) M. Said Ali, Gramática hist6rica da língua portuguesa, p. 197.
(Rui de Pina, Crónica de El-Rei D. João II, p. 155) (2) Idem, ibidem, p. 197.
72 SINTAXE E RECURSOS ESTILISTICOS CONJUNÇÕES 73

... o dia que ali chegou/ com seu gado ... Note-se que as concessivas, via de regra, são acompanhadas de
(Bernardim Ribeiro, Obras completas, v. II, p. 27) modo subjuntivo .
... que o dia que ela concedeu o prazo, chorou ... ... pero (mas) sempre hão de ~r as principais ...
(Idem, ibidem, v. I, p. 32) (Sá de Miranda, Obras completas, v. II, p. 15)
Pero, depois que eles quiseram navegar... conheceram ...
Neste autor há um exemplo com a palavra tempo:
(Ásia, Década, I, p. 17)
... até que venha o tempo que alguma pessoa estranha... cerre estes Empero (porém), ante que o lffante ... partisse ... leixou ...
meus olhos ...
(Zurara, Crónica dos feitos de Guiné, p. 61)
Em expressão de tempo com o verbo haver, também se dispen-
Este autor prefere esta forma à primeira, como adversativa, e
sa a preposição: dias que, havia dias que. Exs.:
emprega a locução pero que, como concessiva, também muito encon-
... gramdes dias ha que eu muito desejei e desejo de vos servir ... trada em João de Barros. Ex.:
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 91) Mas pero que o seu cuidado fosse assaz ...
... porque dias avia que o conhecia por boom ... (Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, p. 29)
(Idem, ibidem, p. 91)
Em quaes partes, pero que sejam mui remotas da Igreja Romana, ...
espero ...
Estas expressões são vigentes até hoje no Brasil. t:
(Idem, Crónica dos feitos de Guiné, p. 7)

No Cancioneiro geral, pero, na forma simples, ou em locução


Conjunções Havia bastante flutuação no emprego de certas - pero que- ora é concessiva, ora causal. Exs.:
conjunções que eram ora coordenativas, ora subor-
E pero sobejo (demais) vos ame ...
dinativas:
41 (I, 265)
Pero (peroo)
E peroo (porque) meu rrefertar (demanda insistente)/ acende mays
Empero padecer...
podiam ser adversativas, concessivas, causais.
Perol (1, 282)
Emperol
A primeira e a segunda, bastante comuns no século XV, como Porem, por en: }
Porende, por ende explicativas ou causais e adversativas.
adversativas ou concessivas, diminuem sua incidência no século XVI.
As duas últimas, raras nos quatrocentistas, ainda são registradas em
Gil Vicente. A primeira suplantou a segunda, e, usada, com muita freqüên-
cia, como adversativa, assim chegou até nós. Exs.:
Pero (peroo)- Exs.:
... porem (por isso) seus juizos sobre taaes leituras nom devem ser creu-
A Rainha... , ouve (teve) gram temor, pero (mas) disse: ... dos (cridos, acreditados) ...
(Fernão Lopes, ibidem, p. 55) (D. Duarte, Leal conselheiro, p. 6)
NunAIIvares pero (embora) fosse moço, ... disse que ... Porende sobre tam forte padecimento, outra cura ... nom saberia dar...
(Idem, ibidem, p. 84) (Idem, ibidem, p. 82)
74 SINTAXE E RECURSOS ESTILÍSTICOS CONJUNÇÕES 75

... cujas boomdades nom emtemdemos desquecer, nos (nós) porem (to- ... e como (quando) foi mea (meia) noute, cavalgou ...
davia) nom achamos hi (aí) tall ... (Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, p. 97)
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 79)
Porem (por isto) damdo legar a estes, cujo officio sempre ... em-
E como (logo que) chegou fallou ao Prioll (Prior) ...
(Idem, Crónica de D. João I, p. 98)
temdemos ...
(Idem, ibidem, p. 79) Como isto disse, o Padre Poderoso/ ... consentio .......
(Camões, Lus., /, 41)
Em João de Barros parece predominar a adversativa:
Como ainda tem emprego muito especial como integrante, com
Porem, a estas razões houve outras ...
(Ásia, Década, I, p. 3) verbos que significam dizer, declarar, contar etc. ou aqueles que se
referem a conhecimento, percepção, observação. Os e~emplos serão
dados na parte relativa ao período e à frase.
Pois }
Pois que geralmente causais. Há ainda duas locuções temporais:
Tanto. que } com a s1gm
. 'f'1caçao . que_
_ de 1ogo que, ass1m
Exs.: A ss1 como
Pois assi he, dizee (dizei) lhe que desembargue (abandone) ... A primeira é muito freqüente até o século XVI. Exs.:
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 56)
que tanto que o meestre tomou carrego (encarregou-se) de rregedor e
Pois que o Senhor he (está) na minha ajuda (protege-me), nom temerey.
deffenssor dos rreinos ... logo escpreveo (escreveu) ...
(Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, p. 39) (Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 92)
E tanto que Nuno Tristam sentio (sentiu), que ... quisera se partir...
Em Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda e João de Barros registra-
(Zurara, Crónica dos feitos de Guiné, p. 52)
se o mesmo emprego.
Ca } comparatzvas
. e causazs. Camões prefere a locução assi como:
Co mo
Mas as si como (assim que) a Aurora marchetada (colorida, matizada)/ Os
fermosos cabellos espalhou ...
A primeira desapareceu logo como comparativa, substituída por
como, mas permaneceu até o século XVI como causal. Exs.: . (Lus., /, 59)

... mais quero aproveitar aos que o virem ca (do que) encobrir esta min- Nas combinações com o advérbio assim, há também: assy que,
guada maneira de meo (meu) screver ... equivalente à locução consecutiva de modo que, de maneira que. Ex.:
(D. Duarte, Leal conselheiro, P- 7)
... assy que, nom podendo aver algüas folganças (divertimentos), sai-
Ca (porque) sendolhe (sendo-lhe) custumado (estando acostumado a) bha (saiba) logo achar outras.
livremente de comprazer (a comprazer-se) sem regra por as cousas (com (D. Duarte, Leal conselheiro, p. 84)
as ...) que bem lhe prazem ...
(Idem, ibidem, P- 28)
Em correlação com como ou que temos: assi... como, que, equi-
valendo o primeiro termo a tanto ou tão, em certos casos. Exs.:
Como, raramente causal, além de comparativa, podia ser em-
pregada como temporal, significando quando ou logo que, bastante ... assi cristãos come (como) judeus ...
comum até o século XVI, até mesmo em Camões. (Fernão Lopes, Crónica de D- Fernando, p. 56, 86 et passim)

l
76 SINTAXE E RECURSOS ESTilÍSTICOS PERÍODOS 77

... porque assi (tão) toe (foi) temperado (moderado) ... que toda sua vida Estas orações apresentavam ora a conjunção integrante que
passou em limpa castidade ... (construção atual), ora a palavra como com a mesma função. Exs.:
(Zurara, Crónica dos feitos de Guiné, p. 29) ... e dizee (dizei) a Alvoro Paaez que sse faça prestes ... (que esteja
pronto) ...
... assi como os puetas fingerom (imaginaram) assi (assim também) as
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 45)
gentes do nosso regno traziam em vocabullo (empregavam em pro-
vérbios)... · ... disseram ao Meestre como os da cidade queriam matar...
(Zurara, ibidem, p. 30, 57 et passim) Correlação paralela às .- (Idem, ibidem, p. 65)
anteriores. ... alvoraçaromse (alvoroçaram-se) as gentes ... sabendo como ei-Rei de
... dos primeiros tiros que lhe V. da Gama mandou tirar (atirar, dar), as· Castella sse viinha chegando ...
si os castigou ... que, ... (Idem, ibidem, p. 66, 89 et passim)
(João de Barros, Ásia, Década, I, liv. IV, p. 40 et seqs. et E veemdo como todos estavom (estavam) alvoraçados, ... nom quis alia
passim) (a lá) hir, ...
(Idem, Crónica de D. Fernando, p. 46, 49 et passim)
Assi como pode ser registrada sem correlação em Camões. Ex.:
Note-se a mesma construção com o verbo hordenar (orde-
... assi como em selvática a lagoa (lagoa) I As rãs ... se sentem ...
nar = dar ordens) e consirar (considerar, ponderar).
(Lus., II, 27)
... hordenou logo como se fezesse (fizesse) hüuas ... festas ...
Registre-se ainda a locução concessiva em que, equivalente a em- (Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, p. 54)
bora, ainda que, registrada, de preferência nos poetas do Cancionei-
ro geral, em Bemardim Ribeiro, Sá de Miranda, Gil Vicente. Ex.: Ainda em Camões se registra:
Em que me queyra calar/ ... /nam posso dessymular. ... Ordena como em tudo se resista;/ ...
(V, 204) (Lus., VIII, 50)

Esta locução perdura até hoje na expressão em que pese a, com ... eiRei. .. , comsiiramdo como per todallas (todas as) partes de seu rei·
valor concessivo, em que o verbo pesar perdeu sua função, não ad- no ha gram fallecimento (falta) de trigo ...
mitindo concordância com nenhuma palavra da frase. (Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, p. 78)

A frase A frase e o período, como já se percebeu pelos exem-


plos citados, eram extensos, não só muito redundantes Períodos Da lynhagem que descendemos e desposiçom (conformação)
no uso de conectivos coordenativos e subordinativos, mas também ........ do corpo devemos ser (estar) contentes, ainda que tanto (tão
no de formas verbais infinitivas, participiais e gerundiais. grandes) nom sejam a nosso prazer (agradem); conssiirando que o avemos
Acrescente-se a isto a pontuação escassa e falha, geralmente (temos) per ordenança (por vontade) de nosso senhor deos, que nos podera
empregada ao gosto do organizador ou do editor da obra arcaica (poderia) fazer hüu bicho da terra, e nos fez homem, que he tam excellente
de tal modo que, com muita freqüência, só contribui para confun- criatura, nembrandonos (lembrando-nos) de qual quer avantagem (beneficio)
dir o leitor. Pela exemplificação se poderá ter idéia aproximada de que nos tenha outorgada, para mais avermos contentamento, sentyndo aquy
tais problemas. prazer e bem que recebemos por aver.
Antes que se trate do período, pela sua construção típica, passa- (D. Duarte, Leal conselheiro, p. 278)
se a dar especial atenção às orações integrantes.

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1

78 SINTAXE E RECURSOS ESTILÍSTICOS RECURSOS ESTILISTICOS 79

Apesar de não ser este dos períodos mais complexos de D. Duar- vas e no llllClO das frases e períodos, mas, em compensação,
te, podem-se observar no texto acima: 1) a ordem inversa das pala- multiplicam-se os relativos adjetivados e as "conexões relativas" a
vras: de "devemos ser contentes" até o início do período; o que já nos referimos; os conectivos são em grande número e aumenta
deslocamento de tanto e novamente a inversão a partir de "sentyn- a incidência de orações infinitivas:
do ... " até o fim; 2) o número de conectivos, bem exagerado (sete); As quaaes cousas como passaram e como ja era Christão o dicto D.
3) o uso dos gerúndios, desarticulados entre si, estando os dois últi- Manuel (um dos negros batizado com este nome) noteficou loguo (lo-
mos como que soltos no período. go) a EIRey, seu Senhor, que estava d'ali cinquoenta legoas; e EIRey
lhe respondeo logo por hüu grande Senhor, e primo co'irmãao do Prin·
Essa complexidade, porém, varia com a época e o autor. cipe, agardecendolhe a honra que tinha fecta aos Christãaos d'EIRey
Em Fernão Lopes torna-se menor: de Portugal seu irmãao, e amigo, e que se alegrava, e folgava muito
el/e ser Christão, assi como elle esperava d'ho (de o) ser, e que polo
Assi que amte despenderíamos longo tempo em leer e ouvir suas pro·
assi fazer (por fazê-lo assim) que elle estimava por grande (grandemente),
veitosas obras (ações), que breve espaço seermos ocupado em nas rre·
e assinado (assinalado) serviço ...
contar (narrar) e poer (pôr) em hordenança (ordem cronológica);
moormente pois fugir nom podemos aos que rreprehender tomam de- (Crónica de El-Rei D. João II, p. 162)
leitaçom (comprazem-se em censurar), cujo costume, apropriando sua
rrepreenssom (cujo costume é aplicar a censura) a todo proposito e parte Pode-se observar que o período é sobrecarregado de conectivos,
que querem, nos cousa a/güa dizer nom podemos, que elles nom jul- podendo ser desmembrado em diversos outros menores; contudo, as
guem por rrepremdedoira (não podemos dizer nada que eles (críticos) inversões não são violentas e há equ!hbrio no uso das orações reduzidas.
não julguem digno de censura).
Esta construção frasal vai perdurar, crescendo em complexida-
(Crónica de D. João I, p. 77) de durante o século XVII e no século XVIII, em razão da influência
cada vez mais acentuada do latim.
As inversões também aqui estão presentes: 1) a locução verbal
com o verbo poder, com o infinitivo anteposto, aliás, prática comum
na prosa da época; 2) o objeto direto do verbo dizer, igualmente ante-
posto; 3) grande número de conectivos (sete); 4) desarticulação na úl- Recursos estilísticos Os pleonasmos e as repetições, via de
tima parte do período, visto que a frase " ... nos cousa ... rreprem- regra, são considerados como recursos
dedoira", sintaticamente, não se liga à parte anterior, a não ser pelo estil{sticos; porém, na época arcaica, eram tão freqüentes na lingua-
sentido. gem de todos os autores, que, ao invés de constituírem artifícios para
Zurara, por sua vez, tem períodos mais longos, excesso de co- embelezá-la, parecem, de preferência, meios de aclarar ambigüida-
nectivos coordenativos e subordinativos, bem como de inversões, mas, des da língua escrita.
estrutura frasal mais bem articulada. Era muito freqüente tornar claro (pleonasticamente) o possui-
O lffante era homem de mui grande autoridade, polia qual suas amoes- dor em relação de posse. Exs.:
taçõoes (admoestações), por brandas que fossem, eram pera os sesu-
... por homrra do rregno e sua deffenssom delles ... (defesa do reino dos
dos (prudentes, sensatos) de mui grande encarrego (responsabilidade),
súditos).
como se mostrou per obra (por meio da ação) em aqueste (este) que
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 69 et passim)
despois destas pallavras, determinou em sua voontade (tomou a deli·
beração) nom tornar mais ante a presença de seu senhor, sem certo Mas Deos nosso Senhor... converteo sua desleal sanha (ira) del/es em
(seguro) recado (desempenho) daquello (daquilo) por que (pelo qual) o suas cabeças ...
enviava ... (Rui de Pina, Crónica de El-Rei D. João II, p. 55)
(Crónica dos feitos de Guiné, p. 48) ... tomou terra nas maos, e a correo (correu) pelos peitos do Capitam,
e despois pelos seus dei/e mesmo Rey, que he (é) ho (o) moor (maior)
Em Rui de Pina já se nota influência mais marcante do latim acatamento ...
na construção do período: diminuem consideravelmente as copulati- (Idem, ibidem, p. 166)

j '
80 SINTAXE E RECURSOS ESTILÍSTICOS
COLOCAÇÃO 81

Havia igualmente o hábito de aclarar o antecedente do prono- ... quem te manda a ti chorar?
me relativo qual, quais, usando-o, via de regra, como adjetivo. Exs.: (Gil Vicente, Obras completas, v. I, p. 174 et passim)
... contra (para) a hordenaçam (disposição) ordenada dos trautos que
prometidos tinha (dos tratados que tinha jurado); a qual cousa deviam Note-se que neste autor tal processo se repete inúmeras vezes
teer portam grave e tam estranha, que amte (antes) sse (se) todos de- na fala de personagens rústicas.
viam aaventuirar a morrer (antes se deviam todos aventurar a morrer) ...
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 93)
... de hüa (uma) porta ... , a qual porta era guardada doutros mouros (por
outros mouros) ... Colocação A colocação das palavras na frase, posto que não
(Zurara, Crónica dos feitos de Guiné, p. 35) faça parte da sintaxe, é um dos aspectos mais carac-
terísticos da fase arcaica e mesmo da época renascentista, porquanto
Em se tratando de expressões pleonásticas, temos ainda mais difere totalmente da que se observa em épocas posteriores.
algumas de outros tipos: no século XV e no começo do século XVI,
de modo geral, era muito freqüente o emprego de dupla negação. Exs.: Verbos
... NehDu (nenhum) nõ (não) rrespondia ...
Freqüentemente o verbo ia para a parte final da frase ou do pe-
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 70 et passim) ríodo. Exs.:
... por cuja rrazom (razão) nom ousava nehDu de lho dizer...
... Primeira daprender (de aprender), per a qual entendemos e aprende-
(Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, p. 89 et passim) mos bem cedo o que nos dizem, e per scripto (por escrito, lendo) ou
... dor que ninguem non entende ... doutra guisa (de outra maneira) nos he demonstrado .
(Sá de Miranda, Obras completas, v. I, p. 22 et passim) (D. Duarte, Leal conselheiro, p. 7)
Os que priguyçosamente obram (agem), fazem (tornam) dias e noites
Encontram-se ainda expressões pleonásticas como: sobir acima, pequenos, dizendo que nom acham tempo a bastante, por se scusar
de suas priguyças o qual (tempo) perdem; ... segundo diz Seneca, da
emtrar dentro (Fernão Lopes); suso dieta ou suso scripto (D. Duar-
vyda que he grande, mas nos a fazemos curta por a ssabermos mal e
te); dieta ou dito repete-se inumeravelmente em Zurara e Rui de Pi- priguyçosamente repartir e despender.
na: "dita frota", "dieta governança" {governo), "dicto Monseor", (Idem, ibidem, p. 101)
"dictos Reys", "dicto anno" etc.
Registra-se também, com muita freqüência, a repetição enfáti- Esta tendência não é tão acentuada em Fernão Lopes, talvez por
ca de pronomes oblfquos tanto em prosa quanto em poesia, no sécu- estar ele menos adstrito ao latim; apesar disto, encontram-se exem-
lo XV, passando a predominar nesta última, no século XVI: me ... plos em seus textos.
a mi; te ... a ti. Exs.:
... e que os Portugueses os nom ousarõ mais acometer (atacar). A qual I
... e a mim as minhas magoas me levam para um cabo (extremo) ora cousa por favor, nem (ou) encobrir mingua (para favorecer ou ocultar
para outro ... defeitos), nom se devera assi descrepver ...
(Bernardim Ribeiro, Obras completas, v. I, p. 5 et passim) (Crónica de D. João I, p. 104, 105 et passim)

... esse me dá tu a mi ... Em Zurara a incidência desta colocação parece aumentar. Exs.:
(Idem, ibidem, v. II, p. 13)
... tinha grande vontade de fazer seus filhos cavaleiros o mais honrra-
... um tempo venceram-me a mi ... ~ damente que bem podesse (pudesse) fazer ...
(Sá de Miranda, Obras completas, v. I, p. 290 et passim) ' (Crónica da tomada de Ceuta, p. 12)
82 SINTAXE E RECURSOS ESTILÍSTICOS COLOCAÇÃO 83

... porque soomente aquella cousa he boa e onesta (honesta) na qual vante é o que se refere à colocação dos pronomes átonos o(s), a(s),
Deos jnteiramente he servido ... lhe, se, nos, vos, me, te, geralmente afastados das formas verbais re-
(Idem, ibidem, p. 22) gentes, em próclise tão violenta que, nas mais das vezes, seimtepõefil"
ao sujeito.
Rui de Pina repete este processo constantemente. Ex.: Tal fato acontece, de preferência em orações subordinadas,
... que seus Antecessores ... e por honra ... de seus Regnos ... primeiro quando os pronomes átonos têm a função de objeto direto ou indire-
que nehüs do Mundo emprenderam e começaram; enviou sua frota ... to de verbos transitivos, porquanto, sendo vocábulos curtos, se ante-
como pera tal auto (ato) ... compria ... cipam ao verbo e até mesmo ao sujeito, em razão do equilíbrio rítmico
(Crónica de El-Rei D. João II, p. 149 et passim) da frase.
Em contrapartida, essa antecipação que também ocorre com o
objeto direto, representado por um nome isolado ou acompanhado
Sujeito de determinativos, tem explicação oposta: o objeto, mais extenso, ad-
quire independência quanto à acentuação e pode deslocar-se com mais
Embora se trate do assunto colocação, só se registrará a locali- facilidade (1).
zação do sujeito, nas orações participiais e gerundiais, e a dos prono- De qualquer modo, as construções frasais arcaicas mais comuns
mes átonos, em relação ao verbo, considerando-se que a ordem das são aquelas em que se encontram verbo + sujeito + complemento
palavras, flutuante e bastante variada, implicaria estudo específico ou complemento + verbo + sujeito (focalizada aqui), embora haja
e muito amplo. outras, entre as quais a de ordem direta sujeito + verbo + com-
Nas orações participiais e gerundiais, algumas vezes o sujeito pre- plemento (2). Exs.:
cedia o verbo, tornando-se praxe posterior sua posposição a este. Exs.:
E dalgüas (de algumas) portas tinham (verbo) certas pessoas (sujeito)
Este morto, nom sse fez mais ... de noite as chaves (objeto direto) ...
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 94 et passim) (Fernão Lopes, Crónica de D. João I, p. 114)
Esta assi proposto, louvaram ... ... e tememdosse muito df1 o a Rainha mandar prender ao caminho (du-
(Idem, Crónica de D. Fernando, p. 79 et passim) rante o caminho), fallou ...
(Idem, ibidem, p. 90)
E elle chegamdo ao pee do logar, chamou ... J
(Idem, Crónica de D. Fernando, p. 63)
O pronome o, objeto direto de mandar prender, antecipa-se ao
Elles teemdo-se por escarnidos (zombados, desfeiteados) ... o mataram ...
sujeito Rainha.
(Idem, ibidem, p. 64 et passim)
... cousa ... tam grave ... que amte (antes) sse todos deviam aaventuirar
Entretanto, esta construção parece ter sido usada, de preferên- (aventurar) a morrer .. .
cia, por Fernão Lopes, porquanto é raríssima em outros autores. Não (Idem, ibidem, p. 93)
obstante isto, no português do Brasil, a anteposição do sujeito, no
caso em questão, tende a tornar-se freqüente, sobretudo nas orações O pronome sse (se) r~gido por aventurar também está antes do
sujeito todos.
gerundiais.
Quando há mais de um objeto ou outro complemento,
antepõem-se ao verbo.
Pronomes átonos
(I) P ADUA, Maria da Piedade Canaes e Mariz de -A ordem das palavras no por-
Embora haja extrema liberdade em relação à ordem das pala- tuguês arcaico. Coimbra, Universidade, 1960, p. 64-5.
vras, há casos que se repetem com bastante freqüência. O mais rele- (2) Idem, ibidem, p. 84 et seqs.
84 SINTAXE E RECURSOS ESTIL,~!::.ST~l:..:C:.:'O:..:S:.__ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __
COLOCAÇÃO 85

... nom tiinha rnaneira como o disto podesse (o pudesse) perceber ... desleal sanha (ira) ...
(avisar) ...
(Rui de Pina, Crónica de El-Rei D. João II, p. 55)
(Idem, Crónica de D. Fernando, p. 63)
... seus abominavees (abomináveis) e proprios erros ...
... nom ho entregues a outrem ... ou a quem to (te o) e/ mandar entregar...
(Idem, ibidem, p. 64) (Idem, ibidem, p. 55 et passim)

O pronome ho, objeto direto de entregues, antecipado, bem co- Tudo quanto se disse refere-se sobretudo à prosa. Na poesia,
mo os objetos direto e indireto assimilados to (te + o), colocados an- embora se registrem as mesmas características, com certas restrições,
tes do sujeito do verbo, e/. nota-se que a linguagem é, comparativamente, mais simples, sobre-
tudo no que se refere ao período, menos intrincado e mais curto, co-
... ca por muy gram honrra nem proveito que se me de/lo (disto) possa mo se pode verificar no exemplo seguinte:
seguir (sobrevir, suceder) se nom achar que he serviço de Deos, nom
entendo de o fazer. Cantiga
(Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, p. 22) O. Francisco de Portugal, Conde de Vimioso
Que nam tenha mais prazer,
Observe-se a colocação das formas pronominais: partícula se, isto quero, e nam ai (outra coisa),
pronome oblíquo me e demonstrativo de/lo (de ello = disto), todos saber bem que certo mal
nunca pode falecer (faltar).
relacionados com o mesmo verbo, antepostos a ele.
Evidentemente esta não era a única colocação de tais pronomes; Foy melhor ter maa ventura
que descansso enganoso,
havia os enc/fticos que, via de regra, se agregavam aos verbos: '' ... ro-
pois o mal que me segura
govos ... ''; '' .. .gastavasse/he (gastava-se-lhe) ... ''; '' .. .mostraenollo he (é) de certo mais gostoso
(mostrai-no-lo) ... " etc. que nenhü bem dovydoso.
Os mesoc/fticos igualmente aparecem, às vezes, soldados ao ver- Se me mal quereis fazer,
bo: '' ... veelloemos (vê-lo-emos) ... ''; '' . .. desordenarsseham contra mym pouco vos vai (vale),
por que ja a vyda he tal,
(desordenar-se-ão) ... ". I que o tomo por prazer.
(Cancioneiro geral, V. II, p. 283)
Adjetivos qualificativos

Os adjetivos qualificativos geralmente precediam os subs-


tantivos:
... grã calma (calor) ...
(Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando, p. 95)
... boom alão (grande cão de fila) ...
(Idem, ibidem, p. 95)
... mesto mato (mato espesso) ...
(Idem, ibidem, p. 95 et passim)
... gramdes festas ... justas rrezões (razões) ...
(Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, p. 27)
CONSIDERAÇÕES FINAIS 87

6 viagem à Itália, em 1526, começou a difundir os ideais humanísticos


renascentistas e a pôr em prática as novas teorias artísticas e literá-
rias, geradas por aqueles ideais; e, um pouco mais tarde, entre 1536
e 1540, apareceram as primeiras gramáticas da língua portuguesa -
Considerações fmais de Fernão de Oliveira e de João de Barros.
Sá de Miranda escreveu prosa e poesia, renovou gêneros, mé-
trica e estilo, mas, no tocante à língua, conservou nítida duplicidade:
nas églogas e nas cartas (metrificadas) manteve as formas lingüísticas
tradicionais, vigentes na época, e a "medida velha"; nos sonetos,
preferiu o emprego da "medida nova" e de linguagem razoavel-
mente renovada.
Além destes dois autores, avulta a figura de Gil Vicente, que en-
cerra a série de escritores considerados, mais tarde, como "arcaizantes".
Manejou a língua com tal maestria que empregou não só o por-
tuguês culto e literário, polido e escolhido como o dos melhores poe-
tas do Cancioneiro geral, mas também o pitoresco e popular, falado
pelo vulgo, o regional usado por pastores e camponeses.
Escreveu uma parte de seus trabalhos em castelhano, aproveitou-
se do latim eclesiástico ora de modo correto, ora incorreto para fins
Os traços característicos da língua, apontados no século XV, cômicos, fazendo o mesmo com o francês e o italiano bastante detur-
prosseguiram, com pequenas alterações, na primeira metade do sé- pados (Auto da fama); pôs um dialeto "picardo" na boca de um dia-
culo XVI. bo truão, imitou a algaravia dos negros (já registrada em Henrique
Quanto ao léxico, porém, percebe-se que se processou uma len- da Mota, no Cancioneiro geral), e a das ciganas. Além disto, caracte-
ta renovação, eliminando-se umas formas em favor de outras. rizou judeus e comadres por meio de traços fonéticos ou morfológi-
A prosa historiográfica, com seus últimos representantes me- cos que indicam sua profunda sensibilidade para fatos lingüísticos.
dievais - Rui de Pina e Garcia de Resende-, tom1ria novo impul- A seu respeito Paul Teyssier afirma que ele apresenta o quadro
so, em forma e conteúdo, na segunda metade do Quinhentos. lingüístico de Portugal, na primeira metade do século XVI, quando
Surgiu outro tipo de prosa narrativa, mas não historiográfica a língua portuguesa, em plena evolução, ainda não havia encontrado
- a novela sentimental Saudades ou História de menina e moça, ge- seu ponto de equilíbrio; deste modo, Gil Vicente está na encruzilha-
ralmente denominada Menina e moça. da dos caminhos (1): o velho, já palmilhado, e o novo que imperaria
Entretanto, apesar de o Autor introduzir um novo gênero lite- na metade seguinte do mesmo século.
rário, com respeito à língua, não fez inovações nem em relação aos Por seu turno, a gramática de Fernão de Oliveira (1536), consi-
prosadores que o antecederam, nem em relação aos poetas da época, derada por ele meros "apontamentos", e a de João de Barros (1540),
não obstante demonstrar certo poder descritivo e manejar recursos bem mais desenvolvida, registraram um grande número de fatos lin-
estilísticos reveladores de sua intenção estética. güísticos que começavam a ser catalogados e organizados. Tais ten-
Na mesma década de 1530 a 1540, porém, aconteceram fatos tativas não só imprimiram certa disciplina àqueles fatos, como também
que iriam impulsionar a "revolução" literária e lingüística, expandi- levaram outros estudiosos a continuar o trabalho de sua codificação
da rapidamente na segunda metade do século XVI. e sistematização.
O poeta Francisco de Sá de Miranda, já conhecido pelas com-
posições poéticas constantes do Cancioneiro geral, ao voltar de uma (I) Paul Teyssier, La tangue de Gil Vicente, p. 514.
88 CONSIDERAÇÚES FINAIS

Da primeira para a segunda metade do século XVI, poi~, a lín-


gua portuguesa prossegue na sua evolução, em mais larga escala era-
pidez, na parte do léxico, que passa por dois processos opostos: de
um lado, o afunilamento das formas vigentes e, de outro, o alarga-
mento do vocabulário pela substituição daquelas formas, quer por
termos extraídos diretamente do latim literário, quer pela entrada de
inúmeros neologismos de outras procedências; a morfologia e a sin-
taxe vão-se regularizando gradativarnente, e a língua, trabalhada pe-
los autores renascentistas, ingressa na fase "moderna".
A despeito disto, coexistem no decorrer do Quinhentismo a lín-
gua de cultura (inovadora) e a tradicional: uns autores passam a usar,
de preferência, a primeira; outros se servem de ambas, segundo os
objerivos e o caráter de suas obras, e outros ainda (como Gil Vicente)
aproveitam os traços arcaizantes da segunda, para caracterizar, seja
a linguagem popular citadina ou campesina, seja a regional.

II
Textos anotados

/
NOTAS 91

1 Notas O texto de D. Duarte foi escrito entre 1435 e 1438, entre-


tanto a primeira edição da obra só apareceu a público em
1842, com prefácios do Visconde de Santarém e de J. J. Roquete (Pa-
Leal conselheiro, de D. Duarte ris); em 1843, foi publicada a da Tipografia Rolandiana (Lisboa) e,
em 1942, a edição crítica e anotada de Joseph M. Piei, considerada
a melhor de todas.
Em que pese à excelência do organizador, diz ele, no prefácio
da obra, que não é cópia fiel do manuscrito, porquanto se tornaria
de difícil leitura se o fosse. Assim, houve por bem "estabelecer um
texto que, ao mesmo tempo que respeitasse integralmente todas as
particularidades quatrocentistas da obra, fosse contudo acessível ao
grande público".
O texto em questão faz parte de uma série de capítulos que tra-
tam das três virtudes teologais e de quatro denominadas cardinais ou
principais: prudência, temperança, justiça e fortaleza.
Trata ele da prudência sob diversos aspectos, tanto no que se
refere à parte exterior da personalidade, ao comportamento, como
à maneira de sentir e de pensar. Na parte relativa ao rrazoar, isto é,
Do fallar (1) som (2) fallicymentos (3): renegar, jurar, contra ao discorrer sobre um assunto ou argumentar, lembra os elementos
deos murmurar (4), desasperar (5), heresias afirmar ou enssinar (6) mais necessários à comunicação, que já aparecem na Retórica de Aris-
contra as ordenanças (7) da igreja, mal razoar (8), dalguem (9) mal tóteles: 1) a pessoa que fala (eu, nós); 2) o discurso que faz; 3) a pes-
dizer, assanhar (10) ou provocar, myntir, enganar, desonesto fallar, soa que ouve (a quem se fala), acrescentando: onde (o lugar em que
perfiar (11) sem tempo (12) ou contra quem nom convem, desprezar se fala), quando (o momento em que se fala), o que hoje chamamos
ou doestar (13) os que nom devemos, palrrar (14) o que se deve guar- de situação e contexto, em que modo (como ou de que maneira se
dar, ou nom amoestar (15), enssynar, encamynhar, castigar, conssol- fala) e quanto, isto é, o necessário para nos fazermos entender.
lar (16), scusar (17) quando he (18) bem de fazer, nem outorgar o (1) fallar: (do lat. fabulare) a duplicação da consoante I denota
que he razom (19). a arbitrariedade ortográfica predominante no século XV; igualmente
Quanto aos custumes (20), leixando (21) gago (22) e semelhan- fallamento (discurso) em Fernão Lopes. (2) som: são (do lat. sunt)
tes fallicymentos naturaaes (23), erramos per fallar muyto sobejo (24), (ver "Fonética" e "Morfologia"). (3)fal/icymentos: falhas, faltas (do
mynguado (25), trigoso (26), vagaroso, mais baixo ou alto que per- lat. fallescere incoativo de fallere) (ver "Fonética" e "Léxico"). (4)
teece (27), sem boa contenença (28) da boca, oolhar (29), cal:~.,a e contra deos murmurar ... heresias afirmar ... mal razoar ... dalguem
mãaos (30). E fynalmente, no que dizer quysermos (31), nos convem mal dizer ... desonesto fali ar: inversões com verbos geralmente pos-
consiirar (32) prymeiro a nosso estado, hidade (33), saber, maneira postos aos complementos, correntes na linguagem da época, sobre-
de fallar, desempacho (34) e assessego (35) de nosso coraçom (36). tudo nas obras dos príncipes D. Duarte e D. Pedro que introduziram,
E desy (37) que avemos (38) de rrazoar, quanto, a quem, onde, em na língua portuguesa, termos e construções latinas. (5) desasperar:
que modo, e quando. Ca (39) per fallicimento de cada hüa (40) des- forma alternativa de desesperar (do lat. desperare). J. P. Machado
tas partes erramos no que aa (41) falia perteece em conciencia (42) (Dic. etim.) cita a forma asperar já no século XIII; desasperado em
e boos (43) custumes. A demanda do Santo Graal (P~ Augusto Magne, Glossário). (6) ens-
(Dom Duarte, Leal conselheiro, ed. crítica e anotada por Jo- sinar: (do lat. *insignare = pôr uma marca, assinalar) (ver "Fonéti-
seph M. Pie!, Lisboa, Bertrand, 1942, p. 271.) ca"). (7) ordenanças: prescrições, ordens (do lat. ordenare = pôr em
92 LEAL CONSELHEIRO, DE D. DUARTE NOTAS 93

ordem, dispor, ordenar, dar ordens). (8) razoar: com desnasalização dine) (ver "Fonética"). (21) leixando: deixando. O verbo /eixar (do
da vogal a par de razõar (do lat. ratione), discorrer sobre um assun- lat. laxare, *laissar e *leissar) alternava principalmente no século XVI
to, discursar. (9) dalguem ... dabrir ... dolhos: era comum a junção com deixar, segundo alguns, do verbo delaxare, etimologia com que
de palavras iniciadas por vogal com a preposição de, outras preposi- nem todos concordam. Na segunda metade do século XVI, predomi-
ções, advérbios e até nomes próprios. (10) assanhar: enfurecer, des- nou a segunda forma que vige até hoje; da primeira, ainda temos des-
pertar a ira, excitar a sanha (do lat. insania = loucura). (11) perfiar: leixo, desleixar etc. (22) gago: está empregado por guaguez, que
insistir; de perfia ou porfia (do lat. perfídia). (12) sem tempo: prema- apareceu somente no século XVI, segundo Morais (Dic. da líng. port.,
turamente, antes do tempo. (13) doestar: insultar com palavras, inju- 2. ed.). (23) naturaaes: (do lat. natura/e) o hiato aa indica a vogal
riar. Forma posterior de deostar (do lat. dehonestare) com desna- tônica. (24) sobejo: excessivo, demasiado. Termo de origem pouco
salização da vogal e metátese. (14) palrrar: originário do provençal clara que, segundo J. P. Machado (Dic. etim. ), talvez provenha do
parlar, falar, com metátese da consoante. A forma provençal pro- latim *superculu tal como sobejo, em espanhol. No caso, parece um
vém do latim *parabolari (comparar, proceder a comparações, cons- adjetivo em função adverbial. Hoje ainda temos a locução adverbial
truir frases}, que também deu origem ao italiano par/are e ao francês de sobejo, significando de sobra. (25) mynguado: limitado, escasso;
par/er. Em D. Duarte encontra-se parlamento (fala, conversação), que de minguar (do lat. vulg. minuare, do lat. cláss. minuere). (26) trigo-
J. P. Machado (Dic. etim.) considera galicismo (do fr. parlement) não so: apressado (do prov. trigare, talvez do lat. vulg. tricare ou do gót.
só com o sentido acima indicado, mas também no de "assembléia le- treian -Oliveira e Saavedra, Textos portugueses medievais). (27) per-
gislativa". Este mesmo termo francês, no século XIII, já designava teece: relativo a, referente a, que pertence a (do lat. pertinescere in-
assembléias de caráter judiciário, daí o inglês parliament que deno- coativo de pertinere). (28) contenença: moderação, modos, ares,
minava "assembléias políticas"; quando os Parlamentos judiciários meneios. Forma arcaica (do lat. continentia), substituída mais tarde
desapareceram de França, o sentido inglês passou para o francês, de pela forma erudita continência. (29) oolhar: (do lat. *adoculare) (ver
onde, depois se transportou para o português. No século XVI a pala- "Fonética"). (30) mãaos (do lat. manu) a reduplicação do a nos no-
vra já tinha esta significação e no século XIX passou a designar "as- mes em ão era comum no plural. (31) no que dizer quysermos: nova
sembléia legislativa''. Hoje ainda temos palavras derivadas de palrar inversão na ordem frasal, muito freqüente na época. (32) consiirar:
como palrador, palratório etc. e com metátese da consoante, parla, considerar, refletir (do lat. considerare), substituído posteriormente
parlamento, parlatório, parlenda, par/enga com a variante popular pela forma erudita considerar. (33) hidade: grafia não etimológica,
perlenga. (15) amoestar: forma arcaica de admoestar (do lat. com h usado indiscriminadamente por influência de outras palavras
*admonestare freqüentativo de admonere) segundo Antenor Nascen- latinas em que era etimológico. (34) desempacho: desembaraço, de-
tes (Dic. etim.). De acordo com Corominas (Breve dic. etim.) amo- simpedimento. Forma-se da forma empacho, pós-verbal de empachar
nestar procede indiretamente do latim admonere (derivado de monere), (do fr. ant. empreechier do lat. tardio impedicare) mais o prefixo des.
talvez por influxo de molestare, que se cruzaria com admonere na lin- (35) assessego: assossego ou sossego, com a variante arcaica assesse-
guagem humorística de clérigos e estudantes, em alusão ao caráter guo de ssessego pós-verbal de sessegar (do lat. vulg. *sessicare do par-
molesto das amonestaciones (admoestações). (16) conssollar: (do lat. ticípio sessus = ato de sentar) com a protético e mudança de e para
consolan) (ver "Fonética"). (17) scusar: impedir, evitar, deixar pas- o. (36) coraçom: (do aumentativo coraço do lat. cor ou do lat. vulg.
sar (do lat. excusare). Freqüentemente os nomes iniciados pores eram coratione) segundo Oliveira e Saavedra (Textos portugueses medie-
grafados somente com s por não ser a vogal pronunciada, provavel- vais). (37) desy: também nas formas des i, desi, des hi (do lat. de ex
mente por inf1uência popular (J. J. Nunes, Compêndio de gramática hic), depois, então, desde então, em seguida, além disso. (38) ave-
histórica portuguesa, p. 99). (18) he: é (ver "Fonética" e "Morfolo- mos: havemos (ver "Fonética"). (39) ca: porque. Conjunção arcaica
gia"). (19) razom: (do lat. ratione) é dos nomes em one que passam (ver "Morfologia"). (40) hua: uma (ver "Fonética"). (41) aa: a du-
a om e posteriormente a ão. No caso, o Autor parece empregar o no- plicação de a indicava a junção da preposição a como o artigo femi-
me pelo adjetivo. (20) custumes: (do lat. *consuetumine de consuetu- nino a. (42) conciencia: (~er "Fonética"). (43) boas: bons (do lat.

I
94 LEAL CQ,\SELHEIRO, DE D. DUARTE

bonos). A nasal caiu, nasalizando a vogal anterior bõos, contudo,


freqüentemente, a nasalidade deixava de ser indicada na época.
Nesta passagem a frase e o período são correntes e relativamen-
2
te simples, apesar das pequenas inversões. Os parágrafos, segundo
o organizador, são indicados por sinais denominados caldeirões, que Crônica de D. João I, de
nos serviram de guias para formá-los. Pode-se notar que não são dos
mais longos e complexos, porém apresentam uma das marcas signifi-
cativas do estilo medieval na organização e na conexão das frases que
Fernão Lopes
compõem o período: a repetição da coordenativa e; no segundo pa-
rágrafo: "E fynalmente ... E desy ... "

Outros scprevem isto per comtrairo (1), e desta opiniom nos praz
(2) mais, dizemdo que em casa deste Prioll (3) dom (4) Alvoro (5)
Gomçallvez, amdava hüu gram (6) leterado (7) e mui (8) profundo
astrollogo (9), que chamavom (10) meestre (11) Thomas. E per este
comtom que soube o Prioll (12), que hüu de seus filhos avia de seer
veemcedor (13) de batalhas, e que este era NunAllvarez (14) Pereira.
E mostrasse (15) claramente seer assi (16), porque viimdo (17)
dom frei (18) Alvoro Gomçallvez a casa delRei (19) dom Fernando,
aderemçar seus feitos (20), pedio (21) por mercee (22) a elRei que to-
masse NunAllvarez por seu morador (23), da qual cousa (24) prazemdo
a elRei, outorgou de o fazer (25). E o Prior se partio (26) pera (27)
suas terras, e hordenou de (28) mamdar seu filho aa corte; e amte
(29) que o mandasse, chamou Martim Gomçallvez de Carvalhal!, tio
de NunAllvarez irmãao (30) de sua madre (31), e deulhe juramento
(32), que hüua cousa que lhe descobrir queria (33), que numca a dis-
sesse ao dito (34) NunAllvarez. E prometido per elle (35) de o guar-
dar em segredo, emtõ (36) lhe disse o Prioll como (37) queria mandar
seu filho aa corte, e elle por seu ayo (38) per a o emsinar.
(Fernão Lopes, Crónica de D. João I, texto anotado compre-
fácio, notas e glossário de Joaquim Ferreira, 2. ed., Porto, Do-
mingos Barreira [s.d.] p. 81 (Coleção Portugal).)

I
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Notas
( PO\J( ,l iJL.. /i
---------~--------------
/tl-!{l i.!)::_; LK','-\íl J (l~'l--:-:
··-·--- -·-----------·-·---

De acurdu com o prefácio, o tcxro tui extraído fielmente


Ja Primeira pane da crónic{l de D. João!, edição d() Ar-
qulvo Histórico Portuguê~ (1915) revista e prefaciada por Anselmo
Brailmcamp Freire.
I "Of \é>

-;enhor. chefe. (5) .4/\•uru: Al\aro. Nt)llle de origem controversa, pro-


va\clmcnte germâmca (de ai/5, todo, e wars, atento, cuidadoso) (Oli-
veira e Saavedra. Texros portugueses medievais. p. 467). A alternância
entre u c o ocorr1a em algumas palavras (ver "Fonética''). (6) gram:
97

Quanto às edições de obras de Fernão Lopes. cabe-nos lembrar (do lat. grande) forma apocopada geralmente usada antes de palavra
que suas crônicas originais se perderam no -;éculo X V, restando ape- iniciada por consoante (ver "Morfologia"). (7) leterado: erudito, le-
nas as cópias do século XVI. Sabendo-se que suas obras foram co- trado. Forma arcaica (do lat. litteratu). (8) mui: (do lat. multu) for-
piadas e refeitas por outros escritores e tendo-se em mãos cópias ma abreviada de muiro, via de regra empregada antes de palavra
efetuadas por copistas de CUJO escrúpulo não temos informação ne- iniciada por consoante. Junto a adjetivos ou advérbios servia para
nhuma, torna-se muito difícil descobrir e averiguar as possíveis alte· formar o superlativo. (9) astro/logo: ledor dos astros, adivinho (do
rações e interpolações eventualmente efetuadas por eles.
Os escritos do historiógrafo estiveram inéditos durante dois sé-
culos e somente em 1644 foi impressa pela primeira vez a Crónica do
III lat. astro!ogu). O I duplo não se justifica etimologicamente. Com re-
ferencia à astrologia ou astronomia, visto que não se discriminavam
os respectivos campos, entendia-se por astrologia um conjunto de co-
Rei D. João I, oferecida a D. João IV. A primeira edição da Crónica nhecimentos asrronômicos aceitos inquestionavelmente, mesclados a
de D. Pedro é a do P~ José Pereira Baião, que apareceu em 1735, alguns preceitos de vaticínios astrológico<., cuja extensão e grau de
e a primeira da Crónica do Rei D. Fernando só veio a público em credulidade variavam com o critério pe~soal de quem os considerava
1816. Nestas condições, embora o nosso texto tenha sido "extraído (Joaquim de Carvalho. l:studos sobre a culrura portuguesa do século
fielmente" da edição do Arquivo Histórico Português, não podemos XV, v. 1, p. 357). D. Duarte refere-se à astrologia (estrollazia), à ni-
ter a certeza de sua autenticidade. gromancia, à geomancia c outras "ciências" semelhantes, artes e ha-
(1) outros scprevem isto per comtrairo: outros narram isto de bilidades (sotilleza~). prestidigitação (modos de "tregeitar") como
forma diferente. Fernão Lopes emprega o termo escrever porque alude assuntos acerca dm quais aceitava aquilo em que a Igreja mandava
aos manuscritos dos vários arquivos que estudou. Na forma scpre- crer, deixando de negar ou afirmar determinados fatos que eram "im-
vem há um p intruso, mal colocado e sem fundamento nenhum visto posSl\·eis", mas eram ''verdadeiros" (Leal conselheiro, p. 146). Nos
que, inicialmente, em latim vulgar e em latim medieval, ele inseria-se séculos XV e XVI a:, pessoas costumavam consultar os astrólogos antes
entre as nasais m e n com a finalidade de preservar o som de ambas de iniciar qualquer empresa difícil, e pelo que se lê cm Fernão Lopes,
as consoantes (dampno), permanecendo este uso no português arcai- o Prior, com toda a sua autoridade, também acreditava cm vaticí-
co (Edwin B. Williams, Do latim ao português, p. 37). No termo em nios. No século XVI Gil Vicente ridicularizava com muita graça os
questão, porém, nada justifica sua presença a não ser que o atribua- adeptos que pretendiam explicar tudo pela astrologia lcf. Auto da fei-
mos à influência de palavras corno scriptus, scripsi do verbo latino ra, Auto dosFsicos). (10) chamavom: chamavam (ver "Fonética").
scribere. Comtrairo: diferente (do lat. contrariu). O m antes da con- (11) meestre: (do lat. magistru) segundo J. P. Machado é provável
soante t mostra a flutuação na grafia das nasais. (2) e desta opiniom que a forma latina tenha sido influenciada pelo antigo francês mais-
nos praz: E esta opinião nos agrada. A inversão nos termos da frase Ire. Os mestres geralmente eram pes~oas especializadas em determi-
é comum: o compiemento verbal de prazer, desta opiniom, antepõe- nados assuntos ou atividades: podiam ser físicos (médicos) como se
se ao verbo. (3) Prioll: prior (do lat. priore), 11uperior de certos con- encontram habitualmente em Gil Vicente (Auto dosflsicos), podiam
ventos ou dignitário em certas Ordens militares antigas. A alternân- ser eruditos como o astrólogo Thomas, um artífice como o ourives
cia entre as consoantes r e fera comum na época. (4) dom: (do lat. ~ mestre Gil, para muitos o me,mo Gil Vicente teatrólogo. Podia igual-
;..
dom(i)nu ou dom(i)ne) empregado como termo de cortesia equiva- ' mente constituir um grau de dignidade de Ordem militar. (12) e per
lente a Senhor ou Cavalheiro (séc. X); título dado também a certos à este com tom que soube o Prio/1: frase de ordem muito diversa da atual
religiosos (beneditinos, cartuxos), ou usado antes de nomes próprios l que seria: E contam que o Prior soube por este. (13) veemcedor: (do
de pessoas de origem nobiliárquica. F. forma abreviada de dono: " lat. vincere) a forma vencedor já aparece na oração do Justo Juiz

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98 CRÔ.'-'!CA DE D. lUA O!. IJL llR,,\0 l OPl\
NOTAS 99

que D. Duarte traduziu do latim para o português para que a rainha com paz); posteriormente, por influência da nasal inicial o a nasalizou-
D. Leonor, sua mulher, pudesse lê-la. A grafia encontrada em D. se. (32) deu lhe juramento: fez juramento ou prestou juramento. (33)
Duarte já aparece atualizada de modo que não se explicam a duplica- que lhe descobrir queria: frase invertida em que o pronome comple-
ção da vogal, nem o m antes de c. (14) NunAI/varez: combinação de mento do verbo se antepõe a ele. (34) dito: citado. Forma comum
Nuno e Alvarez com elisão de o final (ver "Fonética"). (15) mostras- no século XV para remeter a um termo ou nome que já aparecia an-
se: mostra-se. Os pronomes oblíquos ligavam-se diretamente ao ver- teriormente no período ou frase. (35) prometido per elle: é de notar
bo. Veja-se deulhe, algumas linhas abaixo. (16) assi: assim (do lat. o agente da passiva regido pelo particípio, acompanhado da preposi-
ad sic). A vogal nasalizou-se mais tarde por influência de si que pas- ção per, pouco freqüente. A substituição da preposição de talvez se
sou a sim, influenciada por nom. (17) viimdo: vindo do verbo vir (do deva ao fato de o verbo prometer admitir esta regência. (36) emtõ:
lat. venire) arcaico vfir. (18) frei: (do prov .fraire, do lat. fratre). O então (do lat. in tunc). Há ainda formas paralelas, igualmente arcai-
latimfratre passou a frade, em português; os documentos portugue- cas: entonces, entonce. (37) como: partícula que funciona freqüente-
ses dos séculos XII e XIII apresentam a formafreire (freyre) efleire; mente como conjunção integrante com verba declarandi (ver
no século XIV háfraire de onde se originaramfraira e freira. Defrei- "Sintaxe"). (38) e elle por seu ayo: e ele como seu aio, preceptor,
re, em próclise, antes do nome a que se refere, fez-se frei. (19) dei- tutor (do gót. *hagjia = tutor, protetor, ou do fem. aya do lat. avia,
Rei: de e! Rei. A forma e! (do lat. illu) proveio de elo, em próclise, avó, mulher que cuida de crianças).
e só permaneceu precedendo a palavra rei, embora em tempos mais A frase ou período, em Fernão Lopes, já é bem mais desemba-
antigos também se antepusesse às palavras conde e alcaide. O espa- raçada do que a de D. Duarte, entretanto ainda se ressente do perío-
nhol ainda mantém as formas e/ para o masculino e la para o femini- do complexo, bastante longo com grande incidência de quês. A
no do artigo. (20) aderemçar seus feitos: encaminhar seus feitos (tratar coordenativa e aparece no início de todos os períodos e frases insis-
dos seus interesses). Aderemçar (do lat. *ad-directiare), o mesmo que tentemente. Há poucas infinitivas, sendo "aderemçar seus feitos" di-
endereçar. (21) pedia: pediu (do lat. *petire por petere). A vogal fi- retamente regida pelo gerúndio "viimdo". Quanto às formas
nal o em hiato com i tónico passou posteriormente a u. (22) mercee: gerundiais, são em número restrito e adequadamente empregadas nas
mercê, graça (do lat. mercede) (ver "Fonética"). (23) por seu mora- frases.
dor: morador era o nobre que recebia moradia do rei, isto é, era as-
sentado nos livros do rei, recebia determinada pensão e moradia na
corte, por serviços prestados a ele. (24) da qual cousa: o relativo pas-
sava a adjetivo a fim de aclarar o antecedente do pronome. (25) ou-
torgou de o fazer: consentiu em fazê-lo. O verbo outorgar como
muitos outros admitia a regência de. (26) se partia: partiu. Os verbos
partir, ir de modo geral eram acompanhados da partícula se (ver "Re-
gência verbal"). (27) pera: para (do lat. per ad). A forma arcaica pas-
sou por uma assimilação, mudando-se e por a. (28) hordenou de:
resolveu, determinou (do lat. ordenare). O h é inteiramente arbitrá-
rio. Via de regra o verbo ordenar admite a regência de. (29) amte:
antes (do lat. ante). Os protético apareceu mais tarde por influência
do advérbio antónimo depois ou despois. (30) irmãao: irmão (do lat.
vulg. germanu). A palavra germanu substituiufratre; o g inicial, em
próclise, desapareceu e o e inicial passou a i; u final geralmente
transforma-se em o. (31) madre: mãe (do lat. matre). A forma arcai-
ca reduziu-se a mai (no século XVI Sá de Miranda ainda rima mai

\
i
NOTAS 101

3 portas daquelles muros estam (35) aimda espamtadas de tam maravi-


lhosa fortelleza.
(Gomes Eannes de Zurara, Crónica da tomada de Ceuta, por
Crônica da tomada de Ceuta, El Rey D. João I, editada por Francisco Maria Esteves Perei-
ra, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa [1915] p. 219.)
de Gomes E. de Zurara
Notas A Chronica da tomada de Cepta ou terceira parte da Cró-
nica de D. João I, cujas duas primeiras partes haviam
sido escritas por Fernão Lopes, foi redigida entre 1449 e 1450. A pri-
meira edição é de Lisboa, 1644, e, em, 1916, sai a edição diplomática
de Esteves Pereira.
O texto a ser estudado foi publicado por ordem da Academia
das Ciências de Lisboa, segundo os manuscritos número 368 e 355
dos fins do século XV e princípios do século XVI, do Arquivo Nacio-
nal, por Francisco Maria Esteves Pereira.
Por (1) comsseguir a materia da humanal! (2) fortelleza (3), posso O capítulo LXXX de onde foi extraído o texto a ser comenta-
partir (4) damte (5) meus olhos a virtude (coragem) de huü primcipe do, apresenta uma espécie de apologia do infante D. Henrique a quem
simgullar (extraordinário, único), que com tamanha força e gramde- Zurara dedicava extraordinário devotamento. Trata da ida do rei D.
za de seu coraçom arrimcou (6) tamanha multidom (7) demfiees (8) João I à África, em direção à cidade de Ceuta.
fora da terra da sua natureza (9). Por certo eu nom rrecomto (10) Ali chegando, o infante D. Henrique desembarcou afoitamen-
estas cousas (11) em tamanha gramdeza (12) como devia, porque eu te, apenas com dois companheiros, foi imediatamente cercado pelos
mesmo me espamto, quando allevamto (13) minha comsijraçom (14) mouros e com eles combateu com extrema coragem, inspirando o his-
pera comtemplar na profumdeza de tamanho feito (15), ca me nem- toriógrafo a escrever a passagem em pauta.
bra (16) que lij (17) nas obras de Tito Livio, como aquele vallente ( 1) por: (do lat. pro) esta preposição alternava com per na épo-
rromãao (18) Oracio (19) Coeres (20) tem tamanho nome porque te- ca arcaica, mas, posteriormente, acabou por substituí-la (ver "Mor-
ve atrevimento de pellejar com tres jmmijgos (21}, cuja virtude de for- fologia"). (2) humanal/: (do lat. hwnanu) foi substituído por humano
telleza Vallerio Maximo na summa (22) da estoria (23) rromaã (24) (ver "Morfologia" e "Fonética"). (3)fortel/eza: (do lat. tardiojor-
amtepoõe (25) deamte (diante) os feitos de Romullo, que foy o pri- talitia ou do fr. ant. fortelece - J. Pedro Machado, Dic. etim. da
ling. port.) a forma antiga tinha a paralela fortaleza, que predomi-
meyro (26) fumdador daquella cidade. Ora que posso eu dizer da for-
nou mais tarde. (4) partir: do lat. partire, afastar, repartir. (5) dom-
telleza de huii homem, que sem esperança de nehuiia companhia,
te: (de ante). Elipse da vogal e da preposição de, antes de palavra
cometeo (27) tamtas vezes huii tamanho ajumtamento de seus jmmij-
iniciada por vogal. A nasalação das vogais, neste texto, é representa-
gos, derribamdo (28) amte os seus pees (29) aquelles que com mayor
da por m tanto antes de vogal e das consoantes b, p, m como antes
atrevimento de sua fortelleza queriam esperar ho (30) bramdimento de todas as outras consoantes; se, porém, o espaço disponível da li-
(31) da sua espada. Certamente eu creo (32), segundo meu juizo, nha não é suficiente para escrever o m, a nasalação é indicada pela
que sse as cousas mudas ham (33) alguii (34) semtimento, que as letra n ou til colocada sobre a vogal nasal. É também representada

\
102 CRÓNICA DA TOMADA DE CEUTA, DE GOMES E. DE ZURARA NOTAS 103

por n a nasalação do e da terminação ente das palavras como dereíta- va-se o a, contando-se duas sílabas. O deslocamento do til é comum
mente, bem como, com freqüência, a nasalação dou da palavra mun- na grafia arcaica. (25) amtepoõe: do verbo amtepõer arcaico de ante-
do. (6) arrimcou: do verbo arrimcar, arrancar. Forma de origem por (do lat. anteponere). (26)foy o primeyro: o emprego dey era muito
controvertida, também existente em galego. Arrancar também é de arbitrário (ver "Fonética"). (27) cometeo: do verbo cometer (do lat.
origem muito discutida. (7) multidom: (do lat. multidudine) multi- committere), atacar, afrontar. A alternância entre o e u era comum
dão (ver "Fonética"). (8) demfiees: de emfiees, de infiéis. Emfiees: (ver "Fonética"). (28) derribamdo: do verbo derribar (do lat. vulg.
(do lat. infideles) apresenta a passagem de in para en e o hiato ees deripare, de ripa, margem), atirar ao chão, sentido aproximado a der-
ocasionado pela queda da consoante /; mais tarde, com a dissimila- rubar (do lat. de(r)upare), que significa atirar do alto de um penedo.
ção do segundo e para i temos a terminação eis (ver "Morfologia"). (29) pees: (do lat. pedes) hiato ocasionado pela queda da consoante
(9) terra da sua natureza: pátria. (10) rrecomto: do v. rrecomtar, de dental (ver "Fonética"). (30) ho: artigo o. A letra h muitas vezes en-
re comtare (do lat. computare), narrar, contar. (11) cousas: (do lat. corpa monossílabos (ver "Fonética"). (31) bramdimento: deverbal
causa) forma antiga da palavra coisa. O ditongo ou alternou por muito em menta do verbo brandir (talvez do fr. brandir - J. P. Machado,
tempo com oi; assim, havia tesouro e tesoiro, louro e loiro etc. Pos- Dic. etim.), agitar, movimentar. (32) creo: do verbo crer(do lat. cre-
teriormente, algumas palavras mantiveram o ditongo ou, outras, oi dere). O hiato eo só se ditongou bem mais tarde (ver "Fonética").
e muitas mantêm ambas as formas. (12) em tamanha gramdeza: (33) ham: hão do verbo haver (do lat. habere) usado comumente com
observe-se a regência verbal do verbo- recontar em; hoje diríamos a significação de ter. A terminação am já foi explicada (ver "Fonéti-
contar ou narrar com ... grandeza. (13) allevamto: do verbo alevan- ca"). (34) alguü: (do lat. *aliqu'unu-, *alicunu) com a nasalação do
tar (do lat. *levantare derivada do particípio levante de levare) com primeiro u formou-se o hiato que permaneceu por longo tempo (ver
a protético; forma considerada popular. (14) comsijraçom: do verbo "Fonética"). (35) estam: estão do verbo estar (do lat. stare).
consiirar (ver o primeiro texto). Para o emprego dej por i ver "Foné- A pontuação do texto é bastante irregular, ignorando-se o cri-
tica". (15) na profumdeza de tamanho jeito: note-se a regência do tério adotado. Em virtude disto, embora mantendo os pontos e as
verbo comtemplar, no sentido de meditar, refletir- contemplar em. vírgulas "originais", acrescentamos mais algumas, a fim de facilitar
(16) nembra: do verbo nembrar (do lat. memorare) com dissimilação a leitura e a compreensão.
do m inicial para n e posteriormente para I de onde lembrar. (17) /ij: Pelo que se pode observar, os períodos são longos e com exces-
li, do verbo ler (do lat. legere). Do pretérito perfeito legi, com o desa- so de subordinação, principalmente com orações iniciadas pela partí-
parecimento da gutural g, passagem de e para i produziu-se o hiato cula que; entretanto, pode ler-se com facilidade talvez por tratar-se
ii, mais tarde i. (18) rromãao: (do lat. romanu) a reduplicação da vo- de texto de tipo descritivo.
gal tônica nasal a ou o pode aparecer ou não (ver "Fonética"). (19) Quanto ao estilo, observa-se que grande parte dos adjetivos (ad-
Oracio: Horácio. O uso do h era muito arbitrário (ver "Fonética"). juntos adnominais), como é de uso na época, vêm antes do nome:
(20) Coeres: Cocles. A alternância entre I e r era comum na época humanal/ fortelleza, tamanha força, tamanho feito, vai/ente rromãao
(ver "Fonética"). Horácio Cocles foi célebre personagem da história etc. A insistência no emprego de tamanho revela a grande admiração
romana: defendeu a ponte Sublícia, até que fosse cortada atrás dele devotada pelo Autor ao Príncipe; note-se também a comparação com
e de seu companheiro Hermínio, a fim de impedir que o exército de os heróis romanos, Horácio Cocles e Rômulo, citados respectivamente
Porsena, rei etrusco, entrasse na cidade de Roma. Quando os herói- por Tito Lívio e Valério Máximo, e, para finalizar, a personificação
cos defensores terminaran de cortar a ponte, lançaram-se ao Rio Ti- hiperbólica "as portas daquelles muros estam aimda espamtadas de
bre e salvaram-se a nado. (21) jmml}gos: (do lat. inimicos) grafia tam maravilhosa fortelleza".
múltipla já comentada em "Fonética". (22) summa: (do lat. summa)
sumário, resumo. (23) estaria: (do lat. historia) forma comum na época
arcaica. (24) rromaã: (do lat. romana) feminino de romão. A redu-
plicação do a deve-se à pronúncia, visto que, a princípio, separa-
NOTAS 105

4 freixo que para baixo hum pouco estava e algüas das ramas estendia
por cima da agoa que alli fazia tamalaves (20) de corrente, e empe-
dida de hum penedo (21) que no meo della estava, que se partia
(22) pera hum e outro cabo (extremidade), murmurando. Eu que
Menina e moça, os olhos levava alli postos, comecei a cuidar como nas cousas que
nam tinham entendimento avia tambem fazerem-se hüas às outras
de Bemardim Ribeiro nojo (23), e estava alli aprendendo tomar (24) algum conforto no meu
mal; que assi (25) aquelle penedo estava ali anojando aquella agoa
que queria hir seu caminho, como as minhas desaventuras noutro tem-
po sohiam.(26) fazer em tudo o que eu mais queria que agora ja nam
quero nada. E crecia-me (27) daquillo hum pezar, porque a cabo do
penedo tornava a agoa a juntar-se e hir seu caminho sem estrondo
algum, mas antes parecia que corria alli mais de presa que pela outra
parte, e dezia eu que seria aquilo por se apartar mais azinha (28) da-
quele penedo, imigo (29) de seu curso natural, que como por força,
alli estava.
(Bernardim Ribeiro, História de menina e moça, variantes, intr.
notas e glos. de D. E. Grokenberger, pref. de Hernani Cidade,
Lisboa, Studium, 1947, p. 7-8.)
E ainda bem nam foi alto dia, quando eu (parece que acinte)
(I) determinei hir-me (2) pera o pee deste monte que de arvoredos
grandes e verdes ervas e deleitosas sombras cheo (3) he, [por onde
corre hum] pequeno ribeiro de agoa (4) de todo anno, que (5) nas Notas Bernardim Ribeiro foi poeta e prosador; como poeta, es-
noutes (6) caladas o rogido delle faz no mais alto deste monte hum creveu poesias incluídas no Cancioneiro geral e um con-
saudoso tom, que muitas vezes me tolheo o sono a mim (7), onde ou- junto de Éclogas e, em prosa, deixou a História de menina e moça,
tras eu vou muitas vezes deixar as minhas lagrimas, onde tambem mui- publicada entre 1530 e 1536 ou 1540, obra de ficção que se inclui no
tas enfindas as torno a beber. Começava entam de querer (8) cair a gênero novela sentimental.
calma (calor) e no caminho com a presa (9) que eu levava por fugir Nesta novela introduziu todos os ingredientes das duas modali-
a ella, ou pola (10) desaventura (11) que me levava a mi (12), tres ou dades acima, tais como exploração de sentimentos, mormente amo-
quatro vezes cahi (13), mas eu (que depois (14) de triste nam tinha rosos, estados subjetivos de seres apaixonados e infelizes, personagens
mais que temer) nam olhei nada (15). por aquillo em que (16) me pa- de alta linhagem travestidos em pastores, acrescentando a tudo isto
rece que Deus me queria avisar da mudança que depois avia (havia) lutas entre cavaleiros e episódios romanescos inspirados nas novelas
de vir. Chegando à borda, olhei per a onde via maiores sombras e de cavalaria.
pareceram-me (17) as que estavam alem do rio. Disse eu entam entre A respeito deste livro, levantam-se várias controvérsias, quer re-
mim que naquíllo se enxergava que era mais desejado tudo o que com ferentes ao próprio título - Saudades ou História de menina e moça
mais trabalho se podia aver, porque nam se podia hir alem [sem se] -, quer quanto à própria feitura e ao número de capítulos (se é que
passar a agoa que corria alli mais mansa e mais alta (profunda) que o Autor assim o fez).
noutra parte. Há pelo menos duas versões diferentes do texto, e, sendo um
Mas eu (que sempre folguei (gostei) de buscar meu dano) passei mais longo do que o outro, compreende-se a dificuldade que tiveram
alem e fui-me asentar de so (18) a espeça (19) sombra de hum verde os estudiosos ao estabelecer até onde o Autor os escreveu.
106 MENINA E .\IOÇA, DE BERNARDIM RIBEIRO NOTAS 107

Segundo diversos autores não se sabe se existe realmente o ori- significava: o que está por vir, futuro). (12) mi: forma arcaica de mim
ginal da obra, dado o fato de que todas as edições quinhentistas são ainda não nasalada. (13) cahi: do verbo cair. Às vezes o h medial in-
baseadas em cópias. A de 1544, de Ferrara, embora não apresente dicava duas vogais em hiato. (14) despois: (do lat. de post) esta for-
divisões em capítulos, conclui com o XVII da edição de Évora, de ma alterna com depois desde os primórdios da língua. Não há
1557, dividida em duas partes, com 31 capítulos, na primeira, e 58 explicação clara para elas, nem para o aparecimento do i (1. P. Ma-
na segunda. chado, Dic. etim.). A primeira forma ainda é corrente na linguagem
Além destas edições impressas, existe, na Biblioteca da Real Aca- popular do Brasil. (15) nada (do lat. nata na expressão tes nata) algu-
demia Espanhola de Madri, um manuscrito que coincide com a edi- ma coisa, qualquer coisa. Acompanhada de uma negativa nem, nam
ção de Ferrara, excetuando-se algumas variantes. (não), nunca, significa nenhuma coisa. A expressão não olhar (a) na-
O texto, no qual nos baseamos, apresenta a reprodução da edi- da, equivale a não pensar no futuro, não dar importância aos pró-
ção de Ferrara, à qual se acrescentaram as variantes da de Évora, as prios interesses. (16) em que: o emprego da preposição em neste passo
do manuscrito de Madri e as de uma edição alemã de Colônia (1559) é difícil de explicar; hoje não a empregaríamos. (17) pareceram-me:
que reproduz a de Ferrara, com muito poucas alterações. apareceram-me (do lat. *parescere de parere, aparecer ou parecer).
A trama da novela tanto pode ser uma autobiografia simulada (18) de so: locução adverbial debaixo de. So (do lat. sub) é forma
como verdadeira; inicia-se por um monólogo em que a heroína (me- arcaica de sob. Como prefixo também assumia essa forma: sopé, soer-
nina e moça) conta sua história infeliz, de amante abandonada, leva- guer, solapar etc. (19) espeça: espessa (do lat. spessa). A grafia de
da para longes terras, sem esperança de rever o objeto de seus amores, ç em lugar de ss já indica a confusão reinante na articulação das con-
o que explica o desencanto, os sofrimentos, a melancolia que impreg- soantes (ver "Fonética"). (20) lama/aves: advérbio formado de
nam o longo monólogo e mesmo a obra inteira. tão + mal + aves (avez) (do lat. viz, dificilmente), de algum modo,
(1) acinte: (do lat. accinte ou ad cincte- J. P. Machado, Dic. um tanto. Logo caiu em desuso. (21) empedida de hum penedo: o
etim.) de propósito. Atualmente ainda temos a expressão: por acinte complemento agente da voz passiva, de modo geral, era introduzido
ou o advérbio acintosamente, propositadamente, ostensivamente. (2) por de (ver "Sintaxe"). (22) se partia: o verbo partir e muitos outros
determinei hir-me: o verbo determinar pode ser acompanhado da pre- como ir-se, vir-se etc. geralmente eram acompanhados pela partícula
posição de ou não (ver "Sintaxe- Regência verbal"). (3) cheo: (do se como se fossem reflexivos (ver "Sintaxe"). (23) jazerem-se hüas
lat. plenu) perdeu a nasalização do e e manteve o hiato por longo tem- às outras nojo: aborrecerem-se mutuamente. Nojo: derivado regres-
po. (4) agoa: (do lat. aqua) a alternância deu e o é comum (ver "Fo- sivo de anojar (do lat. in odio esse ou in odio habere de onde inodia-
nética"). (5) que ... o rogido dellejaz ... hum saudoso tom: que liga-se re), com a forma paralela enojar. (24) aprendendo tomar: atualmente
a rogido delle; corresponde a cujo. É construção sintática ainda hoje aprendendo a tomar. (25) assi: está em correlação com a conjunção
encontrada no português falado no Brasil. (6) noutes: (do lat. nocte) como. (26) sohiam: do verbo soer (do lat. solere), costumar. O h me-
o c latino antes de t passava a i ou u: octo, oito, doctu, douto. A dial indica hiato. (27) crecia-me: do verbo crescer (do lat. crescere).
alternância oi, ou já foi comentada. (7) me tolheo o sono a mim: o O grupo latino se reduzia-se a c no português arcaico. A forma cres-
uso pleonástico dos pronomes oblíquos era freqüente, na época, tan- cer é refacção erudita. (28) azinha: depressa. Pode aparecer nas for-
to em poesia quanto em prosa (ver "Sintaxe"). (8) começava de que- mas asinha, aginha (do lat. agina - orifício onde se move o fiel da
rer: o verbo começar podia admitir ou não a preposição de (ver balança; é feminino de *aginus, derivado de ago, no sentido de pe-
"Sintaxe- Regência verbal"). (9) presa: (do lat. prensa ou prehen- sar, agitar o flagelo da balança- J. P. Machado, Dic. etim.). (29)
sa) apreensão, pressa. A sibilante s simples, muitas vezes substituía imigo: (do lat. inimicu) forma arcaica de inimigo, já comentada em
ss (ver "Fonética"). (10) pola: combinação da preposição por mais outro texto.
a forma arcaica do artigo feminimo la, mais tarde substituída por pe- Além dos comentários acima, nada mais podemos acrescentar
la. (11) desaventura: de des + aventura (do fr. aventure, do lat. ad- a respeito da grafia das palavras ou da ortografia, dadas as condi-
ventura), desventura. Ventura (do lat. ventura, plural de venturum, ções em que foram editadas as obras do autor e, em especial, esta.

L
108 MENINA E MOÇA, DE BERNARDIM RIBEIRO

Quanto à frase, ainda temos o emprego excessivo da partícula


que, sobrecarregando demasiadamente os períodos, via de regra, bas-
tante longos. As inversões não são muito violentas: alguns adjuntos
5
adverbiais antecipam-se aos verbos; na oração " ... que de arvoredos ...
cheo he", o verbo vai para a parte final e o complemento nominal
Écloga Basto,
do adjetivo cheo segue-se a que, logo no início. A colocação do ver-
bo, finalizando orações, repete-se algumas vezes: "tres ou quatro ve-
de Sá de Miranda
zes cahi"; " ... um pouco estava"; " ... com mais trabalho se podia
aver"; " ... no meo della estava"; " ... por força alli estava".
Os adjetivos (adjuntos adnominais) ainda precedem os substan-
tivos, mas com menor freqüência do que nos textos anteriores e seu
emprego já revela certa escolha estética: deleitosas sombras; alguns
implicam animização de coisas inanimadas: noutes caladas, saudoso
tom (referindo-se ao ribeiro), agoa ... mansa, penedo imigo.
No último parágrafo há todo um processo de personificação e
comparação metafórica de tal modo que a natureza parece comparti-
lhar do sofrimento da heroína: o rochedo aborrecendo a água por
impedi-la no seu caminho, as desventuras opondo-se aos desejos da
moça; a água a correr mais depressa para afastar-se do penedo inimi- Bieito que é isto, Gil, que andas triste,
go, assim como a personagem corre para fugir ao calor e, provavel- despois que entrou este Abril?
mente, às próprias amarguras. Não sei que demo te viste, (1)
que tu não pareces Gil.
Amigo, onde te sumiste?
Ulo (2) aquele grande amigo,
de limpos bofes lavados, (3)
daquele bom tempo antigo?
que assi falava contigo
tu comigo os teus cuidados? (4)
Assi tão só te vieste (5),
forte burrão (6) foi o teu!
Tanto d'amigo esqueceste (7)
como aqui tinhas de teu!
nem a mim não mo disseste. (8)
Ora diz-me (9), se te apraz:
despois de tanto sol posto (1 O)
tal inchaço (orgulho) inda (11) em ti jaz?
Arrenega (12) o mal, que traz
sempre à memoria mau rosto. (13)

......_
110 ÉCLOGA BASTO, DE SA DE \IIRANDA NOTAS 111

Tu olhas-me de través:
parece que a mal o tomas; Notas A edição aproveitada por esta publicação é considerada
mas se Gil tu inda este (tal) és, a melhor pelo prefaciador: a primeira, de 1595, feita pelo
não hei (14) medo que me comas, cuidado de Jerônimo de Castro, que para isso teve à mão um autó-
por anojado que estês (15). grafo do poeta.
Posto que, por mau acerto (acaso) Francisco de Sá de Miranda, o introdutor do classicismo em Por-
fezeste forte mudança, tugal, deixou poesia clássica, teatro em prosa e composições poéticas
já tanto to não referto (16) em "velho estilo", obras significativas, com dois aspectos nitidamente
mas de um amigo tam certo contrastantes: o inovador, introduzindo formas renascentistas não co-
deveras (17) ter mais lembrança. nhecidas por grande parte de seus contemporâneos, e o tradicionalis-
ta, mantendo o "velho estilo" e reiterando os antigos valores morais,
Gil Tu sabes que eu me abrigara sociais e mesmo lingüísticos da nacionalidade portuguesa.
a esta vida de pastor; Entre as poesias deste segundo aspecto, uma das mais represen-
viera corrido à vara, (18) tativas é a écloga Basto, dedicada a Nuno Álvares Pereira, irmão de
cuidei que era esta melhor, Antônio Pereira, Senhor de Basto, onde expõe muitas idéias a respei-
que ouvira e não a provara (experimentara). to dos acontecimentos da época e suas conseqüências.
Determinava-me já ' Há um diálogo entre dois pastores - Bieito e Gil - desenvol-
d'andar (19) com minhas ovelhas;
a conta saiu-me má; (20)
mas ''tam bem cá, como lá
l vido através de mais de 600 versos. Após uma apresentação, o pastor
Bieito dirige-se a Gil, perguntando-lhe por que se afastara dos amigos.
Às perguntas de Bieito, Gil vai dando explicações e manifestan-
fadas há," dizem-no as velhas. (21) do sua maneira de pensar a respeito dos homens e da vida de seu tem-
Andei d'aquém pera além; po. Como na introdução o poeta escreve "ambos nos temos à
vira terras e lugares, banda I de Gil, que aqui vos envio ... ", supõe-se que o Autor expres-
tudo seus avessos tem; sa suas idéias por meio deste pastor.
o que não ·espermentares (22) (1) não sei que demo te viste: não sei que diabo tu viste. Demo:
não cuides que o sabes bem; (do lat. daemon, espírito) era outra forma de diabo, dem6nio, decho
e às vezes, quando cuidamos etc. O pronome te é enfático. (2) ulo: onde está? Forma arcaica do
que esprimentado (23) o já temos, advérbio u mais o artigo lo (ver "Morfologia" e "Sintaxe"). (3) de
à cabra cega jogamos; (24) limpos bojes lavados: sincero, singelamente bom. Ainda hoje temos
achei-vos cá; fortes amos expressões: pessoa de bons bofes- boa. (4) tu comigo os teus cuida-
querem que os adoremos. dos: e tu falavas comigo de tuas preocupações. (5) te vieste: te ausen-
Pera o mal que te acontece taste. O verbo é reflexivo. (6) burrão: enfado, aborrecimento. Não
buscas o amo: ora o sono, se conhece a origem, talvez provenha de burro. (7) tanto d'amigo es-
ora al (25) que nunca falece (falta) queceste: d'amigo - expressão partitiva regida pelo advérbio tanto
ao trosquiar (26) achas dono, (ver "Sintaxe"). Equivale a tantos amigos. (8) nem a mim não mo
às pressas (necessidades, aflições) não te conhece. disseste: observem-se as repetições pleonásticas comuns na época ar-
caica: as duas negativas: nem ... não, e os dois pronomes: me ... a mim
(Francisco de Sá de Miranda, Obras completas, texto fixado, (ver "Sintaxe"). (9) di-me: forma arcaica de dize, imperativo do ver-
notas e pref. pelo Prof. M. Rodrigues Lapa, Lisboa, Sá da Costa bo dizer (ver "Morfologia"). (lO) despois de tanto sol posto: depois

l
[1937] v. I, p. 154-5, 162-3.) de tantos dias passados. (11) inda: forma arcaica de ainda, de ori-
NOTAS 113
112 ÉCLOGA BASTO, DE SÁ DE MIRANDA

gem controvertida (Leite de Vasconcellos, Lições de filologia portu- como um pastor; e temos a metonímia (causa pelo efeito) depois de
guesa, p. 432, 2. ed., admite esta adjunção de partículas: tanto sol posto ao invés de depois de passados tantos dias.
ad + hinc + de + ad). (12) arrenega: (do lat. pop. *renegare) des- Esta concretização de estados ou de qualidades subjetivas a partir
preza, abandona. (13) o mal, que traz sempre à memoria mau rosto: de elementos do dia-a-dia campesino - inchaço, bojes, sol posto,
o mal (que passou) porque lembra sempre a tristeza, porque te abor- vara, jogar a cabra cega- denota a natureza simples e a visão utili-
recerá, causará má impressão. (14) hei: tenho. Freqüentemente o verbo tária dos pastores, bem como certa tendência poética, um tanto pri-
haver era usado com o significado de ter. (15) estês: acentuado na mitiva, de que Sá de Miranda se aproveita para suas composições
sílaba final. Forma arcaica da segunda pessoa do subjuntivo presen- bucólicas.
te do verbo estar; mais tarde passou a estejas por influência de sejas Além destes elementos que se poderiam chamar de estilísticos,
do verbo ser (ver "Morfologia"). (16) rejerto: reprovo, censuro. Do verificamos um processo de personificação em: mal que traz sempre
à memoria mau rosto, isto é, mal que invoca recordações desagradá-
verbo arcaico rejertar, disputar, reprovar. (17) deveras: mais que per-
veis. Observam-se igualmente muitas aliterações de consoantes e vo-
feito usado ao invés do futuro do perfeito deverias. É muito comum
gais: nasais -bom tempo antigo; nem a mim não mo; nasais e vogal
este emprego na época arcaica. (18) viera corrido à vara: viera expe-
i - inchaço inda em ti; nasais e vogal a - arrenega o mal, que
rimentado pela vida. (19) determinava-me já d' andar: o verbo deter-
traz I sempre à memoria mau rosto; medo que me comas; mas de um
minar podia ou não estar acompanhado da preposição de. (20) a conta
amigo tam; fricativas - fezeste forte; dentais e vogal o - tanto to
saiu-me má: meus cálculos saíram errados. (21) "tam bem cá, como
não referto; neste exemplo além da aliteração temos também asso-
lá (más) fadas há": provérbio antigo que significava haver em todo
nância a intensificar o que foi dito.
lugar os mesmos males de que nos queixamos. (22) e (23) espermen- Na fala do pastor Gil, pode-se notar a predominância da vogal
tares e esprimentado: formas arcaicas do verbo experimentar (do lat. a, principalmente no provérbio em que o recurso é freqüente, para
experimentare). O x latino antes de consoante tendia a passar as. (24) facilitar a memorização e aumentar-lhe a força expressiva.
à cabra cega jogamos: andamos cegos, enganamo-nos. (25) ai: outra
coisa (do lat. vulg. *ale, por alid, de aliud- outra coisa). (26) tros-
quiar: forma arcaica de tosquiar, cortar a lã das ovelhas. Origem muito
controvertida. Os versos "Pera o mal... não te conhece" contêm se-
vera crítica aos patrões: se buscas o patrão nos teus males, ora está
dormindo, ora tem outro impedimento; quando tosquias achas do-
no, no momento das aflições ele não te conhece.
O estilo "velho" do poeta não se distancia do de outros do Can-
cioneiro geral. A linguagem ainda mantém as características medie-
vais, o vocabulário é, com poucas variações, o mesmo empregado
pelos autores do tempo, e a frase, como já se disse, em se tratando
de poesia, é mais simples, sem inversões violentas e nem incidência
constante de subordinação.
Com referência a recursos poéticos ainda se pode observar: o
uso metafórico do termo inchaço, significando mal subjetivo e não
físico, expressões metafóricas como: de limpos bojes lavados para de-
signar pessoa sincera, boa; corrido à vara com o sentido de experi-
mentado pela vida; jogamos a cabra cega para indicar que nos
enganamos, vivemos às cegas; abrigar à vida de pastor, isto é, viver
NOTAS 115

6 Marta Mao quebranto que os quebrante! (1)


porque vam aportunar (2)
pera ajudar a enganar
V. 465

Romagem de agravados üa cachopa anarante


cum rascão (3) do mao pesar? (4)
e Auto pastoril português, Branca Eles sam os presidentes (5)

de Gil Vicente e os mesmos requerentes (6),


e se lhes dizeis que é mal
v. 470

tornam a culpa ao sinal (7)


e eles fazem-se inacentes.
(Gil Vicente, "Romagem de agravados", em suas Obras com-
pletas, coord. do texto, introd. notas e glos. do Dr. Álvaro J.
da Costa Pimpão, Barcelos, Ed. do Minho [1956] p. 328.)

Joanne Ó Déxemo (1) que t'eu digo (2),


que (3) porque isso he ja sabido,
ando eu assi transido (repassado, trespassado), v. 220
e o Demo anda comego (4).
Colopêndio Nam sey se sey o que digo, Renego (5) ora (agora) d'enha (6) mãy (7),
que (1) cousa certa nam (2) acerto; porque as lágrimas me saem (8)
se fujo do meu perigo, v. 230 o dia que (9) te nam vejo (10);
cada vez estou mais perto e tu me (11) tens tal entejo (aversão, má vontade), v. 225
de ter mor (3) guerra comigo. que os espritos (12) se me caem (13).
Prometem-me huns vãos cuydados (ilusões)
mil mundos favorecidos (favores amorosos) Caterina Choros maos chorem por ti; (14)
com que seram descansados (apaziguados) v. 235 quem te manda a ti (15) chorar?
e eu ach'os todos mudados
em outros mundos perdidos (as ilusões desfazem-se). (Gil Vicente, "Auto pastoril português" em suas Obras com-
pletas, p. 101.)
Já nam ouso de (4) cuydar (preocupação amorosa),
nem posso estar sem cuydado;
mato-me (esforço-me) por me matar (causar mal) v. 240
onde estou nam posso estar
Notas Gil Vicente nasceu no ano de 1465 (ou 1475) e morreu en-
sem estar desesperado.
tre 1536 e 1540.
Parece-me quanto vejo
Sua carreira iniciou-se em 1502 com o Monólogo do vaqueiro
tudo triste com rezam:
e encerrou-se em 1536 com a peça Floresta de enganos.
cousas que nam vem (5) nem vam (vão), 'v. 245
Além de peças teatrais, escreveu poesias e outras composições
essas sam as que desejo,
menos importantes.
e todas pena (sofrimento) me dam. \
As obras de teatro de Gil Vicente (mais de quarenta e quatro)
foram ordenadas pelo filho, Luís Vicente, que as publicou em 1562,
1
116 ROMAGEM DE AGRAVADOS E AUTO PASTORIL PORTUGUÊS, DE GIL VICENTE
NOTAS 117

com muitas deformações, sob o nome Copilaçam (compilação) de to- Colopêndio confessa a Bereniso que já não sabe o que diz por-
da/as obras de Gil Vicente. que não consegue alcançar seu objetivo (o amor da pessoa por quem
Este conjunto extraordinário retratou a sociedade portuguesa, está apaixonado); se foge do perigo (mal de amor), cada vez fica mais
em suas inúmeras características, com personagens de quase todas as atormentado. Ilusões vãs fazem-lhe muitas promessas impossíveis de
classes e condições sociais da época, agindo e falando, segundo os favores amorosos com que aquelas (ilusões) serão apaziguadas, mas
modos de ser típicos de cada uma delas. ele as vê mudadas em desilusões (mundos perdidos). Já não se atreve
Gil Vicente é único e singular no panorama da primeira metade (ousa) a ter preocupação amorosa, mas não pode deixar de tê-la;
do século XVI; pode-se dizer que compôs, por meio de suas peças, esforça-se por causar mal a si mesmo; onde está não pode parar (per-
um imenso e excepcional quadro da sociedade medieval, utilizando- manecer), sem ficar desesperado. Parece-lhe que tudo quanto vê é tris-
se de elementos sociais, econômicos, políticos, morais, folclóricos e te, com razão; coisas ilusórias são as que ele deseja e todas lhe causam
lingüísticos que a integraram. sofrimento.
Do ponto de vista da língua, usou o português erudito e literá- (1) que: conjunção causal porque. (2) nam, seram, rezam, vam,
rio, que constituía o padrão culto da corte, a linguagem do povo da sam, dam com terminação am que passou a ão. (3) mor: maior. For-
cidade e a regional de camponeses e pastores. ma antiga derivada de maior, que a substituiu posteriormente. Hoje
Foi bilíngüe como os autores de seu tempo, bem como recorreu ainda há expressões como: guarda-mor, capitão-mor. (4) ouso de: (ver
a outras línguas estrangeiras, principalmente para efeitos de comiçi- "Sintaxe- Regência verbal"). (5) vem: terceira pessoa do singular
dade ou crítica. do presente do indicativo que não se diferençava da terceira pessoa
Nestas condições, também do ponto de vista lingüístico, deixou do plural. Hoje, na língua do Brasil, na escrita, discrimina-se o plu-
um vasto panorama que abrangeu e documentou formas e estruturas ral com o acento circunflexo; na fala, não há distinção.
lingüísticas do século XV e da primeira metade do século XVI. Há poucas inversões nas frasés: "cousa certa nam acerto"; "pe-
Não havendo textos vicentinos fidedignos, escolheu-se a edição na me dam'', objetos diretos antecipados ao verbo; e nos versos 243,
do Prof. Álvaro J. da Costa Pimpão que, baseado na Copilaçam, or- 244 "parece-me quanto vejo I tudo triste com rezam".
ganizou uma obra crítica com adaptações que tornam o texto acessí- Algumas aliterações: sey se sey; mato-me por me matar; nam
vel ao leitor moderno. vem nem vam.
Os fragmentos a serem comentados foram extraídos das peças A forma poética da fala de Colopêndio, que pretendia retratar
h
Romagem de agravados e Auto pastoril português; a primeira, foi o padrão culto da Corte, é em "estilo precioso", segundo Teyssier,
representada no Palácio Real, em Évora, por ocasião do nascimento e muito ao gosto da época (encontrada em inúmeras composições do
do infante D. Filipe (25 de maio de 1533), filho de D. João III de Cancioneiro geral): as palavras e as formas são, até certo ponto, co-
Portugal e da rainha D. Catarina; a segunda, também foi representa- muns, mas seu emprego é bem peculiar.
da ao Rei e à Corte, na mesma cidade por ocasião do Natal do ano Há um jogo de antíteses em todo o texto: "cousa certa não acer-
de 1523. to ... "; "se fujo ... estou mais perto ... "; "não ouso de cuydar,l nem
O assunto da peça Romagem de agravados, como o próprio no- posso estar sem cuydado"; "onde estou nam posso estar ... ".
me indica, é uma romaria (peregrinação) de descontentes (agravados). Encontram-se também combinações de palavras da mesma raiz:
As personagens vão-se apresentando a Frei Paço (espécie de " ... certa nam acerto; " ... cuydar ... cuydado"; repetições das mes-
mestre-de-cerimônias) e, conversando com ele, expõem suas queixas, mas palavras com significações diversas: "mato-me (esforço-me) por
protestos, críticas, a respeito da própria vida e da situação social em. me matar (por me causar mal)"; estar com mais dois sentidos: o se-
que vivem. gundo, permanecer, parar, e o terceiro, ficar.
No primeiro fragmento, dois nobres senhores enamorados e des-
gostosos - Colopêndio e Bereniso - dialogam, expressando-se de
·- No segundo texto, as romeiras são duas regateiras (vendedoras
de pescado, na cidade)- Branca e Marta-, que conversam sobre
maneira correta e refinada. o casamento frustrado de uma sobrinha da primeira .

./,_
118 ROMAGEM DE AGRAVADOS E AUTO PASTORIL PORTUGUÊS, DE GIL VICENTE NOTAS 119

Marta inicia o diálogo com uma praga e se queixa de que vão trespassado e o Diabo com ele. Arrenega a mãe (por tê-lo posto no
importunar uma moça ignorante para ajudar a enganá-la (impingindo- mundo), pois chora no dia em que não a vê e ela lhe tem tamanha
lhe) com um pajem vadio que só lhe pode causar mal. aversão que o ânimo o abandona.
Branca responde que os presidentes (os que haviam assinado o Caterina responde-lhe com uma praga e pergunta ironicamente
alvará, comprovando que o rascão era nobre) ou juízes, eram os pró- por que chora.
prios requerentes (partes interessadas naquilo que assinaram) e se al- (1) ó Déxemo: imprecação raivosa- ao Diabo! Déxemo, De-
guém lhes dissesse que agiam mal, atribuíam a culpa ao sinete, isto cho, Dexo, formas populares relacionadas com diacho, do mesmo ti-
é, à assinatura, e passavam por inocentes. po (usada até hoje no Brasil); são usadas para evitar pronunciar a
(1) mao quebranto que os quebrante!: praga popular, muito co- palavra Diabo (provavelmente por medo ou superstição). (2) t'eu di-
mum em Gil Vicente. Quebranto era (e ainda é, no Brasil, considera- go: inversão do pronome te, objeto indireto de digo, antecipado ao
do pelo povo) um enfraquecimento geral, um estado mórbido de uma sujeito e ao verbo (ver "Sintaxe - Colocação"). (3) que: conjunção
pessoa atribuído ao mau olhado (influência maligna do olhar de ou- integrante que; inicia a oração seguinte ando ... O primeiro que vale
tra pessoa) de alguém. (2) aportunar (importunar), anarante (igno- mais como reforço enfático da fala. (4) comego: forma antiga (do
rante), inacentes (inocentes): formas deturpadas que Gil Vicente lat. cum + mecu) de comigo. (5) renego ou arrenego: é imprecação
emprega para caracterizar a fala popular, visto que em outras passa- de raiva, ódio, espanto. O verbo significa abominar, detestar. Nos
gens usa importunar ou emportunar; ignorante ou ygnorante, yno- exorcismos geralmente pronunciavam a frase "T' arrenego Satanás!".
rante. (3) rascão: pajem ou criado elevado a pajem; no sentido Este verbo também tem o significado de abandonar uma seita ou re-
pejorativo, vadio. (4) mao pesar: imprecação de raiva que significa ligião. (6) enha: forma antiga de mia, minha (ver "Morfologia"). (7)
nocivo, causador de males. É locução que também serve para intro- mãy: forma antiga de mãe (ver "Morfologia" e "Fonética"). (8) me
duzir maldições. Ex.: Mao pesar veja eu de ti! (Desgraça para ti, que saem: o verbo sair podia ter partícula reflexiva (ver "Sintaxe"). (9)
te leve o diabo!). (5) e (6) presidentes (juízes); requerentes (partes): o dia que: sem preposição como era usual e ainda é hoje, na língua
são ao ~nesmo tempo juízes e partes interessadas, portanto, não po- falada no Brasil (ver "Sintaxe"). (10) te nam vejo: antecipação do
dem ser justos, por julgar em causa própria. (7) sinal: sinete ou assi- objeto direto pronominal. (11) me tens tal entejo: próclise do prono-
natura. O sinete era instrumento que servia para firmar em lacre, me que se liga à palavra entejo. (12) espritos: ânimo. Forma antiga
obreia (massa fina), ou em papel, a divisa de repartição ou corpora- da palavra espírito, com ~íncope de i medial não tônico. (13) se me
ção, o brasão de titular ou as iniciais de qualquer indivíduo. caem: o verbo cair é usado como reflexivo e o pronome me é partícu-
A forma de expressão das duas regateiras pretende retratar a la que reforça a ação do verbo em favor do sujeito. É o que se deno-
maneira como falariam personagens populares da cidade; as marcas min8 dativo ético ou partícula enfática. ( 14) choros maos chorem por
desta linguagem estão principalmente no uso de certas palavras de- ti: praga. O termo mau era muito empregado nas pragas e impreca-
formadas, no emprego pejorativo de outras e nas pragas e impre- ções. (15) te ... a ti: uso pleonástico dos pronomes (ver "Sintaxe -
cações. Recursos estilísticos").
No terceiro texto- Auto pastoril português- o assunto são A fala dos pastores tem muitos traços da língua do século XV.
os amores desencontrados de pastores e pastoras e, na parte final, Nos campos e nas serras, afastados das cidades, a população era mais
o encontro de uma imagem de Nossa Senhora, escondida em um fei- tradicionalista e mantinha formas e expressões antigas.
xe de lenha.
Há um diálogo entre o pastor Joanne e a pastora Caterina (Ca-
tarina); o rapaz sabe que ela não o ama, porém insiste em declarar-se
a ela, mesmo sendo mal recebido.
Joanne começa com uma imprecação ao Diabo (Ó Déxemo) e
diz que por ser isso (o fato de ela não o amar) já sabido, anda tão

.1..._
VOCABULÁRIO CRÍTICO 121

Historiografia: a arte de escrever história, geralmente dada como en-


cargo a um cronista, por um rei ou pelo Estado.
Metonfmia: figura de estilo que consiste no emprego de um vocábulo
Vocabulário crítico ou expressão lingüística em lugar de outro com o qual estabelece
uma relação constante e lógica de contigüidade.
Neologismo: inovação lingüística vocabular ou sintática com intro-
dução recente em uma língua.
Nobiliários: nome por que passaram a ser conhecidos, depois do sé-
culo XVII, os Livros de linhagens que registravam genealogias de
famílias nobres, fatos históricos ou lendários da nação portuguesa.
Passo: também passagem -trecho de um autor ou de uma obra
citada.
Personificação: figura de retórica ou de estilo que consiste em atri-
buir vida ou qualidades humanas (inclusive fala) a seres inanima-
dos, irracionais, abstratos, ausentes ou mortos.
Trivium e Quadrivium: conjunto das sete artes liberais ensinadas nas
Animização: figura de estilo relacionada à personificação; atribuição universidades medievais. O Trivium compreendia Gramática, Dia-
de qualificativos próprios do ser humano a objetos inanimados e/ou /ética ou Lógica e Retórica; o Quadrivium, Aritmética, Geome-
abstrações. tria, Astronomia e Música.
Significado: parte inteligível, conceito contido no significante.
Arcaísmos: vocábulos, formas ou construções sintáticas que saíram
de uso na língua corrente e nela refletem fases anteriores nas quais Significante: corpo fonológico do vocábulo.
eram vigentes. Variante: forma de expressão lingüística diferente de outra, mas com
Cronicões: livros de gênero histórico em que se narravam fatos rela- o mesmo conteúdo em relação a ela.
cionados com a vida de personagens reais ou acontecimentos his-
tóricos da nação portuguesa.
Currfculo: conjunto das matérias de um curso.
Estrangeirismo: empréstimo vocabular ou sintático não integrado na
língua nacional, como galicismos, anglicismos etc.
Evolução fonética: conjunto de mudanças paulatinas e graduais que
sofrem os fonemas das palavras no decorrer do tempo.
Formas divergentes: dois ou mais vocábulos de uma língua que têm
a mesma etimologia (origem).
Galicismo ou francesismo: empréstimo vocabular do francês.
Hispanismo: empréstimo vocabular do espanhol.
HIHi hi<•R·\1 L\ <.·o~!F"1 ADA 123

em seguida, para a morfologia, estudo da' formas variáveis e das


invariáveis. O capítulo referente aos verbm é muito rico e bastan-
te pormenorizado.
Bibliografia comentada PIMPÃO, Álvaro J. da Costa -- Hisrôria da literatura portuguesa.
Época Medieval. [Coimbra] Quadrante, 1947, v. I.
Embora o Autor trate de história da literatura, abre um capítulo
muito especial (raramente encontrado em obras deste teor) sobre
a língua arcaica. Registra suas características gerais dos pontos de
vista ortográfico, fonético, morfológico e sintático, extraindo a
exemplificação sobretudo do Cancioneiro geral. Deste modo, não
só focaliza, mas também documenta fatos lingüísticos vigentes nos
meados do século XV até as primeiras décadas do século XVI.

SAID Au, M. -Gramática histórica da lfngua portuguesa. 3. ed. me-


lhor. e aum. Rev. de Maximiano de Carvalho e Silva. São Paulo,
Melhoramentos [ 1964].
Na primeira parte, a obra desenvolve resumidamente a história da
língua portuguesa, passa às alterações fonéticas do latim vulgar,
CARVALHO, Joaquim de- Estudos sobre a cultura portuguesa do sé-
os sons em português e sua representação, os vocábulos, nas suas
culo XV. Coimbra, Universidade, 1949, v. I.
espécies, forma e significação; na segunda, a formação das pala-
Obra muito importante pelas informações relativas à erudição de vras e a sintaxe. É muito rica de informações, minuciosa em deter-
Gomes E. de Zurara, como também dos príncipes D. Duarte, D. minados pontos, principalmente na parte do léxico. Entretanto,
Pedro e D. Henrique. Acrescentem-se também páginas muito eru- dado o tratamento concomitante de fatos lingüísticos antigos e mo-
ditas e esclarecedoras sobre a educação, em Portugal, no século XV. dernos, exige leitura muito atenta. A exemplificação é excelente
LAPA, M. Rodrigues- Lições de literatura portuguesa. Época Me- e compreende autores que vão do século XIII ao século XIX.
dieval. 8. ed. rev. e acres. Coimbra, Coimbra Ed., 1973. StLVA NETo, Serafim da- História da f(ngua portuguesa. Rio de Ja-
Nos três últimos capítulos da obra, o Autor trata de D. Duarte neiro, Livros de Portugal, 1952.
e a prosa didática, Fernão Lopes e os cronistas e, por fim, do Can- O Autor, especialista em Filologia Portuguesa, desenvolve toda a
cioneiro geral. Nestes, a abundância de dados sobre as obras e os história da língua desde a sua formação até o século XIX. Estuda
autores é de tal monta, que sua leitura se torna imprescindível. São a evolução histórica, a fonética, a morfologia, a sintaxe, o voca-
de notar também a ilustração da parte ex positiva, com textos bem bulário, além da expansão da língua nos diversos séculos. Trata
se!ecionados e de grande pertinência, bem como a bibliografia nu- igualmente da língua literária desde o século Xlll até o século XIX,
merosa, indicada no fim dos capítulos. com farta e erudita exemplificação. É obra fundamental para o
Nur-.Es, J. J. - Compêndio de gramática histórica portuguesa. 2. ed. assunto deste trabalho.
cor. e aum. Lisboa, Livr. Clássica, 1930.
TAVARES, José Pereira- Como se devem ler os clássicos. Lisboa, Sá
Esta obra é fundamental para estudos de fonética e morfologia his- da Costa [1941].
tóricas. Tem uma introdução sobre a origem e a evolução da lín-
O Autor faz uma síntese da evolução da língua portuguesa desde
gua portuguesa, passa à fonética dos sons e à fonética sintática, os seus primórdios até o século XIX, exemplificando com alguns

......
r
12-t BlBI !<)<rR·\ll \ <_<_J'_.t_L_\_1_\_I_J_c\_ _ _ _ _ __

textos. Caracteriza a língua arcaica, nos aspectos fonético, mor-


fológico, sintático e ortográfico, bem como estuda o léxico de au- As séries
tores quatrocentistas e quinhentistas, alinhando séries extensas de
termos e expressões que constituem elementos de grande valia pa-
Dl3:1:JI#IC SERIE ~
IRINOPIOV e~I•!A~@~uí
riJ
ra a compreensão das respectivas obras. são fruto de um trabalho editorial
TEYSSIER, Paul - Histoire de la tangue portugaise. Paris, Presses intenso e realista, e apresentam livros
Universitaires, 1980 (Que sais-je?). intimamente I i gados aos currículos
de nossas faculdades, sempre elaborados
Esta obra abrange o extenso período da língua portuguesa que vai por autores representativos de diversas
do século XIII até o século XX. Faz uma síntese de todas as épo- áreas do conhecimento e integrados
cas, toca nos pontos principais, principalmente em relação a orto- ao Ensino Superior do país.
grafia, fonética, morfologia e sintaxe, bem como trata da fala, em Conheça também os volumes da série Princípios:
Portugal e no exterior - Brasil, África, Ásia. Sendo trabalho bem
elaborado e feito com seriedade, é de lastimar seja tão compacto. Paródia, paráfrase & Cia. Alfonso - Jos" Ciuliherme Canto< Magnanr * 35
Romano de Sant Anna *
2. Teoria do con- Teoria da informação Isaac Epstern *
to - Nádra Battella Gotlrb *
3 A persona- 36 O enredo Sanllra Nahrd de Mesqurta
gem Beth Brart *
4. O foco narrativo - * 37 Linguagem jornallstica - Nlison La·
L1gra Chrapp1n1 Moraes Lerte *
5 A cróni- ge * 3B O feudalismo: economia e socie-
ca Jorge de Sá *
6 Versos, sons, rit- dade Hdmrlton M Montelfo * 39. A
mos Norma Goldstern *
7 Erotismo e cidade-estado antiga Clfo Flamarron S.
literatura Jesus Antonro DLHigan 8 * CardosrJ * 40 Negritude - usos e senti-
Semântica ·- Rodolfo llan 8 João dos Kaoengele Munanga *
41 Impren-
Wanderlev Gerald1 *
9 A pesquisa socio- sa feminina Dulcil<a Schroeder Burton1
lingülstica - Fernando 1 arallo 10 Pro-* * 42 Sexo e adolescência - lçamr Trba
núncia do inglês norte-americano ·- Mar * 43 Magia e pensamento mágico -
tha Sternberg *11 Rumos da literatura Paula Montero *
44 A metalinguagem -
inglesa - Mam E:lrsa Cevosco & Valter Lei· Sam<ra C:halhuo *
45 Psicanálise e lin-
lrs Srquelfa *12. Técnicas de comunica- guagem El1ana de Moura Castro *46
çllo escrita - lzrdoro Blrkstern 13. Oca-* Taoria da literatura Roberto Acizelo de
ráter social da ficção do Brasil - Fabro Souza * 47 Sociedades do Antigo Orien-
Lucas * 14 Best-seller: a literatura de te Próximo Clfo Flarnarron S. Cardoso *
mercado .. Munrz Sodré *
15. O signo - 4B Lutas camponesas no Nordeste -
Isaac Epstem * 16 A dança - Mrnam Gar· Manuel Correra de Andrade * 49 A lingua-
era Mendes *17. Linguagem e persuasão gem literária - Domiclo Proença Filho *
- Adrlson Citellr *
18 Para uma nova gra- 50 Brasil Império - Hamrlton M Monterro
mática do Português Máno A Pennr * * 51 Perspectivas históricas da educa-
19. A telenovela - Sarnrra Youssef Cam- ção Elrane Marta Te1xelfa Lopes *52
pedellr * 20. A poasia lirica - Salete de Camponeses - Margaflda Mafia Moura *
Almerda Cara *
21 Perlodos literários - 53 Região e organização espacial - Ro-
*
Ligra Cademartofl *
22. Informática e so- be1 to Lobato Corrêa 54 Despotismo es-
clarecido - Francrsco José Calazans Fal-
ciedade -· Antonro Nrcolau Youssef 8 Vr·
cente Paz Fernandez *
23 Espaço e ro- con * 55 Concordância verbal - Marra
mance - Antonro Drmas *
24 O herói -- Aparec1da Baccega *
56 Comunicaçllo e
*
FláviO R Kothe *
25 Sonho e loucura - cultura brasileira - Vlfgil1o Noya Prnto
*
José Roberto Wolff *
26. Ensino da gra- 57 Conceito de poesia - Pedro Lyra
mática. Opressllo? Liberdade? Evanildo 56 Literatura comparada - Tan1a Franco
Bechara * 27. Morfologia inglesa - no- Carvalhal * 59 Sociedades indlgenas
ções introdutórias -- Martha Sternberg * A1c1da R1ta Ramos *60 Modernismo bra-
28 lniciaçllo à música popular brasileira sileiro e vanguarda -- Lucra Helena *61
- Waldenyr Caldas *
29 Estrutura da no- Personagens da literatura infanta-juvenil
ticia - Nrlson Lage *
30 Conceito de psi- - Sor11a Salomilo Khéde *62 Cibernéti-
quiatria - Adrlson Grandrno & Durval No· ca - Isaac Epstern *
63. Greve - fatos e
guelfa * 31 O inconsciente - um estudo significados - Pedro Castro *64 A
critico Alfredo Naffah Neto 32. A his-* aprendizagem do ator - Antonr? Januzel:
teria - Zacana Bo<ge Air Rarnadarn 33 * ''· .Janô* 65. Carnaval, carnavais - Jose
O trabalho na América Latina colonial Carlos Sebe *66. Brasil República - Ha-
Clfo Flamanon S. Cardoso 34 Umbanda* milton M Montelfo *
67. Computador e

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