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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 3: 251-261, 1999.

AS CATEGORIAS ESTILÍSTICAS NOS ESTUDOS DA ARTE


PRÉ-HISTÓRICA. ARQUEOFATOS OU REALIDADES?*

André Prous**

“É próprio do senso comum ter de se organizar sobre esquemas classificatórios


que se apresentam ao senso crítico como empobrecedores e reificantes. De um certo
modo, toda empresa intelectual - tal como se concebe em nossa cultura - extrai o seu
sentido e prazer da denúncia e dissecação desses esquemas, de cujos escombros es­
quadrinhados parece emergir a luz sempre ansiada” (L. F. Duarte, “A volta da identi­
dade” Anuário Antropológico 85).

Introdução Entre os estudiosos ocidentais do fenômeno


artístico que se multiplicaram no início do século
Com a separação das áreas de conhecimento XX, verifica-se uma nítida oposição entre os ar­
- característica do pensamento ocidental moder­ tistas e teóricos da estética de um lado, e os etnó­
no, criou-se a noção de arte como categoria espe­ logos e arqueólogos do outro. Os primeiros ana­
cífica do conhecimento, caracterizada por I. Kant lisam geralmente os objetos não ocidentais de um
como uma “finalidade sem fim”. Isto abriu o cam­ ponto de vista apenas estético, aplicando catego­
po para uma reflexão estética que a maioria das rias supostamente universais, enquanto quase to­
culturas do mundo não possui e que não existia na dos os antropólogos procuram, através das “obras
tradição mediterrânea; lembremos que, em latim, de arte”, atingir as realidades étnicas - outra cate­
ars - artis significa tanto a habilidade prática do ar­ goria desenvolvida pelo Ocidente no século XIX.
tesão quanto a capacidade de criar coisas belas (es­ De um modo geral, os arqueólogos trabalham
pecialidade do artista, em nossa cultura atual). A em quatro direções principais:
reflexão de Platão sobre o Belo não o levou a ela­
- a arqueometria (disciplina científica, que
borar uma estética. Desta forma, a própria palavra
procura datar os grafismos, identificar as técnicas
“arte” aplicada a manifestações de outras épocas
de elaboração pela análise dos pigmentos etc.).
ou regiões - quanto mais a grafismos pré-históri­
cos (“arte rupestre”, por exemplo) - aparece como - a classificação, que permite comparar os
profundamente determinada por nossos conceitos conjuntos gráficos (cronológicos ou espacial-
étnicos. Será, portanto, possível estudar estas ma­ mente distribuídos) entre si.
nifestações culturais produzidas por populações - a tentativa de descobrir o significado ex­
não ocidentais a partir das nossas categorias sem plícito que as obras tinham para seus autores:
ficar preso a um discurso sobre nós mesmos? mensagens, suporte para ações...
- a busca de informações implícitas que
as obras proporcionam sobre a sociedade, a
(*) Uma comunicação com o título “Rock Art Traditions:
Archaeofacts or realities” foi apresentada no Congreso In­
economia, a percepção do real... das quais os
ternacional de Arte Rupestre de Cochabamba (Prous 1997) autores não eram conscientes.
e deve ser publicada em portugués no próximo número da
Dentre essas pesquisas destacam-se as que
revista Clio. O presente texto apresenta-se como uma conti­
nuação da reflexão sobre o mesmo tema. levam a definir unidades descritivas (tradições,
(**) Setor de Arqueologia, MHN/FAFICH-UFMG; M is­ estilos, fácies ou variedades...) que permitam dis­
sion Archéologique de Minas Gerais). tinguir entre si grupos étnicos ou sociais.

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Uma questão fundamental e ainda pouco de­ fluência da óptica evolucionista unilinear, a recém-
batida quando se trata de arte rupestre, é a de sa­ descoberta arte rupestre pleistocênica européia
ber se tais categorias, definidas pelos arqueólogos, passou a ser vista como expressão de práticas má­
correspondem a uma realidade objetiva ou se são gicas, visando principalmente a favorecer a caça
apenas o resultado da escolha de critérios deter­ (sendo H. Breuil o maior expoente desta visão, du­
minados por nossa visão etnocêntrica do mundo. rante mais de meio século). Tratava-se, para os au­
Serão as tradições “arqueofatos” ou realidades? tores, da expressão de um estágio “inicial” da arte,
Para estudar este ponto, é preciso definir em comprovada pela observação etnográfica de po­
que contexto e para que as tradições etc. foram pulações “primitivas” e cuja função parecia ób­
estabelecidas, tentando ver, a partir de exemplos via. As diferenças notadas entre as obras pré-his­
concretos, até que ponto a História da Arte oci­ tóricas eram principalmente relacionadas à progres­
dental pode validar a utilização deste conceito. siva descoberta de como expressar a perspectiva.
Veremos também dentro de quais limites os exem­ Assim sendo, era possível sugerir uma mudança
plos etnográficos podem enriquecer as análises progressiva na forma das representações desde a
dos arqueólogos. arte “aurignacense” até a do período “magdalenien-
se”, sem que houvesse modificações no sentido e
na função. Não houve, por parte dos arqueólogos,
As abordagens da arte rupestre no criação de categorias distintas das que existiam
mundo: uma breve reflexão histórica para designar os vestígios enterrados (falou-se em
Os primordios arte aurignacense, solutrense ou magdalenense,
em função da contemporaneidade postulada en­
Desde o século XVI, livros que prefiguram tre as representações figuradas e os outros tipos
os atuais guias turísticos mencionavam as pin­ de vestígios). H. Breuil (op. cit. 1952) tinha tam­
turas de Niaux. Obviamente, estas não eram atri­ bém notado a existência de especificidades em
buídas a homens pré-históricos, mas a pastores determinadas regiões (sobretudo relativas à for­
“incultos” já que não obedeciam aos cânones ma das figuras geométricas), mas sem valorizá-
da Antigüidade revalorizados pelo Renascimen­ las em suas análises. A arte rupestre de outras
to. Eram apresentadas, pois, como simples curio­ latitudes (Austrália, África do Sul) era interpreta­
sidades, não havendo necessidade de estudá- da da mesma maneira; valorizavam-se essencial­
las ou explicá-las. mente as representações de animais, pois enqua-
Os primeiros estudos acadêmicos de arte pré- dravam-se na idéia de uma arte da caça e de que
histórica foram realizados na Europa no final do deveria haver uma certa similitude entre todas as
século XIX. Os pequenos objetos decorados (“ar­ manifestações “artísticas” oriundas de culturas de
te mobiliar”) encontrados nas camadas arquelógi- caçadores.
cas pleistocênicas foram então considerados como A descoberta da rica e variada arte rupestre
simples expressão de atividades estéticas, confor­ saariana do Tassili evidenciou a necessidade de
me as idéias vigentes da “arte pela arte”, da estética estabelecer recortes cronológicos nesta região.
como campo de atividade isolado. Sua existência H. Lhote reconheceu a existência de vários “pe­
foi, no entanto, um choque para os representantes ríodos”; o primeiro (période Bubaline) repre­
das elites européias que tiveram dificuldade para sentava animais selvagens, sendo supostamen­
admitir que selvagens primitivos tivessem condi­ te característico dos caçadores; o segundo {pé­
ções intelectuais e tempo livre suficientes para ela­ riode Bovidienne), era obviamente atribuído aos
borar tão requintadas gravuras em vez de se dedi­ primeiros pastores e um terceiro (période des chars),
car exclusivamente às penosas atividades de caça correspondendo a populações da idade do Bronze
num ambiente desfavorável. etc. Além desta observação, válida no plano local,
estabeleceu-se, na mesma perspectiva evolucio­
O auge do período comparativista/evolucionista em nista implícita de Breuil, a idéia de que no mundo
Arqueologia e a magia da caça inteiro, cada população, em função do seu “pata­
mar evolutivo” representaria um determinado tipo
No início do século XX, com o desenvolvi­ de tema: caçadores representariam suas presas;
mento das pesquisas etnológicas e ainda sob a in­ pastores, seus rebanhos, etc. Analisando os temas,

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seria possível identificar o estágio de desenvolvi­ - como H. Breuil antes dele - não deixasse de re­
mento de qualquer grupo. Esta idéia permanece conhecer modificações na forma das representações
ainda bem nítida em autores como Anati (1995). ao longo do tempo (identifica quatro “estilos” com
valor cronológico), sua abordagem - que implicava
A recusa do comparativismo etnográfico tratar estatisticamente o conjunto do registro gráfico
e a busca das estruturas escondidas paleolítico europeu - o levou a subestimar as va­
riações desta arte paleolítica no tempo e no espaço.
A mudança de paradigma do anos 60 se deve Outrossim, os dois principais pesquisadores
aos trabalhos paralelos e independentes de A. tentaram ir além da descoberta de regularidades
Laming-Emperaire (1962) e A. Leroi-Gourhan para tentar penetrar o significado dos grafismos
(1965), ambos influenciados pelo estruturalismo. (interpretando, por exemplo, a associação cavalo/
Recusaram o comparativismo etnográfico ingê­ bovídeo como a expressão de uma oposição de tipo
nuo do início do século, que considerava as po­ macho/fêmea), passando do campo da “descrição
pulações não ocidentais como “primitivas” e fos­ objetiva” para interpretações de cunho subjetivo,
silizadas num “estágio de selvageria” paleolítica rapidamente criticadas pelos céticos. De qualquer
e capazes, portanto, de fornecer uma chave para forma, as abordagens de caráter semiótico (por ex.
interpretar obras distantes milênios no tempo e Sauvet e Wlodenczyck 1977) tiveram sua inspiração
milhares de quilômetros no espaço. Criticaram a na obra de Leroi-Gourhan e Laming-Emperaire.
utilização, por parte dos arqueólogos, de figuras
isoladas, escolhidas a dedo para “comprovar” suas A diversificação das abordagens
interpretações, desprezando o resto das represen­ no período contemporâneo
tações pré-históricas. Por exemplo, mostraram que
as cenas de caça eram excepcionais no Paleolítico Os anos 70 e 80 correspondem a uma amplifi­
europeu. cação dos conhecimentos sobre a arte rupestre
Não podendo mais contar com o discurso mundial, levando a uma multiplicação das aborda­
de populações ainda existentes, os pesquisado­ gens.
res precisavam extrair do próprio corpus rupestre Uma delas corresponde à tentativa de recu­
um discurso desvinculado de todo preconceito perar as tradições indígenas, nas regiões em que
de origem étnica - fosse esta a etnia do pesqui­ a arte rupestre ainda era praticada há pouco tempo,
sador ou a de qualquer população de Além-Mar. como Canadá, Austrália e África do Sul. De uma ma­
A nova meta do arqueólogo passou a ser a neira geral, e sob a influência de J. Lewis William
evidenciação de uma seleção dos temas (cada e T. Dowson, passou-se a ver as figuras pré-histó­
cultura escolhe os temas a serem representados ricas como representações de fenômenos ópticos
enquanto outros não aparecem ou não são valori­ provocados por alterações de consciência. Por
zados) e de uma possível organização dos grafis- exemplo, uma índia Salish explica as visões e os
mos. Reconheceu-se, então, a existência de as­ sonhos ocorridos após longos jejuns que acompa­
sociações privilegiadas entre grafismos na arte nham os rituais iniciáticos (York, Daly & Amett
paleolítica; por exemplo, a recorrência de uma 1993). Na África do Sul, Lewis-William focalizou
dupla “cavalo/bovídeo” (à qual Leroi-Gourhan as­ o suposto papel das drogas, as quais teriam sido
sociaria mais tarde os cervídeos) e de outra, que utilizadas pelos xamãs durante cerimônias prepa­
combina os “sinais” lineares e “fechados” entre ratórias à caça. As figuras geométricas, em princí­
si. Notou-se uma possível articulação entre certos pio difíceis de serem explicadas num contexto de
animais e determinados “sinais”; entre certos gra­ magia da caça, seriam, assim, representações de
fismos e setores topográficos (animais “perigosos” fosfenos, resultantes da ingestão de alucinógenos.
nos becos sem saída; figuras pontilhadas em pas­ Desta maneira, a ubiqüidade das formas geométri­
sagens; conjunto cavalo/bovídeo nos salões...). cas simples na arte rupestre seria explicada pelo
Estas associações, quase sempre binárias, foram fato de a arte rupestre ser, antes de tudo, xamanís-
geralmente interpretadas como oposições, seguin­ tica e ligada a estados de transe. De fato, estava-se
do a maneira de pensar estruturalista, influenciada voltando às antigas idéias de H. Breuil, apenas
pelo desenvolvimento da linguagem computacio­ enriquecidas pela mediação dos agentes psicotró-
nal e a algebra de Boole. Embora A. Leroi-Gourhan picos, um dos temas obssessivos dos ocidentais

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neste fim de século. Esta posição, de novo baseada representação de posturas ou patologias específicas
na suposta universalidade de comportamentos em representações antropomorfas (Duhard 1993).
“primitivos” - a palavra xamanismo recobre, de As experiências para reproduzir e as análises
fato, realidades etnográficas bem diversas - não sistemáticas das “receitas” pré-históricas de fa­
chegou, no entanto, a ser aceita pela maioria dos bricação de tinta - iniciadas com Couraud (Cou-
pesquisadores. Mesmo na África do Sul, houve raud e Laming-Emperaire 1979) - tiveram um gran­
questionamento sobre a credibilidade dos infor­ de desenvolvimento (Menu, Clottes 1990) mercê
mantes em cujo depoimento Lewis-William base­ dos progressos da aplicação dos estudos químicos
ava suas afirmações. Finalmente, não houve volta aos materiais arqueológicos. Estas técnicas permi­
à comparação etnográfica descabida do início do tiram também, nos anos 90, a extração de quanti­
século e, numa publicação recente feita em parce­ dades diminutas de matérias orgânicas para reali­
ria com J. Clottes (Clottes & Lewis-William 1996), zação de datação por AMS (Russ, Hyman, Shaffer
o próprio Lewis-William reconhece que não se & Rowe 1990). Paralelamente, a aplicação das téc­
pode explicar toda a arte pré-histórica a partir de nicas de traceologia ao estudo dos gestos de fabri­
uma única chave. cação de gravuras e dos gumes dos instrumentos
As outras orientações não tiveram mais ne­ utilizados para este fim desenvolve-se com as pes­
nhuma pretensão de fornecer uma chave para os quisas de d’Errico (1989).
estudos de arte pré-histórica em geral, mas focali­ Já no início dos anos 70, as pesquisas de A.
zaram pontos específicos a cada região estudada. Marshack (1972), de Ouy & Ouy Parcszewska
Onde havia claras evidências de que grupos va­ (1972) sobre a arte paleolítica e de A. Prous (1977)
riados tinham decorado sucessivamente os pare­ sobre a arte dos sambaquis, procuravam eviden­
dões, deixando registros com temática e técnicas ciar registros matemáticos ou, pelo menos, rítmi­
contrastantes, a prioridade foi dada ao estabele­ cos (contagens de elementos e construção de
cimento de seqüências estilísticas; cada “esti­ formas geométricas) em ossos gravados, pintu­
lo” (no Kakadu australiano ou no Saara africano) ras paleolíticas, ou esculturas mesolíticas. Nos
ou “tradição” (no Peruaçu brasileiro) reconhecidos anos 70 e 80 a “arqueo-astronomia” se desenvol­
tendem a ser atribuídos a uma etnia diferente. Na ve, tentando identificar registros de fenômenos
Austrália, a identificação dos antigos territórios celestes (cometas, explosão de supemova etc:).
tribais e das mitologias passou a ser outra priori­ Mais recentemente aparecem as observações
dade, num momento em que os remanescentes sobre as propriedades acústicas de sítios de arte
aborígenes recobram a posse dos sítios ao redor rupestre (Dauvois 1992), sendo que há evidência
dos quais estrutura-se sua identidade tribal. etnográfica de que certas tribos da Califórnia es­
Na Europa, procura-se caracterizar as “esco­ colhiam locais onde os sons se propagavam de ma­
las” regionais e locais de arte paleolítica, assim co­ neira especial para realização de seus rituais (Hed-
mo se aproveitam as novas possibilidades de da­ ges 1993).
tação dos grafismos para analisar as transforma­
ções temáticas ocorridas em cada região durante o As tendências de análise no Brasil
Paleolítico, duas perspectivas pouco valorizadas
até então. Falou-se em “era pós-estilística” (Lor- No Brasil, os estudos de arqueometria desen­
blanchet) para designar o abandono da visão uni­ volveram-se tardiamente, sobretudo nas Universi­
linear da sucessão dos estilos no paleolítico europeu dades Federais do Piauí (Menezes Lages 1990) e de
que tinha caracterizado os trabalhos de H. Breuil e Minas Gerais (Costa & alii 1989; Costa, Cruz Sou­
A. Leroi-Gourhan - o que não significa que os atuais za, de Jesus 1991). As primeiras datações AMS de
pesquisadores renunciem a utilizar a noção de es­ pigmentos para o Brasil foram também obtidas,
tilo. por M. Rowe (Russ et al.) a partir de amostras pro­
Podemos mencionar também as pesquisas re­ venientes destes dois estados (figura da Lapa do
centes que evidenciam fenômenos registrados pe­ Veado, no Peruaçu-MG; pigmentos enterrados fora
los “artistas” pré-históricos, como as mudanças sa­ de contexto arqueológico, no Baixão do Pema-Pi).
zonais de pêlo ou chifres ou as posturas dos gran­ No entanto, desde o século XIX e o início do
des herbívoros na Europa (Bouvier & Dubourg século XX tentou-se desvendar o sentido das obras
1997). Médicos procuram também evidenciar a rupestres; podemos citar por exemplo J. B. Debret

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em 1839, apropriando-se dos registros de Spix e mesmo código e pudessem ser opostos a outros
Martius - e retocando-os, como nos assinalou L. registros, de outra autoria. Como critérios de com­
Ribeiro - ou T. Sampaio (1918). Os autores desta paração e indicadores de continuidade cultural (ca­
época as vêem como registro de viagens, batalhas, racterizando as Tradições), estes autores privile­
ou inscrições funerárias lembrando os nomes dos giaram os temas gráficos: foram isolados os con­
mortos e dos seus familiares. juntos que apresentavam uma preferência por ani­
No fim dos anos 1960, D. Aytai (1970), num mais, representações antropomorfas, ou figuras
brilhante trabalho de cunho estruturalista sobre o “geométricas” No caso de haver vários registros
sítio paulista de Itapeva, relaciona os grafismos privilegiando uma destas grandes categorias, iden­
deste sítio a mitologias Jê. Mais recentemente, M. tificavam-se os que escolhiam os mesmos animais
Beltrão (1994) vê em pinturas da região de Central ou as mesmas personagens ou, ainda, grafismos
(Bahia) a evocação de tradições ainda mantidas geométricos de uma morfologia específica. As téc­
por populações históricas (Tukano) que moram a nicas de representação - ou variações menores de
milhares de quilômetros de lá. No entanto, e mesmo temas - foram utilizadas para determinar unida­
no caso de haver um discurso indígena a respeito des menores (variedades, fácies, estilos) caracte­
das representações encontradas no seu território, rizando períodos ou territórios restritos dentro dos
como ocorre no Brasil entre os Krenak do Rio Doce limites geográficos e temporais abrangidos pelas
(MG), devemos estar conscientes que as informa­ tradições. Desta forma, aproximava-se da aborda­
ções coletadas dizem respeito à interpretação dos gem histórico-cultural (Wüst 1991).
indígenas atuais que se apropriam de pinturas pos­ No entanto, M. Consens e P. Seda (1989) pas­
sivelmente milenárias para re-estruturar sua cons­ saram a questionar a multiplicação de fácies, varie­
ciência étnica. É improvável que estes informan­ dades, estilos e tradições, freqüentemente mal defi­
tes possam ainda transmitir o sentido que tinham nidos. Por sua vez, e em vários textos, A. Prous (1997)
para seus autores (Baeta 1998). e seus colaboradores (Solá, Prous & Silva 1981)
Assim sendo, e bastante descrente das inter­ interrogaram-se sobre a explicação das diferenças
pretações propostas, consideradas impossíveis e das semelhanças sobre as quais os arqueólogos
de serem demonstradas, a maioria dos arqueólo­ se apoiam para definir suas unidades de compara­
gos que trabalham no Brasil prefere procurar ape­ ção.
nas informações indiretas sobre os autores dos
registros gráficos.
Desta forma, procurou-se, desde o final dos A definição das unidades
anos 70, e inicialmente sob o impulso dos pesqui­ estilísticas pelos arqueólogos
sadores de Minas Gerais e do Piauí, determinar
principalmente unidades estilísticas que pudessem Está na hora de aprofundar a reflexão sobre
identificar entidades sociais e culturais do passado: as classificações propostas pelos arqueólogos e so­
etnias, territórios... bre o significado dos atributos que costumam uti­
Com efeito, os conjuntos gráficos da pré-histó­ lizar.
ria brasileira apareceram imediatamente aos obser­
vadores dos anos 70 (Calderón de la Vara 1971, Semelhanças e diferenças
Guidon 1981, Prous 1977) como contrastados re­
gionalmente. Logo, A. Prous (Prous, Lanna & Paula Quer se trate de definir unidades a partir da aná­
1980) insistiria também sobre as profundas modi­ lise de vestígios ósseos, de artefatos ou de registros
ficações ocorridas ao longo do tempo na arte rupes­ gráficos, os pesquisadores precisam compará-los,
tre de cada região, proclamando a necessidade de buscando evidenciar as semelhanças e as diferenças
priorizar a separação dos sucessivos registros an­ que apresentam entre si. A primeira questão que le­
tes de qualquer outro passo no decorrer das pesqui­ vantaremos é saber se o que vemos como semelhan­
sas. ças e diferenças teriam sido vistas como tais pelos
Parecia, portanto, possível determinar em cer­ homens do passado. Em decorrência da resposta, a
tos casos quem tinha feito o quê ou seja, identifi­ segunda questão que deve preocupar os arqueólogos
car registros gráficos suficientemente homogêne­ é saber até que ponto as classificações decorrentes
os para serem atribuídos a autores que usassem um destas comparações têm validade.

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Em relação à primeira pergunta, lembrarei a Lapa Vermelha (Baeta, Silva & Prous 1992), veri­
história contada por um antropólogo a respeito da ficamos que os numerosos e amplos suportes li­
sua estadia numa aldeia indígena do Brasil. Um sos, quando razoavelmente iluminados, tinham
informante apontava-lhe duas moças, comentan­ sido preteridos por suportes irregulares, eventual­
do que se pareciam muito. Olhando para a fisio­ mente calcitados e que nenhum de nós teria esco­
nomia delas, o etnólogo não encontrou nenhum lhido. No vale do Peruaçu, enquanto os pintores
traço parecido e manifestou seu estranhamento; ao de um estilo da tradição S. Francisco procuravam
que o indígena respondeu justificando “veja como suportes lisos e preferencialmente altos - se pos­
a forma dos seios é a mesma” sível emoldurados por relevos ou concreções, os
Parece, pois, óbvio que não vemos com os olhos da tradição Nordeste utilizavam locais discretos,
dos outros; europeus ou norte-americanos, acos­ baixos e geralmente marginais. A razão destas pre­
tumados a olhar as pessoas vestidas e com o rosto ferências, com certeza, merece ser pesquisada;
descoberto, privilegiam esta parte do corpo en­ acreditamos que vale tanto saber porque um sítio
quanto indígenas nus ou muçulmanos impedidos ou paredão deixou de ser pintado quanto saber por­
de ver uma face coberta pelo chador podem foca­ que outro foi “decorado”
lizar outras partes anatômicas ou a silhueta geral. Quanto às representações, não se deve ape­
Assim sendo, se quisermos ter alguma chance nas identificar os temas “obssessivos” ou simples­
de levar em conta elementos que eram significati­ mente recorrentes: é importante procurar também
vos para os homens da pré-história, deveremos o que deixa de ser representado. Os temas escolhi­
multiplicar as observações acerca de atributos os dos, voluntariamente ou não, são ricos de signifi­
mais variados possíveis, esperando que alguns cação, assim como o fato de outros serem proibi­
deles tenham sido realmente relevantes para as dos ou desdenhados. Não é, certamente, por aca­
populações que estamos estudando. Não podemos, so, que a representação de cervídeos é tão freqüente
pois, privilegiar exclusivamente um aspecto (a
na Tradição Planalto de Minas Gerais, enquanto o
temática, por exemplo).
porco-do-mato praticamente não aparece nas pin­
turas - do mesmo modo que falta no refugo ali­
Critérios para determinação
mentar dos sítios holocênicos. No entanto, um
de unidades descritivas
veado apenas não faz a Tradição Planalto...
Entre os aspectos que devem ser considera­ A forma de representação das figuras é tam­
dos na comparação entre registros gráficos (sejam bém instrutiva, como ilustra o fato de as repre­
eles conjuntos regionais, sítios, painéis de um mes­ sentações antropomorfas serem esquematizadas
mo sítio, níveis cronológicos num mesmo painel e minúsculas em relação às figuras zoomorfas
etc.), há obviamente os atributos relacionados dire­ na Tradição Planalto, enquanto costumam ser
tamente aos grafismos mas também os que têm a grandes na Tradição Agreste.
ver com o suporte e entorno dos mesmos. A disposição dos temas pode ser típica de uma
A escolha dos sítios por parte dos pré-histó­ unidade estilística: os propulsores aparecem tanto
ricos deve ser analisada: em função da sua posição na Tradição S. Francisco quanto na Nordeste', no
na paisagem, visibilidade à distância, proximida­ entanto, nesta última estão sempre com o dardo e
de de acidentes topográficos, de água, da exposição manipulados por uma figura humana, enquanto
ao sol, da iluminação... tendo sempre cuidado em naquela aparecem isolados (estilo Januário) ou
criticar as próprias observações. Por exemplo, no­ alinhados (fácies Montalvânia), sem evocar uma
tamos, em 1976, depois de prospectar vinte sítios ação efetiva.
de arte rupestre na região de Montalvânia, que to­ Alguma forma do gosto e da sensibilidade dos
dos apresentavam a mesma orientação. No entan­ autores pode ser percebida: vontade de aparecer
to, isto decorria do fato que tínhamos percorrido através do espetacular na Tradição S. Francisco',
afloramentos paralelos entre si. O ano seguinte, gosto pela representação do movimento na tradi­
depois de conhecer mais de trinta novos abrigos ção Nordeste', ordenação lógica nas gravuras da
decorados em outros afloramentos, verificamos que fácies Montalvânia, exuberante confusão aparen­
não existia orientação preferencial na região. te na Tradição Planalto...
A escolha dos suportes pode ser inesperada. Indo além das categorias classificatórias abran­
Em nosso estudo dos sítios rupestres da dolina de gentes (tradição, estilo, fácies ou variantes), o ar­

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queólogo pode ainda chegar a identificar os indi­ ou formas de representação diversas não possam
víduos através das figuras que produziram, reco­ ser oriundos de uma mesma comunidade social.
nhecendo idiossincrasias; mas isto supõe um in­ Com efeito, vemos freqüentemente, no Brasil in­
vestimento muito grande por parte dos pesquisa­ dígena, uma diferença entre a “arte feminina” (ge­
dores, que talvez não se justifique no estágio atual ralmente marcada por uma geometrização das re­
das pesquisas; mesmo assim, não é raro identifi­ presentações, pela utilização de um detalhe para
carmos um “jeito” muito especial de olhar e figu­ significar o conjunto), e uma “arte masculina” (ca­
rar um animal, como mencionamos a respeito dos racterizada pela curvilinearidade e o que chama­
cervídeos pintados do grupo 8 de Santana do Ria­ mos de “realismo” - ver Prous 1977). Não deixa­
cho (Prous & Baeta 1992/3). mos de conhecer em nosso mundo esta dicotomia
entre setores da sociedade (embora seja, entre nós,
raramente ligada ao gênero; mesmo assim, as rou­
O significado das categorias arqueológicas pas dos recém-nascidos variam tradicionalmente
Que tipo de realidade as de cor segundo o sexo da criancinha). Como exem­
classificações podem refletir? plo, citaremos a coexistência de música dita erudita
e da música dita popular, que seguem normas bas­
Vimos que a tentativa de se definirem unida­ tante diversas embora obedeçam às mesmas regras
des estilísticas maiores (Tradições) no Brasil é harmônicas e tonais tradicionais no Ocidente des­
muito ligada ao nosso desejo de identificar popu­ de o século XVIII. Será que algumas “tradições”
lações culturalmente aparentadas, através do re­ definidas na arte rupestre brasileira refletiriam, de
conhecimento de um estilo étnico. fato, um fenômeno semelhante?
Em que medida esta pretensão pode ser al­ Podemos tentar resolver este problema, cui­
cançada? De fato, a Arqueologia não permite di­ dando de analisar as relações cronológicas entre
ferenciar etnias ou culturas no sentido moderno e os grafismos nos paredões: para que tenhamos cer­
comum da palavra, mas apenas vestígios de com­ teza que caracterizam grupos totalmente distintos,
portamentos. A utilização de exemplos históricos os registros das unidades estilísticas maiores (tra­
pode evidenciar o que isto significa. Se conside­ dições) devem ser separados por lapso de tempo
rarmos a decoração de uma igreja católica européia razoável, a não ser em regiões fronteiriças (onde
e de outra, japonesa, a temática (Cruz, Virgem Ma­ pode haver inter-digitação de fácies vizinhas). Isto
ria, Santos...) será a mesma, sugerindo uma única não significa que unidades menores (estilos, varian­
tradição, no sentido em que os pesquisadores bra­ tes...) contemporâneas entre si não possam ser no­
sileiros utilizam o termo. Apenas as convenções tadas dentro de uma mesma tradição. Foi o que
de representação podem ser mudadas (o que carac­ tentamos mostrar ao estudar a dolina de Lapa Ver­
teriza fácies regionais, segundo Prous). Ora, não melha. Utilizando de novo exemplos da História
costumamos associar a etnia japonesa ao cristianis­ da Arte ocidental (Prous 1997), lembrarei que a
mo mas, sim, a traços estilísticos. Da mesma forma, decoração das igrejas cristãs varia - eventualmen­
não podemos afirmar que todas as figurações Nor­ te, na mesma cidade. Isto ocorre em função de fácies
deste do Brasil possam ser atribuídas a uma popu­ geográficas: os santos favoritos da Igreja Ortodoxa
lação que tenha apresentado unidade biológica (S. Jorge, por ex.) não são os mesmos da Igreja
(“raça”), nem lingüística, nem mesmo em outros Católica (S. Inácio ou S. Francisco); de oposições
campos (tecnologia do trabalho da pedra, por exem­ ideológicas profundas: os templos protestantes não
plo). Mesmo assim, a unidade estilística definida apresentam santos nem a Virgem Maria, ao contrá­
pelos arqueólogos não carece de sentido: ela indi­ rio das igrejas Católica e Ortodoxa. As diferenças
ca um tipo de saber e de sentir que as populações podem ser mais sutis: as igrejas conventuais
compartilham, do mesmo modo que os católicos clunisianas apresentam uma decoração exuberante
japoneses têm, realmente, uma cosmologia próxi­ que se opõe ao despojamento cisterciano, embora
ma à de certos ocidentais, seus “irmãos na Fé” os dois sejam contemporâneos e conterrâneos. Mais
Inversamente, mesmo que uma certa forma de simplesmente, as diferenças podem ser funcionais:
unidade ou solidariedade possa ser postulada a uma igreja barroca de Ouro Preto apresentará uma
partir de uma mesma temática (e de um mesmo mo­ iconografia distinta se for dedicada a Santa Maria
do de apresentá-la), isto não significa que temas ou a um santo padroeiro; à Virgem padroeira de uma

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confraria da “elite” (Carmo) ou à da população es­ Lembramos logo as atuais dificuldades que
crava (do Rosário). O cromo da Santa Ceia expos­ temos em correlacionar arte rupestre, tecnologia,
to numa copa brasileira tradicional não teria seu sistemas de ocupação do espaço, rituais etc.. So­
lugar no quarto de dormir... Não se pode excluir a bretudo, responderemos que nossos conceitos
possibilidade de tais distinções entre os grafismos históricos oferecem exemplos semelhantes: uma
deixados por representantes de clãs, classes de ida­ mesma população pode ser definida como (de re­
de, sexo etc., em oportunidades diferentes. Obvia­ ligião) católica e (de economia) mercantilista. Ou-
mente, não devemos esquecer a deriva resultante trossim, nem todos os cristãos são ou foram mer-
das modas, que se acentua ao longo dos séculos. cantilistas e nem todos os mercantilistas foram ca­
Todas estas categorias - que compartilham de uma tólicos. Qualquer pessoa de hoje pertence a dife­
mesma tradição - podem ser expressas pelo que cha­ rentes níveis de solidariedade (família, clube, Igre­
mamos de “estilo” ja, sistema econômico, partido, estado, classe ou
A relação entre as diferentes tradições, contras­ casta...) e pode ser estudada dentro de um sistema
tadas e, supostamente, de alguma forma conflitantes, tipológico específico de cada um destes aspectos.
pode ser analisada a partir da maneira como as su­ Seria muito preocupante se a Arqueologia fosse
cessivas gerações tratam as obras dos seus ante­ mais totalitária que as outras disciplinas, queren­
cessores (Prous & Seda). Encontramos, na arte ru­ do aprisionar uma realidade múltipla dentro de uma
pestre do Peruaçu, atitudes como o respeito das fi­ única gaveta devidamente etiquetada.
guras antigas (grafismos de estilo Caboclo não re­
cobrem as pinturas anteriores), a neutralidade (en­
tre figuras do estilo Januária, que se sobrepõem Conclusão
umas às outras) o de negação (as obras da tradição
Desenhos são sempre realizadas depois de se borrar Como escreveram Consens e Seda (1990) a
os grafismos preexistentes). A recuperação e a reati­ respeito das unidades descritivas propostas para a
vação com figuras antigas reutilizadas em novo arte rupestre brasileira, se os arqueólogos percebe­
contexto, ou ainda simplesmente retocadas, como ram diferenças, estas devem existir. Não devemos
as figuras de estilo “caboclo” alongadas, retocadas considerar as classificações que delas resultam ilu­
de preto no Peruaçu e os animais cujos olhos eram sórias, conquanto sejam bem definidas. Dar um
periodicamente repintados no deserto australiano. nome (simples etiqueta) às categorias que criamos
O mesmo vemos na História da Arte ocidental; as é legítimo e facilita as comparações entre realidades
obras “clássicas” ou comemorativas da grandeza de que percebemos por serem contrastantes entre si.
uma elite são preservadas pelos sucessores; pelo De fato, vimos que as diferenças, temáticas ou
contrário, protestantes ou revolucionários quebram estilísticas, refletem realidades, só que de diversas
as estátuas de santos e de reis, católicos e hebreus ordens. Algumas delas podem ser assimiladas ao
destróem os “ídolos”; missionários “recuperam” que chamamos hoje de “etnicidade”, conquanto sai­
imagens pagãs marcando-as com uma cruz etc.. bamos que este termo faz sentido essencialmente
para nós. Os moradores de uma Província da atual
A possibilidade de utilizarem-se várias França, no século XIV, não se sentiam nem política
classificações para estudar os vestígios nem “étnicamente” franceses, nem ingleses, nem,
deixados por uma mesma população talvez, gascões no sentido que damos hoje a estas
palavras; consideravam-se súditos do Rei de Fran­
Uma questão por vezes colocada é de como ça ou do Senhor de Pau, participando de uma reli­
se justificar a criação de “tradições” rupestres, que gião quase universal, de uma comunidade local (al­
designariam pessoas que, por outro lado, já esta- deia ou pequena cidade), falando um dos dialetos
riam classificadas dentro de uma tradição tecno­ regionais etc.. Em função disto, as próprias noções
lógica (ou “sub-tradição” ou “fase”). Por exemplo: de etnicidade e até a de cultura estão sendo discuti­
não seria absurdo colocar duas etiquetas para uma das - por serem etnocêntricas e marcadas por um
população que fosse ao mesmo tempo produtora período histórico específico - pelos antropólogos e
dos artefatos “Serranópolis'’ e autora das pinturas filósofos construtivistas “pós-modemos” Da mes­
“São Francisco”? Não seria melhor unificar as de­ ma maneira, não devemos acreditar que, por com­
nominações? partilhar - talvez - a mesma mitologia, os autores

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de registros atribuídos a uma tradição rupestre de­ “consumidores” (valor típico do século XX), como
veriam ter falado a mesma língua ou ter praticado os Karajás manifestam as suas diferenças de gêne­
os mesmos padrões de decoração cerâmica. ro; outras populações valorizam suas categorias de
Outras destas diferenças correspondem ao que estamento, clã etc..
identificamos como rupturas cronológicas; isto não O arqueólogo deve, portanto, evitar três peri­
significa que os que as viveram consideraram-nas gos. O primeiro é o de multiplicar categorias clas-
como tais. Por exemplo, mesmo que percebessem sificatórias, por vezes pouco significativas, dupli­
a importância das modificações políticas e religio­ cando até as já existentes (perigo muito real neste
sas que presenciavam, a maioria dos habitantes da momento da Arqueologia brasileira). O segundo,
Gália no século V não estavam sabendo que pas­ é “acreditar” nas categorias e etiquetas definidas
savam da Antigüidade para a Idade Média (Prous pelos pesquisadores, como se fossem artigos de
1967). Isto não invalida estes conceitos nossos, Fé, recusando-se a entender que se trata apenas de
conquanto sejam operantes do nosso ponto de vista. instrumentos a serem utilizados apenas enquanto
O importante é que saibamos que semelhan­ forem úteis, devendo ser abandonados ou “refor­
ças e diferenças podem refletir comunidades (ou mados” quando necessário. Uma fossilização das
expressar diferenças) de diversos tipos: política (tri­ classificações atuais seria, portanto, prejudicial à
bo, clã... ainda termos ocidentais aplicados a socie­ dinâmica da pesquisa. O terceiro perigo, talvez o
dades para as quais não são sempre adequadas!), maior nesses tempos de “pós-modemismo”, seria
de gênero, de idade, de cunho religioso, de função o desencanto, a renúncia diante da impossibilida­
(religiosa, mágica, lúdica...) que cabe ao arqueólo­ de de conhecer as categorias culturais do passado.
go tentar esclarecer. Para tanto, ele não pode se Isto levaria seja a um ceticismo estéril em relação ao
limitar a descrever os temas, mas deve procurar tam­ discurso arqueológico, seja à aceitação de que este
bém tudo o que pode expressar os viveres, os sabe­ não passaria de uma verborragia subjetiva e sem
res e a sensibilidade das populações extintas. relação com a construção de um conhecimento real
O fato de diversificarmos as observações não sobre os nossos antecessores.
significa nem que conseguiremos sempre perceber Nós, que pretendemos participar da elabora­
o que seria o mais significativo para os homens do ção de alguma forma de conhecimento, não dei­
passado, nem que nossas classificações sequer le­ xaremos de manipular “unidades estilísticas” cria­
varão em conta o que era considerado essencial das pelos arqueólogos (arqueofatos) para as ne­
para os homens do passado. Com efeito, as cate­ cessidades da pesquisa de nossa época e que
gorias “estilísticas” que criamos privilegiam sem­ expressam a visão que nós temos dos vestígios.
pre alguns critérios em relação a outros, e somos Nossas “unidades descritivas” podem, portanto,
nós que os escolhemos. Apenas podemos esperar mudar, sem que a realidade que refletem seja ilu­
que haja superposição entre nossas categorias e sória. Desta forma, conciliamos a consciência que
algumas das que eram vividas então. temos da nossa subjetividade com nossa exigên­
Mesmo assim, qualquer tipologia é válida, cia como pesquisador de que não estejamos elabo­
conquanto seja adequada para tratar a problemá­ rando um discurso vazio sobre nós mesmos, a partir
tica colocada pelo pesquisador; não se trata mais do pretexto de um “Outro” inventado.
de conseguir a adequatio rei et intellectu, mas uma
adequatio instrumentis et quaestonis. Nosso pon­
to de vista não é ilusório, já que nos permite refletir Agradecimentos
sobre os nossos valores, contrastando-os com ou­
tras realidades. Devemos ser cientes que este pon­ Agradecemos Loredana Ribeiro e A. Baeta pe­
to de vista não é o único; mesmo assim, pode pro­ la leitura do manuscrito e por seus comentários;
duzir observações significativas. Rosângela de Oliveira, pela revisão do texto em
Sem o perceber, expressamos através da “arte” português e Fernando Costa, pela revisão do Sum-
a nossa realidade de membros de uma sociedade de mary.

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