A situação do artista
Por outro lado, o artista e/ou o autor apresentam-se, na argumentação de Almada, como
pessoas humanas vulgares, "gente de todos os dias, gente de passar todas as idades" 3. O
artista é o indivíduo que usufrui a estabilidade pessoal e a harmonia moral, ideia herdada da
estética socrática — cuja dominante incide sobre o aspecto ético-social do artista, fundamento
que perdurou nas estéticas sequentes, privilegiadoras da intervenção do artista, responsável
moral, em coerência com a responsabilidade cívica na colectividade.
A argumentação normativa de Almada incidiu num plano que apresenta coincidência com
enunciação do pintor russo, designadamente, no domínio estrito do artista, perante si, no
respeito pela sua interioridade exteriorizada na Arte; ao sublinhar que as exigências do artista
consigo mesmo têm sentido porque ele pretende criar obras verdadeiras, cuja unidade não se
questiona, antes se presentifica na sua própria natureza de obra. O artista encontra na obra, a
confirmação de si, em estado superior de personalização, podendo preocupar-se
"essencialmente em libertar também o mundo das suas próprias entranhas atávicas, as quais
são afinal o único que faz ensombrar a claridade e a luz."6 Como se pode deduzir, pelo acto de
criação, no domínio estético e no domínio do esotérico, a personalidade do artista — do
pintor, enfim do autor —, é transformada, configurada em objecto-presença — e substância —
da sua própria criação, porque apenas nesses moldes realizará a verdadeira criação,
transposição da unidade entre si e a obra, através do acto genésico: "O pintor tem de apurar-
se a si mesmo; fazer de si próprio a obra-prima da criação, o homem."7
Por contraponto às directrizes utopistas que expôs, Almada constatou a situação efectiva,
verificando que os artistas, cientes da sua responsabilidade no contexto da colectividade,
dificilmente viam reconhecido o valor de suas acções ou obras, pois não existia a consciência
pública da necessidade de Arte. Apesar da desconsideração que lhes era votada, os artistas
mantinham os seus compromissos, de ordem ética e societária, com a colectividade, convicção
que determinava os termos de relacionamento, subjacentes na Arte, impregnada de valores
antropológicos.8
A Arte do artista, porque de génese pessoal, fruto do seu conhecimento, preserva a unidade
que à Arte compete, por natureza específica. No criador de Arte, o caso pessoal deixa de ser
A situação do artista como independente que se impõe, traduz a posição de Almada acerca da
formação artística — tema fundamental e integrador de toda a sua teorização tão própria. O
artista não é apenas um profissional que domina as técnicas e os materiais, é esse "indivíduo
enciclopédico" que conhece o mundo e a humanidade.13 Como profissional, é o indivíduo que
mais tardiamente chega à sua mestria, demorando a sua personalidade mais tempo a formar,
do que nos outros indivíduos. Donde se infere que, a formação do artista não radica,
exclusivamente, na área profissional artística: a sua formação é global e abrange a sua unidade
pessoal. Somente, se realizada nesses termos, promoverá a criação, possuindo genuína
condição de ser artista, recusando qualquer educação restritiva — ensino formal — ou
impositiva, geradora de cisões epistemológicas, prejudiciais ao conhecimento adequado aos
artistas: "é inadmissível a existência ou a formação de uma escola oficial para artistas."14
Numa das suas narrativas autobiográficas, Almada acreditava-se desde cedo "artista nato" e
foi desenganado quando entrou curioso no reino do ensino artístico, "já maravilhado por
aquela porta que dizia Arte, quando vi os balcões invisíveis dos senhores que tiveram o
15Almada parecia ter em mente essa reflexão de Goethe em "L'Essai sur la peinture de Diderot" (1799)
quando este considerava que: "...l'homme n'est pas fait pour enseigner, mais pour vivre, il est fait pour
être actif et productif." Cf. Goethe, Écrits sur l'Art, p.190
16"Ultimatum Futurista às gerações portuguesas do século XX", Portugal Futurista, p.37.
17"Arte e Artistas", Textos de Intervenção, p.76
18"Modernismo", Textos de Intervenção, p.58. Ironicamente Almada considerava a Escola de Belas-Artes
um local que não se conciliava com o que ele considerava ser Arte: "conheci pouco a pouco toda essa
multidão que entrou na vida por aquela porta que tem Arte escrito em cima. Por último, eu julgava ter-me
já enganado de porta e ter metido pela do Comércio ou por qualquer, menos a da Arte. Porém não era eu
que me tinha enganado de porta, eram eles." Cf. "Modernismo", op. cit., p.58
19Orpheu 1915-1965, p.18
descaramento de entrar pela porta dos artistas; eu teria morrido nesse instante de decepção,
se a minha fé fosse susceptível de ser perturbada mais do que por um instante."20
Almada sabia que o ensino artístico tinha de ser aceite, política e pedagogicamente como um
caso especial que, como tal, exigia uma atenção, condições e investimento adequados: "Mas a
Arte é uma outra coisa diferente de tudo isto e inconfundível de espécie e acção."24
Nomeadamente, porque vigorava no ensino artístico, o mesmo tipo de pedagogias na
formação superior, dos outros e diferentes profissionais das artes: pintores, escultores,
arquitectos à semelhança dos engenheiros, médicos, advogados..., para os quais existia,
A educação do artista teria de ser uma "educação unânime"27, uma educação que atendesse à
vida na sua complexidade, gerada e desenvolvida pelo próprio artista, à semelhança do caso
pessoal do indivíduo humano que, apenas por si, sabe encontrar (adquirir profundamente) a
sua personalidade. A educação do artista devia ser uma auto-gnose. Nesse caso seria absurdo
acreditar que se pudesse ensinar a alguém, devendo "cada um aprender por si mesmo o que é
pintura"28.Exigia uma cumplicidade simbólica, entre o artista e a sua própria arte como
universo — como todo, entendida a educação como a "disciplina que cada um organiza" e
entre todas as disciplinas individuais, a Arte é a disciplina que ocupa o melhor lugar.29
3. A Educação do artista