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es literatura tzvetan todorov AS ESTRUTURAS NARRATIVAS ES ann 5, A NARRATIVA FANTASTICA ! ‘Alvare, a personagem principal do livro de Cazotte © Diabo Apaixonado, vive ha meses com um ser, do sexo feminino, que ele acredita ser um mau espirito: 0 diabo ou um de seus subordinados. © modo como apa- 1 receu esse ser indica claramente que se trata de um re- presentante do outro mundo; mas seu comportamento | tespecificamente humano (e mais ainda feminino), os ferimentos reais que recebe, parecem provar, 40 con- trdrio, que s¢ trata simplesmente de uma mulher, ¢ de ay oem Wa arama | 147 ‘uma mulher que ama, Quando Alvare Ihe pergunta de ‘onde cla vem, Biondetta responde: “Sou Silfide de ori- gem, e uma das mais considerdveis dentre elas..." E no entanto, existe as Silfides? “Eu nfo coneebia nada do que ouvia, continua Alvare. Mas que havia de conce- bivel em minha aventura? Tudo isso me sonho, dizia a mim mesmo; mas sera outra coisa a vida humana? Eu sonho de modo mais extraordinario do que 0s outros, eis tudo... Onde esté o possivel? Onde esta ‘0 impossivel? ” Assim, Alvare hesita, e pergunta a si mesmo (e 0 Ieitor com ele) se 0 que ihe esta acontecendo é verda- deiro, se 0 que o cerea & mesmo a realidade (e entdo as Sillides existem) ou se se trata simplesmente de uma ilusio que toma aqui a forma de um sonho, Mais tarde, vai para a cama com essa mesma mulher que salvez seja 0 diabo; ¢, atemorizado por essa idéia, pergunta de novo a si mesmo: “Terei dormido? Seria eu téo feliz que tudo néo tenha passado de um sonho?” Sua ‘mde pensaré da mesma forma: “Voce sonhou com essa fazenda ¢ todos os seus habitantes”. A ambiglidade se manterd até o fim da aventura: realidade ou sonho? verdade ou ilusio? ‘Somos assim conduzidos a0 Amago do fantistico. Num mundo que é bem 0 nosso, tal qual o conhecemos, sem diabos, sifides nem vampiros, produz-se um acon. tecimento que no pode ser explicado pelas leis deste ‘mundo familiar. Aquele que vive 0 acontecimento deve optar por uma das solugdes possiveis: ou se trata de uma ilusdo dos sentidos, um produto da imaginagio, e nesse ‘caso as leis do mundo continuam a ser 0 que sfo. Ou ‘entdo esse acontecimento se verificou realmente, é parte integrante da realidade; mas nesse caso ela é regida por Ieis desconhecidas para nés. Ou o diabo é um ser ima- ginério, uma ilusdo, ou entio existe realmente, como os outros seres vivos, 36 que 0 encontramos raramente. O fantéstico ocupa 0 tempo dessa incerteza; assim que ‘escolhemos uma ou outra resposta, saimos do fantéstico ara entrar num género vizinho, 0 estranho ou o ma- avilhoso, © fantéstico € a hesitagio experimentada or um ser que no conhece as leis naturais, diante de ‘um acontecimento aparentemente sobrenatural. 148 0 Diabo Apaixonado oferece matéria muito pobre para uma anélise mais avancada: a hesitagio, a duvida, 56 nos preocupam aqui por um instante. ‘Faremos pois apelo a outro livro, escrito uns vinte anos mais tarde € {que nos permitira colocar maior nimero de perguntas; Um livro que inaugura magistralmeme a épuca da nar- rativa fantistica: 0 Manuscrito Encontrado em Saragos- ssa de Jan Pctocki*. ‘Uma série de acontecimentos nos & primeiramente relatada, dos quais nenhum, tomado isoladamente, con- tradiz as leis da natureza tais como as admitimos; mas seu actimulo j traz problema. Alphonse van Worden, hher6i e narrador do livro, atravessa as montanhas da Sierra Moreaa, De repente, seu “zagal” Moschito de- saparece; algumas horas mais tarde desaparcce também seu empregado Lopez. Os habitantes da regido afirmam que cla € asiombrada pelos fantasmas de dois bandidos recentemente enforcados. Alphonse chega a um albergue abandonado e se dispde a dormir; mas, ao primeiro to- que da meic-noite, “uma bela negra seminua, seguran- do uma tocha em cada mio” entra no quarto € 0 con- vida a segui-la. Fla o leva até uma sala subterrinea conde o recebem duas jovens irmds, belas ¢ levemente vestidas. Eas Ihe oferecem comida ee bebida. Alphonse experimenta sensagdes estranhas ¢ uma divida nasce em seu espirito: “Eu ndo sabia mais se estava com mulhe- res ov com insidiosos deménios”, Elas the contam em Seguida sua vida: revelam ser suas primas; mas a0 pri- meiro canto do galo, a narrativa é interrompida; ¢ Al- phonse se lembra de que “como se sabe, os fantasmas hdo tém poder sendo da meia-noite até o primeiro canto do galo”. ‘Tudo isso, est claro, nfo sai das leis,da natureza que se conhecem, No méximo, pode-se dizer que sio acontecimertos estranhos, insdlitas coincidéncias. Mas © passo seguinte é decisivo: produz-se um acontecimen- to que a razZo nao pode explicar. Alphonse se recolhe 0 leito, as duas irmas o acompanham (ou talvez ele ‘apenas sonhe), mas uma coisa € certa: quando ele acor- a, no esti mais num leito, nfo esté mais numa sala subterrinea, “Vi o céu. Vi que estava ao ar livre. .. Estava deitado sob a forea de Los Hermanos. Os ca- (2) Jn Pook (7611815) — ebertor « arquelogs_ pola 149 ‘veres dos dois imfos de Zoto no estavam pendura- dos, encontravam-se 20 meu lado". Fis pois um pri- meico acontecimento sobrenatural: as duas belas moces transformaram-se em fétidos cadéveres. Entretanto, Alphonse ainda nio esta convencido da existéncia de forgas sobrenaturais, 0 que teria suprimido toda hesitagio (e teria acabado com 0 fantistico). Pro- cura um lugar onde passar a noite e chega & cabana de tum ceremita; encontra ai um possesso, Pa conta sua histria, que se parece estranhamente com a de Alphonse. Pascheco se abrigara uma noite no mes- mo albergue; descera a uma sala subterrinea © passara 4 noite num leito com as duas iemas; no dia se) acordara sob a forca, entre dois cadiveres. Essa si litude poe Alphonse de sobreaviso. Por isso, diz ele ‘mais tarde ao eremita que ndo acredita em fantasmas, ¢ da uma explicado natural as desgracas de Pascheco. Interpreta da mesma forma suas proprias.aventuras: “Eu néo duvidava de que minhas primas fossem mulhe- res de carne e osso, Disso me advertia nio sei que sen- timento, mais forte do que tudo 0 que me tinham dito sobre 0 poder dos deménios. Quanto a peca que me tinham pregado, de me por sob a forea, estava profun- damente indignado”. Os acontecimentos dos dias seguintes no conse- auem distipar as dividas de Alphonse. Ele procura com todas as suas forcas encontrar uma explicagio racional para os fatos estranhos que o cercam. Mas, mal a en- Contra, um novo incidente vem embaraihar a imagem que ele tinha do mundo, Isso se repete tantas vezes que, por fim, cle confessa: “Quase cheguei a acreditar que de- ménios, para me enganar, tinham animado os corpos dos dois enforcados". ““Quase cheguei a acreditat™: eis a férmula que melhor resume 0 espirito do fantastico. A £6 absoluta, como a ineredulidade total, nos levam para fora do fan Uistieo; é @ hesitagdo que the da vida, Quem hesita nessa historia? Vé-se imediatamente: Alphonse, isto €, o herdi, a personagem. £ ele que, 20 longo de toda a intriga, terd de escolher entre as duas solugdes possiveis. Mas se 0 leitor fosse prevenido de antemfo acerca da verdade, se ele soubesse em que ter- eno pisa, a situacdo seria bem diferente. O fantético implica pois uma integra¢a0 do leitor no mundo das 150 personagens; define-se pela percep¢io ambigua que 0 feitor tem dos acontecimentos narrados; esse leitor se identifica com a personage. £ importante precisar desde logo que, assim falando, temos em vista no tal fou tal leitor particular ¢ real, mas uma “fungao” de leitor, implicita no texio (da mesma forma que est im- plicita a de seu narrador). A percepgio desse leitor Implicto esté inscrita no texto com a mesma preciso ‘que 0s movimentos das personagens. ‘Quando 0 leitor sai do mundo das personagens © volta a seu lugar natural (0 de leitor), um novo perigo fameaca o fantistico. Ele se situa ao nivel da interpre~ tagdo do texto. Existem narrativas que contém elemen- tos sobrenaturais, mas onde o leitor nunca se interroga acerea de sua natureza, pois sabe que no deve tomé-los ‘0 pé da letra. Se os animais falam, nenhuma divida nos assalta o espitito: sabemos que as palavras do texto devem ser tomadas num outro sentido, que se chama ‘legérico. A situagao inversa se observa em poesia. O texto poético poderia set freqiientemente julgado fan- tistico, se se pedisse A poesia que ela fosse representa~ tiva, Mas a questéo nfo se coloca: se se diz, por exem- plo, que 0 “eu poético” voa nos ares, iss0 no passa de uma frase que se deve tomar como tal, sem tentar ir além das palavras. Para se manter, 0 fantéstico im- plica pois nio s6 a existéncia de um acontecimento {ranho, que provoca uma hesitacio no leitor € no her6i, ‘mas também um certo modo de ler, que se pode definir negativamente: ele nfo deve ser nem poético nem ale~ gotico, Se voltarmos ao Manuserito, veremos que essa fexigéncia também é ali cumprida: por um lado, nio po- ‘demos dar imediatamente uma interpretacio alegorica 4208 acontecimentos sobrenaturais evocados; por outro, esses acontecimentos esto bem presentes, devemnos ima- fginé-los, e nao considerar as palavras que os designam ‘como apenas palavras, Estamos agora em estado de precisar e de comple- mentar nossa definicgdo do fantéstico. Este exige que trés condigdes sejam preenchidas. Primeiro, € preciso que o texto obrigue o leitor a considerar 0 mundo das ersonagens como um mundo de pessoas vivas © a he- sitar entre uma explicagio natural e uma explicagao so- brenatural dos acontecimentos evocados. Em seguida, essa hesitagao deve ser igualmente sentida por uma 151 ‘personagem; desse modo, papel do leitor é, por assim dizer, confisdo a uma personagem e ao mesmo tempa 4 hesitaco se acha representada e se torna um dos te- ‘mas da obra; no caso de uma leitura ingéaua, 0 leitor real se identifica com a personagem. Enfim, € impor- tante que o leitor adote uma certa atitude com relagio ao texto: ele recusaré tanto a interpretacdo alegériea quanto a interpretago “poética”. © género fantastico € pois definido essencialmente por categorias que dizem Tespelto &s visoes na narrativa; e, em parte, por seus temas, © Manuscrito Encontrado em Saragossa nos for- nece um exemplo de hesitagdo entre 0 real c 0 ilusério: Petguntavamo-nos se 0 que viamos nio era tapeacto, erro de percepeio. Por outras palavras, duvidavamos da interpretagao a dar a acontecimentos perceptives. Existe uma outra variedade do fantéstico onde a hesic taco se situa entre 0 real e o imaginério. No primeito as0, duvidava-se nao de que os acontecimentos tivessem sucedido, mas que nossa percepedo tenha sido exata, No segundo, perguntdvamo-nos se 0 que acreditavamos ‘er nao era de fato um fruto da imaginagao. “Diseirno com dificuldade © que vejo com os olhos da realidade € 0 que vejo com minha imaginagao”, diz uma persona. gem de Achim von Arnim. Esse “erro” pode acontecer Por varias razées: a loucura é uma das mais freqiientes, Assim, na Princesa Brambilla de Hoffmann. Aconteci. ‘mentos estranhos e incompreensiveis sobrevém na vida do pobre ator Giglio Fava durante o carnaval de Roma, Ele acredita tornar-se principe, apaixonar-se por uma Princesa e viver aventuras incriveis. Ora, a maior parte dos que o cercam the asseguram que nada disso € ver- dadeiro, mas que ele, Giglio, ficou louco. Eo que pre tende o signor Pasquale: “Signor Giglio, sei o que vos aconteceu; Roma inteira o sabe, fostes forcado a deixar © teatro porque vosso cérebro se desarranjou...” Por vezes, 0 proprio Giglio duvida de sua razio: “Ele es. tava mesmo prestes a pensar que o signor Pasquale © mestre Bescapi tinham tido razdo em acredité-lo um Pouco aloprado”. Assim Giglio (eo leitor implicito) 6 mantido na diivida, ignorando se 0 que o cerca é ou io feito de sua imaginagao, ‘A esse proceso simples © muito freqiiente, pode- mos opor um outro que parece ser muito mais rato, 152 onde a loucura é novamente utilizada — mas de ma- neira diferente — para criar a ambiglidade necesséria. Estamos pensando em Aurélia, de Nerval. Esse livro faz, como se sabe, a narrativa das vis6es que teve uma petsonagem durante um periodo de loucura, A narra- tiva é conduzida na primeira pessoa; mas 0 eu recobre aparentemente duas pessoas distintas: a da personagem que percebe mundos desconhecidos (esta vive no pas- sado) e a do narrador que transcreve as impressoes da primeira (este vive no presente). A primeira vista, 0 fantéstico néo existe em Para. a personagem, que no considera suas visoes como devidas a loucura, mas ‘como uma imagem mais Iicida do mundo (ele esté pois ‘19 maravilhoso); nem pelo narrador, que sabe que elas se devem & loucura ou 20 sonho e nao a realidade (de seu ponto de vista, a narrativa se liga simplesmente a0 estranho). Mas 0 texto no funciona assim; Nerval re- cria a ambigiidade num outro nivel, onde nao a espe- ravamos; ¢ Awrélia continua sendo’uma hist6ria fan- tistica Primeiramente, a personagem nio esté completa- ‘mente decidida quanto interpretagio que deve dar aos fatos: acredita por vezes, ela também, em sua loucura ‘mas nunca vai até a certeza. “Compreendi, ao me ver entre 0 alienados, que até entao tudo nao tinha passado de ilusio. Entretanto, as promessas que eu atribuia & ddeusa fsis pareciam realizar-se por uma série de provas pelas quais eu estava destinado a passar.” Ao mesmo tempo, 0 narrador néo esta certo de que tudo 0 que a personagem viveu se deve a ilusdo; insiste mesmo sobre 4 verdade de certos fatos narrados: “Eu me informava fora, ninguém tinha ouvido nada. E no entanto estou ainda certo de que o grito era real e que tinha ressoado 10 ar dos vivos. ..” ‘A ambigiiidade depende também do emprego de dois processos verbais que penetram o texto todo, Ner- val os utiliza habitualmente juntos; so eles: o imper- feito ¢ a modalizagio, Esta dltima consiste, lembremo- nos, em usar certas locugées introdutivas que, sem mudar o sentido da frase, modificam a relagio entre 0 sujeito da enunciagéo ¢ 0 enunciado. Por exemplo, as dduas frases “Chove 1é fora” e “Talvez chova lé fora” se referem ao mesmo fato; mas a segunda indica também ‘a incerteza em que se encontra o sujeito que fala, quanto 153 a verdade da frase que enuncia. O imperfeito tem um sentido semelhante: se eu digo “Eu amava Aurélia”, nfo preciso se ainda a amo agora ou nao; a continuidade € possivel mas em regra geral pouco provavel. Ora, todo 0 texto de Aurélia est impregnado des- ses dois processos, o imperfeito e as locueses modali- zantes. Poderiamos citar o texto inteiro em apoio a esta afirmagio. Eis alguns exemplos tomados 20 acaso: “Parecia-me que estava entrando numa moradia conhe- ida... Uma velha empregada que eu chamava de Mar- guerite © que me parecia conhecida desde a inffincia. E eu tinha a impressdo de que a alma de meu avé estava nesse péssaro... Acredite’ cair num abismo que atra- vessava 0 globo. Sentia-me levado sem sofrimento por ‘uma correnteza de metal derretido. .. Tive a sensaciao de que essas correntezas eram composias de almas vivas, fem estado molecular... Tornava-se claro para mim ‘que 0s avs tomavam a forma de certos animais para os visitar na terra...” ete. (sou eu quem sublinha). Se esas locugdes estivessem ausentes, estarfamos merguiha- dos no mundo do maravilhoso, sem nenhuma referéncia, A realidade cotidiana, habitual; gracas a clas, somos ‘mantidos ao mesmo tempo nos dois mundos. O imper- feito, além disso, introduz uma distancia entre a perso- nnagem e 0 narrador, de modo que néo conhecemos posigdo deste dltimo, or uma série de incisos, o narrador toma também dlistdncia com relacio a0s outros homens, com relaclo ‘a0 “homem normal”, mais exatamente, com relagio a0 emprego corrente de certas palavras (em certo sentido, 4 linguagem ¢ o tema principal de Aurélia). “Recupe- ando aquilo que os homens chamam de razio”, escreve ele em alguma parte. E noutra: “Mas parece que era ‘uma iluséo de minha vista”. Ou ainda: “Minhas apbes, aparentemente insensatas, estavam submetidas ao que se chama de ilusto, segundo a razio humana”. Admiremos esta frase: as ages so “insensatas” (referéncia 20 na- tural) ; so submetidas. .. a ilusao (referéncia a0 natu- ral), ou melhor, “aquilo que se chama de ilusio” (refe- réncia ao sobrenatural); além disso, o imperfeito signi- fica que nao € 0 narrador presente que assim pensa, ‘mas a personagem de outrora. Ou ainda esta frase, re sumo de toda a ambigiidade de Aurélia: “Uma série de visdes insensatas, talvez”. meen 4 © narrador vai mais longe: retomard abertamente a tese da personagem, segundo a qual loucura © sonho so apenas uma razio superior. is 0 que dizia a per- sonagem: “As narrativas dos que me tinham visto assim ‘me causavam ama espécie de irritagdo, quando eu via {que atribuiam a aberracao do espitito os atos ou as pa- lavras coincidentes com as diversas fases daquilo que cconstituia para mim uma série de acontecimentos.l6gi- ‘e0s" (ao que responde a frase de Edgar Poe: “A ciéncia ainda nao nos disse se a loucura é ou nao é o sublime da inteligencia”). E ainda: “Com aquela idéia que eu ti- tha de que o sonho abre ao homem uma comunicacéo com o mundo dos espiritos, eu esperava....” Ora, cis como fala o narrador: “Vou tentar..transcrever as it presses de uma longa doenga que se passou inteiramen- {e nos mistérics de meu espirito; — € néo sei por que uso esse terme de doenga, pois nunca, no que me con- ccerne, me senti em melhor satide. Por vezes, acreditava, ver redobradas minba forga ¢ minha atividade; a imagi- ago me trazia delicias infinitas", Ou ainda: “Seja ‘como for, acredito que a imaginagio humana nada in- vventou que no seja verdadeiro, nesse mundo e nos ou- ‘ros, e eu nao podia duvidar do que tinha visto tao dis- tintamente” ‘Nesses dois trechos, 0 narrador parece declarar abertamente que aquilo que viu durante sua pretensa loucura € apenas uma parte da realidade; que nunca es- teve doente, Mas, se cada um desses trechos comeca no presente, a altima oragio esté novamente no imper- feito; ela reintroduz a ambigiiidade na percepcao do leitor. © exemplo inverso se encontra nas sitimas pé- sginas de Auréia: “Eu podia julgar de modo mais sadio ‘0 mundo das ilusées em que tinha vivido durante algum tempo. Entretanto, sinto-me feliz com as convicgdes ‘que adquiri. .." A primeira oragio parece remeter tudo © que precede 19 mundo da loucura; mas, se assim fosse, por que essa felicidade das convievdes adquiridas? ‘Aurélia constitu pois um exemplo original © per- feito da ambiglidade fantéstica. Essa ambigtiidade gira certamente em torno da loucura; mas enquanto, em Hoffmann, perguntavamo-nos se personagem estava ou nfo louca, aqui se sabe de antemao que esse com- portamento se chama loucura; o que se quer saber (€ & sobre este ponto que existe hesitaco) é se a loucura 155 io 6, na verdade, uma razio superior. No primeiro caso, a hesitagio concerne a percepedo, no segundo, & linguagem; com Hoffmann, hesitamos acerea do nome ‘a dar a certos acontecimentos, com Nerval, acerea do sentido das palavras Voltemos agora as formas mais comuns do fan- Listico © &s condigées necessérias para sua existéncis fantastico, como vimos, dura apenas o tempo de um hesitagdo: hesitacdo comum ao leitor e & personagem, ‘que devem decidir se aquilo que percebem se deve ou ‘ao & “realidade”, tal qual ela existe para a opinigo co- ‘mum. No fim da histéria, o leitor, sendo a personagem, toma entrctanto uma decisio, opia por uma ou outra solugio, e assim fazendo sai do fantéstico (salvo em ra- 0s casos como The Turn of the Screw de Henry Ja- mes). Se ele decide que as leis da realidade permane- cem intatas ¢ permitem explicar o fendmeno descrito, dizemos que a obra pertence ao género do estranho. Se, a0 contrario, ele decide que se deve admitir novas leis da natureza, pelas quais 0 fendmeno pode set ex- Plicado, entramos no género do maravilhoso. Examinemos um pouco mais de perto esses dois vizinhos do fantéstico, o estranho ¢ 0 maravilhoso, Em cada um desses casos, um subgénero transitério se co- loca entre 0 fantéstico e 0 estranho, por um lado, 0 {antéstico ¢ © maravilhoso, por outro. Esses subgéncros compreendem obras que mantém por longo tempo a he- sitagao fantéstica mas terminam quer no maravilhoso, quer no estranho. Poderiamos figurar essas subdivisdes pelo diagrama seguinte: cstranho) fantistico- | fantistico- puro, estranho | maravilhoso cori | (© fantéstico puro seria representado, nesse dese- ho, pela linha mediana, a que separa o fantéstico-cs- tranho do fantéstico-maravilhoso; essa linha corresponde bem a natureza do fantéstco, fronteira entre dois do- iinios virinhos Comecemos pelo fantéstico-estranho. Os aconte- ‘cimentos que parecem sobrenaturais ao longo da hist6ria Fecebem por fim uma explicacéo racional. Se esses acontecimentos conduzem a personagem eo Icitor a (2) A, tadugto, beara, edtade ela, Ediora Cin Dra tire, emo Tis ded Outs Vols al Pease Ose 156 acreditar na interven¢o do sobrenatural, é que tém um caréter ins6lito, estranho. A critica desereveu (© fre~ alientemente condenow) essa variedade sob © nome de “Sobrenatural explicado” Povlemos tomar como exemplo do fantistico estta~ rnho o mesmo Manuscrito Encontrado em Saragossa, To- dos os milagres sio racionalmente explicados no fim da narrativa. Alphonse encontra, numa gruta, o eremita {que 0 acolhera no comeco € que € 0 grande xeque dos Gomelez em pessoa. Este Ihe revela o mecanismo de todos os milagres: “Don Emanuel de Sa, governador de Cédiz, € um dos iniciados, Ele te havia enviado Lopez © Moschito que te abandonaram na fonte de Alcorno- que... Com a ajuda de uma bebida soporifica, fizeram om que acordasses no dia seguinte sob a forca dos ir- mios Zoto. De la, vieste & minha ermida onde encon- iraste 0 terrivel possesso Pascheco que é, na realidade, uum bailarino bs ‘No dia seguinte, submeteram-te ‘2 uma prova mais cruel: a falsa inquisi¢ao que te amea- ou de horriveis torturas mas nao conseguit abalar tua Coragem” etc "A davida é mantida aqui entre dois pélos, dos quis um € a existéricia do sobrenatural, outro, uma série de explicagdes racionais. Enumeremos os tipos de expli- cago que tentam reduzir o sobrenatural: h4 primeira- mente © acaso, as coincidéncias — pois no mundo so- brenatural ndo hd acaso, reina af o que podemos chamar de “pandeterminismo” (esta seré a explicagio do so- brenatural em Inés de las Sierras de Nodier) ; vém em seguida 0 sonho (solugao proposta em O Diabo Apaixo- nado); a influéncia das drogas (0s sonhos de Alphonse durante a primeira noite); a ilusio dos sentidos (vere- mos mais tarde um exemplo disso em A Morta Apatxo- nada de Gautier); enfim a loucura, como na Princesa Brambilla, Hi, evidentemente. dois grupos de “des- culpas”, que correspondem as oposigdes real-imaginario e realilus6rio. No primeiro caso, nada de sobrenatural aconteceu, pois nada aconteceu: o que se acreditava ver fra apenas 0 fruto de uma imaginaco-destegrada (s0- ho, loucura, droga). No segundo, os acontecimentos se produziram realmente, mas explicam-se de modo ra- ional (acasos, tapeagies, ilusdes) ‘Ao lado desses 4s0s, onde nos encontramos estranho sem querer, por nécessidade de explicar 0 fan- 1s7 ‘dstico, existe também o estranho puro. Nas obras que ertencem a esse género, relatam-se acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leis da razio, mas que sio, de uma forma ou de outra, incriveis, ex: traordinérios, chocantes, singulares, inquictantes, ins6- litos. A definiglo é como se vé, larga ¢ imprecisa, mas tal é também 0 género que descreve: 0 estranho nio tum género bem delimitado como o fantéstico; mais exa- tamente, 36 € limitado de um lado, 0 do fantéstico; do outro, dissolve-se no campo geral da literatura. (0s'ro- mances de Dostoivski, por exemplo, podem ser inclui- dos no estranho).. Eis uma novela de Edgar Poe que ilustra o estranho proximo do fantistico: A Queda da Case de Usher. O narrador chega uma noite a essa casa, chamado por seu amigo Roderick Usher; este Ihe pede que fique com ele durante algum tempo. Roderick & um ser hipersensivel, nervoso, que adora sta irma, gravemente doente no mo- mento, Esta morre alguns dias mais tarde, e os dois ‘amigos, ao invés de a enterrar, depositam seu corpo tum dos subterrineos da casa. Alguns dias se passam; numa noite de tempestade, os dois homens se encontram_ ftum cémodo eo narrador 1 em voz alta uma antiga histéria de cavalaria, Os sons descritos na erénica pa- recem fazer eco aos ruidos,que se ouvem na casa. Por fim, Roderick Usher se levanta e diz, com voz imperceptiyel: “Nés a sepultamos viva", Com efeito, 4 porta se abre, a irma aparece na soleira. O irmao ¢ 4 imi se langam nos bracos um do outro ¢ eaem mor- ‘@s. O narrador foge da casa exatamente a tempo de a desmoronar-se no lago vizinho. eestranho tem aqui duas fontes. A primeira: 0 aimero de coincidéncias (tantas quanto muma historia de sobrenatural explicado). Assim poderiam parecer sobrenaturais a ressurreigdo da irma ¢ a queda da casa depois da morte de seus habitantes; mas Pce nao deixou de explicar racionalmente um ¢ outro scontecimento, Assim, diz ele da casa: ““Talvez o olho de um observe dor minucioso descobrisse uma rachadura quase imper- ceptivel, que partindo do teto da fachada, abria caminho em ziguezague através da parede e ia perder-se nas aguas funestas do lago”. E de Lady Madeline: “Crises fregiientes, embora passageiras, de cardter quase cat léptico, cram os diagnésticos muito singuleres". A ex- 158 plicagio sobrenatural é portanto apenas sugerida, ¢ no € necessério accité-la. "A outra série de elementos que provocam a im- pressio de estranheza nfo esté ligada ao fantistico mas to que se poderia chamar de “experiéncia dos limites”, feque caracteriza 0 conjunto da obra de Poe. Baudelaire jéeserevia a seu respeito: “Nenhum homem contou com Wiaior magia as excectes da vida humana ¢ da natu: tem" Em A Queda da Casa de Usher, & 0 estado extte- mamente doentio do irméo ¢ da irma que perturba > Ieitor. Em outras partes, serfio cenas de crucldade, 9 ozo no assassinato, que provocam omesmoeteito estra~ rho, Esse sentimento parte pois dos temas evocados, ‘0s quais se ligam a tabus mais ou menos, antigos. ‘Passemos agora 20 outro lado da linha medians que chamamos de fantistica. Estamos no fantéstico- SMaravilhoso, pot outras palavras, na classe de narra- tivas que se apresentam como fantésticas ¢ que termi- nam no sobrenatural, Sio essas as narrativas mais proximas do fantistico puro, pois este, pelo proprio Tato de ndo fer sido explicado, racionalizado, nos suger? @ existencia do sobrenatural. O limite entre os dois ‘er portanto incerto; entretanto, a presenea ou a ausén- tia de certos pormenores mos permitiré sempre decidir. ‘A Morta Apaixonada de Théopkile Gautier pode servir-nos de exemplo. E a histéria de um monge que, no dia de sua ordenacio, apaixona-se pela cortes® Clarimonde. Depois de alguns encontros fugidios, Ro- muald (€ 0 nome do monge) assiste & morte de Clari- monde, Desde esse dia, ela comesa a aparecer em seus sonhos. Bsses sonhos tm alids uma estranha proprie- Gade: a0 invés de se formar a partir das impressses Go dia, ‘constituem uma narrativa continua. Nesses so ‘thos, Remuald no vive mais a existéncia austera de um monge, mas vive em Veneza, no fausto de continuas festas. E, a0 mesmo tempo, ele percebe que Clarimonde se mantém viva gragas a0 sangue que vem sugar do- rante a noite. ‘Até aqui, todos os acontecimentos podem ter uma explicagio racional. © sonho justifica grande parte eles (“Oueira Deus que seja um sonho!”, exclama Ro- ‘muald, assemelhando-se nisso a Alvare no Diabo Apai- ‘xonado); as ilusGes dos sentidos, outro tanto. Assim: ‘Cima noite, passeando nas aléias orladas de buxo de 159 amen jardiazisho, parecevime ver através dos arbuxios | ‘uma forma de mulher"; “Um instante acreditei mesmo ter visto mexer-se seu pé....”; “Nao sei sc isso era uma ‘lust ou um reflexo da lampada, mas dir-se-ia que 0 sangue recomecava a circular sob aquela opaca pali- dez" etc. Afinal, uma série de acontecimentos podem ser considerados como simplesmente estranhos, ou de- vidos 20 acaso; mas Romuald esté inclinado a ver neles a intervengio do deménio: “A estranheza da aventura, 4 beleza sobrenatural de Clarimonde, o brilho fosférico de seus olhos, a impressio escaldante de sua mio, a perturbagéo em que ela me lancara, a stbita mudanca que em mim se operara, tudo isso provava claramente a presenca do deménio, ¢ essa m&o acctinada talvez ro fosse mais que a luva com a qual ele tinha reco- berto sua garra”, Pode ser 0 diabo, com efeito, mas pode ser tam- bém s6 0 acaso. Permanecemos pois até aqui no fan- téstico puro. Produz-se nesse momento um aconteci- ‘mento que imp6e fantéstico-maravilhoso. Outro abade, Sérapion, fica sabendo (nfo se sabe como) da aventura de Romuald; ele leva este tiltimo até 0 cemi- tério onde repousa Clarimonde; desenterra 0 caixio, abre-o ¢ Clarimonde aparece téo fresca como no dia de sua morte, com uma gota de sangue nos labios. . ‘Tomado de piedosa célera, o abade Sérapion joga agua benta sobre 0 cadaver. “Mal a pobre Clarimonde foi tocada pelo santo orvalho e seu belo corpo cai em pocira; ndo era mais que uma mistura horrvelmente | informe de cinzas e oss0s meio caleinados”. Toda essa cena, © em particular a metamorfose do cadéver, nao pode ser explicada pelas leis da natureza tais quais sio Teconhecidas; estamos pois no fantéstico-maravilhoso. | Enxiste afinal um maravilhoso puro que, da mesma forma que 0 estranho, nfo tem limites nitidos: obras extremamente diversas contém elementos de maravilho- s0. No caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais io provocam qualquer reacdo particular nem nas per- | sonagens nem no Ieitor implicito. Nao é uma atitude | para com os acontecimentos contades que caracteriza © maravilhoso, mas a propria natureza desses aconteci- mentos. Os contos de fadas, a ficgio cientifica sao algumas das variedades do maravilhoso; mas eles jé nos levam longe do fantistico, 160 ‘Tentemos agora mudar de perspectiva. No lugar dda pergunta inicial “que ¢ o fantéstico?”, fagamos uma outta, "por que o fantéstico?” Uma vez identificada a festrutura do género, perguntemo-nos sobre sua fun¢ao. "Essa pergunta se subdivide lids, imediatamente, em virios problemas particulares. Pode primeiramente Feportar-se’ a0 fantéstico, isto & a uma certa reagdo Giante do sobrenatural; ou ainda a0 sobrenatural cle proprio. Nesse ltimo caso, podemos distinguir uma funcdo literaria e uma fungéo social do sobrenatural. Comecemos por esta ultima, "Tomemos uma série de temas que provocam fre- qitentemente a introdugo de elementos sobrenaturais: © incesto, © amor homosexual, o amor a varios, a necrofilia, a sensualidade excessiva... Temos a im- pressdo de ler uma lista de temas proibides, estabelec! Ga pela censura: cada um desses temas foi, de fato, freqientemente proibido, e pode ser ainda em nossos dias, Além disso, ao lado da censura institucionalizada, existe outra, mais sutil e também mais generalizada: a que reina na psique dos autores. A condenacio de tertos atos pela sociedade provoca uma condenacio ue ocorre no proprio individuo, proibindo-o de abor- dar certos temas tabus. © fantéstico ¢ um meio de ‘combate contra uma e outta censura: os desencadea- mentos sexuais serio mais bem aceitos por qualquer texpécie de censura se pudermos atribui-los ao diabo. ‘Outro grupo de temas que provocam freqiiente- ‘mente @ aparigao de elementos sobrenaturais se liga a0 mundo da psicose © a0 da droge. Ora, aquele que ppensa como uum psicético esté condenado pela sociedade Ge modo no menos severo que o criminoso que trans- ‘pride os tabus: ele é, assim como este éltimo, encerce- Fado, sua prisio se chama casa de saide. Nao € por ‘acaso também que a sociedade reprime o emprego de drogas e encarcera, ainda uma vez, aqueles que as tusem: as drogas suscitam uma maneira de pensar con- siderada culpada, Podemos concluir que, desse ponto de vista, a introdugéo de elementos sobrenaturais ¢ um meio de evitar a condenacao que a sociedade langa Sobre a loucura, A funggo do sobrenatural é subtrair 6 texto & agio da lei e, por esse meio, transgredi-ta, Passemos fungio literéria do sobrenatural. Existe uma coincidéncia curiosa entre os autores que 161 cultivam o sobrenatural © os que, na obra, se procupam particularmente com o desenvolvimento da asio, ou, se Se quiser, que contam histérias: so os mesmos. “Os ccontos de fadas nos dao a forma primeira e também a ‘ais estével, da narrativa. Ora, € nesses contos que en- contramos primeiramente acontecimentos sobrenaturais. ‘A Odisséia, 0 Decameron, Don Quixote possucm todos, em diferentes graus, elementos maravilhosos; si0, a0 ‘mesmo tempo, as maiores narrativas do passado, Na época moderna, nao ¢ diferente: so narradores, Balzac, Mérimée, Hugo, Flaubert, Maupassant, que escrevem contos fantésticos. N&o se pode afirmar que exista af uma relag&o de implicagdo, existem autores cujas nar- rativas ndo fazem apelo ao fantéstico; mas a coinci- déncia é entretanto por demais freqiiente para ser gra- tuita. Para tentar explicé-la, & preciso indagar sobre & propria. natureza da narrativa. Devemos comecar por construir uma imagem da narrativa minima, néo aquela {que se encontra habitualmente nos textos contempori- nneos, mas a daquele miicleo sem 0 qual néo se pode dizer que exista narrativa. A imagem ser4 a seguinte: toda narrativa é movimento entre dois equilibrios seme- Thantes mas no idénticos. No comeco da narrativa, haverd sempre uma situag&o estével, as personagens formam uma configuragdo que pode ser mével mas que conserva entretanto intatos certo niimero de tragos fun- damentais. Digamos, por exemplo, que uma crianca vive no seio de sua familia; la participa de uma micro- ssociedade que tem suas proprias leis. Em seguida, sobrevém algo que rompe a calma, que introduz um desequilibrio (ou, se se quiser, um equilbrio negativo); assim, a crianga deixa, por uma razo ou por outra, sua casa. No fim da hist6ria, depois de ter superado ‘muitos obstéculos, a erianga, crescida, reintegraré sua casa paterna. O equilforio & entio restabelecido mas io € 0 mesmo do comeco: a crianga nfo é mais crian- sa, € um adulto entre outros. A ‘narrativa elementar comporta pois dois tipos de episédio: os que descre- Yem um estado de equilfbrio ou de desequilibrio ¢ os que descrevem a passagem de um a outro. Os primeiros se opfem aos segundos como 0 estético ao dinémico, como a estabilidade & modificagao, como 0 adjetivo a0 verbo. Toda narrative comporta esse esquema funda- 162 mental, se bem que seja freqllentemente dificil reconhe~ ‘eé-lo: podemos suprimir seu comeco ou seu fim, inter= ccalar digressoes, outras narrativas etc. Procuremes agora o lugar dos elementos sobrene- turais nesse esquema, Tomemos, por exemplo, a “His t6ria dos amores de Camaralzaman” das Mil e Uma Noites, Este Caramalzaman € 0 filho do rei da Pérsia © 6 ‘mais inteligente e mais belo rapaz do reino e mesmo pa- ra além das fronteiras. Um dia, seu pai decide casé-o; mas o jovem principe descobre de repente ter uma aver- so insuportével pelas mulheres, ¢ recusa categoricamen- te a obedecer-Ihe. Para puni-lo, seu pai o fecha numa torre. is uma situago (de desequilibrio) que poderia bem durar dez anos. Mas € nesse momento que o cle- ‘mento sobrenatural intervém. A fada Maimune desco- bre um dia, em suas peregrinacies, o belo rapaz e dele se encanta; ela encontra em seguida um génio, Danhasch, que conhece a filha do rei da China, que 6 evidente- mente @ mais bela princesa do mundo; além disso, esta se recusa obstinadamente a casar-se. Para comparar & beleza dos dois herdis, a fada e 0 génio transportam a Princesa adormecida ao Ieito do principe adormecido; ‘depois os despertam e os observam. Segue-se uma longa sétie de aventuras, em que o principe ¢ a princesa vio procurar reunir-se, depois desse fugidio ¢ noturno en- contro; por fim, formam uma nova fami Temos af um equilibrio inicial © um equilfbrio final perfeitamente realistas. Os acontecimentos sobre- naturais intervém para romper 0 desequilfbrio mediano provocar a longa demanda do segundo equilibrio. O sobrenatural aparece na série de episédios que desere- Yen a passagem de um estado a outro. Com efeito, 0 ‘que podria melhor transtornar a situacdo estével do comero, que os esforgos de todos os participantes ten- dem a consolidar, seno precisamente um acontecimento exterior, nao s6 & situacdo, mas a0 préprio mundo na- tural? Uma lei fixa, uma regra estabelecida: cis o que imobiliza a narrativa. Mas, para que a transgressio da lei provoque uma modificagao répida, € preciso que foreas sobrenaturais intervenham; senféo a narrativa corre o risco de se arrastar, esperando que um justiceiro hhumano perceba a ruptura’ do equilfbrio inicial. O ele- mento maravilhoso a matéria que melhor preenche 163 essa fungio precisa: trazer uma modificacio da situagio precedente, romper o equilfbrio (ou 0 desequilfbrio), ‘Ao mesmo tempo, & preciso dizer que essa modificagio pode produzir-se por outros meios, se bem que esses sejam menos eficazes. A relago do sobrenatural com a narrasio torna-se ‘entdo clara; todo texto fantistico 6 uma narrativa, pois ‘© elemento sobrenatural modifica © equilibrio anterior, ‘ora, esta 6 a propria definicdo da narrativa; mas nem toda narrativa pertence ao maravilhoso, se bem que exista entre eles uma afinidade, na medida em que o ‘maravilhoso realiza essa modificagao de maneira mais répida. Torna-se claro, afinal, que a fungo social ¢ a fungio literéria do sobrenatural so uma tinica: trata-se da transgressio de uma lei. Seja no interior da vida social ou da natrativa, a intervencao do elemento mara- vilhoso constitui sempre uma ruptura no sistema de regras preestabelecidas, e acha nisso sua justficagao. Podemos, finalmente, indagar acerca da funcio do proprio fantéstico: isto é néo mais sobre a fungéo do acontecimento sobrenatural, mas sobre a da reagio que le suscita. Essa pergunta’ parece do maior interesse, pois, se o sobrenatural e 0 género que Ihe corresponde, (© maravilhoso, existem desde sempre ¢ continuam a proliferar hoje, o fantéstico teve uma vida relativamente breve. Apareceu de mancira sistemética no fim do século XVIII, com Cazotte; um século mais tarde, en- contramos nas novelas de Maupassant os ditimos exem- plos esteticamente satistat6rios do género. Podemos encontrar exemplos de hesitacdo fantéstica em outras épocas, mas. s6 excepcionalmente essa hesitacao sera representada, Existe uma razdo para esta curta vida? Ou ainda: por que a literatura fantistica nao existe mais? ara tentar responder a essas perguntas, € preciso examinar de mais perto as categorias que nos serviram para descrever 0 fantéstico. O leitor e 0 herbi, como yimos, devem decidir se tal acontecimento, tal fend- meno pertence & realidade ou ao imaginério, se é real ou nfo. £ pois a categoria de real que serve de base & nossa definicdo do fantéstico. Mal tomamos consciéncia desse fato e devemos parar, espantados. Por sua prépria definicao, a litera- tura passa além da distinedo do real e do imaginério, do que existe e do que nio existe. Pode-se mesmo dizer 164 que € em parte gragas A literatura, a arte, que essa distingdo se torna impossivel de sustentar. O objeto lite- trio € a0 mesmo tempo real e irreal; por isso, contesta © proprio conceito de rea. De maneira mais geral, a literatura contesta toda dicotomia desse género. £ da prépria natureza da lin- guagem recortar 0 dizivel em pedacos descontinuos; o nome, pelo fato de escolher uma ou virias propriedades do conceito que ele constitui, exclui todas as outras propriedades coloca a antitese disto © seu con- trério. A Titeratura existe pelas palavras; mas. sua vocagio dialética é dizer mais do que a linguagem diz, ultrapassar as divisdes verbais. Ela é no interior da linguagem, o que destréi a metafisica inerente a toda linguagem. © proprio do discurso literdrio € ir além dda linguagem (senéo ele nao teria razao de ser); a lite- ratura € como uma arma assassina pela qual a lingua- gem realiza seu suicidio, Mas, se assim 6, essa variedade da literatura que se funda sobre divisoes lingiisticas como a do real e do irreal nao seria literatura A situagdo & na verdade, mais complexa: pela hresitacio que cria, a literatura fantéstica coloca preci- samente em. questo a existéncia dessa irredutivel opo- si¢io. Mas para negar uma oposigio, € preciso primei- Tamente conhecer seus termos; para realizar um sacrifi- cio, € preciso saber o que sacrificar. Assim se explica a impressao ambigua que deixa a literatura fantastica: por um lado, ela representa a quintesséncia da literatura, na medida em que o questionamento do limite entre real ¢ irreal, proprio de toda literatura, € seu centro expli- ito. Por outro lado, entretanto, ela néo 6 mais que ‘uma propedéutica da literatura: combatendo a metafisica da linguagem cotidiana, ela the dé vida; ela deve partir da linguagem, mesmo se for para recusé-la. Ora, a lite- ratura, no sentido proprio, comeca para além da oposi- do entre real ¢ irreal. Se certos acontecimentos do universo de um livro pretendem ser explicitamente imaginérios, contestam assim a natureza do imagindrio do resto do livro. Se tal aparigdo € apenas o fruto de uma imaginacso super- excitada, & que tudo o que a cerca é verdadeiro, real Longe pois de ser um elogio do imagindrio, a literatura fantéstica coloca a maior parte de um texto como per- tencente ao real, ou mais exatamente, como provocada 165 por ele, como um nome dado a coisa preexistente, A ‘iteratura fantéstica nos deixa em mios duas nogées, ‘de realidade ¢ a de literatura, tio insatisfatorias uma como a outra. século XIX vivia, é verdade, numa metafisica do teal ¢ do imagindrio, e a literatura fantéstica nada mais, € que a mé consciéncia desse século XIX positivsta, Mas hoje jé nao se pode acreditar numa realidade imu- ‘vel, externa, nem numa literatura que fosse apenas a transcrigao dessa realidade. As palavras ganharam uma autonomia que as coisas perderam. A literatura que sempre afirmou essa outra visio 6 sem divida um dos méveis dessa evolucio. A propria literatura fantéstica, que subverteu, 20 longo de suas paginas, as categoriza. 6es lingiisticas, recebeu a0 mesmo tempo um golpe fatal; mas dessa morte, desse suicidio nasceu uma nova literatura. 166

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