Resumo
Sob o amparo de autores da Teoria Crítica que consideraram o Trabalho crucial para a
compreensão da formação da subjetividade do sujeito, este artigo consiste na tentativa de
compreender a interpretação que mulheres em contexto militar atribuem ao trabalho a partir
de entrevistas estruturadas, nas quais foi possível detectar que a cultura organizacional militar
possui nuances que proporcionam desconfortos pontuais.
Resúmen
Bajo el amparo de autores de la Teoría Crítica que consideraran el Trabajo crucial para la
comprensión de la formación de la subjetividad del sujeto, este artículo consiste en el intento
de comprender la interpretación que las mujeres en contexto militar atribuyen al trabajo a
partir de entrevistas estructuradas, en las cuales fue posible detectar que la cultura
organizacional militar posee matices que proporcionan desalientos puntuales.
Nesse sentido, Os estudos clássicos foram voltados, durante boa parte do tempo pós
Revolução Industrial, para os modos de melhorar a produção. Sob uma perspectiva capitalista,
a ênfase era dada ao trabalho realizado e não à pessoa que o realizava. Após os estudos de
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Howtorne os trabalhadores foram vistos de maneira mais humanizada, pois foi percebido que
os problemas de eficiência e queda de produção estava diretamente ligado ao modo como as
relações eram estabelecidas no ambiente de trabalho. Na década de 1970 autores como
Wanderley Codo enfatizaram que o trabalho integra a constituição do sujeito, baseado nos
pressupostos marxistas, e, portanto, deve ter um olhar diferenciado da psicologia no que tange
saúde/doença do sujeito alienado ao trabalho.
Outras contribuições trazem novos conceitos que ajudam a entender a estrutura das
organizações e o melhor modo de gerenciar a parte humana para evitar adoecimento, e, para
tanto, o que há de melhor no indivíduo deve ser valorizado. “As pessoas seguem acorrentadas
ao trabalho depois que, em grande medida, elas já nem necessitam desse trabalho”. (Adorno,
1995ª, p. 77, APUD Jaqueline Imbrizi). Adorno salientou sobre a ideologia do sacrifício, em
que o sujeito possui esperança de lograr a satisfação que nunca virá. A sociedade
contemporânea estruturou-se tendo por base a opressão. (Imbrizi, 1995, p.71). Sendo assim, a
opressão e contradições ideológicas servem de base para a constituição do sujeito que trabalha
e sacrifica-se em nome do progresso e sucesso individual, mas sem ter noção que tal feito
desconsidera sua humanidade.
Nesse sentido, cabe uma investigação sobre as organizações militares e como os servidores
se sentem em relação ao modo como são geridos. Discussões sobre a estrutura militar e suas
repercussões sobre a saúde mental dos comandados são essenciais, haja vista a peculiaridade
do serviço prestado que envolve o risco de morte dentre outras circunstâncias que podem
levá-lo ao estresse.
Dentro dessa perspectiva, entrevistas foram realizadas com quatro policiais femininas de
Feira de Santana, Bahia, com o objetivo de compreender a noção do significado de trabalho
para mulheres em um contexto militar, ressaltando que as quatro policiais são casadas,
possuem nível superior e dois filhos, demonstrando o contorno da mulher pós-moderna com
múltiplas atividades. Nesse viés, observando que elas apresentam o mesmo perfil, e, apesar
do número relativamente pequeno para representar uma amostra mais significativa, é possível
apreender que a noção de labor e o papel da mulher na contemporaneidade perpassam por
nuances positivas, deixando o peso das múltiplas jornadas apenas para a forma de organização
do trabalho militar, que implica em desconfortos pontuais, que por sua vez geram insatisfação
e desejo por mudanças.
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Metodologia
Foram realizadas entrevistas estruturadas com quatro policiais cujos perfis possuem
semelhanças. A entrevista foi o único instrumento utilizado e foi realizado de maneira
individual. As participantes são oriundas da mesma unidade militar. Trata-se de mulheres que
possuem múltipla jornada, pois são casadas, possuem nível superior, dois filhos e são
militares. Elas pertencem a postos hierárquicos distintos: uma capitã, duas cabas e uma
soldada, lotadas no Esquadrão de Polícia Montada da Bahia. Tal instrumento de coleta de
dados foi utilizado com objetivo de compreender qual o sentido que mulheres pós-modernas,
com múltiplas jornadas em um contexto militar dão ao trabalho.
A pesquisa estruturada é definida por Lakatos e Marconi (1985) como uma observação
sistemática que pode ser chamada também de entrevista controlada ou planejada. As questões
são planejadas antecipadamente de acordo com os objetivos do observador e devem ser
cuidadosamente planejadas e sistematizadas. A postura do observador deve ser impessoal e
deve ainda atentar para a devida orientação para que as respostas estejam de acordo com as
questões, ou seja, deve dirimir qualquer dúvida que possa surgir, mas sem exercer qualquer
influência sobre as repostas.
Além da entrevista, para a construção da discussão foi realizada uma revisão bibliográfica
para melhor compreensão do problema percebido através da coleta de dados. Segundo
Lakatos e Marconi (2010), a revisão bibliográfica é indispensável para a delimitação do
problema em um projeto de pesquisa e para obter uma ideia precisa sobre o estado atual dos
conhecimentos sobre um tema, sobre suas lacunas e sobre a contribuição da investigação para
o desenvolvimento do conhecimento.
pela forçada necessidade, e graves problemas sociais derivam dessa natural aversão
humana ao trabalho. (Freud, 1930, p. 24).
Autores mais contemporâneos, como Wanderley Codo, tentaram positivar o sentido do
trabalho considerando-o enquanto ato de atribuir significado social à natureza, que pode ser
transformada e provocar também transformação ao homem. Codo atrela a formação do sujeito
ao trabalho e não necessariamente à cultura.
Para apreensão da cultura organizacional da policia militar faz-se necessário visitar sua
origem. Enquanto cultura organizacional entende-se que tal construção é pautada em
processo histórico de trocas e experiências entre os membros que compartilham, ao longo do
processo de trabalho, os valores e crenças a respeito de como as atividades devem ser
realizadas. (FLEURY, 1987; BATITUCCI, 2013, APUD SENASP, 2016). A estrutura da
polícia militar é proveniente do exército que objetiva criar forças auxiliares para o serviço
ostensivo, uma força coercitiva que pudesse ser vista todo o tempo para estabelecer assim a
ordem pública. Desse modo, a estrutura do exército serviu de modelo e por muito tempo todo
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o rigor do treinamento de homens para a guerra era aplicado aos homens que iriam trabalhar
cotidianamente com problemas da comunidade que vão desde o furto de coisas de pequeno
valor até o homicídio na favela. A inserção da mulher na polícia mudou um pouco os rumos
de pesados treinamentos, bem como o tratamento direcionado à tropa.
Esse padrão organizacional, também denominado por Morgan (2006) como uma
organização do tipo máquina, estrutura-se a partir de um organograma altamente
vertical, que estabelece precisamente as direções de comando e as possibilidades
de comunicação entre seus membros. Nesse contexto, os profissionais devem
comportar-se segundo um script pré-determinado, sendo freqüente a utilização de
treinamentos e códigos detalhados para direcionar como agir perante o público
interno e externo. Deste modo, valoriza-se e prioriza-se a estabilidade, deixando-
se em segundo plano a criatividade, a inovação e a adaptação às mudanças.
(SENASP, 2016).
A hierarquia possui como alicerce a disciplina considerada princípio que norteia e adestra
o comportamento dos comandados e pressupõe que a base acata ordens de quem está no topo,
o que confere status, recompensas associadas e o modo de estabelecer o poder dentro da
organização. O culto à disciplina é ferramenta essencial para garantir a ordem que se
estabelece na instituição, bem como a que mutila a criatividade e autonomia.
É essencial ressaltar que um dos principais fatores que conduz o sujeito à angústia no
trabalho é justamente essa regulamentação inerente à cultura militar.
“(...) quanto mais hierarquizada a relação entre os homens, mais cada indivíduo
estará impossibilitado de se reconhecer no outro, se identificar com o outro e, por
conseguinte, ser capaz de amar. O amor se transforma em ideologia e, assim, se
presta à tarefa de dissimular ódio dos competidores.” (Horkheimer & Adorno,
1985, p. 75 APUD Jaqueline Ambrizi)
Estes são os contornos do serviço militar feminino. Saliento que a discussão não se ocupa
exatamente do gênero, não é essa a questão, mas se fez necessário demonstrar, ainda que de
modo superficial, peculiaridades do emprego da mulher na Polícia Militar para um
aprofundamento teórico posterior, mas, principalmente, para demonstrar que apesar dessas
modulações a queixa principal detectada durante a coleta de dados se ateve ao sistema por si
só. O desconforto existente nas relações que são estabelecidas na organização que admite
contornos rígidos e exclui a criatividade e tomada de atitude das trabalhadoras.
4.Discussão
A despeito de conceitos negativos que a palavra trabalho tem carregado ao longo dos
anos, é interessante notar nos discursos das entrevistadas os aspectos positivos entrelaçados
no sentido que é atribuído ao serviço: “Sustento para família, alimento para o corpo, mente e
alma!” (A. G. 43 anos);“ Algo fundamental para o ser humano... A oportunidade de deixar a
mente mais ativa, de superar desafios e desenvolver novos caminhos” (L. T. 35 anos). O
conceito de trabalho em um contexto ocidental perpassa basicamente pelas sociedades antigas
a partir da ideologia grego-romana, na tradição judaico-cristã e pelo protestantismo. Este
último, segundo Weber, modificou a ideia de degradação do homem pelo trabalho
substituindo o sacrifício pela honra. O homem que trabalha herda o paraíso. Expressões como
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“mente vazia oficina do diabo” surge em detrimento à ideia do ócio enquanto status quo para
felicidade. É possível perceber a força dessa substituição de valores no discurso das
trabalhadoras em questão.
No que tange ao acúmulo de atividades, apenas uma delas admite que, se pudesse,
agregaria ainda mais. As demais frisam que é um encargo que deve ser enfrentado, pois
fizeram tal escolha. Enquanto mulheres, donas de casa, mães e estudantes, não podem desviar
os objetivos ou reclamar. Uma delas retruca a injustiça, pois as atividades domésticas
poderiam ser divididas com o companheiro, mas em seguida afirma que consegue dar conta
das demandas. O processo de inserção da mulher no mercado de trabalho não foi algo
totalmente planejado. Nota-se que tal acúmulo de atividades não era uma pauta ou uma
preocupação, bem como não o é a retirada desse peso cultural sobre as mulheres. As
entrevistadas não aceitam o subterfúgio que ainda lhes cabem, pois a feminilidade e a
fragilidade atrelada a elas ainda estão impregnadas no imaginário social.
Porém, cabe ressaltar, que embora seja um tanto óbvio que tal fenômeno não esteja
inteiramente acabado e sob função de atores socioculturais, mulher e trabalho estiveram
sempre interligadas na história. A mulher das camadas sociais diretamente ocupadas na
produção de bens e serviços nunca foi alheia ao trabalho. Nas economias pré- capitalistas,
especificamente no estágio imediatamente anterior à revolução agrícola e industrial, a mulher
das camadas trabalhadoras era ativa (SAFFIOTI, 2006). Ser importante para a economia não
significou ascensão social. A mulher, por muitos anos, teve atrelada à sua felicidade o
casamento. A integração social dependia da sombra masculina.
Ao serem questionadas pelo que poderia trazer sofrimento, as policiais relatam o mesmo
problema, que não está diretamente atrelado ao tempo gasto no trabalho e a relação produção,
força e lucro ou a contradição progresso e sofrimento. Não é o trabalho em si, mas a queixa
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não foge dos pressupostos marxistas que situam a formação da subjetividade do indivíduo em
um processo de coisificação. Freud também oferece base para entender a pseudoformação do
ser humano, cuja liberdade lhe é retirada e em seu lugar lhe é oferecida a degradação. O
cerne da questão é a relação estabelecida no trabalho. O poder e a hierarquia que se imbricam
e formulam uma cultura organizacional que sobrepuja os limites do sujeito e está situada
desde a base, a soldada, até as posições de comando, a capitã.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Albornoz, Suzana. (1994). O que é Trabalho (6ª ed.). São Paulo: Editora Brasiliense.
Greer, Germanie. A mulher Eunuco. 1974. São Paulo; Editora Círculo do Livro.
Imbrizi, Jaqueline Maria. (2005). A formação do Indivíduo no Capitalismo Tardio. São Paulo: Editora
Hucitec.
Lakatos, Eva Maria; Marconi, Marina de Andrade. (2003). Fundamentos de Metodologia Científica (5ª
ed.). São Paulo: Atlas.
Safiotti, Heleieth. (2013). A mulher na Sociedade de Classes (3ª ed.). São Paulo: Expressão
Popular.
http://abordagempolicial.com/2014/03/historia-e-emprego-profissional-da-mulher-policial-militar/