Boécio e o De Trinitate
Introdução
Com esta tradução[1] para o português do tratado De Trinitate de Boécio o leitor entra em
contato com um dos mais notáveis textos da história da cultura. O surgimento desse opúsculo, no
início do século VI, assinala o nascimento da Escolástica, um método que iria marcar por quase
mil anos o pensamento ocidental e, séculos mais tarde, consubstanciar-se em sua mais
importante instituição educacional: as Universidades. Mas o interesse do De Trinitate não se
restringe a aspectos formais ou metodológicos. Ao valer-se do instrumental aristotélico para a
análise do conteúdo da fé, Boécio lançava conceitos e teses fundamentais, que exerceriam
extraordinária influência sobre o pensamento teológico posterior. É o caso do maior dos
teólogos, S. Tomás de Aquino, que não só se apoiou em teses boecianas para escrever o seu
próprio tratado sobre a Trindade da Suma Teológica, mas também compôs um importante
comentário ao opúsculo trinitário de Boécio.
Anício Mânlio Torquato Severino Boécio (c. 480-525) nasceu em Roma, descendente das
nobres famílias dos Anícios e dos Torquatos. Estudou por muitos anos as ciências, a literatura e a
filosofia gregas, adquirindo assim um profundo conhe-cimento da cultura clássica, que o
capacitaria mais tarde para desempenhar o papel his-tórico de singular importância que lhe
estava reservado: em meio da barbárie domi-nante, realizar (na medida do possível...) a salvação
e transmissão da cultura antiga para os novos ocupantes do Ocidente, instalados onde florescera
o Império Romano.
Boécio foi o homem certo no lugar certo. Estava habilitado como nenhum outro para
lançar os fundamentos da transmissão do saber clássico aos bárbaros e tal projeto, como se sabe,
contém um dos elementos essenciais daquilo que se convencionou chamar "Idade Média".
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Só com seu trabalho de tradutor e comentarista - com que estabelece a ponte entre a
cultura antiga e a Idade Média -, Boécio já teria garantido um lugar de relevo na História da
Educação e justificado o título de fundador da Escolástica, "primeiro escolástico" (Grabmann).
Pois, não por acaso, Escolástica se relaciona com escola, escolar, e o ensino da Idade Média
muito deve a esse educador.
Mas, há ainda uma outra contribuição inovadora de Boécio que incide sobre outro elemento
ainda mais decisivamente essencial na constituição da escolástica como método: um estilo de
pensamento teológico.
Já o título de seu livro ("Como a Trindade é um único Deus e não três deuses") expressa
o propósito de esclarecer racionalmente a verdade de fé. Certamente isto não é algo de novo.
Agostinho e outros tinham escrito textos com o mesmo intuito. Aliás, Agostinho havia afirmado
a necessidade de cooperação entre fé e razão, com a célebre sentença do Sermão 43: intellige ut
credas, crede ut intelligas, "entende a fim de que creias", "crê a fim de que entendas". Para
Boécio, o lema era: fidem, si poteris, rationemque cojunge, "conjuga a fé e a razão"![4], conselho
com que encerra uma carta ao Papa João I.
À primeira vista, nada de novo. A novidade, porém, está em que esse propósito tenha sido
assumido explicitamente, programaticamente: aquilo que antes podia ser unicamente uma atitude
fática tornava-se agora um princípio.
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Não que a Escolástica se caracterize por ser racional, não-bíblica, mas é preciso frisar
aqui a especial importância dada à razão na tarefa de conjugar razão e fé. Este caráter inovador
racional não passou despercebido a Tomás de Aquino. Na Introdução do seu comentário ao De
Trinitate de Boécio, Tomás[5], a propósito do tema da Trindade, explica que há dois modos
fundamentais de procedimento teológico: per auctoritates e per rationes. E que se Ambrósio e
Hilário enveredaram pelo primeiro, e se Agostinho mistura os dois procedimentos, Boécio segue
decididamente o segundo: a radicalidade da investigação racional.
O De Trinitate de Boécio
Boécio afirma, desde o início, a intenção de levar a investigação até onde o permitam as
forças do intelecto humano; dada a especial dificuldade do tema, pede também uma especial
benevolência do leitor.
No capítulo II, em que afirma que a substância divina é forma, estabelece uma divisão
das ciências teóricas baseada na diversidade das formas de seus objetos. Às três formas
correspondem três métodos de conhecimento distintos. Deus, sendo forma sem matéria, Forma
por excelência, é Um e Simples e exclui todo número e toda possibilidade de nEle inerirem
acidentes.
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No capítulo III, discorre sobre o fato de que na substância divina não há número e aplica
à questão da Trindade uma interessante discussão de linguagem a partir da distinção entre o
"número pelo qual numeramos;" e a "realidade numerada".
O capítulo IV, dedicado a como se predicam de Deus as categorias, começa por enumerar
as 10 categorias de Aristóteles, que o leitor encontrará bem explicadas pelo próprio Boécio.
Baste aqui sua apresentação pelo clássico exemplo mnemônico: Arbor sex servos ardore
refrigerat ustos. Cras ruri stabo sed tunicatus ero. A árvore (substância) refrigera (atividade)
seis (quantidade) servos (qualidade) queimados (pas-sividade) pelo ardor (relação) do sol.
Amanhã (quando) no campo (onde) estarei de pé (situação), mas estarei tunicado (condição). Em
seguida, Boécio mostra como, sendo as criaturas tão diferentes do Ser de Deus, nossa linguagem
não é unívoca quando apli-ca as categorias às criaturas e a Deus. Deus, aliás, para Boécio, não é
sequer substân-cia, mas ultra-substância. Essa diferença de potencial expressivo da linguagem no
caso particular da categoria relação é analisada nos cap. V e VI, nos quais se discutem
respectivamente a relação em Deus e a Unidade e Trindade em Deus, estabelecendo a conclusão:
"A substância é responsável pela unidade; a relação faz a Trindade".
Pesquisei por muitíssimo tempo[10] a questão da Trindade, até onde podem as forças da
pequena chama[11] da mente, que a luz de Deus se dignou conceder-nos.
Bem poderás compreender o que sinto todas as vezes que confio à pena meus
pensamentos: seja pela própria dificuldade do tema, seja pela escassez de interlocutores: na
verdade és o único capaz de entendê-los e o único com quem os discuto.
Não escrevo por desejo de fama nem pelo vão aplauso do vulgo; se houver algum fruto
externo não pode ser outro que esperar o teu juízo[12] sobre o assunto tratado. Pois, excetuando
a ti, para onde quer que eu olhe só vejo, por um lado, a pasmaceira ignorante e, por outro, a
inveja astuta, de modo que pareceria um insulto aos tratados de teologia submetê-los a esses
brutos que, mais do que interessar-se por aprendê-los, calcá-los-iam aos pés.
Assim, serei conciso, e o que extraí do fundo da Filosofia encobrirei sob palavras
novas[13] que falam só a ti e a mim, se te dignares a olhar para elas; quanto aos demais, eles
não nos interessam: não podem chegar a compreendê-las e não são dignos de lê-las.
Certamente, devemos pesquisar até onde for dado ao olhar da razão humana ascender
às alturas do conhecimento da divindade. Pois também nas outras disciplinas há limites além
dos quais a razão não pode chegar. A Medicina nem sempre traz a saúde ao doente e a culpa
não será do médico, se tiver feito tudo o que estava ao seu alcance. E o mesmo vale para os
outros conhecimentos.
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No caso do presente estudo, tanto mais benevolente deve ser o julgamento, quanto tão
mais difícil é a questão. No entanto, tu examinarás se as sementes lançadas em mim pelos
escritos de S. Agostinho produziram seus frutos. Mas comecemos a discussão da questão
proposta.
Há muitos que usurpam a dignidade da religião cristã, mas a fé que é válida principal e
exclusivamente[14] é aquela que, tanto pelo caráter universal de seus preceitos[15] - que dão a
medida da autoridade da religião -, quanto pelo seu culto, se espalhou por quase todo o mundo
e é chamada católica ou universal. Dessa fé, a sentença da unidade da Trindade é: "O Pai é
Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus"[16]. E, portanto, Pai, Filho e Espírito Santo são
um deus e não três deuses.
1) pelo gênero: como são iguais quanto ao gênero (animal) o homem e o cavalo;
2) pela espécie: como Catão e Cícero são iguais quanto à espécie (homem);
II
Trata-se, pois, de adentrar, e examinar com atenção cada ponto para que possamos
entender e captar[23]; pois, como muito bem se disse[24]: "ao erudito compete tratar de captar a
sua fé, tal como na realidade ela é".
Ora, são três as ciências especulativas: a Física, que está em movimento e não é
abstrativa ou separável - anypexairetos - não abstrai o movimento, pois considera as formas dos
corpos com matéria, formas que em ato não se podem separar dos corpos. E os corpos, estando
em movimento, a forma, unida à matéria, tem movimento: com a terra, tendem para baixo; com
o fogo, para cima. A Matemática, está sem movimento e não é abstrativa, pois ela estuda as
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formas dos corpos sem a matéria e, por isso, sem movimento. Porém essas formas, em união
com a matéria, não podem separar-se dela. A Teologia, está sem movimento e é abstrativa, pois
a substância de Deus carece de matéria e de movimento.
Pois tudo é pela forma. Uma estátua se constitui como tal e se diz efígie de ser vivo, não
pelo bronze, que é matéria, mas pela forma nela esculpida. E, do mesmo modo, o próprio bronze
é bronze não pela terra que é sua matéria, mas pela forma. E mesmo a própria terra não é terra
por ser matéria informe (apoion hylen), mas por causa da secura e do peso que são formas. Não
há nada, pois, que seja o que é pela matéria, mas sempre pela forma própria.
Daí que Ele seja verdadeiro Um[25], no qual não há número nem nada que não seja o
que é. Nem pode tornar-se substrato de algo, pois é forma e as formas não po- dem ser
substratos. Pois o que nas outras formas é substrato para os acidentes, como por exemplo a
hominalidade, não recebe os acidentes pelo fato de ela mesma ser, mas sim pela matéria que lhe
está sujeita. Assim, quando a matéria sujeita à hominalidade recebe um acidente qualquer,
parece que é a própria hominalidade que o assume.
Já a forma que é sem matéria não pode ser substrato, nem nela inerir matéria, senão não
seria forma, mas imagem[26]. Pois da forma que está à margem da matéria procedem as que
estão na matéria e produzem o corpo. É, pois, um abuso de linguagem que cometemos quando
chamamos formas o que são imagens, somente assemelham-se à forma que não está constituída
em matéria: nEle nada há de diversidade; nem de pluralidade decorrente da diversidade, nem
de multiplicidade decorrente de acidentes; e daí que tampouco haja número.
III
Assim, Deus não difere de Deus a título algum, pois não há diversidade de sujeitos por
diferenças acidentais ou substanciais[27].Onde, pois, não há diferença, não haverá pluralidade
alguma, e daí tampouco número, mas somente unidade. E quando dizemos três vezes Deus e
dizemos Pai, Filho e Espírito Santo, estas três unidades não fazem pluralidade numérica naquilo
que elas mesmas são, se consideramos a própria realidade numerada e não o modo pelo qual
numeramos. Neste caso, a repetição de unidades produz pluralidade numérica; quando, porém,
se trata da consideração da realidade numerada, a repetição da unidade e o uso plural não
produzem de modo algum diferença numérica nas realidades.
Pois há dois tipos de números: um, pelo qual numeramos; outro, que consiste nas coisas
numeráveis. Assim, dizemos um para a coisa real; enquanto unidade designa aquilo pelo que
dizemos que algo é um. Assim tambémdois pode referir-se à realidade - como, por exemplo,
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homens ou pedras -, mas dualidadenão: dualidade refere-se somente àquilo por que se
constituem dois: homens ou pedras. E assim também para os outros números.
Assim, pois, se se predica do Pai, Filho e Espírito Santo três vezes Deus, a predicação
tríplice não constitui número plural. Este é, pois, como dissemos, o perigo daqueles que fazem
distinção por dignidade entre os três. Nós, os católicos, porém, não admitimos nenhuma
diferença no que constitui a própria forma e afirmamos não ser Ele outra coisa que aquele que
é. E para esta doutrina, dizer: "Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, e esta Trindade é um
só Deus", é tal como dizer: "uma espada, um gládio, uma lâmina" ou "sol, sol, sol: um sol".
Com o que até aqui dissemos, procuramos deixar claro que nem toda repetição de
número produz pluralidade. Quando, porém, dizemos, "Pai e Filho e Espírito Santo" não
estamos usando sinônimos diversos como seria o caso de "espada" e "gládio", que são iguais e
idênticos.
Pois Pai, Filho e Espírito Santo, são iguais, mas não são o mesmo. Este ponto merece
um pouco de atenção. A quem pergunta: "É o Pai o próprio Filho?", respon-demos: "De modo
algum". E: "É um o mesmo que o outro?", novamente: "Não!".
Não há, pois, entre eles - sob um determinado aspecto - uma total indiferença em todos
os aspectos; e assim pode-se falar em número que, como explicamos acima, procede da
diversidade de sujeitos. Discutiremos brevemente esse determinado aspecto, depois de termos
examinado como é que se predica de Deus.
IV
Há ao todo dez categorias que podem ser universalmente predicadas de todas as coisas:
substância, qualidade, quantidade, relação[28], lugar (onde)[29], tempo (quando), condição[30],
situação[31], atividade e passividade.
Elas são determinadas pelo sujeito a que se referem: parte delas - quando se aplicam a
outras coisas que não Deus -, referem-se à substância; parte, aos acidentes. Quando, porém,
estas categorias são aplicadas à divindade, todas elas se tornam substanciais. Quanto à relação,
ela não pode de modo algum ser predicada de Deus[32], pois a substância nEle não é
propriamente substância, mas ultra-substância. Também não podem ser predicadas de Deus a
qualidade e as demais categorias, das quais vamos dar exemplos para melhor compreensão.
Deus é o mesmo ser e ser grande. E quanto à sua forma, já mostramos acima como Ele é Forma
e certamente Um e excluindo toda pluralidade.
Mas essas categorias são tais que dão à coisa a que se aplicam o caráter que expressam:
nas coisas criadas, a divisão; em Deus, porém, apresentam-se conjugadas e unidas: quando
dizemos "substância" (aplicada por exemplo a homem ou Deus) é como se aquilo de que
predicamos fosse ele mesmo substância, como substância "homem" ou "Deus". Na verdade,
porém, não é a mesma coisa: o homem não realiza em si a totalidade do ser humano, e por isso
não é substância; o que ele é, deve-o a outras coisas que não são homem[33]. Deus, porém, é o
próprio Deus; não é outra coisa senão "o que é" e, por isso, é Deus mesmo.
E assim também quando dizemos "justo", que é uma qualidade, dizemos como
predicação do sujeito, isto é, se dizemos: "homem justo" ou "Deus justo", afirmamos que o
próprio homem ou o próprio Deus são justos. Porém, uma coisa é o homem; e outra, o homem
justo; enquanto Deus Ele mesmo é o que é justo.
"Grande" também se diz do homem ou de Deus como se fosse a mesma coisa dizer
"homem grande" ou "Deus grande"; na verdade, porém, o homem pode até ser grande; mas
Deus é, Ele mesmo, o próprio grande[34].
Quanto às outras categorias, também elas não podem ser predicadas de Deus nem
(substancialmente) dos outros entes. Pois olugar não se pode predicar do homem nem de Deus:
do homem se diz que está na praça; de Deus, que está em toda a parte; mas não como se fosse o
mesmo a coisa e o que dela se predica. Pois dizer que o homem está na praça é totalmente
diferente do que afirmar seu modo de ser, por exemplo, branco ou alto ou qualquer propriedade
que, por assim dizer, o circunscreva e determine e pela qual se possa descrevê-lo em si. A
predicação lugar, pelo contrário, somente afirma onde se situa a substância em relação a outras
coisas.
Com Deus, porém, não é assim, pois "estar em toda parte" não significa que esteja em
cada lugar (Ele absolutamente não pode estar num lugar), mas que cada lugar é-Lhe presente
para ocupar, embora Ele não possa ser recebido espacialmente e, por isso, não se diz que ele
esteja situado em lugar algum porque está em toda parte, mas não alocado.
O mesmo se dá com o "quando", a categoria de tempo: tal homem veio ontem; Deus é
sempre. Quando se predica o "vir ontem", aqui, novamente, não se diz algo sobre o homem em
si, mas o que lhe sucedeu no tempo. Já o que se diz de Deus, "sempre é", significa um contínuo
presente que abarca todo o passado e todo o futuro. Os filósofos dizem que isso pode ser também
afirmado do céu e de outros corpos imortais, mas, mesmo assim, não do mesmo modo que de
Deus. Pois Ele é sempre porque "sempre" é para Ele presente: e há uma grande diferença entre
o nosso "agora", que é do tempo que corre, e a sempiternidade: o "agora" divino permanece,
não corre, e consistindo, faz a eternidade. Junta eternidade e sempre, e terás o agora perene e
incessante e, portanto, o transcurso perpétuo que é a sempiternidade.
Também são válidas essas considerações para as categorias condição eatividade; pois
dizemos do homem: "ele, vestido, corre"[35], e de Deus: "Ele, possuidor de todas as coisas,
governa". Aqui também não se diz nada do ser de ambos e essas são predicações exteriores; e
todas as categorias até agora tratadas referem-se a outras dimensões que não à substância.
qual o sujeito é algo, a saber: justo; "grande", à quantidade pela qual ele é algo: grande. Já
com as demais categorias isto não se dá: quando se diz que alguém está na praça ou em toda a
parte, referimo-nos à categoria lugar, que não faz com que o sujeito seja algo, como pela justiça
ele é justo.
O mesmo ocorre quando se diz "ele corre" ou "governa" ou "é agora" ou "é sempre":
nestes casos estamos expressando tempo ou atividade - se é que o "sempre" divino pode-se
encaixar em tempo -, mas não algo pelo qual é algo, como pela magnitude se é grande. Quanto
às categorias situação epassividade nem precisamos ocupar-nos delas porque, claramente,
sequer ocorrem em Deus.
Não se pode, portanto, afirmar que uma predicação de relação acresça, diminua ou
altere de algum modo a coisa em si a que se refere. Pois a categoria relação não diz respeito à
coisa em si; ela simplesmente aponta uma condição de relatividade (e não sempre ou
necessariamente para outra substância mas às vezes para uma mesma)[38].
Essas categorias que não afetam a coisa em si não podem mudar, alterar ou afetar de
nenhum modo sua essência. Daí que se Pai e Filho são termos de relação e, como dissemos, não
têm outra diferença que a de relação, e se a relação não é predi-cada daquele de quem se
predica como se fosse o próprio sujeito e qualidade sua, en-tão ela não produzirá nenhuma
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alteridade de substância em seu sujeito mas - numa frase dificilmente compreensível e que
requer explicação - uma alteridade de pessoas.
VI
Mas, como toda relação sempre se refere a outro, pois a predicação que se refere ao
próprio sujeito é sem relação, a numerosidade da Trindade é garantida pela categoria relação,
enquanto a unidade é preservada pelo fato de que não há diferen-ça de substância ou de
operação ou de qualquer predicado substancial. Assim, a subs-tância é responsável pela
unidade e a relação faz a Trindade. E assim, somente os termos referentes à relação podem ser
aplicados distintamente a cada um. Pois o Pai não é o mesmo que o Filho, nem cada um dos
dois é o mesmo que o Espírito Santo. Ainda que Pai, Filho e Espírito Santo sejam o mesmo e
único Deus, o mesmo em justiça, em bondade, em grandeza e em tudo que pode ser predicado
segundo o ser.
Não se deve esquecer que a predicação de relatividade nem sempre envolve diferença
(como servo para o senhor). Porque o igual é igual ao igual, o semelhante é semelhante ao
semelhante, e o mesmo é o mesmo que o mesmo; e a relação do Pai para o Filho, e de ambos
para o Espírito Santo, é relação de igual para igual[39].
Uma tal relação não será encontrada nas coisas criadas, mas isto é por causa do modo
de diferenciação que afeta as transitórias criaturas. Ao falar de Deus, porém, não devemos
deixar-nos guiar pela imaginação; mas pelo puro intelecto elevar-nos e acometer o
entendimento de tudo o que importa conhecer.
[1]. A partir do original latino apresentado por Stewart e Rand em Boethius - The Theological
Tractates, London-Cambridge, Loeb, 1953.
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[2]. Em Educação, Teatro e Matemática medievais, 2ª ed., S. Paulo, Perspectiva, 1990, comento
mais amplamente o trabalho pedagógico de Boécio, sobretudo no que se refere à Geometria. Este
tópico recolhe e resume algumas considerações de J. Pieper em Scholastik, cap. II, München,
DTV, 1978.
[4]. O si, no caso, mais do que condicional ou dubitativo indica algo que muito provavelmente
irá ocorrer. Como se disséssemos: "se chover em janeiro (o que é praticamente certo), o trânsito
ficará congestionado".
[5]. Certamente, também Tomás é um escolástico nesse sentido profundamente racional, mas no
Prólogo ao Comentário ao De Trinitate de Boécio cita vinte vezes a Bíblia e nenhuma vez
Aristóteles.
[8]. I, 29, 4.
[9]. É oportuno lembrar que também é de Boécio a própria definição de pessoa utilizada por
Tomás: rationalis naturae individua substantia.
[10]. Tomás comenta que, neste parágrafo e nos seguintes, Boécio apresenta seu trabalho
segundo as quatro causas aristotélicas: material (o próprio assunto: a Trindade), eficiente (as
luzes de Deus e da inteligência humana), formal ("Tendo chegado a estruturar...") e final ("Não
escrevo por desejo de fama...").
[11]. Igniculus, pequena chama. Tomás faz ver (In Boethium De Trinitate, Proemii textus et
explanatio) que a luz por excelência é a do conhecimento de Deus; os anjos, um termo médio;
quanto ao homem, só dispõe de uma "pequena chama".
[13]. Como diz Tomás, a brevidade, a profundidade e a novidade das palavras são três recursos
que se unem à dificuldade da matéria para subtrair a sublimidade do tema à profanação do vulgo
(cfr. Mt. 7,6).
[14]. A rigor, comenta S. Tomás (In Boethium De Trinitate, Lectio I), os hereges não são cristãos,
embora assim sejam considerados pela opinião dos homens ao vê-los confessar o nome de
Cristo. Daí a distinção entre "principal e exclusivamente".
[15]. Que, comenta Tomás (In Boethium De Trinitate, Lectio I), se dirigem a todos os homens: ao
contrário da Lei de Moisés (que foi dada a um único povo) e das diversas seitas heréticas da
época, que se dirigiam só a um determinado tipo de homem (umas, só aos solteiros; outras,
excluíam os pecadores, etc.).
[16]. Pater deus, Filius deus, Spiritus Sanctus deus. Dada a inexistência de artigo em latim, uma
tradução mais literal seria: "O Pai é o Deus, o Filho é o Deus, o Espírito Santo é o Deus".
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[18]. Para os hereges arianos, comenta S. Tomás (In Boethium De Trinitate, Lectio I), a
dignidade do Filho é menor que a do Pai e a do Espírito Santo menor que a de ambos.
[19]. Tomás (In Boethium De Trinitate, Lectio I) propõe aqui, a propósito da precisão de
linguagem de Boécio, uma interessante discussão sobre a diferença entre alteridade(alteritas)
e aliedade (alietas). Tanto altercomo alius significam: outro. Alter, porém comporta as
diferenças não só de substância (como é o caso de alius) mas também as acidentais.
[20]. Boécio, comenta S. Tomás (In Boethium De Trinitate, IV,I,c), refere-se aqui à pluralitate
compositorum, pois gênero, espécie e acidentes só se dão nos compostos: as criaturas; Deus,
porém, é simplicíssimo.
[21]. Igualdade traduz idem. Aqui também cabe uma observação sobre a precisão
boeciana: idem e ipse indicam igualdade, mas enquantoidem pode indicar igualdade em relação a
este ou aquele aspecto, ipse indica identificação, o mesmo e único sujeito ele próprio.
[23]. Intelligi atque capi. Tomás (In Boethium De Trinitate, Lectio II) interpreta esta passagem
dizendo que a discussão do tema deve adequar-se tanto à realidade envolvida (e a essa dimensão
diz respeito o intelligere) quanto a nós (capere), que não podemos abarcar a grandeza de Deus do
mesmo modo como compreendemos uma realidade sensível ou uma demonstração matemática.
E lembra que não é a mesma a evidência que temos nas diversas disciplinas.
[25]. "Um", para os antigos, mais do que um número expressa o próprio ser.
[27]. Tomás, comentando (I, 30, 1) esta passagem que, aparentemente, faz uma objeção à
pluralidade de pessoas em Deus, responde com o próprio Boécio (veja-se o cap. VI ou o último
parágrafo do cap. III), esclarecendo que a suma unidade e simplicidade de Deus exclui, em
sentido absoluto, toda pluralidade; mas admite-se a pluralidade do ponto de vista da relação,
pois, sendo a relação "para outro", não implica composição.
[28]. Ad aliquid. A relação não é um algo (aliquid), mas um "a algo" (ad aliquid).
[29]. Ubi.
[30]. Habitus.
[31]. Situm esse. O acidente situs indica não a presença num lugar (ubi), mas a estruturação
espacial interna da própria coisa.
[32]. Tomás, comentando (I, 28, ad 1) esta passagem à primeira vista contraditória, diz que o que
não é possível é predicar de Deus a relação a título do caráter próprio dessa categoria: que não se
refere ao sujeito no qual inere, mas "a outro" [pois, como o próprio Boécio explica neste
capítulo, em Deus (ultra-substância), confunde-se cada predicado com sua própria substância].
Mas isto não significa que não haja em Deus relações, e sim que, precisamente no caso desta
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categoria das relações, elas não se dão em Deus inerindo nEle, mas por uma certa referência a
outro.
[33]. Só Deus, que é o que é, é simples; as criaturas, são compostas. O homem, por exemplo,
compõe-se de substância e acidentes; a substância, por sua vez, é composta de matéria e forma;
etc.
[34]. No comentário de Gilberto Porretano, "o próprio Deus é a razão de ser do que é grande"
(PL 64, 1285).
[35]. É preferível "ele, vestido, corre" a "ele corre vestido" para manter a ordem de apresentação
das categorias.
[37]. Podemos prescindir intelectualmente da cor (acidente que inere na coisa), embora
concretamente a coisa se dê com cor. Já a categoria relação envolve dois pólos relativos e nem
sequer se pode pensar, por exemplo, em direita sem esquerda ou em senhor sem servo.
[38]. Nec semper ad aliud sed aliquotiens ad idem. Trata-se de uma passagem muito sutil: a
tradução inglesa neste ponto ("a condition of relativity: (...) not necessarily to something else,
but sometimes to the subject itself", p. 27) contradiz-se na p.29: "no relation can be affirmed of
one subject alone (nulla relatio ad se ipsum referri potest", cap. VI, início). A solução nos é dada
por Tomás num artigo em que, por acaso, não faz nenhuma referência a Boécio (I, 31, 2,). Tomás
começa por expor as incomparáveis dificuldades de linguagem no tema da Trindade: para falar
da Trindade de pessoas sem ferir a Unidade deve-se evitar as palavras diversitas e differentia,
mas pode-se usar distinctio. Do mesmo modo, como em Deus não há distinção de substância,
mas só de pessoas (relações): o Filho é outro (alius) que o Pai (outra Pessoa), mas não é outra
coisa (aliud) que o Pai (a mesma substância). Assim se compreende que Boécio empregue, nessa
sentença, o neutro aliud e não o masculino alius.
[39]. Comentando esta passagem, que parece conduzir à conclusão de que as relações em Deus
são meramente de razão e não reais, Tomás (I, 28, ad 2) afirma a coerência da formulação, desde
que se entenda a igualdade tal como Boécio a quis caracterizar: não indicando uma identidade
absoluta, mas somente que pelas relações não se altera a identidade da mesma e única substância
divina.
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