ANAIS DO V SPLIT
Seminário de Pesquisa Discente do Pós-
-Lit/UFMG
1ª edição
ISBN: 978-85-7758-278-5
Belo Horizonte
FALE/UFMG
2016
Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-7758-278-5
CDD : 809
SUMÁRIO
Apresentação ............................................................................ i
Carolina Anglada – “A FORMA-POESIA VAI, PODE,
DEVE DESAPARECER?”: uma questão política para o
regime estético das artes …........................................................... 1
i
“A FORMA-POESIA VAI, PODE, DEVE
DESAPARECER?”: uma questão política para o
regime estético das artes
Carolina Anglada1
RESUMO: O filósofo Jacques Rancière tem colocado a questão
do regime estético das artes no horizonte do contemporâneo, de
modo a estabelecer um elo entre esse tipo de regime e a política,
uma vez que, não sendo mais a representação um valor em si, é o
modo ou a maneira, diria Agamben, que cada obra torna visíveis ou
dizíveis certos objetos, que constitui, intrinsecamente, o
posicionamento da obra de arte em uma “partilha do sensível”,
redistribuindo vozes, lugares e funções. Além da igualdade de
temas, o regime estético propõe a não-hierarquização entre os
gêneros, apontando, inclusive, para a transformação em curso nas
variadas formas de fazer arte. Diante desse cenário, pretende-se
discutir a forma-poesia, não no sentido de qualidade do poético
presente nos poemas em prosa, por exemplo, mas na maneira
própria de trabalhar seus elementos e de como eles se apresentam
na forma-poesia, indagando-se sobre a possibilidade ou não de uma
especificidade. Considerando certa tendência, especialmente
francesa, de superar o universo da poesia, objetiva-se analisar em
que medida esse ideal “antipoético” diz respeito à proposição de
um outro modo de fazê-la e lê-la em consonância com gêneros
“menores”, confirmando a caracterização do regime estético e
democrático de Rancière.
1
A FORMA NO HORIZONTE DO ESTÉTICO
2
jornalística e prosaica, e a fala “essencial”, que seria a da poesia. Não
mais distinguível por parâmetros métricos ou rítmicos, isto é,
“quase” sem forma, a poesia estaria entrando na sua condição
eminentemente crítica, condição essa que a imporia um sacrifício;
na obrigação de ser autocrítica, sua sobrevivência dependeria do
colocar-se na dupla posição de ser sujeito e objeto do fazer poético,
restando-lhe a única opção de permanecer pensante, portanto.
Nesse sentido, poderíamos alçar a poesia ao estatuto privilegiado de
se questionar sobre si mesma, afastando-se do mundo prosaico.
Mas não estariam os Petits Poèmes en prose (Pequenos poemas em
prosa), de Baudelaire, requisitando outros objetos para a poesia,
como o baixo materialismo dos cachorros, da pobreza, da própria
morte e sua sepultura?
A crise constatada poucas décadas depois por Mallarmé só
reafirmará a condição inespecífica ou imprópria da poesia, e que
provocará, por parte das vanguardas, uma espécie de aposta na
forma obscura ou na forma opaca, ou ainda na forma hesitante
entre o som e o sentido, como declarava Paul Valéry sobre o
enjambement. A revolução operada por Mallarmé foi a de tornar
visível todo o espaço em branco a ser habitado pela forma do
poema, uma vez que a linguagem poética já nas últimas décadas do
século XIX revelava-se impura.
3
Os neovanguardistas ou poetas da retaguarda,3 que, nos
países periféricos, a partir de 1950, puderam dar desenvolvimento às
proposições da vanguarda, cujo projeto foi interrompido pela
Segunda Guerra Mundial, tinham os olhos voltados para trás e para
frente; queriam retomar a aposta na literalidade e no hermetismo
das vanguardas, e avançar nas violações da forma, como a poesia
concretista, por exemplo, o fez, dando por “encerrado o ciclo
histórico do verso”.4 Na França, o que o movimento
neovanguardista conseguiu, nas décadas posteriores, foi colocar a
prosa no horizonte do fim do verso. Pierre Alferi, um nome
importante do movimento antipoético, publica em 1994 um ensaio
intitulado “Rumo à prosa”, cujo início é categórico: “A prosa não é
um gênero nem o oposto da poesia. Ela é o ideal baixo da literatura,
melhor dizendo, um horizonte, e lhe sopra um ritmo, uma
política.”5 Alferi, filho de Derrida e da psicanalista Marguerite
Aucouturier, prefere manter o seu trabalho autoral e ensaístico sob
os liames da pós-poesia ou da antipoesia, como defende Gleize.
Manter-se na escrita da prosa é manter-se, politicamente, em um
“projeto não heroico”, é colocar-se sob a fórmula mutatis mutandis
de uma “prosódia irregular”. E é importante lembrar, com o ensaio
de Alferi, que essa irregularidade da prosa é o elo com a poesia
3 PERLOFF, Marjorie. “Da vanguarda ao digital”. In: O gênio não original: poesia por
outros meios no novo século. Trad. Adriano Scandolara. Belo Horizonte: Ed. Ufmg,
2013.
4 CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, 1975, p. 156.
5 ALFERI, 2015, p. 425.
4
moderna: a conquista do verso livre, que marca a modernidade na
poesia, se inspirou nos ritmos irregularmente medidos da prosa.
Onde lemos verso, portanto, leremos desaparição, ausência
ou, no mínimo, irregularidade. Pois o verso é uma das formas-
poesia, assim como o lirismo o é. Não por acaso, outro expoente
francês desse processo de desvio da poesia é Jean-Michel Maulpoix,
cujo anúncio de um “novo lirismo” ou de um “lirismo crítico”
constitui o polo de grande tendência francesa, que insurge contra o
radicalismo da antipoesia de Gleize. Para Maulpoix, a urgência
contemporânea de um lirismo crítico é uma das manifestações da
autocrítica da poesia moderna, pelas quais os pressupostos da
forma são questionados. Claro que é preciso delimitar o que está
sendo entendido como lirismo; para o escritor e crítico francês,
lirismo não é o mesmo que lírico, não tem a ver com a expressão
pessoal do poeta, pois “significa um modo de ser, de falar ou de
escrever, e não designa expressamente um gênero”. A operação do
lirismo coloca o discurso em relação a um “estado dito ‘poético’ em
que o assunto é uma vítima ou um beneficiário de acesso de
linguagem que não necessariamente se torna poema.” 6 O lírico não
é mais privilégio da poesia assim como a poesia lírica não deve ser
sinônima de uma afetação emocional da voz.
A expressão “acesso de linguagem”, usada por Maulpoix,
remete ao ensaio de Jean-Luc Nancy, “Fazer, a poesia”, em que o
filósofo caracteriza a poesia como um acesso ou limiar de sentido,
5
de forma que ela constitui um “gênero entre as artes”7. Algo que se
dá na passagem, e esse algo pode ser atribuído a outros gêneros,
sendo a poesia sempre um acontecimento em potência, mas que
precisa de certo acionamento por se realizar. A poesia não é um
lugar, “a própria poesia pode muito bem ser encontrada ali onde
sequer há poesia. Ela pode até mesmo ser o contrário ou a recusa da
poesia, e de toda a poesia.”8 Sua não coincidência consigo mesma,
ou seja, sua negatividade provinda de uma renúncia ou de um
sacrifício, é a condição necessária para que ela se reformule,
desapareça e reapareça sob outra aparência, estipulando outras vias
de acesso ao sentido.
É para alimentar essa discussão, que o escritor francês
Emmanuel Hocquard publica um ensaio em resposta à pergunta
“La forme-poésie va-t-elle, peut-elle, doit-elle, disparaître?” (“A
poesia vai, pode, deve desaparecer?”) para a revista Action
Poétique,9 cuja edição especial trazia a resposta de outros escritores
e críticos. Logo no início do texto, Hocquard sustenta que essa
pergunta deriva de uma outra (“A poesia vai, pode, deve
desaparecer?”) cuja resposta seria, fatalmente, sim. Ambas as
perguntas, no entanto, colocam o desaparecimento em termos de
uma predestinação (“vai”), de uma potência (“pode”) e de uma
6
obrigação (“deve”), cercando, ao máximo, a possibilidade de uma
resposta de resistência. Diante da inegável retirada da poesia,
restaria indagar se algo da forma, algo da sua técnica, portanto,
sobreviverá a esse desaparecimento do gênero.
Atentemos: não estamos falando de morte, mas de
desaparecimento. Hocquard, recorre, em seu ensaio-resposta, ao
pintor Alexandre Delay fazendo-lhe a mesma pergunta, à qual
Delay responde: “O que há de positivo na ideia da desaparição, é
que ela vai engatar o processo da ressurreição em outro lugar, sob
outra forma”.10 Acostumado, graças à sua atividade de pintor, a
lidar com os extravios e as ausências da imagem, com os
renascimentos e as aflorações de elementos visuais, com a liberdade
das habitações da tela ou mesmo com as deserções do anteparo,
Delay não recua a arte diante das formas sempre fugidias, que a
pintura, em sua longa trajetória, encarna. Por que algo semelhante
não poderia se dar com a poesia?
O que os escritores contemporâneos franceses parecem
querer reverter, sobretudo os que aqui citamos, Maulpoix, Gleize e
Hocquard, é a incompatibilidade entre a forma hermética e o
lirismo, ou entre a literalidade capaz de dar vazão a um “real
desnudado”, e o lirismo como exteriorização da voz, mas constante
questionamento da subjetividade da qual é herdeiro. O lirismo
crítico é “uma escrita que recolhe os restos deixados pelo lirismo da
10 Para o presente artigo, foi utilizada a tradução de Marília Garcia para a sua tese,
intitulada “A topologia poética de Emmanuel Hocquard”, disponível em:
<http://www.bdtd.ndc.uff.br/tde_arquivos/23/TDE-2010-12-20T083322Z-
2711/Publico/Maria%20Garcia%20Tese.pdf>.
7
exaltação e da elevação e os transforma em questionamento e
reflexão.”11 É o que percebemos quando lemos, por exemplo, o
seguinte trecho da obra La Table (A mesa), de Francis Ponge:
“Reflito hoje que de maneira geral escrevo pra minha consolação (se
não escrevo a pedido) e que, quanto maior é o desespero, mais a
fixação no objeto)”.12 Quanto maior a afetação impositiva do
lirismo, mais o poeta se detém no objeto, tentando moderar esse
impulso subjetivo na escrita. Podemos ver, então, nessa pausa sobre
o objeto, um limite da própria poesia, um limite que já a coloca em
relação com a prosa ou com um lirismo crítico que não fará da
poesia um lugar confortável para o eu. O que ambas as vertentes da
literatura contemporânea francesa parecem concordar, em menor
ou maior grau, é na urgente e necessária ruptura com a associação
de herança romântica entre o eu e o seu isolamento, entre a
subjetividade do artista e o seu exílio ou negação do mundo e da
técnica.
Se tomarmos a obra de Francis Ponge, por exemplo,
relutante em ser considerada “poesia”, há, no entanto, alguns
elementos de passagem entre gêneros, tais como a exploração
irregular da espacialidade da página, a disposição formal das
palavras e das frases e o uso da quebra e da cesura. Não se trata
apenas de pensar a poesia como uma ocupação formal específica da
matéria no espaço, mas de considerar a forma-poesia como um
certo recorte difícil da parte em relação ao todo, do sujeito artista
8
em relação à técnica, haja vista o título A mesa, cuja superfície, ao
mesmo tempo plana de prosa e angulosa de poesia, coloca em cena
que a técnica é, sim, um problema para a literatura. Ponge hesita,
abre espaços no texto, dispõe fragmentos em caixas, cria mais de
uma direção de sentido ao intercalar a palavra normal e a negritada
ou a em itálico, evidenciando a dificuldade de dar acabamento ao
que é sempre transitório e a outra dificuldade que é manter-se em
um único gênero quando o fluxo e a construção do próprio texto
forçam-no para várias direções.
A hesitação proposta pela criação de mais de uma direção
de sentido e de leitura na obra de Ponge, pela armadilha tecida nas
verdadeiras linhas de fuga que levam o texto para fora si, podem ser
vistas como uma desconfiança dos procedimentos hierárquicos
envolvidos nos gêneros e nos modos de leitura que eles estipulam.
O pesquisador Marcos Siscar, em artigo intitulado “Figuras da
prosa: a ideia da ‘prosa’ como questão de poesia” afirma que essa
passagem da poesia à prosa
9
e privilegiado do poético em relação aos outros gêneros ou às outras
formas, podemos estabelecer uma aproximação com a própria
condição do regime estético das artes, identificado por Rancière. O
esteticismo da obra de arte moderna e contemporânea não se opõe
ao mundo prosaico com vistas a uma experimentação das formas,
mas propõe, a partir de uma maneira peculiar, a criação ou
imaginação de lugares para a arte ou a criação e imaginação de
comunidades a partir da arte, ainda que, muitas vezes, o efeito seja a
manifestação estética da impossibilidade de lugares e comunidades
autônomas.
Mas, como isso será trabalhado em cada obra não
dependerá, necessariamente, das qualidades técnicas de cada forma
artística. Quando o crítico francês afirma que “a igualdade de todos
os temas é a negação de toda relação de necessidade entre uma
forma e um conteúdo determinados”14 está dizendo que não é mais
a poesia o lugar onde se presentifica, excepcionalmente, a palavra
original, a palavra primeira, a palavra mítica ou transcendente.
Tudo dependerá de como se trabalhar a herança dessas concepções
de palavra poética, ou, no caso de outras artes, a herança da
imagem, a herança da dramaturgia, a herança das hierarquias não
mais desejadas.
Quando Rancière caracteriza o regime representativo,
denomina-o de poético e, precisamente por isso, podemos alargar a
compreensão do movimento antipoético que temos na França e em
10
outros lugares, a partir dos anos 1960. O crítico associa poiesis e
mímesis no sentido de que, a medida que o poético – dentro de um
sistema da “belas artes”, que estipula maneiras de fazer – define-se
como atividade de imitação, a mímesis determina o que será visível
e o que será imitável. Ou seja, a partir de uma hierarquia na
comunidade estabelecia-se a hierarquia entre os gêneros ou entre as
técnicas. Resta-nos conjecturar se o regime estético, ao destruir as
hierarquias entre os gêneros e os vínculos entre forma e conteúdo,
não acaba por desatar também o nó entre poiesis e mímesis,
possibilitando que tanto uma quanto outra sejam apenas mais um
elemento de composição no conjunto da obra. O que não significa
que, sendo o regime estético um regime de convívio com a
democracia política, tudo se torne visível, pois a arte não mais
responderia à lógica mimética. Rancière deixa sempre em aberto a
temporalidade dos regimes que descreve, cabendo à recepção
perceber possibilidades de pertencimento a um tempo específico.
Por isso podemos afirmar que, mesmo não mais sob o imperativo
da mímesis, também não correspondemos a um tempo de total
invisibilidade ou ilegibilidade. A obra literária contemporânea não
coloca para si a obrigação de tudo tornar visível quando é mimética,
ainda que em um contexto de democracia das artes, nem tampouco
de fechar-se em si mesma, quando é anti-mimética. O que prevalece
como uma das heranças das vanguardas do início do século XX
talvez seja a parcela de negatividade e de enfrentamento da obra,
que a resguarda de uma total literalidade e transparência, mesmo
11
quando seu objetivo é estar em sintonia com a “prosa do mundo”.
O desafio, portanto, para a poesia que vem, é, como afirma Siscar:
“o desafio de dizer tudo e o direito de não dizer nada, de não
responder.”15
Em um conjunto de poemas intitulado “Margens”, do
poeta contemporâneo Carlito Azevedo, começa-se assim: “Nem
procurar, nem achar: só perder.”16 A perda é o começo da
consciência de um eu que não se quer mais no controle, de um
testemunho que não opõe sujeito e história (como é característico
do contexto pós-autônomo), de uma declaração da arte que não
pressupõe autoridade e autonomia. Se para Rancière o momento
de exultação das vanguardas e de emancipação do discurso artístico
tinha a ver com a experimentação radical das formas, o
contemporâneo, em sua recusa formal, condiz, analogamente, ao
momento de recusa e perda do próprio da arte, de seu centro. Mas a
arte estética é justamente a união dos contrários: 17 afirmação e
recusa, experimentalismo formal e dispersão ou fragilidade da
forma. Ambivalente, não mais autônoma, em crise: a arte torna-se
artística, isto é, de um substantivo – não mais alcançável – partimos
para um adjetivo. Um dos críticos de arte brasileira, Rodrigo Naves,
é categórico ao afirmar: “Nunca como hoje a arte se recusou tão
12
renhidamente a ser arte, ao mesmo tempo em que nunca foi tão
artística.”18 Poderíamos ainda desdobrar essa sentença no sentido de
que a arte nunca recusou tanto o gênero, ao mesmo tempo em
nunca foi tão genérica, no sentido de múltipla, sem especificidades,
divergente.
Se a forma-poesia vai, pode, deve desaparecer?
Possivelmente sim, se entendermos a forma não apenas como uma
maneira da matéria distender-se no espaço, mas a forma-poesia
como evento crítico, difícil, pois supõe o acabamento em um
contemporâneo inacabado, sempre adiado. Principalmente sim, se
estivermos considerando uma maneira ainda muito tradicional,
dependente dos anteparos, dos protocolos de leitura específicos,
pouco performática. O destino ou a ressurreição da forma-poesia,
como a concebemos, é absolutamente indeterminável, uma vez que
o verso em enjambement, uma das marcas da poesia
contemporânea, constitui-se justamente como a impossibilidade de
futuro, sendo sempre retorno, queda, desencontro, fratura. O elo
entre a falta e o contemporâneo, de que falávamos no início,
manifesta-se também no sentido da falta de privilégio e de
sustentação da poesia, pois o último verso, como mostra Agamben,
é sempre a falha da poesia diante da prosa.
Dado o espaço em branco ou o abismo que antecede
qualquer sentido na poesia, perguntamo-nos, em um retorno
reversível, como o do verso, Se pode, vai, deve a poesia existir em
13
meio a tanto silêncio e diante de sua perda constitutiva. Ou é
justamente para dar a ver toda a falta, toda a inconsistência, todo o
esvaziamento, que a poesia, como breve fulguração, no verso de
uma prosa, a preservar os fantasmas e as outras manifestações
dissolutas entre forma e conteúdo, deve, ainda, resistir.
REFERÊNCIAS:
14
MAULPOIX, Jean-Michel. Du lyrisme. Paris: Librairie José Corti,
2000.
15
A experiência do choque: o dizível, o indizível e a
representação do horror
16
“I want to go on living even after my death!”
Anne Frank
17
traços como dispositivos indispensáveis de registros testemunhal da
barbárie na era das catástrofes.
Narrar experiências psicológicas muito agressivas é um
exercício árduo e complexo, principalmente porque algumas de
suas principais características trazem o cunho da denúncia e do
desejo de exorcizar a dor. As lembranças geradas no ato de narrar o
trauma despertam pensamentos violentos e trazem à tona
experiências que a vítima gostaria de poder não lembrar.
Diferentemente de muitas narrativas de sobreviventes da Shoah,
Primo Levi afirma que não constrói sua obra como objeto de
denúncia, mas como um instrumento que facilita o acesso as
questões pertinentes a alma humana. No prefácio de, É isto um
homem?, ele afirma:
18
presente, uma vez que é impossível retornar ao passado para
averiguar os fatos, é um exercício difícil e que carrega elementos
cheios de suspeitas.
Apesar das consequências catastróficas geradas pela guerra,
da crise existencial fruto do confinamento no Lager e do confronto
da consciência imposto pelo tratamento anti-humano da
Alemanha nazista, Levi insiste, mediante incertezas, em revelar seu
testemunho. Como ele afirma: “Hoje – neste hoje verdadeiro,
enquanto estou sentado frente a uma mesa, escrevendo – hoje eu
mesmo não estou certo de que esses fatos tenham realmente
acontecido.” (Levi, 1988, p. 152). O que nos parece é que as funções
psíquicas de Levi estão alteradas. Confuso, ele se perde no tempo e
no espaço ao tentar relacionar o “hoje verdadeiro”, decifrar suas
lembranças traumáticas e afirmar a verdade dos fatos que tenta
narrar.
O querer não dizer, o querer não lembrar e exterminar de
vez as memórias que se quer esquecer é um esforço comum do
sobrevivente do trauma. Mas nem sempre é possível esquecer as
lembranças que não mais queremos recordar, e o desejo do
esquecimento se mistura com as imagens latentes dos fatos do
passado. O sociólogo e filósofo francês, Jean Baudrillard, nos
mostra que, “o esquecimento da exterminação faz parte da
exterminação, pois o é também da memória, da história, do social,
etc. Esse esquecimento é tão essencial como o acontecimento, de
qualquer modo impossível de encontrar para nós, inacessível na sua
19
verdade” (Baudrillard, 1991, p. 67). Mesmo com a impossibilidade
de acesso à verdade do acontecimento e do esquecimento, mesmo
com as incertezas geradas na mente e a insuficiência do poder
lembrar com exatidão, o valor testemunhal se estabelece para aferir
os fatos do passado. Adorno nos lembra que, “o excesso de
sofrimento real não permite esquecimento” (Adorno, 1973, p. 64).
A verdade dos acontecimentos dolorosos permanece na memória
da vítima e é produzida pelo poder da cultura que lhe é imposto.
Portanto, a obtenção da verdade se torna um legado cultural. O
filósofo francês, Michael Foucault, ao denotar a questão da
verdade, explana o seguinte:
20
é socialmente possível digerir, ainda que traumático. As palavras lhe
faltam para revelar e narrar a experiência do trauma com exatidão.
Diversos relatos e testemunhos de sobreviventes de Auschwitz,
inclusive o testemunho de Levi, nos mostra que é comum entre os
prisioneiros, concordar que somente aqueles que sobreviveram a
Auschwitz realmente entendem, ou entenderam, o que se passou
no Campo. Os observadores, os do lado de fora do Campo, ainda
que analisem seus testemunhos nunca poderão de fato
compreender o terror que os sobreviventes testemunharam.
Mesmo assim, para Levi, a verdadeira testemunha está muda ou
inacessível, e apesar de haver limitações na linguagem para narrar
seu testemunho, Levi afirma: “a história do Lager foi escrita quase
exclusivamente por aqueles que, como eu próprio, não tatearam
seu fundo. Quem o fez não voltou, ou então sua capacidade de
observação ficou paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão”
(Levi, 1990, p. 5). A verdade do relato testemunhal será sempre alvo
de questionamentos, mas o que importa, é que Levi, assim como
muitos outros sobreviventes, não se rendeu ao silêncio, não se calou
em favor das atrocidades sofridas no Campo. Mesmo com toda
insuficiência da linguagem para relatar o horror, sua narrativa nos
mostra que é no revelar da história, na perspectiva do vencido, que
a existência do indizível e do inacreditável se revela. Para Benjamin,
a história deve ser “escovada a contrapelo” (Benjamin, 2000, p.
225), ou seja, ir contra a tradição conformista dos ditos vencedores.
É preciso estar atento ao valor das contradições dos fatos narrados
21
pelo dominado e confrontá-los com as possíveis incoerências e
falsidades dos relatos do dominante. Só assim, quebrando a
empatia com o vencedor, a história dos vencidos reflorescerá.
A construção da história se dá mediante diferentes funções:
“memória, mito, transmissão da palavra e do exemplo, veículo da
tradição, consciência crítica do presente, decifração do destino da
humanidade, antecipação do futuro ou promessas de um retorno.”
(Foucault, 1990, p. 384). Foucault nos mostra que a história se
estabelece através de uma série de conhecimentos adquiridos pela
experiência e pela prática, cujo foco é moldar e instituir a identidade
de um povo. Para o filósofo,
22
geradas pela experiência vivida por Levi em Auschwitz, mas
reivindicar, “uma nova aliança com a verdade”, na tentativa de
entender que, “o verdadeiro engano está na promessa de
autenticidade”. Como explica Márcio Seligmann:
23
mesmo.” (Levi, 1988, p. 25). Desprovido de esperança, saúde mental
e física, o testemunho de Levi é marcado por traumas irreparáveis.
A experiência da tragédia pode ser delirante, o traumatizado fica
desorientado e por isso perde a razão. Conforme aponta Seligmann:
20 Uma possível tradução para o termo après-coup, que na psicanálise carrega o sentido
de ressignificação, seria “depois do golpe”. O termo está presente na obra freudiana
(Nachträglichkeit, em alemão), e foi desenvolvido por Jean Laplanche, por vezes
traduzido como a posteriori ou, ainda, só-depois, em português (tradução defendida
por Maia & Andrade). Maia, L., & Andrade, F. C. B. (2010). Nachträglichkeit:
leituras sobre o tempo na metapsicologia e na clínica. E studos de Psicanálise, 33, 75-
90.
24
tormento, dos abusos inexplicáveis e da desesperança. Ao relembrar
a crueldade no Campo, Levi aponta para a morte da alma e para a
barbaridade do homem em relação ao seu próximo.
25
Porque nos Campos perdem-se o hábito da esperança e até
a confiança no próprio raciocínio. No Campo, pensar não
serve para nada, porque os fatos acontecem, em geral, de
maneira incompreensível; pensar é, também, um mal
porque conserva viva uma sensibilidade que é fonte de
dor, enquanto uma clemente lei natural embota essa
sensibilidade quando o sofrimento passa de certo limite.
(Levi, 1988, p. 251-252)
26
assume o papel de testemunha da barbárie. Ademais, vivemos
cercados de uma rotineira representação da violência. Somos
obrigados a conviver com a violência como se ela fosse o único
dispositivo presente capaz de nos sensibilizar. Estamos ateados aos
extremos da barbárie, ao choque que tanto nos incomoda, mas que
também suprime a sensibilidade da mente e do coração. Esperamos
a desgraça como parte da conciliação da vivência. Acostumamo-nos
com as rotineiras e intermináveis imagens do trauma e da dor.
Imagens que nos cativam inconscientemente e nos anestesiam para
que aos poucos o choque deixe de ser necessário, perdendo assim, o
efeito de comunicar e sensibilizar o horror. Nas palavras de
Baudrillard,
27
esquecer se tornam ameaças constantes na mente do sobrevivente
do Campo. Tudo lhes foi tirado, foram reduzidos a nada e ao
inenarrável. Como Levi nos relata:
28
Levi faz do ofício de escrever uma necessidade e uma
obrigação. Ele resolve se despir através de seu testemunho para
deixar um legado do que o homem é capaz de fazer a outro homem.
Seu intuito é fazer com que sua obra funcione como um
documento histórico para a humanidade, consequentemente, a
extrema falta de dignidade e decência ilustra cada página de sua
obra testemunhal. Porém, escreve consciente de que nem todos irão
digerir um testemunho cujas palavras não são suficientes para
contá-lo, pois sabe que não há como se adaptar ao que é
absolutamente imanente. Como ele afirma: “bem sei que, contando
isso, dificilmente seremos compreendidos, e talvez seja bom assim.”
(Levi, 1988, p. 25). Para quem sobreviveu a Auschwitz, ser aceito ou
compreendido são fases passadas, etapas saturadas e desnecessárias
na vida do sobrevivente do caos. Ainda hoje, o que resta do Campo
físico em Auschwitz permanece no mesmo local, reafirmando o
testemunho daqueles que sobreviveram e contam suas histórias,
mas também, dos emudecidos e dos que se foram e não podem
mais falar. Porém, o vencido ganha voz nas narrativas dos que
decidiram transplantar a dor da experiência do choque, dos quais os
horrores ainda são incompreensíveis, mas cujas memórias insistem
em permanecer como o maior legado do horror na era das
catástrofes.
29
REFERÊNCIAS:
30
__________. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os
castigos, as penas, as impunidades. Tradução de Luiz Sérgio
Henriques. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 21.
31
Illusions of reality uncovered in parody of science
fiction: The Year of the Flood and The Hunger
Games
Amanda Pavani22
32
Science fiction has had a strong influence in contemporary
fiction forms. Since the late 19th century, novels, films, series, and
magazines spread tales of various themes, including global
warming, alien invasions, state violence, surveillance, robots, etc. In
common sense, science fiction is that umbrella term for fictions
that explore science’s influence on daily life, or for fictions that
speculate on the future of Earth and on the possibility of life in
other planets. However, while science fiction eludes definitions, it
also carries a history of certain narrative devices. Those narrative
devices and occasional clichés found in the genre constitute a coded
discourse, a group of conventions and expectations imbued in sci-fi
works.
Coded discourses can be subjected to parody, according to
Linda Hutcheon’s Theory of Parody (2000). She claims that
parody does not necessarily include an element of ridicule, an
attempt to belittle the source artwork or code, but that parody is
recognizable as long as it is an exercise of “ironic distancing” (p. 3),
as a conversational exercise about language conventions and art
itself. She also extends the matter of parody’s target. She proposes:
“[It] is always another work of art or, more generally, another form
of coded discourse” (p. 16), widening the possibilities for parody.
Although there is no definition of coded language, it is arguable
that it may contemplate formulas of discourse, structures of
communication that are so repeated that become part of a society.
In other to approach this issue, I studied two science fiction novels
33
published in the 2000s: Margaret Atwood’s The Year of the Flood
and Suzanne Collins’ The Hunger Games.
It is my contention that science fiction can be classified as a
coded discourse according to Hutcheon. Textual evidence in the
novels supports the idea that they parody science fiction’s
conventions, and that is mainly influenced by instances of the
simulacrum in the construction of that same parody. That parody
of science fiction conventions produces the effect of exposing
illusions of reality, namely that science, as a code, is not absolute,
and that science fiction is more than common sense would indicate.
Brian Stableford traces a line of science fiction history, in
the first chapter of The Cambridge Companion to Science Fiction
(2003). With the working concept of speculative fiction in late 19 th
century, stories covered imaginary worlds and scenarios; however,
as the 20th century began, the explanation given to accessing such
worlds involved the dream state. “Almost all of the colorful
fantasies in imitation of A Princess of Mars [1912] were essentially
dream stories, although few of them were scornful of facilitating
devices” (p. 29), claims Stableford; facilitating devices are what he
calls the access a given character had to the alternate reality, echoing
Atwood’s own comment on ustopia.
34
journey was a simple matter of a sea voyage, and then of
some sort of rescue by boat. (cap. 1)
35
is Huxley’s Brave New World, a classic science fiction
utopia/dystopia that begins with the Director touring students
through the fertilization process: “this receptacle was immersed in a
warm buillon containing free-swimming spermatozoa – at a
minimum concentration of one hundred thousand per cubic
centrimetre” (2007, p. 3). Clearly, scientific discourse is one of the
building blocks of the novel, giving the plot its fact-proof feel and
the notion of progress through science, eliminating differences
among individuals.
Huxley himself, part of a more mature stage of science
fiction that questioned its previous pristine reputation, was rejected
by science fiction writers of his time. He “was supposed to say
something uplifting about science and provide the emotional pay-
offs that come with adventure” (STABLEFORD, 2003, p. 45). The
resemblance of this criticism with Atwood’s reasons for denying the
label for her novels may not be accidental, for this was one of the
first backlash reactions to science fiction that do not revere science,
but the reactions consider the consequences of science’s
unrestricted development.
Following the conflicts of what could be named science
fiction and what could be not, typical of the 1950s and 1960s,
Stableford sees a before and an after to the process: “sf before the
1960s was predominantly empirical or readerly […] you accepted
what was on the page as if seeing through clear glass”, while the
later expressions were an “epistemological or writerly invitation to
36
endless interpretation.” (2003, p. 62, emphasis on original). This
process is relevant for the consideration of science fiction as a
consolidated genre with its own coded discourse; that
pseudoscientific, reverential speech whose inversion began in the
1960s but has been reaching its full fragmentation in the last
decades.
Published in 2008, The Hunger Games is a first-person
narration, whose voice belongs to Katniss Everdeen, a sixteen-year-
old girl who lives in District Twelve. The novel is set in Panem, a
futuristic dystopian society. On the other hand, published in 2009,
The Year of the Flood is a fragmented story told by two narrators
with different perspectives: Toby, an adult woman, whose
narration is in the third person, and Ren, initially a child, whose
narration is in the first person. Both are survivors of a viral plague
that decimated the majority of human kind, and they are left to
scrape on the remains of an ultracapitalist society.
The foremost sign of ironic distancing from the coded
discourse in science fiction that can be found in The Hunger
Games and The Year of the Flood is the treatment of that very tone
of awe towards scientific advancements. Katniss’s narrative voice, as
the high-speed train brings her to the pre-Games proceedings, at
first complies with tradition:
37
streets, the oddly dressed people with bizarre hair and
painted faces who have never missed a meal (COLLINS,
2008, p. 72).
38
question up front, then saying some general kind of thing as if they
knew it for a fact” (idem), says Ren, partially impressed, but mostly
confused about his language.
Additionally, what would be detailed explanations in praise
of the advancements of science mostly reach the characters in The
Year of the Flood through mediation, overly vague descriptions
caused either by lack of interest from the narrators or by the
passing on of explanations that lost their specificity before reaching
them in the first place. This can be seen in Ren’s description of the
effects of the BlyssPluss pill, introduced at her workplace:
39
Which had led to the concept of the BlyssPluss. The aim
was to produce a single pill, that, at one and the same
time:
a) would protect the user against all known sexually
transmitted diseases, fatal, inconvenient, or merely
unsightly;
b) would provide an unlimited supply of libido and sexual
prowess, coupled with a generalized sense of energy and
well-being, thus reducing the frustration and blocked
testosterone that led to jealousy and violence, and
eliminating feelings of low self-worth;
c) would prolong youth.
… The BlyssPluss pill would also act as a sure-fire one-
time-does-it-all birth-control pill, for male and female
alike. (ATWOOD, 2003, p. 346-7)
40
Another evidence of parody of science fiction as a coded
discourse in the novels, besides mediation, is the casual tone often
found in science fiction traits inserted in the plot, or how
inventions or mutations have mingled so intimately with their
environment that they do not stand out as scientific advancements
to the characters and/or narrators. That shift in tone of narrative
converses with the didactic tone in science fiction in general from
the 20th century, especially typical of utopian works within the
genre of science fiction. Edward James, in his chapter for The
Cambridge Companion to Science Fiction (2003), calls the practice
the “‘info-dump’, in which one character painstakingly explains the
details of this world” (JAMES, 2003, p. 222). In The Year of the
Flood and The Hunger Games, the explanatory voice is absent; a
sense of estrangement can be provoked on the reader by
juxtaposing nova and props already familiar for him/her. That
same estrangement establishes a dialectics of parody of coded
discourse when the reader (the decoder) recognizes the “info-
dump” from several other science fiction works.
In The Hunger Games, this is mainly seen in Collins’s
approach to birds. They have a strong symbolic presence in the
novel, in the presence of mockingbirds, jabberjays, and
mockingjays. Jabberjays, according to Katniss, were a species of
mutation created by the Capitol, able to hear and record entire
can never meet, and places we can't go – and speculative fiction, which employs the
means already more or less to hand, and takes place on Planet Earth” (ATWOOD,
2004, p. 514).
41
conversations among rebels. However, the rebels were said to have
discovered the maneuver and fed lies to the opposing side. As a
result, they were “abandoned to die off in the wild” (COLLINS,
2008, p. 52). The jabberjays mated with mockingbirds, creating
mockingjays, able to reproduce bird and human notes. Needless to
say, mockingjays play a crucial role not only in the novel, but
throughout the series. As Katniss becomes the symbol of the rebels,
she will be called “the Mockingjay”, a result of the artificial and the
natural combined.
When proposing that parody does not necessarily aim at
demoralizing an artwork and arguing for a range of pragmatic
ethos in its practice, Hutcheon points at the act of communication
between encoder and decoder. Both “must effect a structural
superimposition of texts that incorporates the old into the new.
Parody is a bitextual synthesis.” (HUTCHEON, 2000, p. 33) The
first artwork can be seen as the jabberjay and its parody the
mockingjay. Their synthesis points at their similarities and their
differences: the mockingjay is born in the wild, able to recognize
human and bird songs – what they share is the trait of
reproduction. Be that reproduction approximate, vague,
purposeful or casual, it is the synthesis among them, and it makes
the failure of humankind in designing an animal for their spying
needs explicit.
In parallel with the symbolic use of birds in The Hunger
Games, there is also the shift with “info-dump”. Katniss explains
42
how jabberjays were created and then banished; however, she is
content with calling them “mutations, or mutts” instead of
explaining how a bird could possibly carry its animal appearance
while tracking, selecting, and recording conversations that might
interest the Capitol. Her interest lies in the way the animals were
discarded, but they found a way to perpetuate some of their traits,
eventually becoming a symbol of resistance. She calls the
mockingjays “something of a slap in the face of the Capitol”
(COLLINS, 2008, p. 51). The “info-dump” only consists of an
anecdote on the way the oppressive government was fooled in the
past and its symbolic value will pervade the construction of her
character (Katniss’s relationship with her father and, consequently,
with music), explaining some points without actually explaining
them.
The Year of the Flood, on the other hand, does not even
bother with explanations that are not explanations. In fact, the
reader may go through most of the novel without actually
understanding some of its nova or may even go without noticing
them. There is a sense of the casual that pervades descriptions of
the environment around the characters that signals a naturalization
of the effects of scientific development. They have mingled with
natural species for so long that they “feel natural” to the characters.
This is notable from the first chapter on Toby’s narration, situating
her in the isolated AnooYoo Spa.
43
The swimming pool has a mottled blanket of algae.
Already there are frogs. The herons and the egrets and the
peagrets hunt them, at the shallow end. For a while Toby
tried to scoop out the small animals that had blundered in
and drowned. The luminous green rabbits, the rats, the
rakunks, with their striped tails and raccoon bandit masks.
But now she leaves them alone. Maybe they’ll generate
fish, somehow. When the pool is more like a swamp.
(ATWOOD, 2009, p. 4)
44
The novels analyzed, among several other characteristics,
present plots occurring in alternate societies. However, neither
Panem nor the remains of North America from The Year of the
Flood claim to be wholly separate societies from the current,
existing one and its dynamics of power. In fact, it is arguable
whether creating an alternative result to the influence of humans
on the planet is even possible. While that is the claim in some
science fiction works, critics like Terry Eagleton and Fredric
Jameson, for instance, disagree that it can be achieved. For
Eagleton, science fiction often changes a few variables, but
maintains the structure of known or current societies: “What
renders these tales so suspect is not the strangeness of these beings,
but exactly the opposite. Apart from an extra limb or two […] they
look much like Bill Gates or Tony Blair” (EAGLETON, 2000, p.
31).
An resulting effect of parodying a coded discourse by
exposing the ambiguities in its relations among signs and formulas 25
involves the exposure of illusions of absolute truths or of reality.
Exposed unmediated communication can be seen in the parody of
science fiction discourse. In the subversion of genre conventions,
the concept of science as absolute knowledge is questioned. The
creation of the Crakers (a posthuman species engineered by Crake
to be an improvement on humankind as it is now) and the attempt
45
at extinguishing humans show the extreme reached by Crake’s
assessment of the role of science. The exaggeration in valuing the
hard sciences identified in Oryx and Crake and furthered in The
Year of the Flood can be identified as one of the factors in scientific
advancements multiplying out of control. The belief, in the history
of science fiction, that the genre should broadcast the wonders of
science is questioned in the quasi-scientific explanations found in
The Hunger Games and The Year of the Flood. The traditional
info-dump is substituted by vague and mediated accounts of
scientific advancements that near the realm of “magic”, in the sense
that science, in the novels, seems to act on its own volition and its
ways are not quite clear for the narrators or for the readers.
Parody exposes the reliability of formulas and codes,
although it does not necessarily preach their extinction. It is
possible to remark that parody of coded discourses exposes
illusions of true reality and establishes these fragilities to incentive a
proceed-with-care ethos when dealing with mediated discourses.
These illusions are revealed at a literary level through the ironic
distancing that parody allows to take place. In these novels,
simulacra are directly related to unveiling illusions about science
fiction as coded discourse, especially in relation to the hyperreal
proposed by Baudrillard’s theory of simulation.
46
WORKS CITED:
ATWOOD, Margaret. The Handmaid's Tale and Oryx and Crake ‘In
Context’. The Next Millennium v. 119 n. 3, p. 513-517. 2004.
47
Adaptação e intertextualidade no texto inédito do
roteiro cinematográfico de A hora dos
ruminantes : um espetáculo político
48
Este trabalho pretende trazer à luz um texto esquecido, mas
cuja importância para a cultura brasileira é enorme. Trata-se do
roteiro de “A hora dos ruminantes”, 27 escrito em 1967 por Luís
Sergio Person e Jean-Claude Bernardet, baseado na obra literária
homônima de José J. Veiga, publicada em 1966.
Este é o objeto de estudo de nosso Doutorado iniciado em
2015 no Departamento de Estudos Literários da Faculdade de
Letras da UFMG. A linha de pesquisa de “Literatura, outras artes e
mídias” é um espaço privilegiado para desenvolver este tipo de
reflexão, afinal, os textos de roteiro são pouco estudados, e ainda
menos dentro do âmbito do estudos literários.
Antes de descrever o roteiro e seus anexos, começaremos
por apresentar brevemente o contexto e os autores do roteiro, o
cineasta Luís Sérgio Person (1936-1976) e o crítico e roteirista Jean-
Claude Bernardet (1936-), bem como o autor de sua matriz literária,
o escritor goiano José J. Veiga (1915-1999). Trataremos da relação
destes artistas com algumas questões do panorama cultural
brasileiro da época.
Começaremos por tratar dos autores do roteiro Person e
Bernardet e sua colaboração. Depois apresentaremos o texto do
projeto de “A hora dos ruminantes” (inspirado na obra de Veiga)
para em seguida desenvolver três de seus aspectos principais: o
49
aspecto insólito/absurdo, o aspecto político-ideológico e o aspecto
comercial e mercadológico ou espetacular.
Luís Sérgio Person foi um dos mais importantes cineastas
brasileiros de seu tempo, cuja bem-sucedida e promissora carreira
foi abreviada de forma trágica por um acidente automobilístico.
Depois de estudar cinema na Itália, Person volta ao Brasil
em 1963 e filma São Paulo Sociedade Anônima, inspirado na sua
experiência no meio empresarial de São Paulo durante a expansão
da indústria de automóveis. O filme, uma narrativa fragmentada,
cheia de elementos modernos, representa um jovem (Carlos) que,
enquanto ascende na sua carreira de industrial, vê-se perdido em
questionamentos, entre a revolta contida, o egoísmo, a alienação e
reificação na grande metrópole.
Naquela época, chama a atenção de Person o texto sobre
São Paulo Sociedade Anônima de um crítico que frequentava o
meio paulista: trata-se de seu futuro amigo e colaborador, Jean-
Claude Bernardet. Ele defende que, ao representar a classe média
questionando a si própria, o filme de Person se diferenciava
radicalmente do Cinema Novo, cuja tentativa até o momento vinha
sendo a de dar voz às classes populares, retratando a miséria e o
subdesenvolvimento, tanto no meio urbano – como em Rio
Quarenta Graus (1955) e Rio Zona Norte (1957) – quanto no meio
rural – como é o caso de Vidas Secas (1964), Os fuzis (1964) e Deus
e o diabo na terra do sol (1964). Focados no sertão e na favela, os
cinemanovistas praticavam uma categoria de filmes que explicam o
50
povo à burguesia, em vez de explicar o povo a si mesmo. O aspecto
didático era levado em conta, como se o cinema fosse capaz de
ensinar (“conscientizar” era o termo usado na época) sobre o
sistema político-social. Entretanto, ao idealizar as classes populares
e projetar nelas seus anseios revolucionários, o cineasta
cinemanovista raramente conseguia penetrar o mecanismo social
global.28
Bernardet considera que o golpe de 1964 acelerou a
evolução do Cinema Novo, levando-o a retratar mais a classe média
urbana – fenômeno do qual faria parte São Paulo Sociedade
Anônima. Segundo ele, Person desloca o foco para a classe média na
metrópole, levando a um questionamento dentro da própria classe
social produtora e consumidora do Cinema Novo. O jovem
espectador de classe média vê espelhado no filme o seu próprio
dilema de aceitar tornar-se um cúmplice preso no mecanismo
socioeconômico.
Inicialmente, a visão do jovem crítico Bernardet era de que
o valor (artístico, estético, cinematográfico) de um filme era
independente de seus significados ideológicos e econômicos. O
importante não era realizar uma obra-prima, mas sim trazer novos
aspectos que fizessem evoluir a cinematografia nacional, para que o
país fosse representado por inteiro (classe baixa, classe média e
classe alta), considerando porém que, para além do contexto
econômico, político e social, o mais importante era se interrogar
51
sobre a relação que o filme estabelece com o espectador e com o
mundo.
No segundo semestre de 1965, Person vai à Universidade de
Brasília procurar Bernardet, trazendo no bolso um recorte
amarelado de uma notícia de 1956 sobre um erro judiciário ocorrido
em Araguari, Goiás. Inicia-se aí uma profícua colaboração que
deixou três roteiros, dos quais apenas o primeiro foi filmado: trata-
se de O Caso dos Irmãos Naves, de 1967.
O caso dos irmãos Naves narra a história de dois irmãos que
são presos por um crime que não cometeram e, sob tortura e
ameaças, acabam por confessar um crime que nunca existiu.
Usando elenco não-profissional e filmando in locu (coerente com
sua filiação ao Neorrealismo italiano), Person constrói um filme
político que denuncia o poder violento e arbitrário. Apesar de
situado cronologicamente na Era Vargas, a relação com o presente
era evidente para a maioria do público.
Centrado no debate moral e político, O Caso dos Irmãos
Naves é uma mistura de gêneros cinematográficos, oscilando entre
o Neorrealismo, o gênero policial e o drama judiciário (os
chamados “courtroom dramas”, que a essa época começavam a se
popularizar no cinema americano).
Recolhe algumas críticas favoráveis, outras nem tanto. Sem
ser censurado, o filme é entendido nos meios intelectuais como
película política, sendo levado pelo produtor Glauko Mirko
Laurelli ao Festival de Moscou em 1967. Segundo Bernardet: “ O
52
Caso dos irmãos Naves passou sem problema pela censura (o que
não teria provavelmente ocorrido se tivesse sido produzido depois
do AI-5), mas não foi muito bem recebido quando de seu
lançamento em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em compensação, as
reações do público foram excelentes em várias cidades dos estados
de São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso. Mario Civelli, o
produtor, recebeu telegramas entusiastas de exibidores, que diziam
que o filme refletia a vida do interior e que precisavam de mais
filmes desse tipo”.
Aqui começa a nascer uma nova ideia. Empolgado com este
resultado que o produtor Mario Civelli resolve apostar numa ideia
parecida, e faz a encomenda à dupla de colaboradores Person e
Bernardet. Desta encomenda nascerá o nosso objeto de estudo: o
roteiro de “A hora dos ruminantes”.
Bernardet defende que motivação para a escolha da obra
literária teria sido a pressa, pois não havia tempo para a criação de
um argumento original. De qualquer maneira, naquela época, as
adaptações literárias se tornam cada vez mais frequentes: em parte
pelo surgimento de leis de incentivo econômico a produções
inspiradas em escritores brasileiros; e por outro lado, porque a
censura tornava mais difícil a criação de roteiros originais.
Sobretudo neste período das décadas de 1960 e 1970, as
adaptações literárias proliferam, especialmente as de autores
nacionais já consagrados. Embora recorrentes, estas adaptações
cinematográficas de obras literárias raramente são fiéis. Pode-se
53
argumentar que, em dado momento, a literatura passou a servir
como “escudo” contra a censura, já que esta via nos roteiros
originais alvos mais fáceis. Só que em alguns casos a narrativa
original era usada apenas como leitmotiv inicial, pouco tendo a ver
com a obra cinematográfica final. É o caso de Vidas Secas (1963) O
padre e a moça (1963), Menino de engenho (1965) A hora e a vez de
Augusto Matraga (1965) e Macunaíma (1969) - a maioria pouco fiel
à respectiva matriz literária.
Como vimos, havia preferência por autores já consagrados.
Era rara a escolha de autores vivos, e ainda por cima estreantes.
Hoje reconhecido como grande escritor, naquela época
Veiga era quase um iniciante, apesar de já não ser mais moço. A
expectativa deixada por seu elogiado livro de estreia, Os cavalinhos
do Platiplanto (1959) não foi quebrada pelo livro seguinte, sua
primeira narrativa longa (geralmente classificada como uma
novela): A hora dos ruminantes.
Tendo-se dedicado inicialmente ao Regionalismo, a
literatura de Veiga vai pouco a pouco ganhando seus contornos
fantásticos característicos. É conhecido o fato de que, com o tempo,
o escritor passou a ser associado ao realismo mágico latino-
americano – embora ele próprio negasse a influência. Sem rejeitar a
qualidade desses escritores, Veiga dizia simplesmente não tê-los
conhecido a tempo. O texto da contracapa da primeira edição:
54
sob a ameaça da opressão e da violência. Poderão os
homens estranhos, sistemáticos, de poucas palavras,
exigentes e inflexíveis, dominar pelo terror o pequeno
lugarejo? Ou os habitantes da cidadezinha – uns
acomodados, outros altivos, êstes rebeldes, aquêles
indiferentes – levarão os usurpadores à desagregação e à
derrota?”
55
caro; e por fim o jovem Pedrinho que sofre torturas dos homens,
auxiliados por sua própria namorada, Nazaré.
A leitura da alegoria política, certamente a mais frequente,
tende a associar a obra ao momento histórico em que é publicada: o
ano de 1966, entre o golpe e os anos de chumbo – o que Élio
Gaspari chamou de Ditadura Envergonhada. Entretanto, o próprio
autor é o primeiro a questionar uma leitura demasiado datada.
Embora admita a influência do ambiente político nas outras obras
de seu chamado “Ciclo Sombrio”, Veiga nega a influência do
momento histórico brasileiro sobre A hora dos ruminantes ao
omiti-lo da lista.
Se a influência do momento histórico é ambígua no
exemplo de A hora dos ruminantes, o fato é que para o nosso
objeto de estudo – o roteiro cinematográfico de Person e Bernardet
inspirado na obra de Veiga – a influência da realidade histórica e
política é inegável. Bernardet cita o projeto de “A hora dos
ruminantes” ao falar de O caso dos Irmãos Naves:
56
Terminado em julho de 1967, o roteiro de “A hora dos
ruminantes” teria sido o projeto mais importante da filmografia de
Luís Sérgio Person. Impossibilitado de realizá-lo, na tentativa
obsessiva de concretizar seu projeto, viaja aos Estados Unidos em
1973 no intuito (vão) de conseguir financiamento para o projeto.
Portanto três anos antes de sua morte – já durante o regime Médici
e logo antes do regime Geisel – Person ainda considerava este
projeto de suma importância para sua carreira e para o Brasil.
57
portanto não integre nosso corpus primário), este trecho é
representativo da importância também dos anexos (que compõem
nosso corpus secundário) para o entendimento dos já citados
“movimentos de linguagem” do texto estudado.
58
motivo os homens oprimem, mas sim verificar como e até que
ponto as pessoas vão resistir ou ceder à opressão em si mesma.
O tom do filme oscila constantemente entre a comédia
mais pura e o drama que frequentemente se insere de modo
patético no amolecimento e na resignação de certos personagens.
Além da COR, que terá substancial aproveitamento na
realização, pode-se dizer que se trata de um filme espetáculo, onde
não faltará música, danças, desfiles, deslumbramento e também
uma grande dose de emoção com as vigorosas cenas da invasão dos
cachorros e a tomada de Manarairema pelas manadas de bois.
O nível de produção, a clareza e a linearidade da estória,
fazem com que o filme atinja o público de todas as categorias,
abrindo também uma possibilidade de mercado exterior.
59
prática, os problemas do público, do financiamento e da
distribuição inerentes ao cinema brasileiro da época e, ao mesmo
tempo, levar a mensagem ideológica do filme (sua “moral”) ao
maior número de “espectadores de melhor nível”, motivando-os a
“participar do filme”.
Em vários aspectos, “A hora dos ruminantes” seria um filme
profundamente popular. Por passar-se no interior do Brasil, o filme
exploraria o nicho aberto por O caso dos irmãos Naves e apostaria
na distribuição no interior mais do que nas capitais. A própria
produção seria realizada no interior, retomando o modelo de
produção econômica usado em O caso dos irmãos Naves.
Como vimos na descrição da “Idéia e realização”, os autores
pretendiam que os aspectos visual e sonoro fossem bastante
desenvolvidos em “A hora dos ruminantes” – aquele que teria sido
o primeiro filme colorido de Person. No que se refere à música,
havia a intenção de usá-la para sublinhar alguns contornos
simbólicos do filme. Instrumentais de viola aparecem ao longo de
todo o roteiro. Um dos elementos espetaculares de “A hora dos
ruminantes” seria o uso do narrador-cantador, que ajudaria a
contar a história e comentaria determinados episódios.
O texto do roteiro de “A hora dos ruminantes” se define
como iniciativa inédita no horizonte cinematográfico, brasileiro ou
internacional, daquela época ou de agora. A originalidade de “A
hora dos ruminantes” foi pensar um modelo de cinema equilibrado
no tripé: arte, política e espetáculo.
60
Trata-se portanto de um texto de profunda importância
tanto para a história do cinema mundial quanto dentro do
panorama cultural brasileiro daquela época. É lamentável que,
quase cinquenta anos depois de escrito, este texto continue inédito,
não tendo nunca sido estudado ou publicado. Nosso estudo será o
primeiro sobre “A hora dos ruminantes” de Person e Bernardet.
No que diz respeito à problemática da adaptação, a base
teórica para esta parte do nosso trabalho será a obra já citada A
Theory of Adaptation de Linda Hutcheon. Partindo do conceito
bakhtiniano de intertextualidade e dialogando com o Formalismo
russo, com a semiótica barthesiana e com diversas outras correntes
teóricas, Hutcheon procura pensar uma teoria de adaptação
inteiramente nova, que segue a trilha do pensamento formalista,
mas que inova ao romper com a ideia de uma adaptação
“vampírica” e ao subverter a hierarquia entre original e imitação.
Chama a atenção também a atualidade do corpus de análise de
Hutcheon: são exemplos inteiramente novos, que vão da literatura
e do cinema chegando até a música e o video game. Encontramos
na revisão e reelaboração teórica feita por Hutcheon um novo
fôlego nos estudos de intermidialidade e adaptação interartística.
Sempre que for necessário, recorreremos aos pensadores com os
quais Hutcheon dialoga: além dos já citados, também há os teóricos
do cinema, como Eisenstein, Metz ou os (já citados) formalistas
russos. Procuraremos utilizar o prisma de Hutcheon para re-
61
significar estas abordagens – que podem parecer datadas mas cuja
importância é fundamental.
Orientando toda esta reflexão a respeito da reescritura em
diferentes planos, estará o conceito proposta por Hutcheon de
“intertextualidade palimpsestuosa”, que parece ser bastante
apropriado para descrever a multiplicidade de recursos reescriturais
em “A hora dos ruminantes”. Hutcheon chama atenção para o fato
de que este tipo de adaptação possui “lâminas” de sentido, e que a
conexão em diferentes planos é o que define a sua identidade
formal, ou o que chamaríamos de identidade hermenêutica
(HUTCHEON, p. 21).
A nosso ver, a maior originalidade do roteiro de “A hora
dos ruminantes” foi o fato de constituir um equilíbrio inédito entre
estética, ideologia e espetáculo. Um tipo de cinema que, partindo
de anseios político-ideológicos, representasse o povo, falando na
linguagem do povo (aproximando-se do Cinema Novo) porém
subvertendo o modelo cinemanovista ao utilizar elementos do
cinema comercial americano (cor, música, dança, montagem ágil).
Porém, ao invés de produzir um espetáculo alienante, Person e
Bernardet pretendiam justamente utilizar estes elementos
espetaculares para viabilizar um filme político.
Nosso trabalho de pesquisa de Doutorado iniciado em 2015
no Departamento de Estudos Literários da UFMG procura se
concentrar sobre três aspectos: primeiro, o estabelecimento do
texto; em segundo lugar, o processo adaptação (como o livro de
62
Veiga dá origem ao texto do roteiro de Person e Bernardet); e em
terceiro lugar, procuraremos entender como o projeto fílmico do
roteiro equilibra três aspectos da arte cinematográfica: estética,
ideologia e espetáculo.
Novembro de 2015
Marcelo Cordeiro de Mello
marcelocmello@gmail.com
REFERÊNCIAS:
1 – Corpus:
BERNARDET, Jean-Claude; PERSON, Luís Sérgio. A hora dos
ruminantes. Roteiro cinematográfico e anexos. Baseado na obra
homônima de José J. Veiga. Concluído em julho de 1967 em São
Paulo. Texto inédito pertencente ao acervo da Cinema Brasileira de
São Paulo. Doado por Jean-Claude Bernardet em abril de 1983.
2 – Obra adaptada:
VEIGA, José J. A hora dos ruminantes. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1966.
63
CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. Forma e ideologia no
romance hispano-americano. São Paulo: Perspectiva, 1980.
PRADO, Antonio Arnoni (org.). Atrás do mágico relance: Uma
conversa com J. J. Veiga. Campinas: Editora Unicamp, 1989.
PRADO, A. A. 'Prefácio' In: VEIGA, José J. A hora dos
ruminantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
RAMA, Angel (org.). Más allá del boom: Literatura y mercado .
Cidade do México: Marcha Editores, 1981.
64
FERRO, Marc. Cinéma et histoire. Paris: Gallimard, 1993.
65
Estética e política: uma leitura da fórmula, em
Bartleby, o escriturário, de Herman Melville
66
Gilles Deleuze, de modo particular e transgressor, propôs
uma análise para o texto de Melville tendo como foco a fórmula I
would prefer not to proferida por Bartleby. Ao utilizar uma
abordagem analítica centrada em um horizonte teórico, que se põe
a ler o texto na contramão da tradição hermenêutica, apresenta-nos
a originalidade de seu método, que tem como gênese a força de
elevar o ato de pensar a uma “máquina de guerra” 32 em potencial. O
pensamento maquínico reverbera na imanência do texto literário e
faz com que o ato interpretativo nos leve a “sentir o efeito violento
de um signo, e que o pensamento seja como que forçado a procurar
o sentido do signo” (DELEUZE, 2003, p. 22). A sistematização do
método interpretativo defendido por Deleuze ao analisar Bartleby
opera por meio de um deslocamento que recusa uma leitura
metafísica, e vai em defesa de sentido do próprio texto em sua
materialidade. De acordo com Deleuze:
67
Deleuze destaca em sua interpretação a fórmula usada por
Bartleby, que operando pelo estranhamento gera um efeito cômico
e insere intensidade no texto. O cômico tem sua origem na
fórmula, que se manifesta como um procedimento, que tem por
força o imprevisto, o inesperado, o absurdo e torna-se a mola
propulsora para a tensão e o conflito. A fórmula regula todo o
mecanismo do texto e corrói a esfera de organização hierárquica e
social que incide sobre o universo racional do advogado e,
consequentemente, causa um desequilíbrio em toda a
macroestrutura textual.
A fórmula é capaz de condensar todos os sentidos para si.
Como efeito, a atuação da fórmula leva a língua a um desequilíbrio
crescente, faz dela um “rizoma”, 33 uma disjunção, provocando o
bloqueio de sentido, que se alterna entre fluxos e cortes.
“Murmurada numa voz suave, paciente, átona, ela atinge o
irremissível, formando um bloco inarticulado, um sopro único. A
esse respeito tem a mesma força, o mesmo papel que uma fórmula
agramatical” (DELEUZE, 2011, p. 91). A fórmula leva a língua ao
limite, desarticula a arbitrariedade da língua, obscurece e
enlouquece a linguagem nova que vai “minar pressupostos da
68
linguagem” (DELEUZE, 2011, p. 97), exercendo a função da
agramaticalidade. “Apesar de sua construção normal, ela soa como
uma anomalia” (DELEUZE, 2011, p. 92). Essa explosão da fórmula
desorganiza a matéria informe, esvazia o discurso, desestrutura a
lógica do mundo. A agramaticalidade, segundo o plano conceitual
de Deleuze acerca da linguagem, é um ato transgressor que
radicaliza pela potencialidade:
69
Melville provoca com a repetição da fórmula uma explosão de
intensidade e abre profícua via de criação estética capaz de atingir o
esplendor da linguagem e consequentemente fazer ouvir o sublime.
Embutida nessa pergunta está o fulcro da afirmação que assinala a
principal veia da interpretação deleuziana, o liame entre literatura e
vida.
A literatura, segundo Deleuze, é uma potência, uma força
que violenta o pensamento, é um “devir”34. Em Crítica e Clínica
(2011), no texto “A literatura e a vida”, Deleuze [o filósofo] destaca
que “Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via
de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria visível ou vivida”
(DELEUZE, 2011, p. 11). No processo de criação, o devir do escritor
arrasta a língua para um estado de “gagueira”, 35 em que os códigos
se reconectam em uma nova engrenagem, num intenso movimento
maquínico da palavra.
É notável verificar que a argumentação de Deleuze atinge
seu ponto nodal ao enfatizar ao extremo a potencialidade da
linguagem e comparar a fórmula de Bartleby a essa capacidade de
operar e fazer emergir um mundo possível dentro da própria
linguagem. “[...] com efeito, quando se cria uma outra língua no
34 "Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de
justiça ou de verdade” (apud ZOURABICHVILI: 2004, p. 24).
35 Segundo Deleuze, somente os grandes escritores conseguem introduzir estágio de
gagueira em uma língua: “[...] um grande escritor sempre se encontra como um
estrangeiro na língua em que se exprime, mesmo quando é a sua língua natal. No
limite, ele toma forças numa minoria muda desconhecida, que só a ele pertence. É
um estrangeiro em sua própria língua: não mistura outra língua à sua, e sim talha na
sua língua uma língua estrangeira que não preexiste. Fazer a língua gritar, gaguejar,
balbuciar, murmurar em si mesma” (DELEUZE, 2011, p. 141).
70
interior da língua, a linguagem inteira tende para um limite
‘assintático’, ‘agramatical’, ou que se comunica com seu próprio
fora” (DELEUZE, 2011, p. 9). A linguagem que desarticular a
ordem gramatical é capaz de dizer o indizível através de sua
potência de significados. Como afirma Deleuze:
71
Com efeito, as reflexões realizadas até aqui, e em
consonância com a análise deleuziana do texto de Melville, nos
conduzem a um debate sobre a aproximação entre literatura e
estética. A concepção de estética na leitura de Deleuze é bastante
sugestiva. Mais precisamente destaca a singularidade e a intensidade
com que o texto é capaz de desestabilizar o leitor. O filósofo realiza
a leitura do texto de Melville destacando que é tomando como foco
a materialização da experiência do real na obra que se mostra o seu
brilho absoluto, sua densidade estética.
Por trás de uma “resistência passiva” (MELVILLE, 2012, p.
37) dessa aparente visão tranquilizadora, há em Bartleby um gesto
de imprecisão que se contrapõe, levando o narrador a uma
impotência. Há dois movimentos, a manutenção e a subversão da
ordem, um paradoxo. De acordo com Deleuze, o paradoxo “é a
subversão simultânea do bom senso e senso comum” (2009, p. 81).
Como se vê, a fórmula permite a Bartleby impor uma força que
suspende com uma ordem estabelecida. “O ponto principal não era
que eu tinha de concluir que ele devia deixar-me, mas se ele
preferiria fazê-lo. Ele era mais um homem de preferências do que de
conclusões” (MELVILLE, 2012, p. 62). A fórmula de Bartleby
funciona como resistência que entra em ação por meio da quebra
da lógica da língua, sempre operando pelo vazio do desejo e pela
política da negatividade, de modo que a fórmula torna-se causa
determinadora de Bartleby. A fórmula desarticula os atos da fala
segundo os pressupostos sobre os quais o sujeito comanda o
72
mundo. O fato de o patrão não poder mais controlar, impor seu
discurso, em função da política de resistência do empregado, faz
com que a língua deixe de ser o domínio social do poder
centralizador. Com a fórmula, Bartleby desarticula o domínio do
outro sobre si.
Os fundamentos críticos das grandes desilusões do sujeito
moderno estão presentes no texto de Melville. A personagem
aporta no contexto do homem moderno vivendo numa unidade
paradoxal. Bartleby surge na lógica da estabilidade das organizações
burocráticas, mas rompe com o discurso da razão desvencilhando-
se do mundo e fechando-se em si mesmo. Imerso em sua solidão,
no vazio aberto pelo seu engodo, chega a uma incontornável
situação-limite. Dessa forma, o pensamento de Marshall Berman
nos parece apropriado para compreendermos a lógica do mundo
moderno e a experiência da modernidade. Bartleby se enquadra no
exemplar homem moderno em meio a “uma vida de paradoxo e
contradição“ (BERMAN, 2014, p. 21). O texto de Melville traz à
tona o sintoma da experiência social do sujeito moderno vivendo
em uma sociedade que perdeu o sentido de sujeito. A síndrome de
Bartleby põe à tona a problematização dessa visão paradoxal em
que não é mais possível discernir o sim do não, a razão da loucura,
pois se contaminam mutuamente.
Bartleby se insere numa lógica que coloca em cheque sua
complexa condição na relação do sujeito moderno no mundo
movido pelo capital. Vivendo em Wall Street, símbolo do
73
capitalismo, estando no limite da lógica instrumental, radicaliza os
parâmetros da ordem instituída, desestabiliza o sistema em questão.
“Bartleby invisível faz um trabalho ‘mecânico’ considerável”
(DELEUZE, 2011, p. 99). Bartleby se sustenta em própria fórmula e
por meio dela vai de um extremo a outro, e sua visibilidade ganha
relevância funcional na narrativa. Nessa lógica interpretativa, a
fórmula domina o texto e é motor da linguagem intransitiva em
permanente latência. A fórmula em si já é suficiente para desnudar
a falibilidade das estruturas que sustentam o discurso do advogado.
A literatura abastece o impulso narrativo e, conforme propõe
Deleuze, produz uma nova linguagem, um discurso da alteridade,
capaz de confrontar o dominante e o poder. Talvez estivesse aí a
questão limite que o texto de Melville propõe refletir.
Em Kafka, por uma literatura menor, Deleuze e Guattari
desenvolvem um trabalho com a linguagem. Ao analisarem a obra
de Kafka trazem à tona o conceito de “literatura menor”. A
literatura menor postulada pelos críticos é aquela capaz de produzir
ruídos em sua conjuntura social-linguística. “Uma literatura menor
não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em
uma língua maior. No entanto, a primeira característica é, de
qualquer modo, que a língua aí é modificada por um forte
coeficiente de desterritorialização” (DELEUZE, GUATTARI,
2002, p. 25). Dessa forma, a literatura menor se destaca dentre suas
características, “a desterritorialização da língua, a ligação do
individual no imediato-político, o agenciamento coletivo da
74
enunciação” (DELEUZE, GUATTARI, 2002, p. 28). Deleuze
propõe pensar a literatura como um agenciamento político a partir
da relação possível entre linguagem e política.
Com base na análise que Deleuze faz sobre a fórmula de
Bartebly, é possível pensar as relações entre estética e política de
resistência, notadamente presentes no horizonte teórico
deleuziano. O texto de Melville, conforme direciona a interpretação
de Deleuze, permite pensar o binômio estética/política tomando
como parâmetro o lugar do discurso europeu na América, a
condição do colonizador e colonizado. Com Bartleby, evidencia-se a
resistência pelo domínio da língua e têm-se a psicose americana,
que extrapola e desterritorializa os limites da neurose europeia que,
por sua vez, territorializa a língua.
Bartleby, segundo Deleuze, problematiza a função pai e
filho. Ao morrer na prisão recusa “a caridade paterna e a imunda
caridade.” (DELEUZE, 2011, p. 116). No texto, o advogado [o pai],
exerce a função paterna da língua, de imagem, de modelo e o
escrivão [o filho] o de sujeito que opera por meio de uma lógica
contrária. Ambos desenvolvem relação arbitrária que embaralha a
função paterna e o modelo de representação, fazendo com que se
instaure a ambiguidade.
Deleuze questiona o modelo de produção e interpretação
da tradição que insiste em racionalizar o comportamento. A
literatura americana trabalha para suspender uma ordem
hierárquica, que é dar razão às personagens, que a tradição literária
75
europeia insistiu em sustentar. Melville, em seu texto, enfatiza o
enigmático, o indeterminado, o insondável e o vazio, que é
estrutural, que é da vida. O texto Bartleby, o escriturário se
individualiza por assinalar um alto grau de tensionamento que
perturba e resiste ao esgotamento de possibilidades interpretativas.
Na análise deleuziana, destaca-se a necessidade de um
deslocamento do conceito tradicional de estética e estilo. A criação
literária deve carregar em si um sentido de subversão que perpassa o
uso convencional das regras gramaticais. O traço singular, que é o
ponto vital do texto literário, centra-se na linguagem enquanto
elemento transgressor de uma ordem estabelecida. A fórmula
Bartleby é a matriz repetida que encena, a partir de sua repetição,
ressonâncias capazes de provocar sensações estéticas no leitor.
Deleuze destaca que o discurso de Bartleby faz ecoar uma voz que
questiona a conjuntura estrutural da realidade vivida.
Sintomaticamente, a interpretação deleuziana sobre a fórmula
Bartleby é marcada por uma constante hesitação que nos remete a
uma série de conceitos que se multiplicam e se conectam. A partir
da metacrítica, desenvolve importante relação de aproximação entre
linguagem e pensamento, colocando-se contra uma visão retórica
da literatura e em favor da prática da “imanência”, de modo que
ressalta o aspecto não representacional do texto de Melville. Diante
dessas observações, pode-se afirmar que a análise deleuziana tem na
fórmula o elemento nuclear para o empreendimento de sua leitura
76
que se destaca pela profundidade e verticalidade com que o texto é
lido.
REFERÊNCIAS:
77
Experiências estéticas em cenas de uso de drogas:
práticas pelo Consultório de Rua Noroeste
78
Em Belo Horizonte, o Consultório de Rua é um dispositivo
da Saúde Mental que atende usuários abusivos de drogas em
situação de rua. Com equipe multiprofissional formada por
Motorista, Psicólogo, Assistente Social, Educador Social, Arte
Educador e Redutor de Danos - técnico com capacitação sobre
território e uso de drogas; os técnicos circulam em cenas de uso
público de drogas com intenção de criar vínculo com os usuários na
perspectiva da garantia de direitos e da ampliação da vida. O
Consultório de Rua atua pela lógica da Redução de Danos em
detrimento da lógica da abstinência. A
79
consumo de drogas é autorizado pelo comércio ilegal local. Os
usuários permanecem e circulam nestas cenas em função do
consumo de drogas, cujos trânsitos são regulados pelos conflitos de
poderes entre o tráfico e a polícia. No Dicionário Aurélio a palavra
cena tem as seguintes designações:
80
República do Congo. Roupas descartadas pelos usuários foram
coletadas nas cenas de uso, sendo posteriormente expostas no
guarda corpo do viaduto. Ao serem encontradas em estado
amórfico, estas roupas sofreram uma reorganização formal quando
foram suspensas em cabides, conferindo lhes novamente uma
estrutura humana.
A fundamentação conceitual da instalação “Internação
Compulsória” se deu no contexto das audiências realizadas em 2013
na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, cujas discussões
abordaram temas como o financiamento público de comunidades
terapêuticas que adotam a lógica manicomial para tratamento de
usuário de drogas: com privação de liberdade, sem
acompanhamento médico e psicológico; e obrigatoriedade de
práticas religiosas. Além disso, as internações compulsórias, são um
dos maiores interesses dessas comunidades terapêuticas. Durante
uma das audiências, o Juiz Valois, ao criticar tais interesses, afirmou
observar a possibilidade da consolidação de uma grande
“compulsão internatória”. A partir desta afirmação, foi construído
o conceito da obra.
A conexão entre as cenas de uso de drogas na Pedreira Prado
Lopes e a Igreja Batista da Lagoinha pelo viaduto República do
Congo, que faz referência ao país com menor IDH do mundo,
confere significantes ao site specific. A intervenção teve impacto
estético na paisagem das mediações da Avenida Antônio Carlos,
envolvendo além dos usuários a comunidade que se aproximou
81
durante a montagem a fim de compreender o processo. As imagens
que seguem a baixo são de autoria e acervo da autora.
82
escadaria espiralada. O diálogo conceitual provocado pelas
audiências teve desdobramento no diálogo formal do trabalho, em
que as peças de roupa inicialmente encontradas debaixo do viaduto
da Lagoinha, agora se encontravam embaixo da escadaria da
assembleia legislativa.
83
A produção de vídeos documentais com os usuários do
serviço do Consultório de Rua Noroeste também têm produzido
deslocamentos significativos em relação à ideia de que usuários de
drogas são zumbis, imagem explorada pela mídia que alimenta o
senso comum. Além da compreensão dos usuários como cidadãos
usuários da rede de saúde e assistência pública, podemos observar
os efeitos semiológicos ao se trabalhar uma narrativa visual como
no vídeo “Usuário não é zumbi”.
Em “Usuário não é zumbi” os usuários protagonizam os
planos se apresentando como sujeitos. Um cantor, uma travesti
performer, uma motoqueira que rodou o Brasil e um poliglota são
exemplos do deslocamento subjetivo promovido pelo vídeo. Pois, o
que interessa é o sujeito na cena do vídeo, mais do que o usuário de
drogas na cena de uso. Então, o vídeo extrapola o sentido
documental de um determinado contexto social, para ser
catalizador de um encontro do usuário com sua narrativa, seja ela
oral mediante o relato da travesti L. que fala de sua experiência com
o Consultório de Rua; da motoqueira que conta suas peripécias
durante a fuga de uma injeção; ou, seja gestual como no caso da
travesti J., que imita uma intérprete de linguagem de sinais
enquanto acompanha os relatos de L.
Por tanto, as experiências estéticas em cenas de uso de
drogas, são práticas em intervenção urbana que exploram diferentes
linguagens como a instalação, performance e vídeo. Observam-se
significantes processos subjetivos em que o sujeito encontra um
84
espaço expressivo para se localizar mesmo em trânsito, dentro e fora
do contexto do consumo de drogas.
REFERÊNCIAS:
85
O romance Calunga , de Jorge de Lima, frente ao
contexto de polarização ideológica de sua
publicação
86
1. CALUNGA E O ROMANCE PROLETÁRIO
87
trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um
romance proletário?” A crítica procurará, então, responder à
pergunta lançada pelo autor, o que instaura um debate do qual se
podem depreender algumas características do que se vem a
entender como romance proletário nesse período.
Quais seriam tais características? Deve-se enfatizar que é
difícil tirar desse debate dos anos 30 uma definição de cartilha, mas
algumas linhas gerais se traçam. Em Uma história do romance de 30
(2006), Luís Bueno examina esse debate em torno da definição do
gênero romance proletário e destaca o crítico Alberto Passos
Guimarães como um dos que minimamente esquematiza o
romance proletário. Para esse crítico, três elementos são
fundamentais: a valorização da massa (retratar os dramas
coletivos, ou seja, dar destaque para a ação da massa,
contextualizando nela a ação dos indivíduos); a rebeldia (a
convicção de que é preciso lutar para mudar a realidade social); e a
descrição veraz da vida proletária (isto é, a verve naturalista do
romance proletário é o que se destaca aqui).
Luís Bueno também menciona um artigo de Jorge Amado
(a respeito de Os Corumbas, de Amando Fontes) em que o escritor
traça, em linhas gerais, uma espécie de programa político e estético
do romance proletário. Bueno nota que este talvez seja o único
artigo em que um escritor brasileiro comprometido com a
literatura proletária traça tal programa. Cito trecho do artigo em
que esse tom programático aparece:
88
(...) acho que as fronteiras que separam o romance
proletário do romance burguês não estão ainda
perfeitamente delimitadas. Mas já se adivinham algumas.
A literatura proletária é uma literatura de luta e de revolta.
E de movimento de massa. Sem herói nem heróis de
primeiro plano. Sem enredo e sem senso de imoralidade.
Fixando vidas miseráveis sem piedade mas com revolta. É
mais crônica e panfleto do que romance no sentido
burguês. (AMADO apud BUENO, 2006, p. 164)
89
integralismo em ascensão. Também é o ano em que se publica
Jubiabá, de Jorge Amado, e O moleque Ricardo, de José Lins do
Rego, ambos consolidando o modelo do romance “de esquerda”,
romance social ou, lato sensu, romance proletário. Ainda nesse
mesmo ano, e representando o outro polo ideológico, Jorge de
Lima e Murilo Mendes publicam Tempo e eternidade, livro que
marcava a conversão de ambos ao catolicismo e que procurava
“restaurar a poesia em Cristo”. Lembrando que, nesse momento, a
intelectualidade católica era majoritariamente conservadora e boa
parte do catolicismo era simpático ou mesmo ligado ao
integralismo. Declarar-se publicamente católico era, portanto, ser
entendido como um homem de direita e ser colocado do lado
oposto ao de Jorge Amado e José Lins do Rego.
Examinemos mais de perto a polarização ideológica da
década de 30. Hoje, depois da queda do Muro de Berlim, segundo
um clichê muito repetido, vivemos o tempo da falência das
ideologias, da vitória da economia de mercado (com algumas ilhas
de resistência no mundo ocidental). Depois da experiência da
Primeira Guerra, os anos 30 foram muito diferentes disso: um
tempo de intenso debate ideológico. Descrentes do liberalismo,
todos procuravam uma solução política mais justa, seja de esquerda,
seja de direita. Foi um tempo em que o regime soviético era recente
e o fascismo conhecia sua grande ascensão. Num tal ambiente, a
indiferença era um crime intelectual seríssimo.
90
No campo das letras, tal polarização se traduziria, nesse
período, numa separação entre dois tipos de literatura, a social,
ligada a um ideário de esquerda, e a intimista, associada a uma visão
de mundo conservadora e frequentemente católica. Essa
polarização, no entanto, como aponta Luís Bueno, não é sempre
tão clara e estanque como por vezes simplificadamente se pensa.
Bueno afirma que essa “ideia de uma produção romanesca dividida
em duas correntes tão impermeáveis entre si tem sua origem numa
realidade anterior ao exame das obras nelas mesmas” (BUENO,
2006, p. 36). Na introdução de Uma história do romance de 30,
Luís Bueno assim sintetiza como a história literária, reforçada pelos
trabalhos de críticos como Flora Süssekind e Silviano Santiago,
frequentemente tem compreendido e classificado os romances
dessa década:
91
engajamento.38 Desse modo, parece ser necessário buscar critérios
que extrapolem a mera polarização direita-esquerda para a devida
análise da produção literária desse período. Bosi sintetiza o cenário
cultural dessa produção com os seguintes termos: “Socialismo,
freudismo, catolicismo existencial: eis as chaves que serviram para
decifração do homem em sociedade e sustentariam ideologicamente
o romance empenhado desses anos fecundos para a prosa narrativa”
(BOSI, 2006, p. 389). Bosi afirma ainda:
38 “De modo sumário, pode-se dizer que o problema do engajamento, qualquer que
fosse o valor tomado como absoluto pelo intelectual participante, foi a tônica dos
romancistas que chegaram à idade adulta entre 30 e 40.” BOSI, 2006, p. 390.
92
No mesmo artigo, Candido ressalta o convívio entre a
literatura e as ideologias políticas como uma novidade no Brasil,
que se instaura nos anos 30:
93
momento, justamente pela dificuldade que a crítica encontrou em
identificar qual partido Jorge de Lima estava tomando.
Carlos Lacerda (à época líder estudantil do Partido
Comunista), que se manifesta sobre o romance no artigo “O
Cordeiro de Deus sai da Lama” (1935), vê uma sinceridade na
representação que o romance faz das condições de vida dos mais
pobres que o tornam uma força que vem “combater pela
Revolução”, ainda que à revelia da vontade do autor. E conclama
Jorge de Lima a lutar conscientemente pela Revolução:
94
Mas houve críticos de esquerda que recusaram
integralmente o romance por acreditarem na desonestidade do
autor. O crítico Abelardo Jurema, escrevendo na revista Momento
(1935), afirma:
95
pensar numa leitura de Calunga que o faça escapar da polarização
ideológica que vimos dominar na década de 30.
Sowell identifica, na modernidade, duas matrizes de visões
diferentes acerca da natureza ou condição humana, as quais se
refletem nas diferentes propostas de como a sociedade, em suas
diversas instâncias, deve ser administrada.
A primeira dessas perspectivas é chamada de visão restrita
(constrained, no original, que poderia talvez ser melhor traduzido
por restritiva) ou trágica. Trata-se de uma visão “na defensiva”,
segundo a qual os ganhos da civilização são frágeis, não são
naturais, ou seja, pode-se retroceder e voltar a um estado “de
barbárie”. Portanto, a civilização precisa de cultivo, e não de ataque.
Por consequência, deve-se ter mais confiança no funcionamento
sistêmico das instituições do que na iluminação intelectual de
alguns indivíduos.
Tal visão está baseada na crença no funcionamento
sistêmico das instituições, bem como na confiança de que por esse
funcionamento elas se autorregulam e atingem a sua melhor forma.
Portanto os ganhos são maiores e os danos menores quanto menos
se interfere no funcionamento das instituições. Essa perspectiva “é
trágica na forma em que enxerga as restrições humanas, as quais
não podem ser superadas meramente pela compaixão, pelo
comprometimento ou por outras virtudes que os intelectuais
ungidos alegam defender ou atribuem a si próprios.” (SOWELL,
2009, p. 129-130).
96
A segunda perspectiva é chamada de visão irrestrita
(unconstrained ou irrestritiva) ou, ainda, visão “do intelectual
ungido”. Segundo tal perspectiva, o ser humano pode ser
radicalmente mudado para melhor através da reforma das
instituições. Há a confiança ou crença de que um grupo de
intelectuais (uma intelligentsia) pode conduzir essa mudança.
“Nessa visão, opressão, pobreza, injustiça e guerra são resultados
das instituições existentes, problemas cujas soluções exigem a
mudança das instituições, o que, por sua vez, implica a mudança
das ideias que amparam, na base, essas instituições.” (SOWELL,
2009, p. 127) Note-se que esta visão aposta mais na razão, enquanto
que a primeira na tradição.
As duas visões polo dos anos 30, comunismo e
integralismo, são visões irrestritas, pois ambas acreditam no
potencial de perfectibilidade do ser humano e querem a reforma
(ou mesmo a mudança radical) das instituições sociais a partir da
compreensão intelectual de alguns indivíduos sobre o que é o ser
humano.
No romance Calunga, o protagonista Lula Bernardo
encarna essa segunda visão, a irrestrita. Ele é um reformador social,
tem a ambição de trazer o progresso e a iluminação à sua terra natal,
o vilarejo de Bebedouro, onde grassa a malária e a população
subsiste graças à pesca e à extração do sururu. O protagonista
pretende ensinar hábitos mais saudáveis e um outro meio de vida
aos seus conterrâneos, a criação de carneiros.
97
A atuação de Lula, contudo, não está isenta de uma postura
autoritária. Lula age como uma espécie de “déspota esclarecido”.
Vendo as falhas do projeto modernizador tradicional para com sua
região (um projeto que mais explora do que moderniza a região),
Lula procura estabelecer uma nova relação com seus empregados:
bem-intencionado e sem violência, quer impor a eles o que
considera as conquistas da modernidade. Mas seu procedimento na
verdade não está livre de violência, uma vez que Lula julga proceder
como um igual, mas na verdade tem o olhar de um estrangeiro, de
um superior, de um “intelectual ungido”. Lula isenta os
trabalhadores da culpa pela sua condição, já que eles eram gente
“rodeada de trevas” (LIMA, 2014, p. 42), mas tampouco vê neles a
solução para o problema. Lula procura a solução em si próprio.
A fim de apresentar criticamente a visão irrestrita do
protagonista, o romance propõe que haja elementos comuns entre
Lula e seus antagonistas, Totô do Canindé e o Santo, apresentando-
os, em certa medida, como suas contrapartes.
Seu Totô do Canindé, o vizinho cruel que busca sabotar os
planos de Lula, exerce um autoritarismo predatório e trata seus
empregados como escravos, perpetuando uma forma ancestral de
mando, a da exploração segundo a lei do mais forte. Lula, por sua
vez, tem um autoritarismo idealista e bem-intencionado, mas que
não deixa de ser autoritarismo. Uma das passagens finais do
romance, em que o protagonista, tomado pela febre da malária,
98
tem alucinações que o fazem acreditar ser ele próprio o senhor do
Canindé, trazem o paralelismo à cena.
Em relação ao paralelismo entre Lula e o Santo, pode-se
dizer que, enquanto Lula baseia seu idealismo e sua intenção
salvadora na ciência e no progresso, o Santo fomenta a ânsia de
salvação do povo com base na fé, na crença. Ambos se propõem,
entretanto, como um canal de salvação. E ambos são muito
parecidos no que diz respeito à inutilidade da sua ação, uma vez os
milagres do Santo se revertem e o projeto de Lula fracassa. Pode-se
ver aqui um paralelo entre a cegueira religiosa, que leva o povo a
peregrinar inutilmente atrás do Santo, e a cegueira ideológica, que
faz Lula apostar tudo na sua capacidade de, iluminado pelo
progresso, mudar as coisas.
A chamada visão restrita, a visão que aposta antes na
tradição do que na transformação social a partir de princípios
intelectuais, encontra-se presente no romance na instância
narrativa, e também, se quiser, na instância autoral. Isso se dá na
medida em que todos os personagens são apresentados na sua
fragilidade e nas suas limitações humanas (inclusive o protagonista,
que sucumbe ao vício da bebida, contrai malária e fica alienado da
realidade por conta das febres). A transformação social e o projeto
modernizador de Lula despontam como inviáveis. Não há,
portanto, a adesão à crença na Revolução, como haveria em um
romance social típico que veicula a visão irrestrita. Jorge de Lima
apresenta essa visão, a irrestrita, mas é para questioná-la.
99
5. CONCLUSÃO
100
reforma social, mas apenas no plano transcendente. O ser humano
não se salvaria neste mundo, não atingiria aqui a plenitude e a
libertação, estas seriam possíveis apenas numa vida pós-terrena.
REFERÊNCIAS:
101
Salman Rushdie's “At the Auction of the
Ruby Slippers”, Marx's concept of
commodity fetishism and the concept of
“post-modern”
102
The ruby-red slippers worn by Judy Garland in her role as
Dorothy in 1936 The Wizard of Oz are among the most iconic
objects of Hollywood history. With the fictional magical power of
taking Dorothy back home to Kansas, the slippers became a symbol
of a “golden age” of Hollywood.
But the magic in Dorothy's ruby slippers seems not to be
limited to the fictional land of Oz. Their off-screen counterparts –
the actual slippers worn by Judy Garland during production –
possess the amazing power of exchange value. In 2012, one of four
known remaining pairs of the ruby slippers was bought by the
Academy of Motion Pictures Arts and Science (the institution
responsible for the Oscar awards) for an undisclosed amount –
however, a previous auction of the item had an estimated selling
price of 3 million dollars. (TELEGRAPH)
The other three pairs have had no less notable fates: one of
them is among the most prized items of the Smithsonian Museum
of American History, the other is held by an unknown private
collector (STARPULSE) and the final one was stolen in 2005 from
the Judy Garland Museum in Minnesota (BURKE, 2008).
But what is the cause for such awe inspired by a pair of
shoes covered in sequin? The answer might lie in the works of
German philosopher Karl Marx. In the first volume his seminal
book “The Capital” (published posthumously), Marx coins the
term “commodity fetishism” - a category which might be the key to
understand the “magic” that surrounds Dorothy's ruby slippers.
103
COMMODITY FETISHISM
104
But the fact is that this relation is not evident to the
producers; exchange value seems to emanate from the “products
themselves”, in a dynamic that alienates the workers from the fruit
of their own work – for the value of that very fruit seems to
emanate from the commodity, and not from the labor.
To this mysterious “emanation” of value that appears from
the commodification of products, Marx coins the term
“commodity fetishism” - a category which has its terminological
roots in religious thoughts:
105
“commodity fetishism” goes, Salman Rusdhie's short story “At the
Auction of the Ruby Slippers” present and acid critic of such
fetishism.
106
at the category. One example is the belief in the magic properties of
the slippers:
107
Auctioneers, a reprehensible programme. (RUSHDIE,
1995, p. 92)
108
murder mistery and science-fiction or fantasy novel(...).
(JAMESON, 1991, p. 63)
109
into the badges of affirmation of ethnic, gender, race,
religious, and class-fraction adhesion, is also a political
phenomenon, the problem of micropolitics sufficiently
demonstrates. If the ideas of a ruling class were once the
dominant (or hegemonic) ideology of bourgeois society,
the advanced capitalist countries today are now a field of
stylistic and discursive heterogeneity without a norm.
(JAMESON, 1992, p. 73)
110
find the very essence of what the ideologues of the post-modern
believe is past history, belonging to the so-called “grand narratives”:
the class struggle between the proletariat and the bourgeoisie,
instead of the micropolitical conflicts of gender, race or sexual
orientation.
These “margins” of the plot and setting are not at all
obvious to a first reading of the text. This fact might derive from
where the story's first-person narrator seems to stand, socially. He is
hinted to be somewhat of a bureaucrat, who works for rich bidders
by attending certain auctions and getting items for them. He seems
to be, in other words, what has been called in common-sense, a
“middle-class” man – that is, he is certainly not a rich capitalist
proprietor, neither is he a “typical” proletariat, such as an industry
worker. This “middle-class” position puts him, so to speak, in the
“eye of the hurricane” of mass culture, literally in the “middle” of
the media's ideological offense. Therefore, the “margins” of the
system he inhabits are somewhat effaced from his perspective. But,
still, they insist on creeping in.
On one “pole” of the narrative lies the working class – both
employed and unemployed. They are mention but briefly –
because, of course, they sit at the margin. The most obvious
example lies in the character of the “Latino janitor” - which has
already become a “type” in contemporary American society:
111
those of us who lack restraint, who drool. The jump-
suited Latino janitor moves among us, a pail in one hand
and a squeegee mop in the other. We admire and are
grateful for his talent for self-effacement. He removes our
mouth waters from the floor without causing any loss of
face on our part. (RUSHDIE, 1995, p. 90)
112
For the “Latino janitor” to exist and to work so obediently
in Rushdie's short story, a reserve army of labor and a
lumpenproletariat has to exist – and indeed, the author brings up
not only their existence, but also their condition as the most
excluded of all, being the only ones to be forced out of the auction
by repressive forces:
113
Auctioneers we go to establish the value of our pasts, of our
futures, of our lives”, says the narrator. (RUSHDIE, 1995, p. 101)
The political stance of the Auctioneers is, of course,
“liberal”. Just like the great bourgeois of contemporary world in
Wall Street, they are tolerant towards anyone's money. The narrator
does not fail to remark this fact: “'Money insists on democracy', the
liberal Auctioneers insist. 'Anyone's cash is as good as anyone
else's'”. Eagleton, in After Theory, puts this aspect in theoretical
terms, in an attempt to show how little “subversive” is the post-
modernist's trust in “pluralism” - the shift from class conflict to
minorities conflicts:
114
not “late-capitalist” or “post-capitalist”; it is simply “capitalist”: a
world in which a ruling class controls labor and attributes exchange
value to anything – from monuments to human souls -, using a
vast repressive apparatus, when needed, to do so:
115
against a class of parasite “Auctioneers”. All in all, “At the
Auction...” is not simply about commodity fetishism. It is about
capitalism and about class struggle.
WORKS CITED:
[s.a.] “Dorothy's ruby red Wizard of Oz slippers find their way
home”. The Telegraph, 23 Feb 2012. Available at:
<http://www.telegraph.co.uk/culture/film/film-
news/9099959/Dorothys-ruby-red-Wizard-of-Oz-slippers-find-
their-way-home.html> (last accessed on May 2nd, 2014)
116
at: <https://www.marxists.org/archive/marx/works/1867-
c1/ch01.htm#S4> (last accessed on May 2nd 2014)
117
As visões de mundo, em Thomas Sowell, e a
binomia, em Álvares de Azevedo
118
Nascido em 1930, doutor em economia pela Universidade
de Chicago, com mestrado em Columbia e graduação em Harvard,
Sowell pode ser tratado como um economista liberal, mas também
possui reflexões próximas de campos como Sociologia e Filosofia
Política. Nessa formação, é notável a influência de Milton
Friedman, na medida em que Sowell está mais próximo da ideia de
um mercado livre, e, portanto, distante da regulamentação, nos
termos de John Keynes. Para além dessa oposição entre Friedman e
Keynes, mas, em alguma medida, passando por ela, em A conflict
of visions – lançado, em 1987, e revisado, em 2007 – Thomas
Sowell contrapõe duas opostas visões de mundo: uma restritiva e
uma irrestritiva. Em certo sentido, essas duas possibilidades são
tipos ideias, menos ou mais na esteira de Max Weber.41
O conceito de “visão de mundo” é fundamental no
pensamento de Sowell. No “Prefácio à Edição de 1987”, ele procura
explicar um pouco essa noção inicial, assim como no Capítulo 1, “O
papel das visões”. De acordo com o autor,
119
Observada desse modo, a visão de mundo é uma
simplificação intencional. Consciente das limitações que ela
acarreta, é possível a utilizar como um mapa, uma estrutura
miniaturizada da realidade, capaz de demonstrar os pontos
fundamentais. Nesse sentido, a ideia de visão de mundo se
aproxima do conceito de tipo ideal, nos termos de Max Weber. Em
ambos, existe a percepção de que se está trabalhando com uma
redução proposital, uma vez que a realidade é muito complexa e
que a objetivação em escala menor ajuda na percepção. Sowell e
Weber sabem dos limites desse modelo de observação, mas o
priorizam na medida em que recusam tratar da realidade em si, a
partir de toda a variabilidade que lhe é própria e impossível de ser
apreendida.43 Além disso, em Conflito de visões há uma defesa de
que simplificações ideias seriam, no campo da teoria social, tão
importantes como em nenhum campo, dada a variabilidade de
estruturas com as quais os pesquisadores precisam de lidar.
Avançando nessas reflexões, Thomas Sowell se aproxima do
trabalho de Joseph Schumpeter, History of Economic Analysis, o
qual aborda a visão como um “ato cognitivo pré-analítico”, uma
percepção anterior ao raciocínio sistemático, anterior a qualquer
teoria. Seguindo o raciocínio de Sowell, “Uma visão é nossa
percepção de como o mundo funciona”, sendo que ela pode variar,
no tempo e no espaço, de sujeito para sujeito, 44 mas também pode
ser agremiada a partir de simplificações ideias, ou construídas a
120
partir de critérios mais objetivos. De todo modo, “uma visão tem
um sentido de causalidade”45 e o autor dessa obra cujo subtítulo é
“Origens ideológicas das lutas políticas” avisa que “o objetivo deste
livro será precisamente examinar as visões sociais basilares”.
Ao organizar essas visões basilares, Thomas Sowell parte
um raciocínio dual e de um levantamento de dados – vislumbrável
a partir, sobretudo, dos intelectuais mencionados ao longo do livro
– marcado pelo mundo moderno ocidental, compreendido aqui no
sentido de um contexto iniciado mais ou menos com o Iluminismo
e presente ainda em nossos dias. Essas visões de mundo possuem
causalidades diferentes, podem ser analisadas a partir de tradições
intelectuais e implicam em escolhas muito diversas em campos
como “a natureza moral e mental do homem”46, “conhecimento de
instituições”47, o tempo, as abstrações e “as ramificações dessas
visões conflitantes estendem-se a decisões econômicas, judiciais,
militares, filosóficas e políticas”48. De um lado, a visão
“constrained” de mundo, traduzida como “restrita”, mas que
literalmente poderia ser “constrangida”, ou “restritiva”; o homem é
visto como essencialmente egoísta; nesse ponto, existe uma visão
trágica da condição humana; há preferência pela tradição, em
diversos aspectos, como no sentido de uma justiça que valorizaria a
common low; um representante desse polo é economista liberal
Adam Smith, mas a tradição é longa e poderia ser vista em outros
121
nomes como Thomas Hobbes; aqui ainda se encontram pontos
como a racionalidade, a liberdade, a maturidade, o gosto pelo
clássico, o materialismo, o Estado mínimo; uma tendência à
preocupação com os perigos de uma desigualdade de poder; o mais
fundamental, em termos morais, para a visão restritiva é a
fidelidade do sujeito ao seu papel na vida; além disso, desse lado está
a confiança em processos sociais evoluídos historicamente, a
tentativa de manter uma determinada ordem. Do outro lado, a
visão “unconstrained” de mundo, traduzida como “irrestrita”, mas
que talvez ficasse melhor como irrestritiva”; o homem é tratado
como essencialmente bom; contém, esse outro lado do conflito,
uma visão utópica do homem; há preferência pela inovação, como
no sentido de uma ruptura com as amarras sociais que impediriam
a melhora do próprio homem; um primeiro representante desse
polo é o anarquista William Godwin, podendo ainda ser notado
essa visão de mundo em Jean-Jacques Rousseau; aqui também estão
elementos como a irracionalidade, a justiça, a juventude, o gosto
pelo romântico, o idealismo, o Estado largo; uma tendência à
preocupação com a promoção da igualdade econômica e social; em
termos morais, alguém com a visão irrestritiva recusa os
estereótipos dos papeis sociais, tendendo a planificar, igualar,
diferenças como pai e filho, ou aluno e professor; além disso, desse
lado está a engenharia social no sentido de tentativas de melhora do
sistema, a procura do progresso.
122
Embora opere em base dicotômica, Thomas Sowell
compreende que existem pontos de vista híbridos, entre eles
estariam o utilitarismo e o marxismo. Por exemplo, Jeremy
Bentham, de acordo com Sowell, considera que o homem é
essencialmente egoísta – posicionamento exemplarmente restritivo,
portanto –, contudo, ainda assim, o homem poderia organizar a
sociedade de maneia a alcançar benefícios ao maior número de
pessoas possíveis – havendo nisso um posicionamento irrestritivo.
Outro utilitarista, John Stuart Mill, também se encontra em um
ângulo que mescla as duas visões de mundo expostas por Sowell.
De acordo com este pensador, Mill afirma que as leis são feitas e
não desenvolvidas, lembrando, assim ao ponto de vista irrestritivo;
porém, se as leis não estiverem de acordo com as tradições e os
costumes de um povo elas serão ineficientes, ou seja, Mill leva em
conta, também, a concepção conservadora da visão restritiva. Karl
Marx, por sua vez, elabora uma reflexão que caminha do restritivo
para o irrestritivo: de certa maneira, as condições históricas
configuraram a vida social, os processos de produção, de tal forma
que em sua análise histórica Marx leva em conta o papel da
tradição, bem como o aspecto trágico da condição humana e a
importância das questões materiais. No entanto, o autor d' O
Capital procura elaborar um sistema de pensamento que uma visa a
ruptura, um tanto otimista, com as condições historicamente
determinadas, de maneira a permitir aos homens condições mais
igualitárias de existência.
123
Em suma, Thomas Sowell, caracterizando o conflito de
visões, não deixa de mostrar a possibilidade de hibridismos:
politicamente a mescla da visão irrestritiva com a restritiva é
vislumbrável em alguns momentos. Os desejos de liberdade
individual e de igualdade social podem ser conciliados em alguma
medida. Assim como Álvares de Azevedo, em sua Lira dos vinte
anos, conciliou as estéticas de Ariel e de Calibã.
Em seu livro de poesias, publicado pouco depois de seu
precoce falecimento, Álvares de Azevedo elaborou uma poética
também marcada por dualidades. No “Prefácio” à “Segunda parte”
de Lira dos vinte anos, o principal poeta da segunda geração do
Romantismo brasileiro procurou desenvolver uma forma literária
por ele chamada de binomia:
124
personagens retirados de A tempestade, de William Shakespeare,
expressam a binomia azevediana.
De certa maneira, Álvares de Azevedo está contrastando
duas visões de mundo. Não exatamente uma restritiva e outra
irrestritiva, para trazer aqui a dualidade proposta por Thomas
Sowell. No entanto, se os polos não são exatamente os mesmos, a
ideia que os organiza, o conceito de visão de mundo, talvez ajude a
compreende a dualidade existente entre Ariel e Calibã, na
arquitetura de Lira dos vinte anos. O poeta ultrarromântico cria
tipos ideais para expressar a poética existente em cada uma das
partes de seu livro. Assim, a face Ariel seria essencialmente boa,
conteria certa utopia, idealismo, puerilidade; a face Calibã, por sua
vez, teria certa visão trágica do homem, guardaria uma ironia
mordaz, a utopia é desfeita em realidade, o idealismo é desfeito em
galhofa, em materialismo, a puerilidade perderia suas asas do ouro e
encontraria a maturidade sarcástica.
Em termos mais propriamente formais, as faces Ariel e
Calibã também se distanciam, em alguma medida. Em termos de
métrica, a “Primeira parte” possui maior variabilidade do que a
“Segunda”, a qual prefere o decassílabo, embora oscile entre sáfico,
heroico e tenso. Quanto à rima, ela é mais frequente na flauta doce
de Ariel do que no contrabaixo de Calibã, não sendo descabido
lembrar que sob a égide do escravo disforme há uma linguagem
mais prosaica na elaboração dos versos. As estrofes, além disso, são
mais tradicionais no primeiro, sendo frequentes, por exemplo,
125
quadras e sextilhas, enquanto o segundo realiza poemas com
estrofes “muito incomuns” para a tradição da lírica brasileira,
algumas efetivamente longas. Outros aspectos também diferenciam
as duas partes do livro: a mulher mais idealizada de um lado; a
mulher mais palpável do outro; as imagens do sagrado são tratadas
de acordo com uma moral cristã, sob os domínios de Ariel;
enquanto sob os domínio de Calibã o sagrado sofre constante
blasfêmia.
No entanto, assim como Thomas Sowell contrapôs as
visões irrestritiva e restritiva, mas revelou a presença de hibridismos
possíveis no marxismo e no utilitarismo, Álvares de Azevedo
desenvolveu uma única lira com duas cordas, uma única medalha
com duas faces, um único cérebro com duas almas. Nas cavernas
cerebrais do sujeito-lírico azevediano, Ariel e Calibã possuem
pontos comuns: Azevedo não ficou a criar apenas polarizações, mas
buscou mostrar que as sínteses também foram almejadas. É quase
depois de um que se encontra o outro, e não inteiramente depois.
Além disso, nos mesmos lábios em que havia o riso de Ariel, o
sujeito-lírico colocou as mordidas de Calibã. Formalmente, Lira
dos vinte anos também apresenta os seus hibridismos. Por exemplo,
quanto ao metro, há decassílabos na “Primeira” e na “Segunda”
partes, embora seja mais comum nesta. A rima, por sua vez, apesar
de ser mais comum nas poesias da face Ariel, também aparece na
face Calibã. Assim como a mulher, que é, no labo B do vinil Lira,
tipicamente materializada, ela aparece, possivelmente, em contato
126
sexual no poema “Pálida, à luz da lâmpada sombria”, presente no
lado A do vinil. Dessa maneira, colocando em uma parte o que seria
marca típica da outra, Lira dos vinte anos recusa uma visão de
mundo apenas conflitante. Os tensionamentos e as harmonizações
convivem, as rupturas e as continuidades entre cada um dos lados
das cavernas do cérebro do eu-lírico.
Assim, Álvares de Azevedo e Thomas Sowell, criadores de
pensamentos compostos por arquiteturas polarizadas, não deixam
de notar no horizonte, estético e/ou político-social, a possibilidade
de hibridismos. Visões de mundo que não se reduzem a tipos
planos, mas que desenvolvem estruturas capazes de conter um
elemento e seu contrário. Nesse momento – repleto de escombros
de outras épocas – em que a sociedade brasileira se mostra
excessivamente polarizada, a mim me pareceu oportuno vislumbrar
hibridismos possíveis, ainda que, em certa medida, utópicos.
REFERÊNCIAS:
127
_______________. Os intelectuais e a sociedade. Tradução de
Maurício Righi. São Paulo: É Reazliações, 2011.
128
Literatura e campo – A exceção dentro da exceção
na literatura de Rubem Fonseca
Zacarias E. Silva49
129
VIOLÊNCIA LITERÁRIA
Rubem Fonseca
130
separadamente, a vida do feto antes de tirar a da mãe com um tiro
na têmpora segundos depois. Veria o homem de fraque parado,
segurando sua carteira à frente, os olhos incertos, brilhando, se
enchendo de lágrimas. Veria a carteira ser arrebatada de sua mão e
ser jogada para o alto, descrevendo uma parábola fechada e sendo
chutada para bem longe, antes de tocar o solo, pela perna esquerda
do homem com o revólver.
A cena fica estagnada neste momento. Os faróis do carro
iluminam as duas pessoas restantes. O homem do revólver amarra
os braços e as pernas do outro, retira a gravata borboleta, dobra o
colarinho e ordena que ele se ajoelhe e curve a cabeça. Nesse
momento entra em cena o facão. Erguendo-o alto, o homem
golpeia o pescoço do outro, que se debate e continua sendo
golpeado até que, após vários golpes, sua cabeça é finalmente
arrancada e cai suavemente sobre a areia. O homem com o revólver
e o facão grita, um uivo selvagem, comprido e forte, para que os
bichos tremessem e saíssem da frente. Isto é o grito do Cobrador,
aquele que optou por cobrar à sociedade aquilo que esta lhe deve e,
ela lhe deve muito: xarope, meia, cinema, filé-mignon, namorada,
aparelho de som, sanduíche de mortadela, respeito, sorvete, bola de
futebol, comida, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes.
O homem conhecido apenas como o Cobrador é o
personagem principal do conto homônimo do escritor Rubem
Fonseca, publicado no livro de mesmo nome no ano de 1979. O
conto versa sobre a figura do Cobrador, que, violentamente, se
131
impõe o dever de cobrar da sociedade aquilo que acredita, em seu
desvario, que esta lhe deve. Seu temperamento violento com os
ricos e complacente para com seus iguais ou inferiores é a principal
marca de sua vingança. O Cobrador existe no universo ficcional da
cidade do Rio de Janeiro delineado por Fonseca, onde o erotismo e
a violência imperam acima e em detrimento de toda e qualquer
legislação que possa haver. Em suas condições de ficcionalidade,
desenrola-se um rol de personagens periféricos, sobre os quais
abate-se todo tipo de calamidades sociais e a quem faltam os itens
mais básicos para a sobrevivência e a dignidade.
É neste palco, nesta cidade baixa, que montam-se as mais
estapafúrdias cenas, tão improváveis quanto poderiam ser possíveis,
tão inverídicas quanto poderiam ser verossímeis. O Cobrador é
apenas mais um personagem desprovido do senso de humanidade
em favor de uma mágoa impessoal, de um ressentimento que beira
a insanidade. Nesse cenário, personagens marginais se misturam e
se confundem, numa troca permanente de papéis que visa, por
vezes, sua integração social ou a criação de uma sensação de
pertencimento ou de poder em uma sociedade que os rejeitou e os
mantêm, dia após dia, à sua margem, ainda que, inelutavelmente,
eles pertençam a ela. Peões que querem se sobressair em um jogo no
qual apenas cumprem uma missão secundária.
Assim, o Cobrador figura ao lado dos idosos de Onze de
Maio que se revoltam contra a situação degradante, semelhante a
um campo de concentração, em que se encontram no asilo e
132
ensaiam uma revolução, uma fuga que se acaba com uma conquista
menor; também ao lado dos assaltantes de Feliz Ano Novo, que
invadem uma festa da alta sociedade no fim de ano e roubam,
matam, estupram a seu bel prazer, com a naturalidade de quem não
mais se assusta com seus atos ignominiosos. Ainda podemos ver os
policiais de A Coleira do Cão em sua subida ao morro com o
intuito de desmascarar um bando responsável por várias mortes no
asfalto, mortes relacionadas ao tráfico e ao poder paralelo que reina
na favela.
Esse rol de personagens, essa sequência de situações saídas
de um pesadelo, formam um modelo de espaço ficcional ao qual
toda a obra de Rubem Fonseca pertence. Entendemos que toda
literatura é ficcional e que, consequentemente, os espaços que ela
cria também o são. Assim, o modelo virtual da cidade do Rio de
Janeiro construído na ficção de Fonseca, é um espaço aberto a todo
tipo de experiências, sobretudo àquelas ilegais ou moralmente não
aceitas pela sociedade e esse é um dos principais motivos em sua
literatura.
BIOPOLÍTICA E CAMPO
133
concentração, de refugiados) não são um produto exclusivo desse
momento, tendo já existido em função de outros problemas ou
conflitos e tendo sua existência continuada em um mundo que
ainda não resolveu, sequer, os conflitos iniciados pela forte
alteração na geopolítica global registrada na Segunda Guerra.
Baseado no potencial do campo enquanto espaço
virtualmente indefinido e passível de ser recriado em outras
situações, o pensador italiano Giorgio Agamben desenvolve um
conceito abrangente sobre esse espaço. O conceito de campo foi
forjado por Agamben em sua obra Homo Sacer, O poder soberano
e a vida nua I, publicado originalmente em 1995 e se erige a partir da
concepção de biopolítica forjada por Michel Foucault a partir de
seus estudos sobre a sexualidade, a loucura e as prisões, ou, mais
precisamente, sobre os momentos na história onde essas instâncias
se tornam uma preocupação ativa dos governos ou uma forma de
controle/resistência por parte da população. Ambos os conceitos
perpassam pela obra ficcional de Fonseca contextualizando-a como
uma instância biopolítica sob a égide da resistência aos abusos
cometidos em um estado de exceção e, fora do período da ditadura,
com uma maneira de confrontar o status quo de uma sociedade
pautada na ideologia liberal e valores morais cristãos, utilizando-se,
para tanto, do corpo, da sexualidade, da escatologia e da violência
como panos de fundo.
Para chegar ao conceito de campo, devemos antes, observar
as mudanças propostas por Foucault na definição da função social
134
do homem, que passam a ser parte integrante de sua vida. Para
Foucault (1988, p. 134) o homem é um animal biopolítico: “o
homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles:
um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem
moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em
questão”. A partir de um dado momento não haveria mais como
distinguir a vida natural do homem de sua vida política e, o simples
fato de estar vivo, passa a ser uma imersão no campo político, pois a
vida e a morte se tornam parte do jogo social. As instâncias vida,
morte, doença e sexualidade não apenas se tornam parte essencial
do jogo da política, como aparecem também nos papéis de moeda
de troca, mecanismos de contenção e de adestramento, tendo como
último patamar a morte. Toda vida, a partir dessa visão, é política,
está apta a ser utilizada e aplicada politicamente, pode ser
interrompida pelo policiamento da sociedade, será defendida e
manipulada. Ainda assim, de forma geral, o estado de exceção é o
estado latente da biopolítica e é nele que seus mecanismos parecem
melhor se adequar, por se tratar de um sistema no qual vigora uma
lei à parte, uma lei que está fora da legislação convencional, que se
dá paralelamente. Foucault (1988, p. 134) define assim a biopolítica:
135
técnicas que a dominem e gerem; ela lhes escapa
continuamente.
136
Nesse contexto biopolítico, o homem se torna matéria de
suma importância e, paradoxalmente, descartável. A inclusão do
contexto biológico na política tem sua repercussão mais intensa,
talvez, na existência dos campos de extermínio da Segunda Grande
Guerra, mas não somente neles. Os campos são a concretização de
uma política pautada na exceção, em fatores biológicos e
hereditários e na instituição da eutanásia como um dever do estado
bem como mecanismo de limpeza racial e de redução populacional.
Haja vista que os primeiros projetos de eutanásia do partido
Nazista não tiveram os judeus como objeto e sim, idosos, doentes
incuráveis e inválidos.
Se a vida se torna parte da política, é ela que vai se fazer
sentir nas lutas contra os desmandos do estado ou na aceitação das
legislações que se batem contra ela. O homem hodierno luta por
direitos inalienáveis como o direito à alimentação, à saúde e à
felicidade que são complementos diretos da instância vida. Se a vida
se torna parte da política, sua instância principal, cada ato humano
se torna um ato político. O corpo se torna o objeto político por
excelência, daí sua grande visibilidade no contexto moderno, daí
sua exploração pelos escritores, pelos artistas, pelos cientistas a fim
de descobrir tudo o que for possível sobre ele, mapeá-lo, dissecá-lo,
vigiá-lo e, em caso de necessidade, encarcerá-lo e finalmente retirar
dele o direito à vida. Assim o cidadão pode ser mensurado, seu
corpo se torna parte da estatística social, seu trabalho passa a ser
medido, sua produção deve ser conduzida, sua vida sexual precisa
137
ser vigiada e controlada e seu estatuto de ser vivente não pode ser
contestado, menos ainda seu papel político.
O pensador Giorgio Agamben parte dessa diferenciação
entre vida natural (ou vida nua) e vida política para demonstrar sua
interpretação da biopolítica a partir do próprio conceito forjado
por Foucault. Para Agamben a biopolítica não apenas é uma chave
importante para a leitura do mundo contemporâneo bem como
uma marca indelével dos mecanismos de extermínio adotados na
Segunda Grande Guerra.
A vida humana enquanto instância política redefine-se
constantemente diante das modificações que vem sofrendo a
comunidade humana. Agamben retoma os termos gregos para vida,
bios e zoé como parte da definição de biopolítica, nos quais zoé
representa a vida natural, a vida animal e bios dá forma à vida
política do cidadão. O homem é um animal que possui, desde a
antiguidade uma existência passível de ser a vida da pólis, a vida
política em si. Segundo Agamben (2012, p. 127) “uma das
características essenciais da biopolítica moderna […] é a sua
necessidade de redefinir continuamente, na vida, o limiar que
articula e separa aquilo que está dentro daquilo que está fora” e, é
esse jogo de dentro e fora, de uma legislação que se pauta, por vezes,
na sua exceção, na existência de um fora (que é, muitas vezes,
previsto dentro dela mesma) que permite a criação do campo. “O
campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a
tornar-se regra” (AGAMBEN, 2012, p. 164) e é, ainda, espaço
138
essencialmente biopolítico, é a zona cinzenta na qual há a supressão
da lei vigente em detrimento de uma exceção permanente. Trata-se
da exceção absoluta.
Segundo Agamben (2012, p. 165-166),
139
e materializada em espaços e estados que se colocam no âmbito da
exceção:
140
não podemos mais nos livrar. Parece-nos claro que ao associar a
estrutura virtual do campo a espaços da modernidade, Agamben
lança um alerta sobre a resistência de um estado de exceção
permanente que está não apenas escondido nas sombras do estado
de direito, mas também emerge às claras em muitas situações-limite,
aflorando em sua existência exterior e, ao mesmo tempo, interna a
toda espécie de estado de direito. O estado moderno não suprimiu
o campo, apenas o internalizou, trouxe-o para dentro de seu
modelo, por vezes disfarçado em um movimento legal, por vezes,
descaradamente claro em sua exceção às leis vigentes.
O campo é um modelo virtual e permanente de criação de
exceções. Segundo a definição de Agamben (2012, p. 171) “o campo,
como localização deslocante é a matriz oculta da política em que
ainda vivemos, que devemos aprender a reconhecer através de todas
as suas metamorfoses, nas zones d'attente de nossos aeroportos bem
como em certas periferias de nossas cidades.” O campo tem uma
presença virtual demarcada em nosso tempo e, cada vez mais, se faz
sentir presente nos milhares de refugiados de conflitos no Oriente
Médio e na África, na população palestina ou nas grandes
populações carcerárias do mundo. São campos erguidos, sem cercas
eletrificadas, sem fornos, sem lei e sem perspectivas.
141
CONCLUSÃO
142
imperam a violência desmedida, e que ignoram por completo a lei
de exceção vigente de no país. Esse tipo de violência surge como
parte da pesquisa literária de alguns autores.
143
resistência frente ao modelo de exceção no qual o país havia sido
mergulhado: Segundo Karl Schollhammer (2000, p. 242):
144
Segundo essa perspectiva, cabe ao escritor a exploração do
mundo, do corpo e da sexualidade de uma maneira que lhe é
peculiar e que pertence apenas a ele ou à sua literatura. Não haveria
na ciência um tipo de exploração que se pudesse comparar à
liberdade do artista de dar a ver o mundo aos seus semelhantes. No
mundo contemporâneo, explorar a sexualidade e o corpo é uma
atitude política, da mesma maneira que explorar a violência que se
desenvolve nos grandes centros urbanos.
O que o autor chama de “pornografia” se torna o cerne de
uma visão mais ampla da sociedade. No mesmo conto, o seguinte
diálogo se passa: “Já ouvi acusarem você de escritor pornográfico.
Você é? Sou, os meus livros estão cheios de miseráveis sem dentes”
(FONSECA, 1975, p. 147). Observamos por esse trecho, que a
pornografia da qual o autor é acusado, se torna, na verdade, uma
maneira de explorar outros quesitos da sociedade. A marginália
“sem dentes”, a violência, a pornografia em si, são fatores políticos
em uma sociedade na qual a própria política é assunto tabu, por
causa de seu regime repressivo, por causa dos sequestros e
desaparecimentos, bem como dos casos de tortura e perda de
cidadanias promovidas pelo regime.
O pensador Michel Foucault, em suas pesquisas, designa
um trajeto que perpassa pela história da loucura, pela
transformação do cidadão em um corpo que deve ser vigiado e
punido e também pela história da sexualidade, entre outros pontos.
Segundo sua a perspectiva: “[o sexo] de um lado, faz parte das
145
disciplinas do corpo: adestramento, intensificação e distribuição das
forças, ajustamento e economia das energias. Do outro, o sexo
pertence à regulação das populações, por todos os efeitos globais
que induz” (FOULCAULT, 1988, p. 136), assim, a sexualidade se
torna parte inerente ao comportamento político na
contemporaneidade, e, como tal, torna-se também uma figura de
resistência, uma expressão do inconformismo da qual muitos
autores vão se apropriar, conforme afirma o entrevistado de
Intestino Grosso, ainda sobre a pornografia:
146
O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida
da espécie. Servimo-nos dele como matriz das disciplinas e
como princípio das regulações. É por isso que, no século
XIX, a sexualidade foi esmiuçada em cada existência, nos
seus mínimos detalhes; foi desencavada nas condutas,
perseguida nos sonhos, suspeitada por trás das mínimas
loucuras, seguida até os primeiros anos da infância;
tornou-se a chave da individualidade: ao mesmo tempo, o
que permite analisá-la e o que torna possível constituí-la.
Mas vêmo-la também tornar-se tema de operações
políticas, de intervenções econômicas […], de campanhas
ideológicas de moralização ou de responsabilização...
(FOUCAULT, 1988, p. 137)
147
A obra-campo de Rubem Fonseca, escrita na forma de uma
ficção realista, abre um espaço ficcional que se posiciona externa à
legislação, que, nesse caso, seria a de um estado de exceção. No
campo de Fonseca, tudo é possível, desde a violência mais extrema
até as paixões arrasadoras por prostitutas; desde assassinatos
motivados por dinheiro ou decapitações sem motivo aparente, e,
em nenhum caso, se apontam penalidades. A obra-campo de
Fonseca é uma forma de resistência ao modelo ditatorial imposto ao
país e também uma resposta às questões contemporâneas de posse
do próprio corpo como objeto biopolítico.
É em função de sua ficção formatar-se como um tipo
realismo que nela se inscreve a possibilidade de sua leitura sob a
ótica do campo. Toda literatura é ficção, mas nem toda a obra de
ficção realista parte da premissa da criação de uma nova forma de
lei. Na ficção sci-fi ou em obras distópicas (que têm seu referencial
realista) as leis da realidade podem ser completamente distorcidas,
(inclusive leis físicas imutáveis como a gravidade ou a existência de
vida depois da morte). Acreditamos assim que, na ficção tudo é
possível, mas, nem por isso, necessariamente a uma obra ficcional
figurará o conceito de campo por si só, apenas por ser ficcional.
A existência de uma obra-campo, na qual inscrevemos o
trabalho de Rubem Fonseca, deve ter por característica a opção de,
dentro de um padrão de realismo, se manifestar através de uma
exceção à legislação vigente ou através da supressão das leis, de
forma a se criar um estado em suspensão, uma espécie de zona
148
cinzenta na qual tudo é possível sem ser moralmente condenável. É
em favor de uma ordem diferente, e da resistência ao status quo que
a obra de Rubem Fonseca valoriza a pornografia, que se dispõe
como única lei possível dentro das cercas de sua literatura.
REFERÊNCIAS:
_______. Feliz ano novo. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1975.
149
_______. Nascimento da Biopolítica. Trad. BRANDÃO, E. São
Paulo: Ed. Martins Fontes, 2008.
150
Pós-violência, pode a obra de arte (r)existir?
151
Gostaria de começar esta comunicação chamando a atenção
para o título que proponho. Primeiro, porque ele é composto de
uma pergunta, que na verdade são duas: após um contexto de
violência, a obra de arte ainda pode existir? E, se sim, pode ela
resistir, ser uma obra de “resistência”? Trago já no título essas
inquietações porque é o que eu gostaria de apresentar aqui hoje:
mais perguntas que respostas. Estas, quando aparecerem, não
servem como modelo, mas como respostas provisórias e talvez
localizadas em um contexto específico. Explico melhor: não servem
como modelo, mas servem, talvez, como uma esperança, como os
pequenos vaga-lumes de Didi-Huberman (2011).
Também chamo atenção para o título porque ele traz uma
pergunta cuja resposta é, em certo sentido, óbvia. Já estamos a mais
de 70 anos de Auschwitz e as obras de arte continuam existindo e,
de uma forma mais ou menos “efetiva”, resistindo. Porém essa
pergunta nos oferece uma provocação, um convite a pensar essa
obra de arte pós-violência em sua [necessária?] relação com tais
contextos. Nesse sentido, poderíamos já acrescentar outras
questões: qual é essa obra de arte que sobrevive a um contexto de
violência? Em que medida e de que forma ela relaciona-se com o
real? A obra de arte tem um papel, como uma espécie de “dever a
cumprir” frente a essa realidade? E, nesse sentido, é produtivo
pensar em uma “efetividade” da obra frente a esses contextos?
Finalmente: o que pode a obra de arte nesses contextos? Ou ainda:
o que podem esses contextos sobre as obras de arte? Pode a obra de
arte resistir – e existir?
152
Nesta comunicação propomo-nos a pensar um contexto de
violência mais próximo do espaço-tempo de nosso lugar de
enunciação. Trata-se dos vinte anos de conflito armado interno no
Peru, entre as décadas de 1980 e 2000. Em 17 de maio de 1980, na
véspera da primeira eleição após doze anos de governos ditatoriais
militares no Peru, um grupo maoísta do Partido Comunista do
Peru, conhecido como Sendero Luminoso, liderado por Abimael
Guzmán, realiza seu primeiro ato terrorista: a queima de urnas e
cédulas de votação em Chuschi, distrito de Cangallo, em Ayacucho.
Embora não seja o início da história de violência e desigualdades no
país, essa data pode ser considerada um marco para tudo o que viria
a se passar a seguir: uma série de violações de direitos humanos, de
opressão e de violência contra os povos mais fragilizados do país;
reações desproporcionais e injustificáveis por parte do governo e
das forças armadas; o acirramento das diferenças étnicas e sociais já
presentes entre a população.
Embora seja um tema demasiado complexo para tratarmos
no espaço desta comunicação, vale a pena mencionar que, assim
como o nazismo, boa parte da efetividade do projeto do Sendero
Luminoso deve-se a uma série de ações no campo do simbólico.
Para fazer referência a apenas algumas, temos a mitificação criada
em torno da figura do líder, o já citado Abimael Guzmán,
conhecido como capitão Gonzalo e tido como o quarto braço do
comunismo – ao lado de Marx, Lenin e Mao. Além disso, Victor
Vich, no livro El canibal es el outro, nos apresenta alguns pontos do
discurso do Sendero Luminoso que contribuem para a
153
disseminação de sua ideologia, principalmente nas zonas rurais
andinas. São eles: a visão teleológica da história; a dissolução do
sujeito dentro dos objetivos do partido; o culto à morte; e o
discurso pedagógico. Todos esses pontos são propagados,
principalmente, por meio do discurso, com uma retórica de
convencimento, a fim de criar e incutir uma ideia [messiânica] de
uma identidade não mais nacional, mas global e a-histórica.
É importante ressaltar, no entanto, que, embora o Sendero
tenha sido o catalizador do conflito armado interno, como conclui
o Informe final da Comissão de Verdade e Reconciliação do Peru,
boa parte das ações de violência perpetradas no período foi
realizada pelas Forças Armadas do país, em momentos em que
estavam no poder governos democráticos. Também não nos cabe
aqui aprofundar na complexidade do que representa o estado de
exceção estabelecido em diversas zonas do Peru (que acabaram por
se configurar em um estado permanente de exceção, se quisermos
pensar com Agamben), mas interessa-nos afirmar que houve em
boa parte uma concordância – ativa ou passiva – de uma parcela da
população peruana para que isso ocorresse. O que queremos
defender aqui é que isso foi possível, também, por questões
simbólicas, que permitiram a construção de uma imagem do Outro
– o andino, o falante de quéchua, homem, jovem – que o convertia
na categoria – hoje tão significativa e ao mesmo tempo
problemática – do terrorista, daquele que, em última instância, é
passível de ser eliminado sem que haja qualquer implicação legal
nisso (uma espécie de homo sacer, para seguirmos na terminologia
154
de Agamben). Não custa lembrar que a maioria das ações que
objetivam a segurança nacional (dentre elas a instauração do
problemático estado de exceção) são pautadas por uma ideia de
necessidade, possibilitada, sobretudo, pela disseminação do medo.
Mais do que conceitos objetivos, essas ideias pairam sobre o campo
das subjetividades e das sensibilidades.
Nesse contexto, como afirma Victor Vich (2015, p. 14-15),
155
repartições do visível e do invisível” (RANCIÈRE, 2009, p. 26).
Assim, uma atuação no campo do simbólico é uma atuação no
campo do político, no sentido de desestabilizar formas de
visibilidade e maneiras de fazer e de ser, de atuar e de compreender
o mundo, de dar voz, de permitir falar. E é somente neste sentido
que elas podem ser lidas em sua “efetividade”: não com
consequências concretas de mais ou menos êxito, mas com a sua
capacidade de propor novas formas de partilha do sensível.
Gostaríamos de trazer aqui alguns exemplos dessas
produções simbólicas realizadas durante ou logo após o período de
violência no Peru, para que possamos buscar nelas não modelos,
como dissemos anteriormente, mas formas de sobrevivência. Para
os primeiros exemplos, seguirei a leitura de Victor Vich em Poéticas
del duelo, especificamente no capítulo intitulado “Desobediencia
simbólica: performance y participación política al final de la
dictadura fujimorista”. Esse capítulo inicia-se com uma epígrafe de
Adorno, que afirma que “as obras que hoje contam são aquelas que
já não são obras”. Interessante provocação para pensarmos que tipo
de obra de arte é possível após um contexto de violência extrema;
não mais uma obra fechada em si mesma ou em seu regime
mimético, mas capaz de borrar fronteiras, de fazer-se ela mesma
realidade e de incorporar o real que antes lhe chegava por meio da
mimese; uma obra que abarque o testemunho e as vozes
dissonantes, as vozes sem lugar em um regime político; uma arte
que seja resistência por sua própria existência, pelo seu colocar-se
em um espaço-tempo em que não lhe era permitido estar.
156
Os exemplos que aqui trazemos têm em comum o fato de
estarem sob o [vasto] campo daquilo que entendemos como
performance. Como afirma Vich (2015, p. 162),
157
Já a performance Pon la basura en la basura, também
organizada pelo Colectivo Sociedad Civil no mesmo ano de 2000,
realiza sua interferência não na esfera pública, mas nas casas de
políticos e em locais emblemáticos do regime (emissoras de
televisão, o Comando das Forças Armadas), numa espécie de
“escracho”. A ação consistia em jogar nesses locais sacos de lixo
preto impressos com fotos de Fujimori e Montesinos com trajes de
presidiários. A força da performance, se quisermos falar de sua
efetividade, consistia em, a partir do simbólico, exercer uma pressão
social em um momento fundamental de transição política (era um
momento em que o esquema de corrupção do governo vinha à
tona e Fujimori renunciava ao cargo de presidente).
Diferentemente dos exemplos de que trataremos a seguir,
das peças de Yuyachkani, essas duas performances não se inserem
claramente em um campo da arte, constituindo-se mais como
ativismo político, como ações simbólicas que interferem nas
maneiras de configuração e de apreensão do real. Gustavo Buntinx,
um dos fundadores do Colectivo, evidencia isso ao afirmar que
“con esos rituales no queríamos ingresar a la historia del arte;
simplemente queríamos cambiar algo de la historia a secas.” 55 (apud
VICH, 2015, p. 183).
Já o grupo de teatro Yuyachkani insere-se, a princípio, nessa
categoria milenar da arte que é o teatro, muito embora diversas de
55 “com esses rituais não queríamos entrar para a história da arte; simplesmente
queríamos mudar algo da história ‘a secas’.”
158
suas ações pertençam a um território híbrido em que também
comungam performance e ativismo político. Talvez aqui devamos
voltar à postulação de Adorno para nos questionarmos sobre essa
dificuldade de classificação de certas manifestações
estéticas/políticas. Acreditamos, nesse sentido, que mesmo as
“obras” de Yuyachkani que são mais fechadas e cujo texto
dramatúrgico está escrito e publicado, e até mesmo aquelas que
possuem inspirações em obras literárias (como é o caso de Adiós
Ayacucho e de Antígona), permanecem como um espaço aberto,
maleável e de difícil classificação. Talvez a maior precisão conceitual
tenha se encontrado em Sin título – técnica mixta, peça estreada em
2004. Mesmo aí, figura um vocabulário das artes plásticas, que já
antecipa uma ideia de que a obra seria uma espécie de
performance/instalação. De passagem, podemos aludir ao
problema da utilização de conceitos ocidentais para classificar
manifestações que se aproximam da cultura andina, cujas relações
entre arte e vida, atores e espectadores, presença e representação são
bem diferentes da maneira como costumamos entender.
De toda forma, essas três obras mencionadas apresentam
maneiras distintas de lidar com o período de violência, e é isso que
gostaríamos de destacar aqui. Adiós Ayacucho, estreada em 1990, é
baseada na novela homônima de Julio Ortega, em que um
campesino assassinado pela polícia em Ayacucho viaja a Lima para
recuperar o restante de sua ossada e entregar uma carta de denúncia
ao presidente Belaúnde. Na peça, a corporificação do morto
Alfonso Cánepa se dá pela figura de um Q’olla, um personagem
159
dançante das festas populares andinas. É por meio do humor
presente na alternância das vozes do morto e do dançante no corpo
do ator Augusto Casafranca que o Yuyachkani busca lidar com
uma violência tão explícita e concreta como era aquela da década de
1990 no Peru.
Antígona, estreada em 2000, com dramaturgia do poeta
José Watanabe, é baseada no texto clássico de Sófocles. Porém, na
versão de Yuyachkani, a peça transforma-se em um solo
(unipersonal), no qual a Narradora propõe-se a dar corpo e voz aos
personagens daquela história, e relembrá-los a cada noite, como
uma forma de redimir-se pelas ações que não pôde fazer a tempo.
Trata-se dos momentos finais do conflito armado interno, mas
quando o governo de Fujimori ainda pleiteava o seu terceiro
mandato. A peça proporciona uma identificação por parte do
público peruano, todo ele de alguma forma envolvido – ainda que
com sua passividade – no período de violência, e faz um convite ao
trabalho de memória. Por meio de uma história da mitologia
clássica, e sem atualizar o tempo ou o local em que se passa a
história, Yuyachkani fala de seu próprio contexto.
Ambas as peças – Adiós Ayacucho e Antígona – fizeram
parte do projeto “Nunca más”, da CVR-Peru, apresentando-se nas
comunidades em que ocorreriam as audiências públicas da
Comissão. Ali, as histórias de Cánepa e Antígona se misturavam às
histórias reais de violência presente entre a população andina;
tornavam-se porta-voz, espaço de reflexão, convite ao testemunho
público.
160
Finalmente, Sin título – técnica mixta instaura-se como um
“museu da memória”, em que recortes de jornal, fotografias,
roupas, carteiras de sala de aula estão colocadas ao lado de
figuras/personagens/performers representativos não só do período
de violência, como também da guerra contra o Chile e da história
peruana de forma geral. Nesta peça, o público é convidado a
transitar pelo espaço, encontrar seus próprios pontos de foco,
descobrir detalhes e construir suas próprias leituras sobre aquela
profusão de fragmentos vivos de história.
Se quisermos ensaiar uma resposta a algumas das questões
propostas no início desta comunicação, podemos afirmar que esses
contextos podem sobre as obras o mesmo que estas podem sobre
aqueles: desestabilizar seus pressupostos e borrar fronteiras. A obra
de arte que existe e resiste é aquela capaz de olhar para esse período
de violência, incorporar as vozes silenciadas e silenciadoras
presentes ali, e tentar nomear, renarrar e intervir no campo do
simbólico.
REFERÊNCIAS:
161
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: EXO
experimental org.; Editora 34, 2009.
162
Ideias políticas:
o problema da experiência
56 Mestrando (Fale-UFMG)
57 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. I. Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Brasiliense, 2012, p. 123.
163
IDEIAS POLÍTICAS
164
epístola destinada ao amigo de adolescência, o jovem Pasolini
condena à morte a atitude de inocência perante o mundo, diz ele:
165
umas contra as outras”.62 Lembrando que Pasolini escreveu estas
palavras meses antes de ser brutalmente assassinado. Portanto, se o
Pasolini da juventude decreta a morte da inocência, o Pasolini
maduro irá desesperar-se ao constatar tal morte. Cerca de 4 anos
depois dessa percepção da tragédia humana anunciada pelo
cineasta, Giorgio Agamben publica Infância e História, no qual
aponta para um horizonte de pobreza, um horizonte da destruição
da experiência.
O PROBLEMA DA EXPERIÊNCIA
166
prancheta: foram construtores. A essa estirpe de
construtores pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia
numa única certeza — penso, logo existo — e dela
partiu[...].63
167
teria sido destruída, apagada como um vaga-lume, nos tempos de
nosso pobre hoje”.65
O pensador italiano inicia suas reflexões em Infância e
História, dizendo que: “todo discurso sobre a experiência deve
partir atualmente da constatação de que ela não é mais algo que
ainda nos seja dado fazer”.66 Consoante o pensador, a experiência
tem como matéria-prima o cotidiano, sendo a base dessa
experiência fundamentada na autoridade. O problema estaria em,
“hoje ninguém mais parece dispor de autoridade suficiente para
garantir uma experiência, e se dela dispõe, nem ao menos aflora
fundamentar em uma experiência a própria autoridade”. 67 O que
prevaleceria hoje seria a banalização do cotidiano que,
desencadearia uma espécie de massificação da experiência, onde o
“slogan” teria assumido o papel do provérbio na
contemporaneidade.
O que aconteceu, segundo o filósofo, é que a experiência
não se extinguiu por definitivo, mas agora ela ocorre fora do
homem e, surpreendentemente, o homem olha para a experiência
que está fora de si com alívio. É esta incapacidade do homem
contemporâneo com relação à experiência que aflige Agamben:
168
(digamos, o patio dos leones, no Alhambra) a esmagadora
maioria da humanidade recusa-se hoje a experimentá-las:
prefere que seja a máquina fotográfica a ter experiência
delas.68
169
tradicional, antiga, a mesma que Benjamin diz ter se perdido com a
Primeira Guerra Mundial.
É essa sensação de destruição do tradicional que
aparentemente gera a crise, o termo crise, por sinal, como aponta
Didi-Huberman, aparecerá em vários trechos de Infância e
História. A sensação de perda no presente é a ponte para o
apocalipse. Então, de um lado temos o fim da experiência e a crise
da cultura e do outro, temos a sobrevivência atravessada pelo
sensível. Além de termos também a resistência da cultura, que se
traduz pelo voo dos vaga-lumes. No caso da escrita literária e dos
estudos de literatura a sobrevivência é fato constatável, pois se
continua a escrever e continuamos estudando literatura. Ao invés
de fim, temos uma mudança que aparece, sobretudo, nos planos da
forma e dos temas, com relação às artes e literatura da
contemporaneidade.
A crise antevista por Agamben e Pasolini, em sua medida,
era mais uma nuvem escura, ora se movimentando com a força das
correntes de ar, ora se estagnando. O apocalipse associa-se, de fato, à
percepção de uma rápida mudança de valores morais, culturais,
sociopolíticos e especialmente estéticos. No caso estrito de Pasolini,
é a vertiginosa industrialização da Itália que o leva a identificar as
transformações que ele considerou nocivas à cultura, tais como as
mudanças de comportamento social e ideológico. No caso do
filósofo, os instrumentos tecnológicos e os aparatos científicos são a
170
causa da exterioridade da experiência, o que remete também à
industrialização e às mudanças de valores.
171
ameaçada constantemente pela televisão, pela superexposição na
mídia ou mesmo pela pornografia que, para o cineasta,
representava a degradação, o ápice da desvalorização e
comercialização do corpo. Se o moralismo exacerbado é um
entrave, a superexposição midiática não é menos problemática.
Nos anos 70, Pasolini encontra-se perdido em um labirinto,
onde o monstro que ali reside não é mais a figura mitológica do
Minotauro. Agora, o que se vê no centro desse labirinto é o que o
poeta-cineasta denominou de neofascismo, com suas Grandes
Luzes, com seus olhos mecânicos devorando os pequenos vaga-
lumes. Diante da visão do homem de plástico, da aparente
desvalorização do humano e defronte à cultura do descartável,
Pasolini anuncia o aparecimento daquilo que ele chamou de “O
vazio de poder”, que nada mais é que, a assimilação total dos ideais
burgueses pelos italianos. “Eu vi com meus sentidos o
comportamento imposto pelo poder do consumo de remodelar e
deformar a consciência do povo italiano, até uma irreversível
degradação”.71
No cenário da contemporaneidade, recheado de mudanças
constantes e rupturas, a visão apocalíptica é resgatada à figura de
João e moldada com adornos contemporâneos. A imaginação
ligada à perda ou à destruição do que estava estabelecido, de certo
modo, remete também a uma esfera política. “Em nosso modo de
imaginar jaz fundamentalmente uma condição para nosso modo de
172
fazer política. A imaginação é política, eis o que precisa ser levado
em consideração”.72
O problema de Pasolini ou de Agamben teria sido o de
esquecer a capacidade humana, não só de começar novamente, mas
de adaptação ao novo. O próprio ato de deixar de contemplar para
registrar com a câmera é fruto da dessacralização da arte e da
aceleração do tempo das relações na contemporaneidade; as
pessoas, mesmo em férias, continuam freneticamente
condicionadas. O “aqui e agora” virou um tempo de trânsito, de
vibrações, o tempo da contemplação é o futuro. O ato de fotografar
é oriundo de uma nova forma de experiência que surge com o
desenvolvimento tecnológico aliado ao niilismo moderno, que tem
o futuro como alvo. A partir da fotografia realizada, no futuro
teremos a experiência de contemplação dos objetos e lugares pelos
quais passamos, ainda que não mais com os originais e sim com a
sua reprodução.
Para Pasolini, por exemplo, o problema foi pensar que a
barbárie é o que provoca a morte da cultura e consequentemente a
morte das resistências, portanto, dos vaga-lumes. No entanto,
como aparece em Benjamin, a barbárie força a vinda do novo; ainda
que o novo possa parecer estranho e inferior ao antigo num
primeiro momento. Ao perder a esperança nos seres humanos, o
poeta italiano teria fechado os olhos para os pequenos lampejos,
173
para os vaga-lumes que, mesmo dispersos, continuavam seus “voos
erráticos” na noite escura.
Didi-Huberman exemplifica a sobrevivência dos vaga-
lumes, partindo de uma pequena análise do livro do fotografo
Francês, Denis Roche, intitulado “O desaparecimento dos vaga-
lumes” (1982). Esse livro em forma de carta endereçada a Roland
Barthes faz, segundo Huberman, “a firme, ainda que carinhosa,
crítica póstuma, de ter omitido, em [A câmara clara], tudo o que a
fotografia se mostra capaz de operar no plano do estilo, da
liberdade e, diz ele, da intermitência”.73
“A intermitência da imagem nos leva de volta aos vaga-
lumes”. Assim como o fotógrafo tem que se deslocar para captar
suas imagens, para encontrarmos os vaga-lumes temos que estar em
constante movimento. Os vaga-lumes não desapareceram apenas se
deslocam com frequência. Assim também se dá com a cultura, que
resiste, ainda que tenhamos que nos movimentar cada vez mais
para encontrá-la, ainda que tenhamos que procurá-la nos lugares
mais remotos. Dar exclusiva atenção ao “horizonte” observa Didi-
Huberman, “é tornar-se incapaz de olhar a menor imagem”. 74
Pensando na contemporaneidade, sobretudo no que diz
respeito à arte, torna-se possível fazer um paralelo entre as ideias
apocalípticas e as formas artísticas e de escrita que vigoram hoje,
visto que muitos no presente compartilham da ideia de crise da
cultura. O que talvez, se deva à própria postura assumida por
174
muitos artistas e, consequentemente, por suas obras de artes. Se por
um lado temos o objeto artístico que assumindo uma postura
crítica sobre o papel da arte, gera questionamentos e discussões a
esse respeito, por outro, temos a arte cujo objetivo é a derrisão. Essa
arte derrisória vincula-se à máxima que diz “que tudo pode ser
arte”, independente do espectador, pois assim como o autor,
hilariantemente, o espectador e o leitor já tiveram sua morte
decretada. Entretanto, longe de querermos atribuir um juízo de
valor, torna-se mais interessante desenvolvermos a capacidade de
vislumbrar e interpelar a sobrevivência que surge com nova
roupagem. Pois, o que Pasolini esqueceu, e em Agamben assume
forma negativa é que, nada está realmente definido, os lampejos e
transformações ainda que intermitentes continuam e
inevitavelmente continuarão.
Por esse motivo, alguns questionamentos podem e devem
ser perpetrados com relação à arte contemporânea, não com a
ingenuidade de querer compará-la com aquilo que fora produzido
no passado, mas com o intuito de tentar compreender a forma
como essa arte se relaciona com o mundo hoje. Utilizando as ideias
de experiência e sobrevivência na contemporaneidade e partindo da
imagem de atenção exclusiva ao “horizonte” que se converte em
incapacidade de olhar ou mesmo perceber as pequenas imagens, ou
os pequenos focos de resistência. Eu coloco aqui uma questão, que
se desdobrará obviamente, inserida entre parênteses sobre a arte
contemporânea, (será que dar exclusiva atenção a si mesmo, não é
175
tornar-se incapaz de olhar o mundo exterior?). A arte que se refugia
em si mesma não se torna incapaz de ter o pasmo essencial que tem
uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras, _para a
eterna novidade do mundo?75
Não seriam alguns dos estilos da contemporaneidade tais
quais a autorreferencialidade e autoficção formas apocalípticas?
Formas surgidas em meio à proclamação da morte da arte, da morte
do autor ou da própria literatura. Ao voltar-se somente para si
mesma a arte não se torna hermética e ao mesmo tempo deixa de
comunicar experiência? Pois perde o contato com o mundo
externo. A arte estritamente autorreferencial não é aquela que
perdeu a capacidade de ver os lampejos dos vaga-lumes que
sobrevivem lá fora, visto que está mergulhada na sombra de seu
próprio corpo e distante do elemento humano? Ou seja, tudo isso
não poderia ser uma espécie de recusa do mundo humano tal como
ele é?
A arte autorreferencial contemporânea tem se afastado da
novidade do mundo, ela vem perdendo o pasmo essencial do qual
nos fala o heterônimo pessoano Alberto Caeiro, têm os olhos
voltados para a própria face como forma de analisar e mesmo
questionar a sua própria carne. O abandono do suporte e da
linguagem tradicionais pertence ao ideal artístico que vem desde o
modernismo, um estilo que cresceu com as vanguardas europeias
do início do século XX e que tem como mote a destruição do
75 PESSOA, Fernando. Poesia completa de Alberto Caieiro . São Paulo: Companhia das
Letras, 2008, p. 19.
176
tradicional. Mas como o próprio Pasolini percebeu em seu tempo,
assim como o escritor Karl Kraus: não há sociedade degrada em que
primeiro não tenha havido uma degradação da própria linguagem.
A derrisão, presente em boa parte da arte contemporânea
cuja autorreferencialidade é o seu ponto nevrálgico, não seria uma
forma de degradação da linguagem artística, visto que ironicamente
parte para uma banalização do fazer artístico? Mas colocado os
questionamentos, eis a dificuldade: o próprio levantamento de
algumas dessas questões, por si só, poderia ser também tido como
proveniente de uma visão apocalíptica. O que demonstra a
fragilidade da simples formação de juízo de valor sem a devida
ponderação dos fatos. Por estas dificuldades, com relação à suposta
crise da cultura, talvez o caminho passe pela experienciação do
sensível como forma de pensarmos o contemporâneo e suas
manifestações artísticas.
REFERÊNCIAS:
177
COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Desterro: Cultura e Barbárie,
2010.
178
Políticas da escrita, políticas do corpo nos
babilaques de Waly Salomão
179
Para exposição de seus babilaques em 1979, Waly Salomão
preparou um texto em que definia tais objetos artísticos enquanto
“PERFORMANCE POÉTICO-VISUAL” (SALOMÃO, 2007. p.
21), apontando seu caráter intersticial, localizando-os entre as artes
cênicas, as artes visuais e a literatura. Os babilaques abrem-se como
um desafio à crítica, já que mesmo antes de se debruçar sobre seus
significados, os estudiosos se perdem na profusão de possibilidades
de demarcação do objeto: seriam babilaques os cadernos em que
Waly inscrevia seus esboços de criação poética? Ou seria o processo
de organização espacial de objetos e seu contato com o texto verbal?
Ou, afinal, seriam as fotos tiradas durante esse processo?
No catálogo da exposição Babilaques: alguns cristais
clivados são apresentados diversos modos de olhar sobre os
babilaques, dentre os quais se destacam: “poemas-objeto” para
Maria Arlete Gonçalves (SALOMÃO, 2007. p. 5), “séries de
fotografias” para Luciano Figueiredo (SALOMÃO, 2007. p. 10),
“tradução visual mais adequada da leitura oral que o próprio Waly
fazia de sua poesia” para Arnaldo Antunes (SALOMÃO, 2007. p.
35) e, por fim, “experiência de fusão da escrita com a plasticidade”,
como o próprio Waly Salomão indica em 2002 (SALOMÃO, 2007.
p. 61). Os babilaques, desse modo, como a primeira declaração de
Waly já apresenta, embaralham as fronteiras entre os diferentes
discursos; inserindo-se em um lugar intermediário, indefinido, e
desestabilizando a fixidez das demarcações artísticas. Foi Armando
Freitas Filho, em seu poema “Salmo”, ao ler os babilaques com
180
“olho-míssil” e não “olho-fóssil”, quem percebeu o traço
desterritorializado dos babilaques e propôs o questionamento:
“Aonde é o lugar onde os Babilaques?” (SALOMÃO, 2007. p. 97)
Percebe-se, portanto, que a produção de Waly propõe uma
reconfiguração de lugares, além de uma reflexão sobre a política do
fazer artístico no Brasil, como aponta Roberto Said:
181
marcos que delimitassem o objeto: “NÃO exibição de slides
prestação de contas dos trabalhos realizados NÃO mostra dos
poemas NÃO cadernos escritos NÃO” (SALOMÃO, 2007. p. 94).
Ao enquadrar essa enumeração com duas negativas, é apresentado
ao público que somente a definição pelo negativo é capaz de
explicar o babilaque, ou seja trata-se de um objeto que escapa das
(de)limitações artísticas. O título do peça, com sua caligrafia que se
expande pela página e demarca uma cartografia do aleatório, ao
lado de um recorte de uma fotografia na qual Mick Jagger dirige
um chute para a câmera, cria uma imagem irônica da demarcação
dos lugares. A ironia reside no absurdo de definir visualmente um
território aleatório ou circunscrever o gesto do vocalista, conhecido
por suas performances corporais, dentro de grossas linhas
vermelhas. A alusão à Rondônia, por fim, região que em 1975 ainda
preservava sua condição de território, configurando, portanto, um
lugar fronteiriço e marginal tanto no que tange aos limites
geográficos do Brasil quanto à sua organização político-
administrativa reflete próprio entre-lugar do babilaque.
O território-babilaque, instalando-se momentaneamente
pelas metrópoles da América, espelha ainda a vivência de Waly
Salomão, cujo trânsito estava diretamente associado à contingência
política pós-AI5. Tendo sido produzidos durante os anos de 1975 a
1977 nas cidades de Nova Iorque, Salvador e Rio de Janeiro, os
babilaques evidenciam o caráter errante da poética de Waly. No
babilaque da série “Stride”, por exemplo, o olhar do artista
182
brasileiro exilado na cidade de Nova Iorque indica a possibilidade
de encontro e embaralhamento dos lugares propiciados pelo
cosmopolitismo da cidade: “New York City é uma big city que são
países dentro dos quais continentes são in touch with”
(SALOMÃO, 2007. p. 70). Waly simboliza ainda a catatonia de
uma juventude que iniciava uma revolução nos modos de ser e de
viver no Brasil do anos 1960 e que se viu proscrita pelos
mecanismos de controle estatal da ditadura militar. A icônica
canção “Vapor Barato”, de Waly Salomão e Jards Macalé, sintetiza o
exílio e a errância de uma geração sem lugar, que não condizia com
os preceitos morais e comportamentais da ditadura: “Oh, sim/ eu
estou tão cansado/ mas não pra dizer/ que estou indo embora”
(SALOMÃO, 1983, p. 149) A fuga nesse caso não pode ser
compreendida como escapismo, ou seja, enquanto atitude
apolítica. Tomado lado a lado da perspectiva adotada em “Stride”,
o deslocamento que marca a poética de Waly propõe um novo
modo de visibilidade, ao criar espaços na arte e na poesia
contemporânea brasileira para o discurso de resistência do exilado.
Para Jacques Rancière, a política se funda exatamente na criação de
visibilidades e, para isso, o autor lança mão de vocábulos da ordem
da espacialidade, indicando que o movimento de tornar algo visível
parte de seu deslocamento e da construção de novos lugares:
183
hace escuchar como discurso lo que no era escuchado más
que como ruido. (apud FREIRE, 2015. p. 129)
184
“democracia”, diziam eles: uma nova realidade social
“insistente” implodindo toda estrutura adequada do
enredo, qualquer concatenação correta das ações. Este é o
ponto: Barthes analisa o “efeito de real” da perspectiva
“modernista”, igualando modernidade literária, e seu
significado político, com a purificação da estrutura do
enredo, descartando as imagens parasíticas do “real”. Mas
a literatura como configuração moderna da arte de
escrever é justamente o oposto: ela é a supressão das
fronteiras que delineiam o espaço dessa pureza. O que está
em jogo neste “excesso” não é a oposição do singular e da
estrutura, é o conflito entre duas distribuições do sensível.
(RANCIÈRE, 2010. p. 86)
185
sem pai corresponde o estado de uma política sem pastor
nem arquè. (RANCIÈRE, 1995. p, 9)
186
Faz-se necessário, portanto, delimitar qual a política dos
babilaques – uma política da escrita que opera de modo diverso da
descrita por Jacques Rancière. Para isso, deve-se traçar uma leitura
suplementar do conceito de democracia literária que possibilite
perceber a função política da voz na escrita de Waly Salomão. Para
isso, primeiramente, deve-se compreender que a voz que perpassa
os babilaques de Waly Salomão, ao contrário da concepção
trabalhada por Rancière, é uma emanação de um corpo – um
corpo que escreve e compõe o corpo da escrita. Não se trata da voz
do discurso, que lhe dá autoridade e forma, mas, ao contrário, trata-
se da voz corporal que se inscreve visualmente nos babilaques,
jogando e experimentando formas do fazer artístico, através de
jogos com cores, espacializações, caligrafias diversas etc. A voz indica
o corpo de que é origem e se expande a partir dele, como aponta
Paul Zumthor (ZUMTHOR, 2010. p. 12), e, no caso da poesia de
Waly, apresenta seu corpo a partir da “potência da voz corpórea que
o impregna e o movimenta, fazendo-o verdadeiramente existir
junto, mas não dentro, à visualidade diagramada da página,
aspirando à condição de música” (ORNELLAS, 2008. p. 135).
Desse modo, a hipótese que se apresenta neste estudo é a de que se
trata de uma resistência do corpo que se manifesta nos babilaques
por meio da oralidade e que, desse modo, estabelece um nova
política.
A voz encarnada enquanto letra se apresenta nos
babilaques sob a forma de repetições gaguejantes, no jogo de
187
palavras e no uso de expressões em inglês, tiradas das ruas de
Manhattan. No babilaque “Brasilly”, de 1976, por exemplo, as falas
das ruas americanas compõem o “monstruário” de personagens de
um roteiro “rated-X”, em que se friccionam, como personagens de
um filme perverso/pervertido, a polidez e a cordialidade do
americano (“Miss Have a Nice Week-end” e “Mr and Mrs See You
Later) e seus preconceitos e exoticismos sobre corpos do outro
(“Lady Cockroach La Cucaracha” e “Big Bitch Fat Fag”). Waly
retraça, nessa obra, as vozes da América de Whitman e Ginsberg ao
esboçar um peça pornô em que os corpos de explorados e
exploradores do cenário estadunidense configurariam “personagens
em busca dum autor”, a partir do qual essas relações de abuso dos
corpos poderiam ser reencenadas ou revertidas em cena. Ao
mesclar, no título, seu nome e sua nacionalidade, Waly se insere na
cena enquanto corpo explorado – brasileiro, exilado, “Papagaya
Brasilyca” – em busca de um autor que reescreva a história de abuso
dos corpos minoritários, que dominavam a cena política tanto no
Brasil quanto nos EUA. (SALOMÃO, 2007. p. 92).
Aliada à presença da voz, nos babilaques “Contrutivista
Tabaréu” e “Logbook” o próprio corpo de Waly também se faz
presente, já que há a necessidade de segurar o caderno para que ele
mantenha a posição para o registro fotográfico. Suas mãos e braços
entram em cena e escancaram o processo criativo, a montagem dos
babilaques. Como afirma, Roberto Said:
188
A arqueologia da linguagem empreendida por Waly
expõe, portanto, os fósseis de sua composição. Todo o
processo da escrita - “caixão de lixo ou de arquivo” – é
elevado à condição de produto final. O caderno de notas,
entendido como resto do ato criativo, torna-se o próprio
objeto de criação. […] Ao migrar da página à rua, ao
perder o estatuto de esboço para ser apresentado como
arte-final, ao se afirmar como coisa entre coisas, o poema
babilaque instaura uma outra dinâmica de ressignificação.
(SAID, 2011. p. 187)
189
pública dos babilaques – e a desloca temporal e espacialmente.
Waly, ao invés de produzir um ensaio ou um artigo de sua projeção,
suplanta a efemeridade de sua apresentação expondo seus
bastidores e esboços, explorando o traço da inconclusividade que
marca sua obra.
O fato de o processo de composição se mostrar escancarado
confirma essa noção de inacabamento da obra que Waly Salomão
sempre retoma em seus poemas e babilaques. Em “Mondrian
Barato” o inacabamento se torna explícito e se mostra enquanto
resistência ao academicismo:
190
referidas no babilaque dizem respeito a um modo de conhecimento
estanque e delimitador que era comum à academia da época. O
arquivo e o conhecimento dos babilaques é o do NOTEBOOK-
NOT BOOK, ou seja, um caderno de anotações, não um livro
acabado, engendrando um modo do (des)organização mais
próxima à do trapeiro benjaminiano do que do catálogo de
biblioteca.
Os elementos que povoam os babilaques, desde os cadernos
até as folhas de palmeira, se apresentam como restos da cultura,
objetos menores e desestabilizadores que não cabem nas
demarcações estéticas dos críticos e professores universitários da
década de 1970. Os textos dos babilaques, ainda, carregados de uma
oralidade desconsertante desafiam a discursividade e inauguram
uma linguagem. Waly trabalha com o que restou de fora do
pensamento vigente – seja do discurso acadêmico-conservador ou
da esquerda militante – e inaugura um outro modo de política,
uma política menor, do corpo.
A política dos babilaques, assim, adiantam a discussão das
“patrulhas ideológicas”, como discute Silviano Santiago ao apontar
o nascimento de uma “cultura adversária” dentro da esquerda
durante o processo de redemocratização (SANTIAGO, 2004. p.
136). Ao trazer o corpo para a discussão política, Waly retoma a
proposta hippie de liberdade dos corpos, mas a reencena nos fins da
ditadura brasileira, momento em que os corpos políticos que
restaram começam a conclamar novamente sua autonomia. Sabe-se
191
que o surgimento da nova esquerda no período da
redemocratização provém de movimentos de artistas e intelectuais
que propunham reivindicações – muitas vezes tomadas de
discussões políticas que surgiam no exterior – que não se
conformavam com as propostas dos partidos de esquerda. Dentre
elas, destacamos aqui a questão do corpo, que foi deixada de lado
pela esquerda exatamente por se ligar ao escapismo e ao pacifismo
da cultura hippie americana, atividades contraculturais tidas como
inofensivas.
A liberdade dos corpos aparece na escrita de Waly
entendendo o gesto da escrita como um gozo, como indica o
“prazer de escrever” de “Mondrian Barato” ou, mais diretamente,
como apresentado em um poema de Gigolô de Bibelôs:
192
podemos perceber na primeira poesia de Waly e em algumas de suas
letras de música:
193
babilaques, talvez a mais acertada seja aquela relacionada ao
vocabulário policial, corruptela de badulaques, que designava o
conjunto de documentos e pertences que um indivíduo carrega
consigo. Isso porque os babilaques são o que Waly tem para
mostrar, são seu trabalho exposto. Bem mais que os documentos e
pertences que ele poderia carregar consigo, os babilaques
identificam Waly Salomão, sua política, seu corpo.
REFERÊNCIAS:
194
________________. O efeito de realidade e a política da ficção.
Novos estudos Cebrap. São Paulo, n. 86, mar. 2010. p. 75-90.
SAID, Roberto. Museus e babilaques: um mundo de singulares
afinidades. In: SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA, Wander
Melo (Orgs.). Crítica e coleção. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2011. p. 176-191.
195
O corpo excrito na bioficção de Mario Bellatin
196
Hoc est enim corpus meum, (isto é o meu corpo), é a frase
que abre Corpus de Jean-Luc Nancy.78 O enunciado vem ilustrar,
desde sua ocorrência originária, daqueles que lhe dão valor de
consagração real e comungam em deus, passando pela repetição de
um “paganismo obstinado”, a primazia do corpo na política e
cultura ocidental. O que vem agora, escreve Nancy, 79 é o mundo
dos corpos: desde a densidade dos corpos da Segunda Guerra
Mundial, aos corpos refugiados, corpos saturados de significação,
corpos midiáticos ou, ainda, como escreve Mario Bellatin em
Flores,80 os corpos de cerca de 10 mil crianças que tiveram os corpos
marcados por aquilo que deveria ser um avanço da ciência, a saber,
a Talidomida, medicamento criado por volta de 1960 para aliviar as
náuseas durante a gravidez e que, por um efeito contrário, causou a
má formação dos fetos.
Esse primado do corpo no ocidente que atinge agora seu
ápice, lembra Agamben,81 é anunciado de forma implícita já 1679
com o writ de Habeas Corpus, o qual estabelece, judicialmente, que
é indispensável a presença de um corpo para ser exibido. É singular,
ele nota, que nessa fórmula não esteja mais presente o velho
sujeito das relações feudais, mas, sim, o puro e simples corpus. O
que leva rapidamente à constatação de que, nesse mundo dos
corpos, não está mais em jogo o “homem livre, com suas
78 NANCY. Corpus. p. 5
79 NANCY. Corpus. p. 39
80 BELLATIN. Flores. p. 367
81 AGAMBEN. Homo Sacer. p. 122
197
prerrogativas e os seus estatutos, e nem ao menos simplesmente
homo, mas corpus é o novo sujeito da política”.82
Esse corpo de destaque na cena política e em debates
contemporâneos aparece não só naquilo que desde Guy Debord se
convencionou chamar sociedade do espetáculo, mas está também, e
antes de tudo, no excesso que nos mostram as imagens, como
escreve Nancy: os “milhões de corpos como jamais foram
mostrados” os corpos das multidões, acumulações, “tumultos, [...]
exércitos, bandas, debandadas, fugas, bancadas, procissões, colisões,
massacres, carnificinas, comunhões, dispersões”, enfim, no excesso
de corpos expostos diariamente.83
Embora este seja um mundo de corpos, o que conhecemos
no nível discursivo é tão somente o corpo significante. Nos mais
diferentes discursos, nos lembra Nancy, como semiologia ou
fenomenologia, trata-se sempre do “corpo-hipersignificante” tal
qual um corpo histérico saturado de significação. 84 Abordagens
essas que contornam o fato de que a linguagem, na sua finitude,
nunca abarca o corpo sem deixar dele um resto que escapa à esfera
do simbólico. O corpo, escreve Nancy, é sempre o estrangeiro,
como vemos no enunciado da comunhão cristã no qual “o isto é o
meu corpo” só mostra o “impossível de engolir” pois “ Se hoc est
enim corpus meum” diz alguma coisa é exterior a palavra, não é
dito, mas excrito”.85 Ou, ainda com Nancy, “os corpos não têm
198
lugar no discurso, nem na matéria”, têm antes “lugar no limite,
enquanto limite: limite – bordo externo, fractura e intersecção da
estranheza no contínuo do sentido, no continuo da matéria”. 86 Ou
mais, o corpo só faz sentido “no lugar em que, para o sentido, existe
um limite”.87 Não diremos aqui, portanto, que o corpo é anterior,
posterior ou exterior à ordem significante, mas que está no limite.
É nessa linha de pensamento que para o filósofo o corpo
puramente significante, isto é, o corpo totalizado na linguagem, é
sempre um corpo ilusório. O lugar devido do corpo se dá naquilo
que ele chama arealidade, palavra que evoca área e, ao mesmo
tempo, uma falta de realidade.88 Entre linguagem e não linguagem,
saber e não-saber, em suma, entre simbólico e aquilo que Lacan
chamou de Real. Para Lacan, sabemos, Real e realidade não se
confundem, sendo a realidade, enquanto tecida pelo simbólico,
precisamente aquilo do qual o Real está ausente. Do “lado do zero
absoluto”, como escreve Lacan, o Real é o território que “foraclui”
o sentido,89 onde domina o não-saber ou, ainda, segundo uma
famosa definição, o Real é aquilo que não cessa de não se escrever.
A falta de realidade constitui, assim, todo o Real da arealidade,
constata Nancy.90 Se tratando da noção de arealidade, o binarismo
linguagem e inefável é substituído pela confluência de ambos. No
terceiro espaço onde se localiza o corpo, não se trata do jogo de
86 NANCY. Corpus. p. 18
87 NANCY. Corpus. p. 14
88 NANCY. Corpus. p. 42
89 LACAN. O Seminário, livro 23: O Sinthoma. p. 117
90 NANCY. Corpus. p. 42
199
presença e ausência da lógica metafísica, mas, sim, do encontro de
duas esferas distintas tal qual ocorre na aurora evocada pelo
filósofo:
91 NANCY. Corpus. p. 47
92 NANCY. Corpus. p. 31
93 LACAN. O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise. p .169
94 NIETZSCHE. Assim Falou Zaratustra. p. 43-45
95 NANCY. Corpus. p. 69
200
majoritariamente, de corpos significantes ou significados. Seja
através da ficção, no jogo das representações que toca o corpo
causando temor, piedade ou riso e que é, por sua vez, sempre um
tocar distanciado pelo fictício; seja através dos corpos dentro da
ficção gerados para significar, tal qual Quixote e Proust ou, ainda, a
própria produção, da qual, barthesianamente falando, o escritor
goza com seu corpo.
Para o corpo na sua arealidade, isto é, na sua confluência
entre o dentro e o fora, seria necessário, portanto, um corpus: um
“discurso inquieto, sintaxe casual, declinação de ocorrências. [...]
Não o corpo-animal do sentido, mas a arealidade dos corpos: sim,
corpos extensos até ao corpo morto. Não o cadáver, onde o corpo
desaparece”, mas um corpo que, “enquanto tal, mostra o morto na
derradeira discrição do seu espaçamento: não o corpo morto, mas o
morto como corpo”,96 afinal não há nenhum outro.
Propomos, então, um corpus do corpo excrito a ser
partilhado: “a excrição do nossos corpo, eis por onde se deve passar,
antes de tudo. A sua inscrição-fora, a sua deslocação fora-de-texto
como o movimento mais próprio do seu texto”. 97 Tratar-se-á, nesse
corpus de uma escrita na qual o corpo não é rebaixado à categoria
de corpo significante, pelo contrário, será essa uma escrita onde
“todo ele está no limite, no bordo externo” a própria escrita excrita,
96 NANCY. Corpus. p. 53
97 NANCY. Corpus. p. 12
201
“num rastro infindavelmente quebrado, partilhado através da
multidão dos corpos”.98
Chegamos, enfim, a Mario Bellatin, escritor
contemporâneo, nascido sem o braço direito, sendo esse um
detalhe da vida que, como um biografema, já parece “destinado a
atingir um corpo futuro”.99 Em Flores (2013) e em Los Fanstasmas
del Masajista (2013) o corpo mutilado, marcado pela falta, tem
lugar basilar na escrita. Ressalto, contudo, que não se trata, em
Bellatin, de um discurso meramente confessional, pois não estamos
diante de um relato do corpo do autor aos moldes da autobiografia
clássica. Da mesma forma como a obra de Borges, analisada por
Eneida de Souza, apesar da nítida inclinação biográfica, Bellatin
também “desconfia do apelo realista que privilegia as coincidências
entre obra e vida, incentiva os deslocamentos contínuos entre ficção
e realidade, além de embaralhar o senso comum dos leitores”. 100
Nessa mesma via, diferente do que acontece na autoficção, 101 noção
agora em voga nos estudos das escritas do eu, não há em Bellatin
um esforço meramente autorreferencial. Veremos que, antes de
tratar do eu, em Bellatin, é do corpo ou corpus-ego que se trata.
Em Flores (2013), livro no qual a escrita literária aparece em
uma espécie de troca osmótica com uma taxonomia botânica, sob o
nome de cada flor o corpo incide na escrita. Estruturado em dialogo
com o método de Gilgamesh, a construção da na narrativa
98 NANCY. Corpus. p. 12
99 BARTHES. Sade; Fourier; Loyola. p. xvi xvii
100 SOUZA. “Notas sobre a crítica biográfica”, p. 106-107
101 Ver, por exemplo, Ensaios sobre a Autoficção (2013)
202
pretende, a partir da soma de determinados objetos, formar um
todo.102 Assim, na terceira pessoa, esse texto segue como se a cada
fragmento o corpo se escrevesse indicialmente, apontando para
aquilo que do texto permanece extra textual e extra significante, isto
é, aquilo que se excreve. Evocando, ainda, no estilhaçamento do
texto, a tensão junto ao sistema significante 103 e a fragmentação da
escrita104 próprias à excrita do corpo, visto que leva desse sua
resistência à linguagem e sua descontinuidade.
A figura do autor aparece somente na construção de um
duplo chamado precisamente “o escritor”, personagem que mescla
as visitas à mesquita com visitas a zonas de práticas sexuais
alternativas. A cada nome de flores que compõe o livro o corpo
marcado pela falta reincide, não através de uma descrição exaustiva
do corpo, nem mesmo através de algum trabalho com a linguagem
que faria desse corpo um corpo hiper-significante. A incidência do
corpo se limita àquilo que Nancy chamou letricidade que não é
para ser lida como decifração.105 É assim que o narrador nos diz que
em dada ocasião o escritor:
203
Não há, aqui, psicologia do corpo, nem ensejo a leitura como
decifração. Na mesma via, sequer vemos em Flores um discurso
puramente confessional do corpo do autor, pois o corpo do escritor
que remove a perna adornada com pedras ao entrar na mesquita é
somente um corpo junto aos corpos das crianças, vitimas do
mesmo medicamento. Narrado em um tom que caminha em
direção ao neutro, à medida em que o corpo do escritor se desloca
em meio a outros corpos, a brutalidade do biográfico e a
pessoalidade que ele abarca são deixados de fora. É notável que o
corpo que perpassa a narrativa não é, assim, forçosamente, o corpo
de Mario Bellatin, mas tão somente os corpos, sendo esses, ainda, os
objetos que somados, ao final, formariam um todo. O todo do
corpo partilhado com outros corpos.
Nessa perspectiva, não há em Flores um relato que se
pretende totalizante do corpo de Bellatin, gesto que parece
satirizado na própria ficção. Em um episódio, é relatado um sonho
no qual, obedecendo ao comando de uma plateia, o escritor aceita
exibir o seu corpo mutilado para um público que, em resposta,
gargalha. O corpo transformado em espetáculo se torna, assim, um
pesadelo.
Em Los fantasmas del Masajista (2013) o duplo que lemos
em Flores é substituído pelo uso da primeira pessoa. Mas,
novamente, o afastamento do eu e a emergência do corpo se
efetuam. A primeira pessoa aparece só para, em seguida, dar lugar a
emergência de outros corpos. É nessa perspectiva que, se referindo à
204
sua viagem a São Paulo para tratar da gradual deformação que seu
corpo sofre devido à falta de um membro, o eu que ali fala se afasta
para dar lugar aos outros corpos que buscam, nas mesmas águas, “a
paz que seus corpos parecem necessitar”.107 Dentre eles se encontra
o corpo da mulher que continua a sofrer dores no membro ausente
ou no “membro fantasma”, como escreve em outro momento o
narrador.108 Fato que vem ecoar a independência que o corpo tem
da psique, para Nancy,109 autonomia do corpo que o narrador
atribui ao atraso do inconsciente que não pode perceber nesse caso
os verdadeiros limites do corpo.110 Produz-se, assim, algo como se
um esforço autorreferencial fosse seguido de uma subtração de um
afastamento da pessoalidade.
Na mise-en-abyme que existe na narrativa, ao contrário do
que acontece comumente na autoficção,111 não encontramos rastros
da figura do escritor, pelo contrário, essa cena em abismo é a
intensificação do desaparecimento do eu e a emergência do corpo.
O enredo que segue diz respeito ao massagista cuja mãe, uma
declamadora de sucesso, morre após fracassar durante a declamação
de Construção de Chico Buarque. Uma dupla queda, a queda do
corpo na canção é também a queda do corpo da declamadora. No
momento em que a mãe se torna corpo, uma operação é idealizada:
para eternizar o corpo far-se-ia uma mortalha especial que faria com
205
que corpo e papel se fundissem formando juntos um terceiro
material. Operação que é impossibilitada por uma questão
financeira levando à constatação de que, metaforicamente, aqui
também o corpo não se escreve.
Além do fantasma da perna ausente da paciente que
continua a sentir dor no membro que já não existe, o massagista
lida também com o “fantasma da mãe” que vive agora no corpo de
um papagaio que repete compulsivamente a canção de Chico
Buarque, fazendo ressoar através da repetição a queda do corpo
que, nas palavras do narrador “prefere voar como um pássaro antes
de seguir mantendo uma vida fantasma”. 112 Vida fantasma que, ao
lado do estorvo do corpo, seria, ainda segundo o narrador, “a
desculpa adequada para alguém que prefere pular no vazio ao invés
de levar uma existência tão previsível que poderia se eternizar em
uma canção.”.113 A vida fantasma sujeita a padronização da
coletividade é aqui “tanto ou pior que a de uma perna sem
movimento, que a de uma mãe transformada em papagaio, ou a do
físico que vai se transformando em uma massa irreconhecível”. 114
Diante da padronização é necessário, portanto, um retraimento,
um ausentar-se.
Nessa escrita é o eu quem sofre o estorvo do corpo, pois em
relação ao corpo, em Bellatin o eu está sempre em descompasso. No
deslizamento do texto o corpo ao poucos fixa um primado em
206
relação ao eu, à medida em que, paralelamente, a pessoalidade se a
afasta e a neutralidade emerge. Assim o narrador conclui “esse
corpo me incomoda”,115 enunciado que condensa em si ambos a
primazia do corpo em relação ao eu e o lugar basilar do corpo na
escrita.
Na excrição do corpo, escreve Nancy, o corpo é letra, ou,
ainda, “letricidade” que não é para ser lida como decifração do
sentido.116 Noção cara à psicanálise, a letra recebeu de Lacan em
“Lituraterra”117 o predicado de ser aquilo que faz litoral entre saber
e gozo, na borda do simbólico ela faz furo no saber apontando para
aquilo que no simbólico não se escreve. Por outro lado, apesar de
ilegível, a letra é a própria sustentação do que chamamos legível. Na
estrutura êxtima dos textos de Bellatin, o corpo excrito, como o
dentro que denuncia o seu fora, se faz letra, entre saber e não saber,
na borda do texto, onde temos de um lado a textualidade do outro
sua ausência. Em suma, um corpo dentro apontando para seu fora,
assim como no “Hoc est enim corpus meum” da tradição cristã que
faz simbolicamente presente, numa inclusão exclusiva, aquilo que
está fora.
Ainda, esse corpo, digamos, órfão, no seu primado em
relação ao eu, vem evocar a noção de Corpus-ego presentes no
corpus do corpo excrito. Para Nancy um corpo só pode ser
partilhado se, além da sua escrita fora de texto ele for destituído de
207
um dono: “o axioma material, ou a arqui-tectónica absoluta do
corpus ego implica, assim, que não haja ‘ego’.”118 Pois o Eu:
208
Longe da chamada autoficção, a escrita de Bellatin aponta
para aquilo que poderíamos chamar uma bioficção, onde o
primado é do corpo excrito e partilhado. Nisso que proponho
chamar uma bioficção uma política da escrita se insinua. Como
lembra Nancy, sob o regime político do corpo significante :
209
vem ecoar o corpus bifronte “portador tanto da sujeição ao poder
soberano quanto das liberdades individuais” sobre o qual fala
Agamben.126 Uma representação dessa dualidade nos encontramos,
novamente, na Banda de Moebius, figura topológica que representa
a extimidade, evocada por Peter Pál Pelbart 127 para ilustrar a
oposição que a potência da vida faz ao poder sobre a vida, jogo que
aqui coincide precisamente com o corpo fora e dentro,
respectivamente. Ao corpo fora acrescenta-se, portanto, a potência
do corpo. Se no registro do poder, teríamos, como evoca Agamben
a grande metáfora do Leviatã cujo corpo soberano é formado por
todos os outros corpos,128 o corpus da bioficção de Bellatin pode ser
representado na figura do nômade presente no conto de Kafka, 129
evocada por Petter Pal Pelbart:
210
Há, assim, uma política da escrita em Bellatin, não ao nível
do significado, pois não se trata de uma escrita política, já que o
autor não está a serviço de uma ideologia, mas, sim, no próprio
gesto da escrita e da excrição que ela comporta. Ranciere nos diz,
em Politicas da escrita que:
211
REFERÊNCIAS:
212
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Trad. Alex
Marins, São Paulo: Martin Claret, 2011 .
213
Morte e vida no corpo e na linguagem: uma
análise de “A Natural History of The Dead” de
Ernest Hemingway.
214
Dono de uma das biografias mais movimentadas da história
da literatura moderna, Ernest Hemingway foi jornalista, motorista
de ambulância na Primeira Guerra Mundial, membro dos exilados
da Lost Generation, militante pró revolucionários na Guerra Civil
Espanhola, sobrevivente de um grave acidente aéreo. Foi também
um aficionado pelo boxe, pelas touradas, pelas caçadas e pescarias,
assim como pelas mulheres: foram quatro casamentos e incontáveis
affairs. Mesmo sua trágica morte, suicidou-se com um disparo de
rifle aos 61 anos de idade, acabou por contribuir para a criação da
mística por trás de um dos expoentes da literatura do século XX.
Porém, todas essas atividades que moveram Hemingway estavam
submetidas a uma única, que as legitimava ao mesmo tempo em
que se nutria delas: a escrita.
A matéria prima de sua ficção foi sua própria vida. Não que
fosse memorialista ou autor estritamente autobiográfico; mas
Hemingway foi daqueles que só escreveu sobre o que conhecia por
experiência própria: e sua experiência, como vimos, era ampla. Mas,
do mesmo modo que sua vida alimentou sua ficção, também
ocorreu o inverso. Hemingway costumava embelezar a realidade, se
atribuía façanhas inexistentes ou praticadas por outros. Viver, para
Hemingway, era literatura.
Tanto a própria figura de Hemingway quanto seus
personagens têm muito daquilo do que Walter Benjamin
denominou de narrador: alguém que vem de longe com histórias
para contar, mas que ao mesmo tempo é aquele que nunca saiu do
lugar que habita e conhece toda a tradição e os segredos da terra
215
natal. O estrangeirismo de Hemingway e de seus homens e
mulheres do mundo – inclusive, o título de um dos seus melhores
contos não à toa é “Man of the world” – é naturalmente
aproximado do viajante de Benjamin. Em muitas de suas histórias
nos deparamos com figuras solitárias em lugares distantes de seu
país de origem, seja um jornalista americano estabelecido em Paris,
um soldado voluntário lutando por uma nação que não é a sua, um
estrangeiro caçando em meio à savana africana. Em todas estas
situações de forasteiro esteve o próprio Hemingway. Mas há
também um pouco de narrador nativo em toda essa literatura
cosmopolita: há o soldado que volta para a casa e busca novamente
seu lugar, há o menino criado em meio aos índios no interior dos
Estados Unidos, há o jovem que visita os rios da infância para
pescar trutas. Estes foram também Hemingway. O artífice viajante
não se distingue do mestre sedentário. Talvez essa seja a razão do
enorme sucesso de crítica e público alcançado logo na publicação de
seu primeiro romance, The sun also rises. Tal êxito, tanto literário
quanto comercial, encontra raros equivalentes no século XX e serve
como indício da ausência de fronteiras que caracteriza a literatura
de Hemingway. Esse homem desterritorializado por excelência não
encontrou, também como narrador, limites culturais e geográficos
que refreassem sua escrita.
Benjamin dizia que a força do narrador provém da morte:
“a morte é a sanção de tudo o que o narrador pode relatar. É da
morte que ele deriva sua autoridade”. 134 Hemingway era
134 BENJAMIN. “O narrador”, p. 224.
216
atormentado pela morte. Desde os ensaios sobre as touradas, até o
ato final suicida: sua vida e sua literatura são um longo vislumbre
da morte, o que contrasta com a intensidade de sua personalidade e
de suas experiências. Como observou Otto Maria Carpeaux:
“Hemingway, esse homem de vitalidade enorme, é especificamente
o escritor, quase, eu diria, o poeta da morte”. 135 A hiena que espreita
pacientemente o moribundo em “Snows of Kilimanjaro” é um
símbolo que atravessa toda a sua obra. Mas morrer, em
Hemingway, não é apenas um acontecimento inefável que cabe à
existência individual: todo o campo coletivo é atravessado pela ideia
do esgotamento da vida e da própria resistência desta ao
acontecimento infalível. A obstinação da vida em confronto com a
morte é como a empreitada de Santiago em The old man and the
sea: devotada e corajosa, mas sempre fadada ao fracasso.
Em 1932, Hemingway publica Death in the afternoon,
ensaio que tem por base as touradas espanholas, mas que se abre
para uma profunda reflexão sobre a morte. Originalmente, tal
ensaio possuía um capítulo que versava sobre a experiência de
Hemingway no front da Primeira Guerra Mundial: usando de um
tom satírico, o escritor se colocava na pele de um naturalista que se
propõe a estudar os mortos por uma perspectiva racional e
científica, voltando-se para um campo de observação privilegiado
para tal tarefa: a guerra. Essa premissa serve para que Hemingway
critique de forma virulenta a desumanidade da guerra, escolas
literárias como o Humanismo e a literatura de guerra escapista e
135 CARPEAUX. Hemingway: tempo, vida e obra, p. 67.
217
também o próprio naturalismo. O capítulo foi posteriormente
suprimido de Death in the afternoon, e incluído na coletânea de
contos Winner take nothing, de 1933, com o nome de “A natural
history of the dead”. Tal mudança sugere a independência do relato
em relação ao ensaio que o originou e, principalmente, acentua seu
caráter ficcional. De certa forma, um ponto atípico na produção do
escritor e mesmo esquecido pela crítica, “A natural history of the
dead”, no entanto, nos aparece como um poderoso manifesto
literário biopolítico, onde os atravessamentos entre vida e morte,
corpo e linguagem, ciência e literatura, propiciam a exposição de
uma espécie de ética do estilo.
O conto136 é estruturado em duas partes bem delimitadas. A
primeira é a parte expositiva, onde um narrador bastante irônico
faz apologia do naturalismo científico como método de estudo
sobre os mortos. A segunda parte é uma pequena historieta em
forma de anedota sobre um soldado ferido mortalmente e a recusa
de um médico em auxiliá-lo a morrer. As duas partes se conectam, a
última servindo quase como ilustração das teorias expostas na
primeira. Parece-nos interessante inverter o caminho, iniciando a
análise pelo episódio envolvendo o médico e o moribundo, que é
quase didático ao representar a disposição biopolítica da medicina.
136 Cabe salientar que “A natural history of the dead” está longe de ser um ensaio
tradicional, sendo mais passível de ser entendido como uma sátira do gênero, onde o
narrador funciona como um personagem ficcional que não deve ser identificado com
o autor. Classificaremos, portanto, o texto como conto, levando em conta não apenas
a história de sua publicação (posteriormente à sua primeira e única aparição na
primeira edição de Death in the afternoon, “A natural history of the dead” sempre foi
incluído em coletâneas de contos), mas também sua óbvia composição ficcional,
evidenciada tanto nas exposições do narrador quanto na conclusão do texto, quando
tem lugar uma narrativa claramente fabulada.
218
Em uma montanha, onde uma das cavernas serve de posto
militar, um soldado teve a cabeça despedaçada “as a flower-pot may
be broken”137 e resta gemendo de dor em um buraco próximo à
entrada da caverna, junto a outros mortos. O sofrimento do
moribundo incomoda os soldados que estão no posto, e estes
tentam dissuadir o médico a executar ou mesmo permitir que eles
mesmos façam a eutanásia. A pequena narrativa é quase
completamente estruturada em diálogos. O despojamento da
linguagem e dos personagens evidencia o caráter satírico, que já era
demonstrado na parte anterior do conto:
137 HEMINGWAY. The complete short stories, p. 339. “Como um vaso de flores pode
ser despedaçado” (Tradução nossa).
138 HEMINGWAY. The complete short stories, p. 340.
“‘Incomoda-nos ouvi-lo lá com os mortos’
‘Não escutem. Se o tirarem de lá terão que voltar com ele depois.’
‘Não faz mal, capitão-doutor.’
‘Não’, disse o médico. ‘Não. Já não me ouviram dizer não?’
‘Por que não lhe dá uma dose dupla de morfina?’ perguntou um oficial de artilharia
que esperava que lhe fizessem um curativo no braço ferido.’
‘Pensa que é só para isso que emprego a morfina? Quer que eu opere sem morfina?
Você tem um revólver, vá lá e dê um tiro nele você mesmo’”
(Contos Vol. 2, p.295. Tradução J.J. Veiga).
219
Chama a atenção o modo quase circunstancial como o diálogo se
desenvolve, como se os envolvidos discutissem e opinassem sobre
um problema banal. Há, inclusive, um tom paternal nos dizeres do
médico, como se este estivesse repreendendo crianças. A posição
dos soldados em relação ao moribundo é marcante, pois para eles é
difícil “escutá-lo lá com os mortos”, o que quer dizer que ainda o
percebem como dotado de vida, por mais precária que esta seja. Já
para o médico, o ferido é um fardo inútil que os soldados teriam
que carregar de volta caso tentassem salvá-lo, ou seja, para a
medicina, servidora do poder estatal que precisa de homens
prontos para guerrear, tornou-se uma vida descartável, desprovida
de funcionalidade.
É interessante aqui recorrer a um conceito que o filósofo
Giorgio Agamben cria para se pensar a relação entre a vida do
cidadão e o governo do estado soberano: o Homo Sacer. Esta é a
designação que dá Agamben, partindo do direito romano, para
uma “vida nua” definida por ser insacrificável, pois não está
submetida ao direito divino de sacrifício, mas que é, ao mesmo
tempo, uma vida matável, fora da jurisdição da lei humana. Tal vida
exposta à morte, segundo Agamben, é a própria condição política:
só há vida política quando a vida nua do cidadão está submetida ao
direito de morte do soberano. Assim que se perde o valor político,
seja através da inutilização física, social ou psicológica do indivíduo
ou de determinado grupo, cabe ao soberano decidir sobre a sua
morte ou vida.139
139 Cf. AGAMBEN. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua I.
220
Num cenário de guerra, a disposição da vida da população
pelo estado é evidente. Com o apogeu dos conflitos bélicos em
grande escala a partir do século XIX, o holocausto das próprias
populações pelos regimes estatais atingiu um grau nunca antes
imaginado. Mas, diz Foucault, “esse formidável poder de morte (...)
apresenta-se como complemento de um poder que se exerce,
positivamente sobre a vida (...) populações inteiras são levadas à
destruição mútua em nome da necessidade de viver. Os massacres se
tornaram vitais”.140 Mata-se para sobreviver. Ameaça-se um
determinado povo com a morte para que outro povo viva. Essa é a
lógica do militarismo no Estado moderno. E de tal maneira, a
própria população é usada como ferramenta: jovens são convocados
a lutar pelo seu país. Mas o chamado recai quase sempre sobre as
camadas mais desprovidas de recursos econômicos e sociais: de
antemão, o estado já escolhe para defendê-lo aqueles que não
servem para habitá-lo. Soldados são enviados para a morte em
nome da soberania da nação e, embora sejam denominadas
“sacrificadas em prol da pátria”, suas vidas são puramente
descartáveis e acessórias.
O direito sobre a vida e a morte expande-se, na
modernidade, para territórios além da pura política estatal
convencional. A medicina é um lugar privilegiado do biopoder,
onde o médico torna-se soberano e se utiliza do saber para o
controle por excelência. Agamben localiza essa troca de papéis entre
soberano e médico no governo do Terceiro Reich, mas Hemingway
140 FOUCAULT. A vontade de saber, p. 129.
221
já aponta para tal transformação no contexto da Primeira Guerra
Mundial, como explicitado na segunda parte de “A natural history
of the dead”.
Voltando ao conto, apesar de considerar o esforço para
salvar ou ajudar o moribundo a morrer infrutífero, o médico, em
um primeiro momento, propõe ao tenente que o mate; só que,
logo depois, ameaça fazer um relatório responsabilizando este pela
morte. O soldado ferido, homo sacer a serviço de seu país,
desprovido de seus direitos por não mais se enquadrar entre a massa
manobrável do estado, torna-se matável, porém, insacrificável. Tal
disposição fica evidente na conclusão. O capitão-médico e o tenente
envolvem-se em uma luta física iniciada pela discussão em torno do
moribundo na qual o primeiro leva a melhor. Logo depois, um
ajudante informa que o pivô da confusão acaba de morrer. A
resposta do médico é: “See, my poor lieutenant? We dispute about
nothing. In time of war we dispute about nothing”. 141 Inutilizado
como uma ferramenta gasta, improdutivo, o soldado ferido é,
literalmente, um nada.
Na pequena anedota, vida e morte são naturalizadas, no
sentido de que se tornam acontecimentos vazios e sem significado.
As bases da crítica a esse movimento são apontadas por
Hemingway na primeira parte do conto, através da irônica e
paradoxal apologia ao naturalismo científico.
141 HEMINGWAY. The complete short stories, p. 341. “Está vendo, meu pobre tenente?
Brigamos por nada. Em tempo de guerra brigamos por nada” ( Contos Vol. 2, p. 297.
Tradução J. J. Veiga).
222
No primeiro parágrafo, um narrador bem-humorado (que
não necessariamente devemos identificar com o autor) começa por
apontar em tom pseudocientífico a necessidade de se estudar a
morte do ponto de vista da história natural. “Can we not hope
furnish the reader with a few rational and interesting facts about
the dead? I hope so”.142 Como o explorador Mungo Park, que
quando perdido no deserto africano vislumbrou em uma pequena
flor a esperança e a força para seguir em frente, devemos, segundo o
espirituoso narrador, procurar inspiração nos cadáveres.
Esse pseudotratado que dá o tom inicial ao conto é tecido
por comentários jocosos a grupos científicos, literários e filosóficos.
A menção a Mungo Park e outros naturalistas dos séculos XVIII e
XIX, como W. H. Hudson, o reverendo Gilbert White e o bispo
Edward Stanley, altamente sarcástica, evidencia a crítica de
Hemingway ao naturalismo “místico” desses estudiosos, incapazes
de conciliar suas crenças religiosas com as análises empíricas da
natureza. Mas, se Hemingway brinca com os métodos naturalistas
primitivos, é porque não pode suportar algo ainda pior: o
Humanismo. O Novo Humanismo americano, movimento
literário extremamente conservador, representado na figura de
críticos como Irving Babbitt, Paul Helmer More e Seward Collins,
defendia a separação entre homem e natureza, e pregava a supressão
de descrições de funções naturais humanas, como sexo e morte, na
literatura. Quando A farewell to arms foi publicado, Hemingway
142 HEMINGWAY. The complete short stories, p. 335. “Não podemos então dar ao
leitor alguns fatos racionais e interessantes sobre os mortos? Espero que sim. ”
(Contos Vol. 2, p. 287. Tradução J. J. Veiga).
223
foi acusado peloadeptos dessa escola de ser obsceno e indecoroso,
seja em suas cenas românticas entre os protagonistas, seja em sua
linguagem direta usada para descrever a retirada das tropas italianas
de Caporetto. A resposta vem em “A natural history of the dead”,
onde Hemingway ridiculariza as prerrogativas do movimento,
convocando os novos humanistas a se reproduzirem e morrerem
decorosamente de acordo com suas crenças. Para Hemingway,
obscenas e indecorosas são justamente as abstrações que atenuam
os massacres cometidos na guerra, em prol de uma literatura
heroica e escapista. Nesse sentido, “A natural history of the dead”
funciona quase como um manifesto em prol de uma ética estilística
que pode ser sintetizada na célebre passagem de A Farewell to arms:
“abstract words such as glory, honor, courage, or hallow were
obscene beside the concrete names of villages, the numbers of
roads, the names of rivers, the numbers of regiments and the
dates”.143 Hemingway propõe então uma literatura focada na
ossatura do real, no concreto das palavras, uma literatura que seja
produtora de sensações corporais ao invés de abstrações morais. 144
Essa é a prerrogativa de uma literatura biopolítica.
Para fazer frente ao biopoder, criar uma forma de
resistência para a vida subjugada, a literatura deve voltar-se para o
corpo. Não apenas representando este corpo, mas encarnando-o na
143 HEMINGWAY. A farewell to arms, p. 185. “Palavras abstratas tais como glória,
honra, coragem, ou reverência eram obscenas ao lado da concretude dos nomes de
vilas, dos números de estradas, dos nomes de rios, os números dos regimentos e das
datas” (Tradução nossa).
144 Cf. BEEGEL. “That always absent something else”: “A natural history of the dead”
and its discarded Coda. p. 77-79.
224
linguagem, no próprio corpus textual. O próprio estilo torna-se
ferramenta de resistência. Deleuze e Guattari dizem: “pintamos,
esculpimos, compomos, escrevemos com sensações. Pintamos,
esculpimos, compomos, escrevemos sensações”. 145 Segundo os
filósofos, o objetivo da arte de modo geral é criar “perceptos e
afectos”, isto é, percepções e afeções não estritamente pessoais e
referentes, mas oriundas do próprio material da arte e, por isso
mesmo, impessoais. O material do escritor são as palavras. A
sensação na literatura nasce do estilo. Em poucos escritores o estilo
é tão puramente sensitivo quanto em Hemingway. Não o interessa
os malabarismos retóricos nem as abstrações estéreis. As palavras
existem apenas para transmitir ao leitor imagens praticamente
picturais que levam este a “reagir” e, por sua vez, experimentar a
sensação. Por isso o estudioso de Hemingway, Earl Rovit, questiona
a classificação de “realismo”, pelo menos no sentido corrente, para a
prosa do escritor:
225
cinematográfico: a força de seus textos deriva de imagens que
produzem um “realismo [que] não está no que é visto, mas no fato
irrefutável de que alguém está vendo intensamente”.147 Tal ética do
estilo em Hemingway já é uma mostra das escrituras que viriam a
dominar o cenário literário do final do século XX até nossos dias:
literaturas voltadas mais para o corpo e suas vicissitudes que para
questões morais e valores transcendentes, em suma, literaturas
biopolíticas.
Tal procedimento fica claro nas duas “cenas” que orientam
as análises naturalistas do narrador na primeira parte de “A natural
history of the dead”. O primeiro desses episódios é a explosão de
uma fábrica de munições, no interior da Itália, que acabou por
matar uma grande quantidade de mulheres que trabalhavam no
local. A imagem das mulheres mortas é pitoresca já que, em geral, as
vítimas da espécie humana em um conflito militar são homens. Em
contraponto, observa o narrador, dentre os animais mortos em
combate, não há distinção na quantidade de machos e fêmeas. Esses
apontamentos culminam com a didática afirmação: “The first thing
that you found about the dead was that, hit badly enough, they
died like animals”.148 O narrador, que esteve presente no local logo
depois da explosão, relata a experiência com detalhes que se fixam
na memória e imaginação do leitor:
226
I remember that after we had searched quite thoroughly
for the complete dead we collected fragments. Many of
these were detached from a heavy, barbed-wire fence
which had surrounded the position of the factory and
from the still existent portions of which we picked many
of these detached bits which illustrated only too well the
tremendous energy of high explosive. Many fragments we
found a considerable distance away in the fields, they
being carried farther by their own weight.149
227
long in the heat the flesh comes to resemble coal-tar,
especially where it has broken or torn, and it has quite a
visible tar like iridescence. The dead grow larger each day
until sometimes they become quite too big for their
uniforms, filling these until they seem blown tight enough
to burst. The individual members may increase in girth to
an unbelievable extent and faces fill as taut and globular as
balloons. The surprising thing, next to their progressive
corpulence, is the amount of paper that is scattered about
the dead.150
150 HEMINGWAY. The complete short stories, p. 337. “Enquanto não são enterrados,
os mortos mudam um pouco de aparência a cada dia. A mudança de cor nas raças
caucasianas vai do branco ao amarelo do amarelo ao esverdeado, depois ao preto. Se
exposta ao calor por muito tempo a carne fica parecendo alcatrão principalmente
onde foi ofendida e adquire uma iridescência visível. Os mortos aumentam de
tamanho diariamente até ficarem às vezes muito grandes para o uniforme: o
uniforme se enche tanto que dão a impressão de que não tarda a estourar. Os
membros engrossam assustadoramente e os rostos incham até ficarem arredondados
como balões. O mais surpreendente depois dessa progressiva corpulência é a
quantidade de papéis que se espalha em volta dos mortos” ( Contos Vol. 2, p. 290-
291.Tradução J. J. Veiga).
228
de grande carga psicológica. É quase uma literatura
comportamental, na qual o leitor não fica imune à emoção quase
física proporcionada pelas palavras.
Didi-Huberman, em A sobrevivência dos vagalumes,151
evoca a resistência proporcionada por imagens vagalumes que, ao
contrário dos refletores do fascismo e da sociedade de espetáculo,
são intermitentes, desaparecem e reaparecem em meio a escuridão
da noite e de nossa época. Tais imagens capturam o sentido ao
mesmo tempo em que ele se evanesce. Em “A natural history of the
dead”, é através dessa linguagem imagética, desses vagalumes, que
Hemingway retoma as sensações da guerra, já que mesmo pela
memória essa operação é impossível:
229
através do asco e do horror, retomados e levados à sensação através
de seu estilo seco e direto, fazer o leitor sentir o acontecimento
“morrer” em sua própria carne, vislumbrar uma vida que só se faz
presente em sua absoluta falta.
Hemingway antecipa em “A natural history of the dead”
muitas características das chamadas literaturas pós-autônomas da
contemporaneidade. Estas são escrituras que têm por característica
a impossibilidade de se deixar classificar como literatura através de
categorias tradicionais como autor, obra, escritura, sentido. São
textos compostos em uma marcada ambivalência que impossibilita
a distinção entre ficção e realidade: são realidadeficção. Segundo
Josefina Ludmer, as literaturas pós-autônomas, “tomam a forma de
testemunho, da autobiografia, da reportagem jornalística, da
crônica, do diário íntimo, e até da etnografia (...) Saem da literatura
e entram na realidade e no cotidiano, na realidade do cotidiano”. 153
Em “A natural history of the dead” é impossível distinguir na voz
narrativa ficção e realidade; os comentários irônicos e reflexivos
misturam-se à realidade das cenas de guerra, e a forma híbrida,
entre ensaio e conto ficcional, dificulta o estabelecimento de uma
definição do sentido e mesmo da posição do autor. Baseado em
experiências pessoais, o conto, no entanto, afasta-se da autoficcção,
especificada como narrativa da identidade e do eu autobiográfico,
para adentrar no território da bioficção, isto é, voltar-se para a
questão da vida de forma impessoal através das representações dos
corpos e da morte coletiva. Ao colocar a máscara de naturalista, o
153 LUDMER. Literaturas pós-autônomas, p. 2.
230
texto de Hemingway denuncia o perigo de se “naturalizar” a
exceção, a morte causada pelo estado e pela medicina.
Paradoxalmente, o meio para tornar essa crítica relevante é
justamente um neonaturalismo estilístico. Este artifício é usual em
narrativas contemporâneas. É notável, por exemplo, a semelhança
das descrições de mortos com a “parte dos crimes” do épico
romance de Roberto Bolaño, 2666, onde diversos assassinatos de
mulheres são descritos quase como que em um relatório policial.
231
com a morte.155 O humanitarismo, ao conceber a vida como algo
sagrado, acaba por contribuir com os dispositivos de poder sobre a
vida contra os quais luta, justamente ao separar a vida como valor
absoluto de sua contingência política. 156 A função da arte é adentrar
na ossatura do real, o que só pode ser alcançado através de imagens
que imponham na própria carne de quem as capta toda a dimensão
de experiência contida em tais representações.
É o que fica claro, em “A natural history of the dead”, no
trecho sobre animais mortos, com a imagem do exército grego
quebrando as patas de seus cavalos e burros e jogando-os ao rio para
se afogar. A força da cena é tão sugestiva que, para o narrador, “the
numbers of broken-legged mules and horses drowning in the
shallow water called for a Goya to depict them”.157 Relacionar a
arte, através do nome de Goya, a uma imagem tão cruel pode
parecer apenas uma brincadeira sarcástica e mordaz, tendo como
objetivo acentuar o tom satírico-crítico do texto, mas, em
Hemingway, a arte é legitimada pela morte, assim como o
moribundo de Benjamin, que se torna digno de ser ouvido por sua
condição de quase perecimento. Ao retratar, de forma violenta e
crua, cenas como essas, o escritor traz à tona a experiência vital que
desaparece em meio à carnificina sem sentido. Benjamin disse que
os soldados que voltavam da Primeira Guerra não possuíam
experiências que pudessem transmitir. Talvez isso acontecia por não
155 Cf. HEMINGWAY. The complete short stories, p. 338.
156 Cf. AGAMBEN. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua I.
157 HEMINGWAY. The complete short stories, p. 336. “A quantidade de burros e
cavalos de pernas quebradas se afogando em água rasa pedia o pincel de um Goya”
(Contos Vol. 2, p. 288-289.Tradução J. J. Veiga).
232
conseguirem mais relatar tal horror sem o intermédio da ficção e da
criação. Dessa mesma guerra voltou o próprio Hemingway, e suas
melhores narrativas têm o conflito como pano de fundo. Se “num
campo de forças de torrentes e explosões destruidoras [encontra-se]
o minúsculo e frágil corpo humano”, 158 é justamente nele e para ele
que a arte e a literatura devem voltar-se. Essa parece ser uma
possibilidade, em momentos do mais puro medo, de retomar as
sensações incapazes de serem refeitas pela memória, de redescobrir a
experiência que nos falta e nos emudece.
REFERÊNCIAS:
233
BOLAÑO, Roberto. 2666. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo:
Companhia das letras, 2014.
234
Schiller: da dramaturgia pré-romântica ao impulso
estético como proposta de educação moral
235
A abordagem sobre a arte na Alemanha moderna pretende
superar os princípios formais constitutivos da obra de arte, tão
caros a Aristóteles e aos poetas dramáticos clássicos franceses, e
atingir, propriamente, para além da obra, a recepção estética, numa
espécie de práxis. Buscaremos evidenciar que a perspectiva de
Schiller, enquanto poeta dramático do pré-romantismo, 160 torna-se
outra quando o foco de Schiller se vira para a filosofia moral em
1792-93, quando sua fase artística se aproxima mais do classicismo 161
e de seu projeto de Educação Estética do Homem (1794). Por outro
lado, tomaremos o texto dramático Os Bandoleiros162 (Die Räuber)
como o parâmetro poético em relação à arte do Sturm und Drang
ou pré-romântica. Assim, por este lado temos um poeta audacioso
que insurge de maneira impetuosa contra um Estado cerceador da
liberdade individual, e por aquele outro, temos um filósofo que
percebe que a liberdade como ideal político esboçada pela
Aufklärung é insuficiente para realizar a tarefa que lhe é intrínseca:
160 Pré-romantismo é também uma nomenclatura dada ao Sturm und Drang pelo fato
de este movimento antecipar várias características do romantismo.
161 Anatol Rosenfeld, no texto “Schiller Anti-romântico”, diz que “é comum ouvir-se
caracterizar Schiller como ‘grande poeta romântico’, amigo de Goethe, outro ‘grande
poeta romântico’. Esta opinião é diametralmente oposta à da Alemanha, onde lhes
cabe a categoria de ‘clássicos’, não só por serem considerados expressões máximas das
letras germânicas, mas principalmente em virtude de suas tendências
acentuadamente anti-românticas.” (ROSENFELD, 1993, p. 267)
162 A peça Die Räuber foi publicada por Schiller em 1781, quando ele tinha apenas 22
anos de idade, embora ele a tenha começado a escrever, provavelmente, em 1777,
ainda aos 17 anos. Mesmo tão jovem Schiller seria reconhecido como grande autor de
sua época por essa publicação de estreia, exatamente à época do Sturm und Drang. A
peça foi editada sob condições muito complicadas. O próprio Schiller teria bancado o
custo de publicação por encontrar inúmeras dificuldades com os editores e o custo de
publicação era um entrave para os poetas da época. Existem algumas passagens no
próprio texto da peça Os Bandoleiros nas quais é possível ver uma ironia lançada por
Schiller, na voz de seus personagens, aos editores da época.
236
a de constituir uma sociedade esclarecida. Mas quais são os cenários
em que atua Schiller em seu percurso?
UM CENÁRIO POLÍTICO
237
tirânicas, violência de sentimentos e um ímpeto do indivíduo
diante de todas as circunstâncias cerceantes da liberdade. A
desmedida é, para os pré-românticos, um caminho para a liberdade.
O desejo dos Stürmer é de infinito, de grandeza ilimitada, de
paixões e sentimentos fortes, de uma sehnsucht (nostalgia, um
anseio infinito) pela plenitude e reencontro com o uno, o todo, mas
que, dialeticamente, não se realiza; portanto, um desejo infinito,
uma vontade insaciável e irrealizável.
UM CENÁRIO ESTÉTICO
238
(...) em vez de lutarem, como Lessing e a Ilustração, em
favor da eliminação de abusos e, em geral, em favor de
uma ordem mais justa, [os autores pré-românticos]
passam a exaltar a emancipação anárquica do individuo;
objetivo que naturalmente implica o conflito não só com
determinada sociedade histórica, mas com a sociedade
como tal, qualquer que seja.163
239
evidencia o problema central da modernidade: o conflito do
classicismo francês166 (voltado para a boa forma e o rigor aristotélico
na composição da obra dramatúrgica) fortemente ligado ao antigo.
Segundo Sussekind,167
240
forte impacto ao retratar a própria Alemanha, ao se apropriar
dramaturgicamente da própria época e da própria história e
apresentá-la numa trama cujo efeito na sociedade é imediato e
evidente. Schiller já adianta, na peça, que “O lugar onde transcorre
a ação é a Alemanha. A época, por volta da metade do século
XVIII. O tempo da peça é de mais ou menos dois anos”. 168 O ideal
iluminista de liberdade é elevado nesta trama à sua máxima
potência, e o que se vê é a representação de um indivíduo
anárquico, revoltado com o Estado e com a sociedade e que, por
isso mesmo, encontra no caos e na desordem o elemento de
realização de sua liberdade. Os Bandoleiros trata, em resumo, do
debande do primogênito Karl Moor, protagonista da tragédia, para
uma vida libertina próxima à natureza e distante do rigor de seu
pai, Maximilian Moor. Karl Moor representa esse impulso da
necessidade, essa violenta necessidade da natureza humana e, ao
mesmo tempo, o aguçado desejo de libertação, de autonomia,
temas caros ao poeta pré-romântico. Em termos schillerianos, ele é
o homem em estado bruto e, no paradoxo do “cidadão de dois
mundos”, ele representa exatamente a parte sensível, inclinada à
necessidade. Em oposição, ao lado do braço duro do Estado
dominador, está o irmão Franz Moor. Logo na primeira cena, Franz
Moor lê para o pai, Maximilian, uma carta falsamente atribuída a
um correspondente de confiança – mas escrita por Franz mesmo -
na qual se ouve narrar os feitos de Karl fora dos limites da cidade:
241
Ontem a meia-noite, depois de ver que sua dívida chegava
a quarenta mil ducados (...) depois de ter desonrado a filha
de um rico banqueiro, depois de ter ferido de morte ao
amado dela, um jovem de posição, num duelo, tomou a
grande decisão de fugir às garras da justiça, junto com
outros sete rapazes, que sempre o acompanharam em sua
vida dissoluta.169
169 Ibid. p. 13
170 Ibid. p.20.
171 Ibid. p.24. Grifo no original.
242
homens que encaram a morte de frente e deixam o perigo
brincar à sua volta como se fosse uma cobra mansa.
Homens que valorizam a liberdade mais do que a honra e
a vida, cujo simples nome recebe bem aos pobres e
espezinhados, homens que acovardam os mais corajosos e
empalidecem os tiranos.172
243
Assim, quando discutimos com Kant e Schiller a respeito
da dupla natureza do homem, a física e a moral, ou ainda entre
necessidade (natural) e liberdade (da razão) estamos discutindo
exatamente a respeito da escolha em agir segundo sua natureza mais
primitiva, ou, a sua natureza livre que pode, mesmo em condições
adversas, levá-lo a uma escolha justa e moral. Em Os bandoleiros,
essa violência instintiva mais dissuade do que constrói. Isso traz à
tona a confusão que se faz entre liberdade, que é fazer o que se deve
fazer, e necessidade, que é um agir livre, sem consideração à moral.
A EDUCAÇÃO ESTÉTICA
244
usar as palavras de Kant.175 A violência vista em Os Bandoleiros
mostra-nos a impossibilidade de uma passagem direta desse nível de
animalidade para um nível de independência moral. Segundo
Schiller,176 é preciso considerar a sensibilidade. Cito-o: “mostrarei
que para resolver na experiência o problema político é necessário
caminhar através do estético, pois é pela beleza que se vai à
liberdade”. Para Schiller, o momento (Revolução Francesa) é
propício para tais mudanças, mas não haveria ainda uma estirpe,
um homem bem formado (Bildung), capaz de erguer esse mundo
moral.
A defesa de Schiller na construção de um Estado racional
perpassa uma retomada de valores já decaídos, por exemplo, de
uma relação integral entre homem e natureza: uma busca do
ingênuo que quer ser natureza, e não apenas imitá-la. O
pensamento moderno, com suas ciências subdivididas em
categorias distintas promovem uma desintegração daquela ideia de
Todo que podíamos ver nos Antigos, cuja querela, neste caso, se dá
pela diferença de que o homem moderno vive a idade do
entendimento categorial e sua elaboração de mundo, estritamente
teórica, que subjuga a condição sensível. Ou seja, a razão pura, o
entendimento livre aclamado pela Aufklarung, entra em luta com a
condição natural do homem ao tentar se elevar ao esclarecimento,
deixando de considerar a dimensão sensível do homem que lhe é
inseparável.
245
É nesse sentido que se dá a importância do pensamento de
Winckelmann para um novo conceito de beleza, e os gregos, que
sempre foram nossos mestres na cultura, no pensamento e na arte,
continuam a sê-lo, porém, nosso modo de vê-los deve ser outro. Os
gregos tinham, propriamente, uma reconciliada relação com o belo
e o encontravam manifesto na natureza; assim, ao imitar a natureza,
pela sua perspectiva mais orgânica, estavam eles captando o belo
representado em pura expressão do indizível. Para Winckelmann e
o classicismo, o homem moderno teria perdido essa relação com a
beleza e não teria, propriamente, um original conceito de beleza. O
que significa que a natureza dos modernos não é tão perfeita
quanto a dos gregos e qualquer obra de arte que tenha um modelo
imperfeito expressará uma forma imperfeita. Assim, os clássicos
como Goethe e Schiller buscam dominar aquele cavalo desvairado
que é a exaltada força da juventude pré-romântica, e tentam
ultrapassar o entendimento da forma como elemento principal da
obra de arte. O efeito da arte deve ser preponderante, colocando em
luta necessidade e dever moral, agindo, portanto, sobre a formação
do indivíduo, de modo que “o homem cultivado faz da natureza
uma amiga e honra sua liberdade, na medida em que apenas põe
rédeas a seu arbítrio”.177
Essa lucidez, essa “serena tranquilidade” de Schiller, não era
ainda possível de se ver no Sturm und Drang.
246
Enfim, o projeto de Educação Estética de Schiller advém de
um processo historial no qual o filósofo reconhece as tarefas de seu
tempo. Se no Sturm und Drang esse reconhecimento historial se
deu na necessidade de emancipação do indivíduo, contaminada
pelo estado de violência advindo da revolução e do terror franceses,
por outro lado, o classicismo de Schiller é resultado desse processo
histórico no qual o Sturm und Drang mostra que a impudência na
poesia e na razão não cumpre a tarefa de elevação do homem ao
estado de entendimento. Seria impossível uma passagem direta da
primeira natureza (impulso de necessidade do homem físico) à
segunda natureza (o impulso moral). O projeto da educação
estética tem uma longa caminhada histórica, uma tarefa infinita, e
se compõe destes dois impulsos mais o indispensável impulso
lúdico, o estético. É este impulso da beleza, mais do que mediador,
que permitirá uma passagem de um estado a outro. Cito Schiller:
247
Por fim, a passagem de Schiller pelo pré-romantismo e sua
postura filosófica diante do classicismo revela-nos uma evolução do
pensamento moral e da expressão artística que fornecerá, de fato, as
bases para a filosofia no final do século XVIII e início do XIX com
o idealismo alemão. Hegel179 teria dito que:
248
REFERÊNCIAS:
249
____. Kallias, ou, Sobre a beleza: a correspondência entre Schiller e
Körner, janeiro-fevereiro de 1793. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
250
Mito, estética e política em dois projetos
literários: O Guesa de Sousândrade e El pez de
oro de Gamaliel Churata
RESUMO: Nosso texto fará uma ponte entre dois autores e duas
obras aparentemente distantes no tempo e no espaço, nos referimos
a O Guesa do romântico Joaquim de Sousa Andrade
(Sousândrade) e El pez de oro do vanguardista peruano Arturo
Peralta (Gamaliel Churata). O eixo de comparação será o mito que
movimenta os elementos estéticos de ambos e que, além de
estruturar os textos, propõe uma perspectiva de fazer política na
América Latina. Neste sentido, falaremos sobre a validez do mito
(especificamente no nosso continente) como forma de pensamento
com capacidade epistêmica para participar nas estruturas de poder a
partir da via do sentir (estética) de outro modo o mundo e sua
heterogeneidade. A pergunta que guiará nossa apresentação será:
tem o mito um tipo de política que ainda não foi ouvida? Para
respondê-la, tentaremos uma leitura ameríndia destes autores
segundo as propostas antropológicas do Eduardo Viveiros de
Castro e o pensamento de desterritorialização e rizoma de Deleuze e
Guattari.
180 Callao, 1986. É licenciado em Literatura pela Universidad Mayor de San Marcos com
a tese titulada Óscar Colchado Lucio: la propuesta cosmopolítica de Rosa Cuchillo
(2015). Atualmente realiza estudos de mestrado em Teoria Literária e Literatura
Comparada na Universidade Federal de Minas Gerais. É bolsista CNPq.
251
1. TRÍADE
252
mecânica e, desse modo, satisfazer a nossa curiosidade; estamos
estabelecendo uma simbiose com o mito – seja como este for.
Quando falamos que o mito é um sujeito queremos dizer que o
mito, além de ter uma personalidade, tenha uma multiplicidade
dentro dele.182 Mais ou menos, o que cada um de nós tem e o que
Rimbaud e Pessoa exprimiram: eu é outro ou eu é outros.
Continuando com a questão, sabemos que a palavra pessoa vem do
vocábulo latino prosopón ou máscara. Todos temos muitos
personagens escondidos que, de vez em quando, agem de alguma
ou outra forma. Esqueçamos a psicanálise por um momento; aqui
estamos falando da esquizofrenia.183
Ao contrário do mito do método, nós apresentamos para
vocês, o método do mito, recomendado por Eduardo Viveiros de
Castro:184 o mito é espaço de relações de poder que procura
organizar, além da polis, o cosmos.185 Personificar, interpretar, no
sentido teatral, é o princípio fundamental do mito. 186 Insistimos,
potência que tem que ser descoberta. O nome que Viveiros de Castro dá a essa
ontologia, com a intenção de radicalizá-la e precisá-la, é perspectivismo (VIVEIROS
DE CASTRO, 2015, p. 41).
182 Os mitos falam sempre de relações sociais.
183 Contra a psicanalise é criada a metodologia esquizoanalítica por Gilles Deleuze e
Félix Guattari em três livros: El Anti Edipo (1972), Mil mesetas (1980) e ¿Qué es la
filosofía? (1991).
184 VIVEIROS DE CASTRO, 2010, p. 238.
185 Viveiros o exprimirá assim: “O encontro ou intercâmbio de perspectivas é um
processo perigoso, é uma arte política – uma diplomacia. Se o “multiculturalismo”
ocidental é o relativismo como política pública, o perspectivismo xamânico
ameríndio é o multinaturalismo como política cósmica” (VIVEIROS DE CASTRO,
2011, p. 358).
186 “Conhecer é personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido –
daquilo, ou, antes, daquele; pois o conhecimento xamânico visa um “algo” que é um
“alguém”, um outro sujeito ou agente. A forma do Outro é a pessoa” (VIVEIROS
DE CASTRO, 2011, p. 358).
253
mito sem vidas que o aceitem não é mito; ele só existe em uma
prática vital que não está isenta dos jogos de poder como bem
percebeu Platão.187 O trabalho dele foi eliminar o mito – a poesia –
da república, posto que só era útil para desnortear ao cidadão.
Nesse sentido, quem tinha a capacidade de olhar cara a cara o mito
era o poeta; por esse motivo, também tinha que ser expulso da
cidade; e, finalmente, outro que tinha poderes perigosos era o
sofista, o idiota fabulador. Não mencionaremos o óbvio destino
dele.
Foi Platão quem expulsou o mito da vida política e desde
então segue fora dela ameaçando-a. Porém, afinal de contas, o
racionalismo não conseguiu vencer o mito, senão que se converteu
em um, aceito e praticado por nós, como explica o luminoso Kant
em seu texto “O que é iluminismo”. O mito é esse lugar de Caos
que o autor do Banquete qualificou de negativo. O filho do mito é,
sem dúvida, a literatura pelo simples fato de que esta trabalha com
o sentir localizado nos corpos, quer dizer que esse centro ameríndio
de pensamento do mundo tem ainda continuidade em nossas
práticas de pesquisa, porque, se vamo-nos entendendo, o terceiro
personagem da República é o sofista, e quem mais desprestigiado
que os sofistas modernos de Letras e Ciências Humanas? Claro,
187 Platão dirá em relação a poesia a aos poetas: “[…] es en justicia que no lo admitiremos
en un Estado que vaya a ser bien legislado, porque despierta a dicha parte del alma, la
alimenta y fortalece, mientras echa a perder la parte racional, tal como el que hace
prevalecer a los malvados y les entrega el Estado, haciendo sucumbir a los más
distinguidos”. (PLATÓN, 2000, 605 b)
254
sem mencionar que no Japão “perceberam” a inutilidade dos
homens interessados nas tragédias interiores dos homens como nós.
Afinal de contas, o projeto do Estado perfeito vem sendo
realizado sob os nossos narizes: nem o sofista, nem o poeta e muito
menos o mito devem ter participação na construção da cidade, da
Nação. O mito do racionalismo – que é um do tipo hegemônico,
mas que não o converte no único que existe em nosso planeta –
chega nos nossos dias ao paroxismo. A tríade mito, literatura e
política tem mais sentido e urgência do que nós podemos acreditar.
É bom lembrar as lutas do Davi Kopenawa pela terra e seu povo,
além do resumo da sua vida, como crítica, no seu livro A queda do
céu:188 ele é um homem que vive o seu mito e que, através dele, fala
aos brancos sobre a destruição, não só dos Yanomami e outras
etnias da floresta, senão do nosso mundo como fruto podre das
nossas crenças “evoluídas”. A equação é simples: tenta-se abrir um
campo simétrico entre mitologias, ontologias, epistemologias e
políticas do mundo.
O que aconteceu depois de acreditar-se na alegoria da
caverna e de sua união com o pensamento judaico-cristão, graças à
máquina de guerra romana, foi um epistemicídio generalizado na
história da humanidade, segundo Boaventura de Sousa Santos. 189
Cabe lembrar que esse processo ainda continua como efeito não só
da colonização, ou do capitalismo ou da industrialização, mas da
formosa globalização unidimensional. Juntamos aqui as propostas
255
de Emmanuel Wallernstein (2006) e Herbert Marcuse (1993). Em
resumo, o mito da luz, vinda dos céus, tem o poder para nos fazer
suspeitosamente iguais.
O problema do mito, como o da literatura, é que existe em
prol da multiplicidade, quando o nosso marco epistemológico é
claramente monológico a partir da ideia de que tudo pode ser
objetualizado. O método mítico, ao invés, é altamente dialógico e
não deixa de fazer alianças 190 com o mundo tal como a literatura faz
conosco. Temos tribos machadianas, drummondianas, pessoanas,
lispectorianas, etc., que trabalham com os afetos exprimidos pelos
poetas. Tanto como o mito fala das possibilidades do mundo, a
literatura não deixa de propor novos mundos por viver e novos
povos por serem conhecidos.191 O problema, claro está, é que não se
toma a sério a literatura, porque ainda encontramo-nos acreditando
que não tem nada a dizer – por esse termo que consideramos ruim
chamado “ficção” – e que a estética só é um trabalho asséptico; sem
nenhum compromisso que devenha dos mundos propostos pela
literatura. Viver a literatura teria que ser deixar seu potencial
transformativo trabalhar livremente.
A tríade está completa. Toda ontologia tem uma narrativa
ou mito que é a lente que permite ao corpo sentir, e todo sentir
190 O conceito de aliança é trabalhado por Deleuze e Guattari no platô nº de Mil platôs.
Viveiros de Castro estende este conceito para a antropologia no seu livro Metafísicas
canibais (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 153-213).
191 Danowski e Viveiros de Castro escrevem o seguinte sobre esta multiplicidade: “[...]
os ameríndios pensam que há muito mais sociedades (por tanto humanos) entre o
céu e a terra do que sonham nossas antropologias e filosofias. O que chamamos de
“ambiente” é para eles uma sociedade de sociedades, uma arena internacional, uma
cosmopoliteia” (DANOWSKI E VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 94).
256
conduz a uma política. A diferença da ontologia ocidental com as
ontologias ameríndias está no fato de que a primeira separa
radicalmente o ser e o sentir, por meio da nocividade de uma
experiência variada nas carnes dos cidadãos, posto que estes têm
que seguir o padrão das Ideias, da razão; a segunda não faz muros
entre o ser e o sentir porque não existe reflexão do mundo sem
percepção e só depois de sentir se pode agir sobre os seres que
povoam o mundo. Em outros termos, toda narrativa teria simetria
conosco porque tem a capacidade de nos afetar: 192 a única variável é
que temos muitos corpos por sentir em uma hermenêutica
altamente exigente. Temos face a nós a tranquilidade da metafísica
impositiva versus a metafísica relacional.
2. SOUSÂNDRADE
192 O crítico peruano Miguel Ángel Huamán diz o seguinte: “Las obras literarias no solo
pasan por la historia y los sujetos sociales, sino que éstos pasan por ellas para
construir y reelaborar su destino” (HUAMÁN, 2013, p. 22).
257
Sousândrade se converteu em uma linha de fuga. 193 Não estudou
em Portugal, mas na França; não pertenceu ao círculo imperial, mas
escreveu em certa periferia até que participou ativamente no
nascimento da República brasileira.194 Neste primeiro ponto, a vida
do poeta fez um agenciamento com o mito. Viajou como o
personagem e poder-se-ia dizer que foi sacrificado ao esquecimento
até a recuperação feita pelos irmãos Campos 195 mais de cinquenta
anos depois da publicação de O Guesa e da morte do próprio
escritor.
Os cantos mais conhecidos e complicados do livro são o II e
o X, conhecidos comumente como a “Dança do Tatuturema” e o
“Inferno de Wall Street”, respectivamente. Nesses, o autor fez duas
críticas políticas. A primeira contra o Império brasileiro e sua
incompreensão sobre a questão indígena, e a segunda, contra o
capitalismo como Caos destrutivo das relações humanas.
O procedimento sousandradino, que começa no mito, foi
acelerar as partículas de sentido. Quer dizer, nos apresenta, nesses
cantos, uma multiplicidade de vozes que têm perspectivas plenas
sobre o problema da estrutura do mundo, expande o diálogo a tal
ponto que muitos trechos são quase ininteligíveis. Mas por quê?
Porque expande as possibilidades de compreensão do mundo,
dando autonomia a cada perspectiva que participa no texto. No
193 Conceito proposto por Deleuze e Guattari em Mil mesetas. Consiste em um evento
que atravessa diferentes estratos de sentido até sair de um sistema codificado de
pensamento.
194 Os dados biográficos podem ser consultados na biografia do Sousândrade escrita por
Frederick Williams e publicada no ano de 1976.
195 No famoso texto ReVisão de Sousândrade.
258
canto II, por exemplo, falam personagens mortos, vivos, deuses,
escritores, indígenas, nuvens, violas, coros. Neste sentido, o texto
desestratifica a solidez do monologismo em uma espécie de rito
xamânico. Propõe uma simetrização dos entes sobre a superfície do
livro estudado, o qual faz rizoma com o mundo, quer dizer,
Sousândrade conecta elementos heterogêneos para demonstrar,
simultaneamente, que a ordem estabelecida perdeu de vista o labor
político como escuta atenta de inúmeras populações.
Graças ao método mítico praticado pelo poeta maranhense
temos versos antiestatais, como o seguinte: “(AMAZONAS
belicosas melhorando a genesíaca superstição :) / – Terra humana,
primeiro. / Deus fez Eva; e então, / Paraíso sendo ela / Tão bela, /
Fez o homem Adão”.196 As mulheres inverteriam a lógica da criação:
o princípio do planeta é humano, logo feminino e finalmente
masculino. Tudo é humano e, por esta razão, é válido falar de
sentires do mundo. A tarefa xamânica do poeta é descobrir a
subjetividades escondidas nas corporalidades que ele exprime o
poema.
Sousândrade reconverte os tópicos infernais em verdadeiras
extensões delirantes do mundo, porque uma crítica, a partir de
outra ontologia acorde com o pensamento indígena, é possível,
segundo nosso parecer, se o artista faz uma aliança com o mito.
Neste sentido, o poeta traz para a literatura potencialidades que
agora tentam se compreender, mas, sobretudo, viver.
259
3. CHURATA
260
Outro dos dados importantes do livro têm a ver com a
mistura de práticas textuais que ele põe em movimento. Churata
incrusta cantos em aymara e quéchua,198 partes em prosa,
parlamentos teatrais e até uma homilia que abre o texto. Nesta
ocasião não nos deteremos na apresentação dos personagens que
participam na trama de El pez de oro. O poeta peruano menciona
25 personagens conhecidos, entre os quais o homem não é o mais
importante, mas a tríade peixe, felino e mulher peixe. Outros que
conformam a lista são a Mãe terra, Cachorros, Montes, Nuvens,
Esqueletos, Bactérias, Sonhos, Versos e, para complicar ainda mais a
situação delirante, dois etcéteras que poderíamos compreender
como personagens impossíveis de nomear e de uma quantidade
indefinível, mas importante, dada a heterogeneidade antes
mencionada do texto.
Poderíamos dizer, sem medo de errar, que Churata é um
continuador das propostas estético-políticas de corte xamânico do
Sousândrade porque o que o peruano faz com o livro é enchê-lo de
vidas que descentram o antropocentrismo ocidental. Neste sentido,
estes escritores recuperariam, a partir de umas invisibilizadas
ontologias latino-americanas, as possibilidades de pensar
“outramente” o mundo, como diria Viveiros de Castro, 199 e que
poriam em xeque as modalidades analíticas ocidentais que não
198 Temos por exemplo o haylli (canto de guerra) ou o harawi (canto amoroso) entre os
mais conhecidos.
199 VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 91.
261
poderiam explicar adequadamente o ser, o sentir e o poder de fazer
política no nosso continente.
E já que falamos de experimentar de outro modo,
gostaríamos de fechar nosso texto com uma citação de Churata que
faz um chamado ao Platão:
REFERÊNCIAS:
262
DELEUZE, Gilles y GUATTARI, Félix. Mil mesetas: Capitalismo
y esquizofrenia. Trad. José Vásquez Pérez y Umbelina Larraceleta.
Valencia: Pre-textos, 2009.
263
PLATÓN. República (Obras completas, tomo VI). Trad. Conrado
Eggers Lan. Barcelona: Gredos, 2000.
264