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A filósofa dos sentimentos - revista piauí 04/03/18 15)08

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A filósofa dos sentimentos - revista piauí 04/03/18 15)08

EDIÇÃO 122 | NOVEMBRO DE 2016 _questões existenciais


A FILÓSOFA DOS SENTIMENTOS
Martha Nussbaum, o envelhecimento, a desigualdade e a emoção

RACHEL AVIV

Em abril de 1992, Martha Nussbaum, uma das mais importantes filósofas dos Estados Unidos, se preparava
para uma conferência na Universidade Trinity de Dublin quando soube que sua mãe estava à morte num
hospital da Filadélfia. Só conseguiu voo para o dia seguinte. Naquela noite, ela proferiu a palestra agendada,
que versava sobre a natureza das emoções. “Pensei: ‘É inumano, eu não devo fazer isso’”, comentou mais
tarde. Mas concluiu: “E por que não? Afinal, estou aqui, o público está à espera.”

Depois, em seu quarto, Nussbaum abriu o laptop e começou a esboçar a próxima conferência, que ocorreria
dali a duas semanas na faculdade de direito da Universidade de Chicago. No avião, na manhã seguinte,
continuou digitando, ainda que com as mãos trêmulas e cogitando se havia algo cruel em sua capacidade de
ser tão produtiva. Alinhava um discurso sobre a natureza da misericórdia. Como de costume, ela
argumentava que certas verdades morais deixam-se exprimir melhor se contadas como uma história. Nós nos
tornamos misericordiosos quando “agimos como o leitor de um romance” e entendemos a vida de cada um
como “uma narrativa complexa do esforço humano num mundo cheio de obstáculos”.

Em seu texto, mencionava o filósofo romano Sêneca, que, ao final de cada dia, refletia sobre suas más ações
antes de dizer a si mesmo: “Desta vez, eu te perdoo.” A frase a fez chorar. Sua capacidade de trabalhar seria
um ato subliminar de agressão, sinal de que não amava a mãe o bastante? “Eu não deveria estar por aí, dando
palestras”, pensou. “Não deveria ter me tornado filósofa.” Sentia que a mãe via seu trabalho como frio e
distante, moralmente superior. “Ao que parece, não somos criaturas muito amorosas quando filosofamos”,
escreveu.

Assim que o avião pousou, soube que a mãe acabara de morrer. A caçula, Gail Craven Busch, diretora do
coro de uma igreja, tinha dito à velha senhora que a irmã estava a caminho. “Mas ela não resistiu”, disse
Busch. Quando chegou ao hospital, a filósofa encontrou a mãe ainda na cama, de batom nos lábios e, preso às
narinas, um tubo já desconectado da máquina de oxigênio. Nussbaum chorou, as enfermeiras a acalmaram
com um copo d’água e ela então juntou os pertences da falecida, entre os quais o livro A Glass of Blessings
[Um Copo de Bênçãos], da inglesa Barbara Pym – um romance afetado, ela não se furtou a observar, do tipo
que jamais leria. Deixou o hospital e foi até a pista de atletismo da Universidade da Pensilvânia, onde correu
mais de 6 quilômetros.

Admiradora dos estoicos, que acreditavam que as emoções descontroladas destroem o caráter moral de uma
pessoa, a filósofa inferiu que, confrontados com a morte de um ente querido, eles provavelmente diriam:
“Somos todos mortais, e você logo vai superar a perda.” Mas não engolia o modo como eles se adestravam
para não depender de nada que estivesse além do controle de cada um. Por vários dias, teve a sensação de
unhas cravadas no estômago, de que seus membros eram arrancados. “Podemos imaginar que a agitação de
minhas mãos ou a contração de meu estômago seria causada pelo pensamento?”, perguntou-se em
Upheavals of Thought [Insurreições do Pensamento], um livro sobre a estrutura das emoções, publicado
quase dez anos depois da morte da mãe. “E, se é assim, essa agitação ou essa contração seria de fato meu
pesar pela morte de minha mãe?”

Pouco depois do enterro, fez sua palestra sobre a misericórdia. A mãe certamente teria preferido que ela se
guardasse dos compromissos por algumas semanas, mas quando não está trabalhando Nussbaum se sente
culpada e indolente. Assim, reescrevera o discurso até considerá-lo um de seus melhores. Seria uma espécie
de reparação: falava da necessidade de reconhecer como é difícil viver uma vida virtuosa, mesmo com a
melhor das intenções. Como boa parte de sua obra, o texto se inseria naquilo que ela chama de filosofia
terapêutica, uma “ciência da vida” que trata das necessidades humanas. “Gosto da ideia”, disse, “de que
justamente aquilo que minha mãe entendia ser ausência de amor poderia, na verdade, ser uma forma de
amor. É uma forma de amor aceitar nossa humanidade confusa e complicada, em vez de fugir dela.”

Poucos anos mais tarde, Nussbaum retomou sua relação com a mãe num texto que escreveu para um
concurso de diálogos filosóficos da Universidade de Oxford, que acabou por vencer. Nesse diálogo, a mãe
acusa de crueldade a filha, renomada filósofa da moral. “Você nem sabe o que são emoções”, diz a mãe. O pai
pergunta: “Será que você não é filósofa porque quer, na verdade, viver encapsulada em sua mente, sem
precisar de ninguém nem tampouco amar alguém?” A mãe: “Não será porque não quer admitir que o

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pensamento não controla tudo?”

A filósofa pede perdão. “Mãe, por que você odeia tanto meu pensamento? O que posso dizer ou escrever
para que não me veja mais assim?”

Martha Nussbaum sente-se atraída pela ideia de que a necessidade criativa – e o compromisso de ser bom –
resulta da consciência de que nutrimos sentimentos agressivos em relação às pessoas que amamos. Aos 69
anos, professora de direito e de filosofia na Universidade de Chicago (com atuações também nas áreas de
literatura clássica, ciência política, estudos sul-asiáticos e religião), ela já publicou 24 livros e 509 artigos, além
de ter recebido 57 títulos honoríficos.

Em 2014, Nussbaum esteve à frente das Conferências John Locke, da Universidade de Oxford, a mais
conceituada série de palestras no campo da filosofia – é a segunda mulher a assumir o posto. Em 2015,
recebeu o Prêmio Inamori de Ética, concedido a líderes que contribuem para a melhoria da condição humana.
Em junho de 2016, ganhou o prêmio Kyoto – com uma dotação de 500 mil dólares, é a mais prestigiosa
honraria oferecida em campos não contemplados pelo Nobel. Juntou-se, assim, a um pequeno grupo de
filósofos que inclui Karl Popper e Jürgen Habermas. Para ela, honrarias e prêmios lembram batatinhas fritas:
gosta deles, mas receia que a saturem, como acontece com os parvos animais de Aristóteles a pastar (na Ética
a Nicômaco). Sua concepção de uma vida boa pressupõe o empenho por um objetivo difícil – quando se
percebe demasiado satisfeita, desconfia.

Senhora de uma confiança surpreendente, tanto intelectual como física, Nussbaum é uma mulher bonita,
sarcástica e dura, de voz aguda e dramática. Com porte de rainha, ela muitas vezes parece se deleitar no
papel de si mesma. Sua obra – que, além do conhecimento da literatura greco-romana, também se serve de
elementos de antropologia, psicanálise, sociologia e de contribuições de uma série de outros campos – busca
as condições necessárias à eudaimonia, palavra grega que designa uma vida completa e próspera. Em uma
época periclitante para as humanidades, seu trabalho defende – e incorpora – os valores humanistas. Nancy
Sherman, do departamento de filosofia moral da Universidade Georgetown, ressaltou que “Martha mudou a
cara da filosofia valendo-se de seus talentos literários na descrição das minúcias da experiência vivida”.

Ao contrário de muitos filósofos, Nussbaum tem uma prosa elegante e lírica, que descreve com emoção a dor
de reconhecer as próprias vulnerabilidades – pré-requisito para uma vida ética, segundo ela. “Ser um ser
humano bom”, afirma, “é possuir certa abertura para o mundo, a capacidade de confiar no que é incerto,
naquilo que está fora de controle e pode nos destroçar.” Almeja um “estilo de escrita que não constitua uma
negação”, um modo de descrever experiências emocionais sem delas apartar o sentimento. E desaprova o
estilo convencional da prosa filosófica, que julga “científica, abstrata, de uma insipidez higiênica”, além de
desconectada dos problemas de seu tempo. Como Narciso, diz, a filosofia se apaixona pela própria imagem e
se afoga.

Diversos livros e artigos seus citam uma passagem do sociólogo canadense Erving Goffman: “Num sentido
importante há só um tipo de homem que não tem nada do que se envergonhar [nos Estados Unidos]: um
homem jovem, casado, pai de família, branco, urbano, do norte, heterossexual, protestante, de educação
universitária, bem empregado, de bom aspecto, bom peso, boa altura e com um sucesso recente nos
esportes.”[1] Trata-se de uma passagem que, de certo modo, caracteriza seu pai, um homem a quem a filósofa
descreve como uma inspiração e um modelo, mas também como racista. Segundo me contou, ele tinha
“preconceitos absolutamente arraigados, que o faziam retrair-se e sentir nojo”.

Ao longo dos últimos trinta anos, Nussbaum se voltou para “aqueles que se envergonham” e escreveu sobre
gente que seu pai talvez tivesse considerado sub-humana. Ela argumenta que homens que “não têm nada do
que se envergonhar”, os “normais”, repudiam sua própria natureza animal projetando seu nojo em grupos
vulneráveis e assim criando uma “zona de segurança”. O nojo é uma emoção irracional, na qual não se deve
confiar para estabelecer as leis – e ele está na raiz da oposição aos direitos de gays e transgêneros. Sua obra
traz descrições das realidades físicas implicadas em ser uma pessoa, ter um corpo “macio e poroso, receptivo
a fluidos, pegajoso, feminino em sua gotejante viscosidade”. A repulsa a tais fenômenos ameaça a civilidade.
“O que postulo”, escreve, é “uma sociedade de cidadãos que admitam sua necessidade e sua
vulnerabilidade.”

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Certa vez, citando Nietzsche, Nussbaum escreveu que “a demasiada insistência de um filósofo num
determinado tema é indício de que alguma outra coisa está prestes a se apoderar dele”: um elemento pessoal
estaria na raiz dessa obsessão. No caso dela, eu me perguntava se seu interesse pela vulnerabilidade se devia
ao fato de ela contemplar tal vulnerabilidade de longe, como se desconhecida e exótica. A filósofa celebra a
fragilidade, a exposição, mas parece estar no comando de todo e qualquer aspecto de sua vida.

Nussbaum divide o dia numa série de atividades produtivas, sempre positivas em relação à vida, a começar
pela corrida de noventa minutos ao longo da qual “toca” óperas na própria cabeça, em geral Mozart. Decora
as peças e depois corre “ao som” de cada uma por três ou quatro meses, alterando o andamento para
coaduná-lo com sua velocidade e seu humor. (Durante duas décadas, anotou diariamente seus exercícios.)
Depois de malhar, ela se posta ao piano e canta por uma hora; segundo me disse, sua voz nunca esteve
melhor. (Quando, há pouco tempo, um regente chamou-a para integrar um grupo de repertório formado por
pessoas de mais idade, ela respondeu que o conceito era “estigmatizante”.) Sua autodisciplina inspirou o
conto “My ex, the moral philosopher” [Minha ex, a filósofa da moral], de Richard Stern, catedrático da
Universidade de Chicago, morto em 2013. O conto descreve a contradição entre o “hino em louvor à
espontaneidade e a natureza da filósofa, a pessoa menos espontânea que conheço – antes, a mais obstinada,
nervosa e mesmo fanaticamente não espontânea”.

No momento, Martha Nussbaum está às voltas com um livro sobre o envelhecimento. Ao consultá-la sobre a
possibilidade de escrever um perfil sobre ela, comuniquei-lhe minha intenção de fazer do novo livro o fio
condutor da matéria. Cética, ela respondeu por e-mail que sua carreira era longa e variada, e acrescentou:
“Você considerou os vários aspectos da minha trajetória? Tem um plano a seguir?” Menos de uma hora
depois de eu lhe ter enviado a resposta, ela insistiu: “Você tem um plano? Gostaria de ouvir sua opinião
sobre os prós e os contras de diferentes abordagens.”

A filósofa desconfiava da minha capacidade de abarcar a totalidade de sua obra, que trata de disciplinas
diversas: direitos dos animais, emoções no direito penal, política da Índia, pessoas com necessidades
especiais, intolerância religiosa, liberalismo político, o papel das humanidades na academia, assédio sexual,
transferência transnacional de riqueza. “Seu desafio seria oferecer aos leitores um panorama da obra que
fosse esclarecedor”, escreveu. “Sem um plano, vai ficar uma coisa fragmentada.” A seguir, mencionou três
entrevistas em que sua dedicação ao ensino e aos alunos não havia sido contemplada. Numa delas, fora
retratada como “uma pessoa que despreza as contribuições dos outros”, “um dos maiores insultos” que
alguém poderia lhe dirigir.

Por sugestão dela, em nosso primeiro encontro eu a ouviria cantar: “O canto vai franquear minha
personalidade e minha vida emocional, embora, é claro, minha capacidade de expressar o que desejo seja
bastante imperfeita.” A música lhe permite aceder a um compartimento “menos defensivo e, portanto, mais
receptivo”. No verão passado, fomos de carro à casa de sua professora de canto, Tambra Black. Ainda que
tivéssemos chegado dez minutos antes do horário, a aluna se pôs a bater na porta até que Black, os cabelos
molhados do banho, nos recebesse.

Fazia sol e estava calor. Nussbaum, vestindo shorts e camiseta, levava suas partituras numa sacola bordada
meio hippie. As unhas das mãos e dos pés estavam pintadas de azul-turquesa, as pernas e os braços
uniformemente bronzeados. Postada ao lado do piano, os pés posicionados como se esquiasse, ela fez escalas
relaxando a boca e cantarolando através dos lábios cerrados.

A primeira ária que exercitou foi “Or sai chi l’onore”, de Don Giovanni, uma das poucas óperas de Mozart
que ela nunca havia “usado” para correr, por deplorar a cena da tentativa de estupro. Conforme ascendia
pelas notas agudas, movia o queixo para cima, até que a professora a interrompeu. Seus agudos eram
excelentes, mas ela deveria ser mais delicada numa passagem sobre o assassinato do pai da heroína. “Vamos
torná-la um pouco mais suave?”, disse Black.

A ária seguinte, do último ato de Don Carlos, de Verdi, a aluna julgava mais desafiadora, pois era preciso
incorporar a desesperança de uma mulher que, sabedora de que jamais terá o homem que ama, anseia pela
morte. “Ponha um pouco mais de melancolia e tristeza”, Black a instruiu. “Não entregue tudo cedo demais.”
A filósofa suavizou a voz, mas logo recobrou a força. “É muita potência”, disse a professora. “Guarde um
pouco para o fim.” “Vou ter de trabalhar nisso”, respondeu Nussbaum, os olhos fixos na partitura. “É difícil
reunir todas essas emoções.”

Horas mais tarde, quando voltávamos de um concerto da Orquestra Sinfônica de Chicago, ela me contou que

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estava lutando para assimilar a resignação necessária à ária de Verdi. Não conseguia se identificar com o
papel. “A personagem está dizendo algo como: ‘A vida tem me maltratado, vou desistir’”, observou. “O
problema é que isso é absolutamente ininteligível para mim.”

Aos 3 ou 4 anos de idade, a pequena Martha disse à mãe: “Bem, acho que já sei quase tudo.” Betty Craven,
cujos ancestrais haviam chegado no Mayflower, replicou com seriedade: “Não, Martha. Você é apenas uma
pessoa entre muitas.” A menina ficou tão frustrada que bateu com a cabeça no chão.

O pai, George Craven, bem-sucedido advogado tributário que trabalhava o tempo todo, aplaudia essa
arrogância infantil. Achava excelente ser superior aos outros. Gostava de dizer que só estivera errado uma
vez na vida: exatamente quando julgou estar errado. A família morava em Bryn Mawr, na Pensilvânia, numa
atmosfera que a filósofa descreve como de “clara e distanciada opulência”. Betty, entediada e insatisfeita,
começou a beber quase o dia todo. A caçula conta que certa vez, ao ver a mãe desmaiada no chão, chamou
uma ambulância, mas o pai dispensou o socorro. Robert, meio-irmão (fruto do primeiro casamento de George
Craven), diz que o pai não entendia quando as pessoas não eram racionais. “Era um ambiente
emocionalmente árido. Deveríamos seguir em frente e pronto.”

A jovem Martha passava o tempo livre sozinha no sótão, lendo, sobretudo Dickens. Por intermédio da
literatura, escapou “de uma vida amoral e mergulhou num universo em que a moralidade tinha
importância”. De noite, ia ao escritório do pai e os dois liam juntos. Ele amava o poema vitoriano “Invictus”,
de William Ernest Henley, que recitava com frequência: “Nas garras do destino e seus estragos,/Sob os
golpes que o acaso atira e acerta,/Nunca me lamentei – e ainda trago/Minha cabeça – embora em sangue –
ereta. […] Eu sou dono e senhor de meu destino;/Eu sou o comandante de minh’alma.”[2]

A personalidade do pai pode ter estimulado o interesse da filha pelo estoicismo. A menina relacionava-se
com a figura paterna de modo quase romântico. “Ele me pôs no caminho da felicidade e do deleite”, afirmou.
“Simbolizava a beleza e o maravilhoso.” Gail Busch tem uma opinião diversa: “Ele era provavelmente um
sociopata”, disse. “Narcisista, dominador e controlador ao extremo. Mamãe passou boa parte do casamento
petrificada.”

Certa vez Nussbaum escreveu que a escritora e filósofa Iris Murdoch “ganhou a batalha edipiana com
demasiada facilidade, tornando-se o deleite de seu pai”. O mesmo se poderia dizer dela. De acordo com
Busch, “foram poucas as pessoas que meu pai não machucou. Uma delas foi Martha, os dois eram muito
parecidos. Ele a via como um reflexo de si mesmo, o que, para ele, era perfeito”. Numa entrevista para uma
tevê holandesa, a filósofa declarou que sua dedicação ao trabalho se devia ao pai, que a fez assumir as rédeas
de sua vida. Ficava furiosa com a mãe e a irmã, que levou a escola aos trancos e barrancos: “Eu achava que,
com vontade, elas também poderiam ter controle sobre a vida.”

Nussbaum foi para a Faculdade Wellesley, mas largou os estudos no 2º ano: queria ser atriz. Representar
outras pessoas deu-lhe acesso a emoções que não conseguia expressar. Depois de um semestre numa
companhia que encenava tragédias gregas, abandonou o teatro também. “Não tinha vivido o bastante”, diz.
Começou a estudar os clássicos na Universidade de Nova York, mantendo o foco nas tragédias gregas.
Acabou por acreditar que ler sobre o sofrimento funciona como um “objeto transicional”, expressão utilizada
pelo psicanalista inglês Donald Winnicott – um de seus pensadores preferidos – para descrever brinquedos
que auxiliam crianças pequenas a se afastar da mãe e explorar o mundo por conta própria. “Quando sentimos
emoções como medo e piedade em relação ao herói de uma tragédia”, ela escreveu, “exploramos aspectos de
nossa vulnerabilidade num ambiente seguro e agradável.”

Sentia-se cada vez mais desconfortável com o “bastião petulante da hipocrisia e do privilégio imerecido” no
qual havia sido criada. Passara a infância “com tranquilidade e invulnerabilidade garantidas”. Numa aula de
composição em grego, apaixonou-se pelo colega Alan Nussbaum, que era judeu – religião que ela admirava
pelo mesmo motivo que se encantara pelo teatro: “Maior expressividade emocional.” Associava o judaísmo à
consciência social do jornalista I. F. Stone e do semanário progressista The Nation. O pai, para quem os
judeus eram vulgares, desaprovou o matrimônio, recusando-se a ir à festa. Robert Craven me contou que
“Martha era a menina dos olhos de papai, até ela abraçar o judaísmo e cair em desgraça”.

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Quatro anos depois do casamento, Nussbaum leu A Taça de Ouro, de Henry James. Ficou fascinada pela
protagonista Maggie Verver, que desejava “permanecer, intensamente, a mesma filhinha devotada que
sempre fora”. Mais tarde, escreveu três ensaios sobre James, mostrando como ele articula uma espécie de
filosofia da moral e revela como é infantil aspirar à perfeição moral, a uma vida “desprovida de qualquer
malfeito, da infração de qualquer regra e de toda e qualquer mágoa”. “O que me seduziu em Maggie é a
noção de que ela é uma americana peculiar que quer muito, mas muito mesmo, ser boa. E é claro que isso é
impossível. Seu pai é especialmente exigente e, a fim de poder ser ela mesma com o marido, Maggie tem de
abandonar o pai e magoá-lo. Só que ela não tinha como fazer isso. Não estava preparada.”

Em 1969, Nussbaum ingressou na pós-graduação em literatura clássica de Harvard. Foi então que se deu
conta de que sorria o tempo todo havia anos, sem motivo aparente. Quando seu orientador, G. E. L. Owen, a
convidou para sua sala, serviu-lhe xerez, começou a falar da tristeza da vida, a recitar Auden e tentou tocar-
lhe os seios, ela o afastou com delicadeza, procurando não embaraçá-lo. “Assim como nunca acusei minha
mãe de beber, ainda que ela sempre estivesse bêbada”, escreveu, “também consegui me manter no controle
com Owen e nunca lhe disse uma palavra hostil.” Não experimentou, pois, o desequilíbrio de poder que
torna o assédio sexual tão destrutivo, porque se sentia “mais saudável e poderosa que ele”.

Seus estudos logo se voltaram para a filosofia antiga, permitindo-a acompanhar Aristóteles, que propôs a
pergunta básica: “Como deve viver um ser humano?” Nussbaum percebeu que a filosofia atraía “pessoas
dadas a uma lógica intricada e pedante”, quase sempre homens. Acreditou ter entendido o pensamento de
Nietzsche quando ele escreveu que nenhum grande filósofo jamais foi casado. “O que ele estava dizendo é
que a maioria dos filósofos foge da existência humana”, explica. “Nunca quiseram se enredar.” Mas
discordava da ideia dominante na filosofia contemporânea de que as emoções eram “energias impensadas,
que simplesmente empurram a pessoa para tudo quanto é lado”. Preferiu ressuscitar uma versão da teoria
estoica que não separa pensamento de sentimento e conferiu protagonismo às emoções na filosofia da moral,
argumentando que elas são de natureza cognitiva: incorporam juízos acerca do mundo.

Um de seus mentores foi John Rawls, influente pensador da filosofia política no século xx. Rawls gaguejava e
era extremamente tímido. A então discípula conta que, um dia, quando almoçavam hambúrgueres (ela ainda
comia carne), ele lhe disse que, se ela possuía a capacidade de se tornar uma intelectual pública, era seu dever
ir até o fim.

Teorias utilitárias e kantianas predominavam na época, e Nussbaum sentia que a área havia se isolado e se
profissionalizado demais. Frustrava-a o interesse dos colegas por análises conceituais, em detrimento de
detalhes da vida das pessoas. Enquanto escrevia um trabalho austero sobre um tratado de Aristóteles,
começou um novo livro, sobre a ânsia das pessoas em negar suas necessidades humanas. Em A Fragilidade
da Bondade, um dos best-sellers da filosofia contemporânea, ela rejeita o argumento de Platão de que a vida
boa é a vivida em total autossuficiência. A tragédia acontece porque as pessoas estão vivendo bem:
assumiram com entusiasmo compromissos que as deixam expostas. Já no começo do livro, lê-se:

Devo constantemente escolher entre bens concorrentes e aparentemente incomensuráveis e que as


circunstâncias podem forçar-me a uma posição na qual não posso evitar ser falso com respeito a alguma coisa
ou fazer algum mal; que um evento que simplesmente acontece a mim pode, sem meu consentimento, alterar
minha vida; que é igualmente problemático confiar seu bem a amigos, amantes ou ao país e tentar ter uma
boa vida sem eles – tudo isso considero não apenas como o material da tragédia, mas como fatos cotidianos
da razão prática vivida.[3]

Amaternidade foi sua primeira experiência profunda de conflito moral. A gravidez, em 1972, foi um equívoco
– seu DIU havia se desprendido. Ela acabara de se tornar a primeira mulher eleita para a Society of Fellows
de Harvard e imaginava que os demais acadêmicos deviam estar pensando: “Admitimos uma mulher, e o
que ela faz? Vai logo ter um filho.” Martha Nussbaum passou nove meses como se não estivesse grávida –
corria vários quilômetros por dia, continuava magra a ponto de seu orientador duvidar que esperasse um
bebê. Seu parto foi tão rápido – e sem anestesia – que os médicos quiseram saber como ela havia se preparado
para dar à luz. “O método Lamaze é para covardes: o segredo é correr”, ela respondeu. Uma semana depois,
compareceu ao jantar da Society of Fellows. “Queria provar que estava trabalhando”, disse.

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Alan Nussbaum lecionava linguística em Yale, e por isso a filha, Rachel, ficava sob os cuidados da mãe
durante a semana. “Entre os homens bons e decentes, alguns não estão preparados para as surpresas da vida,
e suas boas intenções fracassam quando se deparam com questões como cuidar de um filho”, escreveu ela
mais tarde. O divórcio ocorreu durante a adolescência de Rachel. Ao ingressar num grupo de filósofas,
Nussbaum declarou que as mulheres tinham uma contribuição singular a oferecer, porque experimentam
“conflitos morais que os homens não conhecem nem enfrentariam – divididas entre os filhos, por um lado, e
o trabalho, por outro”. Recusava a ideia, sugerida por Kant, de que os moralmente bons são imunes à má
sorte que os obrigaria a assumir posições que comprometem sua ética. “Muitos dos grandes filósofos
afirmaram a inexistência de dilemas morais reais. Bem, o que estávamos dizendo era que nenhuma mulher
cometeria esse erro bobo!”, disse.

Em 1983, a Universidade Harvard não aprovou a efetivação de Nussbaum, decisão que a acadêmica atribui
em parte a uma “antipatia venenosa por mim, pelo fato de eu ser uma mulher bastante franca”, e também às
maquinações de um colega capaz de “ensinar um bom ator a interpretar Iago corretamente”. Para Glen
Bowersock, chefe do departamento de letras clássicas quando a filósofa ainda era estudante, ela assustava as
pessoas. “Não conseguiam lidar com aquela mulher tão competente, articulada ao extremo, alta e atraente,
feminina e cheia de estilo, que caminhava ereta e usava minissaia. Tinham medo, simplesmente.”

Essa foi a única época em que Nussbaum experimentou algo semelhante a uma crise. Queria ouvi-la falar
disso, já que sempre aparentava notável firmeza. Assim, como quem não quer nada, perguntei se o sucesso já
a fizera se sentir culpada, como se não o merecesse. “Não, nunca”, ela respondeu, enfática. “As mulheres e os
filósofos recebem pouco pelo que fazem.” Depois de lhe negarem a efetivação, ela cogitou a faculdade de
direito. “Mas não durou muito”, disse. “Passei um dia, no máximo, pensando nisso.” Deixou Harvard.

Um de seus mentores, o inglês Bernard Williams, imputava aos filósofos da moral a recusa em “escrever
sobre qualquer assunto relevante”. Nussbaum pôs-se a pensar num papel mais público para a filosofia e a
examinar a qualidade de vida nos países em desenvolvimento. Quem a conduziu para essa área foi o
economista indiano Amartya Sen, que mais tarde ganharia o prêmio Nobel. Em 1986, os dois, envolvidos
num relacionamento amoroso, foram trabalhar no Instituto Mundial de Pesquisa em Economia do
Desenvolvimento (Universidade da ONU), em Helsinki. Lá ela percebeu que “não sabia nada sobre o resto do
mundo”. Sozinha, estudou a política indiana e desenvolveu sua versão de “capacidade”, um arcabouço
teórico que Sen elaborou para medir e comparar o bem-estar das nações. Seu trabalho anterior havia
celebrado a vulnerabilidade; agora, ela se dedicava a identificar quais vulnerabilidades nenhum ser humano
deveria suportar (pobreza, fome, violência sexual).

Munida de espírito aristotélico, Nussbaum delineou uma lista de dez capacidades essenciais a serem
cultivadas pelas sociedades, entre as quais a liberdade para brincar, refletir criticamente e amar. A teoria das
capacidades é hoje central na defesa dos direitos humanos. Sen acredita que a ex-mulher acabou por se tornar
ainda mais “purista” que ele. Quando se trata de julgar a qualidade da vida humana, diz o economista, “eu
muitas vezes me sinto derrotado de uma forma que não ocorre a ela”.

Em seguida, a filósofa se propôs a complementar a obra de John Rawls, que produziu a mais influente versão
contemporânea da teoria do contrato social: cidadãos racionais concordam em se governar porque
reconhecem que as necessidades de cada um são mais bem atendidas por meio da cooperação. Para ela, esta
ideia não dá conta do que seria a justiça para quem depende dos outros – velhos, pessoas com necessidades
especiais, donas de casa subservientes. A fim de permanecer estável e comprometida com ideais
democráticos, uma sociedade necessita mais do que princípios morais distantes: é preciso cultivar certas
emoções e ensinar as pessoas a sentir empatia. As humanidades não são apenas importantes, mas decisivas
para uma sociedade democrática sadia, a cujo destino dão forma. Nussbaum propõe, assim, uma versão mais
desenvolvida da “educação estética” de John Stuart Mill – um refinamento emocional para todos os cidadãos
por intermédio da poesia, da música e das artes plásticas. “O respeito, em si, é frio e inerte, insuficiente para a
superação das tendências que levam os seres humanos a tiranizar uns aos outros”, escreveu ela. “A cultura
pública não pode ser morna e desprovida de paixão.”

Ao final da década de 90, a Índia se tornara tão essencial para o pensamento da filósofa que, anos depois, ela
disse a um jornalista que seu trabalho naquele país estava “no fundo do meu coração e no centro da minha
ideia do sentido da vida. Se você minimizar isso, não vai me entender”. Viajava para países em

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desenvolvimento durante as férias acadêmicas – nunca faltou a uma aula – e conheceu muitas mulheres
pobres. Sentia-se como “uma advogada a serviço dos pobres das nações em desenvolvimento”.

Na década de 60, estivera demasiado ocupada para trabalhar em prol da consciência feminista – cultivava,
em suas palavras, uma imagem de “respeitabilidade à Doris Day” – e nutria desconfiança em relação ao
pensamento esquerdista. Ao estudar a vida das mulheres em países não ocidentais, passou a se identificar
como feminista, mas de um tipo fora de moda: uma liberal tradicional que acreditava no poder da razão num
momento em que acadêmicos pós-modernos a viam como instrumento ou disfarce da opressão. Nussbaum
argumentava que o bem-estar das mulheres ao redor do mundo podia melhorar por via de normas universais
– um sistema internacional de justiça distributiva. Não tinha paciência para uma teoria feminista relativista
que, em nome do respeito a outras culturas, pregava que mulheres deveriam assistir ao espancamento e à
mutilação genital de outras mulheres. Em Sex and Social Justice [Sexo e Justiça Social], de 1999, escreveu que
tal abordagem se assemelha ao “tipo de decadência moral retratada por Dante, quando ele descreve a
multidão de almas indecisas no vestíbulo do Inferno, arrastando seu estandarte ora para um lado, ora para
outro, jamais desejosa de fixá-lo e tomar uma posição definitiva sobre qualquer questão moral ou política.
Tais pessoas seriam as mais desprezíveis de todas. Não podem nem entrar no Inferno, porque nunca
tomaram uma posição na vida”.

Em 1999, num ensaio hoje canônico publicado na revista The New Republic, Nussbaum escreveu que o
feminismo acadêmico, desvinculado da luta pela igualdade, só tinha apelo para a elite. Acusou Judith Butler
e as feministas pós-modernas de “voltarem as costas ao lado material da vida e se dedicarem a um tipo de
política verbal e simbólica que só se conecta superficialmente às situações reais das mulheres de verdade”.
Essas pensadoras radicais estariam mais concentradas nos problemas da representação do que nas
necessidades imediatas das mulheres de outras classes e culturas. Uma postura que “tinha muito de
quietismo”, palavra que ela emprega quando desaprova projetos ou ideias.

Nas cartas em resposta ao ensaio, a crítica feminista Gayatri Spivak censurou a “missão civilizatória” de
Nussbaum, e Joan Scott, historiadora das relações de gênero, acusou a autora de haver “construído uma
fábula moral em benefício próprio”.

Quando Nussbaum está diante do computador, é como se adentrasse um “ambiente protetor” – o holding
environment de que fala Donald Winnicott para descrever condições que permitem ao bebê se sentir seguro e
amado. Diante da tela, ela está “brincando com um objeto”, tal como o bebê. “O manuscrito é meu, mas sinto
como se algo de meus pais estivesse comigo. A sensação de cuidado e de ter alguém que me segure, eu
associo a minha mãe; o transporte e o deleite, a meu pai.”

Ela também procura replicar a experiência de “transporte” nos parceiros amorosos. Sempre se sentiu atraída
por homens de grande capacidade intelectual. “Imagino que isso se deva à marca deixada por meu pai”,
disse certa tarde em seu apartamento, enquanto comia iogurte com blueberries, pinhão e uvas-passas (uma
variação de seu almoço quase diário). Mora num apartamento espaçoso, no 10º andar, com doze janelas para
o lago Michigan e um elevador privativo. Veem-se dezenas de elefantes de porcelana, metal ou vidro
espalhados pelo ambiente – em virtude de sua inteligência emocional, o paquiderme é seu animal preferido.

“Eu observava que minhas amigas costumavam ficar com homens de aspirações bastante modestas, o que é
muito razoável”, disse. “Funciona muito bem, porque um homem assim, de fato, dá grande apoio à mulher.
Pensei comigo: ‘Por que não escolher um tipo como esse?’ Mas essa não é a minha, em hipótese alguma.” Ela
afirma ter descoberto na adolescência seu paradigma de relacionamento amoroso, ao ler no Fedro de Platão
sobre a relação entre dois homens, como combinavam “paixão erótica intensa e a busca compartilhada por
verdade e justiça”.

Depois de se mudar para a Universidade de Chicago, em 1995 (após sete anos na Brown), Nussbaum teve um
longo relacionamento com Cass Sunstein, ex-chefe do Gabinete de Informação e Assuntos Regulatórios de
Barack Obama e um dos poucos acadêmicos tão prolíficos quanto ela. Nussbaum e Sunstein (hoje casado com
Samantha Power, a embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas) moravam em apartamentos
separados e o trabalho de um alimentava o do outro. Num ensaio de peso intitulado “Objeticfication”
[Objetificação], a filósofa desenvolve uma passagem em que Sunstein sugere que certas formas de
objetificação sexual podem ser inextirpáveis e ao mesmo tempo incríveis. Distanciando-se do pensamento
feminista tradicional, ela argumenta que existem circunstâncias nas quais ser tratado como objeto sexual –
uma “misteriosa presença coisificada” – pode ser uma experiência humanizadora, em vez de moralmente

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danosa. Isso nos permitiria alcançar um estado que com frequência ocupa posto de destaque em seus escritos:
a “renúncia à autocontenção e à autossuficiência”.

Nussbaum está atenta à maneira pela qual o pensamento filosófico pode parecer em desacordo com a paixão
e o amor. Reconhece que escrever pode ser “um modo de se distanciar da vida humana e talvez até de
controlá-la”. O ensaio autobiográfico publicado em Love’s Knowledge [O Conhecimento do Amor], de 1990,
oferece o retrato de uma filósofa que aborda sua desilusão amorosa armada de caderno e caneta, organizando
e classificando sua experiência, listando as qualidades do amante ideal e comparando-o aos homens que
amou. “Você então começa a ver como é essa mulher”, escreveu. “Ela pensa o tempo todo. Não quer ficar só
no choro, quer indagar no que consiste o choro. Para cada lágrima, um argumento.”

A filósofa não sabe se sua capacidade para distanciar-se racionalmente do real é inata ou adquirida. Em três
ocasiões, mencionou uma experiência da infância na qual sentiu tamanha raiva da mãe – por ela beber
durante a tarde – que a estapeou. “Se você se voltar contra mim, não vou ter razão para viver”, disse Betty. A
menina rezou para se ver livre daquela raiva: “Achei que acabaria matando alguém”, disse.

Hoje, raiva é uma emoção que ela raras vezes experimenta. Invariavelmente, permanece amiga de seus ex-
companheiros, como já atestaram Sunstein, Sen e Alan Nussbaum. Em Anger and Forgiveness [Raiva e
Perdão, 2016], seu livro mais recente, publicado em maio, ela contesta a ideia, cara a terapeutas e a certas
feministas, de que “o respeito próprio implica que as pessoas (e em especial as mulheres) possuam,
alimentem e proclamem publicamente sua raiva”. Trata-se de uma “fantasia mágica”, de um “absurdo
metafísico” supor que a raiva vai nos restituir o que foi danificado. Embutido na emoção estaria o desejo
irracional de “corrigir as coisas impingindo sofrimento”. Até mesmo líderes de movimentos por justiça
revolucionária deveriam evitar a emoção e seguir em frente, em busca de “ideias mais sadias de bem-estar
pessoal e social”. (Ela reconhece, porém, que se poderia objetar que “essa proposta soa como a da acadêmica
branca, anglo-saxã, protestante e de classe média-alta” que, com certeza, ela é. “Eu, contudo, simplesmente
recuso a acusação.”)

Por um bom tempo, Martha Nussbaum se esforçou para entrar em contato com a raiva. Nos anos 90, quando
elaborou uma lista de dez capacidades a que todo ser humano deveria ter direito – revisada ao longo de
muitos ensaios –, ela e a acadêmica feminista Catherine MacKinnon debateram se a “raiva justificada”
deveria constar da tabela. Nussbaum temia a violência que acompanha a expressão da raiva, mas MacKinnon
afirma tê-la convencido de que esse sentimento pode ser “sinal de que o autorrespeito não foi esmagado, de
que a humanidade ainda arde, mesmo onde a supomos extinta”. A filósofa decidiu encarar a raiva sob uma
luz mais positiva. “‘Só estou sendo enganada por minha própria história’, pensei.” Alguns anos mais tarde,
afirmou numa entrevista que poder expressar raiva para um amigo, depois de anos se exercitando para
suprimi-la, era “o prazer mais incrível da vida”. Por fim, num ensaio de 2003, se descreve como “raivosa
quase o tempo todo”.

Quando lhe perguntei sobre suas diferentes concepções de si mesma, ela me mandou três e-mails
diretamente do avião (estava a caminho do México, para uma série de palestras), a fim de explicar que
articulara aqueles pontos de vista antes de estudar a emoção em profundidade. Não era raiva de fato que
sentia, mas “raiva transicional”, algo que incorpora o pensamento: é preciso tomar uma atitude em resposta à
injustiça social. Em outro e-mail, também enviado do avião, esclareceu: “Minha experiência de raiva política
sempre foi mais do tipo Martin Luther King: protesto, e não aquiescência, mas tampouco desejo de
vingança.”

Nqo ano passado, Nussbaum se submeteu a uma colonoscopia. Como não queria perder um dia de trabalho,
preferiu não ser sedada. Ficou fascinada ao ver seu apêndice, rosado e minúsculo. “Adoro esse tipo de
intimidade. É como se reconciliar consigo mesma.”

Os amigos se horrorizaram ao saber que ela permanecera acordada o tempo todo. “Acharam repulsivo
realizar o procedimento sem apagar a consciência”, conta. Que os homens desejassem ser sedados não era
nenhuma surpresa para ela, mas por que as mulheres da sua idade evitariam a visão de suas entranhas? “São
as mesmas mulheres que se entusiasmaram pelo viés feminista do livro Our Bodies, Ourselves”, observou.
“Dissemos: ‘Ah, vamos olhar para nossa vagina. A menstruação não é nojenta. Vamos celebrá-la como parte
do que somos!’ Agora, aos 60, voltamos a sentir nojo do corpo e queremos que nos apaguem.”

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Nussbaum acredita que o nojo “desenha contornos muito nítidos em torno de nosso eu” e trai uma vergonha
do que é humano. Quando vai às compras com colegas mais jovens – Alexander McQueen, Azzedine Alaïa e
Seth Aaron Henderson são seus estilistas preferidos –, costuma sair do provador de calcinha e sutiã.
Necessidades fisiológicas tampouco a envergonham. Em suas longas corridas, não sente o menor pudor em
fazer xixi atrás de alguma moita. Certa vez, quando estava em Paris com a filha (Rachel, que hoje é advogada
dos direitos dos animais em Denver), aliviou-se no Jardim das Tulherias à noite. (A filha foi bem lacônica
quando nos vimos; segundo a mãe, receava ser retratada “como um apêndice materno”.)

A filósofa admite que, à medida que envelhece, é cada vez mais difícil celebrar as alterações de seu corpo.
Recentemente se olhou no espelho e não reconheceu seu nariz: um deslocamento da cartilagem criara um
calombo. Perguntou o que fazer ao médico que lhe aplica botox na testa. “Ele é minimalista”, e o problema foi
solucionado com um leve preenchimento. “Na minha idade, preciso zelar pela aparência, senão corro o risco
de me acharem pouco atraente”, disse. “Existem mulheres – Germaine Greer, por exemplo – que se dizem
aliviadas por não se preocupar com os homens e, portanto, com a própria aparência. Não me sinto assim! Me
importo com o modo como os homens olham para mim. Gosto de homens.”

No livro, ainda com o título provisório de Aging Wisely [Envelhecer com Sabedoria], a ser publicado em
2017, Nussbaum e Saul Levmore – um colega da faculdade de direito – investigam os dilemas morais, legais e
econômicos da velhice, “território desconhecido” que tem sido ignorado pela filosofia. Trata-se de um
diálogo entre dois acadêmicos de certa idade que analisam como a velhice afeta o amor, a amizade, a
desigualdade e a capacidade de abrir mão do controle sobre nós mesmos. Ambos rejeitam a ideia de que
envelhecer é uma forma de renúncia. A filósofa critica a tendência da literatura a “reservar uma punição” às
mulheres que, ao envelhecer, não estão apropriadamente resignadas ou envergonhadas. Ao contrário, ela
quer que no processo de envelhecimento as mulheres se envolvam num “movimento social informal do tipo
do livro Our Bodies: um movimento contra o nojo de si mesma”. E promove a visão de mundo “antinojo” de
Walt Whitman, sua celebração das “esponjas pulmonares, a bolsa estomacal, os intestinos limpos e saudáveis
[…] Os pequenos glóbulos vermelhos dentro de ti ou de mim […] Ó eu digo que estas não são apenas partes e
poemas do Corpo, mas também da Alma”.[4]

Numa oficina promovida em meados de 2015, professores de direito se reuniram para avaliar o rascunho de
dois capítulos do livro. Nussbaum, com os cabelos loiros arrumados, trajando um vestido roxo justo e
calçando sandálias de salto alto, parecia ter se preparado para um evento diferente daquele. Como de hábito,
divertia-se, mas não estava necessariamente feliz.

Num dos capítulos, Levmore defende a legalização de um acordo entre empregadores e empregados para
estabelecer a idade de aposentadoria, ideia contestada pela coautora em “No end in sight” [Sem fim à vista]:
Nussbaum lamenta a aposentadoria compulsória de colegas de outros países, quando é sabido que filósofos
como Kant, Catão e Górgias produziram o melhor de suas obras na velhice.

O pensador e jurista Richard Epstein intercedeu, propondo que cada instituição decidisse por si. “Martha,
cheia de vitalidade e vigor, poderá receber quatro outras ofertas de emprego e continuar trabalhando”, disse.
“Eu poderia ir para outro lugar”, ela interrompeu, “só que não quero.” Se fosse obrigada a se aposentar,
prosseguiu, isso de fato a afetaria psicologicamente de uma maneira muito profunda. “Não saberia o que
fazer. Quem sabe partiria para alguma coisa interessante, como dirigir um coro de igreja. Ou poderia cair em
depressão.”

“Martha, você está centrada em sua biografia”, retrucou Epstein, cuja preocupação não era ela continuar na
ativa ou não, mas “a permanência de muitos pesos mortos, um custo para a instituição”.

Quando outro participante sugeriu que não é possível prever o momento em que os mais velhos atingiriam
seu auge, a filósofa citou Catão, para quem se pode resistir ao envelhecimento mediante atividade física e
mental. Ao celebrar esse estágio final e vulnerável da vida, Nussbaum endossava a confiança de que não
estará, necessariamente, tão vulnerável. Disse que sua avó viveu até os 104 anos. “Por que vejo as coisas dessa
perspectiva?”, perguntou. “É uma questão dos hábitos que formamos quando bem jovens, o costume de
praticar exercícios, de ser ativo. Tudo isso contribui para a sensação de que a vida pode se prolongar.”

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Há pouco tempo, a filósofa comprou uma saia Dolce & Gabbana salpicada de margaridas e estrelinhas de
cristal. “Tem um aspecto alegre”, ela disse, segurando o cabide na altura do queixo. Planejava vesti-la na
formatura de Nathaniel Levmore, a quem considera quase um filho. Filho de Saul Levmore, Nathaniel
sempre foi tímido. O pai me contou que, de seus dois filhos, “ele é o mais frágil, e é claro que Martha o ama.
Passam horas conversando. Ela tem essa confiança absoluta nos mais frágeis. Quanto mais frágil, mais
encantador”.

Nussbaum já levou Nathaniel para Botsuana e para a Índia e, quando oferece jantares, frequentemente é ele
quem serve o vinho. Quando estivemos juntos no verão de 2015 para uma exibição ao ar livre de Star Trek, os
dois passaram boa parte do trajeto debatendo se era ou não uma atitude antissemita o fato de o semestre da
faculdade de Nathaniel começar em pleno Rosh Hashaná. O entusiasmo dos dois era tão enternecedor quanto
aborrecido. Quando eu pensava que o assunto estava encerrado, o rapaz vinha com um novo argumento e
Nussbaum voltava a insistir no antissemitismo do calendário.

Há pouco tempo fui jantar em seu apartamento – a anfitriã lamentou que Nathaniel não estivesse lá.
Estávamos na cozinha, comendo o que restara de uma elaborada e deliciosa refeição indiana que ela
preparara dois dias antes para o decano da faculdade de direito e mais oito estudantes. Serviu-me grandes
porções de cada prato, enquanto ela própria se limitou a um pouco de iogurte, arroz e espinafre.

Mencionei que Saul Levmore me falara de sua devoção pelos mais frágeis, a ponto de simpatizar até com um
ex-estudante que a andara perseguindo – durante um surto psicótico, o rapaz a bombardeara com e-mails
ameaçadores. “Sinto enorme simpatia pelas pessoas ou criaturas fracas”, disse. Então contou que, alguns dias
antes, estivera espiando por uma webcam um ninho com duas águias carecas recém-nascidas. Ficara muito
perturbada ao ver a mãe alimentar apenas um dos filhotes. “O outro tentava comer alguma coisa, nada!”,
exclamou. “A aguiazinha me parecia enfraquecer cada vez mais. Um amigo, observador de pássaros, disse
que esse tipo de rivalidade entre irmãos é muito comum entre espécies como aquela, e que era bem capaz de
o mais fraco morrer mesmo. Fiquei superchateada.”

“Não foi essa, mais ou menos, a dinâmica da relação entre você e sua irmã?”, perguntei. “É, provavelmente
foi assim”, ela disse, passando o dedo pela borda do prato. A irmã lhe parecia ter ficado mais feliz à medida
que envelhecia, sua carreira na igreja estava indo muito bem. “Bom, é sobre isso que vou falar na aula de
amanhã”, acrescentou. “Será que a culpa pode ser criativa?”, disse, lambendo o dedo. “Culpa talvez nem seja
a palavra correta. É uma pena que um tenha tirado maior proveito da situação à custa de outro.”

Começamos a conversar sobre um capítulo que ela pretendia escrever para o livro sobre o envelhecimento,
sobre a ideia de se examinar a própria vida e transformá-la numa narrativa. “Lutamos por algo ou não?”,
perguntou. Sempre admirara as palavras finais de John Stuart Mill, que já citara numa série de entrevistas e
ensaios como prova de uma vida bem vivida: “Fiz meu trabalho”, disse ele. A imagem do filósofo no leito de
morte não difere muito da que tem do pai, morto enquanto arrumava papéis em sua maleta. Para ela, o pai
teve uma morte boa – ele trabalhou até o fim –, ao passo que seus irmãos veem isso como um sinal do
isolamento dele.

“Se descobrisse que vou morrer em uma hora”, ela disse, “não poderia afirmar que fiz meu trabalho. Quem
leva uma vida boa fica em geral com aquela sensação de que ainda tem alguma coisa a ser feita.” Ela se
perguntava se Mill desistira cedo demais por sua tendência à depressão.

“Soa, de fato, um tanto definitivo”, prosseguiu, “e raramente morremos quando deixamos de ter ideias úteis
– a não ser, talvez, quando sofremos de uma doença longa e grave.” Ela foi internada apenas duas vezes: para
dar à luz e, aos 11 anos, para corrigir uma orelha de abano. “Eu curti aquele curativo enorme em torno da
cabeça”, contou. “Estava interpretando o papel do fantasma em Um Conto de Natal, e o efeito foi ótimo.”

A filósofa se levantou para retirar os pratos. “Você está me fazendo sentir que escolhi as últimas palavras
erradas”, ela comentou, da cozinha. Voltou com dois bolos enormes. “Acho boba essa história de últimas
palavras”, continuou, cortando uma fatia. “O melhor talvez seja se despedir das pessoas que você ama e não
falar de si.”

[1] Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada [1963]. Tradução de Mathias Lambert. Rio
de Janeiro: LTC, 1988, p. 109.

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[2] Pequena Coletânea de Poesias de Língua Inglesa. Tradução de André Carlos Salzano Masini, Edição do
autor, 2000.

[3] São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 5. Tradução de Ana Aguiar Cotrim.

[4] “Eu canto o corpo elétrico”, Cadernos de Espetáculos, 2 de setembro de 1996. Tradução de Ivo Barroso.

RACHEL AVIV
Rachel Aviv é repórter da revista The New Yorker

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