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Cícera Candoia

Quando começou a última retirada de Parambu, Cícera Candoia já morava sozinha com a mãe, numa casa miúda. A família
fora encurtando e, de tão curta, findara nas duas. Com o estio de anos, estavam todos indo embora, e a vila ficava sem pé de
gente, um descampado de casas vazias. Ciça continuava no seu canto. Não dava para carregar com ela os anos da mãe,
vividos ali, seu reumatismo, seus hábitos calejados de mulher do mato.
Não indo a mãe, não ia Ciça, que debruçada na janela via as pessoas passarem e escutava as notícias da retirada. Entre mãe
e filha agravava-se um silêncio que sempre fora intenso. Parecia que o vento seco da estiagem ressecava as suas gargantas
pobres de fala. A mãe cochilava na rede, cantarolando canções esquecidas e matando piolhos. A filha olhava pela janela,
esperando vir por ali qualquer solução. Um vento quente e contínuo marcava os minutos para ela. Sebastião Quinzim chegava
de manso, espreitando a casa. Cícera ia ao seu encontro, longe dos ouvidos da mãe.
- Já viajou a família do Cipriano, a de dona Madalena e a de compadre Elpídio.
- Fiquei sabendo.
- E tu, quando partes?
- Quando for a minha hora.
- A última hora vai ser amanhã, no derradeiro caminhão, que sai logo de madrugada.
Sebastião olhou forte para Ciça, que baixou a cabeça. Depois, tomou sua mão e, antes que ela a puxasse com força,
perguntou:
- E a velha?
- Viva, viva...
- Dá-se um jeito.
- Te renego, desgraçado!
Sebastião fugiu e Ciça o acompanhou com os olhos até onde pôde avistá-lo. O vento soprava uma poeira fina, impedindo
que o olhar perscrutasse mais longe. Só os ouvidos continuavam atentos aos ruídos que vinham da ruazinha. Uma mulher
gritava com os filhos, cachorros ladravam, portas batiam. Havia pressa em fugir.
Nesse tempo, já não se tinha mais o que fazer no Parambu. A terra não servia para plantar, não havia lavouras para colher,
nem roçados para brocar. Os redemoinhos corriam os descampados, as pessoas apressadas escondiam os rostos e arrumavam
os poucos pertences para a viagem. Os caminhões seguiam carregados dessa gente magra como o gado que morria de fome
e sede nos pastos secos. Ciça cuidava em levar suas cabras para comerem uns restos de mato.
Em casa, moía na pedra um milho de safra, ou escaldava, no leite, uma farinha mofada, de tão velha. Entre um tempo e outro,
sentia a aridez do estio, matando em volta e começando a lambê-la com a labareda do seu fogo. Vinha o pensamento da
fuga, a lembrança descarada de Sebastião, e entrava nos ouvidos a voz da mãe, lamurienta, resmungando uma cantilena
contínua, senil.
- Que diabo de cantiga é esta, minha mãe?
- Não se lembra, na outra seca?
- Não me lembro de nada, não era viva.
- Lembra sim e já era viva.
- Não lembro e já estava morta como hoje.
A velha encolheu-se na rede e enfiou a mão na cabeça, catando piolhos. Quando encontrou um, estalou entre as unhas. O
calor parecia querer derretê-la e aumentar o seu delírio. Permaneceu um tempo longo com os olhos fechados e, depois,
voltou a perguntar:
- Nem se lembra de teu pai, da morte dele?
- Não me lembro de nada, e pare de querer que eu lembre das coisas, senão eu não asso seu bolo de milho.
A velha calou-se e voltou aos piolhos. Ciça lembrava-se de tudo. De um tempo de paisagem verde em que ainda era possível
rir. Quando o pai e os sete irmãos homens moravam ali, e a casa guardava ruídos de alegria. Um tempo longe, ela ainda
menina, tão longe que o rosto do pai aparecia em contornos imprecisos. Vagos, também, eram os fatos que a posterior
loucura da mãe embaralhou e a memória do povo do lugar não esqueceu. O pai morto a golpe de foice pelo filho mais velho,
numa briga pela partilha de umas cabras. A fuga do irmão, de quem nunca mais se teve notícias. A dor da mãe, que perdeu
o juízo nesse dia. A partida dos irmãos, um por um, por não suportarem a vergonha do parricídio. E a vida de depois, a del a,
solitária e com um crime por compreender. O desprezo das pessoas do lugar, para ela e a mãe suportarem. E a grande
sentença do silêncio entre as duas, que nunca mais se olharam. Para Ciça, a condenação já existia no fato de ser mulher, em
não poder partir, como os irmãos homens fizeram. Sem que escolhesse, assumia a custódia da mãe e sua eterna companhia.
Sim, Ciça lembrava tudo naquele instante, fora impossível não lembrar um único segundo, apesar do silêncio respeitosamente
guardado por ela e a mãe, apesar do tácito compromisso de jamais falarem. Mas, hoje, quando todos iam embora e ela ficava,
quando parecia ser o fim da condenação, Ciça não conseguia suportar a revolta e o seu corpo ansiava por vida.
A cantilena da velha arrancou-a do devaneio.
- "No tempo da ira fazia poeira..."
- Pare com esse agouro! - gritou Ciça.
- Não é agouro, minha filha, é lembrança.
- Pois pare de se lembrar e trate de dormir, que dormindo a gente esquece.
A velha resmungou e a sua voz se confundiu com o vento que soprava. As horas não passavam para ela, tresvariando na rede.
Só Ciça tinha o cuidado do tempo e cada instante era um confrangimento na alma, uma ruga no rosto. Ali dentro da casa,
tudo parara, mas, lá fora, as pessoas se movimentavam com pressa, com exatidão, cuidando em escapar. E Ciça não conseguia
resistir àquele movimento. Ela sabia que lá fora um caminhão ganhava estradas, vencia léguas, aproximava-se. E as imagens
do caminhão e de uma fuga para outro destino torturavam-na. Desejava que ele não chegasse nunca, que se perdesse, para
que ela não tivesse de pensar e decidir.
A velha mexeu-se na rede, abriu os olhos esgazeados. Dormira horas. Ou não dormira? Era sempre assim. O calor aumentava
o tresvario, e dia e noite eram um mesmo tempo. A custo retomava a memória do passado. O presente era este tempo quente,
apagado para os olhos e sem dimensão exata para a compreensão. Sentia que a filha estava muito nervosa, mais que de
costume. Sabia que na vila as pessoas iam embora. A intuição lhe dizia o resto, já que a filha pouco falava.
- É verdade que todo mundo vai embora? - perguntou.
-É.
- Povo mole. A outra seca durou três anos. Teu pai e eu nos aguentamos por aqui, porque o lugar da gente era este mesmo.
Esperamos, quietos no nosso canto. E depois de três anos de estio choveu e tudo ficou vivo, como se nascesse outra vez. E a
gente foi muito feliz.
- Pare de se lembrar de pai - gritou Ciça. - Que lembrança é essa? Ficou doida?
A velha fechou os olhos como se não ouvisse e voltou a cantarolar. Um redemoinho passou ameaçando derrubar os santos
das paredes. A casa encheu-se de poeira. Da cozinha
vinha um cheiro de lenha queimando e, lá longe no açude, as cabras berravam.
- Hoje o povo só pensa em ir embora, em deixar os seus cantos.
-É...
- Foi assim com teus sete irmãos. Você sabe o que aconteceu com eles, por que nunca deram uma notícia?
- Não sei, nem ninguém sabe - respondeu Ciça com raiva.
Houve um silêncio em que a velha pareceu mais triste e botou força nos dedos para arrancar os piolhos da cabeça como se,
na verdade, quisesse arrancar coisas bem de dentro. Com um dos pés no chão, movia ritmadamente a rede, embalando -se
ao som do gemido que escapava dos armadores. Ficou longo tempo assim, até que estacou de vez, corajosa para a pergunta
que o medo não tinha deixado escapar.
- E tu, não vais embora também?
Ciça deixou cair, sem querer, uma blusa vermelha que remendava. Todo o seu corpo tremeu.
- Não! - disse, e continuou em silêncio.
O redemoinho voltou a correr pela casa e depois nada se moveu. Ciça foi até à janela, de onde avistou Sebastião, vindo à sua
procura. Trocaram poucas palavras e entraram por um caminho, beirando a parede do açude, completamente seco. Foram
ter onde estavam amarradas as cabras. Ciça deitou-se no chão, fechou os olhos e sentiu as pedras queimando a sua carne.
Era preciso não pensar em nada, deter o tempo, calar qualquer ruído. Mas Sebastião fumava inquieto e não queria respeitar
o silêncio.
- Vamos embora amanhã - disse de vez.
O céu se anuviou, as pedras estalaram, um pássaro agourento cortou o espaço. Ciça deu um pulo e correu para junto das
cabras. Desamarrou-as, segurou-as pelos cabrestos e, quase correndo, tocou-as no rumo de casa. Tinha o ar feroz e não
olhava para trás. Sebastião seguiu-a de perto, falando no seu ouvido.
- Foi você quem escolheu sua condenação. Lembre-se de que pra sair daqui vale qualquer doidice, qualquer desatino. É
decidir morrer ou continuar viva.
Ciça corria. De onde estava parado, Sebastião ainda gritou:
- Eu passo de noite pra saber a resposta. O último caminhão sai amanhã, vá se lembrando!
Ciça ia longe na sua passada ligeira. E logo se viu em casa, com a mãe no mesmo lugar, resmungando a mesma cantilena. E
o hábito de todos os dias era repetido: amarrar as cabras, tirar o leite, preparar o jantar e esperar a noite. Era assim há muitos
anos e não tinha porque ser diferente até o fim do mundo ou de uma das duas. E, naquela tarde, quando Ciça
estendeu para a mãe o prato de xerém de milho que seria o seu jantar, havia nela um rancor mais forte, que a velha, apesar
do torpor, percebeu. A mãe mastigou a comida devagar, suspirando entre um bocado e outro. Depois, levantou a cabeça e
olhou para a filha, longamente, como há anos não fazia e uma forma que esquecera. Durante o tempo em que viveram juntas,
depois da desgraça, tinham aprendido a não se perguntarem nada. O silêncio as sustinha. Mas, agora, a velha queria falar.
Como se tivesse acordado de um sono longo, olhou demoradamente para a filha e estendeu-lhe o prato vazio.
- Com uns esfregões de sebo quente nas juntas, eu desentrevo o reumatismo. Sou capaz de tomar a labuta da casa, que não
é tão grande.
- Eu já não sirvo mais? Já não presto pra fazer o que sempre fiz?
Fez-se um silêncio em que se sentiu que nenhuma teria coragem de falar. Mas a velha, num ímpeto, segurou Ciça pelo braço
e arriscou a pergunta.
– Me diga de uma vez, tu estás querendo ir embora?
Ciça soltou-se da mãe e, antes de entrar para a cozinha, respondeu:
- Eu não viajo com mãe porque mãe não aguenta a viagem. E também não deixo mãe sozinha aqui, enquanto mãe tiver vida.
O sol tinha escurecido de todo e soprava o vento trazido do mar. As portas da casa foram fechadas, ficando abertas apenas
as da frente, para dar entrada ao vento, que chegava carregado de poeira. O candeeiro aceso dava uma cor marrom aos
rostos, acentuando a dureza que lhes era natural.
A noite chegara, como todas as outras noites. A filha olhava pela janela, a mãe fumava um cachimbo e cuspia de lado. Como
nunca, vinha agora uma vontade de falar, de
relembrar tudo. E cada palavra saía carregada de intenção, tecendo um destino por cumprir.
- Eu sempre desejei de ser enterrada debaixo do pé-de-pau-branco, atrás da casa - a velha disse e sorriu, admirando-se do
riso.
Ciça ouvia calada.
- Numa rede macia, que esquentasse as minhas carnes, pra não sentir frio debaixo da terra.
Silêncio. Só o vento soprava com mais força.
- Eu nunca quis viajar. O mundo pra mim foi sempre isso aqui. Nunca imaginei que pudesse existir nada além disso.
Ouviu-se um assobio fino e Ciça saiu para a rua. Demorou pouco tempo e quando voltou fechou portas e janelas, armando,
em seguida, a sua rede. Estava trémula e, à luz do
candeeiro, seu rosto era marrom. Do rápido encontro com Sebastião, gravara uma sentença: "derradeiro dia".
A mãe continuava falando. As palavras, reprimidas por anos, jorravam agora. A boca desabituada do movimento da fala queria
traçar um rumo, naquela noite perdida.
- Lembra uma história engraçada que aconteceu aqui em casa?
Ciça não respondeu e a velha falou para si mesma.
- Teu pai contratou homens pra brocarem um roçado. Eu tive de fazer a comida e levar na roça. Era feijão com toucinho e
farinha, tudo muito gostoso. Os homens comeram e acharam bom. Mas, depois, ninguém sabe como, todo mundo botou pra
morrer como se estivessem envenenado. Foi um deus-nos-acuda. Saí correndo de casa em casa atrás de leite pros homens
beberem. Teu pai, que também tinha comido do feijão, passava mal. Eu só faltava ficar doida sem saber o que tinha acontecido.
Mas, no fim, todo mundo ficou bom.
Interrompeu a história e riu um longo tempo. Deu duas baforadas no cachimbo e voltou a resmungar a cantilena. Depois,
como se acordasse, continuou falando.
- Sabe o que aconteceu? Eu guardava um veneno de matar formiga, dos bem fortes, socado nuns caibros do telhado, justo
em cima do fogão. O papagaio de casa, andando pelos caibros, mexeu no embrulho de papel e uma parte do veneno
derramou-se na panela do feijão. Ninguém acreditou nessa história e, até hoje, tem gente que jura que fui eu que botei
veneno na comida pra matar todo mundo. Veja que conversa!
Continuou rindo e dando baforadas no cachimbo. Cícera, na sua rede, não se movia. Ouviu-se uma zoada de caminhão,
chegando na vila. Ouviu-se, também, o latido dos cachorros, correndo atrás. Depois, voltou o silêncio e apenas, de quando
em vez, escutava-se o pio da rasga-mortalha, sobrevoando as casas.
Ciça, deitada, prestava atenção na história da mãe, carregada de ênfase e tristeza.
- Eu tive mais cuidado. Peguei o veneno, enfiei dentro de uma cumbuca e meti naquele caixão velho que fica perto do fogão.
E se ninguém mexeu nele ainda deve estar lá, porque eu nunca mais quis saber de matar formiga.
Terminada a história, apagou o cachimbo e botou-o debaixo da rede. Fechou os olhos para dormir e retomou a cantilena:
- "No tempo da ira fazia poeira...". Parecia apaziguada.
As horas se passavam como se nada fosse acontecer. Ciça permanecia acordada na sua rede. Mantinha os olhos abertos e os
ouvidos em escuta. Na vila, os ruídos haviam aumentado e deveriam durar até a madrugada, quando todos partiriam. Com
certeza, agora, os homens estariam carregando o caminhão, as mulheres aprontando mantimentos para a viagem comprida,
os meninos pequenos dormindo, e os maiores olhando tudo com curiosidade. Antes de o sol nascer se ouviria o ronco do
carro, pela última vez, indo embora. Depois, só o silêncio. Não tinha como não pensar nesse silêncio, e no claro do dia que j á
estava chegando. A lembrança de um pequeno pacote, onde o segredo da morte se escondia, despertava os mais esquecidos
desejos. Os ruídos que chegavam da vila, eram ordens para Ciça. Sim, ela precisava se levantar, fazer tudo rápido, com muita
precisão.
Foi até a cozinha, onde se demorou. Voltou trazendo um copo de leite. Chamou a mãe e lhe entregou.
- Toma.
- Eu estava esperando - disse a velha.
- Não estranhe o gosto, as cabras mudaram de pasto.
A velha bebeu o leite sem pressa e depois deitou-se, cobrindo-se com o lençol encardido. Ciça reparou que a madrugada se
aproximava. Precisava satisfazer os desejos da mãe. Havia uma árvore de caule branco, atrás da casa, que guardava, nas raízes,
uma fresca umidade. A mãe sempre desejara o seu aconchego, uma paz de terra molhada, que nunca tivera em vida.
(in: A Faca, de Ronaldo Correia de Brito)

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