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& Revie 02nd 14 A IpentIpaDE Da IGREJA NA MOopERNIDADE LiQuiIDA Esdras Costa Bentho! RESUMO Definir e nominar a identidade da igreja crista na modernidade liquida ¢ tarefa herctilea, mas necessaria para a compreensio da crise de identidade que tem assolado as denominacées cristas brasileiras. O presente artigo pretende discutir os conceitos de identidade em sua diversidade sociolégica e teoldgica a fim de propor reflexdes que auxiliem no entendimento das diversas identidades assumidas pelos (0s no cristianismo tupiniquim. PALAVRAS-CHAVE Identidade - Modernidade Liquida - Hermenéutica. INTRODUGAO Os cristos pentecostais brasileiros, com algumas excecées, refletem profunda e adequadamente a respeito da identidade da Igreja. Exceto pelo conhecimento propedéutico da eclesiologia de matriz estrangeira e pela evangelizacéo motivada pela urgéncia escatolégica, pouco, em um século de histéria se tem avancado em relagdo ao tema. A eclesiologia pentecostal no Brasil é implicita, focada na experiéncia, e indutiva. Nao parte de um processo de re- flexdo teolégica que leva a praxis, muito menos do reconhecimento de sua identidade e natureza, mas do exercicio individual dos ca- rismas, enquanto mordomia que o individuo convertido e batizado no Espirito realiza. + 0 autor é Mestre em Teologia pela PUC, RJ, Pedagogo habilitado em Educagao Infantil Ensino Fundamental ¢ Formagao de Professores (Unesa), Escritor ¢ Professor de Her- menéutica Biblica e Filoséfica na FAECAD. Revista Enfoque Teolégico* :1 1690672015 08:56:58 & Nesse artigo, entretanto, nao farei uma andlise diacrénica da identidade da Igreja. Julgamos ter cumprido esse desiderato em nossa obra Igreja Identidade & Simbolos (2010), a qual remetemos 0 leitor. Nossa proposta é analisar de modo sincrénico a identidade e natureza da igreja, sem, no entanto, nos determos sistematicamente nas varias caracteristicas identitarias das igrejas da atualidade. Buscamos, pelo contrario, uma resposta sociolégica e somente depois teoldgica, a fim de proporcionar ao leitor uma visdo mais ampla da problematica. Para tanto, discutiremos algumas questées relacionadas as identi- dades na modernidade de Baugman, Giddens e Castells, com uma interface em outros tedricos da modernidade, como Touraine, Hall, e, sem nos esquecer de Weber e Durkheim. E a seguir, trataremos das leituras teolégicas a respeito do tema, segundo Brunner, Pan- nenberg, Barth, Moltmann. Nosso objetivo nao é exaurir 0 assunto, mas fornecer ao leitor uma andlise sintética de algumas, nao todas, discussées concernentes a identidade da Igreja. AS CIDADES INVIS{VEIS E A IDENTIDADE DA IGREJA No criativo e ficto didlogo elaborado por ftalo Calvino (2003, p.27) em As Cidades Invistveis, Marco Pélo diz ao grande Kublai Khai “Vocé sabe melhor do que ninguém, sabio Kublai, que jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligacao entre eles”.? Permita-me o leitor & seguinte pardfrase, supondo que esse didlogo tenha ocorrido entre um missionario um lider tribal, que resiste a cultura crista para manter a identidade de sua tribo: “Vocé sabe melhor do que ninguém, sabio lider, que jamais se deve confundir Jesus e 0 Cristianismo com o discurso das igrejas que os representam. Contudo, existe uma ligagao entre eles.” 2 J4 na conclusiio desse trabalho, li o texto de Libanio que, pela impossibilidade de rea- justar as notas, coloco aqui. O conceito que procuro descrever na parafrase dessa citagao acha-se em Libanio que diz: “A distingZo entre Cristianismo e Igreja permite entender a nova situagdo. Vimos como Jesus ¢ distinto do Cristianismo, mas o Cri impensavel sem a fé em Jesus ¢ esta s6 continuou historicamente porque o Cristianismo se tornou realidade social. Assim também as igrejas cristas so distintas do Cristianismo e de Jesus Cristo. No entanto, existem relagdes entre essas trés realidades”. Ver LIBA- NIO, J. B, Qual 0 futuro do cristianismo? Sao Paulo: Paulus, 2006, p. 21 ‘ianismo é V.2,N. 1 (2015) Revie o2.ndd 12 1690672015 08:56:58 & De acordo com o personagem Marco Pélo, a tinica forma de representar adequadamente a cidade Olivia ¢ descrevendo através do discurso, a prosperidade da cidade que, embora rica, com “suas almofadas franjadas nos parapeitos dos bifores”, esta envolta “por uma fuligem e gordura que gruda nas paredes das casas” (Ibid., p.27). Assim também a Igreja. Nao ha como descrever adequada- mente a sua identidade se nao falarmos de sua riqueza e impoluta beleza e também da fuligem e gordura incrustada em sua estrutura. A estética e opuléncia da cittd fazem parte de seu estado e criagao originais, mas a tisne e nediez foram acrescentados depois. Tal qual Olivia, “na aglomeragao das ruas”, onde os guinchos manobravam comprimindo os pedestres contra os muros, as igrejas pululam nos guetos e ruelas dos grandes centros disputando espacos e atengao dos transeuntes, comprimindo-os. Todavia, a identidade da cidade Olivia nao est em seus sun- tuosos palacios de filigranas almofadas, mas nos personagens que nela vivem. A identidade da metrépole nao se confunde com suas magnificas construcées. Sao os sujeitos, com o que sao e produzem, que lhe da sentido. Para melhor descrever a cidade, Marco Pélo afirma que seria necessario usar a metafora da fuligem, dos chiados de rodas, dos movimentos repetidos, dos sarcasmos. A mentira, diz © veneziano, nao esté no discurso, mas nas coisas. A chave-herme- néutica esta na relacao entre o discurso e os fatos, entre a realidade eas imagens verbais. CONCEITO DE IDENTIDADE Conceituar 0 termo identidade a partir de seu étimo latino, idem, “o mesmo”, nao é uma tarefa herctilea; entretanto, descrever 0s variegados usos do vocabulo nas ciéncias sociais semelha-se ao desafio de revelar o enigma da esfinge. Tal qual a solucio de Edipo, a resposta se encontra no préprio homem, uma vez que somente ele da sentido social & linguagem e as coisas. Esses significados sempre so vistos a partir da perspectiva da sociedade em que o homem esta inserido ou que nela se move. A identidade e atributos que caracterizavam 0 homem no inicio da modernidade nao so mais os mesmos na sociedade contem- Revista Enfoque Teolégico* :3 Revista o2.ndd. 19 1690672015 08:56:58 & pordnea. Para Hall existe hoje uma “crise de identidade”, como parte de um processo de mudanca que desloca as estruturas e processos da sociedade e abalam os quadros de referéncia que outorgavam aos individuos “uma ancoragem estavel no mundo social”. Segundo o autor “As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram 0 mundo social, estéo em declinio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o individuo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado” (HALL, 2004, p.7). Essa mudanga estrutural ocorrida ja no final do século XX é responsavel pela fragmentagao e transformacées culturais de classes, género, sexualidade, etnia, raca e nacionalidade, que até ento dava ao sujeito um sentimento de integracdo e pertencimento, que ndo existem mais. O individuo, afirma Hall, esté deslocado, descentrado “tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmo” (Ibid., p.9), o que constitui uma crise de identidade. Essa identidade em processo de construgao/desconstrugao é fragmentada e contra- ditéria, pois resulta das transformagées nas instituicdes religiosas, sociais e familiares as quais o individuo pertence. Assim, a crise de identidade do sujeito ¢ provocada pela crise institucional’. Obser- ve, por exemplo, uma instituigao religiosa que diferentemente dos tempos de outrora, nao consegue, por muitas variaveis, manter os valores e tradicées espirituais e culturais que a sustentaram e que por eles fora identificada desde a sua fundagao. O fiel vive entre dois mundos completamente antagénicos: o que procura manter os tracos retilineos da tradicao original e o da renovagao, que considera 2 Emprego o termo “sujeito”, “individuo” e “agente” aqui, com o mesmo sentido usado por Touraine. Para ele o individuo “é apenas uma unidade particular onde se misturam a vida e o pensamento, a experiéncia e a consciéncia”. O Sujeito, grafado por ele com “S”, ““€ 0 que exerce controle sobre a vivéncia para que ele tenha um sentido pessoal, para que o individuo se transforme em agente inserido nas relagdes sociais, transformando- identificar por completo com um grupo, com uma coletividade”. O agente “no & aquele que age em conformidade com o lugar que ocupa na organiza- ¢40 social, mas sim aquele que modifica 0 meio material, e, sobretudo social no qual esta situado, transformando a divisdo do trabalho, as formas de decisio, as relagdes de dominagao ou as orientagdes culturais.” Ver TOURAINE, A. Critica da modernidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1994, Epistemologia e Sociedade, p. 247. O Sujeito & “tanto uma alma como um corpo e ¢ igualmente um projecto, uma meméria das origens”, p 351. Cabe afirmar que 0 conceito de sujeito, de acordo com o autor, ndo se opie a ideia de sujeito, mas constitui uma interpretago muito particular desta tltima, Ver p.313 -as, mas sem nuneé 4°V.2,N. 1 (2015) Revista o2.ndd 14 1690672015 08:56:58 & os costumes e tradicdes antigas retrégados e incapazes de falar ao homem moderno. Nesse vacuo esta crente e sua crise de pertenci- mento na modernidade liquida. Para o sociélogo Zygmunt Bauman, a Alta modernidade é liquida pelo fato de ser inconstante e mével. O que dava sustentagdo ao individuo na “modernidade sélida” foi suplantado pelas pro- fundas e varias mudancas da sociedade e da vida humana. Nosso tempo caracteriza-se pela fluidez e mudangas rapidas e drasticas na familia, no trabalho, na igreja, nas relacées sociais e também na formacdo da identidade dos sujeitos, provocado por uma “crise de pertencimento”. Devido as répidas transformagées nos grupos so- ciais, 0 individuo ja nao consegue mais se identificar exatamente com © grupo a qual pertence. Os valores e tradigdes do passado sedem as mudangas da modernidade gerando desconfianga e inseguranca. De acordo Bauman Quando a identidade perde as ancoras sociais que a faziam parecer “natural”, predeterminada e ine- gociavel, a “identificagéo” se torna cada vez mais importante para os individuos que buscam deses- peradamente um “nds” a que possam pedir acesso (2005, p.30) Osujeito costuma organizar a sociedade a sua volta conforme as tradigdes e visio de mundo (Weltanschauung), que nao pertence unicamente a ele, mas ao grupo social a qual esta inserido. Ao se afas- tar do grupo social, Ié a realidade como algo imével, incondicionado e incondicionante, incapaz de mudar sua interpretacao das coisas, como afirma Gerd Bornheim (2009, p.65) a respeito do comportamen- to dogmatico: “E a partir desta Weltanschauung que o homem cresce e da qual ele dificilmente chega a se desprender de uma maneira total”. Oindividuo aceita o mundo como lhe foi apresentado e por isso nao © questiona, mas encontra sua prépria identidade na existéncia dog- mitica. Sua identidade foi construida ou esta em construgao com os padrées, valores e tradicdes compartilhadas pelo grupo social, seja a Revista Enfoque Teolégico* 5 Revista o2.ndd 15 1690672015 08:56:58 & familia, seja a igreja, ou a escola. Todavia, 0 zeitgeist que predominae molda a sociedade neste periodo de modernidade liquida o impede de continuar a identificar e ordenar as diferengas e semelhangas entre os grupos sociais. As transformacées transpassam inadvertidamente Os grupos sociais rompendo todas as fronteiras e limites territoriais da religiao, politica, economia e familia. Esta é uma das razées pelas quais as liderangas eclesidsticas estao a todo tempo conclamando os fiéis a retornarem as tradi¢des e valores historicos do grupo religioso. Sentem que a instituigdo esta perdendo a identidade, compreendida como os valores, princfpios e costumes que marcaram a fundagao da denominagao. Nesse con- texto, recorre-se a historicidade a fim de legitimar as tradig6es, que formam os componentes identitarios que sustentam a unidade do grupo. Mas, de acordo P. Monteiro (1997, p.47-64), a identidade nao é formada pelo pertencimento empirico a uma cultura, mas “como um jogo simbélico no qual a eficacia depende do manejo competente de elementos culturais”. Esta afirmagao esta de acordo com o pen- samento de Lévi-Strauss para quem a identidade nao é nenhuma “experiéncia substantiva”, mas um “foco virtual”, “um esforcgo de construcao indispensavel 8 explicacao, mas cuja existéncia seria pu- ramente teérica” (LEVI-STRAUSS Apud MONTEIRO, 1997, p.62.). De modo semelhante, Ortiz (1994, p.7) entende que a identidade é rucdo simbélica reinterpretada pelo grupo social de tal modo que nao se pode falar concretamente de identidade auténtica, mas plural, construida pela diferenga identitaria dos grupos sociais em momentos histéricos distintos. uma cons Assim, a identidade nao é construida espontanea e exclusi- vamente pela cultura, mas também e, principalmente, nas relagdes sociais que se realizam e transmutam no cotidiano. A cultura é 0 elo, 0 eixo, 0 idedrio que circula na sociedade e se amalgama nas rela- Ges sociais. Portanto, nao se deve reduzir a identidade as relagdes sociais e muitos menos a cultura. Ambas constituem a argamassa que possibilita a construgao identitaria dos agentes sociais. Sao os diversos contextos relacionais e culturais que formam a identidade dos atores sociais. Alguns elementos pertinentes & cultura colaboram com a imagem identitaria, entretanto, reafirmamos a construgao 6-V.2,N. 1 (2015) Revista o2.ndd 16 1690672015 08:56:58 & dessa identidade nao se circunscrever apenas & cultura. De acordo com Munanga A identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiolégico sem- pre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposi¢ao ao alheio. A definicao de si (autodefinigao) ¢ a defini¢ao dos outros (identidade atribuida) tém fungdes conheci- das: a defesa da unidade do grupo, a protecao do territério contra inimigos externos, as manipulacdes ideoldgicas por interesses econémicos, politicos, psicoldgicos, etc. (1994, p.177-178) Accultura mantém as identidades sociais dentro de suas especi- ficidades, no entanto, esta sempre aberta aos novos saberes, técnicas, ideias, habitos alimentares e individuos vindos de fora, como afirmou. certa vez, Morin. Contudo, ao tratar da identidade em seu aspecto relacional, os autores ndo querem dizer que a cultura nao tenha um papel importante nesse processo, mas reafirmar a singularidade das relagées sociais carregadas de contetido simbélico e ideoldgico. Assim, e obviamente, o conceito de identidade sempre estar liga- do ao conceito de diferenga. Nao se pode falar adequadamente da identidade de alguma coisa se antes nao liga-la aos seus diferentes, como conceitua Munanga. Castells (1999, vol. 2, p.39), por exemplo, enfatiza que determinado atributo cultural ou conjunto deles é o elemento mediante 0 qual o ator social se reconhece e constréi sig- nificado. Todavia, essa identidade é formada na exclusao de “uma referéncia mais ampla a outras estruturas sociais”*. ‘ Ver também MORIN, E. Os sete saberes necessirios A educagio do futuro, 5.ed., So Paulo: Cortez; Brasilia: UNESCO, 2002, p.56-7. Morin salienta o carter identitério das culturas, mas acentua que as assimilagdes de uma cultura a outra so enriquecedoras e mui- tas mestigagens culturais foram bem-sucedidas, no entanto, a desintegrago de uma cultura sob o efeito destruidor da “dominagdo técnico-civilizacional” causa uma perda para toda a humanidade, cuja diversidade cultural constitui um dos mais preciosos tesouros. Revista Enfoque Teolégico* :7 Revista 02.8. 17 1690672015 08:56:58 & Numa sociedade moderna e flufda, que se classifica como plural e democratica, tornou-se nao apenas importante o respeito as diferencas ¢ diversidades, mas também a tolerancia entre os grupos sociais, a interculturalidade e a construgao social através do didlogo. Portanto, a identidade entendida em suas bases sociais nao significa a negacao do “outro” para reafirmar o “eu”, mas reunir 0 “eu” e “ele” emum “nds”, conservando-Ihes a singularidade, como se espera de uma sociedade plural e democratica. Esta nova pers- pectiva de contemplar o mundo conforma-se & nova consciéncia de identidades culturais que foram, em tempos passados, como afirma Azevedo (1991, p.52) Reprimidas pelo processo colonial, desfiguradas pela invaso do moderno-cultural, humilhadas pela sujeicao politico-militar, minimizadas ou desgasta- das pelos uniformes métodos religiosos de evangeli- zacio, educacao e organizagao, as culturas de muitas faces voltam hoje, surpreendente e vigorosamente, ao palco da humanidade. O reverdecimento das identidades culturais, portanto, nao é um fato localizado ou geografico, mas “o surto transcultural de im- portantes segmentos sem fronteiras” (Ibid., p. 52.), como € 0 caso das minorias étnicas, das mulheres, dos negros, dos pobres, dos campo- neses, das criancas, dos operdrios, etc. Esses movimentos identitarios sao novos movimentos sociais surgidos recentemente, nao antes dos anos sessenta, que caracterizaram os movimentos contraculturai: Esses movimentos foram marcados principalmente pela busca de direitos que Ihes assegurassem a identidade que a sociedade se ne- gava a reconhecer. Como afirma Hall (2004, p.45), “cada movimento apelava para a identidade social de seus sustentadores” (grifo nosso). Nao demorou muito para que as igrejas brasileiras que, em sua maioria, apoiavam o regime da época, percebessem que apés a pro- mulgacdo da Constituicdo da Republica de 1988 — que reconhecia o direito a identidade de cada movimento (politica de identidade) 8-V.2,N. 1 (2015) Revista o2.ndd 18 1690672015 08:56:58 & -, 0 cenario da sociedade brasileira iria mudar desta feita, reco- nhecendo e privilegiando as identidades e pluralidades até entio a margem da sociedade e sem voz em um pais repressor. Assim, portanto, os movimentos sociais minoritarios até entao reprimidos inauguram uma fase de luta e resisténcia da qual a linguagem é 0 principal, mas nao o tnico instrumento simbdlico. Lutam por seus direitos, por seu espaco e pelo reconhecimento da identidade social do grupo. No cenario evangélico, esses mesmos grupos identitérios exigiram e procuraram o seu lugar. Nao o encontrando nas igrejas cristas tradicionais, criaram para si igrejas que atendessem suas idiossincrasias. Como exemplo, podemos citar o surgimento, em 2006, d’A Igreja Cristé Contemporanea, que se define como “uma denominagio inclusiva”, que prega o livre acesso de todas as pessoas ao Evangelho de Jesus Cristo, “independente da orientacao sexual” (Disponivel em: <>. Aces- so em 28/04/2011). Assim como os negros que viviam em estado de segregacao e marginalizadosna sociedade americana desenvolveram sua black theology, os grupos cristaos identitarios estao relendo a Biblia em uma abordagem socioldgica e particular. E tanto assim que hoje jase fala sem novidade nos circulos teolégicos de teologia feminista, que busca uma leitura (hermenéutica) ndo-sexista da Biblia, teologia africana e asidtica, além da Teologia da Libertagao, que se configurou na América Latina como uma teologia preocupada com as relagdes de dominacio e dependéncia, valorizando, principalmente, a leitura da Biblia entre e para os pobres e marginalizados. De acordo com José Comblin (2005, p.11,16.), a teologia oficial rejeitou os pobres ea pobreza deixou de interessar a teologia ea igreja. Sobre esses grupos, apesar de suas afirmagées identitarias, paira o estigma da parte das igrejas tradicionais e da ala mais conservadora da sociedade, que os veem como movimentos marginais e, por isso, sao combatidos e reprimidos através dos jogos da linguagem teoldgica ou apologética. O que esses grupos identitérios tm em comum, se, na ver- dade, suas teologias sao particulares? O fato de todos, sem excecio, fazerem parte de uma nova configura¢ao identitaria que nao se ajusta mais aos padrées do sujeito do Iluminismo e da teologia dogmatica das instituicées religiosas na modernidade. Para tais grupos, a li- Revista Enfoque Teolégico* :9 Revista o2.ndd 19 1690672015 08:56:58 & berdade de se expressar e viver sua fé particular equivale a sua luta contra o moralismo protestante usada pelos dominadores. Para Tou- raine (1994, p.371) “O moralismo s6 ¢ ultrapassado quando 0 apelo a liberdade, tao forte nos paises de desenvolvimento enddgeno, se sente ligado a defesa da identidade, tmico recurso dos dominados”. De certa forma, a manutengao dos tracos culturais ¢ axiolé- gicos dos grupos sociais nao deixa de ser um paradoxo. Ao mesmo tempo em que se procura reforcar e manter a identidade do sujeito se quer também derrubar as diferencas, sendo essas, talvez, 0 ca- rater mais distintivo da imagem identitaria. Por outro lado, dentro do grupo social, nao se espera que o individuo exerca a condigéo de sujeito e agente, muito pelo contrario, ele precisa se conformar a identidade do grupo. Nesse particular, Touraine (1994, p.279) afirma que 0 sujeito sé existe como movimento social, como contes- taco da légica da ordem. Todavia, Weber (2000, p.21) entendia o amalgama dessas caracteristicas como “convengio”, entendida por ele, como 0 “costume” que, “no interior de determinado circulo de pessoas é tido como ‘vigente’ e esta garantido pela reprovacao de um comportamento discordante”. A falta contra a convengao (costume estamental) é, portanto, castigada com mais vigor pelo fato de ser um boicote social. Assim, a instituicao, entendida como os valores € regras sociais que se mesclam no cotidiano, assume status de ver- dade incontestavel no grupo, padronizando os comportamentos e a ética dos agentes sociais. Todavia, a instituigao nao existe sem o grupo que lhe da autenticidade, pois somente ele pode produzir, reproduzir e reformular as regras dentro das organizacées. Logo, 0 conceito de modernidade liquida de Bauman, acrescentando a visio de reflexibilidade de Giddens, torna um herciileo desafio a manutengao das identidades tradicionais, como também da dos sujeitos dentro das organizagées, como afirma Giddens (2002, p.37) Em tais culturas, nas quais as coisas permaneciam mais ou menos as mesmas no nivel da coletividade, geracao apés geracao a mudanca de identidade era claramente indicada [...] Nos ambientes da moder- 20°V. 2, N. 1 (2015) Revista 02.84. 20 1690672015 08:56:58 & Revista 02.084 24 nidade, por contraste, o eu alterado tem que ser explorado e construido como parte de um processo reflexivo de conectar mudanga pessoal e social. A nogo durkheimiana de solidariedade organica cede ao sis- tema de reflexibilidade (ou reflexividade) de Giddens, que afasta cada vez mais 0 sujeito de sua identidade e colocacdo numa modernidade de risco, que busca sempre a transformacao de suas estruturas. Por- tanto, cada vez mais se torna dificil ao sujeito manter a identidade do sujeito iluminista, que correspondia adequadamente a socieda- de sélida. Assim, a identidade nao ¢ estatica, mas um processo de construgao continua, muito embora encontremos agrupado ao con- ceito a nogdo de permanéncia como, por exemplo, o nome pessoal, a nacionalidade e as relacdes de parentescos, que contribuem para a imagem identitaria do sujeito. Mesmo assim, o retirante de Joao Cabral de Melo Neto (2008, p.73.) (Morte e Vida Severina), vé-se em busca de uma identidade que va além dos esterestipos O meu nome € Severino, Nao tenho outro de pia. Como ha muitos Severinos, que é santo de romaria, deram entio de me chamar Severino de Maria; como ha muitos Severinos com maes chamadas Maria, fiquei sendo 0 da Maria do finado Zacarias [...] Vejamos: é 0 Severino da Maria do Zacarias, La da serra da Costela, Limites da Paraiba. Iniciamos nossa proposta, citando os relatos de Marco Pélo ao grande Kublai Khan. Terminaremos, portanto, fazendo uma breve Revista Enfoque Teolégico “21 1690672015 08:56:58 & reflexao a respeito dos conceitos de identidade tratados a partir dos relatos de As Cidades Invistveis. Marco Pélo nao trata de identidade, mas identidades. O grande império nao se construiu na homogeneidade das cidades e de suas populacées, mas na pluralidade identitaria. As pessoas que constituem as cidades tém seus costumes e visao de mundo diferente uma das outras e, no entanto, compéem o mesmo império. O relato do desbravador € variado, sujeito a interpretacdes, assim como as cidades que descreve. Cabe ao imperador compreender e relacionar as coisas com a linguagem empregada. Para reforcar 0 ponto em questio, cito a arguta consideragao da Doutora Adair Neitzel (2009), que a respeito das identidades das cidades afirmou As cidades do império do Grande Khan sao mé- veis, evanescentes, miltiplas, variadas, sujeitas a combinagées aleatérias que modifica o estatuto de territério puiblico. Elas se constroem em dife- rentes extensdes e profundidades, se esfacelam e se reconstroem, pois sdo representacées transitérias da meméria humana, e na leitura elas se revelam diferentes do que elas realmente sao, um simulacro para o qual nao existe instancia fisica Por conseguinte, tal qual Marco Pélo, é possivel falar das varias identidades eclesidsticas e, no entanto nao chegar a uma con- clusao valida a respeito de qual delas traduz concretamente a iden- tidade ideal da Igreja de Cristo. As identidades das igrejas cristas se configuram tanto por sua relacdo com a modernidade quanto por sua negacao a ela; pelo aceite de novas formas e estruturas sem romper com as antigas tradicées, ou pela afirmagao desta tiltima em detri- mento daquela; ou ainda, sao os sujeitos que definem a identidade do grupo religioso e, portanto, mudando as primeiras geracées, as novas Ihe configuram uma nova identidade que pode gerar conflitos com a que esta em processo de sucessao. A identidade da igreja, a organizacao, nao existe sem um corpo de regras e valores (institui- 40) que so reproduzidos na igreja, no entanto, é 0 grupo, formado 22°. 2,N. 1 (2015) Revista o2.ndd. 22 1690672015 08:56:58 & pelos sujeitos na modernidade liquida e reflexiva, responsavel, como afirma Bock (2000, p.217), “pela produco dentro das organizacées e pela singularidade - ora controlado, submetido de forma acritica a essas regras e valores, ora sujeito da transformagio, da rebeldia, da producao do novo”. Parabolicamente, cito {talo Calvino (2003, p.27) Mas a cidade no conta o seu passado, contem-no como as linhas da mao, escrito nas esquinas das ruas, nas grades das janelas, nos corrimées das escadas, nas antenas dos para-raios, nos postes das bandeiras, cada segmento marcado por sua vez de arranhées, riscos, cortes e entalhes. No tépico seguinte, procuraremos encontrar uma resposta acerca da natureza e identidade da igreja, de acordo com alguns tedlogos e biblicistas. VISOES DA NATUREZA E IDENTIDADE DA IGREJA Em horarios intercalados, a Catedral de Rouen, um dos mais belos e impressionantes templos géticos j4 produzidos pelo espi- rito e engenho humano, foi sucessivamente pintada pelo mestre impressionista Claude Monet. Movido pelo interesse cada vez mais constante de captar as varias mutacdes que o efeito da luz provocava na fachada gética, Monet pinta cinquenta telas em horarios e dias intercalados para captar todo 0 efeito éptico da fachada de Rouen. A Catedral é a mesma, mas 0 élan que os feixes de luz e sombras provocam no artista dé-lhe a impressao de que a fachada é nova e distinta. O frontispicio imponente permanecia inamovivel e imutavel, mas ao espirito e olhos de Monet as imagens mudavam radicalmente. A paisagem diante de si apresentava-se nova e diversa, de acordo com a luminosidade natural e a incidéncia da luz sobre o templo. O assombro que tomou conta de Monet dirigiu-o a pintar mais uma vez a Catedral. A tela, assinada no mesmo ano, 1984, foi chamada Catedral de Rouen vista ao amanhecer. A igreja é a mesma, mas trata-se de obras auténomas e distintas (GEIGER,1977, p. 132). Revista Enfoque Teolégico “23 Revista o2.ndd. 23 1690672015 08:56:58 & A pintura da fachada da Catedral de Rouen ilustra perfeita- mente os estudos e discursos modernos concernentes a identidade da Igreja. Eo assombro do artista, talvez, seja representado melhor pelo absconditus barthiano: “Estamos perante 0 mistério de Deus quando nos deparamos com o mistério da Igreja” (BARTH, 2003, p-637). Diversos tedlogos, missionarios, pastores e biblicistas tém apresentado varias nuancas do mesmo frontispicio, da mesma igreja, de acordo com sua prépria arte e metodologia. Emil Brunner (2004, p. 14) afirmava que a esséncia da igreja do Novo Testamento era a comunhio com Cristo e o amor entre os crentes: Segundo ele © Corpo de Cristo nada mais é do que uma comu- nhao de pessoas. E a “comunhao de Jesus Cristo” ou “comunhio do Espirito Santo”, onde comunhao ou Koinonia significa uma participagéo comum, uma “condigao de estar juntos [togetherness], uma vida em comunidade. Para Brunner (2004, p.15), anatureza milagrosa e excepcional da Igreja é a uniao mistica com Cristo. A Igreja é o Corpo de Cristo. Nao deve, portanto, ser confundida com uma mera organizacao, ¢ 0 clero nao deve exercer sobre ela o mesmo dominio que um lider tem sobre uma instituicdo. Nessa perspectiva, 0 tedlogo dialético conside- rao derramamento do Espirito na festa de Pentecostes como 0 inicio da Igreja. A efusao do Espirito Santo é identificada estritamente com onascedouro da Igreja e ambos sao indissociaveis. Segundo o autor “no comego da historia da Ecclesia esta 0 mistério do Pentecoste” [sic] (Ibid., p. 15). O envio do Paracleto inaugura um novo comeco, entendido como misterioso e comunitdrio: “onde o Espirito esta’, afirma, “existe comunhio crista” (Ibid, p. 15). A Igreja nao surge por iniciativa humana, seja por um esforco individual, seja coletivo. Uma vez que a Igreja nao é produto do empreendimento humano, 0 Espirito Santo nao cria cargos por meio dos quais o lider governa, mas servicos através dos quais o lider serve (BENTHO, 24°V.2,N. 1 (2015) Revista o2.ndd. 24 1690672015 08:56:58 & 2010, p.15). Ea presenca de Cristo por meio de sua Palavra e de seu Espirito que torna a Igreja o que ela é. O Espirito Santo é o préprio félego de vida da Igrejae, portanto, ela ndo pode ser confundida com uma instituicdo sagrada, ou como numerus electorum (numeros dos eleitos), pois se trata do Corpo de Cristo (BRUNNER, 2004, p. 16). Se a Igreja deixar de ser Corpo de Cristo para se tornar uma mera organizacao, mesmo que sagrada, ela perde sua natureza, esséncia eidentidade para tornar-se “imagem e semelhanga de seus lideres”, de seu tempo e cultura. Em sintese, a natureza da Igreja como Corpo mistico de Cristo e habitacao do Espirito e o amor fraterno entre os crentes sdo os elementos que determinam a identidade da Igreja. A Igreja é 0 Corpo de Cristo e comunhao dos fi¢is, como também afirmard Pannenberg. Wolfhart Pannenberg (2009, p. 575) considera 0 Corpo de Cristo como 0 conceito mais profundo da natureza e identidade da Igreja. Para cle, esse corpo se realiza e se configura na celebracao da ceia do Senhor. A celebra¢ao da ceia do Senhor, afirma, “constitui a igreja como corpo de Cristo e, logo, como comunhio dos figis” (Ibid., & p. 575). Uma ver, que a santa ceia do Senhor nao é uma criagao da Igreja, mas uma instituicao de Jesus em que a anamnese e epiclese con- figuram-na, afirma Pannenberg: “A multidao dos que créem é igreja somente pela celebragao da ceia do Senhor, que os torna corpo de Cristo e assim uma congregacao da nova alianga” (Ibid., p. 415, 449). OSenhor presente na ceia é o mesmo que morreu na cruz, entretanto essa presenca se da por meio da meméria de Jesus, ao se encaminhar para a morte. Meméria, para o autor, é “atualizacao cultual na forma de celebragao” (Ibid., p. 419) que transita para a prece pela vinda do Senhor (maranatha:1Co 16.22) na comunhao da ceia como antecipagio do reino vindouro de Deus (Ibid., p. 434). A celebragao da santa ceia é vivificada pela presenca do Espirito Santo. Cristo est presente no culto de celebracao pascal por meio do Espirito (Mt 18.20); ndo unicamente pelo fato de o Espirito ser invocado (epiclese), mas sim, por ser Ele o que torna a anamnese eficaz. como forma de adoracao e servico a Jesus Cristo. De acordo com Pannenberg (2009, p. 449-453), a celebracao da ceia do Senhor sempre foi mais do que uma “peca axial” do culto dos primeiros cristos. Era tanto unidade mistica Revista Enfoque Teolégico “25 Fev aint 25 & 82015 ones & com Cristo e celebragdo da comunhio crista, quanto proclamagao publica da morte de Cristo perante os que ainda nao creem. Essa triade deveria constituir um sinal da esperanca pela consumacao da humanidade no reino de Deus, caso nao houvesse, como se verifica na histéria, 0 convicio. Por meio de cisées, pela intolerancia ¢ ambicao de poder de seu clero, mas também por adaptacdo ex- cessiva aos modismos cambiantes do mundo de um lado e por formas estreitas e coercitivas de devogao de outro, que permitem notar pouco do hilito liber- tador do Espirito, a igreja sempre de novo obstruiu a tarefa fundamentada em sua esséncia (Ibid., p. 434). Todavia, para o autor, esse sinal nao deixa de sé-lo pelas in- constancias e discérdias da Igreja. E a pregacdo do evangelho que renova aos membros 0 seu pertencimento a Jesus. A Igreja, Corpo de Cristo, é 0 verdadeiro povo de Deus, nao obstante a perda da esséncia identitaria das igrejas locais, nas muitas cis6es que as fragmentam. Mas, se a comunhao mistica com Cristo e a unidade dos cristaos em amor sao os elementos que constituem a identidade da Igreja; entéo podemos dizer que as igrejas perderam essa identidade ha muitos séculos e que ja nao estamos mais tratando de uma entidade unica, mas diversa (?). Ou se a unidade com Cristo é 0 que mantém a unidade entre os fiéis que participam da mesma mesa; entao, os convicios que marcam a histéria dessa organizagao sao um atentado direto a identidade e natureza dela, além de ser um forte testemunho contra a sua unidade mistica com Cristo (?). Mas a perda da natureza e identidade da Igreja nao a torna uma igreja apéstata? A Igreja foi constituida como uma comunidade fraterna para viver toda esséncia do amor trinitario, do Pai, Filho e Espirito Santo: “para que eles sejam um, assim como nés”; “a fim de que todos sejam um; e que, como tu, Pai, és em mim, e eu, em ti, também sejam eles em nés; para 26+ V. 2, N. 1 (2015) Revista o2.ndd. 26 1690672015 08:5700, & Revie o2.ndd. 27 que o mundo creia que tu me enviaste. Eu Ihes tenho dado a gléria que tu me tens dado, para que sejam um como nés somos um; eu neles, e tuem mim, para que sejam aperfeigoados em um; e para que o mun- do conhega que tu me enviaste e que tu os amaste, como também amaste a mim” (Jo 17.11,21-23 - TB). Karl Barth se ocupou mais especificamente com o ministério da igreja no mundo. De acordo com Barth, a igreja efetua sua missio mediante a palavra ea acao. O primeiro termo desse bindmio congrega amissdo querigmatica da igreja: pregacao, catequese, evangelizacao, missées, teologia e adoracao. O segundo concentra-se nas aces da igreja a favor da restauracdo completa do ser humano, como por exemplo, a diaconia, a intercessao, e a acao profética da igreja no mundo (BENTHO, 2010, p.15). Para ele, a igreja é distinta de toda e qualquer instituicao ou organizacao humana e social. A igreja é distinta de todas estas associacées. Ela é © communio sanctorum. Ela nao se coloca ou se en- quadra em nenhuma das varias formas e objetivos destas outras associagées. Ela nao esta confinada dentro de seus limites e nem envolvida em suas miituas oposicées. Suas préprias fronteiras passam direto pelas provincias destas outras associacées. Dentro da estrutura destas outras associacées, nas quais ela existe, e, em face dos varios interesses pelos quais estas associagées sio mantidas, ela tem seus préprios interesses os quais sio sempre e, em todos os lugares, os mesmos (BARTH, 2010 p.136). A identidade da Igreja de Cristo estd também em sua catoli- cidade, Absoltamente nada, seja vinculo com um povo, um estado, uma cultura, deve causar, segundo Barth, 0 esquecimento de que a Igreja é catholica. A universalidade da Igreja e de sua identidade espiritual com Cristo atravessa, perpassa, avanca as instituigdes e Revista Enfoque Teolégico “27 1690672015 08:5700, & organizag6es. Se a Igreja for socialmente condicionada e limitada aos aspectos das estruturas das organizacoes da sociedade e viver com as mesmas motivacées de poder, dominacao, ela deixa de ser sancta e até mesmo de ser ecclesia. Diz Barth (Ibid., p. 136), “ela é até mesmo ecclesia, apenas onde ela é em esséncia e em vontade decisivamente catholica” (grifos nosso). Tudo o mais que é possivel para ela ser ou desejar, afirma o tedlogo dialético, “vem, fundamentalmente, e somente podera vir depois disso” (Ibid., p. 136). Por conseguinte, 0 rétulo denominacional da organizagao eclesiastica é de importancia infima, considerando a natureza santa e catélica da ekklésia. A razao pela qual Barth pée a Igreja acima das organizacées e instituicdes terrenais é a sua fundacao por meio do transbordamento do Espirito Santo sobre os apéstolos no Pentecostes. Ela nao foi fundada pela genialidade de individuos, muito menos pelo entusiasmo e instinto das massas. Ninguém foi dotado com habilidade para construi-la ou Ihe foi perguntado como desejaria que fosse a natureza da Igreja. E 0 ato do Jesus Cristo exaltado Que deu-Se a Si proprio dando a eles o Seu Espirito, que torna a Igreja um fato, um acontecimento entre os homens e que faz dela um acontecimento na forma de uma assembléia e comunidade humana, de um lugar no cendrio humano, formado e encenado por homens, um pedaco da historia humana (Ibid., p. 137). A semelhanga de J. Moltmann, Barth acreditava que a igreja 6 a comunidade de Deus quando é comunidade para o mundo. O que justifica a existéncia da igreja no mundo é o cumprimento da missdo que Deus a delegou para cumprir. Se a igreja ndo cumprir © mandato de Cristo, deixara de ser 0 seu corpo glorioso e tornar- se-A mera organizagao. Se cumprir parcialmente sua misao, jamais desfrutara da esséncia de sua natureza e identidade. Jiirgen Moltmann, patrono da teologia da esperanca e da teo- logia da cruz, justificara que a natureza ea funcao da igreja ocorrem no entrecruzamento de sua identidade com Cristo, na obediéncia & 28-V. 2, N. 1 (2015) Revista 02.ndd. 28 1690672015 08:5700, & missdo, na apostolicidade, e na praxis crista nas areas politica, eco- némica, educacional e cultural. A igreja é agente de transformagao espiritual e social e, segundo Moltmann (2003, p.382), “A ‘evidéncia’ teoldgica da fé crista esta sempre em relagao com as ‘evidéncias’ sociais”. A “evidéncia” teoldgica da fé crista esta sempre em relacdo com as “evidéncias” sociais. Somente quan- do esta correlagao é, pela critica, elevada até o nivel da consciéncia, desfaz-se a simbiose, e entio pode ser expresso 0 que é proprio do Cristianismo e da £6 crista, no conflito com as evidéncias sociais. Se 0 Cristianismo quer e deve ser outra coisa, segundo a vontade de Cristo, em quem cré e a quem espera, deve tentar nada menos do que irromper para fora desses papéis sociais assim fixados. Devera mostrar um comportamento nao conforme os papéis que Ihe do designados. Eis 0 conflito que ¢ imposto a cada cristo e a cada pastor (Ibid., p.382). A Igreja deve participar da vida da sociedade e a teologia nao pode ser alienada e alienante. Todavia, a funcao da Igreja nao pode ser limitada as tarefas sociais, filantropicas e assistenciais como de- seja a sociedade moderna, pois, segundo o autor, essas tarefas so secundarias e marginais, e nao correspondem a identidade, funcao e natureza da igreja neotestamentaria (Ibid., p.382). E imperativo que a Igreja participe da vida da sociedade, mas ao fazé-lo nao necessita assumir o papel social que Ihe ¢ imposta, pois assim, negaria sua fungio ¢ identidade apostélica. Quais, no entanto, s4o os papéis subjetivos que a sociedade reclama & Igreja? Alonso Goncalves, escrevendo a respeito da pastoral de José Comblin e sua interface com a eclesiologia de Moltmann delineia alguns perfis identitarios, Vejamos: 1) a igreja-subjetividade: a cosmologia cedeu lugar & metafisica subjetiva. O salvamento depende da Revista Enfoque Teolégico “29 Revista 02.ndd. 29 1690672015 08:5700, & interiorizagao do transcendente. Ha um isolamento social de quem encontra esta religido subjetioa ea fé passa a nao ter nenhuma consequéncia pratica para o préximo. O que conta é 0 sentimento de eternidade garantida e os desejos existenciais e de consumo, atendidos; 2) a igreja-solidariedade: ligada a pe- quenos grupos, a igreja funciona como uma arca de Noé. Ela aliena e acrisola as pessoas das situacdes sociais. A integracao a uma igreja é compensatéria porque concede privacdes sociais ao individuo que vive em uma sociedade secular. O grupo é fechado em si mesmo e nao produz nenhum compromisso social, tornando ineficiente o amor cristo para com a sociedade; 3) a igreja-instituicdo: é 0 retorno do velho jeito Constantino de ser igreja. A este tipo de comunidade cabem as regras, os padrées de com- portamentos. Afinal de contas, a igreja institui¢o confere seguranca em tempos inseguros porque diz em que se cré e como cré. Permite ainda aquela sen- sacdo de certeza e de caminho certo, além é claro, de produzir um sentimento de agraciado por estar ali e sentir, ao mesmo tempo, uma leve pena de quem nao se encontra no lado de ca da fronteira (2009. Disponivel em: . Acesso em 26 abr.2011.) Ao desempenhar sua missdo, a Igreja convoca os homens ao au- toconhecimento que, na Biblia, se verifica frente ao chamamento divino e 4 missdo vinda de Deus, a qual o homem sente-se incapaz de realizar. Em face desta vocagao, o homem conhece nao apenas a si mesmo, mas também a sua culpa e a “impossibilidade da prépria exist&ncia em vista das possibilidades exigidas pela missao divina” (MOLTMANN, 2003, p.338) Aigreja, assim compreendida, é a expresso do reino de Deus somente quando assume sua fungdo querigmatica para o mundo, gor V.2,N. 1 (2015) Revista 02.84.30 1690672015 08:5700, & anunciando, sobretudo a esperanca confirmada pela ressurreicao de Jesus, o Cristo (Ibid., p. 256-266). “A promissio do reino fundamenta a missio do amor no mundo” (Ibid., p. 256), afirma. Assim, o mundo se torna o espaco sagrado da igreja (Ibid., p. 256), e a Teologia um ato missionario, como sugere Zabatiero (2011, p. 17). Se o chamamento do Evangelho se faz “em publico”, afirma Moltmann, a igreja também deve apresentar “em puiblico a sua esperanca no futuro do homem” (MOLTMANN, 2003, p.340). Milton Santos (2009, p. 32,33) salienta que o espaco ea estrutura sociais acarretam um movimento paradoxal de aproximar e separar os homens, as “cidades crescem, a distancia entre os homens aumenta”, tal distanciamento acarrteta conflitos e antagonismos. Neste aspecto, a Igreja nao deve se amalgamar a sociedade, muito menos ser reco- nhecida t4o-somente como “casa de misericérdia’, como pretende o mundo moderno. Para cumprir a sua missdo a igreja precisa, através da mensagem do reino de Deus, superar os antagonismos de nosso tempo (juustiga/injustica; guerra/paz; religido/laicizagao; tradigéo/mo- dernidade; ricos/pobres; sujeito/coisificagao; dominagao/dominados, etc.). Morin, assim como muitos outros observadores sociais, esta cénscio que a mundializacao é unificadora, mas também conflituosa em sua esséncia: “O mundo torna-se uno, mas ao mesmo tempo, cada vez mais dividido” (MORIN, 2002, p.69). Enesse contexto antagénico € conflituoso que Moltmann entende que a igreja deve cumprir sua missio vocacional, intrinsecamente relacionada ao conceito reformado de “presencialidade” paradoxal do reino de Deus. Os reformadores diziam que o reino de Deus estava tectum sub cruce et sub contrario. Com isto se queria dizer que neste mundo o reino de Deus estava oculto sob 0 seu contrario: sua liberdade na contradicao, sua felicidade sob os sofrimentos, sua justica sob as injusticas, sua onipoténcia sob a fraqueza, sua gléria na ignominia. Assim o reino de Deus era reconhecido sob a forma do Crucificado (MOLTMANN, 2003, p. 264,265). Revista Enfoque Teolégico “31 Revista 02.084 34 1690672015 08:5700, & Todavia, o reino de Deus nao é consumado nessa forma pa- radoxal de “presencialidade”, mas é a esperanca da ressurreicao, a missdo de Cristo, a fome pela justica, a sede pela verdadeira vida que introduz o cristo no sofrimento, na fraqueza e na ignominia. A promessa do reino de Deus ¢ inclusiva e fundamenta a missao do amor no mundo. A GUISA DE UMA CONCLUSAO Verificamos que a Igreja esta inserida em uma sociedade liqui- dae reflexa, cuja identidade dos grupos sociais é afetada constante- mente pelas transformagées da cultura e das relacdes sociais. Essas mudangas perpassam as identidades dos grupos sociais, dos quais a igreja local, institucional, nao est imune. Infelizmente, a identidade da Igreja vem sendo interpretada como se fossem as tradigdes, a cultura e axiologia do grupo social, em vez de ser compreendida em suas bases biblicas fundantes e neotestamentaria. Como as tradigé eculturas so remodeladas na modernidade liquida, as igrejas enten- dem que esse processo de mudanga das suas tradigdes e cultura é que constitui a perda de sua autenticidade e identidade neotestamentaria. Ledo engano. Os aspectos culturais e tradicionais observaveis das denominagées cristas brasileiras formaram-se no emaranhamento de sua época histérica com as lutas pelo poder interno, hermenéutica e interpretagdo da realidade e seu lugar na sociedade - elementos sujeitos naturalmente a transformagées e reinterpretacées. Lamen- tavelmente, a visio da identidade da igreja moderna é vista em seu aspecto mais infimo e voliivel, o externo. Porém, a identidade da Igreja, como se apresenta nas pagi nas do Novo Testamento, nao se confunde com a cultura do grupo religioso e muito menos tem o intuito de a ratificar. As igrejas dos gentios (ou paulinas), como ja descrito em nossa obra Igreja Identidade e Simbolos, mostram que os padrées culturais e litiirgicos nao séo rigidos e, muito embora, contribuam com a imagem identitaria das igrejas em certo momento hist6rico, nao se constituem originalmente a verdadeira identidade do Corpo de Cristo. As grejas da atualidade, com suas configuragées organizacio- ye°V.2,N. 1 (2015) Revista o2.ndd. 32 1690672015 08:5700, & nais e transformacées internas, sao, portanto, excelentes exemplos das teorias sociais de Bauman e Giddens. Se nao é muito facil tragar um perfil da igreja no periodo dureo da cristianizacao do império romano, imagine agora quando o Cristianismo, como afirma Libanio (2006, p. 20), “se eclesializa em muitas express6es diferentes”, e cada igreja “tende a definir-se e contradistinguir-se das outras”. Contudo, essa distingdo eclesiastica, considerando-a negativa- mente, no é saudavel, uma vez que segue a légica de mercado e da ideologia dominante e 0 sagrado se torna mais um artigo de consumo no variado mercado religioso contemporaneo. Mesmo assim, apesar da contradico, cada igreja alega estar comprometida com a tradicao histérica do Cristianismo e que mantém a identidade da Igreja de Cristo ou do Novo Testamento. Fica claro para aquele que conhece minimamente a histéria da Igreja Crista, que a Igreja Catdlica e as igrejas oriundas da Reforma constituem os dois principais ramos do Cristianismo no Ocidente. A partir dessas duas vertentes é que se formaram e se estabeleceram subdivisées que acentuaram suas idiossincrasias e, para isso, como afirma Libanio, “recorrem ao termo Igreja para traduzir a propria instituigdo confessional catélica ou protestante” (Ibid., p.19). Com o desenvolvimento da prépria histéria, as igrejas sio multiplicadas, possuindo “contornos doutrinais, juridico-institucionais e de praticas religiosas” peculiares (Ibid., p.19). Isto posto, esse “pertencimento” a tradicao histérica crista que remonta até Atos 2, propalado por varias subdivisées do pro- testantismo - que nem mesmo os postulados da Reforma mantém -, precisa ser relido’, fi claro, por exemplo, que o pentecostalismo classico procede de matrizes Protestantes, presbiterianas e batistas, no entanto, foi repetidamente combatido tanto por eles quanto por catélicos. Como interpretaram Weber e Berger, 0 protestantismo 5 Observe que muitas subdivisdes do Cristianismo usaram o discurso de reestabelecer as origens histéricas da igreja crista; até mesmo Kardec afirmou que o espiritismo, a io, corrigiu a segunda Revelacdo que foi dada a Jesus Cristo e, que esta iiltima, superou a primeira, o Antigo Testamento. Ver KARDEC, A. Génese. Rio de Janeiro: FEB, 1985, p.24; COSTA, J. M. Porque Deus condena o espiritismo. 12. ed., Rio de Janeiro: CPAD, 2003, p.88. Revista Enfoque Teolégico “33 Revista 02.ndd. 39 1690672015 08:5700, & desencantara o mundo, reduzindo-o a comunicagao entre o sagrado eo homem, por meio da oracdo e da Biblia, mas o pentecostalismo reencantou o mundo, recuperando as dimensées, emocional e pes- soal através da experiéncia com o sagrado por meio dos carismas espirituais (NEGRAO, 1984, p.30). Nesse contexto, as igrejas pentecostais eram consideradas seitas, no sentido mais pejorativo do termo, e, portanto, sua doutrina uma heresia que devia ser rejeitada e seu estabelecimento combatido. Os pioneiros pentecostais, pelo contrario consideravam-se agentes divinos para reestabelecer o cristianismo apostélico, muito embora 0s protestantes pensassem de modo distinto. Passados cem anos de fundagao do pentecostalismo brasileiro, embora as diferengas ainda persistam, existe certa tolerancia e, nalgumas vezes, cooperacao entre as igrejas protestantes e pentecostais classicas, como a Assembleia de Deus. Durante esse periodo, o proprio pentecostalismo se dividiu em varios outros movimentos ¢, desses, outros grupos se formaram, com 0 desejo de voltar as origens do movimento ou nao. Oliva (2007, p. 126-7) faz uma reflexao agucada a respeito das tipologias ou classificagdes dessas subdivisées do pentecostalismo, passando pelas definicdes de Mendonca, Freston, Campos, Siepierski e Mariano, a qual remetemos o leitor. Porém, importa-nos 0 fato de que tais tipologias acentuam certos graus de afastamento da teo- logia, da historia denominacional, das estruturas organizacionais, dos aspectos litirgicos e da origem social dos crentes. Interessante €0 fato de que as igrejas pentecostais classicas, Assembleia de Deus e Congregacao Crista no Brasil, assim classificadas por Mendonca e Siepierski, possuem identidades teoldgicas, litirgicas e adminis trativas completamente diferentes, embora recebam a mesma clas sificagao. Claro que se trata de uma tipologia que procura destacar 0 pioneirismo do movimento pentecostal no Brasil, entretanto, ndo apresenta a abissal diferenca identitaria entre elas. Portanto, considerando o ponto de vista exposto, essa rotula- cdo, apesar de cumprir ainda uma importante fungao metodolégica, pode ser revisada, levando em consideragdo no apenas o tempo histérico, mas também o tempo axial. Contudo, a definigdo de Siepierski de “pentecostalismo neoclassico”, no lugar da tipologia 34°V.2,N. 1 (2015) Revista 02.ndd. 34 1690672015 08:5700, & “segunda onda” (Freston), “agéncia de cura” (Mendonca) e “deute- ropentecostalismo” (Mariano), mantém a identidade dessas igrejas pentecostais neoclassicas com o classic, embora acentue a mudanca de énfase teolégica, caracterizada pelo deslocamento da doutrina do batismo no Espirito Santo para enfatizar a cura divina (SIEPIERSKI, 1997, p. 47-61.). Mesmo diante desse complexo processo de passagem as di- ferencas nao anulam as caracteristicas identitarias. Ja no lugar da classificagdo de “terceira onda” (Freston) e “neopentecostalismo” (Mariano), Siepierski (1997, p. 47-61) adota pés-pentecostalismo pelo fato de considerar que esse movimento 6 uma ruptura (pés) com 0 pentecostalismo e nao uma continuidade (neo) do pentecostalismo; entretanto, Mariano discorda. Segundo ele 0 “prefixo neo é adequado justamente por implicar continuidade e, ao mesmo tempo, novi- dade e mudanca”. Para Mariano (1999, p.23,33,36), 0 prefixo pds ¢ inadequado, uma ver, que as igrejas neopentecostais mantém certas caracteristicas que a identificam com o movimento, embora acarrete em mudancas ¢ novidades. Todavia, colocamo-nos mais a favor da teoria de Siepierski do que a de Mariano. Cada vez mais nos circulos do pentecostalismo classico assembleiano, os autores e periédicos pentecostais recha- cavam as igrejas pés-pentecostais, combatendo suas doutrinas (ou a falta delas) e praticas liturgicas sincréticas, para nao serem iden- tificados, confundidos ou semelhados a elas. Até mesmo as igrejas Assembleias de Deus que mimetizam as praticas liturgicas e dou- trinarias das igrejas pés-pentecostais sao aconselhadas a deixarem essas “inovacées”, entendidas como falta de respeito e bom senso com a denominacao. A resolugao do 5° Elad de 1999, realizado no Rio de Janeiro, por exemplo, afirmava a respeito: “Quem procura imitar esses movimentos nao se identifica com a nossa denominagao enem com a deles” §. Assim, 0 Brasil Catdlico e Protestante, que também © A resolugio da o seguinte parece a respeito da liturgia e doutrinas neopentecostais: “Nao é necessario copiar, Nés somos pentecostais classicos. Isso significa que somos modelos para os outros. Sao eles, portanto, que devem aprender com as Assembleias de Deus ¢ nao nés com eles, em matéria de doutrina pentecostal. E muita falta de bom senso e de respeito para com nossa denominagao copiar de grupos neopentecostais, que Revista Enfoque Teolégico 35 Revista o2.ndd. 35 1690672015 08:5700, & se rotula como um dos mais kardecistas, paulatinamente tornou-se pentecostalizado. Um dos pontos distintivos mais significativos do movimento pentecostal em relagio aos herdeiros mais diretos da tradigdo da Reforma é a religiosidade popular que se incrusta no amago do pentecostalismo. Bruneau (1979, p.38, 39) distingue religiao e religiosidade, como sendo a primeira “o conjunto de crencas praticadas e pro- duzidas pela ortodoxia da Igreja”, e a segunda, “como as praticas e crengas religiosas do povo”. Ha, por conseguinte, uma oposicao entre a religiao oficial e a religiosidade popular. A religiao oficial é representada pelas elites, que conota a ideia de exceléncia, enquanto a religiosidade popular, 0 conceito de “vulgaridade e pobreza, de coisas curiosas, supersticiosas e grosseiras”, como sugere Bruneau (Ibid., p.38). Entre as caracteristicas da religiosidade popular acen- tuadas por Brandao, encontram-se: (1) 0 fato de o leigo ocupar papel central, enquanto o especialista, secundario; (2) perda relativa da importancia do sacramental frente ao devocional; (3) manipulacao do sagrado com finalidades pragmaticas; e (4) solucées praticas dos problemas do cotidiano, seguida de seguranga adicional frente ao esforco material (NEGRAO, 1984, p.33). Essa religiosidade est incrustada no amago dos movimentos pentecostalistas. Destaca-se, sobretudo, a autonomia que o sujeito religioso possui para remodelar sua fé a parte do discurso oficial, a fim de propor solucées a situagdes cotidianas nem sempre contempladas pela instituicao religiosa. As sim, como expés Michel de Certeau (2005, p.11), 0 sujeito religioso modifica a economia cultural, dando-Ihe nova configuragao para dar conta dos conflitos cotidianos. Contudo, tais caracteristicas, até sequer sabemos quem sao, nem de onde vém ¢ nem para onde vio. Com a avalanche de igrejas neopentecostais, liturgias e crengas para todos os gostos tém levado alguns de nossos lideres a se fascinarem por esses movimentos, imitando ¢ copiando seu sistema liningico. Ora, quem pertence a nossa igreja ndo esta enganado, sio crentes que sabem © que querem, que conhecem nossa doutrina, tradigdo, usos e costumes ¢ com a nossa forma de adoragio. E também correto afirmar que a maioria se sente bem em nossos cultos de adoragao a Deus [....] Quem procura imitar esses movimentos nio se identi- fica com a nossa denominagao e nem com a deles [...]”. Ver DANTE] Histéria da Convensio Geral das Assembleias de Deus no Brasil: os principais lideres, debates ¢ resolugdes do drgo que moldou a face do Movimento Pentecostal Brasileiro. Rio de Janeiro: CPAD, 2004, p. 583. 36-V.2,N. 1 (2015) Revista o2.ndd. 96 1690672015 08:5700, & entao dependentes da a¢ao do sujeito religioso, foram instituciona- lizadas pelos pés-pentecostalistas, através do sincretismo litiirgico, que enfatiza a manipulagao do sagrado, a substituigao da religiao pela magia e da transcendéncia pela imanéncia. Portanto, como falar da identidade da Igreja se ela configu- ra na histdria como uma instituicao multicultural e de identidade distinta e variada? Ela pode ser multilingue, mas deve falar a tinica lingua do amor. Ela se apresenta com muitos lideres, mas somente um é a Cabega de todo o Corpo. A Igreja de Cristo é uma sé, mas se configura em muitas expressdes diferentes dela. Ela nao é uma instituigao humana, mas é o povo de Deus, a comunidade salvifica do Novo Testamento, cuja missao e vocacao nao se confundem com 08 oficios sociais que a sociedade e a histéria Ihe impéem, mas estdo acima deles, no os excluem, apenas os transcendem. Ela é a Igreja de Deus. REFERENCIAS AZEVEDO, M. Entroncamentos & entrechoques: vivendo a fé em um mundo plural. So Paulo: Edigdes Loyola, 1991, Cristianismo e Modernidade 3. BARTH, K. Carta aos Romanos. Sao Paulo: Editora Crista Novo Século, 2003, 1.2 Parte. ___. Credo: comentario ao credo apostélico. So Paulo: Fonte Editorial, 2010. BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BENTHO, E. C. Igreja identidade & simbolos. Rio de Janeiro: CPAD, 2010. BOCK, A. M. B. (et al). Psicologias: uma introdugao ao estudo de psicologia. 13.ed., Sao Paulo: Editora Saraiva, 2000. Revista Enfoque Teolégico * 37 Feta aint 97 & 182015 085700 | za | ® iia | BORNHEI, G. A. 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