Introdução
Como nota preliminar, um exame mais profundo fica fora de cogitação pela
limitação de espaço e pela extensão da análise necessária. O objetivo deste texto é mais
3 Além da importância do conjunto destes autores em assinalar a variação dos arranjos históricos e culturais de
épocas ou culturas, chamaria a atenção para dois trabalhos em especial: O espírito das Leis, de Montesquieu, e
Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano, de Condorcet. Estas duas obras
reconheceram o papel que a ação humana produzira nos sistemas sociais e na História, que, em Condorcet,
traduzem-se na inédita ideia de progresso.
da Verdade pelo conceito político de ideologia. Assim, ao invés de serem expressões do Ser ou
da Razão transcendental a ciência e seus produtos apareciam rebaixados a um mero
instrumento de alienação, mistificação e engano. Marx, no conjunto de sua tese sobre o
materialismo dialético, formulou a determinação das relações materiais sobre o campo das
ideias, desvelando também a sua função política: a dominação de uma classe sobre a outra. A
partir da tese marxista o termo ideologia ficaria revestido da aura de falsificação, que
permaneceria fortemente ligada à palavra até hoje.
A aceitação de que um mesmo fato pudesse ter duas ou mais explicações possíveis
promoveu uma seríssima crise na tarefa do conhecimento - momento tão importante quanto
aquele que três séculos antes, com a Reforma Protestante, havia abalado os pilares do
teocentrismo. A Reforma foi produtora de ruptura insuperável ao criar uma situação de
controvérsia e de disputa entre um Deus católico e outro protestante, possibilitando a invocação
da argumentação racional ou adesão eletiva como fundamento da fé. Da mesma maneira que a
Reforma, o conceito de ideologia é disruptivo de toda uma engenharia mental e política
ancorada na busca de uma explicação universal e atemporal distante das transformações da
existência. Suspeitar da validade do conceito de Verdade e de Ciência por conta de sua dupla
determinação histórica deitou por terra a legitimidade do argumento racionalista moderno de
uma tese “verdadeira sobre o real”, impondo limites à autonomia do pensamento. A dúvida
cartesiana encontrara um outro tipo de demônio: o da historicização do Sujeito, da cognição e
da consciência. Ao mesmo tempo estabeleceu como novo dilema intelectual o problema da
produção do conhecimento seguro, partindo do pressuposto da mudança temporal constante e
da condição epocal e imanente dos métodos, objetos e valores do trabalho intelectual.
Mas como definir o corpus específico desta teoria que muitas vezes se confunde
com a própria área das Ciências Sociais, dado que seu princípio estruturante é o axioma do
socialmente determinado?
4 Cf. Merton (1967), Wirth (1968), Foracchi (1982), Machado Neto (1979) e Villas-Boas (2006).
formação dos estilos de pensamento de cada época e de seus portadores sociais (grupo). Em
termos cronológicos esse movimento de inclinação ao método sociológico combina textos
como A análise estrutural da teoria do conhecimento (1922), Ensaio sobre a interpretação da
weltanschauung (1923), Historicismo (1924), O Problema da Sociologia do Conhecimento
(1925), Pensamento conservador (1927), O problema das gerações (1927), A competição
como fenômeno cultural (1929) e seu ápice conceitual aparece em Ideologia e Utopia (1929) e
em Essays on the sociology of culture (1932).
Mesmo não sendo objeto da análise deste trabalho é válido ressaltar a significativa
influência que a sociologia de Mannheim teve no Brasil. Podem ser assinaladas duas formas da
recepção de sua obra: a circulação rápida de suas teses nos manuais de sociologia dos anos de
1960 e 1970 e a presença do argumento mannheimiano (quer da Sociologia do Conhecimento,
quer do planejamento racional da mudança social) no momento áureo do
nacional-desenvolvimentismo.
5 Ver trabalho de Glaucia Villas Boas em A recepção da sociologia alemã no Brasil (2006).
auto-realização. A orientação da ação e a definição de papéis e funções só podem ocorrer com
a criação de identidade e código de valores de um grupo entendido como tal e, em sua gênese,
mediatizados na concorrência com outros grupos e ideologias. Em um complexo, no qual as
identidades e lugares sociais são construídos em parte pelas formas de representação, as
ideologias são momentos existenciais da ratio social. Portanto, muito mais que um resultado,
elas são centrais na produção do mundo social, principalmente pela capacidade de renovação
do sistema por concorrência e atualização.
2) por sua vez, a ideologia que revela a síntese dos conflitos na produção do
pensamento social através da uma variada cadeia de ideologias parciais, ideologia total,
mentalidade, estilo de pensamento e constelação6, é também o meio de sua apreensão. Analisar
os mecanismos de geração das ideologias e utopias é forma eficiente (e única) de apreender os
nexos entre as formulações mentais e a ação social concreta. Se no primeiro momento a
ideologia é uma forma do “ser” social, aqui ela é episteme, método de seu entendimento.
7 As lutas entre projetos políticos concorrentes no marco da sociedade moderna aconteceram, em seu início, em
todas as manifestações das chamadas revoluções burguesas: Revolução Gloriosa Inglesa, Revolução Francesa e
federalismo norte-americano. A formação de paradigmas científicos – lembrando o peso que as explicações dadas
com a chancela de “ciência” exerceram no mundo ocidental desde o século XVI – obedece ao mesmo princípio da
luta entre escolas de pensamento concorrentes – idealismo, niilismo, romantismo, materialismo, historicismo,
estruturalismo, hermenêutica, relativismo, etc. Em termos da economia política: liberalismo, comunismo e
Homens vivendo em grupo não apenas coexistem fisicamente enquanto
indivíduos distintos. Não se confrontam os objetos do mundo a partir de
níveis abstratos de uma mente contemplativa em si, nem tampouco o
fazem enquanto seres solitários. Pelo contrário, agem uns contra os
outros, em grupos diversamente organizados e enquanto agem, estas
pessoas reunidas [se empenham em] transformar o mundo da natureza e
da sociedade a sua volta ou então tentam mantê-lo em uma dada
situação. (MANNHEIM, 1968, p. 32)
No entanto, nem o indivíduo é expressão passiva das ideações coletivas, nem esta
seria a somatória das múltiplas convicções pessoais, pois há uma síntese do complexo processo
combinatório do todo social interligado. Um exemplo claro dessa tese é apresentada por
Mannheim em O problema das gerações. Nesse trabalho, a ideia central é demonstrar como a
mudança social ocorre pela interação de diferentes indivíduos dispostos no eixo diacrônico pela
sucessão das gerações, que funcionam como elos de uma cadeia. As gerações recebem um
acervo histórico, com padrões intelectuais e valorativos, a partir do qual são educadas, porém
ao fazê-lo, em um instante posterior do tempo e sob novas condições e dilemas, procedem à
atualização deste legado:
8 Note-se que estes termos adquirem agora significados absolutamente novos, libertos de conteúdos teleológicos
ou messiânicos. Ideologia e Utopia são, para Mannheim, momentos da construção das sínteses sociais. Sua
valoração precisaria ser feita na análise de seus conteúdos e não de suas formas.
combinadas, alinhando sempre interno/externo, atores maiores e menores, sinergia e
estabilidade. A relação interno/externo expressa o processo global da identidade ideológica
anelando indivíduo à visão de mundo do seu grupo social (atores e mentalidade do grupo). A
metáfora sobre atores maiores e menores tenta explicar a relação que os grupos particulares
têm com o sistema (e neste mesmo processo, com outros grupos em situação de confronto ou
não, dotados de melhores condições/recursos de disputa). Sinergia é a lógica da mudança social
do sistema, movida pelos indivíduos, grupo, grupos em conflito, e resultado geral da
constelação. A mentalidade que subjaz e aparece expressa em grandes parcelas sociais pode ser
denominada de estilo de pensamento.
Conforme anteriormente abordado neste trabalho, há dois aspectos que devem ser
levados em consideração ao se tentar definir os conceitos de ideologia e de utopia em
Mannheim: conflito e constelação. O primeiro tema refere-se à tensão entre mudança (utopia),
manutenção (ideologia) e a forma pela qual os grupos sociais em disputa movimentam suas
posições no tabuleiro das definições das regras e dos valores sociais.
Podemos pensar que no primeiro polo estaria Julien Benda, com o famoso trabalho
A traição dos intelectuais e no outro extremo Lenin, com a concepção militante das lideranças
organizadoras do proletariado, desenvolvidas em obras como O que fazer e O Estado e a
Revolução. Entre os dois extremos, várias mediações: a concepção menos “elitista ou
vanguardista” de ciência (mas ainda como praxis revolucionária) desenvolvida por Gramsci em
Os intelectuais e a organização da cultura e O moderno príncipe, com sua tese central de
intelectualidade orgânica e a tese mannheimiana da intelligentsia, cujo foco é pragmático, mas
isento de categorias teleológicas. Este debate abrange muitas outras contribuições
extremamente significativas como a questão da objetividade e da neutralidade axiológica em
Weber, o problema da legitimação de valores e de leis científicas inter-pares de Merton, a
diferença entre técnico e intelectual em Sartre, os aspectos elitistas em Ortega Y Gasset e a
crise de paradigmas em Thomas Kuhn9. Ou ainda o tema da conversão do conhecimento em
capital estratégico elaborada por J. Schumpeter no início da década de 191010.
9Refiro-me aqui aos seguintes trabalhos dos autores citados: WEBER no texto O sentido da “neutralidade
axiológica” nas ciências sociais e econômicas (1982); MERTON no estudo Teoria y estructura social. (1992);
SARTRE na obra Em defesa dos intelectuais (1972) e KUHN no livro Estrutura das revoluções científicas (1996).
10 Cf. SCHUMPETER em Teoria do desenvolvimento econômico (1982).
É desta Os intelectuais podem se constituir em importantes atores na conversão das
ideologias parciais em Ideologia Total. Colaboram nesta tarefa a expertise, o treinamento
técnico no reconhecimento e apreensão dos múltiplos pontos de vista, o foco ajustado para a
produção de explicações gerais que caracteriza este segmento social:
Cabe aqui uma ressalva importante: a ideia de “síntese” impede, por princípio, a
falsa impressão de que os intelectuais sejam entendidos como uma casta acima dos indivíduos
comuns e de que as teorias científicas possuam um status de poder diferencial. Se é síntese, a
origem e a causalidade encontram-se nos complexos sociais e não na mente dos intelectuais.
Na concepção de Mannheim esses se equiparariam mais à imagem de tradutores que procuram
criar uma linguagem comum a partir de inúmeros dialetos. Da mesma maneira, a ciência
também pode, a partir da detecção dos elementos comuns da constelação e à construção de
uma síntese explicativa, revelar uma situação, mas não criá-la ex nihilo. Nos textos em que
Mannheim trata a questão do planejamento social como forma de realizar a tarefa pragmática
de uma ciência imersa no mundo, o meio de controle de qualquer possível exorbitância técnica
ou tecnocrática é impedida pelo recurso à fórmula democrática.
Para resumir o tema, pergunta-se: quem são os intelectuais para Mannheim? São
aqueles elementos recrutados na diversidade social e treinados para a tarefa da comparação
entre cosmovisões, valores e modalidades ontológicas diversas. Os especialistas em
compreender o plural, esforçando-se por buscar as sínteses explicativas. E por intelligentsia
Mannheim definiria os grupos sociais cuja tarefa específica consiste em dotar aquela
sociedade de uma interpretação de mundo (MANNHEIM, 1968, p. 38).
Conclusão
A obra de Mannheim, de grande circulação e repercussão nas Ciências Sociais
brasileiras entre as décadas de 1950 e 1970, nos últimos anos tem sido, talvez, citada em
volume muito maior do que seriamente estudada. Pesa em favor desse argumento a aceitação
geral do pressuposto que a sustenta – as origens sociais de toda forma de pensamento,
incluindo o reflexivo. No entanto, há ainda nas várias ondas da produção intelectual de
Mannheim temas pouco incorporados e importantes, como o método de pesquisa. A questão do
historicismo, em sua capacidade de desvendamento da estrutura íntima de constelação social,
continua como ferramenta útil para analisar como se formam os complexos mentais e
hegemônicos de uma sociedade ou de uma época. Ideias, instituições, correntes, escolas,
consensos, etc, não podem prescindir dessa contribuição para a explicitação das relações e dos
nexos que associam complexos ideacionais à processos políticos e sociais.
BENDA, Julien. A traição dos intelectuais. São Paulo: Peixoto Neto, 2007.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1996.
LENIN, W. Ilyich. O Estado e a Revolução. In Obras Escolhidas. (volume 3). Lisboa: Edições
Avante, 1985.
________________. Que fazer. In Obras Escolhidas. (volume 1). São Paulo: Alfa-Ômega,
1980.
ORTEGA y GASSET, José. La rebelión de las masas. Madrid, Revista de Occidente, 1956.
PEREIRA, Luiz; FORACCHI, M.. Educação e sociedade. São Paulo: Cia Editora Nacional,
1978.
WEBER, Max, O sentido da “neutralidade axiológica” nas ciências sociais e econômicas. In:
Sobre a teoria das Ciências Sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1982.
WIRTH, Louis. Introdução in Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.