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19/03/2018 Desobediências político-epistêmicas de movimentos indígenas no Brasil e na Bolívia como aprendizagens contra-hegemônicas

Revista Crítica de Ciências


Sociais
114 | 2017 :
Número semitemático
Dossier "Alice: aprendizagens globais"

Desobediências político-
epistêmicas de movimentos
indígenas no Brasil e na Bolívia
como aprendizagens contra-
*
hegemônicas
Political and Epistemological Disob edience of Indigenous Movements in Brazil and Bolivia as Counter-
Hegemonic Learning
Désob éissances politico-épistémiques de mouvements indigènes au Brésil et en Bolivie comme
apprentissages contre-hégémoniques

MAURÍCIO HIROAKI HASHIZUME


p. 187-206

Resumos
Português English Français
Perduram por quase um século as contribuições teórico-políticas de Antonio Gram sci, em
especial no sentido das definições e das interpretações em torno da noção de hegem onia –
com binação de relações de poderes que se sustenta fundam entalm ente no consentim ento
de oprim idos perante opressores. Com base em reflexões sobre a obra gram sciana que
consideram a m atriz abissal fundada na coisificação de pov os
racializados/subalternizados, são problem atizados os potenciais enfrentam entos da
hegem onia capitalista – a qual se v ale tam bém da dom inação v ia coerção colonial, desde
a sua form ação histórica até à contem poraneidade. Daí os aportes de m ov im entos
indígenas no Brasil e na Bolív ia que, com seus atos de desobediências político-epistêm icas
em ev entos públicos ou posicionam entos políticos, podem ser entendidos com o
aprendizagens contra -hegem ônicas, em consonância com as epistem ologias do Sul.

The theoretical and political contributions from Antonio Gram sci last for nearly a
century , in particular his definitions and understanding of the broad notion of hegem ony
– the com bination of power relationships whose preferential locus is called civ il society
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and which is sustained fundam entally v ia the consent of the oppressed with respect to
their oppressors. Based on the reflections on Gram sci’s work which consider the abyssal
matrix as anchored in the thingification of racialized/subordinate peoples, the potential
av enues for confronting the capitalist hegem ony are problem aticized, which, from its
historical inception to the present day , has uny ieldingly taken adv antage of objectify ing
colonial power of dom ination by coercion. Hence the im pact achiev ed by the indigenous
m ov em ents in Brazil and Boliv ia, felt in term s of the anti -hegem onic learning present in
the public acts and m anifestations of political and epistem ological disobedience, in
harm ony with the epistem ologies of the South.

Il y a presque un siècle que perdurent les contributions théorico-politiques de Antonio


Gram sci, en particulier dans le sens des définitions et des com préhensions tournant
autour de la notion d’hégém onie – conjugaison de relations de pouv oir qui repose
fondam entalem ent sur le consentem ent des opprim és env ers les oppresseurs. Sur la base
de réflexions partant de l’œuv re de Gram sci qui considèrent la matrice abyssale com m e
ancrée dans la chosification de peuples racialisés/subalternisés, les v oies de confrontation
à l’hégém onie capitaliste se problém atisent, hégém onie qui puise aussi de la dom ination
par la coercition coloniale, depuis sa form ation jusqu’à la contem poranéité. D’où les
apports de m ouv em ents indigènes au Brésil et en Boliv ie qui, par leurs actes de
désobéissance politico-épistém iques m enées dans des év ènem ents publics ou
positionnem ents politiques, peuv ent être perçus com m e apprentissages contre-
hégém oniques, en consonance av ec les épistém ologies du Sud.

Entradas no índice
Palavras-chave : Antonio Gram sci (1 89 1 -1 9 3 7 ), Bolív ia, Brasil, capitalism o,
colonialism o, contra -hegem onia, m ov im entos indígenas
Keywords : Antonio Gram sci (1 89 1 -1 9 3 7 ), Boliv ia, Brazil, capitalism , colonialism ,
counter-hegem ony , indigenous m ov em ents, power relations
Mots-clés : Antonio Gram sci (1 89 1 -1 9 3 7 ), Boliv ie, Brésil, capitalism e, colonialism e,
contre-hégém onie, m ouv em ents indigènes, relations de pouv oir

Notas da redação
Artigo recebido a 2 1 .09 .2 01 7
Aprov ado para publicação a 2 2 .1 0.2 01 7

Texto integral

Introdução
1 Ainda em meados da década de 197 0, Perry Anderson realçav a que “nenhum
pensador marxista posterior ao período clássico é tão univ ersalmente respeitado
no Ocidente como Antonio Gramsci” (Anderson, 1986 [197 6]: 7 ). Acrescentav a
ainda que não hav ia nenhum conceito “tão liv re ou div ersamente inv ocado entre as
forças de esquerda do que o de hegemonia, que ele [Gramsci] tornou de uso
corrente” (ibidem).
2 A partir de trechos dos famosos Cadernos do Cárcere de Gramsci, Anderson
apresenta, antes de adentrar propriamente na questão central da hegemonia, um
quadro -resumo sobre a oposição das estruturas políticas do “Oriente” e do
“Ocidente”, o qual serv e como uma sorte de princípio organizativ o para as
reflexões gramscianas. Essa profunda operação colonial, 1 embora não assumida
inteiramente como tal, acaba por se associar a determinadas estratégias com v istas
à transformação social e ao enfrentamento do sistema capitalista que, segundo as
mesmas linhas de raciocínio, seriam mais adequadas para cada contexto específico
(tendo os Estados-nação como estrato priv ilegiado): as noções, inspiradas em
táticas e estratégias militares, de “guerra de mov imento” (para o “Oriente”) e de
“guerra de posição” (para o “Ocidente”).
3 Inspirado na natureza dual – metade animal, metade humano – do centauro de
Maquiav el, Gramsci propõe a “dupla perspectiv a” de funcionamento das estruturas
do poder da burguesia (em particular no “Ocidente”, segundo ele), a partir da

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consolidação do próprio Estado (sociedade política) e da sociedade civ il: de um


lado a coerção/dominação (submissão pela força) e, de outro, o consentimento/ a
hegemonia (direção intelectual e moral). No entendimento de Anderson, não é
consistente a suposição embutida nessa div isão inicial deduzida de Gramsci
(cérebro e corpo), na qual a classe operária poderia ter acesso ao Estado (por meio
de eleições parlamentares no bojo da democracia representativ a, que se
autoatribui intrínseco potencial distributiv o). Só não teriam os trabalhadores
capacidade de tomar e de exercer efetiv amente o poder político por causa da
primazia do consentimento burguês reinante (Anderson, 1986 [197 6]: 27 ).
4 Não deixa de ser curioso como a fixação no “Ocidente” encobre qualquer
possív el enfoque na inter -relação fundadora e estrutural entre “Ocidente” e
“Oriente”. O marxismo ocidental se mostra extremamente dedicado a apreender e
transformar aquilo que entende como a formação social mais av ançada do
capitalismo e confere pouca atenção “aos países atrasados e as colônias”, como se
nada do que se desse nas chamadas “periferias” do sistema pudesse ajudar a
entender o sistema como um todo. Como sustenta Anderson, a própria forma
política (Estado) se torna um instrumento de alienação no “Ocidente”, ao se
descolar das esferas de exploração econômica, obliterando a possibilidade de
outras formas de organização social que não a burguesa. A ideia do “contrato de
trabalho entre pessoas liv res e iguais no plano jurídico”, que seria a marca do modo
de produção capitalista e do Estado burguês no “Ocidente”, 2 encontra no “Oriente”
configurações distintas. Não por mera incompetência, incapacidade ou
desinteresse das burguesias ou mesmo dos proletariados locais, como tentaram e
ainda tentam prov ar inúmeras teses e estudos sobre o estigmatizado “Terceiro
Mundo”, 3 mas por razões inerentes e históricas de uma estrutura
capitalista/colonial/patriarcal. Foi o regime imperativ o de dominação nas colônias
que alimentou e tornou possív el a hegemonia “civ ilizatória” experimentada nas
sociedades centrais imperiais. Daí que dominação e hegemonia, historicamente,
sejam complementares e articuladas – e não separadas e antagônicas.

Coisificação e matriz abissal


5 Gramsci, na esteira de Lenin, 4 dá pouca atenção à formação histórica do
capitalismo em concomitância com o colonialismo, principalmente a partir das
inv asões e dos saques coloniais promov idos por empresas ibéricas do final do
século XV . Aquilo que Marx caracterizou como “acumulação primitiv a” não foi
apenas uma operação material limitada e finita (a qual teria se encerrado logo no
seu início) que apenas dev e ser entendida como pontapé circunscrito de um
posterior ciclo histórico de larga duração. 5 É uma das marcas profundas e inerentes
do próprio sistema, como denunciaram intelectuais negros como Frantz Fanon6 e
Aimé Césaire. Este último, aliás, propõe, em resposta às fórmulas apresentadas
pelos colonizadores, 7 uma equação que corrobora essa sociologia das ausências
(na lógica de uma produção ativ a de não existências, conforme Santos, 2002):
colonização = coisificação.
6 Césaire rev ela que o “Ocidente” tal qual pensado por Gramsci passou a ter seus
contornos desenhados muito antes de meados do século XIX , portanto. É
justamente a deliberada ignorância e o recorrente desprezo com relação a esse
longo, v iolento e multifacetado processo de colonização = coisificação que
fomenta o chamado pensamento abissal (Santos, 2009 [2007 ]), cujos alicerces
podem ser encontrados no direito e na ciência que acompanham a modernidade
ocidental hegemônica. Como pontua o autor,

por m ais radicais que sejam estas distinções [produzidas pelo pensam ento
abissal m oderno] e por m ais dram áticas que possam ser as consequências de
estar de um ou do outro dos lados destas distinções, elas têm em com um o
facto de pertencerem a este lado da linha e de se com binarem para tornar
inv isív el a linha abissal na qual estão fundadas. As distinções intensam ente

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v isív eis que estruturam a realidade social deste lado da linha baseiam -se na
inv isibilidade das distinções entre este e o outro lado da linha. (Santos,
2 009 [2 007 ]: 2 4 )

7 O outro lado da linha, complementa Santos (2009 [2007 ]: 26), “compreende


uma v asta gama de experiências desperdiçadas, tornadas inv isív eis, tal como os
seus autores” e, historicamente, tem uma localização territorial que coincide com
um território específico: a zona colonial.
8 A centralidade do colonial ganha um sentido bem mais alargado e presente com
as profícuas reflexões em torno da linha abissal. Já não se trata mais da mera
inexistência “do outro lado da linha”, mas de um mundo repleto de experiências e
de modos de v ida, de saberes e de conhecimentos, de pov os e de corpos, de
territórios e de poderes “ativ amente produzidos como não -existentes, isto é, como
alternativ as não -credív eis ao que existe” 8 (Santos, 2002: 19). Esta realidade,
prossegue Santos (2009 [2007 ]: 31), é “tão v erdadeira hoje como era no período
colonial”.
9 Em colisão com essa afirmação mais recente das linhas abissais como
“constitutiv as de relações e interações políticas e culturais que o Ocidente
protagoniza no interior do sistema mundial” (Santos, 2009 [2007 ]: 31), o
enquadramento analítico gramsciano repete muitos outros anteriores. Opta, assim,
por desv incular e desconectar (ou ao menos não v incular nem conectar
decididamente) o poder político, econômico, cultural e social acumulado pelo
“Ocidente” (e toda a sua sociedade civ il “desenv olv ida/sólida”, bem como sua
inter -relação “equilibrada” com o Estado) de sua opressão coercitiv a direta e
indireta no “Oriente” já prev iamente existente e na produção de nov os “Orientes”. 9
Ao fazê -lo, estabelece uma periodização historicista e alinhav a uma interpretação
político -epistêmica concatenada que, em sua espinha dorsal, coisifica a sociedade
civ il (congelando -a em seu “estado de natureza”) no dito “Oriente” como
“primitiv a/gelatinosa”. Dessa maneira, abre -se margem para que o fenômeno
singular e global de constituição do sistema-mundo capitalista-colonial e todos os
seus possív eis desdobramentos sejam atrav essados por uma matriz abissal1 0 que
(re)produz e naturaliza div isões (diga-se coisificações de sujeitos sociais ativ os e
não inertes) arbitrárias e subalternizantes a partir de hierarquizações,
generalizações e estigmatizações político -civ ilizacionais rev estidas de um
controv erso pendor univ ersalizador.

(Des)Caminhos da
(contra-)hegemonia
10 Mesmo em análises “progressistas” feitas com base em contextos latino -
americanos, não raro a matriz abissal fragmentadora acaba por se fazer presente,
tanto no que diz respeito às av aliações dos quadros de relações de poder de
dominação e de hegemonia, quanto nas recomendações para os possív eis caminhos
para suplantá-las. Citada como referência por agentes políticos do alto escalão 1 1 de
gov ernos desse mesmo “progressismo” latino -americano do século XXI , Harnecker
(2013) desconecta capitalismo e colonialismo ao atribuir o surgimento e a
expansão do capitalismo exclusiv amente a uma dinâmica de mercado regida por
“leis econômicas” (busca do lucro e da ganância mediante a exploração do trabalho
liv re assalariado). 1 2
11 Atribui-se relev o a um ideal de “construção do socialismo” que requer a
“realização de uma v erdadeira rev olução cultural que nos permita superar a
cultura herdada, a construção do sujeito rev olucionário que sustentará todo o
processo” (Harnecker, 2013: 113). Essa construção, continua a cientista política
chilena, estaria v inculada também a uma “aprendizagem do pov o em formas de
autogov erno” e “tudo isso não pode ser alcançado de forma espontânea, daí a
necessidade de um instrumento político [grifos do autor]”.

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12 Há aqui uma aposta num instrumento político dotado de uma determinada
direção e com linhas preestabelecidas que seja capaz de construir “força social” (no
bojo da sociedade civ il), mais do que apenas “força política” (no âmbito do Estado).
Tal centralidade tem como ambição a capacidade de “erguer um projeto nacional
que permita aglutinar todos os setores afetados pela crise e que sirv a de bússola
[grifo do autor] a eles” (ibidem: 109). Sem o “Norte” do instrumento político, o
socialismo do século XXI ficaria, de acordo com a autora, à deriv a.
13 Embora clame pelo respeito à “autonomia dos mov imentos sociais, recusando
manipulá-los”, a recomendação de Harnecker é a de que o instrumento político
atue como uma “instância orientadora e articuladora a serv iço dos mov imentos
sociais”, que se esforce “para articular suas práticas num único projeto político”
(ibidem). Essa articulação se assemelha à proposição de frente única (v oltada a
embates mais prolongados de uma guerra de posição pela hegemonia) de Gramsci e
dependeria de configurações políticas, econômicas, sociais e culturais específicas.
14 O que esse tipo de proposta reproduz da matriz abissal é a desconsideração da
extrema v iolência/coerção sistemática do colonialismo contida desde sempre no
capitalismo. Forças policiais e militares, por exemplo, são elementos cruciais dessa
barbárie continuada dirigida à parte substantiv a das populações racializadas e
subalternizadas. Estas últimas lidam permanentemente com uma guerra de
movimento – na realidade, concentrando -se naquilo que se pode chamar de
estratégia de r-existência1 3 – para, de alguma forma, darem respostas e
apresentarem alternativ as aos v etores de dominação (coerção) e de hegemonia
(consentimento) que lhes são impostos.
15 Ainda que o neoliberalismo agrav e o empobrecimento – não só do ponto de v ista
econômico, mas também da subjetiv idade, como coloca Harnecker (2013:
109 -110), gerando v ulnerabilidades e discriminações – da grande maioria da
população dos países latino -americanos, v igoram profundas opressões coloniais
que dificultam imensamente a possibilidade de aglutinação dos v ulgos “perdedores
e prejudicados” pelo sistema.
16 A resposta que a própria autora dá é que em grande medida isso se explica pela
comunicação, pois “uma parte importante da população não conhece nosso
v erdadeiro projeto”, uma v ez que “os meios opositores se encarregam de deformá-
lo, de criar falsos alarmes e, muitas v ezes, conseguem aterrorizar as pessoas acerca
do futuro que lhes espera” (ibidem: 124). A culpa também caberia aos próprios
defensores do socialismo do século XXI , já que não só faltam inv estimentos em
criativ idade e tempo na comunicação, mas também as/os próprias/os defensores
muitas v ezes não o praticam (negando -o efetiv amente) no seu dia a dia.
17 O paradoxo é bem mais grav e do que o fator comunicação: o esforço para se
construir uma contra-hegemonia alternativ a que não prioriza o colonialismo acaba
por retroalimentar a própria hegemonia capitalista, que supostamente tenta
combater. Atrav és da coisificação de colonizadas/os – impondo -lhes um roteiro
preestabelecido de salto de sua condição prév ia alienada (classe em si) para um
estado de ativ ismo social pleno posterior (classe para si) –, definem-se hierarquias
de lutas. Não por acaso se mostraram frágeis a sustentação e a disseminação de
uma “nov a cultura de esquerda” no bojo de uma frente única, “que ponha acima o
que une e deixa em segundo plano o que div ide” (ibidem). Por mais que se almeje
promov er a unidade em torno de v alores como “a solidariedade, o humanismo, o
respeito às diferenças, a defesa da natureza, rechaçando o afã do lucro e as leis de
mercado como princípios orientadores e condutores da ativ idade humana”
(ibidem), essa tentativ a menospreza a matriz abissal do colonialismo; se ampara
em premissas democráticas (direitos civ is e políticos) e igualitárias (trabalho liv re)
de cunho univ ersalista que, no cotidiano das relações sociais v iv idas por sujeitos
subalternizados, inexistem.
18 Essa forma idealizada do Brasil imaginado como nação “ocidental” também
percorre reflexões expressas na Mesa-redonda: a estratégia da revolução
brasileira (Coutinho et al., 1986), registrada em meados da década de 1980 e
prov ocada também pelas já referidas considerações de Anderson sobre Gramsci.
Trata-se de ev ento bem mais antigo que a obra recente de Harnecker, mas serv e a
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título da leitura de relev antes intelectuais sobre os caminhos para enfrentamento


da hegemonia. Destacado seguidor da obra gramsciana, Carlos Nelson Coutinho
sustentav a a av aliação de que o Brasil passara por um acentuado processo de
“ocidentalização”, com uma sociedade civ il que v inha se tornando cada v ez mais
complexa. Definido esse quadro, acreditav a que a transição socialista dev eria se
dar mais no campo da guerra de posição – ou melhor, revolução processual – do
que pela guerra de movimento 1 4 típica de sociedades “orientais”. Coutinho
reforçav a ainda, nesse intercâmbio de opiniões, a necessidade de superação de
preceitos do antigo “partidão”, Partido Comunista Brasileiro (PCB) – enfrentamento
ao latifúndio e ao imperialismo – em nome de um empenho pela “ocidentalização”.
“Ocidentalização” essa que se daria com o fomento da sociedade civ il (perante o
Estado), num acordo mais amplo de democratização modernizadora e
modernizante (fortalecimento dos aparelhos de hegemonia, como partidos e
sindicatos) com segmentos liberais. Para acompanhar, ele sugeria a consolidação
de um “bloco de forças centrado no mundo do trabalho” v isando reformas que
introduzissem “elementos do socialismo” na sociedade brasileira, ou seja, que
modificassem progressiv amente a correlação de forças para a superação gradual do
capitalismo. A essa proposta deu o nome de reformismo revolucionário.
19 A posição de Coutinho, apoiada quase que integralmente por Francisco Weffort,
coincide com as orientações de Harnecker; ambas miram a superação da
hegemonia liberal-capitalista com receitas “contra-hegemônicas” que escondem a
dominação colonial (do tipo “oriental”) que persiste nas sociedades latino -
americanas. Ao fazê -lo, legitimam uma interpretação abissal que autoriza injustiças
coisificantes que, por seu turno, tonificam os músculos do sistema capitalista-
colonial de desenv olv imento (do subdesenv olv imento, adicionariam os pensadores
da teoria da dependência).
20 Um dos expoentes dessa linha de pensamento, Theotônio dos Santos, 1 5
manifestou na dita mesa-redonda discordância com relação a essa tendência lenta,
gradual e liberalizante – com potenciais pretensamente socializantes. 1 6 Entre os
pontos de div ergência, este economista questiona tanto a caracterização do Brasil
como sociedade “ocidental”, quanto o receituário da “ocidentalização” como
melhor caminho para a consolidação de uma contra-hegemonia ao capitalismo,
lev antando ressalv as aos fundamentos e às promessas associadas ao reformismo
revolucionário.
21 Mesmo desconfiado do programa de “ocidentalização” para o Brasil de Coutinho
e Weffort, Theotônio dos Santos sinaliza ainda estar preso a uma das armadilhas do
pensamento abissal que tende a circunscrev er a análise de fenômenos sociais às
fronteiras nacionais ou até continentais. Ao afirmar que “o nosso [do Brasil]
capitalismo gerou realidades que o capitalismo europeu não gerou”, ou que o
capitalismo brasileiro dev e merecer condenação ainda maior pela “sua
incapacidade de resolv er os problemas que o capitalismo europeu (ou japonês)
resolv eu historicamente”, o teórico da dependência estabelece um corte que
esconde a inter -relação entre os capitalismos e se esquece de que os lados positiv os
de uns e negativ os de outros não são aleatórios. Em outras palav ras, o que se perde
nessa operação é justamente o colonialismo, a máquina de coisificar humanos e
não humanos e de produzir desigualdades abissais.

Desobediências político-epistêmicas
22 A opinião de propositoras/es de agendas socialistas, desde debates passados da
década de 1980 até formulações recentes como o socialismo do século XXI ,
demonstra o quanto de miopia embaça as v isões para enfrentar a dominação e a
hegemonia capitalistas-coloniais. Não se trata apenas da alienação das classes
operárias que exercem a liberdade de v ender suas respectiv as forças de trabalho
aos donos dos meios de produção (que extraem daí a mais-v alia). Tampouco se
resume a uma outra v ariedade de alienação relacionada à igualdade política

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ofertada pela democracia liberal-representativ a que esconde a div isão de classes.


Há outras operações não contabilizadas (produzidas ativ amente como não
existentes) para o funcionamento desse sistema.
23 O colonialismo forma o alicerce para a montagem e a legitimação das
justificativ as e das estruturas de Estados modernos v inculados a relações sociais
dominadas e hegemonizadas pela burguesia. Os processos materiais e simbólicos de
acumulação passaram a garantir um ambiente cada v ez mais fav oráv el à posse e à
manutenção das propriedades priv adas dos meios de produção pela classe
burguesa. O exaltado trabalho liv re firmado no “Ocidente” tem como contrapartida
inexoráv el as inúmeras formas de escrav idão (e de imposição à força do trabalho)
que compuseram e compõem a sua face colonial. Hegemonia, portanto, nunca
existiu sem dominação. Nem consentimento sem coerção. Muito menos “Ocidente”
sem “Oriente”. Um dos meios utilizados para encobrir essas coisificações das/os
colonizadas/os foi a “raça” 1 7 – concepção social crucial que está na base da
perpetuação da colonialidade do poder (Quijano, 1992). Como reforça outro autor:

[...] o apelo à raça (distinto da atribuição de raça) é um a m aneira de fazer


rev iv er o corpo im olado, am ortalhado e priv ado dos laços de sangue e de
território, das instituições, ritos e sím bolos que o tornam precisam ente um
corpo v iv o. (Mbem be, 2 01 4 [2 01 3 ]: 6 9 )

24 A partir dos pontos de v ista indiv iduais e também de perspectiv as coletiv as de


sujeitos políticos com as/os quais se estabeleceu interlocução durante as pesquisas
de campo, 1 8 foi possív el ter acesso a um aspecto -chav e, que é o ímpeto
antidominação e contra-hegemônico de agentes formuladores e praticantes de
epistemologias do Sul (Santos, 2014), que expuseram análises e alternativ as com
base nas suas formas de se v er (e de v er os outros), atuar e ser no mundo. 1 9 Essas
perspectiv as serão apresentadas aqui de dois modos: na descrição e na
subsequente análise de duas manifestações (uma em cada país) em que foi possív el
estar presente, organizadas pelos mov imentos com os quais se estabeleceu diálogo;
e com trechos de entrev istas feitas com integrantes dos mesmos sobre o tema da
inter -relação com as instituições estatais.
25 O ato acompanhado no Brasil foi a ocupação coletiv a de um trecho, com a
interrupção da circulação de automóv eis, da Rodov ia BR-17 4 20 – que liga a cidade
de Boa Vista (capital do Estado de Roraima) a Pacaraima, já na fronteira com a
Venezuela – logo nas horas iniciais de 2 de outubro de 2013. Tratav a-se da primeira
grande manifestação indígena desde a conquista histórica obtida pelo mov imento
liderado pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR) que, com o julgamento da Ação
Popular 338821 no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009, tev e
assegurada a demarcação em área contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol
(TIRSS).
26 A manifestação tinha como foco o repúdio de um amplo conjunto de
organizações indígenas e indigenistas (como parte da Mobilização Nacional
Indígena)22 à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, 23 em trâmite no
Congresso brasileiro. A proposição legislativ a tem como finalidade transferir a
palav ra final sobre demarcações de territórios para usufruto dos pov os, hoje a
cargo do Poder Executiv o, ao próprio Parlamento, notória instância em que
prev alecem interesses anti-indígenas. 24
27 Desde a própria preparação (conduzida pelo CIR, que pôs em marcha v asta
estrutura própria, além de conv ocar parcerias), passando pelas assembleias no
local dos acampamentos (Comunidade Sabiá) que precederam o ato, ficou patente a
legitimidade acumulada pela parte organizadora. Eram perceptív eis a existência e a
v alidação de conhecimentos e de ritos forjados nos enfrentamentos de longa data
protagonizados pelo mov imento indígena de Roraima. Chamou atenção o papel
destacado de militantes e de lideranças femininas, 25 mostrando elementos de
interseccionalidade nas lutas. 26 Nenhuma das prescrições clássicas supracitadas –
“mov imento para sociedade oriental” e “posição para sociedade ocidental” – fazia
ali muito sentido, uma v ez que a ação se v oltav a muito mais a uma afirmação
política de direitos. Para v iabilizar a organização de uma manifestação com
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participação de mais de mil indígenas mobilizadas/os por mais de 12 horas (da 1h


da madrugada do dia 2 até depois das 13h do mesmo dia), deram-se trocas seguidas
de turnos, demonstrando o relev ante sentido de união 27 na r-existência – animada
com músicas de protesto de composição própria e dança (parixara) – contra a
crescente pressão de indiv íduos contrariados que cobrav am a liberação da estrada.
Estav a diante de uma metáfora dos indígenas interrompendo a ofensiv a dos
poderes político -econômicos dominantes (pela força) e hegemônicos (pela
prev alência de suas opiniões na “sociedade civ il” e no “Estado”) contra os seus
direitos. Inclusiv e a minha própria presença (para além da pesquisa acadêmica em
si) tinha o intuito de propiciar conteúdo jornalístico 28 que pudesse fazer rev erberar
– perfurando assim “barreiras” impostas pela mídia regional ou pela imprensa
comercial nacional29 – esse ato pelo cumprimento de garantias constitucionais,
liderado pelo mov imento indígena regional.
28 Frente ao sistema opressor, indígenas de Roraima optaram, então, pelo caminho
das desobediências político -epistêmicas que reforçam as suas condições como
sujeitos, contestando a coisificação (étnico -racial) que caracteriza e estrutura o
capitalismo -colonialismo. Não se limitaram a atitudes secundárias que mais bem se
enquadrariam na condição de “pautas identitárias” que, tal como demonstram
análises como as de Meiksins-Wood (2003 [1995]) e de Chibber (2013), serv iriam
fundamentalmente para “atrapalhar” processos classistas de transformações
supostamente mais definitiv as tanto de mobilização, como de alcance “univ ersais”.
Ao não se restringir à questão de classe, o mov imento reforça a tarefa não menos
relev ante de enfrentamento do sustentáculo colonial da matriz abissal por meio da
qual a hegemonia se renov a.
29 Trecho de entrev ista com Amarildo Mota, jov em liderança da comunidade da
Laje – numa área de div isa com a República Cooperativ a da Guiana, não muito
distante da sede do município de Uiramutã (em Roraima) –, na Região das Serras da
Raposa Serra do Sol, 30 atesta o fundamento colonial da coisificação [objetos de
conhecimentos e de poderes] a posição de firmeza assumida pelos pov os indígenas
de Roraima frente à tentativ a de imposição com fins de dominação coercitiv a e
hegemonia consensual.

Pergunta – O que poderia ajudar mais hoje, como apoio às comunidades? O


que seria mais importante?
Já que estam os em jogo, né? Um a parte m ais im portante que a gente v ê
assim é a das publicações [na im prensa e tam bém na academ ia, no que diz
respeito à opinião pública], né? Por exem plo, aqui a com unidade está
trabalhando. Aí tem a publicação errada? Tem . Aí o pessoal acredita.
[Prioriza -se v ersões do] Gov ernador, parlam entares... [Todos] Estão
acreditando. Mas tem que publicar [lev ando em consideração] o nosso
m ov im ento, as nossas m anifestações, o nosso trabalho, por exem plo, da
roça. O pov o está trabalhando. Eu acho que é im portante. A publicação e a
defesa, né? É um projeto m uito grande. [...] É isso que eu estou dizendo: a
prioridade m esm o é defender a causa indígena. É um projeto que a gente
agradece m uito se tiv er um gov ernador que apoie essa, um parlam entar
que apoie essa causa.

Pergunta – Mas acha que isso vai acontecer algum dia?


A gente espera, né? Agora esse negócio de rancho [destinação/doação de
produtos alim entícios, com o cestas básicas, por exem plo], assim , ninguém
espera, ninguém quer. Ninguém aceita porque nós não estam os passando
fom e [...]. Agora se ele quiser fazer um projeto: ‘v ou m andar um trator
para o Willim on [outra com unidade da região, que é um centro ao qual a
com unidade da Laje está v inculada] para ajudar na agricultura’... É dev er!
É dev er ele apoiar nesse sentido. Mas o projeto grande que a gente quer que
um gov ernador, um presidente, um parlam entar apoie é o dos direitos dos
pov os indígenas. Assegurar o direito dos pov os indígenas. Respeitar os
direitos dos pov os indígenas. É isso que a gente quer. Eu im agino que um
dia isso ainda pode acontecer. Pode ser que tenha um para defender. [...]

Pergunta – Então o principal é essa falta de reconhecimento?


Isso. É um projetão para nós. Nós consideram os um projeto m uito grande
para nós. É um ouro para nós se as pessoas defenderem os nossos direitos, se

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respeitarem . Para nós, é isso. Não precisam os... Nós não dependem os do
gov ernador. Nem um centav o dele nós precisam os. Se ele quiser apoiar na
educação, ele pode. Porque é dev er do gov ernador apoiar na educação, na
saúde, na agricultura. É dev er, m as desde que tenha que m anter acordo
com as com unidades. Ele tam bém não pode [pensar, planejar e executar]:
“ah, v ou apoiar a agricultura” assim , de qualquer jeito. Aí já não cabe a
nós. Nós não aceitam os. Se o gov ernador quer fazer um projeto, o projeto
aqui v ai ser de acordo com a com unidade. 31

30 Um aspecto relev ante a ser destacado nesse sentido é que, tanto no contexto em
que se deu a pesquisa no Brasil como no da Bolív ia, as comunidades indígenas,
mesmo usufruindo de terras e da criação de animais ou de ativ idades locais,
pontuais e de pequena escala de mineração como meios de produção, 32 têm a sua
condição de sujeitos deslegitimada. E esse pensamento dominante e hegemônico
que prima pela coisificação da/o subalterna/o atua por v ieses distintos nos dois
países.
31 No Brasil se dá, entre outras formas, pela imposição de uma pecha (incentiv ada
por setores que detêm o poder político -econômico) de incapacidade e de
indolência em termos de produção, isto é, com a sua existência condicionada
apenas ao posto de empregados reduzidos à mão de obra barata. 33 Como
v endedores objetificados de sua própria força de trabalho e majoritariamente
despreparados para a auto -organização em seus territórios, 34 os indígenas são
tratados rotineiramente com altas cargas de discriminação e preconceito, tendo
como pano de fundo o persistente bordão racista do desperdício de “muita terra
para pouco índio”.
32 Na Bolív ia, por sua v ez, a coisificação de mov imentos indígenas trilha caminhos
múltiplos e tortuosos. Por um lado, o próprio gov erno central (alçado ao poder a
partir de largas mobilizações da articulação indígena originária camponesa)35
insiste em discursos acusatórios no sentido da manipulação de segmentos
indígenas mais críticos às políticas oficiais por parte de interesses geopolíticos
internacionais imperialistas. 36 Pelo outro lado dos setores mais críticos ao gov erno,
segmentos e entidades indígenas ligadas ao Mov imento Ao Socialismo –
Instrumento Político pela Soberania dos Pov os (MAS-IPSP) são tidos como massas
de manobra do grupo instalado no poder desde 2006 – encabeçado pelo presidente
(de trajetória como sindicalista cocalero) Ev o Morales e pelo v ice -presidente (ex -
guerrilheiro e intelectual) Álv aro García Linera. 37
33 A experiência presencial num ev ento sobre educação 38 do mov imento indígena
permitiu um conjunto de leituras e interpretações adicionais sobre o
enfrentamento da dominação e a interpelação da hegemonia a partir do ponto de
v ista das comunidades indígenas Quéchuas locais. As dependências do Centro de
Formação Originária das Alturas (CEFOA) “Fermín Vallejos” no núcleo de maior
concentração populacional do território de Raqay pampa, receberam o encontro
organizado pela Central Regional Sindical Única de Camponeses Indígenas de
Raqay pampa (CRSUCIR) como parte do esforço para a constituição da segunda
autonomia indígena originária camponesa do país. 39 Na ocasião, representantes do
Ministério da Educação e da Secretaria de Educação do Departamento de
Cochabamba foram conv idados para uma assembleia aberta40 com as
comunidades, em que se trataram v ários assuntos. Esse grande encontro temático
contou com a participação de mais de uma centena de membros, homens e
mulheres, de todas as cinco subcentrais41 que fazem parte da TIOC42 de
Raqay pampa. Na parte da manhã, consultores ligados à ISA Bolív ia apresentaram
um planejamento de ações e metas na área educacional – particularmente dedicado
à reestruturação do CEFOA como base de apoio para formação de pessoal para o
autogov erno 43 – formatado às diretrizes do Estatuto Autonômico e ao Plano de
Gestão Territorial aprov ados coletiv amente no largo processo de construção e
estabelecimento definitiv o da AIOC de Raqay pampa.
34 Pela tarde, o debate foi direto com representantes das instâncias do gov erno, que
foram questionados e cobrados não só por lideranças e membros de entidades que
compunham a mesa, mas também diretamente por comunárias/os que reserv aram

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19/03/2018 Desobediências político-epistêmicas de movimentos indígenas no Brasil e na Bolívia como aprendizagens contra-hegemônicas

o dia todo para discutir. Nas v árias manifestações, as questões da falta de apoio no
atendimento das demandas e das condições precárias das escolas foram citadas
v árias v ezes, bem como a necessidade de que o currículo e o calendário
diferenciados sejam respeitados. Aparentemente, a dominação v ia
coerção/v iolência se reduziu substantiv amente no que se refere à população
indígena de Raqay pampa (e da Bolív ia, em geral), principalmente desde as grandes
mobilizações do início dos 1990, 44 mas o tema da hegemonia político -ideológica
capitalista-colonial – sempre na linha da coisificação pela matriz abissal – estev e
no cerne da conv ocação da assembleia sobre a educação, apenas mais um episódio
na luta das comunidades pelo autogov erno.
35 Em v ez de tentar enfrentar a hegemonia com mais “ocidentalização” e com
estímulo à expansão e sofisticação da sociedade civ il no embate com o Estado ou de
apostar a maior parte das fichas principalmente num instrumento político 45 que
sirv a de bússola e se encarregue de formar militantes, as/os comunárias/os de
Raqay pampa escolheram um caminho próprio. Embora assumindo papéis em
espaços formais e usando repertórios de participação social relativ amente
ordinários da cidadania ocidental, de certo modo optaram por desobedecer ao
sistema, estabelecendo do jeito deles parâmetros e negociações descoisificantes
com as institucionalidades que trazem conteúdos e contornos imprev istos. Este
trecho da entrev ista com o professor indígena Miguel Caero, formado ele próprio
pelo CEFOA, dá ideia do modo como o tema da educação – de reuniões menores a
assembleias como a que se pôde acompanhar, passando por intensos protestos a
negociações com os mais div ersos setores – tem muito mais profundidade como
contra-hegemonia do que parece à primeira v ista.

Pergunta – Que tipo de sab eres de Raqaypampa pensas que seja importante
manter e ser ensinados a mais gente?
Por exemplo, a Lei 07046 está falando mais de cosmos, do holístico, de outras
dimensões, da questão metodológica. De acordo com isso, [consiste numa]
educação mais ligada à natureza, para viver com a natureza. Um camponês,
por exemplo, não sabe nem ler e nem escrever, mas ele sabe. Vive da terra, de
sua terra, do trabalho. Conhece, trabalhando na terra, quais são os animais
que existem, quais são as plantas que existem. E quando vai chover. Por
exemplo, o que estão fazendo as formiguinhas. Existem muitos indicadores. As
aves, as plantas. Digamos, os camponeses sabem quando vai chover.
Quando os animais vêm de um lado, eles já sabem o que vai acontecer. Se vai
chegar uma chuva de granizo ou se vai chover forte. Tudo isso: os jampiris,47
os yatiris,48 como curam, como fazem tratamentos. Há tudo isso e a Lei 070
reconhece o seu valor. Isso está ajudando e pode ajudar a voltar os saberes
dos nossos avós. Resgatando e valorizando saberes. Podemos aprender
muitas coisas. E isso é para a vida.

Pergunta – Mas tamb ém é muito importante fazer uma comb inação de


sab eres, não? Há muitas coisas. Por exemplo, falavas que os alunos querem
sab er muito sob re computadores, novas tecnologias, etc. Como se faz essa
comb inação de sab eres?
Por exemplo, eu disse que a Lei 070 cita uma palavrinha: educação
‘revolucionária’, também inclusiva, socioprodutiva. Podemos, pois, aprender e
ensinar sobre toda a luta, tudo aquilo, a história. Sobre política inclusiva, o
governo está dando mais preferência a todas as pessoas. Educação para
todos. Há educação formal, educação alternativa, educação especial para que
pessoas que não enxergam...

Pergunta – Com deficiência...


Isso. A revolução tecnológica, claro, está aí. Ano passado recebemos
computadores todos os professores. Para mais uma etapa dessa revolução
educativa. Para melhorar. Para que pesquisemos. Para os alunos
pesquisarem. Entrar na internet, buscar. Com mais facilidade.

Pergunta – E acreditas que seja possível fazer essa comb inação? Como se
trab alha essa coisa de manter os sab eres tradicionais, ao mesmo tempo em
que tamb ém se ensina coisas mais “novas”?
Antes, era uma educação copiada de outros países. E, agora, claro, se quer
reconhecer e resgatar [os saberes “tradicionais”]. Os dois têm que ir de mãos

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dadas, juntos. Não podemos aprender somente de um lado da sociedade:
tanto da cidade como do campo, de acordo com as tecnologias.49

36 Nas respostas de Miguel Caero, há uma série de (im)posturas de desobediências


político -epistêmicas que, ao primeiro olhar, podem até soar como desprov idas de
quaisquer pretensões contra-hegemônicas, pois enquadradas e quase nada
desestabilizadoras do status quo. Cobranças por educação de qualidade parecem
algo corriqueiro; há quem enxergue nelas até uma agenda limitada, de conotação
paternalista/assistencialista, sem projeção para transformações sociais mais
profundas. Faz lembrar até mais um dos casos do quadro analítico gramsciano
inv ocado no início deste artigo em que a sociedade civ il do “Oriente” tenderia a
assumir feições primitiv as e gelatinosas perante um Estado preponderante. Ocorre,
porém, que a partir desse entendimento não necessariamente socialista, as
comunidades de Raqay pampa estão lev ando adiante uma proposta de educação
comunitária, autoelaborada e de priorização endógena que carrega uma semente
de conotação disruptiv a descolonial. Não por acaso, acabam sendo alv o de certas
reprov ações tanto de dirigentes oficialistas como de grupos dissidentes, em seus
afãs por definir a conduta que as/aos camponesas/es indígenas dev eriam seguir
segundo suas respectiv as opiniões e v isões de mundo.
37 Guardadas as dev idas limitações e os alcances situados de cada uma das
iniciativ as inv ocadas, ambas desafiam (mesmo que em grau localizado e parcial),
com suas atitudes autônomas que não deixam de se contrapor à matriz abissal, a
manutenção inconteste do sistema capitalista-colonial. É ev idente que se trata de
esforços pontuais insuficientes para desestruturar lógicas e imposições político -
epistêmicas v igentes há séculos. Mas os indígenas organizados em torno do CIR e as
comunidades reunidas na CRSUCIR têm se dedicado com obstinação a confirmar os
seus papéis de sujeitos de direitos diferenciados conquistados coletiv a e
globalmente e, dessa maneira, se recusado a obedecer integralmente às ordens
marcadas pela coisificação racializadora e subalternizante – v iolência tipicamente
colonial não raro autorizada por socialistas deste e de outros séculos. Lançando
mão de div ersas estratégicas nas inter -relações mantidas em tempos e espaços
heterogêneos por meio das epistemologias do Sul que não se prendem em
reformismos (rev olucionários ou não), dão v ida, com todas as dificuldades que as
cercam (sejam elas v iolências com v istas à dominação direta ou artifícios v oltados
ao consenso indireto v ia hegemonia), a lampejos emergentes (Santos, 2002) de
“alternativ as das alternativ as”, associadas às suas múltiplas e encarnadas lutas.
38 Em termos de caminhos de contra-hegemonia, esses mov imentos têm cumprido
uma função ímpar: ao mesmo tempo em que conquistam direitos (seja aos
territórios, às políticas sociais e até à manutenção de formas próprias de
organização política), apontam, para as v eladas injustiças que estão associadas ao
caráter profundamente colonial do sistema em v igor. Não se limitam a pleitear
benefícios apenas para si próprios conforme as circunstâncias, diferentemente do
que pregam seus detratores. Pelo contrário, ao contestar de alguma maneira a
coisificação (nas manifestações públicas e nas entrev istas, nas quais se percebe a
relev ância da autonomia), sinalizam a outras coletiv idades e indiv íduos que os
intentos de dominação, por mais poderosos que sejam, não foram e não são capazes
de fazer sucumbir por completo a todas e todos.

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Notas
* Este artigo foi desenv olv ido no âm bito do projeto de inv estigação “Alice: espelhos
estranhos, lições im prev istas”, coordenado por Boav entura de Sousa Santos
(alice.ces.uc.pt) no Centro de Estudos Sociais da Univ ersidade de Coim bra – Portugal. O
projeto recebe fundos do Conselho Europeu de Inv estigação, Sétim o Program a Quadro da
União Europeia (FP/2 007 - 2 01 3 ) / ERC Grant Agreem ent n.º 2 6 9 807 .
1 Na introdução de coletânea que coloca em diálogo a obra de Gram sci com os estudos pós-
coloniais, Sriv astav a e Bhattachary a (2 01 2 : 3 -7 ) cham am atenção para as reflexões do
autor sobre o colonialism o e os im périos, colocando-o com o “m ais progressista que a
m aioria dos pensadores m arxistas e socialistas da sua geração”. O italiano de fato teceu
críticas sobre tem as com o a escrav idão, buscando escapar de arm adilhas nacionalistas,
m as a cisão “Oriente/Ocidente” tem inegáv el carga colonial.
2 Pachukanis (2 01 7 [1 9 2 4 ]) sustenta que o Direito e o Estado, da form a com o foram
forjados pela classe burguesa e tendo com o núcleo concentrador de riquezas a Europa
ocidental, são produtos do capitalism o e se fundam entam na criação de um a cidadania
liberal indiv idual que se caracterizaria pela com pra e v enda de m ão de obra de
trabalhadores/as “liv res”. Ainda que im portante em seu aspecto de crítica às estruturas
institucionais estatais m odernas, tam bém Pachukanis parece não atentar ao fato de que
essa cidadania liberal tem um am plo processo colonial de coisificação por trás de si.
3 Para González-Casanov a (1 9 9 5: 9 ), “o Terceiro Mundo é o m undo colonial renov ado”.
4 Lenin (2 01 2 [1 9 1 7 ]) busca diferenciar aquilo que caracteriza com o fase Im perialista do
capitalism o (exportação de capitais) das etapas anteriores m ais m ercantilistas e
nacionalistas. Ocorre que, com o depois v ieram a enfatizar autores com o Wallerstein
(1 9 7 4 ) e Quijano (1 9 9 2 ), form a -se já na “prim eira m odernidade” um a div isão
internacional do trabalho (m ais especificam ente segundo Quijano, tendo a raça com o
elem ento socialm ente hierarquizante) que perpassa todas as fases do capitalism o.
5 Mbem be (2 01 4 [2 01 3 ]: 50) realça que “o capital não só nunca pôs term o à fase de
acum ulação prim itiv a, com o sem pre foi recorrendo a subsídios raciais [ênfase do autor]
para a executar”.
6 Fanon (1 9 6 8 [1 9 6 1 ]: 50) não deixa incólum e a conexão entre a riqueza e a abundância
das m etrópoles com a exploração e o saque nas colônias.
7 Em Discurso sobre o colonialismo, Césaire (1 9 7 8 [1 9 55]: 1 5) faz m enção, m ais
precisam ente no Capítulo 1 , a outras “equações desonestas” que ele atribui ao
“pedantism o cristão”: “cristianismo = civilização; paganismo = selvageria [destaque do
autor], de que só se podiam deduzir abom ináv eis consequências colonialistas e racistas,
cujas v ítim as hav iam de ser os Índios, os Am arelos, os Negros”.
8 Por m eio da sociologia das ausências, que tem com o finalidade realçar aquilo que está
presente, m as é produzido com o ausente. Vem acom panhada da sociologia das
emergências, a qual enfatiza lutas que v isam rom per com essa realidade socialm ente
produzida com o abissal (Santos, 2 002 ).
9 Em algum a m edida, Said (1 9 9 0 [1 9 7 8]) trata de tem áticas correlatas e
com plem entares a esse ponto, ainda que de form a parcial. No caso da Am érica Latina, há
um a crescente e v ariada produção que tem a v er com esse “encobrim ento do Outro”
(Dussel, 1 9 9 4 [1 9 9 2 ]) que se plasm a na m uito difundida noção de colonialidade do poder
(Quijano, 1 9 9 2 ), relacionada com um a “ideia de Am érica Latina” (Mignolo, 2 007
[2 005]) e de “inv enção do Terceiro Mundo” (Escobar, 2 007 [1 9 9 5]). A coletânea
organizada por Lander (2 005) e as noções de giro decolonial (Grosfoguel e Castro-Góm ez,
2 007 ) e de giro ecoterritorial (Sv am pa, 2 01 6 [2 01 1 ]) são desdobram entos dessas reflexões,
que têm alcançado patam ares outros com produções e interv enções de pensadoras/es
indígenas e negras/os.
1 0 A proposição da ideia de matriz abissal se pretende conjugada à noção de linha abissal. A
referência à matriz rem ete ao m olde capitalista -colonial -patriarcal dos processos repetidos
de coisificação de que trata Césaire. Metafórica, a linha abissal expressa m ais um sentido
de consequência (tanto m aterial com o sim bólica); a matriz, por sua v ez, se ancora em (e

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19/03/2018 Desobediências político-epistêmicas de movimentos indígenas no Brasil e na Bolívia como aprendizagens contra-hegemônicas
acaba m esm o por sugerir) um a lógica de causa que pode assum ir configurações div ersas
nas distintas tem poralidades e territorialidades em questão. A matriz enfatiza ainda o
senso de replicabilidade e de profusão em form as não necessariam ente uniform es de linha
desenhadas e redesenhadas em v ariados contextos e condições geopolíticas.
1 1 Em palestra m inistrada em 2 5.07 .2 01 7 com o parte do Pré-ALAS 2 01 7 Brasil – ev ento
“prév io” ao congresso bianual da Associação Latino-Am ericana de Sociologia (ALAS), na
Univ ersidade de Brasília (UnB), o m inistro do gov erno do Estado Plurinacional da Bolív ia,
Carlos Rom ero, citou Martha Harnecker e as reflexões de lav ra da intelectual chilena
com o m arcos de análise para o socialism o do século XXI e para a rev olução dem ocrática e
cultural que estaria em curso na Bolív ia.
1 2 Essa relação entre capitalism o e trabalho liv re é contestada por autores com o Mbem be
(2 01 4 [2 01 3 ]), que direcionam o foco à conexão do capitalism o com o colonialism o, em
particular com o largo e com plexo sistem a de tráfico e de coisificação de m ilhões de pessoas
negras escrav izadas.
1 3 Em se tratando de pov os originários da Am érica Latina/Aby a Yala, “m ais do que
resistência, o que se tem é R-Existência posto que não se reage, sim plesm ente a ação
alheia, m as, sim , que algo pré-existe e é a partir dessa existência que se R-Existe” (Porto-
Gonçalv es, 2 008: 4 7 ).
1 4 No Brasil, o horizonte da revolução explosiva (guerra de movimento) com o cam inho ao
socialism o se explica por conta da predom inância, a partir de um dado m om ento, de duas
correntes políticas m arxistas no país: trotskistas ou trotskizantes, stalinistas ou neo-
stalinisistas (Coutinho et al., 1 9 86 : 1 3 2 ).
1 5 Integrante de um a linha político-ideológica m ais bem dem arcada, a Teoria Marxista da
Dependência (TMD), da qual tam bém faziam parte Ruy Mauro Marini e Vânia Bam birra.
1 6 A relev ância de um a organização operária sólida forjada num program a com
orientação anticapitalista bem definida, para além de possív eis alianças am pliadas num
cam po dem ocrático-popular, foi realçada pelo quarto participante da mesa-redonda, João
Machado. Doutor em Econom ia da Pontifícia Univ ersidade Católica de São Paulo (PUC-
SP), ele fazia parte, à época, da executiv a do diretório estadual do Partido dos
Trabalhadores (PT). Rom peu com o partido em 1 9 9 4 e fundou o Partido Socialism o e
Liberdade (PSOL), no qual continua m ilitando.
1 7 A raça, discorre Mbem be (2 01 4 [2 01 3 ]), consiste não só num lugar de “v erdade das
aparências”, m as tam bém num lugar “de dilaceração, de eferv escência e de ferv or”. “A
v erdade do indiv íduo a quem é atribuída um a raça está sim ultaneam ente em outro lugar
e nas aparências que lhes são atribuídas. A raça está por detrás da aparência e sob aquilo
de que nos apercebem os. É tam bém constituída pelo próprio ato de atribuição – esse m eio
pelo qual certas form as de infrav ida são produzidas e institucionalizadas, a diferença e o
abandono, justificados, a parte hum ana do Outro, v iolada, v elada ou ocultada, e certas
form as de enclausuram ento, ou m esm o de condenação à m orte, tornadas aceitáv eis”
(ibidem: 6 6 ).
1 8 As pesquisas em píricas fazem parte de um a tese de doutorado no Program a de Pós-
Colonialism os e Cidadania Global, no Centro de Estudos Sociais (CES) da Univ ersidade de
Coim bra (UC), integrado ao Projeto ALICE, coordenado pelo Professor Boav entura de
Sousa Santos, e tem com o base em pírica diálogos estabelecidos nos territórios com
organizações indígenas no Brasil e na Bolív ia. O trabalho de cam po em Roraim a, no
Brasil, se deu entre o final de setem bro e o início de dezem bro de 2 01 3 ; já a pesquisa na
região de Cochabam ba, na Bolív ia, foi realizada entre janeiro e m arço de 2 01 4 .
1 9 Não é foco deste artigo, m as contribuições antropológicas relativ as a pov os na Am érica
Latina ajudam a dar contornos, por exem plo, ao “perspectiv ism o am eríndio” (Viv eiros de
Castro, 2 01 3 ). Ainda que possa suscitar debates, o senso de desobediência político -
epistêmica dialoga com tais form ulações.
2 0 O núcleo da m anifestação, definido com bastante antecedência por um colegiado de
lideranças indígenas, foi a Com unidade Sabiá, localizada no interior da Terra Indígena
São Marcos, num ponto situado à beira da estrada que fica a cerca de 4 0 km de
Pacaraim a. Foi um a ação estratégica que interditou a m esm a rodov ia em outro ponto (5
km m ais à frente, na outra v ila cham ada Makunaim a), já depois de um a das principais
saídas que perm ite o acesso à Com unidade do Barro/Surum u, às m argens do Rio Cotingo,
um dos “portais” da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS).
2 1 A íntegra do acórdão do julgam ento da ação que pleiteav a a nulidade da Portaria
53 4 /2 005, do Ministério da Justiça (MJ), hom ologada pelo Presidente da República em
1 5.04 .2 005, encontra -se acessív el em
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP= AC&docID= 6 3 01 3 3 .
2 2 Iniciativ a (acessív el em http://m obilizacaonacionalindigena.wordpress.com ) da
Articulação dos Pov os Indígenas do Brasil (APIB), que é com posta da união de div ersas
organizações regionais do país: a Articulação dos Pov os e Organizações Indígenas do
Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinm e), a Articulação dos Pov os Indígenas do
Pantanal e Região (Arpipan), a Articulação dos Pov os Indígenas do Sudeste (Arpin -
Sudeste), a Articulação dos Pov os Indígenas do Sul (Arpinsul), a Grande Assem bleia do

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19/03/2018 Desobediências político-epistêmicas de movimentos indígenas no Brasil e na Bolívia como aprendizagens contra-hegemônicas
Pov o Guarani (Aty Guasu) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Am azônia
Brasileira (Coiab).
2 3 A PEC 2 1 5/2 000 foi aprov ada em com issão especial form ada para análise da m atéria
(m ais detalhes em http://www.cam ara.gov .br/proposicoesWeb/fichadetram itacao?
idProposicao= 1 4 56 2 ), m as ainda aguarda apreciação por parte do Plenário da Câm ara
Federal.
2 4 Além da PEC 2 1 5/2 000, outra iniciativ a da bancada ruralista, que ao longo de anos se
destacou pela prom oção de interesses contrários à defesa dos direitos indígenas, foi a
Com issão Parlam entar de Inquérito (CPI) da Funai e do Instituto Nacional de Colonização
e Reform a Agrária (Incra). Essa CPI acabou por aprov ar, em m arço de 2 01 7 , um relatório
que pede o indiciam ento de 6 7 pessoas (entre indígenas, antropólogas/os, integrantes de
organizações indigenistas e m em bros do poder público), o qual foi criticado por div ersos
segm entos da sociedade brasileira.
2 5 Um a das principais articuladoras da referida m anifestação, de acordo com observ ação
durante o ato, foi Telm a Marques, da etnia Taurepang, então secretária do Mov im ento
das Mulheres Indígenas do CIR. Telm a foi tam bém um a das lideranças participantes do
Colóquio Internacional Território, I nterculturalidade e Bem -Viver: as lutas dos povos
indígenas no Brasil (para m ais inform ação cf. http://alice.ces.uc.pt/news/?
page_id= 3 56 8), organizado no final de junho de 2 01 4 , no âm bito do Projeto ALICE
(CES/UC). O ev ento tam bém contou com a presença de Jacir de Souza, ex -coordenador -
geral do CIR, liderança histórica do m ov im ento indígena de Roraim a.
2 6 Confirm ando trabalhos do cam po dos cham ados fem inism os pós-coloniais/descoloniais
(v er prólogo elaborado coletiv am ente pelo centro social autogerido fem inista Eskalera
Karacola, 2 004 ) que têm enfatizado as m últiplas com binações entre opressões (e
m obilizações, em resposta) de classe, de gênero e de raça.
2 7 Entre m uitos m om entos m arcantes de união entre os indígenas da TIRSS, lideranças e
inform antes consultados citaram v árias v ezes o caso ocorrido em 1 9 87 em torno da
Aldeia Santa Cruz, nas proxim idades de Norm andia (Estado de Roraim a). Um casal
indígena fora v ítim a de grav es agressões por parte de jagunços arm ados da Fazenda
Guanabara, que im pediam a circulação a m ando do fazendeiro Newton Tav ares. Após
nov as agressões, três jagunços acabaram retidos por indígenas, os quais reagiram diante
da ausência de prov idências quanto ao crim e. Na sequência, forças m ilitares e policiais
foram env iadas em grande núm ero ao local, resultando em m ais episódios de v iolência e
na prisão de 1 9 indígenas acusados pela retenção dos jagunços (CEDI, 1 9 9 1 : 1 51 -1 58).
Mesm o com tanta repressão e com a sequência de ataques (físicos e m orais, tam bém pela
im prensa), a ação unida dos indígenas é lem brada com o m om ento-chav e para a auto-
organização dos m esm os. O feixe de v aras, que representa a união de grav etos, é sím bolo
da resistência dos indígenas da TIRSS.
28 Matéria publicada no site Repórter Brasil:
http://reporterbrasil.org.br/2 01 3 /1 0/indios-de-roraim a-bloqueiam -rodov ia-contra-a-
pec-2 1 5/.
2 9 No contexto dos conflitos pela garantia dos direitos territoriais da TIRSS, o CIR foi capaz
de extrapolar “barreiras” regionais e nacionais da m ídia hegem ônica com denúncias em
nív el global, com o no caso do v ídeo com registro de tiros e bom bas a m ando do fazendeiro e
político Paulo César Quartiero, div ulgado, entre outras entidades de apoio aos direitos dos
pov os indígenas, pela Survival I nternational
(http://www.surv iv alinternational.org/news/3 3 89 ), em junho de 2 008, ainda antes do
julgam ento.
3 0 Em outubro de 2 01 3 , hav ia na Região das Serras (um a das quatro div isões da TIRSS
adotadas pelo CIR; as outras são Surum u, Baixo Cotingo e Raposa) m ais de 1 00
com unidades, ultrapassando 1 0 m il pessoas. As inform ações foram dadas (em entrev ista)
pelo então coordenador regional do CIR, Abel Lucena.
3 1 Entrev ista realizada em 1 9 de outubro de 2 01 3 , na com unidade Willim on.
3 2 García Linera (2 01 0 [2 009 ]: 58 -6 2 ) chega a inv ocar, ainda que parcialm ente, a
noção de “um tipo de colonialism o contem porâneo” a partir “não da subordinação do
processo de trabalho im ediato, que já presum e certa hom ogeneização m ercantil das
relações laborais e culturais, m as da subsunção geral [em sua m odalidade form al e real]
dos processos de produção e de circulação social do capital com ercial”. Porém , acaba por
repetir a centralização da classe histórica nas relações de trabalho.
3 3 Indígenas tam bém são frequentem ente acusados de serem m arionetes nas m ãos de
ONG, em presas e gov ernos estrangeiros. Encontra -se com facilidade nos discursos de
m em bros da bancada parlam entar ruralista e da Confederação de Agricultura e Pecuária
do Brasil (CNA), a associação das reiv indicações indígenas por territórios com a cobiça
internacional das riquezas am azônicas, a despeito de serem os agentes do agronegócio
aqueles que m ais guardam v ínculo com o capital transnacional.
3 4 No julgam ento no STF das 1 9 condicionantes associadas à dem arcação da TIRSS,
ocorrido em outubro de 2 01 3 (e registrado in loco em outra m atéria deste pesquisador, cf.
http://reporterbrasil.org.br/2 01 3 /1 0/direitos-sao-m antidos-na-terra-indigena-raposa-
serra-do-sol/), o m inistro Marco Aurélio Mello ev ocou conteúdo da rev ista sem anal Veja
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19/03/2018 Desobediências político-epistêmicas de movimentos indígenas no Brasil e na Bolívia como aprendizagens contra-hegemônicas
que propalav a a ideia de que a retirada de não indígenas do território teria sido
desv antajosa aos próprios indígenas, os quais estariam v iv endo num a “reserv a de
m iséria”. Mas a declaração que prov ocou m aior indignação entre os pov os da região foi a
do gov ernador de Roraim a, José de Anchieta que, à época da decisão pela área contínua
por parte do STF (2 009 ), dissera que a TIRSS se transform aria num “zoológico hum ano”,
“sem a m enor condição de sobrev iv ência”, com a retirada de produtores rurais não
indígenas da área.
3 5 Em sua etnografia sobre a Assem bleia Constituinte (2 006 -2 007 ), Schalv ezon (2 01 3 )
discorre detalhadam ente (no item 2 .1 : 9 3 -1 01 ) sobre as disputas, im passes e acordo final
em torno da construção da síntese tripla ‘indígena originária cam ponesa’, sem sinais
ortográficos de separação entre os term os, v ia Pacto de Unidade: a articulação entre as
cinco principais organizações que se uniram num a frente para a construção da
Constituição Política de Estado (CPE) de 2 009 – Central Sindical Única de Trabalhadores
Cam poneses da Bolív ia (CSUTCB), Confederação Nacional de Mulheres Cam ponesas
Originárias e Indígenas da Bolív ia “Bartolina Sisa” (CNMCOIB-BS), Confederação Sindical
de Com unidades Interculturais da Bolív ia (CSCIB), Confederação Nacional de Ay llus e
Markas do Qullasuy u (Conam aq) e Confederação dos Pov os Indígenas da Bolív ia –
Oriente, Chaco e Am azônia (CIDOB).
3 6 Há um a coleção de falas e com unicados de Morales, de García Linera e de outros
m inistros do gov erno do MAS-IPSP que atribuem a postura crítica de grupos dissidentes –
particularm ente de grupos do Conam aq e da Cidob que se rebelaram contra direções
“oficialistas” – a interferências internacionais. A não aceitação de pov os indígenas locais
ao projeto gov ernam ental de construção de um a rodov ia que atrav essa o Território
Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS), obra lançada inicialm ente em 2 01 1
com suporte do Banco Nacional de Desenv olv im ento Econôm ico e Social (BNDES) e
atribuída à em preiteira OAS (am bas do Brasil), têm um peso grande na intensificação
desse discurso coisificante. Tais acusações tam bém se m ostraram extensiv as a centros de
pesquisa, associações e ONGs com atuação de m uitos anos no país – com o o Centro de
Docum entação e de Inform ação Bolív ia (CEDIB), a Fundação Tierra e o Centro de Estudos
para o Desenv olv im ento Laboral e Agrário (CEDLA),
3 7 É possív el notar descontinuidades entre proposições ancoradas na “dim ensão
m ulticiv ilizatória da com unidade política” (García Linera, 2 01 0 [2 009 ]: 2 1 4 -2 2 1 ) e
enfoques m ais atuais deste m esm o autor que se dedicam a defender um a sorte de papel
transitório de “v anguarda” assum ido pelo Estado, que acaba por confluir com a ideia de
instrumento político orientador das ações políticas (Harnecker, 2 01 3 ).
3 8 Num dos preâm bulos do Estatuto da Autonom ia Indígena Originária Cam ponesa
(AIOC) de Raqay pam pa, aprov ado com 9 1 ,7 8% dos v otos em referendo local (nov em bro
de 2 01 6 ), a form ação da CRSUCIR e do Distrito Maior Indígena, com o um passo para a
Subprefeitura, é v inculada à educação. As experiências de educação com unitária
perm itiram , de acordo com o texto, “constituir um projeto educativ o próprio com os
Conselhos Com unais Educativ os com o instância de controle com unal sobre a gestão
educativ a, em torno ao qual forjam os o Conselho Regional Educativ o das Alturas (CREA)
e o Centro de Form ação Originária das Alturas (CEFOA), onde refletim os e nos
preparam os para o exercício da gestão territorial indígena originária cam ponesa”. Ver na
íntegra em
http://observ atorioparidaddem ocratica.oep.org.bo/files/uploads/estatuto_raqay pam pa.pdf.
3 9 No últim o dia 1 2 de agosto de 2 01 7 , a autoridade tradicional eleita em pleito realizado
em m aio do m esm o ano, Florencio Alarcón, recebeu as credenciais, junto com outras cinco
pessoas tam bém escolhidas pelas/os próprias/os com unárias/os para o Conselho de Gestão
Territorial da AIOC de Raqay pam pa. Foi o últim o passo form al para a conclusão de um
projeto autonôm ico de m ais de 1 0 anos, que exigiu em penho e participação das
com unidades num a sequência de consultas populares e div ersos trâm ites burocráticos
(incluindo a edição de leis específicas). Raqay pam pa se consolidou, portanto, com o
segunda AIOC do país (a prim eira foi Charagua Iy am bae, do pov o Guarani); m as foi a
prim eira a se tornar autonôm ica sem antes ter sido um m unicípio, pois fazia parte de
Mizque.
4 0 O ev ento contou com o apoio da organização não gov ernam ental Instituto Socio
Am biental (ISA) Bolív ia, que presta auxílio no processo de form ação e efetiv ação da AIOC
de Raqay pam pa, com particular dedicação aos tem as da educação e da organização
produtiv a. Tam bém o projeto audacioso da Organização Econôm ico-Com unitária (Oecom )
de Raqay pam pa, que instalou um a prim eira e pequena planta de produção de bolachas
(Tikita) a partir da produção local e orgânica de trigo e m ilho na com unidade de Salv ía,
com fundos de cooperação internacional, conta com suporte da m esm a ONG.
4 1 As com unidades são div ididas em cinco subcentrais (Raqay pam pa, Laguna, Molinero,
Santiago e Salv ía), segundo o m odo de organização do sindicalism o agrário adotado pela
CRSUCIR, que integra a Federação Sindical Única dos Trabalhadores Cam poneses de
Cochabam ba (FSUTCC), organização departam ental associada à Confederação Sindical
Única dos Trabalhadores Cam poneses da Bolív ia (CSUTCB). Ao todo, 4 3 sindicatos fazem
parte da CRSUCIR. Estim a -se que cerca de 1 0 m il pessoas v iv am no território.

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4 2 Raqay pam pa foi reconhecida com o Terra Com unitária de Origem (TCO) – m ódulo
fundiário atualm ente renom eado com o Território Indígena Originário Cam ponês (TIOC)
– em 2 005, em consonância com a reiv indicação de outras organizações, o que assegurou
a titulação coletiv a das terras.
4 3 A Bolív ia se define no artigo 1 .º de sua CPE 2 009 com o “Estado Unitário Social de
Direito Plurinacional Com unitário” fundado na pluralidade e no pluralism o político,
econôm ico, jurídico, cultural e linguístico. A AIOC é definida (artigo 2 89 ) com o:
“autogov erno das nações e pov os indígenas originários cam poneses, cuja população
com parte território, cultura, história, línguas, e organização ou instituições jurídicas,
políticas, sociais e econôm icas próprias”. Em 2 01 0, para a regulam entação das
autonom ias, prom ulgou -se a Lei Marco 03 1 de Autonom ias e Descentralização (LMAD)
“Andrés Ibañez”.
4 4 Um dos m arcos para a reorganização e retom ada de ciclo de m obilizações de indígenas
na Bolív ia foi a Prim eira Marcha Indígena “Pelo Território e Pela Dignidade”, das terras
baixas até La Paz, em 1 9 9 0. Outras m archas se seguiram e, no ano de 2 000, a Guerra da
Água em Cochabam ba, contra a priv atização dos serv iços de abastecim ento do precioso
recurso natural, sim bolizou outro im portante m om ento de m obilização social e
autonom ia popular, assim com o a Guerra do Gás, em 2 003 . O ciclo de rev oltas e
transform ações refluiu de algum a form a na eleição do prim eiro presidente indígena do
país, Ev o Morales, e na Assem bleia Constituinte que elaborou, por fim a CPE prom ulgada
em 2 009 .
4 5 Até por fazer parte da CSUTCB, a CRSUCIR m antém um a relação “orgânica” com o
MAS-IPSP, m as esse v ínculo não a im pediu de dar preferência pela AIOC, em v ez de se
contentar com as estruturas político-partidárias e burocrático-institucionais já
existentes. Tanto que um a liderança im portante de Raqay pam pa, o masista Melécio
Garcia, já tinha sido eleito e atuav a com o prefeito de Mizque, m unicípio ao qual o
território indígena originário cam ponês pertencia antes da autonom ia confirm ada.
4 6 A Lei de Educação 07 0, de 2 01 0, estabelece m arcos para um a educação intercultural
e plurilíngue, que reflete em seus conteúdos as realidades dos pov os indígenas originários
cam poneses da Bolív ia. Carrega o nom e dos educadores Av elino Siñani e Elizardo Pérez
(fundadores da histórica Escola de Warisata, pioneira na im plem entação, ainda no início
da década de 1 9 3 0, de proposta educacional a partir dos ayllus (as form as andinas de
organização social, política, econôm ica e cultural), (cf. na íntegra:
http://www.m inedu.gob.bo/index.php/pages/docum entos-norm ativ os-m inedu/2 3 3 -
ley es/1 52 4 -ley -av elino-sinani-elizardo-perez).
4 7 Jampiris são, por aproxim ação, curandeiros das com unidades, que conhecem em
particular as erv as, os frutos da natureza e m anejam form as de preparação e aplicação da
m edicina tradicional.
4 8 Yatiris são, tam bém por aproxim ação, algo m ais próxim o aos pajés, dotadas de dons
espirituais.
4 9 Entrev ista realizada em 1 9 de m arço de 2 01 4 , na com unidade de Raqay pam pa.

Para citar este artigo


Referênc ia do do c um ento im pres s o
Maurício Hiroaki Hashizume, « Desobediências político-epistêmicas de movimentos
indígenas no Brasil e na Bolívia como aprendizagens contra-hegemônicas », Revista Crítica
de Ciências Sociais, 114 | 2017, 187-206.

Referênc ia eletró nic a


Maurício Hiroaki Hashizume, « Desobediências político-epistêmicas de movimentos
indígenas no Brasil e na Bolívia como aprendizagens contra-hegemônicas », Revista Crítica
de Ciências Sociais [Online], 114 | 2017, colocado online no dia 20 Dezembro 2017, criado a
19 Março 2018. URL : http://journals.openedition.org/rccs/6835 ; DOI : 10.4000/rccs.6835

Autor/a
Maurício Hiroaki Hashizume
Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus de Palmas
Avenida NS 15, Quadra 109 Norte, Plano Diretor Norte, Bloco Bala II, Sala 20, Palmas -TO,
CEP 77001-090, Brasil
maurijor@gmail.com

Direitos de autor
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