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Adriana Pinto Fernandes de Azevedo

Reconstruções queers: por uma utopia do lar

Tese de doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Literatura, Cultura e Contemporaneidade, do
Departamento de Letras, como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor em Letras.

Orientadora: Eneida Leal Cunha


Co-orientadora: Ana Paula Veiga Kiffer

Rio de Janeiro, abril de 2016


Adriana Pinto Fernandes de Azevedo

Reconstruções queers: por uma utopia do lar


Tese apresentada como requisito parcial para obtenção
do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em
Literatura, Cultura e Contemporaneidade do
Departamento de Letras do Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.

Profa. Eneida Leal Cunha


Orientadora
Departamento de Letras – PUC-Rio

Profa. Ana Paula Veiga Kiffer


Departamento de Letras – PUC-Rio

Profa. Eleonora Batista Fabião


UFRJ

Prof. Roberto Marques


URCA

Profa. Liv Rebecca Sovik


UFRJ

Profa. Denise Berruezo Portinari


Coordenadora Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 11 de abril de 2016


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do
trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.

Adriana Pinto Fernandes de Azevedo


Graduou-se em Letras – Português/Francês na Universidade Federal do
Rio de Janeiro em 2009. É mestre em Letras pelo Programa de Pós-
Graduação em Literaturas da PUC-Rio desde 2012. No mesmo ano,
passou a fazer parte do novo Programa de Pós-Graduação em Literatura,
Cultura e Contemporaneidade do mesmo departamento, ao ser admitida
na seleção de doutorado, com bolsa CNPq. De 2013 a 2014 foi bolsista
CAPES – PDSE (sanduíche) na Université de Lille 3, tendo sido
supervisionada por Marie-Hélène Bourcier. Doutorou-se em 2016, com a
presente tese, orientada por Eneida Leal Cunha e co-orientada por Ana
Paula Veiga Kiffer.

Ficha Catalográfica

Azevedo, Adriana Pinto Fernandes de

Reconstruções queers : por uma utopia do lar / Adriana Pinto


Fernandes de Azevedo ; orientadora: Eneida Leal Cunha ; co-
orientadora: Ana Paula Veiga Kiffer. – 2016.
147 f. : il. ; 30 cm

Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de


Janeiro, Departamento de Letras, 2016.
Inclui bibliografia

1. Letras – Teses. 2. Lar. 3. Casa. 4. Queer. 5. Arquivo. 6.


Homossexualidade. I. Cunha, Eneida Leal. II. Kiffer, Ana Paula
Veiga. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Letras. IV. Título.

CDD: 800
Agradecimentos

À Eneida Leal Cunha, pela orientação atenta e exigente; pela sensibilidade e


engajamento; por ter me mostrado que eu podia tocar a pesquisa com a minha
vida, por ser Mestre. À Ana Paula Veiga Kiffer, pela poesia das aulas; pela
orientação; por ter dito “o lar está atravessando esse projeto” naquele dia no café;
pelas inúmeras conversas, lições e atravessamentos; pela proximidade e respeito.
À Marie-Hélène Bourcier, pela co-orientação em período de Doutorado Sanduíche
na Université de Lille 3; pela gentileza; por abrir diversas portas sensíveis,
afetivas, profissionais e intelectuais durante a estadia em Paris; à Isabelle Boff-
Vermesse pelo interesse em minha pesquisa; À Rachele Borghi, pela gentileza da
orientação informal em conversas de bar; a Creston C. Davis, do The Center For
Advanced Studies.
Ao CNPQ, pela bolsa que forneceu a base para a realização desse trajeto de
pesquisa. À CAPES, pela bolsa de Doutorado Sanduiche no período de 11 meses,
entre 2013 e 2014, na França.
Ao Departamento de Letras da PUC-Rio; a todos os funcionários que sempre
estiveram disponíveis e solícitos. A todas as professoras e professores do
programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, pelas
aulas que expandiram o meu campo de saber.
À Liv Sovik e Julio Tavares que, junto com Eneida Leal Cunha, ministraram, em
2012, a disciplina que me transformou de inúmeras formas.
Aos amigos que, de forma gentil, carinhosa e atenta, fizeram a leitura e revisão de
cada capítulo dessa tese: Manoela Sawitzki, Felipe Wirker Machado e Diego
Paleólogo. Aos três, agradeço também pelo amor e amizade, pelas instigantes
trocas, indicações de leituras e objetos sempre providenciais; ao Cláudio Eduardo,
por todos os artigos aos quais eu não tinha acesso.
Aos colegas do programa: bar, chat, e-mail: Ana Salek, Natalie Araújo Lima,
Rafael Meire, Clarisse Zarvos, Mayumi Aibe, Raissa de Góes, Rodrigo Cascardo,
Luiz Coelho, André Capilé, Diego Ferreira, Antonia de Thuin, Maíra Fernandes,
Antonia Costa, Joana Rabelo.
Aos amigos que sempre me ensinam a amar e que também me acolheram nessa
rede afetiva: Luisa S. Vilela, Bruno Mareto, Paula Gicovate, Diego Mareto e
Maria Carneiro Cunha – não sei nem expressar; à Ana Paula Pellegrino, por todos
os cafés, pelas conversas instigantes, pelo amor sempre próximo.
À minha família, pelo estranho e amoroso relacionamento – convivência mais
queer não há; à Paula Scarpin, que já foi família – que levo com carinho na
memória.
Resumo

Azevedo, Adriana Pinto Fernandes de; Cunha, Eneida Leal; Kiffer, Ana
Paula Veiga. Reconstruções Queers: Por Uma Utopia do Lar. Rio de
Janeiro, 2016. 147p. Tese de Doutorado - Departamento de Letras,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

A presente tese tem como objetivo traçar uma paisagem constelar de


vivências queers (minorias sexuais, de gênero, étnico-raciais, etc) que afirmam
suas vidas através da reconfiguração das ideias de “lar” e “casa”. Para isso, foram
utilizados diversos objetos-acontecimentos (filmes, livros, materiais arquivísticos)
que nos ajudassem a produzir “fendas” ou “fissuras” afirmativas no pensamento
sobre o poder através das suas potências de vida, fazendo eco ao que propõe
Beatriz Preciado em seu ensaio “Multidões Queer: notas para uma política dos
anormais” (2011). Alguns deles são: o livro Stella Manhattan (1995), de Silviano
Santiago; os home movies do cineasta Derek Jarman; materiais pessoais de Alice
B. Toklas e Gertrude Stein arquivados no Harry Ramson Center, da Universidade
do Texas em Austin; a peça de teatro Domínio do Escuro (2015) de Juliana
Pamplona; o filme The Watermelon Woman (1996), de Cheryl Dunye e o
filme Shortbus (2006), de John Cameron Mitchell. Trata-se de uma organização
de tese que faz parte de uma corporeidade que não é histórica no sentido
normativo da palavra, mas tecida como um gesto que se aproxima daquele
presente no Atlas de Aby Warburg, no esforço de fazer entender o link, um nexo,
uma conexão secreta entre diferentes imagens que se afirmam enquanto
resistências às normas de gênero e sexualidade, e aos modos de estar junto
normatizados na modernidade e na História.

Palavras-chaves
Lar; casa; queer; LGBT; homossexualidade; arquivo; precariedade; home-
movies.
Abstract

Azevedo, Adriana Pinto Fernandes de; Cunha, Eneida Leal; Kiffer, Ana
Paula Veiga. Queer Reconstructions: Thinking Utopic Homes. Rio de
Janeiro, 2016. 147p. PhD Thesis - Departamento de Letras, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro

The goal for this thesis is to draw a constellation of queer livings (sexual,
gender, ethnic, racial and other minorities) that reassures their lives through the
reconfiguration of the ideas of “home” and “house”. In order to accomplish that,
several happening-objects were used (films, books, archive material) to help us
produce affirmative “slits” or “clefts” when thinking about power through its life
potency, echoing what Beatriz Preciado suggests in her essay “Multitudes queer.
Notes for a politics of "abnormality"” (2011). Some of them are: the book Stella
Manhattan (1995), by Silviano Santiago; movie maker Derek Jarman’s home
movies; personal material from Alice B. Toklas and Gertrude Stein archived at
Harry Ramson Center, at the University of Texas in Austin; the play Domínio do
Escuro (2015) by Juliana Pamplona; the movie The Watermelon Woman (1996),
by Cheryl Dunye and the movie Shortbus (2006), by John Cameron Mitchell. It is
a thesis organized in a non-historical corporeity in the normative sense of the
word, but woven as a gesture close to the one present in Aby Warburg’s Atlas, in
an effort to understand the hidden connection between different images that arise
as resistence to the norms of gender and sexuality, and to the normatized forms of
being together in modernity and in History.

Keywords
Home; house; queer; LGBT; homosexuality; archive; precarity; home-
movies.
Sumário

1. Introdução 09

2. Home Sweet Home 17


2.1 A casa como ferramenta de resistência 29

3. “Na sombra da luz do sol”: os filmes caseiros de Derek Jarman 42


3.1 O íntimo é político 48

4. O “contra-arquivo queer” como objeto artístico: repensando o lar 69


4.1 Arquivo e criações de biopotências: Domínio do Escuro e The 77xx
Watermelon Woman x
4.2 O arquivo íntimo em Fun Home: Uma tragicomédia em Família 93

5. Cuidado, precariedade e resistência utópica em Shortbus, de John 110x


Cameron Michell x
5.1 Utopia queer e outros modos de viver junto 127

6. Considerações finais 135

7. Referências bibliográficas 143


Georges Brassai, Le Monocle, 1930's (Paris)
1
Introdução

Os saberes dominantes são derrubados. Não como as


"torres gêmeas" se derrubaram, deixando atrás delas
uma nuvem de poeira que alimenta a mitologia-guerra
mas, ao invés disso, como se borra uma forma sobre a
superfície da tela do Tetris, ou melhor, como desmaia
um corpo que se deixa beijar até à mordida de uma
amante vampira.
(Beatriz Preciado)1

Desde a finalização da escrita da minha dissertação de mestrado, intitulada


A normalização do corpo homossexual e suas possíveis subversões (2012) – onde
produzi uma espécie de mapeamento das normalizações provocadas pelas
institucionalizações das identidades sexuais, a partir de diversos eventos culturais
–, o meu interesse de pesquisa vinha migrando para as “histórias de resistências”
do estou chamando aqui de vivências queers. Ao invés de traçar uma reflexão
acerca do poder, do “corpo-vítima”, das opressões e das coerções, senti que o
caminho investigativo em torno das vidas minoritárias, que resistem aos jogos de
poder e que criam outras possibilidades de existir, tem sido ainda pouco
percorrido.

Quando comecei o doutorado, com um projeto que girava em torno do


movimento da pós-pornografia2, e antes de mudar o objeto de estudo para
questões referentes ao “lar” e à “casa”, a escolha do “problema” teórico já tinha
por motivação esta preocupação: a necessidade de produzir uma investigação
acerca das resistências à normalização e de elaborar um traçado constelar (de

1
“Los saberes dominantes se derrumban. No como las “twins Towers” se derrumbaron dejando
tras ellas una nube de polvo que alimenta la mitología-guerra sino, más bien, como se desdibuja
una forma sobre la superficie de una pantalla de Tetris o, mejor, como se desmaya un cuerpo que
se deja besar hasta la mordedura de una amante vampira.” (Preciado. Saberes_vampiros@War –
Donna Haraway y las epistemologías cyborg y decoloniales, 2013, np – Tradução livre)
2
De forma bem resumida, o movimento da pós-pornografia é um fenômenos transnacional e
funciona como uma intercessão entre as políticas queers, feminismo e cultura DIY (do it yourself,
faça você mesmo), defendendo a ideia de que devemos produzir uma pornografia independente, a
partir da apropriação das tecnologias sexuais que a produzem – indo de encontro com o ideal das
feministas anti-pornografia, que acreditam que o gênero colabora com a opressão das mulheres e,
por isso, deve ser combatido sob qualquer forma.
10

imagens, textos, clipes, filmes, objetos), que pudessem ser pensados como forças
de vida que agem nas brechas do poder.

Beatriz Preciado, em seu artigo “saberes_vampiros@war Donna Haraway


y las epistemologias cyborg y decoloniales” (2013), considera o estado atual das
disputas pelo uso das técnicas de produção de códigos uma “micro_guerra_total”,
e que “fazer uma verdadeira cartografia dos saberes estabelecidos, um plano
completo dos vetores de crítica dos saberes e linguagem dominantes, significaria
renunciar ao jogo”. Para Preciado, ao contrário, devemos “identificar certos
deslocamentos dos saberes dominantes até uma multiplicidade dos saberes locais
ou minoritários”. Esta cartografia alternativa seria, assim “uma coleção de traços
luminosos já desaparecidos que procuram se inscrever hoje na memória e na
política3” (Preciado, 2013, np).

Os deslocamentos dos saberes dominantes ocorrem, como atenta Preciado


em outro artigo, intitulado “Multidões Queers: notas para uma política dos
anormais” (2011), na apropriação que estes sujeitos fazem das “tecnologias
sexopolíticas específicas, na apropriação das disciplinas de saber/poder sobre os
sexos, na rearticulação e no desvio das tecnologias sexopolíticas específicas de
produção dos corpos ‘normais’ e ‘desviantes’” (Idem, 2011, p. 13).

No entanto, se saber = lugar, como afirma a autora, fazendo referência ao


pensamento de Donna Haraway e de Walter Mingnolo (que faz uma reflexão
acerca da “espacialização do saber”), o lugar do saber é uma fissura4, “o efeito
de uma série de deslocamentos” (Idem, 2013, np). Não existira um “fora” do
poder, ou uma “saída” do poder, o poder é, como a imagem da Muralha da China
evocada por Peter Pal Pelbart no artigo “Poder sobre a vida, potência da vida”
(2008), uma grande parede que é construída em pedaços que são erguidos
separados, aqui e acolá, com intervalos, brechas, lacunas quilométricas.

No caso da Muralha da China, comenta Pelbart, o Imperador a construiu


para impedir a entrada de nômades vindos do Norte. E eles acabaram entrando
pelas suas brechas, se instalando em acampamentos na praça central de Pequim,
em frente ao Palácio Imperial. Mas os nômades não têm intenções de tomar o

3
Negrito meu.
4
Idem.
11

poder de assalto, eles ignoram desconhecem os costumes locais e imprimem à


capital em que se infiltram sua esquisitice. Ignoram as leis do Império, parecem
ter sua própria lei, que ninguém entende.

É uma lei-esquiza, dizem Deleuze-Guattari. Por que esquiza? O esquizo está presente e
ausente simultaneamente, ele está na tua frente e ao mesmo tempo te escapa, sempre está
dentro e fora, da conversa, da família, da cidade, da economia, da cultura, da linguagem...
Ele ocupa um território mas ao mesmo tempo o desmancha, dificilmente ele entra em
confronto direto com aquilo que recusa, não aceita a dialética da oposição, que sabe
submetida de antemão ao campo do adversário, por isso ele desliza, escorrega, recusa o
jogo ou subverte-lhe o sentido, corrói o próprio campo e assim resiste às injunções
dominantes. O nômade, como o esquizo, é o desterritorializado por excelência, aquele que
foge e faz tudo fugir. Ele faz da própria desterritorialização um território subjetivo.
(Pelbart, 2008, p. 33-34)

Poderíamos, a partir destas reflexões, pensar a multiplicidade das


vivências queers como os nômades que deslizam por entre as brechas deixadas
pelo Império Sexual e recusa o jogo heteronormativo, subvertendo o seu sentido?
O queer faz da desterritorialização o seu lugar subjetivo? Como o Império Sexual
lida com os possíveis deslocamentos, com as desterritorializações promovidas
pelas vivências que penetram seu território? São perguntas-setas, que têm como
papel nos guiar através da presente tese.

Estamos vivendo uma crescente onda de interesse pela questão do direito


ao acesso ao espaço público, à rua e à cidade. Desde as últimas reflexões de Judith
Butler sobre a vulnerabilidade e resistência; passando pelos novos debates sobre a
mobilidade urbana; os occupy contra a austeridade econômica que se espalharam
pelo mundo (como o movimento Occupy Wallstreet, que aconteceu em 2011 em
Manhattan, E.U.A.); o direito do ir-e-vir das pessoas negras, mulheres e LGBTs,
que sofrem violências físicas e sexuais por conta do racismo, machismo,
lesbofobia, transfobia – se expandem os debates acerca de quem pode aparecer no
espaço urbano e quem pode utilizá-lo como suporte de luta.

Denilson Lopes, em seu artigo “A volta da casa na literatura brasileira


contemporânea” (2006), demonstra a mesma inquietação, ao dizer que
“Proliferam seminários, instalações, e intervenções sobre o espaço urbano. Nada
de surpreendente, até necessário, desde que a cidade se tornou, na modernidade,
12

seu espaço privilegiado”. Faço eco, sobretudo, ao questionamento que se segue:


“Mas a que fim levou a casa?” (Lopes, 2006)5.

Em 2014 eu me encontrava em estágio de doutorado sanduíche e morava


em Paris enquanto desenvolvia a minha pesquisa que, naquela altura, tinha como
foco a pós-pornografia. Certo dia, enquanto estava na Biblioteca Nacional
Francesa, recebi um e-mail com o convite para escrever um ensaio para um
catálogo de uma mostra de cinema que aconteceria na Caixa Cultural do Recife
naquele mesmo ano. A mostra, seria em homenagem ao diretor Derek Jarman
(que fez parte do movimento do cinema independente intitulado pela teórica B.
Ruby Rich de New Queer Cinema, o Novo Cinema Queer) e a proposta era bem
específica: eu deveria escrever um pequeno texto acerca dos curtas em Super-8 do
diretor, chamados por ele mesmo de “home movies” 6.

No processo de imersão pelo mundo dos Super-8 de Jarman, diretor


homossexual, nascido na Inglaterra e que falecera de AIDS em 1994, começou a
nascer em mim o interesse de voltar meus olhos para o espaço doméstico e para as
resistências que são criadas no âmbito da intimidade, nesse lugar ao qual muitas
vezes não temos acesso, mas que tem tanta importância quanto o espaço urbano e
público dentro do contexto das vivências e lutas queers – e, para além disto,
passei a perceber que existia uma potência de resistência na produção de redes
afetivas e familiares produzidas por vidas fora da norma.

Percebi, nesse processo, que a atenção das reflexões da chamada Teoria


Queer para o espaço da casa e do lar tem sido muito escassa, existindo uma lacuna
conceitual acerca das potencialidades que podem emergir dos usos que as
minorias sexuais, raciais e de gênero fazem de tais lugares e ideias (família,
espaço doméstico e lar). Que tipos de deslocamentos em relação à percepção que
temos das noções casa e de lar as vidas queers promoveram ou estão

5
Disponível em: <http://www.germinaliteratura.com.br/literaturadl_agosto2006.htm>. Acessado
em 13 de março de 2016.
6
A mostra, intitulada Derek Jarman: cinema é liberdade, aconteceu entre 5 e 24 de agosto de
2014 na Caixa Cultural do Recife (PE) e o catálogo está disponível em:
<http://www.mostraderekjarman.com.br/>. Acessado em 9 de março de 2016.
13

promovendo? Onde está a casa na reflexão teórica, política e cultural sobre o


modo de vida que estamos chamando aqui de queer?

Utilizo tais perguntas, novamente, apenas como questões que nos ajudam a
criar um movimento no pensamento. A proposta desta tese não é, portanto, a de
encontrar uma “verdade” sobre as formas como a comunidade queer vivenciam o
lar e a casa, ou até mesmo a família. Ela foi organizada como uma materialidade
de outra espécie, com o intuito de “queerizar” a sua forma, produzindo fissuras e
fendas no que Elizabeth Freeman, em seu livro Time Binds: Queer Temporalities,
Queer Histories (2010), chama de “crononormatividade” histórica. Elaborei,
portanto, uma reunião de um corpus inspirada e atravessada pelo que Ann
Cvetkovich chama de “a arte do contra-arquivo queer” (2011) [The Queer Art Of
Counterarchive].

Considere o que você está para ler daqui em diante como uma paisagem
constelar de vidas que resistem, que insistem em viver e a respirar – com
intensidade, com potência, com paixão e, sobretudo, com a vontade de reinvenção
dos modos de amar, de viver junto, de cuidar, de produzir coletividade, de transar,
de decorar, de construir...

No segundo capítulo, Home Sweet Home, faço uma busca acerca do


conceito de casa desde o Império Romano, passando pela Idade Média e chegando
à modernidade. Ainda, foi feita uma breve exploração das funções da casa desde o
seu surgimento. Investiguei também como o espaço doméstico foi utilizado para
organizar os corpos, servindo ao heterocapitalismo como tecnologia prostética, a
partir dos trabalhos de Beatriz Preciado, Michel Foucault e Judith Halberstam.

Logo em seguida foi traçada uma análise do Romance Stella Manhattan


(1985), de Silviano Santiago, que se passa nos anos de chumbo da ditadura
brasileira e no qual o personagem Eduardo/Stella tem sua homossexualidade
descoberta e é expulso de casa pelo pai militar, que o envia para o exílio em Nova
York, como funcionário consular. A narrativa de Santiago me ajudou a pensar
acerca das formas como a casa se torna uma violência e rejeição para os jovens
queers no momento do seu coming-out. Por outro lado, a história também nos
14

serve como ferramenta de instigação e reflexão acerca das maneiras como o


jovem queer, através da vivência da personagem Eduardo/Stella no exílio, cria
outras ideias de conexão afetiva e de referências domésticas.

Já no terceiro capítulo, intitulado “Na sombra da luz do sol”: os vídeos


caseiros de Derek Jarman, exploro inicialmente como o surgimento da primeira
câmera de filmar para uso doméstico, em 1923, e depois popularização ter se
tornado economicamente mais acessível em 1950, transformaram a forma como a
família registrava o seu dia-a-dia e seus momentos de lazer. Os chamados “home
movie”, ou “filmes caseiros”, surgem como um gênero fílmico doméstico
característico das famílias nucleares burguesas brancas, de classe-média e
heterossexuais. Após essa breve genealogia do home movie, introduzo a
investigação acerca dos filmes independentes do diretor inglês Derek Jarman, que
se apropria do estilo dos home movies a fim de ressignificá-lo através de seu olhar
queer. O meu interesse é, sobretudo, em como a intimidade e a criação estética de
Jarman, através do deslocamento que faz de tal estilo fílmico, com seus curtas em
Super-8, tornam-se uma importante ferramenta política e um antídoto para a
lógica do “armário”.

O quarto capítulo, O contra-arquivo queer como objeto artístico:


repensando o lar, percorre os conceitos de “contra-arquivo queer” e “arquivo dos
sentimentos” (archive of feelings), propostos por Ann Cvetkovich em seu ensaio
“The Queer Art of Counterarchive” (2011) e em seu livro The Archive of
Feelings, respectivamente, utilizando também o pensamento de Jacques Derrida
em seu livro Mal de Arquivo: por uma impressão freudiana (2003). Com o auxílio
destas reflexões que deslocam o conceito de arquivo de seu caráter institucional,
foram explorados diversos usos que artistas queers fizeram de fontes arquivísticas
para recontarem a História, des-recalcando registros e lembranças sobre formas de
vidas que até então estavam relegadas a fotografias em fundos de baús, anotações
em diários, memórias por muito tempo escondidas, objetos afetivos, etc. O corpus
artístico utilizado foi: a peça teatral Domínio do Escuro (2015), de Juliana
Pamplona, o filme The Watermelon Woman (1996), de Cheryl Dunye e o romance
gráfico Fun Home: uma tragicomédia em família (2006) – que também se tornou,
recentemente, um musical na Broadway.
15

No quinto e último capítulo, Cuidado, precariedade e resistência


utópica em Shortbus, de John Cameron Mitchell, proponho um diálogo da
reflexão sobre a precariedade, a vulnerabilidade e a resistência no pensamento de
Judith Butler com as considerações de Michel Foucault sobre o “cuidado de si”
resgatadas do mundo grego antigo, para se pensar como que as vivências queers
resgatam uma ideia de “cuidado de si” que não tem a ver com a individualidade
moderna, mas com a necessidade e aliança com o outro.

Tais considerações são atravessadas pelo exame do filme Shortbus (2006),


dirigido por John Cameron Mitchell, que constrói seu enredo em torno de um
contra-lugar: um cabaré que os personagens do filme vão, em um contexto pós-
11/09, para se tornarem permeáveis ao outro, à sexualidade e aos afetos. Em um
último momento do capítulo, considero como Shortbus nos ajuda a pensar nas
ideias propostas por José Esteban Muñoz e Judith Halberstam, acerca de uma
“utopia” e de um “otimismo” queers. Munõz e Halberstam se opõem ao
pessimismo e ao pragmatismo político das lutas LGBTs contemporâneas, e
acreditam que existe um outro gesto político possível, que se basearia em se
aproveitar das potencialidades das vivências queers, para que seja possível de
imaginar um por vir, onde se realizem outros modos de amar, de transar e de estar
junto, fazendo da vida mais vivível e respirável.

A pesquisa foi desenvolvida a partir do meu próprio arquivo afetivo e


inspirada no gesto do Atlas de Mnemosyne de Abby Warbug, onde é reunido um
“material imagético extraordinariamente diversificado”, como descreve Didi-
Huberman em seu livro A imagem sobrevivente: História da arte e tempo dos
fantasmas segundo Aby Warburg, a fim de traçar o nexo, a ligação secreta entre
eles (2013, p. 383). Didi-Huberman ainda observa que o “Mnemosyne traz todos
os traços da linguagem privada e da busca autobiográfica. É uma espécie de
autorretrato estilhaçado em mil pedaços” (Ibid., 390).

Tais objetos são, portanto, parte do que constitui a minha própria ideia de
“lar” – estão dispostos na minha estante, no meu armário, na minha mesa de
cabeceira, na minha pasta de arquivos virtuais privada, nas minhas paredes e na
16

minha memória. Eu escolhi dispô-los nas páginas a seguir, a partilhá-los, e


convidar o leitor a entrar. Sintam-se em casa.
2
Home sweet home

Tenho ouvido muita gente dizer que preferiria


ver seus filhos mortos a serem gays. Custou-me
muito tempo chegar a crer que dizem mais que a
verdade. Falam isso, inclusive, aqueles que são
demasiadamente refinados para dizer algo tão
cruel.

Eve Sedgwick

Someone asked me what home was, and all I


could think of were the stars on the tip of your
tongue, the flowers sprouting from your mouth,
the roots entwined in the gaps between your
fingers, and the ocean echoing the inside of your
ribcage.

E.E. Cummings

O nome contrassexualidade provém


indiretamente de Michel Foucault, para quem a
forma mais eficaz de resistência à produção
disciplinar da sexualidade em nossas
sexualidades liberais não é a luta contra a
proibição (como aquela proposta pelos
movimentos de liberação sexual antirrepressivos
dos anos setenta), e sim a contraprodutividade,
isto é, a produção de formas de prazer-saber
alternativas à sexualidade moderna. As práticas
contrassexuais que aqui serão propostas devem
ser compreendidas como tecnologias de
resistência, dito de outra maneira, como formas
de contradisciplina sexual.
Beatriz Preciado

Segundo João Marão Miguel, em seu artigo intitulado “Casa e Lar: a


essência da arquitetura” (2002), o conceito de casa surgiu durante o Império
Romano em oposição ao termo domus. A casa era, então, a habitação rural e o
domus a urbana. “Domus nos deu domicílio. De domus originou-se dominus
‘senhor’, porque o amo da casa era o senhor” (Miguel, 2002). O domus, feito de
18

pedra e mármore, foi substituído, depois das crises econômicas, sanitárias e


sociais da Idade Média, pouco a pouco, pelas casas, ou as casae, construídas em
madeira e barro, sendo que as únicas construções que utilizaram ainda a alvenaria
foram as igrejas e castelos, conservando assim o valor senhorial do domus. (Ibid.)

Miguel ressalta que a casa sempre teve como função essencial o abrigo da
família, podendo ser vista “como um microcosmo privado sempre em confronto
com o setor público, seja ele uma aldeia ou uma metrópole” A casa, com suas
paredes, teto, portas, regulando e restringindo a circulação entre interior e exterior,
seria, simbolicamente, “um castelo, uma fortaleza, um local de defesa contra as
agressões externas como um local de descanso e prazer.” (Ibid.). Mas ela foi
ganhando, com o tempo, outras significações, que não só a proteção contra as
ameaças externas. No livro Tudo sobre casa (2013), Anatxu Zabalbeascoa afirma
que o interior da casa passa a ter extrema importância para o indivíduo moderno,
citando o professor italiano de literatura inglesa, Mario Praz, para quem “a casa é
o homem”. Zabalbeascoa prossegue nos mostrando outras considerações acerca
do espaço arquitetural doméstico:

[...] o que levou Gogol a descrever em Almas mortas a solidez dos móveis da casa do
protagonista Sobakievitch como “pesados e fortes: cada objeto, cada cadeira, parecia
dizer: Também sou Sabakievitch”. Praz era feio quase no ponto da deformidade. Mas
necessitava do harmônico e do belo tanto quanto o ar. No entanto, também conhecia
como poucos as serventias de uma pose. Estava convencido de que a casa era uma
expansão, e também uma expressão do eu. “A casa é para o dono. E o dono, para a casa”,
sentenciou. Também, como Bertold Brecht escreveu que habitar significa deixar rastro.
(Zabalbeascoa, 2013, p. 17)

Mais à frente, Zabalbeascoa nos apresenta que, em seu Dictionnaire


Critique, Georges Bataille também considerou que a arquitetura é uma espécie de
expansão da sociedade e do indivíduo e que o escritor francês declarou certa vez
que “o homem vivia em sua casa como um animal encerrado em uma jaula.”
(Ibid., p. 21).

Beatriz Preciado nos ajuda a afinar essas considerações acerca do espaço


doméstico em seu livro Manifiesto Contrasexual (2014). Para ela, o espaço
doméstico é uma das “tecnologias sexuais heteronormativas”, e parte de um
aparato institucional (dentre os quais, além dele, estão o linguístico, o médico,
legal etc.) que produzem “corpos-homem” e “corpos-mulher”. Essas tecnologias
sexuais heteronormativas, em outras palavras, funcionam como “uma máquina de
19

produção ontológica que funciona mediante a invocação performativa do sujeito


como corpo sexuado”. (Preciado, 2011, p. 20)

A arquitetura da casa e a arquitetura do corpo fazem parte, na


modernidade, do mesmo aparato que governa os corpos sexuados. Essa
arquitetura e a materialidade da casa passam a funcionar como uma “prótese” a
serviço da biopolítica que dividem os corpos de acordo com as suas performances
de gênero.

De acordo com Preciado, a “natureza humana” é um “efeito da tecnologia


social que reproduz nos corpos, nos espaços e nos discursos a equação natureza =
heterossexualidade, borrando todo o efeito tecnológico dessa construção, assim
como a função material da casa moderna ocidental. Ainda com Preciado,
observamos que

[o] gênero não é simplesmente performativo (isto é, um efeito das práticas culturais
linguístico-discursivas) como desejaria Judith Butler. O gênero é, antes de tudo,
prostético, ou seja, não se dá senão na materialidade dos corpos. É puramente construído
e ao mesmo tempo inteiramente orgânico. [...] É esse mecanismo de produção sexo-
prostético que confere aos gêneros feminino e masculino seu caráter sexual-real-natural.
(Preciado, 2014, p. 29)

Michel Foucault observa, na entrevista “Espace, savoir et pouvoir”,


publicada no livro Dits et écrits II. 1976-1988 (2001) que a arquitetura se torna
política no fim do século XVIII. É nesse período que ela passa a se tornar objeto
de reflexão em função das técnicas de governo das sociedades – e, retomando a
reflexão de Preciado, começa a exercer uma função prostética –:

[nós] vemos aparecer [no fim do século XVIII] uma forma de literatura política que se
interroga sobre o que deve ser a ordem de uma sociedade, o que deve ser uma cidade,
dado as exigências da manutenção da ordem; dado também que se deve evitar as
epidemias, as revoltas, promover uma vida familiar adequada e conforme a moral. Em
função desses objetivos, como devemos conceber a organização de uma cidade e a
construção de uma infraestrutura coletiva? E como nós devemos construir as casas? Eu
não estou sustentando que esse tipo de reflexão só aparece a partir do século XVIII; eu
digo somente que é no século XVIII que emerge uma reflexão profunda e geral sobre
essas questões. (Foucault, 2001, p. 1089) 1

1
“[...] on voit, au XVIIIe siècle, se developer une réflexion sur l’architecture en tant que function
des objectifs et des techniques de gouvernement des sociétés. On voit apparaître une forme de
littérature politique qui s’interroge sur ce que doit être d’une société, ce que doit être une ville,
étant donné les exigences du maintien de l’ordre; étant donnée aussi qu’il faut éviter les épidémies,
éviter les révoltes, promouvoir une vie familiale convenable et conforme à la morale. En function
de ces objectifs, comment doit-on concevoir à la fois l’organisation d’une ville et la construction
d’une infrastructure collective? Et comment doit-on construire les maisons? Je ne pretends pas que
20

Foucault sublinha que nesse momento a arte de governar os homens se


dedica particularmente às questões urbanísticas, à higiene, à cidade, ao coletivo e
à arquitetura privada. No entanto, essa virada de pensamento não vai se efetuar
dentro das reflexões sobre a arquitetura produzidas por arquitetos, mas se torna
assunto de homens políticos. As cidades se tornam alvo da “racionalidade
governamental que vai se aplicar a todos os territórios (Foucault, 2001, p. 1090-
1091) 2. É o período histórico em que o pensamento político aprimora as “técnicas
do espaço” 3, e quando ele se torna fundamental em todo o exercício do poder. A
arquitetura incorpora então o papel de sustentação, de distribuição dos corpos pelo
espaço, canalizando a sua circulação e introduzindo determinados efeitos nas
relações sociais (Ibid., p. 1102).

Judith Halberstam em seu livro In a Queer Time And Place: Transgender


Body, Subcultural Lives (2005), constrói a ideia de um tempo queer, que seria
uma alternativa à lógica temporal reprodutiva da classe-média burguesa.
(Halberstam, 2005, p. 4) Dentro dessa lógica, o tempo da vida, depois da
adolescência, segue-se para a saída do período de estudos, a entrada no mercado
de trabalho, o casamento e a reprodução. Além da norma temporal, haveria
também uma lógica espacial heteronormativa. Halberstam chama a atenção para o
fato de que os teóricos que produzem pensamento sobre o espaço no campo
disciplinar da geografia, como Harvey, Jameson ou Soja, não levam em conta que
os espaços são sexualizados. Segundo Halberstam,

[o] Foucault que inspira os geógrafos marxistas pós-modernos é claramente o Foucault de


Vigiar e Punir, mas não o da História da Sexualidade. De fato, Harvey perde diversas
óbvias oportunidades para discutir a naturalização do tempo e espaço em relação com a

ce type de réflexion n’apparaît qu’au XVIIIe siècle; j edis seulement que c’est au XVIIIe siècle
qu’il se fait jour une réflexion profonde et générale sur ces questions.” (Tradução livre)
2
« Ce changement n’est peut-être pas dans les réflexions des architectes sur l’architecture, mais il
est très perceptible dans les réflexions des hommes politiques. […] les villes, avec les problèmes
qu’elles soulèvent et les configurations particulières qu’elles prennent, servent de modèles à une
rationalité gouvernementale qui va s’appliquer à l’ensemble du territoire. » (Foucault, 2001, p.
1090-1091)
3
« On donne un sens très étroit au mot « technologie » : on pense aux Technologies dures, à la
technologie du bois, du feu, de l’électricité. Mais le gouvernement est aussi fonction de
technologies : le gouvernement des individus, le gouvernement des âmes, le gouvernement de soi
par soi, le gouvernement des familles, le gouvernement des enfants. Je crois qui si l’on replaçait
l’histoire de l’architecture dans le contexte de l’histoire générale de la techné, au sens large du
mot, on aurait un concept directeur plus intéressant que l’opposition entre sciences exactes et
sciences inexactes. » (Foucault, 2001, p. 1104)
21

sexualidade. O tempo reprodutivo e o tempo da família são, acima de tudo, construções


tempo/espaciais heteronormativas. (Ibid., p. 10)

As primeiras linhas da História da Sexualidade Vol.1 – A vontade de


Saber (2005) de Michel Foucault nos fala das “noites monótonas da burguesia
vitoriana”, e de como a sexualidade, a partir de então, fora “cuidadosamente
encerrada” dentro da casa. “A família conjugal a confisca”, afirma Foucault, “e
absorve-a, inteiramente, na função de reproduzir”:

No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade


reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-
se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. E
se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e
pagará a sanção. (FOUCAULT, 1999, p. 10)

A casa e as suas divisões, tornam-se, então, um espaço normativo e de


controle, funcionando como um dispositivo importante na produção subjetiva e
sexual dos filhos da família que a habita. No entanto, ela também se torna o
espaço onde os seus moradores costumam buscar conforto, afetividade e proteção
dos perigos da rua. Temos, portanto, uma ambivalência da casa: ao mesmo tempo
em que é o espaço de acolhimento da família, também é onde ocorrem a regulação
e normatização de seus membros.

Os principais eventos do Romance Stella Manhattan (1985), de Silviano


Santiago, como ilustra Karl Posso em seu livro Artimanhas da Sedução:
Homossexualidade e exílio (2009), são “o exílio do protagonista brasileiro em
decorrência de sua homossexualidade e o ataque repentino de guerrilheiros ao
apartamento em Manhattan do adido militar brasileiro por causa de ligações
fascistas.” (Posso, 2009, p. 25). O livro de Silviano se passa no ano de 1969
(quando começam os “anos de chumbo” da ditadura militar no Brasil) e Eduardo é
deportado para os Estados Unidos por seu pai militar após o escândalo social
envolvendo a descoberta da sua homossexualidade. O personagem, conforme
descreve o narrador em terceira pessoa, foi “execrado pelos pais que não queriam
aceita-lo como filho depois do que tinha acontecido, do escândalo felizmente
abafado por amigos influentes da família”. (Santiago, 1985, p. 85).

Não temos uma estimativa do quão recorrente é a expulsão de jovens


homossexuais de casa no Brasil, mas culturalmente sabemos que foi e é prática
22

assídua. Por outro lado, nos Estados Unidos, onde há uma larga pesquisa sobre o
assunto, pode-se observar que o ideal da família heteronormativa faz com que
40% dos moradores de rua sejam jovens auto-identificados como LGBTQs que
foram expulsos de casa por suas famílias no momento de seu coming-out4. Além
disso, segundo o Center of American Progress, de 320 mil a 400 mil jovens são
expulsos de casa com esse mesmo histórico por ano 5. Leo Bressani afirma, em
seu livro Is the rectum a grave? And other essays (2010), diante dessa assustadora
realidade que, no modelo de família normativa, “é mais provável que se inclua o
seu cachorro do que seu irmão homossexual” (Bressani, 2010, p. 9).

Posso, ao analisar o evento no livro de Santiago, mostra que Eduardo é,


para a sua unidade familiar ortodoxa,

a “bicha escrota” (p. 183) que não é sexualmente reprodutivo nem cúmplice da identidade
familiar (heterossexista), [ele] representa a ameaça da sujeira, do lixo corpóreo, aquilo
que é problematicamente um produto do corpo familiar e, ao mesmo tempo, oposto a esse
corpo uma vez que é o arauto da morte. [...] Kristeva descreve o abjeto como aquilo que
perturba a identidade e a ordem: em outras palavras, porque o filho abjeto é tanto da
família quanto problematicamente alheio a ela em seu repúdio à sua responsabilidade
geradora, sua produtividade, ele coloca em perigo as aspirações familiares e uma
identidade estável. (Posteriormente no romance, quando é dito a Eduardo que ele é
ilegítimo, seu liame com o corpo familiar torna-se exclusivamente maternal explicando,
talvez, a repulsa intensificada do domus patriarcal). Entretanto, porque a participação da
família no hegemônico é definida pelo ato de descartar ou exilar o filho, a expulsão
precisa ser indeterminadamente reiterada para que a cumplicidade com a ortodoxia social
seja reafirmada. (Posso, 2009, p. 51)

O espaço da casa heteronormativa não comportaria mais esse “corpo


estranho” que Eduardo se torna no momento em que sua homossexualidade é
descoberta. O filho gay, nesse momento, se torna uma espécie de estrangeiro na
residência da família, ou um intruso, como formula conceitualmente Jean Luc-
Nancy, em seu livro El intruso (2006) [L’intrus, em francês]: “aquele que se
introduz por força, por surpresa ou por astúcia; em todo caso, sem direito e sem
ter sido admitido de antemão” (Nancy, 2006, p.11) 6. Nancy utiliza a experiência
que viveu de passar por um transplante de coração para elaborar essa ideia da
intrusão e “corpo estrangeiro” em seu próprio corpo. No caso de Eduardo, ele se
4
Como aponta o site National Homeless: Disponível em:
<http://nationalhomeless.org/issues/lgbt/>. Acessado em 16 de março de 2016.
5
Disponível em: <https://www.americanprogress.org/issues/lgbt/news/2010/06/21/7980/gay-and-
transgender-youth-homelessness-by-the-numbers/>. Acessado em 25 de fevereiro de 2016.
6
“El intruso se introduce por fuerza, por sorpresa o por astucia; em todo caso, sin derecho y sin
haber sido admitido de antemano”. (Tradução livre)
23

torna de surpresa um corpo estrangeiro no corpo familiar da casa que, em sua


identidade, age por imunidade, reconhecendo-o como um outro que não é parte
daquele organismo e que, por isso, deve ser expelido – assim como age o corpo
(‘fisiológico’) no caso de um órgão transplantado, ameaçando sua rejeição.

Ser repelido da casa dos pais é uma experiência traumática pela qual
muitos LGBTs passam, e que costuma vir junto do o ato de “sair do armário” para
a família, já que a não aceitação muitas vezes é seguida de violências psicológicas
ou físicas. No caso de Eduardo, ele sofre a violência psicológica da rejeição:

Eduardo se sentia então como um saco de batatas que tinha sido atirado num canto da
casa pelos pais. Não entendia a maneira radical como se distanciavam dele, desmentindo
todas as teorias que eles mesmos lhe tinham inculcado desde criança sobre os laços de
sangue, a união e a família. Vejo a intolerância, a punição pelo silêncio e pelo
distanciamento. Querem me massacrar, pensava Eduardo, quando se dava conta de que
queriam se livrar dele como de um objeto cuja utilidade tinha sido perdida com o uso.
“Me joguem no lixo. Me façam esse favor.” [...] Janelas fechadas, corpo suado estirado
pelo lençol já úmido, o sol de Copacabana quente lá fora, mar e praia de verão piscando,
convidando, vem! Dentro do quarto silêncio, penumbra, tristeza e minhocas
minhoquinhas e minhoconas escarafunchando as ideias, pensamento de sumir do mundo
pela falta de apoio dos pais, de compreensão [...] (Santiago, 1985, p. 25 – grifos do autor)

Ann Cvetkovich, em seu livo The Archive of Feelings: Trauma, Sexuality


and Lesbian Public Cultures (2003), elabora uma reflexão sobre as conexões entre
o trauma relacionado à sexualidade e os eventos históricos mundiais. Segundo
Cvetkovich, o impacto do trauma sexual não é experimentado coletivamente,
como o de grandes eventos históricos, da guerra ou do genocídio, talvez por ser
confinado às esferas doméstica e privada. Sua reflexão está mais interessada em
lésbicas que passaram por traumas relacionados a abuso sexual e depressão, mas
também faz uma relação desse tipo de trauma com a crise da AIDS, que ofereceu
uma clara evidência de que algumas vidas são mais importantes que outras. Para
burlar o modo como a crise da AIDS era vivenciada somente na esfera doméstica,
ativistas e familiares de vítimas criaram diversos tipos de ação pública.
Cvetkovich traz o relato de David Wojnarowicz, que sugere que levassem o corpo
de “amigos, vizinhos, amantes e estranhos” que falecessem em decorrência da
AIDS para a frente da Casa Branca, em Washington, para que a dimensão da
tragédia fosse marcada no tempo, no espaço e na história de forma pública
(Cvetkovich, 2003, p.p. 3-6).
24

Em uma viagem a Berlim, em julho de 20147, conheci o Memorial dos


Homossexuais Perseguidos pelo Nazismo (Denkmal für die im
Nationalsozialismus verfolgten em alemão), projetado pelos artistas Michael
Elmgreen e Ingar Dragset, que considero uma boa ilustração para a teoria de
Cvetkovich sobre a diferenciação entre esses dois tipos de traumas: o sexual e os
grandes eventos históricos.

O monumento fica dentro do Tiergarten, um grande parque verde, em


frente ao grandioso memorial pelos judeus mortos da Europa (localizado do lado
de fora do parque), também conhecido como Memorial do Holocausto. O
Tiergarten é um conhecido ponto de encontros “clandestinos” de homossexuais
em Berlim, encontros às escondidas em espaços públicos, por exemplo, como se
dá em banheiros, cinemas pornôs e ambientes da cidade com a possibilidade de
atos sexuais mais reservados.

Figura 1: Memorial dos Homossexuais Perseguidos pelo Nazismo, Berlim

7
Feita durante o período de Doutorado Sanduíche (de 2013 a 2014) com bolsa CAPES, na França,
sob orientação de Marie-Hélène Bourcier, professora da Université de Lille 3.
25

Figura 2: Memorial dos Homossexuais Perseguidos pelo Nazismo, Berlim

Figura 3: Memorial do Holocausto, Berlim


26

A experiência de conhecer os dois memoriais é bem diferente. O


monumento mais conhecido, pela memória dos judeus mortos, consiste em
caminharmos por entre numerosas e gigantescas lajes de concreto que o compõem
de forma quase labiríntica. As lajes pulsam para o exterior, no espaço público, e é
como se cada uma simbolizasse uma das inúmeras vidas retiradas pelo regime
nazista. São mortes coletivas, que falam por um trauma da humanidade e a sua
localização e dimensão nos impede de esquecer essas vidas perdidas na tragédia
do genocídio.

Já a experiência do memorial pelos homossexuais perseguidos pelo


nazismo consiste em adentrarmos no parque de árvores frondosas e encontrarmos,
com um pouco de dificuldade, uma única laje de concreto. Ali, avistei uma
pequena placa com algumas flores murchas e já amareladas. Percebi que tinha
uma pequena janela no concreto, que me convidava a espiar através dela. Pude
observar, então, vídeos nos que mostravam casais homossexuais se beijando e
trocando afetos.

Tensionando as experiências estética e política dos dois monumentos,


percebemos que a memória dos homossexuais perseguidos, encenada no parque, é
uma memória que desafia os limites entre o público e o privado. Para ser
compreendido do que se trata o monumento, precisamos olhar o memorial por
dentro, através de uma única e pequena brecha que se abre e convida a fazê-lo. Só
assim nos lembramos do por que foram mortos.

Se os homossexuais mortos pelo nazismo, um regime presente na memória


social como causador de um trauma partilhado, são raramente recordados na
história oficial, me pergunto: e os jovens LGBTQs mortos, expulsos de casa ou
rejeitados por não serem aceitos pela família heteronormativa conservadora
através do século XX até o nosso presente? Quantos jovens ficaram sem casa ou
cometeram suicídio em decorrência dessa tragédia no decorrer desse século?
Como analisar as motivações desse genocídio silencioso?

No artigo intitulado “Coming out and outcomes: negotiating lesbian and


gay identities with, and in, the family” (2003), Gill Valentine, Tracey Skelton e
Ruth Butler consideram que nos estudos dentro da disciplina da geografia que
lidam com crianças e pessoas jovens há uma divisão clara: os chamados childhood
27

studies focam, majoritariamente, em grupos de 5 a 16 anos de idade e na relação


entre crianças e seus pais, enquanto os youth studies concentram-se em grupos de
16 a 24 anos e nas culturas jovens e suas relações com o consumo. Segundo os
autores, dentro dos youth studies, pouca atenção fora dada à relação entre esses
grupos e o dia-a-dia da vida familiar, a transição da infância para a vida jovem e
às emoções concernentes ao espaço da casa:

Embora reconheçamos que os jovens crescem em uma variedade de formas de família, e


podem ter experiências de vida em mais de um agrupamento familiar, a(s) casa(s) ainda é
o local onde os jovens passam longos períodos de tempo com um parente ou pais e
irmãos. É no lar que os entendimentos sobre maturidade e moralidade dos jovens são
muitas vezes construídos pelos pais através de regras sobre limites espaciais e temporais.
Mesmo quando os jovens saem de casa, a casa da família ainda é o lugar através do qual
muitas das suas biografias e expectativas individuais são encaminhadas e,
consequentemente, onde o funcionamento emocional da família muitas vezes é
estabelecido. Como tal, é importante reconhecer os processos de transição que acontecem
dentro da(s) casa(s) da família, em vez de apenas aqueles onde ocorrem mais
amplamente, o que pode ter consequências para as identidades dos jovens e nas relações
sociais através espaços que se estendem para além do lar. (Valentine; Skelton e Butler,
2003, p. 481) 8

É importante observar também que, além de a família (ocidental, de


classe-média) ter um papel nas relações que o jovem tem como o espaço e com o
mundo, ela é, na virada do século XX para o XXI, uma fonte de suporte financeiro
e segurança, já que é cada vez mais difícil e demorado entrar no mercado de
trabalho e conseguir ter autonomia financeira na transição da juventude para a
vida adulta. Por conta dessa dependência, é muito comum que jovens LGBTQs
temam o momento do coming-out por correrem o risco de serem rejeitados pelas
suas famílias e, consequentemente, por perderem essas estruturas espacial e
financeira – além de afetiva, é claro. (Ibid., p. 483)

No caso de Eduardo, em Stella Manhattan, ele não perde a estrutura


financeira, já que o seu pai o envia para os Estados Unidos para trabalhar no
consulado brasileiro no Rockefeller Center, graças à ajuda do Coronel Vianna –

8
“Although we recognize that young people grow up in a variety of family forms, and may have
experiences of living in more than one household, home(s) is still the site where young people
spend lengthy periods of time with a parent or parents and siblings. It is in the home that
understandings about young people’s maturity and morality are often constructed by parents
through rules about spatial and temporal boundaries. Even when young people leave home, the
family home is still the site through which many of their individual biographies and expectations
are routed and consequently where the emotional functioning of the family is often played out. As
such, it is important to recognize the transitional processes that take place within the family
home(s), rather than just those that occur at the wider can have consequences for young people’s
identities and social relations in the spaces that stretch beyond them.” (Valentine; Skelton e Butler,
2003, p. 481). (Tradução livre)
28

que também é homossexual e se dispõe a ajudar Sérgio, o pai do rapaz. No


entanto, as estruturas familiares e afetivas se perdem, já que, além de ser expulso
de casa “como um saco de batatas”, Eduardo também se afasta geograficamente,
contra a sua própria decisão, de qualquer relação que pudesse ter no Rio de
Janeiro.

A única pessoa que o apoiou, Bastiana, uma mulher negra, empregada da


família, é a única que Eduardo/Stella lembra com carinho no exílio, e com quem
lamenta nunca ter desabafado sobre a sua experiência traumática. O narrador diz
que Eduardo tinha certeza que foi “Bastiana que tinha evitado o pior” (Santiago,
1985, p. 26), já que ele havia pensado até mesmo em suicídio, ainda no Rio de
Janeiro, antes de ser enviado para os Estados Unidos.

Cvetkovich, em seu livro, se propõe em criar um arquivo dos sentimentos


para mapear como as populações queers ressignificam a ideia de trauma –
normalmente utilizado para reforçar o nacionalismo (quando a sua memória é
construída em nome da unidade) – ao afastarem-se de projetos institucionais, por
conta da própria marginalização desse tipo de trauma. Os queers, que passaram
pela patologização da sua própria vivência, tendem a negar esse status de
patologia de sua experiência traumática. Cvetkovich nos traz o pensamento de
Eve Sedgwick para explorar como a autora faz um link entre emoção e
sexualidade, e como a categoria da vergonha (shame) sugere que “as experiências
traumáticas de rejeição e humilhação [vividas pelas minorias sexuais] estão
conectadas com a formação de identidades que são mais do que formações
reativas.” Essas experiências, por parte dessas populações, abarcam uma série de
afetos, incluindo não somente o luto e a perda, mas também a “raiva, a vergonha,
o humor, a sentimentalidade e mais” (Cvetkovich, 20003, p. 47-48).

O trauma doméstico queer, portanto, pode ser observado por outro viés,
abrindo as experiências históricas e sociais em termos afetivos, como afirma
Cvetkovich. “A abordagem queer do trauma pode apreciar formas criativas
através das quais as pessoas respondem a isso”9. Como consequência da
experiência traumática de Eduardo/Stella podemos perceber a construção de uma

9
“Queer approach to trauma can appreciate the creative ways in wich people responde to it”.
(Tradução livre)
29

nova forma de domesticidade queer, e de uma nova forma de conceber um lar,


através de outras relações afetivas, para além da família que o rejeitou.

2.1
A casa como ferramenta de resistência

Preciado leva em conta que é possível apontar para um contrato social que
não seja somente o da natureza heterocentrada, é o que ela chama de um contrato
contrassexual (Preciado, 2014, p. 21). Nesse contrato não nos reconheceríamos
como homens ou como mulheres, “e sim como corpos falantes” que

[r]econhecem [em] si mesmos a possibilidade de aceder a todas as práticas significantes,


assim como a todas as posições de enunciação, enquanto sujeitos, que a história
determinou como masculinas, femininas ou perversas. Por conseguinte, renunciam não só
a uma identidade sexual fechada e determinada naturalmente, como também aos
benefícios que poderiam obter de uma naturalização dos efeitos sociais, econômicos e
jurídicos de suas práticas significantes. (Ibid., p. 21)

O que o Manifesto de Preciado nos dá, então, não é a ilusão de que


podemos nos transportar para um “fora” da norma heterocentrada, mas a
possibilidade de vislumbrar outros caminhos, principalmente um que questione a
naturalização dessa norma, e a sua artificialidade. Podemos, assim, ao reconhecer
que podemos nos apropriar dessas tecnologias (o sexo, a casa, o dildo) fazermos
delas “tecnologias de resistência” ou “formas de contradisciplina sexual” (Ibid., p.
22).

Se a “arquitetura é política”, como afirma Preciado ainda em seu


manifesto, e se “os contextos sexuais se estabelecem por meio de delimitações
espaço-temporais oblíquas” que, através da arquitetura “organiza[m] as práticas e
as qualifica: públicas ou privadas, institucionais ou domésticas, sociais ou
íntimas” (Ibid., p. 31), podemos nos utilizar dessa tecnologia – a arquitetura e a
casa – para produzirmos resistência e contradisciplinas sexuais.

Sue Kentlyn, no artigo intitulado “Radically Subversive Space of The


Queer Home: ‘Safety House’ and ‘Neighbourhood Watch’” (2008), considera que
o termo “sair do armário” (“coming-out of the closet”) sugere que o espaço do
confinamento doméstico talvez tenha sido, no passado, o único lugar onde as
30

identidades queers podiam se manifestar. O “lar queer” seria um “espaço seguro”


(safe space) onde as pessoas poderiam, então, habitar um lugar “fora” das regras
coercitivas heteronormativas, e onde uma série de variedades de identidades que
desafiam essas regras puderam brotar.

No entanto, segundo Kentlyn, é necessário levar em conta também que o


“lar queer” pode encarnar a tensão entre ser um espaço seguro para ser queer, mas
também a de um lugar onde as performances subversivas de gênero, sexualidade e
família estão sob vigilância” (Kentlyn, 2009, pp. 327-328), como observamos em
relação a Eduardo/Stella, no livro de Santiago, sendo expulso de casa pela sua
família e exilado nos Estados Unidos.

Consideremos que lar está construído sob uma ambivalência: ao mesmo


tempo em que oferece a segurança necessária para surgir um ambiente fértil para
as disrupções de gênero, da sexualidade, e da família, ele é também um
importante dispositivo de poder para a produção da “heterossexualidade, da
reprodução biológica e cultural e das identidades” (Kentlyn, 2009, p. 328).

Kentlyn salienta que por termos uma ideia da casa, como já mencionado
anteriormente, como fortaleza, ou um castelo onde nos refugiamos, temos, ao
mesmo tempo, a noção de que, por ela ser um espaço privado, sentimos que ela
está “livre da observação e jurisdição tanto das autoridades civis, quanto da
interferência geral de outras pessoas.” Por conta disso, nos países onde a
homossexualidade não era proibida por lei, ou onde as leis proibitivas foram
extintas, a casa se torna o lugar onde as atividades sexuais não-heteronormativas
puderam ter seu espaço.

Desse modo, o espaço privado, particularmente o espaço privado da casa, se tornou o


primeiro “espaço seguro” (safe space) legal para a exploração e aprovação da identidade
queer. Dos casais que eu entrevistei, somente um homem gay idoso havia experimentado
a vulnerabilidade da investida policial e a prisão, fazendo do seu espaço doméstico
conjugal um lugar de segurança para ser homossexual. (Kentlyn, 2009, p. 330)

É necessário abrir um parêntesis, para termos em conta que mesmo no lar


queer, as pessoas ainda estão sujeitas a opressões, explorações e relações
abusivas, assim como afirma Kentlyn. Não podemos assumir que, por esse lar ser
também uma possibilidade de resistência, ele está isento de relações de poder ou
até mesmo de abuso. É necessário o reconhecimento dessa ambivalência: o lar
31

queer não garante a existência de um “espaço seguro” (safe space) – o que fica
claro, no Romance de Silviano Santiago, no decorrer da vivência do próprio
Eduardo, principalmente na sua relação com o coronel Vianna.

As primeiras páginas de Stella Manhattan nos trazem um belo exemplo do


lar que resiste. No primeiro parágrafo nos deparamos com Stella cantando “Ô
jardineira, por que estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu” enquanto abre
a janela da sala do seu apartamento em Nova Iorque fumando um cigarro
(Santiago, 1985, p. 11). Stella é observada pelo casal de vizinhos da frente. A
senhora do casal está “assustada e medrosa por detrás da vidraça do seu
apartamento”, comentando com seu marido o “teatrinho matinal de Stella no palco
da janela aberta: “He’s nuts” “Who’s nuts?” “The Puerto-rican who lives in the
building across the street”. Logo percebemos que Stella não é qualquer mulher, já
que a narrativa de Santiago alterna os gêneros das palavras que se referem a ela,
como quando diz “Stella [...] vai sendo tomado por um frisson nostálgico” e cita
Ricky, seu amante com quem ela quer retornar ao Rio “Rickie my boy, my boy
Rickie, we’ll fly down to Rio [...] de corpos ensandecidos de calor, sensuais,
recobertos de óleo de bronzear...”. (Ibid., p. 12)

Percebemos, então, nesses primeiros momentos da narrativa de Santiago,


que os motivos dos fuxicos e do aparente nojo dos vizinhos ao verem
Stella/Eduardo pela janela, é por Eduardo ser homossexual, latino-americano que
encarna a sua persona Drag Stella enquanto trata de seus afazeres domésticos. Os
vizinhos estão exercendo o seu papel de cidadãos corretos, vigilantes da ordem de
gênero e da sexualidade heterocentrada.

No livro Fronteras sexuales: Espacio Urbano y ciudadanía (2011), Leticia


Sabray mostra que nas cidades, existe um apreço pela ideia de um “território
comum universal” que se materializa “através de marcadores espaciais-chave
como ‘a rua’, ‘o bairro’, ‘a cidade’, e também [...] ‘a familia’” (Sabray, 2011, p.
153)10, esta última especializada no ambiente privado. O vizinho passa a ser o
grande guardião dos valores dessa comunidade, que tem, segundo a autora, em
sua espacialidade, um papel metafórico da fronteira moral que faz a noção

10
“que se materializaba a través de marcadores especiales clave como ‘la calle’, ‘el barrio’, ‘la
ciudad”, y también [...] ‘la familia’” (Tradução livre)
32

imaginada de cidadania ser delimitada (Ibid., p. 153). A reação fóbica dos


vizinhos de Eduardo/Stella expõe a fragilidade das normas pelas quais eles têm o
papel de zelar:

Se a mera confrontação visual supõe tremenda ameaça imaginária, não é difícil ver que
esta reação fóbica não somente expõe o medo em relação “ao outro ameaçante” de que os
vizinhos supostamente queriam se defender, mas, fundamentalmente, o medo da própria
falibilidade de que essa sexualidade normativa pudesse ser facilmente desestabilizada
pelo mero poder das imagens, o medo dos “vizinhos” sobre o que poderia acontecer se
outras sexualidades, gêneros e práticas sexuais entrassem em seu campo de visão, põem
em manifesto a instabilidade constitutiva de um mundo heteronormativo sensivelmente
vulnerável e cuja ordem depende pura e exclusivamente da repetição de suas normas e
práticas para poder sobreviver. (Ibid., p. 155) 11

Stella não se deixa abalar pela “velha gringa” que a segue observando
através da vidraça da janela: “Não brinca, não brinca com Stella, velha megera,
porque você não sabe do que ela é capaz. Um dia ela ainda te torrrce o pescoço”
(Santiago, 1985, p. 13). O narrador explica que a vizinha sabe do que Stella é
capaz, já que cruzou com “ele” na rua, e lhe disse “cobras e lagartos” para que
“deixasse de ser enxerida na vida dos outros” (Ibid., p. 13). A personagem deixa
claro que não leva desaforo pra casa, e que a vigília heteronormativa dos vizinhos
não a intimidará, muito pelo contrário: Stella/Eduardo resiste, encara a velha e a
faz sumir por detrás da sua “cortina encardida”. Stella prossegue com seus
afazeres de casa.

Kentlyn chama a atenção em seu artigo para o fato de que os lares queers
provocam uma rasura nos papéis exercidos através dos trabalhos domésticos –
papeis que são mantidos, de forma geral, nos lares heterossexuais. Nos lares
queers, a performance desses serviços ainda produz o gênero, mas não dentro do
que entendemos convencionalmente como masculinidade e feminilidade.
Algumas mulheres lésbicas que ela entrevistou não fazem trabalho doméstico ou
se recusam, como forma de burlar a norma patriarcal: “O seu lar é um lugar
seguro onde podem performar uma espécie de feminilidade ‘fora da lei’

11
“Si la mera confrontación visual supone tremenda amenaza imaginaria, no es difícil ver que esta
reacción fóbica no solo expone el medo hacia ‘el otro amenazante’ del que supuestamente los
vecinos querrían defenderse, sino más fundamentalmente, el miedo de la propia falibilidad de que
esta sexualidad normativa pudiese ser fácilmente desestabilizada por el mero poder de las
imágenes, los miedos de ‘los vecinos’ acerca de qué podría suceder si otras sexualidades, géneros
y prácticas sexuales entrasen en el campo de visión, ponen de manifiesto la inestabilidad
constitutiva de un mundo heteronormativo sensiblemente vulberable, y cuyo orden depende pura y
exclusivamente de la repetición de sus normas y sus prácticas para poder sobrevivir.” (Tradução
livre).
33

representada pela incompetência doméstica [...] Outras veem o trabalho doméstico


encarnando um ethos do cuidado de quem elas amam, mesmo quando elas podem
reconhecer que isso as torna vulneráveis à exploração.”12 Ainda segundo a autora,
no caso dos homens gays, quando performam o trabalho doméstico no contexto da
sua intimidade, tendem a subverter, de certa forma, o modelo da masculinidade
hegemônica. (Kentlyn, 2009, p. 332)

Ainda no início da narrativa de Stella Manhattan, Stella está se preparando


para limpar o apartamento que está uma sujeira, “Qualquer dia destes você acorda
e diz bom-dia para o rato que passa correndo para a toca”, ela fala para si mesma.
Encarnando Stella, Eduardo subverte o modelo da masculinidade, e se prepara
para a faxina semanal:

Faz de conta que amarra um lencinho colorido da Azuma na cabeça para proteger os
cabelos da poeira, fazendo turbante com coque atrás; faz de conta que veste vestidinho de
chita leve e sem mangas e, for sure, sem cinto, que as carninhas ainda estão duras, duras!
e pinça as nádegas de um lado e do outro para comprovar, fingindo não perceber as
gordurinhas do inverno nas ancas. Faz de conta que calça alpercatas havaianas, que pega
vassoura e aspirador e “la-ra-li-la-ra-li”, sai de aspirador de pó em punho para a faxina
semanal, quebrando o corpo pela cintura e empurrando as pernas para a frente como se
elas estivessem em contradição com as costas que se inclinam mais e mais para trás. Uma
graça – olha-se no espelho da sala, e hum hum coisinha fofa da mamãe, belisca as
bochechinhas afogueadas pelo vento frio da manhã. Sou di-vi-na ou não sou? -- imita
Branca de Neve sem os sete Anões. Quanto Príncipe Encantado, Rickie, não daria tudo,
tudo, por esta brejeira doméstica dos trópicos! E você me pede, ao se despedir, vinte
dólares pro táxi. (Santiago, 1985, p. 15, grifo do autor)

A domesticidade queer se baseia em uma falha na lógica patriarcal e


capitalista do sucesso e da reprodução. Eduardo/Stella, são o produto de um
projeto familiar que saiu do seu script idealizado, provocando profunda frustração
em seus pais, já que a falha de Eduardo se torna, automaticamente, uma falha da
família perante a sociedade. É por isso que é necessário tratar Eduardo, mesmo
quando ele já está no exílio, trabalhando no consulado, com distância, ignorando a
sua existência.

No entanto, como Judith (Jack) Halberstam propõe em seu livro The queer
art of failure (2011), “para os queers a falha pode ser um estilo” (Halberstam,

12
“Their home is a safe space in which to perform a kind o ‘outlaw’ femininity represented by
domestic incompetence – as long as it remains private. […] Others see domestic labour as
embodyin an ethos of care for those they love, even while they may acknowledge that this makes
them vulnerable to exploitation”. (Tradução livre)
34

2011, p. 3) 13. O autor nos mostra que a falha é imprescindível para o capitalismo,
já que o mercado econômico necessita de ganhadores e perdedores, e os
perdedores não deixam nenhum registro de suas vidas, ao contrário dos
ganhadores; o registro da falha é, para Scott Sandage, citado por Halberstam,
“uma história escondida do pessimismo em uma cultura do otimismo” (Ibid., p.
88)14 .

Halberstam se utiliza do conceito de James C. Scott, que traduzo


literalmente como “as armas do fraco” (“the weapons of the weak”) e que pode ser
utilizado para “recategorizar o que se parece com inércia, passividade, e a falta de
resistência em / no sentido da prática de roubar o que é negócio do dominante”
(Halberstam, 2011, p. 88)15. Para o autor, a falha reconhece que as alternativas
estão incorporadas ainda no ‘dominante’, e que, pelo poder não ser totalmente
consistente a todo momento, é necessário explorar suas brechas. (Ibid., p. 88)

A falha de Halberstam tem direta relação com o que ele está conceituando
como otimismo, por mais contraditório que pareça à nossa lógica metafísica
instituída, e direta relação com o que o que tento aqui pensar e elaborar sobre esse
conceito. O que as vidas queers carregam como falha produz vulnerabilidades, já
que a falha é justamente em relação a todo esse estilo normativo e capitalista
dominante. O jovem queer que falha em relação às regras heteronormativas da
casa, por exemplo, sofre com as duras consequências de falhar, tais como a
rejeição e a expulsão do lar – como no caso de Eduardo, justamente por “falhar”
ser seu estilo. Mas, as vidas resistem. Há uma esperança vital, uma vontade de
potência, que dá à falha queer seu caráter mais produtivo, criativo, mesmo ela
produzindo uma ferida. Essa ferida é uma abertura que é ao mesmo tempo dor e
possibilidade. Possibilidade de algo novo, de um porvir.

No livro de Santiago, a falha atravessa toda a narrativa através do estilo


camp de Stella. Karl Posso descreve que Stella “brinca com a qualidade
ameaçadora do abjeto e com o excesso libidinal disruptivo característico da

13
“for queers failure can be a style” (Tradução livre).
14
“the record of failure is ‘a hidden history of pessimism in a culture of optimism” (Tradução
livre)
15
“recategorize what looks like inaction, passivity, and lack of resistance in terms of the practice
of stealing the business of the dominant.” (Tradução livre)
35

homossexualidade, trasmutando-os para o sarcasmo camp” (Posso, 2009, p. 51), e


que Stella tenta, mas não logra em deixar escondidas as feridas abertas em
consequência de sua abjeção – ter sido jogado para fora de casa como um saco de
batatas, e traída pelo Coronel Viana/Viuva Negra ao assinar o contrato de aluguel
de um apartamento que acaba se tornando alvo de investigações pela ditadura
militar e por Marcelo, o ex-companheiro de faculdade comunista que acaba
transando com Rickie, o seu amante. Ainda de acordo com Posso:

[...] Stella constitui a tentativa de Eduardo de ressocialização no exílio e, assim, a sua


tentativa de converter o desespero em contentamento. No entanto, a resultante
exuberância ambiguamente mordaz e enlevada do camp atesta a limitada realização do
empenho, deixando-a(o) problematicamente numa posição de entre-lugar em relação à
sociedade. De forma semelhante, o desejo dos outros de interpretar Stella/Eduardo como
o objeto do riso denota um afastamento horrorizado da morte que ela/ele representa, tanto
na qualidade do exilado abjeto quanto na qualidade de homossexual não reprodutivo. A
ambiguidade do riso, portanto, indica a impossibilidade de manter Stella/Eduardo como o
revestimento da identidade hegemônica, reafirmando seu status liminar como alguém que
joga com a sua própria morte e com a morte do agregado social; em outras palavras, como
o significante indecidível de Bataille. Além disso, o colapso geral na indecidibilidade é
exacerbado pela forma com que o fracasso, tanto do riso social (para abjetar) quanto do
camp (para ressocializar), transforma-os em desperdício indiferenciável: a gargalhada
social torna-se um esgotamento explosivo de energia, e o camp, o esbanjamento de
energia através de extravagância de estilo; nenhum dos dois separa em binarismos, isto é,
em descontinuidade, o fluido continuum entre a identidade hegemônica e o outro, entre
vida e morte. (Posso, 2009, p. 53)

Em suas “Notas sobre o camp” (1996), Susan Sontag descreve a


sensibilidade camp como “o amor ao não natural: o artifício e o exagero” (Sontag,
1996, p. 355). Para a autora, o andrógino, aquele que nega a natureza dos papéis
de gênero, é uma das imagens que melhor simbolizam essa sensibilidade, já que
ela tem como princípio a falha em relação à norma, e o andrógino vai “contra o
próprio sexo” (Ibid., p. 360). O camp é ingênuo, assim como Eduardo/Stella em
sua relação com as pessoas que o traíram, e encarna uma “seriedade fracassada”.
No entanto, de acordo com Sontag, não é toda a seriedade fracassada que é camp:
“mas somente aquela que contêm a mescla adequada do exagero, do fantástico, do
apaixonado e do ingênuo.”16 É inerente a essa seriedade fracassada, uma
teatralização da experiência, e um “demasiado”, que também estão presentes em
Eduardo enquanto ele está sob o título de Stella.

16
“Desde luego, no toda seriedad que fracasa puede ser reivindicada como camp. Sólo aquella que
contiene la mezcla adecuada de lo exagero, lo fantástico, lo apasionado y lo ingenuo”. (Tradução
livre)
36

O adido militar Vianna, que tinha colocado o apartamento que usava para
vestir-se como a Viúva Negra (seu duplo homossexual sadomasoquista) no nome
de Eduardo, um belo dia apareceu com a notícia que comunistas haviam
arrombado o imóvel e pichado imagens de suásticas pelas paredes, além de
inscrições com as palavras “nazista”, “torturador”, “fascista”, “pig”, “gorila”
(Santiago, 1985, p. 64). Vianna vem pedir ajuda a Eduardo, porque precisava
mudar de roupa (para não chegar vestido de couro no apartamento onde vive com
a sua família) e para dizer a Eduardo que ele teria que rescindir o contrato do
aluguel, cuidar do chaveiro e mentir para a imobiliária. Eduardo contém a fúria, já
que havia assinado o contrato apenas para ajudar ao coronel a “despistar”
qualquer desconfiança da sua relação com o imóvel e de, sobretudo, dos motivos
que o levavam a precisar alugá-lo. O coronel pede sigilo e vai embora, ao que se
sucede uma cena exemplar do exagero e da intensidade camp no surgimento da
persona Stella e na narrativa de Santiago:

Eduardo caminha para o quarto. Disca para o Marcelo. A campanhia soa soa. Ninguém
atende. Tira os sapatos e se deita na cama de roupa e tudo. Mal se deita, Stella grita: “Me-
rrrr-da! Me-rrrrr-da!” um grito lancinante de quem corta o dedo em faca afiada, ou quebra
sem querer a louça de estimação (é isso que sente). Fica com o olhar parado diante do
irremediável. Tem vontade de buscar mercurocromo ou cola-tudo mas não há anti-séptico
ou cola que resolva a dor que experimentava. Fica inerte, sem fechar os olhos, sem abrir a
boca, apenas a respiração compassada mas sôfrega porque artificial sai das narinas
chegando sonora aos ouvidos. Escuta o barulho da própria respiração como outros ficam
contando carneirinhos. O sono não chega, nem a intensidade do som vai-se amortecendo.
Permanece a claridade como a única alternativa para deixar o dia continuar. (Santiago,
1985, p. 98)

Além disso, não há nada de mais debochado e ironicamente camp, do que


o desaparecimento de Eduardo no decorrer da narrativa. Tudo se inicia com a
notícia, dada por Coronel Vianna, de que Eduardo não é filho de Sérgio, que até
então acreditava ser seu pai. Ao dar a notícia pelo telefone, Vianna tenta insistir,
tentando convencê-lo de que ele pode ser o pai que Eduardo não tem, se Sérgio
não o quis mais, mas Eduardo deixa de responder, até que desliga o telefone. A
falta de vínculo de Eduardo com o mundo, a impossibilidade de existir, faz com
que a personagem comece a se diluir na narrativa:

Eduardo não tem mais. Eduardo nunca teve. Pensou que tivesse, o bobo. Pensou errado.
Ninguém tem Eduardo. Ninguém teve Eduardo algum dia. Sente-se tão solto, tão solto
que todo o ambiente concreto e pesado ao seu redor parece reduzido a puro ar. Uma pedra
no ar. Um avião. Um meteorito. Um acrobata liberado da gravidade. Nada o puxa mais
para a terra. Um corpo que não atrai e que não é atraído. Solto. Eduardo pensa que deve
ser isso o sentimento mais profundo de solidão. Um corpo desprovido de forças de
atração. Passageiro pelo vazio, pelo vácuo, pelo oco do mundo, sem outro destino que o
37

vagar, perambular pela atmosfera rarefeita dos céus, sem reagir à força dos ventos, apenas
sendo levado de um lado para outro como folha seca. Outono. Outono lá fora. Na solidão
o homem não tem peso, tem densidade menor do que a da água, por isso voga pelas
ondas. Voga, flutua, sem amarras, sem correntes, sem laços, é isso que Eduardo sabe
agora que já sabe que não tem mais. (Santiago, 1985, p. 231)

A indecidibilidade de Stella Manhattan fica também a cargo da dupla via


encarnada pela dor, trauma, que acompanham, ao mesmo tempo, a reinvenção, o
humor e o afeto. A dor de Eduardo é amenizada no seu encontro com o vizinho
gay cubano Paco/Lacucaracha, fugido da Ilha e anticastrista. Logo após o
desabafo de Eduardo quanto à vontade de falar sobre o incomunicável de sua
experiência traumática, a narrativa faz Paco entrar na sua vida. Lacucaracha se
torna a relação afetiva mais fraternal que Eduardo desenvolve no exílio, e é ele
que lhe dá colo, carinho e o escuta nos momentos de vulnerabilidade e de loucura.
Ele ressignifica e encarna o papel materno e o cuidado que Eduardo tanto precisa:

A cabeça de Paco se inclina para o rosto de Eduardo, recitando mentalmente Caperucita,


lá más pequeña de mis amigas, al viejo bosque se fué por leña. Olha o rosto do amigo,
perto, se tranquiliza. Por leña seca para amasar. Passa-lhe a mão pelos cabelos. Levanta
a voz: “Decidme niños, qué és lo qué pasa? Qué mala nueva llegó a la casa?” Enxuga o
suor frio que brota em gotinhas da testa de Eduardo. (Santiago, 1985, p. 113)

A cadeia afetiva que Eduardo/Stella constrói, também é composta por


singularidades que se desdobram em subjetividades pluralizadas, dando tom à
criação de outros modos de existência, não conformes aos tradicionais. Cada
personagem produz uma dobra subjetiva, em uma criação de si mesmo, em uma
criação de um outro em cada contexto distinto de precariedade. Coronel Viana,
amigo do pai de Eduardo, também é gay e, quando encarna seu lado homossexual,
longe do cargo militar que ocupa, é Viúva Negra; Eduardo é também Stella (além
de encarnar Bastiana, a empregada da família que lhe salvou a vida), Paco é
Lacucaracha e Marcelo, o amigo universitário comunista, é também Caetano.
Silviano Santiago, na crônica “Stella Manhattan, 30 anos depois”, que escreveu
em comemoração às três décadas de lançamento do Romance, descreve esse jogo
subjetivo das personagens:

Aparentemente, o protagonista do romance se divide em dois: o jovem Eduardo e Stella.


Na verdade, se divide em três. Importa é a intersecção de um no outro, do Outro no Um.
Importa o eixo cilíndrico da dobradiça que destranca e abre a porta Stella até então
reprimida pela esquadria Eduardo. Computa-se o três — a “diferença simétrica” entre
dois, como se diz na teoria dos conjuntos.

As duas placas da dobradiça e seu eixo dizem que a identidade (do ser) está para ser
montada/desmontada como os Bichos, de Lygia Clark, ou as Poupées (Bonecas), de Hans
Bellmer. A identidade de gênero não é fixa nem imutável. É nômade. Coincide, no
38

romance, com o escancarar da porta da Experiência e se figura como em quadro do pintor


Francis Bacon. Em termos numéricos e demasiadamente humanos, identidade é uma
questão de diferença simétrica. Representa-se pelo número três ou pelo nove e pode dar
um pulo até o 69. 17

Posso (2009) destaca o trecho no qual Marcelo/Caetano fala de Lygia


Clark e Josef Alberts, artista da Bauhaus. No excerto, Marcelo fala do
sensualismo das dobradiças de Clark e como sua obra requer primeiramente o tato
do espectador e, só depois, a visão. É um sinal de que as personagens-dobradiça
de Santiago existam para nos atrair a tocá-las, a jogar com elas, a não estarmos
distanciados, como costumeiramente ficamos, ao ler um livro, mas, ao contrário,
para que nos encham de desejo de entrar no jogo, como afirma Posso, logo em
seguida: “Os planos geométricos articulados do ‘bicho’ e o corpo convulsivo da
boneca [ele se refere à obra “La poupée”, de Hans Bellmer], uma espécie de
Galatéia indecidível, ao convidar o(a) observador(a) a jogar com eles, faz com que
ele ou ela transcenda a estase da relação contemplativa sujeito/objeto, e, dessa
forma, torna-se parte do próprio processo artístico” (Posso, 2009, p. 42). O
espectador é atraído, portanto, para participar ativamente da criação subjetiva e
para a experiência de vida das personagens.

Eduardo é a personificação da falha do modelo familiar patriarcal e


heterocentrado. A negação da ligação sanguínea de Eduardo com Sérgio entra na
narrativa de forma quase alegórica, sobrando ironia. O filho que foi exilado em
Nova Iorque por ser homossexual também é um filho ilegítimo daquela família
que não suportou o erro do script da reprodutividade heterossexual. O sêmen
desperdiçado de Eduardo, que não produz um contínuo na linha genealógica que
levaria o nome de seu pai. O desparecimento do personagem não é, ao contrário
do que sugere Denilson Lopes em seu ensaio “Por uma nova invisibilidade”
(2007), uma opção por invisibilidade em oposição à visibilidade política das lutas
identitárias. Lopes se pergunta como seria possível hoje uma estética do
desaparecimento “em tempos de máxima exposição quando o marginal, o
revolucionário, o alternativo, o independente, o minoritário são glamourizados,
vendidos e empacotados nas mais populares empresas de entretenimento?”
(Lopes, 2007). Eu sugeriria que o desaparecimento de Eduardo tem mais a ver
com a impossibilidade de significar dentro de determinada lógica que não

17
Disponível em: <http://www.suplementopernambuco.com.br/edicao-impressa/85-cronica/1471-
stella-manhattan,-30-anos-depois.html>. Acessado em 29 de fevereiro de 2016.
39

consegue comportá-lo. Não como um silenciamento estratégico de sua imagem,


de seu excesso camp, mas como uma forma de denunciar as inúmeras feridas que
a sua vivência precária vai deixando em seu corpo. O desaparecimento de
Eduardo ainda é excessivo, ainda o faz presente, diante da sua dramaticidade, do
mistério novelesco que deixa pairar nos demais personagens, que ficam
conjecturando o seu suposto paradeiro; além de toda a repercussão televisiva do
brasileiro desaparecido procurado pelo FBI.

Se esse modelo não comporta tantos membros, sejam eles jovens ou até
mesmo pais LGBTs, a ponto de excluí-los de sua organização, a ponto de causar a
sua morte, é um sinal de que se torna imperativo expandir o conceito.
Ressignificar a família não é declarar o seu fim, a sua destruição, como
proclamam os criadores do Estatuto da Família, aprovada no Congresso Brasileiro
18
em 2015 e que pretende defini-la como formada a partir de homem e mulher,
excluindo diversas configurações familiares, não só homoafetivas, mas
organizadas a partir da figura de uma mãe solteira, de tias, irmãos órfãos, etc.
Pretende-se, por isso, uma expansão do conceito de família, de lar, de casa,
retirando-os do âmbito da instituição heteronormativa, para que as suas teias
significantes comportem outras formas de afetividade, de acolhimento, e de
convívio.

Para Judith Butler em sua conferência ministrada na Universidad de


Alcalá, em Madri - Espanha, intitulada “Repensar la vulnerabilidade y la
Resistencia” (2014), um corpo se vê vulnerável quando se vê deliberadamente
exposto ao poder. Essa é a ambivalência do coming-out, já debatida por Eve
Sedgwick em seu ensaio “A epistemologia do armário” (2007). Ao revelar-se
homossexual para a sua família, Eduardo se viu expulso dela, principalmente em
se tratando de uma família de militares conservadores em plena ditadura militar
brasileira dos anos 1960. Butler, no entanto, afirma que ao mesmo tempo que esse
corpo precário se expõe à vulnerabilidade, ele também produz uma resistência.

A resistência de Eduardo está na produção que faz de si mesmo e da sua


subjetividade mesmo após a perda da casa, como uma falha dentro da família

18
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-
HUMANOS/497879-CAMARA-APROVA-ESTATUTO-DA-FAMILIA-FORMADA-A-
PARTIR-DA-UNIAO-DE-HOMEM-E-MULHER.html>. Acessado em: 25 de outubro de 2015.
40

normativa. Eduardo também é Stella, uma subjetividade queer (efeminada ou


trans) que se desdobra em seu corpo. A cadeia afetiva que Eduardo/Stella
constrói, também é composta por singularidades que se desdobram em
subjetividades pluralizadas. Cada personagem produz uma dobra subjetiva, em
uma criação de si mesmo, em uma criação de um outro em cada contexto distinto
de precariedade.

É nessa fresta aberta na norma que Silviano Santiago produz em seu livro,
é o que excede o “home sweet home” tradicional, o que se desloca para a sua
borda, que o lar e a família são ressignificados. O livro de Silviano faz parte do
caldeirão minoritário das vidas que excedem e que se tornam vulneráveis, mas
que resistem. Há uma força nessas vidas, uma faísca ativa, que poderia ser
comparada à “potência do menor”, que conceitua Gilles Deleuze e Felix Guattari
em “Por uma literatura menor”.

É importante focar nessas “potências ativas”. Traço um contorno da casa e


da família como estruturas de poder apenas para conseguir chegar nesse ponto
nevrálgico e poético, que são as vidas que resistem, ou no que Peter Pal Pelbart
chama, no ensaio “Poder sobre a vida, Potência da vida” (2002), de
“desinvestimento ativo dos excluídos”, ou de “estratégias de reativação vital.”

Durante um colóquio em homenagem a Stuart Hall, que ocorreu no outono


de 2014 em Paris, o professor Eric Maigret, da Sorbonne Nouvelle, apontou que o
pensamento foucaultiano acabou produzindo uma “paranóia do poder”. Para ele,
sair do pensamento patriarcal não é ir necessariamente para o simples pensamento
do poder. Pelbart, no ensaio citado anteriormente, explica que bipolítico foi “o
conceito forjado por Foucault para designar uma das modalidades de exercício do
poder sobre a vida, vigentes desde o século 18” (Pelbart, 2002, p. 39). Mas,
segundo ele,

Um grupo de teóricos, majoritariamente italianos, propôs uma pequena inversão, não só


semântica, mas também conceitual e política. Com ela, a biopolítica deixa de ser
prioritariamente a perspectiva do poder e de sua racionalidade refletida tendo por objeto
passivo o corpo da população e suas condições de reprodução, sua vida. A própria noção
de vida deixa de ser definida a partir de processos biológicos que afetam a população.
Vida inclui a sinergia coletiva, a cooperação social e subjetiva no contexto de produção
41

material e imaterial contemporânea, o intelecto geral. Vida significa inteligência, afeto,


cooperação, desejo. (...) Daí a inversão, em parte inspirada em Deleuze, do sentido do
termo forjado por Foucault; biopolítica não mais como poder sobre a vida, mas como a
potência da vida. (Ibid., 39)

A subversão apontada por Pelbart passa a ser estratégica, já que a


biopolítica pode ser vista como uma força ambivalente – existe o poder sobre a
vida e o poder da vida, ou a potência da vida.

Alphonso Lingis, em Vontade de Potência, seu artigo sobre o conceito de


vontade de potência em Nietzsche, cita o filósofo alemão, quando ele diz que “A
força não pode existir no singular. E a força, desde a sua origem, é diferente de si
mesma: a potência é, em si mesma, sempre vontade de mais potência” (Nietzsche,
1968, §702, apud Lingis, 2003, p.15). A vida é uma força indo de encontro a
outras forças. A reversão que Pelbart propõe a partir dos teóricos italianos é uma
mudança de perspectiva. Um ângulo de visão para as estratégias políticas
minoritárias.

Pensar o queer no sentido de desaprender, desaprender modos de vida,


categorias. No sentido nieztchiano que Halberstam conceitua: como uma potência
da falha. Pensar o queer como possibilidade de um outro mundo. Me interesso,
portanto, em utilizá-lo para vislumbrar a utilidade da ideia de perda, falha, erro,
em um sentido mais nietzschiano do que capitalista. Não estou interessada na
perda no mesmo sentido da história dos vencedores, tão cara ao neoliberalismo.
Estou interessada, ao contrário, em como perder e falhar nos coloca em uma
posição de abertura, de fissura, de um impulsionamento para a reinvenção, a
criação, e de alternativas à norma. Na narrativa de Santiago, Eduardo/Stella
desaparece para chamar a atenção para essa falha, não nos fica o vazio no lugar de
seu desaparecimento, mas um rastro dramático, trágico (ainda camp), que nos
aponta a própria invisibilidade histórica do trauma doméstico queer e qualquer
possibilidade das normas de apreendê-lo e significá-lo.
3
“Na sombra da luz do sol”: os vídeos caseiros de Derek
Jarman

I heard telephones, opera house, favorite


melodies
I saw boys, toys electric irons and T.V.'s
My brain hurt like a warehouse
it had no room to spare
I had to cram so many things
to store everything in there
And all the fat-skinny people, and all the tall-
short people
And all the nobody people, and all the somebody
people
I never thought I'd need so many people

(David Bowie)

Figura 4: Frame do curta Studio Bankside (1971), de Derek Jarman


43

A emissora inglesa de televisão BBC exibiu, em 1994, o último filme de


Derek Jarman, Glitterbug, meses depois de sua morte em decorrência de
complicações causadas pelo vírus da AIDS. Jarman soube que era portador do
vírus em 1986, durante as gravações de seu longa-metragem The Last Of England
(1987). Jarman dirigiu Glitterbug até a sua saúde permitir, ao lado codiretor
associado David Lewis e do editor Andy Crabb, a partir de quinze horas de
materiais que havia filmado em sua pequena câmera Super-8 entre 1970 e 1985.
Glitterbug, que possui uma hora de duração, foi exibido no programa Arena, uma
série de documentários que faz parte da programação da BBC desde 1975.

Derek Jarman nasceu em 31 de janeiro de 1944 em Northwood,


Middlesex, no Reino Unido e faleceu em Londres, em 1994. Na época da sua
morte, era conhecido como um dos mais controversos cineastas britânicos. A
fama se dava por conta de seus polêmicos longas como, por exemplo, o primeiro
deles, Sebastiane (1976). Falado inteiramente em latim, rodado na Sardenha
(Itália) e financiado por um rico e anônimo empresário italiano, o filme conta a
vida de São
Sebastião a
partir do
olhar queer
do diretor.
Com cenas
de rapazes
nus,
seminus,
Figura 5: Frame de Sebastiane (1976), de Derek Jarman tendo
ereções,
Sebastiane traz uma versão inegavelmente sadomasoquista do santo, como afirma
B. Ruby Rich no capítulo “The King of Queer: Derek Jarman”, presente no seu
livro New Queer Cinema: The Director’s Cut (Rich, 2013, p. 50) 1.

1
Há também um capítulo inteiro dedicado a essa temática do sadomasoquismo em Sebastiane,
presente no livro The Queer Cinema of Derek Jarman (2009), de Niall Richardson. No momento
não me dedicarei à temática, já que me aterei aos curtas do diretor, no presente capítulo.
44

Jarman se dedicou também à pintura, à cenografia, aos seus sketch books e


à jardinagem. Formou-se no King’s College de Londres, onde desenvolveu
conhecimento acadêmico da língua inglesa, história e história da arte. Foi na
universidade que Jarman desenvolveu uma forte paixão pela história da
Renascença, encantamento que atravessa seus longas como Caravaggio (1986),
baseado na vida do pintor italiano, e Edward II (1987), uma adaptação da peça de
Christopher Marlowe. Logo após se formar no King’s College, Jarman foi
admitido na Slade School of Fine Arts, estudando pintura e cenografia. Nas aulas
da Slade, Jarman teve, pela primeira vez, um contato mais intenso com obras de
cineastas da vanguarda europeia e estadunidense, como Sergei Eisenstein, Jean
Cocteau, Federico Fellini, Pasolini, Maya Deren, Kenneth Anger e Andy Warhol,
outros intercessores de seus trabalhos, junto com a Renascença. 2

Glitterbug começa com imagens de Dungeness na costa Kent, na


Inglaterra, onde fica Prospect Cottage, a casa de veraneio onde Jarman cultivou
seu jardim –atualmente aberta para visitação. Jarman aparece em uma das cenas
trabalhando em uma escrivaninha, de frente para a janela que dá vista para o
exterior da casa. A voz do narrador fala, ao fundo, que a força criativa de Jarman
foram seus home movies, tradição herdada do pai e do avô. Logo em seguida
entram cenas de alguns home movies de seu pai. Depois Jarman aparece no
programa Face to Face, da BBC, exibido em março de 1993, no qual é
entrevistado por conta do lançamento de The Last of England. No excerto incluído
em Glitterbug, o repórter que entrevista Jarman pede que fale um pouco sobre ter
começado a filmar com câmeras Super-8. Jarman conta que seu primeiro contato
com a câmera foi quando era um jovem estudante de pintura em Slate. Alguém
levara uma Super-8 para o estúdio e lhe ofereceu emprestada. Jarman aceitou a
oferta e fez um filme de três minutos do estúdio, que seria o seu primeiro de uma
longa série. Nas festas que dava com os amigos, sempre projetava os filmes. O
diretor diz que a câmera portátil lhe dava a possibilidade de criar efeitos de
imagem na própria câmera durante as filmagens, o que não era possível de ser

2
HOYLE, Brian. Derek Jarman: Radical Traditionalist. Senses of Cinema, Issue 43, Maio de
2007.
45

executado com a 16mm. Jarman declara que esses filmes têm um papel central na
sua cinematografia, e que ele os considerava, talvez, mais interessantes que seus
longas-metragens, porque eles falavam mais diretamente da a sua experiência, de
certo modo, “apesar de ser difícil de convencer às pessoas disso”. Ele diz que se
orgulha de fazer esses filmes, e que, na época dessa entrevista, um ano antes de
sua morte, ainda os fazia.

O interesse acadêmico e arquivista pelos vídeos caseiros tem apresentado


um considerável aumento nas últimas décadas. Eles foram redescobertos com
valor de uma fonte histórica e social. Consuelo Lins e Taís Blank, no artigo
“Filmes de família, cinema amador e a memória do mundo” (2012), demonstram
como esse interesse, que vem de pesquisadores, cineastas e de arquivos públicos,
tem, no Brasil, como exemplo emblemático a Cinemateca Brasileira de São Paulo,
que “tem constituído um grande acervo de imagens amadoras e familiares –
constantemente consultado e utilizado por artistas brasileiros.” (Lins e Blank,
2012, p. 57)

Elizabeth Czach, em sua dissertação apresentada na Concordia University


(Canadá), intitulada Home movies then and now (2000), elabora um texto em
torno da questão do home movie como uma das primeiras aplicações da tecnologia
cinematográfica amadora e em quais tipos de representação essa forma fílmica
estava interessada.

Em 1923 a Kodak iniciou a comercialização da câmera de 16mm voltada


para o uso doméstico, mas, por conta do seu custo, somente grupos mais
privilegiados podiam ter acesso aos primeiros equipamentos. A partir da década
de 1950 esse tipo de tecnologia começou a ser comercializado a custos menores e
tornou-se mais acessível aos seguimentos menos privilegiados, já que os
equipamentos passaram a ser menores e os filmes passaram a requerer menos luz.
A câmera doméstica (home movie camera) emergiu como uma mercadoria
massiva que deu à família a responsabilidade de registrar seu everyday life e essa
atividade se tornou o modo ideal dessas famílias gastarem o seu tempo de lazer.
(Czach, 2000, p.p. 17-18)

A emergência do equipamento fílmico no mercado de massas criou usuários que não


tinham muito conhecimento de como gravar imagens em movimento. De fato, em sua
maior parte, usuários tendiam a replicar as imagens recodificadas com as câmeras
46

fotográficas. Isso explica a esmagadora percepção dos filmes caseiros como imagens
banais de pessoas rígidas, sorrindo desajeitadamente para as câmeras. (Idem, 2000, p. 24)
3

Em 1950, nos Estados Unidos, a família nuclear era a unidade de consumo


dominante. Por conta disso, os manuais da Kodak ensinando o manuseio e
sugerindo os possíveis usos da câmera eram voltados para o registro dos seus
momentos de diversão. Czach aponta que no guia de filmagem portátil Filming
Family (1962), uma das diversas publicações comercializadas na época, ensinava-
se aos usuários como fazer documentação desses contextos domésticos. Os
capítulos se dividiam em “Filming Baby’s First Year”, “Films Featuring
Toddlers”, “Children of School Age”, “Birthday and Chrismas Parties”, “Holidays
Films”, “Hobbies”, e “Films a Wedding”, o que nos demonstra que esses guias
estavam comprometidos com a ideologia da família nuclear branca, de classe
média urbana, sugerindo cenários que giravam em torno de pais e crianças.
(Czach, 2000, 25)

Lins e Blank mostram, através de Susan Aasman em seu artigo “Le film de
famille comme document historique” (2012), que os filmes de família remontam a
uma tradição que vem de antes do surgimento da câmera de filmar: “a dos retratos
de família pintados como um gênero, que aparecem na Renascença com a
ascensão da burguesia” (Lins e Blank, 2012, p. 57).

Czach relativiza o impacto doutrinador das propagandas e dos guias,


ressaltando que apesar da escassez de representações de famílias não-brancas e
não-normativas nos manuais da Kodak, essa ausência não corresponde exatamente
com o que foi feito e produzido pelos usuários domésticos das primeiras
tecnologias cinematográficas portáteis:

O que emergiu desses manuais foi um conjunto de normas e de rituais domésticos que
criaram um ideal mítico do dia-a-dia a ser aspirado. A ideia de um “dia-a-dia normal”
inscreveu papéis de gênero assim como apagou as diferenças sexuais e raciais. Uma
ruptura emerge, no entanto, quando as práticas dos filmes caseiros são colocadas em cena
por aqueles que são excluídos pelo discurso dos manuais, assim como foi o uso das
câmeras de filmes caseiros nos campos de prisionais Japoneses. Se o dia-a-dia é para

3
“The emergence of film equipment into the mass-market created users who had little idea about
how to record moving images. Indeed, for the most part, users tended to replicate the images
recoded with still cameras. This accounts for the overwhelming perception of home movies as
banal images of stiff limbed people smiling awkwardly into the cameras .”
47

existir como um conceito culturalmente viável, ele deve emergir em uma complexidade
heterogênea. (Idem, 2000, p. 35) 4

No artigo Extended Family Films: Home movies in the State-Sponsored


(2009), 5 Julia J. Noodergraaf e Elvira Pouw tratam de como os filmes de família
podem trazer essas múltiplas representações, e não só o da família branca
tradicional. O ponto de vista do seu objeto é uma família aristocrática holandesa,
dona de minas de ouro na Ilha de Sumatra, na Indonésia, mas o interesse das
autoras é justamente como essa vida na colônia os obriga a expandir o modo como
a família é representada.

Noodergraaf e Pouw partem do programa de exibições e palestras que


aconteceram em 2002 no Nederlands Filmmuseum, em torno da coleção de filmes
da Dutch East Indies, onde foram projetados filmes do período da colonização dos
Países Baixos na Indonésia. O artigo faz um recorte, utilizando os filmes
domésticos da família Sanders, cujo patriarca, Mr. H. J. A. Sanders, fazia registros
em vídeo da Ilha de Sumatra, onde possuía minas. O que chama a atenção das
autoras é que esse material se estende através do domínio da casa da família.
“Nesse sentido, as gravações dos Sanders, assim como outros filmes amadores
nesse cenário histórico particular, onde pessoas criavam novas “casas longe de
casa”, ilustravam a permeabilidade entre a vida privada e pública que era uma
6
característica da vida em qualquer colônia.” (Noodergraaf e Pouw, 2009, p. 86)
Alguns frames de filmes domésticos dos Sanders são expostos no artigo. Um
deles mostra o casal Sanders sentado, posando para a câmera, na frente da casa da
colônia, na frente de todos os empregados de origem étnica desconhecida. Em
outra fotografia, H. J. A. Sanders está ao lado do cozinheiro da casa e sua esposa,
durante o casamento dos dois. Noodergraaf e Pouw defendem que, por estarem
longe da família, os colonizadores criam outro tipo de familiaridade com os
4
“What emerged from these manuals was a set of norms and domestic rituals that created a mythic
ideal of the everyday-one to aspire to. The idea of the ‘normal everyday’ inscribed gender roles as
well erasing sexual or racial difference. A rupture emerges, however, when home movie practices
are put into play by those excluded by the discourse of the manuals, such as the use of home movie
cameras in Japanese internment camps. If the everyday is to exist as a culturally viable concept it
must emerge in the heterogeneous complexity.” (Tradução livre)
5
The Moving Image, Volume 9, Number 1, Spring 2009, pp. 83-103.
6
“In that sense, the Sanders recordings, as the other amateur films from this particular and
historical setting where people created new ‘homes away from home’, illustrated the permeability
between private and public life that was characteristic for life in any colony.”
48

empregados, o que envolve relações senhoriais, mas também a função de suprir a


ausência de primos, sobrinhos e irmãos, nesses momentos típicos da vida familiar
moderna. A vida na colônia asiática acaba por rasurar a tradicional organização
familiar que existia para os Sanders na Europa.

O que Derek Jarman fazia em seus home movies era justamente isso: uma
redefinição do lar através do imenso universo que produziu com eles. Jarman fazia
questão de chamar seus filmes amadores de filmes caseiros (home movies). Jim
Ellis, em seu livro Derek Jarman’s Angelic Conversation (2009), diz que Jarman
“reivindica uma tradição familiar e a reconfigura” (Ellis, 2009, p. 18), e que
Jarman reivindica também a propriedade desses termos, “casa” e “família”. Em
uma entrevista concedida à revista Marxism Today, em outubro de 1987, na época
do lançamento de seu filme The Last Of England , Jarman diz:

Eu tento deixar tudo muito perto do conceito de casa, que é, talvez, algo que é difícil pra
mim, porque eu sou gay. É duro de estabelecer ‘casa’ sendo um homem gay. Meus filmes
caseiros, portanto, relatam um mundo muito diferente desse representado pelo meu avô e
pelo meu pai. Eles apresentaram um caminho através das cerimônias da vida
heterossexual: casamentos e luas-de-mel. 7

Com essas outras versões do lar, os filmes de família de Jarman mapeiam


novos territórios do desejo e da subjetividade. Ellis alega que o que diferenciaria
Jarman de suas influências fílmicas e o faz se aliar mais a um cinema underground
8
seria o modo como a história e a política estão implicadas em seu olhar.

3.1
O íntimo é político

Yan Beauvais em seu ensaio sobre os home movies de Jarman intitulado


“Super-8 é liberdade: uma revisão do cinema do pequeno gesto” (2014), narra

7
“I try to keep everything very close to the concept of home, which is perhaps something which is
difficult because I am gay. It is hard to establish 'home' being a gay man. My home movies
therefore reported a very different world to that presented by my grandfather and my father. They
presented a way through the ceremonies of heterosexual life: marriages and honeymoons.”

8
Eu chamaria aqui também de “cinema menor”, fazendo referência ao conceito desenvolvido por
Deleuze e Guattari no livro Kafka: Por uma literatura menor.
49

que, em uma data imprecisa, entre as décadas de 1970 e 1980, estava em Paris
durante um período no qual os eventos de cinema experimental faziam parte do
cotidiano do Centre Georges Pompidou. Em uma dessas ocasiões, teve o primeiro
contato com os vídeos em super-8 de Jarman, com o próprio diretor projetando
não de dentro da cabine, mas na própria sala de exibição, entre os espectadores.
Beauvais se espantou com o acontecimento: “Notei que o artista estava fazendo
em público algo que com frequência é privado, a projeção de diários. Sua projeção
é geralmente uma experiência compartilhada com a família, em um círculo de
amigos ou de relações estreitas, mas isso não foi antes de Jonas Mekas 9 e alguns
outros terem feito disto uma experiência pública.” (Beauvais, 2014, p. 120) Como
Ana Kiffer afirmou em seu curso intitulado “Cadernos do Corpo” (2015), sobre os
cadernos experimentais e de notas que geralmente os artistas guardam nas suas
gavetas, ou seja, no contexto íntimo, mas que têm passado a ser matéria de suas
práticas artísticas:10 “o íntimo não encena a si mesmo, mas passa a fazer parte de
um comum, da política do mundo”. Derek Jarman reverte o modo de utilização
desses vídeos caseiros, normalmente exibidos, assim como os cadernos
preparatórios de artistas se reservam aos arquivos íntimos, entre familiares e
amigos, mas dentro de um contexto íntimo, doméstico. Jarman, como observamos
a partir da narração de Beauvais, os exibe para um público mais amplo, não se
restringindo ao contexto privado, e como parte de sua produção artística. Talvez
pelo fato de essa experiência íntima fazer parte de um comum, como afirma
Kiffer, de um comum que é político.

Na entrevista que concedeu à revista Marxism Today em 1987 e já citada,


intitulada “Home movie man”, o repórter pergunta a Derek Jarman se depois do
lançamento do filme Sebastiane passou a se sentir parte do cinema independente
inglês. A resposta de Jarman é uma crítica aos próprios preceitos que faziam parte
da vanguarda estética, ou o “cinema de arte” inglês:

Devo admitir que nessa época eu conhecia muito pouco sobre outros cineastas
independentes. A moda da época para cineastas independentes eram os filmes

9
Jonas Mekas, a quem Beauvais se refere, é um poeta e artista lituano-americano conhecido como
um dos expoentes do cinema de vanguarda dos Estados Unidos.
10
Curso ministrado dentro do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e
Contemporaneidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, no primeiro semestre
de 2015. Faço referência a um comentário feito por Ana Kiffer durante um dos dias do seminário.
50

estruturalistas. Eles acharam Sebastiane muito autoindulgente. Mas eu acredito que nós
precisamos de um cinema que inclua mais disso que é chamado de autoindulgência e
menos teoria. Nós poderíamos fazer um cinema muito mais vibrante se as pessoas
explorassem quem eles são em sua grande variedade e se usassem isso como ponto de
referência para fazerem seus filmes. 11

Jarman faz uma espécie de afirmação da “autoindulgência” como uma


característica potente do seu filme. A autoindulgência seria uma forma de permitir
ao filme pulsar vida, ao contrário dos cineastas estruturalistas, que se preocupam
mais com o rigor formal. O cerne da preocupação de Jarman não é o ângulo da
cena, o quadro, a iluminação, a montagem, a edição (apesar de produzir uma outra
forma, que por vezes são as imagens borradas de seus super-8, com seus efeitos de
cor, e outras com uma talvez outra forma de realismo, como em Sebastiane), mas
com uma forma de afirmar a vida do santo, no caso de Sabastiane, através de uma
narrativa erótica sadomasoquista, com uma preocupação política. Narra-se, além
disso, uma versão não-rigorosa da biografia de São Sebastião, com detalhes
inventados, com o intuito de produzir uma rasura política na história bíblica, de se
apropriar do popular fetiche pelo qual a comunidade queer goza pela imagem
contorcida de Sebastiane, a exemplo do livro de Mishima, A máscara, no qual o
personagem nutre uma obsessiva atração pela imagem de sua execução.

Os filmes de Jarman proporcionaram a possibilidade de desenvolver uma


estética com preocupações políticas, principalmente seus filmes em super-8, que
abriam campos para que trabalhasse com novos espaços, com universos mágicos,
com o mundo no qual vivia – o mundo queer londrino – e a sexualidade, ou pela
articulação entre a autoindulgência e a contundência política.

Jacques Rancière inicia a primeira entrevista que compõe o livro A


Partilha do Sensível: Estética e Política (2009) com uma exploração da ideia-
título, a partilha do sensível, que seria “o sistema de evidências sensíveis que
revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele
definem lugares e partes respectivas”, essa partilha fixaria então, ao mesmo

11
I have to admit that at this time I knew very little about other independent film makers. The
fashion at the time for independent film makers was structuralist films. They found Sebastiane
very self-indulgent. But I believe we do need a cinema that includes more of what is called self-
indulgence and less of theory. We would have a much more vibrant cinema if people actually
explored who they were in all their great variety and used that as a yardstick from which to make
their films.
51

tempo, “um comum partilhado e partes exclusivas” (Rancière, 2009, p. 15).


Partilham desse comum apenas os indivíduos que estão autorizados, pelo papel
que exercem na sociedade, a fazerem parte dela. Rancière retoma um sentido
kantiano de “estética”, “o sistema das formas a priori determinando o que se dá a
sentir” (Idem, 2009, p. 16). Haveria, portanto, um jogo de visibilidade e
invisibilidade que faz parte dos afetos da estética, e isso seria o seu caráter
político: quem pode dizer e se expressar, quem tem a possibilidade de ter voz
através da arte. No comum, na experiência estética partilhada, há um regime de
poder, em um sentido foucaultiano, que se manifesta nas vozes que fazem parte
dela, mas também do próprio comum produzido pelo evento estético, ou seja, a
relação de espectadores, leitores, e a potência de vida que ali se expõe.

Jarman, que também era pintor, declarou certa vez que não pôde encontrar
nos quadros o que encontrou nos filmes, porque “[o] mundo da pintura era estéril,
um mundo vazio” (Jarman apud Wymer, 2005, p. 34). Talvez pelo fato de a
tradição modernista da pintura, tal como afirma Rancière, ter apresentado a
“revolução abstrata como a descoberta pela pintura de seu ‘medium’ próprio: a
superfície bidimensional” (Rancière, 2009, p. 22). Rancière discorda do preceito
modernista, argumentando que a superfície do quadro não poderia ser apenas
“uma composição geométrica de linhas”, sendo, na verdade, “uma forma de
partilha do sensível.” (Idem, 2009, p. 22). Rancière mostra ainda que Platão
considerava a superfície da pintura como um “signo mudo, ao contrário da palavra
vida. Não seria, portanto, algo do caráter do plano versus o tridimensional, mas
algo como o plano versus o “vivo”. O Renascimento, que talvez por isso tenha
fascinado tanto a Jarman, inseriu a terceira dimensão na pintura para captar o
“vivo” que escapava ao plano, no esforço de dar ao quadro a possibilidade de
manifestar a ação da potência do vivo (Idem, 2009, p. 23).

Os filmes de Jarman, muitos com referências ao Renascimento artístico,


reapropriando-se de obras do período, deram ao diretor a possibilidade de
partilhar a vida queer que pulsava nos anos 1970 e 1980 na Inglaterra. Através da
terceira dimensão cinematográfica, nas exibições em meio ao público (como
descrito por Yan Beauvais), e também nos períodos de produção dos filmes nos
sets de filmagem (ao contrário do labor solitário da pintura, o cineasta sempre
levava consigo uma equipe composta de amigos). “O que achei foi comunidade.
52

Eu descobri o meu mundo nos filmes”, declarara (Jarman apud Wymer, 2005, p.
35). O comum é político em Jarman na medida em que a partilha do sensível
queer que pulsa nos seus filmes nos coloca diante de outros modos de vivência e
de estar junto.

Os curtas de Derek Jarman em super-8 podem ser divididos em três


grupos. O primeiro é composto de filmes com temáticas que envolvem pessoas,
lugares e eventos, tais como Studio Bankside (1972), Andrew Logan Kisses the
Glitterati (1973), Miss World (1973), Sloane Square (1974-1976), Ula’s Fete
(1976), Journey to Avebury (1973), Ashden's Walk on Mon (1973) e Stolen Apples
For Karen Blixen (1973). O segundo grupo é marcado por atmosferas simbólicas
e mágicas – alguns dos quais influenciados pelos filmes caseiros Kenneth Anger,
como The Art of Mirrors (1973), In the Shadow of the Sun (1981), e T.G. Psychic
Rally in Heaven (1981). Um terceiro grupo de curtas é composto pelos vídeos
produzidos para a MTV, criada em 1981. Nessa época, Jarman atentou para o
potencial comercial de seus super-8 e produziu clipes de bandas como Pet Shop
Boys, Orange Juice e The Smiths. Algumas técnicas desenvolvidas para o clipe de
The Queen is Dead (1986), de The Smiths, o inspiraram mais tarde para algumas
das colagens de The Last of England.

Segundo Ellis, no livro Derek Jarman's The Angelic Conversation, para


Jarman, a coisa mais importante não era o trabalho artístico em si, ou a semântica
do filme mas, ao contrário, “[o] que diferencia Jarman de suas influências iniciais,
e o que o localiza no campo dos cineastas underground mais do que na cena dos
artistas experimentais ou estruturalistas do LFMC, é o modo como história e
política inevitavelmente infletem sua visão” (ELLIS, 2009, p. 21).

Por vezes alguns dos filmes experimentais de Jarman têm um tom


aparentemente abstrato ou nonsense, ou de uma simples experimentação com a
linguagem, como no segundo grupo dos seus curtas. Ele domina os efeitos que as
câmeras super-8 podem ajudá-lo a produzir nos curtas: tanto nas cores, na textura
do filme ou na velocidade de gravação.12 Logo no meu primeiro contato com seus

12
“The Nizo super-8 camera which Jarman began using in 1972 had a button which enabled the
film maker to shoot at different speeds. Jarman developed a favourite technique os shooting at
only three or six frames per second, something which result in manically jerky movements if
53

filmes caseiros tive a impressão que estava diante do contrário, de algo mais
próximo do que Kiffer afirma sobre a obra de Antonin Artaud, em seu artigo
“Limites da escrita ou como fazer da escrita uma plástica poética?”. Segundo
Kiffer, nos trabalhos de Artaud, o que é um rompimento com o figurativo não é
necessariamente uma rendição à forma abstrata, então, “o não figurativo em
Artaud encontra ressonância na busca de crivar os corpos com as forças que os
atravessam (…) esses corpos não figurativos da plástica artaudiana são corpos-
força, o crivo é a eficácia em fisgar, atravessar, perfurar com as forças os corpos.
Seria possível dizer que as forças seriam a base de toda e qualquer matéria.”
(Kiffer, 2008, p. 2008).

Uma montanha de cinzas pega fogo e alguns pedaços voam com o vento.
O vento está agitando o fogo. Esse é o primeiro plano de The Art of Mirrors
(1972). Após cerca de trinta segundos a cena muda. Uma figura está parada no
lado direito do plano e segura um pequeno espelho arredondado que reflete uma
luz contra a câmera, atravessando o olhar do espectador. A luz vai e volta, fazendo
com que a cena escureça e se ilumine, conforme a lente da câmera Super-8 recebe
menos e mais luminosidade. Logo em seguida podemos vislumbrar a silhueta de
outra figura de perfil, elegante, com um vestido de costas nuas e um chapéu com
um lenço amarrado em seu topo, pendente por detrás das costas. A imagem
permanece assim por alguns segundos, a luz oscilando, mais e menos ofuscante,
em nossos olhos. Em seguida o plano se abre e podemos ver que a figura que
segura o espelho usa um terno preto e uma máscara que se assemelha a um saco
de pano com olhos e boca, fazendo-a ter um aspecto monstruoso. Um homem de
cabelos no ombro, com porte dandy, também de terno preto, passa na frente da
câmera segurando uma comprida vela branca. As figuras trocam de lugar, espelho
passa de mão em mão, sempre refletindo luz nos nossos olhos. A última figura a
pegar o espelho é a mulher de vestido. O curta termina com ela se aproximando da

screened at a normal speed, but when projected at the same slowed down rate created a more
languorous, dreamlike effect .” (Wymer, 2005, p. 26)
54

câmera, olhando com firmeza na direção da lente, refletindo a luz do espelho em


sua direção.

O que temos em The Art of Mirrors, que faz parte do segundo grupo de
curtas, os mais oníricos, não é uma simples construção imaginativa ou uma
fabulação. O espelho reflete a luz nos nossos olhos, ofusca a nossa vista, nos
incomoda. As figuras são soturnas, monstruosas, andróginas. Os corpos
projetados na tela nos tocam com a luz. Aqui temos uma experimentação fílmica
em um campo intensivo, afetado. Jarman nos leva a um lugar de borda, entre o
sonho e a realidade. O corpo de luz invade nossa retina com violência, nos
fazendo lembrar que estamos diante do encontro com outros corpos – que nos
atravessam, que nos alteram. Parece que Jarman enxerga que há a possibilidade de
um outro modo de existência, de uma utopia ou de uma heterotopia, nessa
afetação com espaços outros.
55

Figura 6: Frame do curta em Super-8 The Art of Morros (1972), de Derek Jarman

Figura 7: Frame do curta em Super-8 The Art of Morros (1972), de Derek Jarman
56

Logo nos primeiros capítulos do livro A Lógica do Sentido (1974),


Deleuze, ao partir da análise de Alice, de Lewis Carrol, aponta que Platão faz uma
distinção de duas dimensões: uma que seria a das coisas estáticas, limitadas e
fixas; e outra onde o que há é um devir-louco, ou o que ele chama de “puro devir”,
que se furta ao presente e nos faz confundir passado e futuro. Deleuze coloca
então em tensão com a perspectiva platônica o modo estóico de distinguir as
coisas: primeiro os corpos e suas relações, suas paixões, suas misturas, onde o
único tempo seria o presente (o presente cósmico); depois os acontecimentos
incorporais na superfície, que resultam dessa mistura dos corpos da profundeza. A
profundeza estóica, ao contrário da platônica – reino sujo, do simulacro, que nada
tem a ver com a superfície fixa e estática – se manifesta na superfície, como o
filósofo ilustra através de uma citação de Émile Bréhier: “A árvore verdeja...”. A
árvore verdeja porque há a mistura de corpos que resultam nesse acontecimento:
“um corpo penetra outro corpo, na profundidade dos corpos, são misturas: um
corpo penetra outro e coexiste com ele em todas as suas partes, como a gota do
vinho no mar ou o fogo no ferro”. (Deleuze, 1974, p.p. 1-6)

Kiffer, ao ler os desenhos de Artaud, segue, de certa forma essa mesma


qualidade que Deleuze extrai dos Estóicos, lendo Carrol. Os desenhos de Artaud
seriam uma plástica-poética. Kiffer diz que eles são uma força que atravessa os
corpos: “Eles serviriam menos à ideia e mais à própria possibilidade de
materializar as forças que perpassam corpos (sempre escritos ou desenhados).
Dito de outra maneira: a fixação se manifestaria como força de impressão (tomada
aqui enquanto “contato de um corpo com o outro”) e a duração, como
manifestação de presença da força.” (Kiffer, 2008, pp. 218-219)

The Art of Mirrors nos leva ao “domínio da ação e da paixão dos corpos”
como Deleuze descreve as profundezas de Alice no capítulo intitulado “Lewis
Carrol”, presente em Crítica e Clínica (2011, p. 34). O espelho de Jarman nos
leva a essas profundezas, para um submundo queer. “Nas profundezas tudo é
horrível, tudo é não-senso” (Idem, 2011, p. 34).

O curta compõe a série de home movies de Jarman, de forma provocadora.


São figuras oníricas e monstruosas que parecem saídas da bagunça do porão: o
espelho, o saco, a velha, as roupas de época que compõem o figurino. É um vídeo
57

feito de resíduos. O próprio vídeo é um resíduo. É um ato preparatório, algo


inacabado. Faz parte de um lar em construção. Heidegger começa sua conferência
intitulada “Construir, Habitar, Pensar” (1951), afirmando que “[p]arece que só é
possível habitar o que se constrói”, mas “Construir não é, em sentido próprio,
apenas meio para uma habitação. Construir já em si mesmo habitar.”13

O espelho de Jarman não é o espelho narcísico – ele não nos reflete,


tampouco reflete as figuras de The Art of Mirrors. Como diz Sefen Dilon, em seu
livro Derek Jarman and Lyric Films: The Mirror and the Sea (2004), o espelho
brilha como estrelas na escuridão (Dilon, 2004, p. 52). São estrelas do presente
cósmico estóico. São os vagalumes, sobre os quais fala Georges Didi-Huberman
em seu livro Sobrevivência dos Vagalumes (2011).

Didi-Huberman inicia seu ensaio com as duas luzes de Dante, cujo valor e
potência irá reverter: a grande luz (luce) do paraíso e a “pequena luz” (lucciola),
do inferno. No inferno, “o espaço todo é salpicado – constelado, infestado – de
pequenas chamas que parecem vagalumes, exatamente como aquelas que as
pessoas do campo, nas belas noites de verão, veem esvoaçar, aqui e ali, ao acaso
de deu esplendor discreto, passante, tremeluzente” (Didi-Huberman, 2011, p. 11).
A luz do paraíso seria a da dilatação gloriosa, a grande claridade das alegrias
celestiais. O fraco lampejo do inferno é o “dos erros que se arrastam sob uma
acusação e um castigo sem fim”, destino de “conselheiros pérfidos” e políticos
desonestos. (Idem, 2001, p. 13). A grande luce seria a das entidades celestes de
Dante, e a multidão de lucioles, as coisas terrestres e paixões humanas. (Idem,
2011, p. 13)

Segundo o filósofo, em 1941 o jovem Pier Paolo Pasolini teve seu


primeiro contato com a Comédia, em um momento de fascismo triunfante. Logo
em seguida irrompera a violenta guerra. Didi-Huberman sugere, para lermos esse
momento, uma inversão das relações entre a grande e a pequena luz de Dante:

13
[Bauen, Wohnen, Denken] (1951) conferência pronunciada por ocasião da “Segunda Reunião de
darmastad”, publicada em Vortäge und Auʄsätze, G. Neske, Pfullingen, 1954. Tradução de Marcia
Sá Cavalcante Shuback
58

É um tempo em que os “conselheiros pérfidos” estão em plena glória luminosa, enquanto


os resistentes de todos os tipos, ativos ou “passivos”, se transformam em vagalumes
fugidios tentando se fazer tão discretos quanto possível, continuando ao mesmo tempo a
emitir seus sinais. O universo dantesco, dessa forma, inverteu-se: é o inferno que, a partir
de então, é exposto com seus políticos desonestos, superexpostos, gloriosos. Quanto aos
lucciole, eles tentam escapar como podem à ameaça, à condenação que a partir de então
atinge sua existência. (Didi-Huberman, 2011, p. 17)

Diante da escuridão do fascismo, da guerra, dos tempos sombrios, Pasolini


troca cartas com amigos, onde há “... pequenas histórias na grande história.
Histórias de corpos e de desejos, histórias de almas e de dúvidas íntimas durante a
grande derrocada, a grande tormenta do século” (Idem, 2011, p. 17). Em uma
dessas cartas, que falam de amor, de amizade, de paixões, o jovem Pasolini narra
uma noite que, entre amigos, vai até Pievo del Pino, em Paderno, e avista uma
imensidão de vagalumes:

...e nós os invejávamos porque eles se amavam, porque se procuravam em seus voos
amorosos e suas luzes, enquanto nós estávamos secos e éramos apenas machos numa
vagabundagem artificial (...) Pensei então em como era bela a amizade, e as reuniões dos
rapazes de vinte anos, que riem com suas másculas vozes inocentes e não se preocupavam
com o mundo à sua volta... (Pasolini apud Didi-Huberman, 2011, p. 19)

Para Didi-Huberman, esses corpos joviais, líricos, que irradiam seus


desejos, suas risadas seus “lampejos de inocência”, nos dão um contraste violento
entre a exceção da alegria inocente e a regra do fascismo e da guerra, que assolam
a realidade. São pequenos vagalumes que brilham suas luzes intermitentes através
de sua potência de vida e de sua vitalidade. Além disso, afirma que toda a obra
literária, cinematográfica e política de Pasolini foi atravessada por esses
momentos de exceção “em que seres humanos se tornam vagalumes – seres
luminescentes, dançantes, erráticos, intocáveis e resistentes”. (Didi-Huberman,
2011, p. 23). Porém, em 1975, trinta e quatro anos após escrever a carta sobre o
encontro com a constelação de vagalumes, Pasolini publicou um texto sobre sua
morte. Didi-Huberman alega que esse é o “... artigo da morte dos vagalumes.
Trata-se de um lamento fúnebre sobre o momento em que, na Itália, os vagalumes
desapareceram...” (Idem, 2011, p. 25). Esse seria o resultado de um Pasolini
desesperado, apavorado, que só vislumbraria, agora, o apocalipse.

Didi-Huberman, no entanto, ainda guarda a inocência (talvez) necessária


para vislumbrar a potência dos pequenos lampejos e da intermitência das
pequenas luzes. Que, apesar do avanço das luzes ofuscantes da iluminação dos
59

grandes centros urbanos, e da poluição das águas dos rios, os vagalumes


encontram, longe da nossa visão, lugares para sobreviverem: “É preciso saber que,
apesar de tudo, os vagalumes formaram em outros lugares suas belas
comunidades luminosas (lembro-me, então, por associação de ideias, de algumas
imagens do final de Fahrenheit 451, quando o personagem ultrapassa os limites
da cidade e se encontra na comunidade dos homens-livros)” (Idem, 2011, p. 50).
Didi-Huberman faz a relação entre precariedade da luz do vagalume com o
conceito de “literatura menor” de Deleuze e Guattari – haveria, então, uma “luz
menor”, que possuiria os mesmos aspectos filosóficos. (Idem, 2011, p. 52)

Essa dança viva dos vagalumes no meio das trevas, esses pequenos
lampejos, nada mais são, segundo o filósofo, do que “uma dança do desejo
formando comunidade”. A pequena luz do vagalume, a sua luce, é uma pequena
força de atração, uma exibição sexual, a fim de atrair outros corpos-vagalumes até
eles, ou, em algumas espécies do bicho, uma forma de um vagalume atrair outro a
fim de devorá-lo. (Idem, 2011, p. 55). Pasolini e Jarman, com seus lampejos,
formaram suas comunidades afetivas e sexuais, mas também foram devorados: o
primeiro pelo garoto de programa que o matou na praia de Óstia; e o segundo pelo
vírus da AIDS. O encontro e a mistura dos corpos pode ser vital ou fatal.

Tanto nos filmes de


Pasolini quanto nos de
Jarman, o lampejo pode vir
do encontro do outrora com o
agora. Ambos são fascinados
pela história, e veem nela
uma possibilidade de
ressignificação mútua do Figura 8: Frame de Óstia (1988), de Julian Cole. Derek Jarman à
direita da imagem.
passado e do presente.
Jarman era um grande admirador de Pasolini, e o interpretou no curta Óstia (1988,
foto), dirigido por Julian Cole, inspirado nos eventos que culminaram em sua
morte.

No longa Jubilee (1978), Jarman coloca em choque o passado magistral


inglês e um presente devastado e distópico, onde as sobrevivências aparecem na
60

pele de jovens niilistas punks. A rainha da Inglaterra solicita ao anjo Ariel que a
leve para o futuro, porque quer obter conhecimentos que outras pessoas não
podem ter. O anjo desce dos céus e reflete uma pequena luz, através de um
espelho redondo, que segura na altura da cintura – gesto que já observamos no
filme caseiro The Art of Mirros. A Rainha diz para seu conselheiro, “Essa visão
excede todas as expectativas. Jamais presenciei tamanha sublimação”, e o
conselheiro responde: “Um anjo, majestade, é o sol da verdadeira escuridão”. Mas
ao responder a solicitação da rainha, Ariel diz: “Eu lhe revelarei a sombra desta
época.”

Ariel a leva para esse contexto apocalíptico inglês. A cidade está


destruída, esfumaçada, fogo por toda a parte, barulho de metralhadoras, ruínas.
Garotos punks roubam os pertences diretamente de cadáveres estirados nas ruas.
A cidade parece ter sido devastada por uma guerra. Em seguida, em uma
ambientação interna, uma menina ruiva apresenta Amyl Nitrate a uma plateia: “O
mundo não está interessados em heróis. Tão triste (rindo, debochadamente).
Agora nós sabemos demais sobre eles, não sabemos? Vocês conhecem algum
herói de verdade? Eu não. Que seja, deixe-me apresenta-los a Amyl Nitrate. Ela é
a nossa heroína.”

Amyl é uma garota com aparência glam punk, um estilo de se vestir e


maquiar semelhante ao do cantor do glam rock inglês David Bowie14. Amyl
coloca um pouco de perfume no pescoço e exclama: “Ah, Carnation de Floris.
Nem todas as coisas boas desapareceram”. Então começa seu discurso:

14
Segundo Philip Auslander, em seu livro Performing Glam Rock: Gender and Theatricality in
Popular Music (2006), a primeira manifestação do Glam Rock foi na Inglaterra, década de 1970,
com a banda T-Rex. O glam se insere no contexto das subculturas jovens do pós-guerra na Europa,
e seu auge é no lançamento do álbum Ziggy Stardust de David Bowie, ainda no início dos anos
1970, que encarna o estilo do glitter rock, como também era conhecido o glam: uma estética camp,
de maquiagens e cabelos ousados e coloridos, roupas andróginas, na criação de um visual “de
outro mundo” – Ziggy Stardust era a persona de Bowie “vinda do planeta Marte”.
61

O lema de nossa escola é “Faites vos désirs réalité”. Façam de seus desejos uma
realidade. Particularmente, prefiro a música “Não Sonhem, Sejam”. “Naquela época, os
desejos não podiam se tornar realidade. Por isso, a fantasia era substituída por eles:
filmes, livros, fotos... Eram chamados de “arte”. Mas quando seus desejos se tornam
realidade... não precisam mais de fantasia, ou de arte. Sempre me lembrei do lema da
escola. Quando criança, minha heroína era Myra Hindley. Lembram-se dela? Diziam que
os crimes de Myra estavam além das crenças. Mas isso porque na época ninguém tinha
imaginação. Não sabiam como tornar seus desejos realidade. Não eram artistas como
Myra. Hoje, alguém pode sorrir com inocência. Quando, no meu aniversário de 15 anos a
Lei e a ordem foram finalmente abolidas todas aquelas estatísticas, substitutas para a
realidade... desapareçam. A criminalidade caiu para zero. Quem acreditava em estatísticas
naquela época? Apenas os seres vitais. Em todo caso, comecei a dançar. Eu queria
desafiar... a gravidade. 15

Figura 9: Amyl Nitrate em Jubilee (1978), de Derek Jarman

Quando o discurso de Amyl termina, há um corte para a cena Jordan’s


Dance (1977), um curta de Jarman incorporado ao filme no momento da
montagem. Nele, uma bailarina (a própria Jordan, atriz punk que interpreta Amyl)
dança ao redor de uma fogueira alimentada por páginas de livros, lançadas por um
rapaz, enquanto é assistida por outros homens (um nu e outro com calça jeans e
jaqueta de couro), ambos com máscaras. A trilha da cena é um “pas de deux”
composto em 1884 por Minkus para “Giselle”, e conduzido pela orquestra do
teatro russo Bolshoi.16 A dança sempre entra como uma imagem-lampejo nos

15
Jarman, 1978, 00:08:22,453
16
O pas de deux foi composto especialmente para a bailarina Maria Gorshenkova e, por questões
de direitos autorais que existiam na época, somente ela poderia interpretar esse trecho. Por conta
disso, essa cena foi raramente interpretada no teatro de São Petersburgo, e a única versão
conhecida da música é uma gravação do Bolshoi Theatre Orchestra, conduzida por Algis Zhuraitis
e lançada em LP em 1967. Durante muito tempo a origem da música de Jordan’s Dance ficou
62

longas de Derek Jarman, e quase sempre vêm na forma de um pequeno filme


caseiro em super-8.

Figura 10: Frame do curta Jordan's Dance (1977), de Derek Jarman, que foi inserido
como uma cena do longa Jubilee.

Em seu pequeno artigo intitulado “At Home With Derek Jarman” (2014),
Matt Cook trata da casa de veraneio de Jarman, conhecida com Prospect Cottage,
que fica em Dungeness. Essa casa, a mesma onde ele cultivou seu famoso jardim,
foi uma importante ferramenta na sua produção cinematográfica, no seu ativismo
e também no seu estilo de vida queer. Além disso, Cook vê em Prospect Cottage a
evidência de que não é possível construir um lar sem essa relação entre passado e
presente que atravessa seus longas-metragens, como Jubilee, por exemplo,
supracitado e, claramente, os curtas – pela herança da tradição dos home movies e
por retratar esses espaços híbridos que ele ocupou e viveu:

Lar nunca é somente o presente. Um senso de solidez pessoal e às vezes resistência


política pode emergir através de um vai e vem entre lares do passado e do presente –
especialmente para aqueles que se sentiam e se sentem socialmente ou culturalmente
marginalizados. Nós vemos isso vividamente no modo como Prospect se tornou um local

desconhecida e a descoberta foi feita através de debates no site fórum Talk Classical – Classical
Music Forums.
63

de resiliência para Jarman em tempos turbulentos e um memorial ressonante a propósito


dele depois da sua morte. (Cook, 2014) 17

Figura 11: Derek Jarman em Prospect Gottage

O passado é uma ferramenta de extrema importância no modo como


Jarman vai construir seus lares e seus modos de viver junto. Por ser homossexual
e ter de ressignificar a sua relação com essas ideias de “casa” e “lar”, Jarman tinha
a consciência que essa experiência só seria possível se fosse nesse entre-lugar
temporal e espacial. Cook cita uma fala de Jarman na qual ele diz: “Eu percebi
(...) que todos esses anos que eu vivi devem ter me conduzido a Prospect Cottage
– talvez seja a telha de zinco que me lembram os telhados da Força Aérea Real, da
minha infância nos anos quarenta”. (Cook, 2014, p. 245)18 Além desse passado
distante, da infância e da família heterossexual que o criou, Jarman também
possuía, nas alcovas de Prospect Cottage, álbuns de fotografia que misturavam o
estilo tradicional dos álbuns de família com um memorial queer de amigos e

17
“Home is never only the present. A sense of personal robustness and sometimes political
resistance can emerge through a tacking back and forth between homes past and present --
especially for those who felt and feel socially or culturally marginalized. We see this vividly in the
way Prospect became a place of resilience for Jarman in troubled times and a resonant memorial to
him after his death.”
18
“I find myself (...) that all the years that have passed should lead to Prospect Cottage – perhaps it
is the tin roof which reminds me of the Nissen huts of na RAF childhood in the forties”.
64

amantes que passaram pelo seu flat na Charing Cross Road em Londres. Muitos
desses amigos já haviam morrido antes de Jarman falecer em 1994.

Para além de seus espaços imaginados, então, há também outro grupo de


curtas de Jarman que retratam o seu dia-a-dia e a sua experiência doméstica e
íntima. Ele transformou os apartamentos nos quais morou quando jovem em algo
mais do que uma simples moradia ou lugar de trabalho – tal como fez, na vida
adulta, com Prospect Cottage. Tratava-se de lugares de encontros, de
comunidades orgânicas, de idas e vindas, de experiências afetivas e homoeróticas.
Podemos ter uma noção do que era esse ambiente em Sloane Square: A Room of
One's Own (1976).

Como relata Paul Gallagher na pequena resenha que escreveu sobre o


filme para o site Dangerous Minds, intitulada “Derek Jarman: Early Super 8
movie ‘Sloane Square: A room of one’s own’” (2014), Jarman vivia uma vida
bastante precária no início da década de 1970, dependendo da generosidade de
amigos para ter onde morar. Um desses amigos, o escritor Anthony Harwood, o
convidou, então, para morar em sua casa alugada, mas repleta de dívidas. Quando
Harwood morreu, a Corte se recusou a reconhecer Jarman como inquilino e, aos
trinta e quatro anos, o jovem diretor se viu novamente sem teto. Como despedida
do apartamento, combinou um “bota-fora” entre amigos, retratado na segunda
parte do curta Sloane Square, que tem esse debochado subtítulo A Room of One’s
One (Um teto todo seu), em alusão ao ensaio de Virgínia Woolf no qual tece uma
reflexão sobre a necessidade de mulheres terem o seu próprio espaço e dinheiro
para que possam desenvolver sua literatura sem serem constantemente
interrompidas pelos homens. O ensaio de Woolf, de tom feminista, é reapropriado
por Jarman, cineasta queer sem casa, que reclama a necessidade de ter “um teto
todo seu”, sem ser expulso do apartamento pelo poder heteropatriarcal da Corte,
para que pudesse desenvolver seus filmes e os demais fazeres artísticos.

Com exibição acelerada, Sloane Square mostra, inicialmente, o estúdio da


praça Sloane de forma alternada: ora cheio de amigos, ora vazio, apenas com seus
móveis e porta retratos, ora somente com Jarman ocupando um dos sofás. Com a
gravação acelerada, a impressão que temos é de que a imagem está “piscando”.
Jarman estava gravando Sebatiane na época da festa do despejo, que aparece
65

retratada depois dessas cenas iniciais, então grande parte dos amigos presentes são
parte do elenco do longa.

O apartamento de Sloane Square foi onde estava o elenco para Sebastiane, onde ele pixou
as paredes, antecipando o set design do seu segundo longa-metragem Jubilee. Foi também
onde ele filmou e documentou sua vida e amigos, antes de o apartamento ser vandalizado
e abandonado. Sloane Square foi co-dirigido por Jarman e Guy Ford, e (...) [é] um excerto
de um fazer cinematográfico pessoal, político e artístico... (Gallagher, 2014) 19

Figura 12: Frame de Sloane Square: A Room of One's One (1976), de Derek Jarman

Figura 13: Frame de Sloane Square: A Room of One's One (1976), de Derek
Jarman
19
“The apartment at Sloane Square was where Jarman cast for Sebastiane, where he spray–painted
the walls, anticipating the set designs of his second feature Jubilee. It was also where he filmed
and documented his life and friends, before the apartment was vandalized and abandoned. Sloane
Square was co-directed by Jarman and Guy Ford, and has been described as “the most situationist
of [Jarman’s] early films, in terms of both content and structure. It’s a peace of personal, political
and artistic filmmaking.” Disponível em:
http://dangerousminds.net/comments/derek_jarman_early_super_8_movie_sloane_square_a_room
_of_ones_own. Acesso em: 18 de novembro de 2015.
66

Jarman retrata um outro estúdio onde morou na década de 1970, em Studio


Bankside (1971)20 (curta também presente em Glitterbug). Nesse estúdio, ele
instalou um banheiro sem divisórias (transgredindo a organização da arquitetura
da casa da classe média – mas não da classe trabalhadora)21 e dormia numa rede
no meio da sala:

Figura 14: Frame de Studio Bankside (1971), de Derek Jarman

Cook compara esse estilo de casa sem paredes de Jarman à “Casa de


Vidro” que o arquiteto queer Philip Johnson projetou e criou para ele mesmo
morar em Connecticut, nos Estados Unidos, em 1949 – e que Jarman visitou com
Harwood em 1969. O estúdio de Bankside, assim como a “Casa de Vidro”, seria
um “antídoto para o armário”, ou ainda “um tributo à visibilidade e à abertura”
(Cook, 2014, p. 230). Jarman viveu ali como nas suas outras casas: em meio a
festas, socializações, produção de filmes caseiros, em um modo menos
convencional e ainda mais misturado com o modo de vida que experimentou com
a sua família (Idem, 2014, p. 230). O curta, Studio Bankside (1971), funciona
como um diário desse dia-a-dia, com imagens que retratam o estúdio e as ruas que
o rodeavam. Na análise de Jim Ellis, “A função ideológica dos filmes caseiros [de
Jarman] não é documentar mas de trazer o que é ser uma família e um lar para a
tela, e os super-8 de Jarman não são diferentes, constituindo o mundo das festas

20
Ver Figura 1.
21
Ver em Cook, 2009, p. 230.
67

de Bankside como uma nova versão do lar”.22 Jarman diz em uma entrevista
presente no catálogo da mostra que ocorreu na Caixa Cultural de Recife em 2014,
intitulada Derek Jarman: Cinema é Liberdade:

Eu filmava o meu mundo, as pessoas que eu conhecia e as mostrava em situações


privadas. Tem uma porção de filmagem que eu realmente não mostrei que era um tipo de
base. Isto também estabilizou a situação toda porque eu estava saindo dos trilhos com Os
demônios. 23 O artista não tem poder politicamente. Caravaggio teve que fazer uma
aproximação com os poderes para pintar suas últimas peças. Ele teve que se tornar o
pintor mais famoso do mundo, que ele era. Então ele começa pintando crianças com
frutas e flores – seus “filmes caseiros” – e terminou pintando peças de altar e por fim o
próprio Papa – o verdadeiro símbolo do poder naquele período. (Jarman apud Castañeda;
Fonseca; Dias, 2014, p.)

Figura 15: Frame de Studio Bankside (1971), de Derek Jarman

22
Ellis, “Angelic Conversations”, 18.
23
Jarman trabalhou na cenografia do filme The Devils, de Ken Russel, e foi nesse período que teve
uma grande crise com a indústria cinematográfica e decidiu produzir filmes independentemente ou
com financiamentos particulares.
68

Os filmes em Super-8 de Jarman aqui citados, muitos dos quais presentes


na edição final de Glitterbug, são, nas palavras de Alexandre Figuerôa, no ensaio
“Glitterbug: corpos e espaços como fragmentos da memória” (2014), “uma poesia
intrínseca marcada pelo afeto” (Figuerôa, 2014, p. 85). Os curtas são produtos de
laços de amizade e de amor, de uma carinhosa relação entre seus personagens,
seus produtores e seu diretor. O lar retratado em seus filmes – seja ele nos
bastidores, nos apartamentos, na casa de Prospect Cottage, ou no mundo
imaginário criado por Jarman – são “locais de encontro, de experiências afetivas e
de liberdade criativa.” São um convide à “alegria e ao prazer” (Idem, 2014, p.
85). Os encontros produzidos entre Jarman e seus convives são lampejos em meio
à escuridão de um tempo marcado pelas mortes causadas pelo vírus da AIDS, pela
Guerra Fria e pela “Era Tatcher” com todo o seu conservadorismo. São vidas que
mostram que é possível a construção de outro modo de existência mesmo diante
da precariedade e da clandestinidade da vida gay londrina, mesmo após a
liberação da homossexualidade (proibida na Inglaterra, mesmo em sua esfera
privada, até 1967).
4
O “contra-arquivo queer” como objeto artístico:
repensando o lar

Atravessa a presente tese um desejo de arquivo que nasce das leituras de


Jacques Derrida, a partir de seu ensaio Mal de Arquivo: Uma impressão
Freudiana (2001) e do conceito de archive of feelings, ou arquivo de sentimentos,
proposto por Ann Cvetkovich em seus diversos estudos em torno da ideia de um
arquivo queer. Esse desejo de arquivo está presente, também, em artistas queers e
LGBTs contemporâneos, algumas das quais elejo, neste capítulo, para estabelecer
um nexo e uma discussão sobre lar e arquivo que evidencie a hipótese de que só é
possível falar de um arquivo interessado na memória de minorias sexuais e de
gênero se esse debate estiver engajado na sua dimensão arquitetural, doméstica,
nas linhas que produzem a ideia de público e privado que são retraçadas e
reconfiguradas por essas vivências.

Inicio esta reflexão trazendo os primeiros versos do poema “Falemos de


Casas”, de Herberto Helder: “Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder /
tão firme e silencioso como só houve / no tempo mais antigo”. Estes versos
estiveram presentes constantemente em minha memória enquanto lia o ensaio de
Derrida. Logo em seu início, o filósofo nos traz a etimologia da palavra “arquivo”,
a palavra grega “arkêion”. O sentido de “arquivo” vem, segundo ele, desse
vocábulo que significaria “inicialmente uma casa, um domicílio, um endereço, a
residência dos magistrados superiores, os arcontes, aqueles que comandavam”
(Derrida, 2001, p. 12)

Segundo Derrida, na Grécia antiga, os cidadãos que possuíam poder


político tinham o “direito de fazer ou de representar a lei” (Ibid., p. 12). Por terem
poder legislativo e autoridade publicamente reconhecida, os documentos oficiais
eram armazenados em seus domicílios. Tais figuras guardiãs das leis foram
denominadas “arcontes”. Derrida destaca ainda que, fora a função de depositar os
documentos oficiais em suas próprias casa, “cabiam-lhes também a competência
70

hermenêutica” (Ibid., p. 13). O arconte era, portanto, ao mesmo tempo guardião e


responsável por interpretar o conteúdo do que guardava:

Foi assim, nesta domicialização, nesta obtenção consensual de domicílio, que os arquivos
nasceram. A morada, este lugar onde se de-moravam, marca esta passagem institucional
do privado ao público, o que não quer sempre dizer do secreto ao não-secreto. (É o que se
dá, por exemplo, em nossos dias, quando uma casa, a última casa dos Freud, transforma-
se num museu: passagem de uma instituição a outra. (Ibid., p. 13)

O arquivo é ao mesmo tempo revolucionário e tradicional. Ele reúne e


reserva, fazendo respeitar a lei, “a lei que é da casa” (Derrida, 2001, p. 18). O seu
funcionamento se dá a partir de um cruzamento entre o topológico (o lugar, o
domicílio, a residência) e o nomológico (a lei). Já o arquivista tem a função
patriártica, que abriga e dissimula. O poder do arconte acumula as funções de
unificação, classificação e identificação, e possui inclusive o “poder de
consignação”: “A consignação tende a coordenar um único corpus em um
sistema ou uma sincronia na qual todos os elementos articulam a unidade de uma
configuração ideal”. (Ibid., p. 14) O arquivo tem a força da lei, “a lei da casa
(oîkos)”, “da casa como lugar, domicílio, família ou instituição”. (Ibid.: p. 18)

A própria ideia de arquivo implica, portanto, em uma verdade arquivista


(ou arquivada). Ela dá corpo ao saber histórico produzido a partir do acúmulo de
traços da memória. No entanto, os traços e as inscrições da memória são as eleitos
pelo próprio arconte, que funciona como um “curador”, mas também censor. Para
que a verdade do arquivo exista, é necessário que haja também “recalque” e
“repressão” (“repression” e “supression”) (Derrida, 2001, p. 50).

No início do ensaio, Derrida relata que a escolha de seu subtítulo, “Uma


impressão Freudiana”, foi feita devido ao potencial da psicanálise de revolucionar
o que ele chama de “problemática do arquivo”. A psicanálise, de acordo com o
autor, “privilegia as figuras da marca e da tipografia”. O discurso psicanalítico
encena, ainda, a “escavação arqueológica”, estocando as impressões e cifrando as
inscrições, “mas também a censura e o recalcamento, a repressão e a leitura dos
registros” (Ibid., p. 8).

Para estocar as suas impressões, o arquivo requer uma estrutura que,


conforme o autor observa, determina também a própria “estrutura do conteúdo
71

arquivável” (Ibid., p. 29). Por serem armazenados em um suporte material, o


arquivo dispõe, desse modo, de uma função semelhante à da estrutura psíquica
descrita por Freud e retomada por Derrida – podendo ser considerado uma
“prótese de memória”, uma superfície externa, um espaço material de inscrição
mnêmica.

Pessoas queers tendem a se acoplar a essa prótese de memória proposta


por Derrida, a essa estrutura arquívica, para dar um outro caráter a ela. Ann
Cvetkovich propõe o conceito de “contra-arquivo queer” em seu pequeno artigo
intitulado “The Queer Art of The Counterarchive” (2011), com o objetivo de
chamar a atenção para um crescente ativismo do arquivo queer (queer archive
activism). Tal ativismo insiste, segundo Cvetkovich, que o arquivo não ocupa
somente a função de depósito de objetos, mas também atua como um recurso que
“sai do armário” (“comes-out”) para o mundo (Cvetkovich, 2011, p. 32),
extrapolando os limites entre os domínios público e privado. Segundo sua
reflexão, “o ‘mal de arquivo’ é catalizado por um silêncio negligenciador, e pela
estigmatização das histórias queers, [sendo] uma força com um poder particular,
ecoando a ferocidade e a perversidade do desejo sexual” desta comunidade (Ibid.,
p. 32)1.

O contra-arquivo queer desconstrói a faceta do arquivo-arca, que Derrida


vai regatar do inglês “ark”, o baú. Segundo Derrida, a arca simboliza também: “o
armário, o cercado, a cela da prisão, o reservatório”. O conceito de contra-arquivo
queer é a disrupção do arquivo, é o arquivo fora do armário. É o coming-out do
arquivo. É quando se tiram as fotos escondidas do baú guardado em sótãos,
porões, no fundo dos armários, debaixo das camas, dentro de livros antigos. Desse
vasculhar, dessa bagunça, surgem das profundezas arquívicas o queer do arquivo
– os seus restos. Os amores, os modos de estar junto, os lares efêmeros em forma
de beijos ilícitos em velhas fotografias em preto e branco.

No livro The Archive of Feelings (2003), Ann Cvetkovich sugere que o


contra-arquivo queer é também um “arquivo de sentimentos”, exemplificando-o

1
“the ‘archive fever’ catalyzed by the silencing neglect, and stigmatization of queer histories, is a
particularly powerful force, echoing the ferocity and perversity of queer sexual desire” (Tradução
livre)
72

através do Lesbian Herstory Archives, que começou como uma casa que abriga a
maior coleção de materiais de lésbicas (e para lésbicas) e sua comunidade2.
Conforme descreve Cvetkovich, o LHA foi concebido mais como um espaço de
produção de comunidade do que uma instituição de pesquisa, e a intenção
principal da sua criação era de proporcionar um “espaço seguro” [safe space] para
os documentos pertencentes a mulheres lésbicas que pudessem ser negligenciados
ou destruídos por famílias indiferentes ou homofóbicas (Cvetkovich, 2003, p.
241). Localizado em um tríplex no Brooklin (Nova York), a casa que inicialmente
hospedou o LHA, em 1993, foi comprada através de doações que mulheres
lésbicas de todo os Estados Unidos fizeram às idealizadoras do centro, Joan
Nestle e Deborah Edel3. O arquivo funciona, segundo Cvetkovich, como “um
espaço ritual no qual as memórias culturais e históricas são preservadas”, mas na
combinação de espaços domésticos e públicos-institucionais, ainda mais levando
em conta que ele ocupa um local que um dia foi uma casa: “a sala de estar do piso
de baixo funciona como uma confortável sala de leitura, a copiadora fica ao lado
de outros aparelhos de/na cozinha, o corredor de entrada é um espaço de exibição
e o último andar da casa abriga um membro do coletivo que mora ali como uma
base permanente” (Ibid., p. 241)4. Cvetkovich defende que por ter um caráter
doméstico todas as lésbicas se sentem bem-vindas e seguras para tocar o “legado
lésbico”. O centro acaba por proporcionar às suas visitantes “experiência
emocionais, ao invés de estritamente intelectuais” (Ibid., p. 241)5.

2
Conforme descreve o site do próprio LHA. Disponível em:
<http://www.lesbianherstoryarchives.org/> . Acessado em 10 de março de 2016.
3
A coleção foi iniciada no apartamento da própria Edel, antes de migrar para a casa do Brooklyn.
4
“the downstairs living room serves as a comfortable Reading room, the copier sits alongside the
other appliances in the Kitchen, the entryway is an exhibit space, and the top floor houses a
collective member who lives there on a permanent basis.” (Tradução livre)
5
“Organized as a domestic space in which all lesbians will feel welcome to see and touch lesbian
legacy, LHA aims to provide an emotional rather than a narrowly intellectual experience.”
(Tradução livre)
73

Figura 16: Interior do LHA

Figura 17: O banheiro da casa que abriga o LHA também serve de cômodo de exposição
74

Cvetkovich afirma que é preciso entender o arquivo gay e lésbico como


arquivos de emoções e traumas, que seria a “atitude queer” ou a condição queer
do arquivo (o que Cvetkovich designa como queerness) e a sua história demanda
um arquivo de emoções radical, “com o intuito de documentar intimidade,
sexualidade, amor, e ativismo – áreas da experiência difíceis de registrar através
dos materiais do arquivo tradicional” (Cvetkovich, 2003, p. 241). A existência da
história gay e lésbica, segundo Cvetkovich, “tem sido um fato contestado, e o
desafio de registrar e preservar tais histórias é exacerbado pela invisibilidade que
gira em torno da vida íntima, especialmente da sexualidade” (Cvetkovich, 2003,
p. 242). Tais arquivos seriam construídos a partir de acervos privados que
acabaram salvando a evidência efêmera dos seus modos de vida, antes que ela
desaparecesse. (Idem, 2003, p. 243)

Lóbula, um projeto português de intervenção artística e cultural de linha


trans*, queer e feminista, criou, em abril de 2015, a série de vídeos intitulada
“Arquivo Queer”6. Em um deles, o ativista LGBT do coletivo português Pantera
Rosa, Sérgio Vitorino, começa um depoimento íntimo sentado em uma poltrona
de sua casa. Ele esclarece que prefere iniciar o seu depoimento falando de sua tia-
avó “muito velhinha”, que criou a ele e seus irmãos, e que não conhecera nunca,
“apesar de ter vivido com ela, na casa dela, durante anos e anos...”. Quando
começou a criá-los, ela não era assim tão idosa e, apesar disso, não havia nenhum
indício de que tivera alguma relação íntima com outra pessoa ou que possuíra
algum tipo de experiência sexual, tampouco alguma referência a um passado
amoroso. Depois do seu falecimento, ele ficou encarregado de arrumar seus
pertences: cartas, livros, documentos. No meio deles descobriu um conjunto de
cartas de amor trocadas entre ela e outra mulher. Sérgio então passou a pensar
sobre esse amor invisível, que sua avó (que o criou) viveu por anos, e talvez na
impossibilidade de vivê-lo, por conta das contingências morais de sua época –
uma época em que essas relações eram vividas de forma oculta. Trata-se de uma
correspondência com pessoas que ela nunca mais viu e com pessoas com as quais
não foi mais possível prosseguir uma relação.

6
Disponível em: <https://vimeo.com/lobula>. Acessado em 14 de março de 2016.
75

O arquivista da cultura queer tem de proceder, como Sérgio, através do


afeto, mas atambém como um colecionador obcecado, ou até mesmo um
fetichista. Os materiais que compõem esses arquivos são, muitas vezes,
considerados “materiais marginais”. Ele inclui, por exemplo não só cartas, como a
da avó do projeto Lóbula, mas bolsas, pequenos bilhetes, chapéus, caixas vazias,
t-shirts, bottons, flyers, caixas de fósforos, dildos etc.

Dez anos depois de escrever The Archive of Feelings (2003), Cvetkovich


escreveu um ensaio sobre os pertences das companheiras Gertrude Stein e Alice
B. Toklas, que se
Figura 18: Gertrude Stein e Alice B., por Cecil Beaton (1938) - do
Cecil Beaton Studio Archive at Sotheby’s encontram na Carlton Lake
Collection do Harry
Ramson Center (HRC), na
Universidade do Texas em
Austin7, intitulado
“Personal effects: The
Material Archive of
Gertrude Stein and Alice B.
Toklas’s Domestic Life”
(2013). Nesse artigo,
Cvetkovich admite que,
apesar de muito crítica em
relação ao arquivo
institucional, ao escrever
sobre o assunto percebeu que existe um valor queer tanto nos arquivos
marginalizados, a serem construídos, elaborados, quanto nos arquivos da elite
literária, onde também podemos encontrar histórias da intimidade e domesticidade
queer em sua dimensão cotidiana (Cvetokovich, 2013, np). Apesar de serem
lésbicas ricas e privilegiadas da rive gauche de Paris, como denomina o casal
Gertrude Stein e Alice B. Toklas, Cvetkovich começa a se interessar no valor de
seu legado após a sua incursão no arquivo da escritora. O valor do arquivo visual

7
HRC, como é conhecido o instituto, é um prestigiado arquivo (com biblioteca, exibições e
coleções físicas e digitais).
76

de Stein, para Cvetkovich, está justamente no fato de que ele não se baseia
somente no seu legado literário e escrito:

Um colete da coleção do HRC estava exposto junto com uma série de outros trajes como
parte de uma discussão sobre como Gertrude e Alice transformaram as convenções de
vestimentas femininas e como Stein estabeleceu seus próprios e inimitáveis estilo e
cultura butch e andrógina para se transformar em um ícone-celebridade naquela época e
nos dias de hoje. Latimer e Corn [os curadores da exposição] mostram como as saídas
criativas de Stein consistiam não somente em seus escritos e outras formas de produção
artísticas, mas na sua aparência, suas redes de amizade, e sua vida doméstica com Alice.
(Idem, 2013, np) 8

Figura 19: Colete de Stein, Coleção “Costumes and Personal Effects Database” do Harry Ramson
Center

8
A vest from the HRC’s collection was on display with a series of others garments as part of a
discussion of how Gertrude and Alice transformed the conventions of female dress and how Stein
established her own inimitable form of butch androgynous culture style to become a celebrity icon
both then and now. Latimer and Corn show how Stein’s creative output consists not just in her
writing and other art productions but in her appearance, her friendship networks, and her domestic
life with Alice. (Idem, 2013, - Tradução livre)
77

Na figura 4, podemos observar o colete citado por Cvetkovich, pertencente


a Gertrude Stein e confeccionado por Alice B. Toklas. Bordado delicadamente em
fios metálicos, como descreve a legenda da coleção, ele possui tecido de algodão
tingido em várias cores, que compreendem motivos e imagens de tigres, de
escrituras (possivelmente em língua indo-europeia urdu) e estampas em boteh
(ornamentos decorativos persas presentes em detalhes arquitetônicos, tapetes,
etc)9.

Cvetkovich considera que a potência queer presente nos arquivos


institucionais, e que pode ser utilizada de forma política e artística na produção da
narrativa histórica queer invisibilizada: “Marcada pela convergência da virada
afetiva e da virada arquívica, essa estratégia é também refletida em uma variedade
de projetos universitários utópicos e bastante exuberantes, focados no dia-a-dia e
nas afiliações e redes queers, especialmente aquelas que pensam arte, criatividade
e políticas culturais”10, são leituras queers de artefatos tradicionais (Cvetkovich,
2013).

4.1
Arquivos e criações de biopotências: Domínio do Escuro e The Watermelon
Woman

A peça Domínio do Escuro, encenada no Rio de Janeiro em agosto e


setembro de 2015, resgata a memória de homossexuais que viveram as décadas de
1920, 1930 e 1940 no Brasil. O espetáculo foi contemplado com o Programa de
Fomento à Cultura Carioca 2014, da Prefeitura do Rio, na categoria LGBT. No
programa distribuído no teatro Sede das Cias, no bairro da Lapa, um texto
assinado por Juliana Pamplona, diretora, diz que Domínio do Escuro é “uma
investigação artística ao compromisso com a dívida histórica.”

9
Coleção “Costumes and Personal Effects Database” do Harry Hanson Center. Disponível em:
<http://norman.hrc.utexas.edu/personaleffects/details.cfm?id=41177>. Acessado em 11 de
dezembro de 2015.
10
“Marked by the convergence of the affective turn and the archival turn, this strategy is also
reflected in a range of very exuberante and utopian scholarly projects focused on the everyday life
and queer affiliations and networks, especially those that think art, creativity, and cultural politics”
(Tradução livre)
78

O intuito da diretora e dramaturga era construir uma peça através de


relatos de memórias de idosos que viveram na primeira metade do século XX.
Foram lançadas, então, chamadas online para pessoas que se disponibilizassem a
dar seus depoimentos. A chamada coincidiu com o período no qual o canal de
televisão aberta Rede Globo estreou a novela Babilônia, exibida no tradicional
horário das 21h, na qual as atrizes Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg
(ambas com 86 anos), interpretaram um casal lésbico. Por conta disso, foi
publicada uma nota no jornal O Globo, que pertence à mesma organização do
canal, na qual se fazia, ao mesmo tempo, divulgação da novela e um anúncio da
busca feita pela produção da peça por idosos homossexuais, homens e mulheres,
que quisessem contar suas histórias pessoais11.

O período de interesse da produção da peça, para a coleta de testemunhos e


histórias de vida ficou conhecido, dentro do contexto das políticas minoritárias
dos Estados Unidos, como o período “before Stonewall” (antes de Stonewall12). O
período antes da revolução sexual do fim da década de 1960 é repleto de lacunas,
já que é o contexto no qual a homossexualidade era moralmente malvista e
legalmente proibida (no caso de alguns países como os Estados Unidos e a
Inglaterra, por exemplo). Na primeira década do século XX, os papéis de gênero
eram bem mais, mulheres e homens tinham o seu ciclo de vida regido pela lógica
reprodutiva – o destino moralmente aceito era casar e ter filhos. Por isso,
homossexuais viviam suas vidas sobretudo nos espaços domésticos, por vezes
constituindo “casamentos de fachada” ou vivendo outras formas de ocultação de
suas práticas afetivo-sexuais. De acordo com Cvetkovich (2003), nas últimas
décadas o interesse de historiadores e documentaristas por esse período
considerado como “história perdida” é motivado pelo desejo apaixonado de trazer
ao conhecimento aqueles que são a fundação dos movimentos de liberação sexual
dos anos 1970. Essa tendência, segundo ela, é especialmente evidente com a

11
Coluna Gente Boa. Segundo Caderno, O Globo, 18 de março de 2015.
12
A rebelião Stonewall Riots ocorreu nos Estados Unidos no ano de 1969, contra as batidas
policiais em bares gays. A revolta ficou conhecida como um marco da luta pelos direitos
homossexuais no país e no mundo. O nome do levante nasceu de Stonewall Inn, um bar situado na
Christopher Street, em Nova York, frequentado por gays desde 1967, quando foi aberto. Durante
as décadas de 1950 e 1960, em plena Guerra Fria, os Estados Unidos possuíam um sistema legal
muito mais hostil em relação a gays e lésbicas do que muitos países do outro lado da Cortina de
Ferro. Batidas policiais eram frequentes em bares gays da época.
79

popularidade do documentário Before Stonewall (1985), que utiliza uma série de


vídeos de arquivo, trechos de filmes, e coleções pessoais para construir uma
história audiovisual da comunidade LGBT do período antes da rebelião de
Stonewall em Nova York.

Segundo Clarisse Zarvos, que fez parte do elenco e do processo de criação


do espetáculo, poucas pessoas quiseram dar depoimentos para a produção, apenas
três procuraram a equipe – e eram homens gays brancos, cissexuais13 e
privilegiados financeiramente. A quarta pessoa assumidamente homossexual,
amiga de amigos, era uma mulher lésbica de 65 anos, um pouco mais jovem do
que a faixa etária exigida pela pesquisa. Por conta dessa ausência, que documenta
o silenciamento histórico e o receio do coming-out, Pamplona decidiu criar sua
peça através de materiais diversos, colhidos através de entrevistas que conseguira
fazer (com pessoas, inclusive, que não eram necessariamente homossexuais),
produzindo colagens e utilizando depoimentos já existentes, como por exemplo,
as disponíveis no site norte-americano Story Corps – uma organização
independente que tem como intuito conservar histórias de pessoas com diversos
backgrounds, no formato de podcasts acessíveis online. O site é dividido em
diversas categorias, uma delas voltada apenas para histórias de pessoas LGBTs.
De um áudio traduzido dessa sessão, Juliana Pamplona e o elenco criaram
memórias para serem encenadas no espetáculo. Cvetkovich, no artigo “Queer
Archival Futures: Case Study Los Angeles” (2012), publicado no volume 9 da
revista Emisférica, do Emispheric Institute, intitulado “Sujeitos do Arquivo”, fala
sobre esse ato de criação de ativistas e artistas queers através do uso de materiais
arquívicos:

Ambos, arquivistas e artistas, podem usar as suas potências criativas para performarem
intervenções que abrem o arquivo à crítica e à transformação. É particularmente
importante a sua boa vontade para usar seus investimentos pessoais e afetivos para
“queerizar” [transtornar] o arquivo e para produzir novas e imprevisíveis formas de
conhecimento, incluindo novos entendimentos do que conta como arquivo e,
consequentemente, o que conta como conhecimento. Com seu interesse em instalações,
esses artistas também reconfiguram o espaço do arquivo, abrindo-o a novos públicos
para os quais ele não é policiado e protegido, e criando inovadores modos de “espaços

13
Indivíduos que se identificam com o gênero que lhes foi designado no momento do seu
nascimento (nesse caso, eram homens gays masculinos).
80

seguros” na forma de santuários íntimos onde novas socializações podem ser forjadas.
(Cvetkovich, 2012, np) 14

O arquivo queer, no domínio desses artistas e arquivistas, é uma casa


entreaberta, que se transforma numa ferramenta política de encontro e de
transformação do público que adentra o espaço do espetáculo. Esse ambiente da
peça é um santuário íntimo oferecido ao público, um espaço seguro para as
histórias serem contadas, para essas vozes, das quais ouvimos só o som e vemos
tomar corpo através das atrizes, poderem ecoar. A produção da peça também é
elaborada através da transformação e intervenção no próprio arquivo, devido a seu
caráter precário: juntam-se peças, des-recalcam-se memórias através da criação.
Afinal, a forma do arquivo institucional também é, assim como o arquivo queer,
em alguma medida, uma criação.

O espetáculo começa com um dos atores posicionado do lado direito do


palco, lendo um poema adaptado de E.E. Cummings:

Alguém me perguntou o que era casa /


tudo que eu conseguia pensar era: estrelas na ponta da língua,
flores brotando da boca, dos olhos
raízes crescendo dos seus cabelos
entrelaçadas as lacunas entre os dedos
o oceano ecoando dentro de sua caixa torácica

Casa
Estrelas na garganta
Jardins pulmões
Raízes
Lacunas dedos
Oceano aqui dentro

Casa
Barco
Oceano

(E.E. Cummings traduzido e adaptado por Pamplona, 2015 - v.5, p. 1) 15

14
[b]oth archivists and activists, artists can use their creative powers to perform interventions that
keep the archive open to critique and transformation. Particularly important is their willingness to
use their affective and personal investments to queer the archive and to produce new and
unpredictable forms of knowledge, including new understandings of what counts as an archive and
hence what counts as knowledge. With their interest in installation, artists also reconfigure the
space of the archive, opening it up to new publics so that it is not policed and protected and
creating innovative kinds of “safe space” in the form of intimate sanctuaries where new socialities
can be forged. (Cvetkovich, 2012, np – tradução livre)
15
Refiro-me aqui ao texto da peça, ao qual tive acesso através de Clarisse Zarvos e Juliana
Pamplona. Deixo registrado o meu agradecimento a esse gesto de gentileza.
81

O poema de Cummings nos convida a um outro entendimento da “casa”.


Não a das estruturas rígidas que protegem um interior. O domicílio arquívico da
peça é “o oceano ecoando dentro de sua caixa toráxica”, ou “estrelas na ponta da
língua”, “são flores brotando da boca”. A casa, assim como o corpo, deixa de ser
uma forma incorruptível e suas paredes firmes são atravessadas pela vida, a vida
que ela não consegue organizar. A casa / barco / oceano, está em trânsito.

Figura 20: Fotos de arquivo pessoal de um homem gay que deu depoimento para a produção da
peça

Os atores Pedro Henrique Müller, Lívia Paiva e Clarisse Zarvos


interpretam diversos personagens, independente do gênero. A peça é dividida em
três atos (Ato I: Infância, Ato II: O amor maior, Ato III: Tempo), cada um
focando em um aspecto da vida de pessoas lésbicas, gays ou transgênero, e
subdivididos em cenas curtas. Em algumas cenas ou entre os atos, são
82

reproduzidos áudios com entrevista que a equipe de atores e diretora fez com
pessoas reais. O que temos, então, é uma constelação de potências de vida, vidas
que resistiram a um tempo em que as sexualidades não-normativas não tinham os
nomes que hoje conhecemos. Modos de vida muitas vezes clandestinos, vividos
de forma inesperada, como no caso de Susana (interpretada por Clarisse Zarvos),
que se apaixonou por outra mulher, Maria Eugênia (interpretada por Pedro
Henrique Müller e Lívia Paiva, alternadamente) sem se dar conta:

Ficava pensando nela. Aquela necessidade de ver, de estar junto, sem explicação. Foi
quando eu voltei a ouvir a Ella Fiztgerald na vitrola. Todo dia, o dia todo. “One day
he’ll come along, the man I love…” Só que eu não estava pensando em “man” nenhum.
Acho que só fui entender – eu sou lenta – só fui entender já num grau de? apaixonamento
avançado que aquilo não podia ser só amizade. A gente já se conhecia há 6 meses.
Lembro bem do dia em que caiu a ficha. Eu estava numa loja de jardinagem, entre a
seção de regadores e de sementes, numa angústia danada. A Susana estava ocupada por
aqueles dias e eu estava sentindo uma saudade, um tesão enorme - descomunal.

O espanto. Foi ali, na loja de jardinagem. Eu estava andando de um lado para o outro
escolhendo adubo, - mudas de plantas frutíferas, flores silvestres, manjerona, sálvia e
tomilho, flores brancas, rosas e amarelas – Caiu a ficha ali. Foi quando eu vi um
girassol. Aí eu entendi.

[...]

Maria Eugênia / Lívia Paiva - A gente estava tomando vinho e ouvindo jazz e eu falei:
Maria Eugênia / Pedro H. Müller - Eu quero te contar uma coisa e depois disso, se você
quiser ir embora, eu vou entender. Se você nunca mais quiser me ver eu vou entender.
Susana / Clarisse Zarvos – O que é? É grave?
Maria Eugênia / Pedro H. Müller - Aí eu disse que achava que eu podia ser lésbica e
que estava interessada nela, que gostava dela não só como amiga.

Maria Eugênia / Lívia Paiva - Ela se levantou e eu tive certeza:


Maria Eugênia / Pedro H. Müller - “Já era. Nunca mais vai falar comigo”.

Susana / Clarisse Zarvos - Eu me levantei. Tirei ela para dançar. E foi a primeira vez
que ela beijou uma mulher.

(Pamplona, 2015 - v.5, pp. 9-12)


83

Figura 21: Cena de Domínio do Escuro (2015), de Juliana Pamplona. Respectivamente, os atores Clarisse
Zarvos, Pedro Henrique Müller e Lívia Paiva

Além dos vazios históricos que a produção da peça buscou preencher, o


espetáculo ainda deixa muitas instigações e perguntas ao público. No folheto do
programa, a diretora diz que, na produção, as lacunas históricas devem ser
trabalhadas em um “exercício de coprodução de sentidos”, e que “as lacunas são
importantes, porque pedem movimento, revelam falta, dizem que não está tudo
ali/aqui.”

Cheryl Dunye, diretora liberiana radicada nos Estados Unidos, também faz
intervenções na história através do uso criativo do arquivo em seu filme The
Watermelon Woman (1996). The Watermelon Woman é um filme independente
que combina narrativa experimental e forma documental. O roteiro é centrado na
vida e trabalho de Cheryl, uma mulher negra lésbica que é cineasta e vive na
Filadélfia. Cheryl trabalha em uma locadora de filmes e tem um negócio
independente, no qual filma eventos, junto com sua amiga Tamara (também negra
e lésbica). Cheryl está fazendo um filme documentário sobre uma atriz afro-
americana chamada Fae Richards (The Watermelon Woman), que apareceu em
84

filmes de Hollywood das décadas de 1930 e 1940. A trama se desenvolve a partir


da relação de Cheryl com uma mulher branca, chamada Diane, e os paralelos entre
a experiência de Cheryl e o sujeito de sua pesquisa documental: a vida pessoal e
artística de Fae Richards, que não só era uma mulher negra que também
trabalhava com filmes, mas era amante da diretora branca Martha Page.
“Metaficcionalmente, Cheryl se direciona à câmera enquanto ela descreve o
progresso de produção do filme dentro do filme, e o filme nos apresenta cenas da
Cheryl criando o documentário, fazendo entrevistas, e se aventurando na pesquisa
em arquivos. ”, como afirma Laura L. Sullivan em seu artigo “Chasing Fae: The
Watermelon Woman and Black Lesbian Possibility” (Sullivan, 2000, p. 448).
Cheryl diz, em uma entrevista publicada no livro Women Of Vision: Histories in
Feminist Film and Video, de Alexandra Juhasz, que ela inventou um estilo único
de filme e videomaking, o “Dunyementary”, que é um híbrido de narrativa
ficcional, documentário, comédia e autobiografia (Cheryl apud Juhasz, 2001, p.
291).

No início do filme, após algumas primeiras cenas onde Cheryl e Tamara


estão filmando um casamento, Cheryl se encontra em sua casa, com um microfone
de lapela, se apresentando, falando diretamente para a câmera: “Olá, eu sou
Cheryl e sou cineasta. Uh, não, eu não sou exatamente uma cineasta, mas eu
trabalho fazendo vídeos com a minha amiga Tamara e eu trabalho em uma
locadora de filmes, então estou trabalhando para ser uma cineasta. ” (Dunye,
2006). 16 Cheryl fala da sua obsessão em assistir filmes dos anos 1930 e 1940 que
tenham atores ou atrizes negros/as, ressaltando que na maioria desses filmes os
atores e atrizes não são nem mesmo citados nos créditos. Ela nos mostra a capa de
um filme que chegara recentemente na video locadora onde trabalha, intitulado
“Plantation Memories”, no qual Cheryl vira “a mais bonita negra mammy,
chamada Elsie” [the most beautifull black mammy named Elsie]. A personagem
então nos mostra um trecho do filme, em preto e branco. Segundo Sullivan, o
trecho que Cheryl nos mostra é “tipicamente racista e degradante, contendo uma
cena da Guerra Civil na qual a mammy conforta uma mulher branca” (Sullivan,

16
“Hi, I’m Cheryl, and I’m a filmmaker. Uh, no, I’m not really a filmmaker, but I have a
videotaping business with my friend Tamara and I work at a video store, so I’m working on being
a filmmaker”.
85

2000, p. 449)17, já que a figura mammy era um arquétipo da mulher negra


escravizada, no caso da Watermelon Woman, exercendo a função de dentro de
casa, como doméstica ou babá na residência de famílias brancas. Mas Sullivan vai
alegar que, apesar de Cheryl ter consciência da exploração da imagem da mulher
negra no cinema, sente-se seduzida por Fae: “Como explica ao espectador,
[Cheryl] vai fazer um filme sobre essa atriz, conhecida como ‘the watermelon
woman’ porque ‘algo no seu rosto, algo no modo que ela olha e se move, é sério,
é interessante’” (Sullivan, 2000, p. 449) 18.

Figura 22: The Watermelon Woman, no filme Plantation Memories

Como artifício da diretora para deflagrar a invisibilidade cultural da


Watermelon Woman, a personagem Cheryl passa a percorrer as ruas da Filadélfia
entrevistando transeuntes em busca de pistas sobre a misteriosa atriz. As respostas
são sempre em tom negativo: ninguém nunca ouvira falar do nome “The
Watermelon Woman”. As cenas das entrevistas são repletas de depoimentos em

17
“Yet, the “clip” from the vídeo is typically racista and demeaning, containing a Civil War scene
in which the mammy comforts a white woman”.
18
“As she explains to the viewer, she is going to make a film about this actress, known as ‘the
watermelon woman’ because ‘something in her face, something in the way she looks and moves, is
serious, is interesting.” (Tradução livre)
86

tons bem-humorados e engraçados, com personagens negros, gays, lésbicas,


heterossexuais, etc (tom, aliás, que percorre todo o filme).

A próxima alternativa de Cheryl é ir até a casa de sua mãe, uma simpática


senhora de óculos, “colecionadora de coisas de todo tipo”, que se acomoda no
sofá de sua própria casa para responder às perguntas, de frente para a câmera de
sua filha. Ela também nunca ouvira falar da atriz que Cheryl está procurando, mas
recomenda que ela fale com uma velha amiga de meia-idade que pode lhe dar
pistas.

Figura 23: Cheryl falando de Plantation Memories em seu documentário

Cheryl segue o conselho de sua mãe. Ao começar a entrevista, a voz da


narração do documentário faz uma peculiar observação: “Eu acho que ela é ‘da
família’”19, querendo dizer que talvez a amiga de sua mãe seja lésbica. Ao se
deparar com a fotografia de “The Watermelon Woman”, a mulher a reconhece
imediatamente como sendo Fae Richards, atriz e também cantora nos bares
noturnos da velha e esplendorosa Filadélfia. Ela busca então uma caixa de fotos
pessoais, dizendo à diretora: “nessa época nós podíamos comprar fotos dos shows
19
“I think she is in the family”. (Tradução livre)
87

e os atores assinavam para a gente”, enquanto mostrava uma fotografia antiga em


preto e branco autografada pela própria Richards. Ela também revela que Richards
vivera um relacionamento amoroso com a diretora branca de Plantation Memories
(através do qual Cheryl teve o primeiro contato com The Watermelon Woman),
que se chamava Martha Page. A voz de Cheryl, na narração, vibra de alegria com
a descoberta: “Vocês acreditam?! Fae uma irmã Sáfica. [...] eu sabia que havia
algo no ar quando vi Plantation Memories.”

Cheryl encontra em seu documentário dificuldades semelhantes às que a


equipe de produção de Domínio do Escuro teve para construir o texto dramático.
No entanto, apesar das suas incursões em arquivos domésticos, de colecionadores
de filmes com atores negros do início de Hollywood, entrevistas com
especialistas, familiares de Martha Page, descobrimos, ao final, que todo o
documentário dentro do filme foi uma criação da própria diretora, Cheryl Dunye.
Essa revelação sob a forma de uma tela de fundo preto com as frases “Às vezes
você precisa criar a sua própria história. The Watermelon Woman é uma ficção.”

Figura 24: Cena final do filme de Dunye


88

Figura 2: Imagem de Martha Page e The Watermelon Woman, presente no filme de Dunye

Dunye começou a sua carreira de cineasta utilizando o formato VHS, por


não ter condições financeiras para ter acesso nem mesmo ao popular Super-8. A
câmera em VHS pertencia à sua universidade e sua única despesa ao utilizá-la era
com as fitas que precisava comprar, que custavam na época cerca de cinco
dólares. Dunye relata, na entrevista presente no livro de Juhasz, que ela contava
com o suporte da sua “gangue de garotas”, que estavam sempre a postos para se
envolver em seus projetos fílmicos. A diretora se juntava a elas e dizia “vamos
nos empoderar!” (Cheryl apud Juhasz, 2001, p. 246). O jeito era serem criativas
com os parcos recursos técnicos aos quais tinham acesso e possibilidade de
utilizar na produção dos filmes, o que não eliminava as dificuldades de se
trabalhar com pouco dinheiro, principalmente na execução de algumas ideias – os
problemas sempre apareciam e por vezes cresciam.

Para a produção e filmagem de The Watermelon Woman, Dunye apelou


para estas estratégias criativas. Foi então que resolveu confeccionar um arquivo
fotográfico em torno das personagens de seu “dunyementary” (o documentário
fictício dentro do filme), em formato de livro, intitulado The Fae Richards Photo
89

Archive (1996). A estratégia da diretora era criar uma forma alternativa de


financiamento coletivo do filme, através da venda dos livros, e fazer com que a
audiência começasse a se identificar com o trabalho – o intuito era estimular a
participação de “espectadores ativos”. “Dê um dólar a cada artista independente”,
Dunye sugere, provocando a audiência a se mobilizar.

A atitude de Dunye nos mostra que a percepção de que a vulnerabilidade é


sinônimo de fraqueza e passividade é um mito. Existem formas de resistência na
vulnerabilidade, como afirma Judith Butler na sua conferência ministrada na
Universidad de Alcalá (México), intitulada “Repensar la vulnerabilidade y la
resistência” (2014), o corpo vulnerável precisa de uma rede de apoio. Ao criar tal
rede, esse corpo demonstra que é possível resistir através de formas alternativas
de organização. Ainda segundo Butler, um corpo é “dependente de outro corpo”,
mas isso não quer dizer que

[...] estejam fundidos em uma espécie de corpo social amorfo, mas se não podemos
conceituar facilmente o significado político do corpo humano sem entender essas relações
nas quais se vive e se desenvolve, não conseguimos o melhor cenário possível para os
diversos fins políticos que buscamos alcançar. O que estou sugerindo não é somente que
este ou aquele corpo estão ligados a uma rede de relações, mas que esse corpo, pese a
seus claros limites, ou talvez precisamente em virtude desses mesmos limites, se define
pelas relações que fazem em sua vida, e pelas suas ações possíveis. Como espero mostrar,
não podemos entender a vulnerabilidade corporal à margem desta concepção de relações
(Butler, 2014) 20

Tanto a rede de amigas que formou para produzir o seu filme, como a rede
de espectadores que até hoje compram o livro The Fae Richards Photo Archive –
como eu mesma consegui fazer, através da loja virtual Amazon dos Estados
Unidos em 2014 –, deflagram o modo como o corpo vulnerável que depende de
outro corpo consegue, através da formação de redes de apoio, produzir formas de
resistência através da arte (no caso de Dunye, já que ela produz um filme). Além
disso, essa mesma rede de apoio é retratada dentro do seu próprio filme, através

20
“[…] tampoco es que estén fusionados en una especie de cuerpo social amorfo, pero si no
podemos conceptualizar fácilmente el significado político del cuerpo humano sin entender esas
relaciones en las que vive y se desarrolla, no conseguimos el mejor escenario posible para los
diversos fines políticos que buscamos alcanzar. Lo que estoy sugiriendo no es solo que este o ese
cuerpo está ligado a una red de relaciones, sino que ese cuerpo, pese a sus claros límites, o tal vez
precisamente en virtud de esos mismos límites, se define por las relaciones que hacen su vida y su
acción posibles. Como espero mostrar, no podemos entender la vulnerabilidad corporal al margen
de esta concepción de relaciones.” (Tradução livre)
90

de Tamara, a amiga que trabalha com ela e a ajuda durante as buscas por pistas
sobre Fae Richards, e de toda a comunidade negra e queer que se predispõe a
ajudá-la, fornecendo fotografias, informações históricas acerca do cinema negro
dos anos 1930 e sobre a noite da Filadélfia no contexto em que Richards viveu. O
projeto de Dunye, tanto na vida quanto na ficção, tem como base política e
estratégica a formação de redes de resistência.

É importante ressaltar que The Watermelon Woman cumpre um papel


muito importante na história do cinema negro, já que foi o primeiro longa-
metragem feito por uma mulher lésbica a ser distribuído nas salas de cinema dos
Estados Unidos, tal como nos informa Catherine Zimmer, em seu artigo
“Histories of The Watermelon Woman: Reflexivity between Race and Gender”
(2008). Além disso, o filme de Dunye representa “as negociações, as mediações,
as tenções trianguladas dentre a história do cinema dominante, a produção de
estudos fílmicos feministas brancos, e a história e produção do cinema negro nos
Estados Unidos”. (Zimmer, 2008, p. 42) 21

Zimmer destaca que apesar do impacto massivo das produções fílmicas


22
produzidas pelos cineastas do chamado New Queer Cinema , o festival de
Sundance e os filmes independentes, o filme de Dunye é um “testemunho de
como as estruturas de poder da produção cinemática mudaram muito pouco”
23
(Zimmer, 2008, p. 41) . Por ser um filme metacinemático, The Watermelon
Woman teria, então, muito a contribuir para todo o debate em torno dos sentidos
da sua produção (Idem, 2008, p. 43).

21
“The Watermelon Woman both presents and represents the negotiations, mediations, and
tensions triangulated among dominant film history, white feminist film studies and production, and
black film history and production in the United States.” (Tradução livre)
22
O New Queer Cinema, segundo Michele Aaron, em seu livro New Queer Cinema: a critical
reader (2004), foi um nome dado a uma onda de filmes queers independentes que ganharam
prestígio da crítica de cinema nos festivais dos anos 1990. O termo foi cunhado pela teórica B.
Ruby Rich, e representou uma virada nas representações gays e lésbicas no cinema, já que não
havia uma preocupação com as “imagens positivas”, mas com certa obscuridade da produção
marginal. Os diretores mais populares do New Queer Cinema (Todd Haynes, Derek Jarman,
Jennie Levingston, Isaas Julien, Gus Van Sant), eram ao mesmo tempo radicais e populares.
23
“[...] this film’s anomalous status is a testament to how little has really changed in the power
structures of cinematic production”. (Tradução livre)
91

A autora questiona também que, já que os trabalhos reflexivos são uma


ferramenta potente para ser usada como resistência ao cinema dominante, por que
então esse nicho não é ocupado devidamente pelos considerados marginais nesse
sistema (mulheres, não-brancos, queers)? Ela reconhece que tais usos existem, por
exemplo, nas práticas camp com sua radical estrutura de auto-reflexibilidade (e
que foi claramente uma prática queer) e nas paródias dos filmes hollywoodianos,
produzidos pelos que foram menosprezados pela sua “máquina representacional”
– ela os exemplifica através de Hollywood Shuffle (1987), de Robert Townsend,
I’m Gonna Git You Sucka (1988), dos irmãos Wayans e Bamboozled (2000), de
Spike Lee. No entanto, os filmes reflexivos deram certo privilégio a um
determinado tipo de autor, de forma dominante, homens brancos como Jean-Luc
Godard e Federico Fellini, “porque reflexividade é ele mesmo um discurso que
implica em um narcisismo da autocrítica e na luxúria de desfazer a estrutura na
qual eles viveram completamente confortáveis.” (Idem, 2008, p. 44) 24

A importância da reflexividade em The Watermelon Woman estaria, logo,


no fato de servir como uma espécie de denúncia das dificuldades de uma mulher
lésbica negra, da Filadélfia, produzir filmes de forma independente nos Estados
Unidos. A meditação de Dunye não seria, por isso, somente em torno da
representação cinemática, mas também sobre seus modos de produção e os
acessos a esses modos de produção. “Funcionárias de videolocadora e
videocinegrafista de casamentos são alguns dos materiais circunstanciais reais
com os quais uma lésbica afro-americana busca quebrar a indústria
cinematográfica para poder encontrar-se – sem a romântica erudição na qual
Quentin Tarantino investiu em seu passado trabalhando em lojas de vídeos”.
(Idem, 2008, p. 47)

A obsessão da personagem Cheryl com Richards se aproxima da descrição


que Cvetkovich faz do arquivista queer como um fã ou colecionador, que tem
uma relação por vezes fetichista com os objetos de sua pesquisa (Cvetkovich,
2003, p. 254). A presença da fantasia na reunião arquívica produzida por Cheryl,
dentro do filme de Dunye, se torna ainda mais importante, levando em conta que
seu “arquivo de sentimentos/sensações lésbicos/as” [“archive of lesbian feelings”]

24
“because reflexivity is itself a discourse that implies the narcissism of self-criticism and the
luxury of undoing a structure in which one has lived quite comfortably”. (Tradução livre)
92

não se limita aos traumas domésticos e experiências inerentes à sexualidade, mas


também em relação a outro trauma: o da escravidão, tornando ainda mais
complexa a importância de Fae Richards ser “criada” doméstica, devido à
interseccionalidade dos apagamentos históricos representados em sua
materialização fílmica.

É difícil de acreditar, mesmo com o anúncio do final do filme, que Fae


Richards é mesmo uma criação ficcional. A paixão de Dunye pela atriz e pela sua
investigação em torno de sua vida são feitas com tanta dedicação que ficamos
envolvidos e encantados com a curiosa história. Nos surpreendemos a cada
descoberta: de seu nome, de sua sexualidade, seu affair com Martha Page, e tal
envolvimento, que demanda tamanha afecção, se desdobra como um sentimento
palpável, real. Dizendo de outra maneira, ao criar Richards e nos fazer acreditar
na sua existência por todo o filme, Dunye produz sensações no espectador que são
impossíveis de serem apagadas – e a revelação de que “The Watermelon Woman
is fiction” não é suficiente para nos retirar os sentimentos que nos ligam à criação
da diretora.

A dimensão fantástica do arquivo de The Watermelon Woman não serve


somente para contar uma história que não existe, mas para mostrar que é possível
reinventar as narrativas históricas, trazendo à tona os elementos recalcados por
elas. As redes de apoio possibilitam a reapropriação do maquinário técnico
arquivístico e cinematográfico para afirmar a possibilidade de criação de
referências afetivas que não puderam existir através do quase monopólio técnico
patriarcal. Dunye nos dá possibilidade de experimentar que a ficção talvez não
seja tão diferente da chamada “verdade histórica”, já que, como afirma Jean
Carlomusto, citada por Ann Cvetkovitch, “cheguei a um ponto no qual acredito
que a verdade é um palpite, um palpite bem forte, e o resto são só palavras”
(Cvetkovich, 2003, p. 255).
93

4.2
O arquivo íntimo em Fun Home: Uma tragicomédia em família

Nas primeiras imagens do Romance gráfico Fun Home: Uma


tragicomédia em família (2006), de Alison Bechdel, um homem está deitado no
chão, com um livro aberto sobre o qual deita uma das mãos. Uma criança segura o
seu pé, levantando-o. Ele dá um impulso e ergue a criança no ar, enquanto segura
suas pequenas mãos. Então soltam as mãos e ficam braços e bracinhos abertos,
como se a criança voasse. O personagem está deitado sobre um tapete persa, o
livro ao seu lado é Ana Karenina de Liev Tolstoi. A narração que atravessa os

Figura 26: Bechdel, 2006, p. 9

quadros (Figura 1) diz: “Como muitos pais, o meu às vezes podia ser convencido
a me levantar no “avião” / Conforme era lançada, todo o meu peso recaía sobre o
eixo entre os pés dele e o meu estômago. / Era um desconforto que valia a pena
94

pelo raro contato físico, e certamente pelo momento de equilíbrio perfeito quando
eu voava sobre ele / No circo, as acrobacias em que alguém no chão equilibra o
outro chamam-se ‘Jogos Icáricos’”. (Bechdel, 2006, p. 9)

Fun Home conta a história de Alison, crescendo na cidade de


Pennsylvania, em Beech Creek, em uma família dominada por seu pai, Bruce
Bechdel – um professor de inglês, ex-militar, que herdou de seu pai uma casa
funerária (por isso o título é dúbio, Fun Home – casa funerária ou casa alegre).
Bruce é um compulsivo restaurador da casa onde vivem. Fun Home, o romance
gráfico de Bechdel, funciona como uma colagem de sentimentos, memórias,
afetos. Através de artefatos aquívicos íntimos (materiais ou sentimentais) Bechdel
relata o cotidiano de sua família e, principalmente, a sua relação com seu pai,
Bruce: um homossexual não assumido que passou sua juventude no contexto
sócio-político pré-Stonewall e viveu a sua vida encobrindo seus desejos por
rapazes.

Considero que Bruce utiliza a sua própria compulsão por restauro,


decoração e jardinagem da casa para encobrir os seus desejos dos olhos da sua
família, da sociedade e dele mesmo. Alison25 elabora um arquivo dos sentimentos,
já que seu desejo de arquivo não possui as mesmas motivações de um arquivo
institucional público (por interesses estritamente históricos ou de pesquisa, por
exemplo). Alison arquiva e coleta elementos íntimos de sua família para reunir
evidências de seu “dia-a-dia” e de seus dramas e traumas domésticos. O arquivo
de Alison é um Graphic Novel sobre o incessante e obsessivo restauro de uma
casa vitoriana por seu pai. A compulsão de Bruce funciona como uma tentativa de
encenação impecável da vida familiar heteronormativa que lhe escapa, como
afirma Robin Lydenberg em seu artigo “Under construction – Alison Bechdel’s
Fun Home: A Family Tragicomic” (2012). Segundo Lygenberg, Alison, ao
mesmo tempo em que registra essa compulsão, também registra as falhas, as
nesgas que Bruce deixa escapar através dos veludos, papéis de parede, móveis,
arabescos, e a jardinagem que envolve a casa, que cultivam para proteger seus
segredos eróticos:

25
Vou me referir à autora pelo seu primeiro nome, com o intuito de não criar ambiguidades, já que
tanto Bruce quanto Alison são Bechdel.
95

Ambos, pai e filha, são atraídos pela ideia de uma casa que camufla (ou até mesmo
inadvertidamente revela) seus desejos secretos. Bruce Bechdel constrói a casa da família
heteronormativa dentro dessa sua obsessão com design de interiores que, todavia, o
expõe, no julgamento da jovem Alison, como um “maricas” ou um “efeminado” (ibid.: 90
e 93). Alison tenta fortalecer-se por trás de uma fachada de normalidade (“é somente uma
casa” [ibid.: 5], e, em última análise, é induzida a evocar um espaço doméstico
defensivamente hermético, “todo de metal, como um submarino” (ibid.: 14), isolado de
qualquer influxo potencialmente perturbador tanto das forças artificiais quanto naturais.
[...] Uma explícita conexão é feita entre o desejo reprimido de seu pai e os cuidados
domésticos obsessivos que tentam mascarar isso. Como um crítico notou, o livro de
Bechdel é, dentre outras coisas, uma apreciação da arquitetura e dos elementos
decorativos de ofuscação emocional (Bellafante, 2006) [...] As encenações fotográficas
que Bechdel fazia de sua própria família (Bechdel, 2006: 16-17) são exibições
cuidadosamente construídas para sugerir uma unidade familiar sem fissuras. A narradora
descreve uma foto de natal como uma “natureza morta com crianças” (ibid.: 13).
(Lydenberg, 2012, p. 59 e p. 64) 26

Figura 27: Bechdel, 2006, p. 19

26
Both father and daughter are drawn to the idea of a house that camouflages (even as it
inadvertently reveals) their secret desires. Bruce Bechdel constructs a heteronormative family
home within which his interior design obsession nevertheless exposes him, in the young Alison’s
judgment, as a ‘sissy’ and a ‘pansy’ (ibid,: 90 and 93). Alison attempts to fortify herself behind a
façade of ordinariness (‘it’s just a house’ [ibid.: 5], and is ultimately driven to conjure up a living
space defensively soldered shut, ‘all metal, like a submarine’ (ibid.: 14), isolated against the
potentially disturbing influx of artificial and natural forces alike. [...] A explicit connection is made
between her father’s repressed desire and the housekeeping obsession meant to mask it. As one
reviewer notes, Bechdel’s book is among other things a comment on the architecture and ornament
of emotional obfuscation (Bellafante, 2006) […] Bruce Bechdel’s stage photographs on his own
family (Bechdel, 2006: 16-17) are ‘exhibitions’ carefully constructed to suggest a similarly
seamless family unit. The narrator describes one Christmas ‘photo op’ as a ‘still life’ with children
(ibid.: 13). (Lydenberg, 2012, p. 59 e p. 64 – tradução livre)
96

A casa dos Bechdel funciona como um peculiar lar queer, através do qual
Bruce tenta, a todo custo, encobrir sua homossexualidade e as inadequações de
gênero de Alison, que, desde criança, tenta resistir às imposições feminilizantes
do pai em seu vestuário, em seu modo de usar o cabelo, em seus trejeitos e gostos.
Alguns críticos descrevem a casa como se ela fosse “uma drag... cheia de
acessórios, excessivamente vestida” [“in drag...over-accessorized, overdressed”]
(Tison apud Lydenberg, 2012, p. 64). A casa gótica vitoriana, repleta de detalhes,
espelhos, papéis de parede, cortinas pesadas, funciona, como Alison descreve,
poeticamente, no início de sua memória gráfica, como o labirinto criado por
Dédalo do qual a pequena filha lésbica tenta escapar, como fizera Ícaro:

Figura 1: Bechdel, 2006, p. 18


97

Fun Home se desenvolve através da fuga de Alison do labirinto de seu pai


e, paralelamente, de uma construção de uma contra-história, de um contra-
arquivo, que, de forma cuidadosa, revela a complexidade – e por vezes a
ilegalidade – das incursões eróticas de Bruce. Incursões essas que o levaram a
complicações com a justiça, quando foi denunciado por um jovem vizinho por
estar circulando com seu irmão, menor de idade, em um carro e por ter oferecido
bebida alcoólica a ele, mas que também, ao que tudo indica, como acreditam
Alison e sua mãe, levaram-no a cometer suicídio, atirando-se na frente de um
caminhão, em um atropelamento fatal.

A narrativa de Alison vai nos guiando pelo labirinto que seu pai criara
através desse arquivo de sentimentos, composto por fotos, lembranças, objetos, o
seu diário de infância e adolescência, filmes fotográficos não revelados,
calendários. Todo o arquivo chega até nós, em Fun Home, através dos desenhos
de Alison. O seu archive of feelings se torna mais potente na medida em que o seu
traço e o seu texto retratam o afeto e o desejo de arquivar essa pequena história
doméstica. O “desejo de arquivo” queer vem do caráter efêmero dos objetos que
compõem a sua história 27 – no caso de Bechdel, como o arquivo é íntimo, muitas
vezes a efemeridade vem por pudor da família de manter evidências da
homossexualidade de um ente querido que viera a falecer. Do pudor e da
vergonha dessas evidências, vem a pulsão de morte, o desejo de destruição do
arquivo (inerente a qualquer arquivo), tal como ressalta Derrida (2001) em seu
ensaio sobre o “mal de arquivo” 28 .

27
Ann Cvetkovich desenvolve mais sobre a efemeridade do arquivo queer em seu livro The
Archive of Feelings, ressaltando que o desejo de arquivo queer é muitas vezes motivado pelo medo
do desaparecimento dos objetos que testemunharam essas histórias. (Cvetkovich, 2003, p. 243)
28
Derrida afirma que a psicanálise freudiana propõe uma nova teoria do arquivo justamente por
levar “em conta uma tópica e uma pulsão de morte sem as quais não haveria, com efeito, para o
arquivo, nenhum desejo nem nenhuma possibilidade.” (Derrida, 2001, p. 44)
98

Figura 29: Uma fotografia de Bruce pelo traço de Bechdel (2006, p. 7)

Quando a jovem Alison, já universitária e morando no campus da


faculdade, revela ser lésbica para seus pais através de uma carta, recebe um
telefonema de seu pai, dizendo que “todo mundo tem que experimentar” e
questionando: “você precisa por um rótulo em você mesma? ”. (Bechdel, 2006, p.
217). Três semanas depois sua mãe ligara para revelar a Alison que seu pai era
homossexual e manteve casos com rapazes, dentre eles, o baby-sitter de Alison e
seus irmãos na infância, chamado Roy. No dia seguinte do telefonema de sua mãe,
chega uma carta de seu pai, onde ele se questiona sobre a própria opção de “ficar
no armário”: “É claro que parece que estou fugindo do problema. Mas de que
serve fugir? Tomar partido é um tanto quanto heroico, e eu não sou um herói. Será
que vale mesmo a pena? Há poucas ocasiões no passado em que eu preferia ter
tomado uma posição. Mas nunca cogitei o assunto quando era jovem. Na verdade,
acho que não pensei nisso até os trinta anos. Convenhamos, as coisas eram
diferentes na época. Aos quarenta e três, ainda acho difícil ver vantagens, mesmo
que o tivesse feito na juventude”. (Idem, 2006, p. 217). Tempos depois, Alison
recebe outra carta 29, na qual seu pai parece mais amargurado:

29
É importante ressaltar a importância da correspondência por escrito como documento
arquivístico, levando em conta o seu valor permanente. Essas “escritas de si” (cartas, diários
íntimos, memórias) teriam grande importância também pelo seu caráter íntimo. No caso das
vivências queers, a “escrita de si” é testemunha do “contexto privado”, onde eram exercidas as
práticas afetivas e sexuais “secretas” aos olhos da sociedade. Principalmente dentro do contexto no
qual a infância de Alison e vida de seu pai estão inseridos: no pré-Stonewall, quando a
99

Confesso que tenho uma certa inveja da “nova” liberdade (?) que hoje aparece nas
universidades. Nos anos 50, isso não era nem considerado uma opção. É difícil acreditar
nisso tanto quanto é difícil acreditar que vi bebedouros para negros e brancos na escola
primária, na Flórida. Sim, meu mundo era bem limitado. Sabia que eu nunca tinha estado
em Nova York até os vinte anos? Mesmo assim, não foi uma novidade tão grande. Não
havia muitas coisas na cidade que eu já não tinha visto em Beech Creek. Mas, ao
contrário dos outros lugares, em Nova York era possível vê-las e mencioná-las. Era
bastante simples. (Ibid.: p. 218)

É interessante notar como o trabalho artístico de Alison com o arquivo


pessoal da sua família nos dá a possibilidade de visualizar seus traumas íntimos e
domésticos. São traumas do âmbito do desejo e da sexualidade, sobre o qual
Cvetkovich trata em seu livro, mas também em seu ensaio sobre o livro de
Bechdel, “Drawing the archive in Alison Bechdel’s Fun Home” (2008) no qual
contrasta a narrativa de Bechdel com outros importantes graphic novels, tais como
Maus (1993) de Art Spiegelman (no qual ele traz memórias de seu pai
sobrevivente do holocausto), e Persépolis (2003) (onde Marjane Satrapi narra,
através das suas memórias, os acontecimentos da Revolução Islâmica no Irã). Em
ambas as narrativas, se dá o registro de grandes traumas históricos e
compartilhados.

Cvetkovich elabora de forma mais clara essa ideia do trauma público e o


trauma doméstico (portanto, compartilhado somente após a sua “publicação”,
como o faz Alison). Primeiramente, é interessante destacar que ela afirma que o
trauma e a modernidade podem ser entendidos como mutualmente constitutivos,
citando Raymond Williams, para quem o trauma caracteriza a experiência do
capitalismo (Cvetkovich, 2001, p. 17)30, e que por muitas vezes o trauma é usado
para reforçar o nacionalismo. São traumas provocados por grandes eventos, e
compartilhados através da mídia, da história, de testemunhos, mas também pela
cultura popular e que são utilizados pelos “poderes amnésicos do poder da cultura
nacional” aproveitando-se de uma história traumática para suprimir outras. O
trauma queer é utilizado pelas mãos de novelistas gráficos como Alison, que se
reapropria da mesma ferramenta de Spiegel e Satrapi, forjando novos modos
através dos quais a vida afetiva serve de fundação para a cultura pública (Ibid. p.

homossexualidade ainda era proibida por lei nos Estados Unidos e o único espaço permitido para o
seu exercício era o da intimidade – sobretudo para Bruce, que era casado e possuía filhos.
30
“Trauma and modernity thus can be understood as mutually constitutive categories; trauma is
one of the affective experiences, or to use Raymond William’s phrase, ‘structures of feelings’, that
characterizes the lived experience of capitalism”
100

18-20). Cvetkovich (2008), em seu ensaio sobre Fun Home, a compara com essas
duas narrativas gráficas igualmente prestigiadas, dizendo que as conexões entre
elas não são tão óbvias, já que não há um genocídio em massa no livro de
Bechdel, há “apenas” o suicídio de um homossexual dentro do armário. Talvez
existam vidas que se perdem, que não são “lamentáveis”, em um contexto
público. (Cvetkovich, 2008, p. 111).

É interessante observar que Lydenberg, em seu artigo há pouco citado, traz


algumas reflexões que têm como intento definir as características do meio
artístico utilizado por Bechdel, o chamado graphic novel. Alguns teóricos, afirma
Lydenberg, descrevem esse meio como cinemático, hieroglífico, ou até mesmo
musical, mas considera que, a definição mais interessante seria a de Art
Spigelman, na qual se compara os graphic novels com um edifício: “Meu
dicionário define a tirinha cômica como ‘uma série de quadrinhos [cartoons]
narrativa. Uma narrativa é definida como ‘uma história’. A divisão horizontal
completa de um edifício [do latim medieval historia... uma fileira de janelas com
figuras em cada uma delas].” (Spiegelman apud Lydenberg, 2012, p. 57)31.
Lydenberg relata que o artista de comics Chris Ware expande essa imagem do
graphic novel como um edifício (building), ao dizer que a leitura da narrativa
gráfica é uma experiência espacial (arquitetural), e que um dos modos de viver a
experiência de uma narrativa gráfica é considerar a sua composição como uma só
coisa, como a fachada de um edifício. A dimensão arquitetural do graphic novel
dá a Alison o suporte ideal para o arquivamento das memórias domésticas queers
de sua família – através dela mesma e de seu pai. Assim como Derrida afirma em
seu ensaio “Mal de arquivo: uma impressão freudiana”, explorado no início desse
capítulo, o arquivo necessita desse suporte, já que “não há arquivo sem o espaço
instituído de um lugar de impressão. Extremo, diretamente no suporte, atual ou
virtual” (Derrida, 2001, p. 8). Alison produz então um suporte arquitetural para o
arquivo com o qual trabalha. É nesse suporte onde ela vai inscrever as suas
memórias (através de cartas, fotografias, suas lembranças e também as de seus
familiares), que foram registradas com a mediação de seus desenhos e de seu texto
(ambos elementos narrativos que compõem um graphic novel).

31
“My dictionary defines COMIC STRIP as ‘a narrative series of cartoons’. A NARRATIVE is
defined as ‘a story’. ‘A complete horizontal division of a building... [ From Medieval Latin
HISTORIA…a row of windows with pictures on them].” (Tradução livre)
101

A casa queer de Fun Home não é somente a casa quase impecavelmente


trabalhada, construída e moldada por Bruce. Alison dá a ver a própria
performatividade da arquitetura e dos materiais que compõem um lar de uma
família heterossexual. Assim como o artista Drag Queen ou Drag King, que
constrói o personagem generificado de forma exacerbada, com um excesso de
itens, acessórios, próteses, e nos dá a possibilidade de observarmos o próprio
caráter frágil e construtivo do sistema sexo-gênero, nos corpos-pele, a casa drag
de Bruce, com seus inúmeros e aparentemente infinitos corpos-apetrechos, que
produzem a sensação de labirinto em quem nela adentra, nos faz ver como a
materialidade decorativa de uma casa também funciona, junto com a sua
arquitetura, como uma construção sexuada, que precisa ser reiterada
performativamente.

Uso aqui o conceito de performatividade de Judith Butler, exposto a


propósito da performatividade de gênero. Segundo Butler, em Corpos que
importam: sobre os limites discursivos do “sexo” (2000), “a performatividade
deve ser compreendida não como um ‘ato’ singular ou deliberado, mas, ao invés
disso, como a prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos
que ele nomeia. ” (Butler, 2000, p. 154) As normas são trabalhadas então, por
Bruce, de forma performativa para construir a materialidade de seu lar e para a
consolidação do “imperativo sexual”. Podemos pensar então, a partir disso, o lar
como um “lar sexuado”.

A narrativa gráfica de Alison funciona como uma desconstrução arquívica


da casa que habitou na infância. Lendo o arquivo como discurso, como produção
discursiva, Alison transforma e ressignifica esse discurso em sua narrativa, em
uma nova edificação, nos proporcionando duas experiências arquiteturais: a da
casa de seu pai e a dessa casa que constrói com os fragmentos daquela.

Os filhos de Bruce, Alison e seus dois irmãos mais jovens, funcionam


como uma espécie de contínuo laboral do corpo de Bruce na sua obsessão
decorativa e de restauro, como ela bem comenta no princípio da narrativa:
“...éramos todos mão-de-obra gratuita, ele nos considerava extensões de seu
corpo, como braços de um robô de alta precisão” (Alison, 2006, p. 19) Mas os
filhos, principalmente Alison, a que não se conforma aos padrões de Bruce, são,
102

para ele, também, como uma extensão do seu projeto obsessivo de perfeição
familiar, por isso ele está sempre tentando convencer Alison, a filha masculina, de
se feminilizar:

Figura 30: Bechdel, 2006, p. 105

Alison descreve o suicídio do seu pai como o fim dele, mas seu próprio
início, destacando que “para ser precisa, [...] o fim da mentira dele foi o início da
103

minha verdade. / Porque eu também havia mentido havia um bom tempo. Desde
os 4 ou 5 anos.” (Bechdel, 2006, p. 123). Após esta confissão, Alison conta que
certa vez seu pai a levara a uma viagem de negócios na Filadélfia, e numa
lanchonete da cidade, vira uma “aparição assombrosa”, uma butch, uma sapatona
masculina: “Eu não sabia que havia mulheres que se vestiam como homens e
tinham cortes de cabelo masculinos. / Mas, como um viajante no exterior que
encontra alguém de casa – com quem ele nunca falou, mas que conhece e vista –,
reconheci aquela mulher com uma onda de alegria.” (Idem, 2006, pp. 123, 124):

Fun Home acabou indo parar na Broadway, em uma adaptação do graphic


novel para o formato de musical, inicialmente exibido em 2012, no Public Theater
Lab, em Nova York, indo em seguida, no período de 2013-2014, para o off-
Broadway no Public Theater e em 2015 na própria Broadway, encenado no Circle

Figura 31: Bechdel, 2006, p. 124


104

in the Square Theater. No ano em que foi à Broadway, o musical ganhou três
Tony Awards, um deles de melhor musical.

Durante a premiação, foi encenado o trecho do encontro de Alison com a


butch, na lanchonete, com Alison sendo interpretada pela jovem atriz Sydney
Lucas. A música, intitulada Ring of Keys – fazendo referência às chaves que a
butch que adentrara na lanchonete portava presas ao cinto de sua calça –
demonstra a força desse momento para a história que Alison Bechdel, a autora,
criara a partir das fotografias, cartas, lembranças e demais suportes que continham
algum traço de memória que a ajudasse a compor seu livro:

Figura 32: Cena do musical Fun Home

ALISON [FALANDO]:

No início você não percebeu, pai, mas eu sim. Eu a vi


No minuto em que ela entrou. Eu nunca tinha visto uma mulher
Que parecesse com ela. Foi como se eu fosse um viajante em um país
Estrangeiro que corre até alguém que é de casa,
Alguém que nunca foi visto antes, mas que de alguma forma apenas
É reconhecido.

A PEQUENA ALISON [CANTANDO]


Alguém simplesmente entrou pela porta
Alguém que eu nunca vira antes.
Eu sinto...
Eu sinto...

Eu não sei de onde você veio.


Eu gostaria de saber.
Eu me sinto estúpida.
105

Eu sinto...

A sua presunção e a sua atitude


e as roupas certas que você usa
Seu cabelo curto e seu macacão
E o seu coturno.

E suas chaves oh
E seu chaveiro

Eu pensava que isso era errado


Mas me parece ok ser forte
Eu quero...que...
Você é tão...

Provavelmente é vaidoso dizer isso,


Mas eu sinto que nos parecemos, de um certo modo
Eu...hum…

A sua presunção e a sua atitude


e as roupas certas que você usa
Seu cabelo curto e seu macacão
E o seu coturno.

E suas chaves oh
E seu chaveiro

Você sente o meu coração dizendo oi?


Em toda essa lanchonete
Porque eu sou a única que vê que você é linda?

[FALANDO]
Não, quero dizer

[CANTANDO]
Lindo!

A sua presunção e a sua atitude


e as roupas certas que você usa
Seu cabelo curto e seu macacão
E o seu coturno.

E suas chaves oh
E seu chaveiro

Eu conheço você
Eu conheço você
Eu conheço você32

32
[ALISON] You didn’t notice her at first dad, but I did. I saw / Her the minute she walked in.
I’de never seen a woman / Who looked like her. It was like I was a traveler in a foreign /Country
who runs into someone from home, / Someone they’ve never met before but somehow just /
Reconizes. //
SMALL ALISON [SINGING]: / Someone just came in the door. / Like no one I ever saw before. /
I feel... / I feel... // I don't know where you came from. / I wish I did / I feel so dumb. / I feel... //
Your swagger and your bearing / and the just right clothes you're wearing / Your short hair and
your dungarees
And your lace up boots. // And your keys oh / Your ring of keys. // I thought it was s'pposed to be
wrong
106

Essa cena funciona como uma disrupção do conceito de lar como


arquitetura, diferenciando-o da estrutura da casa, ou como ligação sanguínea, e
nos faz pensar melhor sobre como o queer pode nos ajudar a conceber outras
significações para o conceito. O lar seria, na cena em questão, algo mais próximo
da sua dimensão etimológica, como descreve João Marão Carnielo Miguel em seu
artigo “Casa e lar: a essência da arquitetura” (2002)33: “A palavra lar é uma
corruptela de lareira. A lareira primitiva que faz do seu fogo o elemento
inseparável da cabana rústica. O fogo que reúne ao seu redor todos os integrantes
de um laço familiar, sendo, de um modo figurativo, um manto que aquece e reúne
a todos num mesmo instante” (Miguel. 2002). A dimensão arquitetural da casa
serviria para proteger seus moradores das ameaças externas, mas eles poderiam
fazer dessa estrutura um lar, ou seja, algo que os conecte e faça pulsar ali a vida.
O lar seria uma força vital de união entre os seres que convivem numa casa. E
talvez possa ser conceituado também, como a força do encontro de um corpo com
outro corpo: “Eu era como um viajante num país estrangeiro que corre até alguém
34
de casa” . O chaveiro preso no cinto da sapatona masculinizada, a butch, é a
chave para Alison adentrar nesse lar. A frase repetida “Eu conheço você, eu
conheço você” [I know you, I know you], após ter dito “Você pode escutar meu
coração dizendo ‘oi’?”, “e as roupas, as botas, o corte de cabelo, “E o seu
chaveiro, oh, o seu chaveiro”, demonstram a potência desse encontro, entre a
butch e a tomboy 35, controlada o tempo todo por seu pai:

But you seem okay with being strong / I want...to... / You're so... // It's probably conceited to say, /
But I think we're alike in a certain way / I...um... // Your swagger and your bearing / and the just
right clothes you're wearing / Your short hair and your dungarees / And your lace up boots. // And
your keys oh / Your ring of keys. // Do you feel my heart saying hi? / In this whole luncheonette /
Why am I the only one who see you're beautiful? // [Spoken] No, I mean // [Sung] Handsome! //
Your swagger and your bearing /and the just right clothes you're wearing / Your short hair and
your dungarees / And your lace up boots. // And your keys oh / Your ring of keys. // I know you / I
know you / I know you. (Tradução livre) Disponível em: <http://funhomebroadway.com/>.
Acessado em 20 de novembro de 2015.
33
Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.029/746> Acessado
em 13 de março de 2016.
34
“It was like I was a traveler in a foreign country who runs into someone from home”. (Tradução
livre)
35
Tomboy é um termo utilizado em inglês para designar uma garota que exibe características e
comportamentos esperados de serem observados em garotos (roupas, brincadeiras, atividades).
107

Figura 33: Bechdel, 2006, p. 103

Judith Halberstam, em The Queer Art Of Failure (2011), descreve como a


figura a sapatão masculina (the butch) é uma falha na feminilidade, e como ela
ameaça o homem que a vê, “aterrorizado com o espetáculo da ‘mulher não-
castrada’, e que desafia a mulher feminina e heterossexual porque ela se recusa a
participar do disfarce da hetero-feminilidade como fraca, desqualificada e não-
36
ameaçadora / inofensiva” (Halberstam, 2011, p. 95) . Por isso a frase de Bruce
ao ver a sapatão: “É assim que você quer parecer?!”. A narradora, na sequência,
pensa: “O que mais eu podia dizer?”, e então, no quadrinho que acompanha essa
frase, a pequena Alison olha para a imponente sapatão e diz “Não.” A narração
prossegue: “Mas a imagem daquela sapatona caminhoneira perdurou em mim por
anos... como talvez tenha perseguido meu pai.” (Alison, 2006, p. 125)
36
“She threats the male viewer with the horrifying spectacle of the ‘uncastrated woman’ and
challenges the straight female viewer because she refuses to participate in the conventional
masquerade of hetero-femininity as weak, unskilled, and unthreatening.” (Tradução livre)
108

Alison cria uma resistência em relação à dimensão normativa moderna,


estadunidense da casa e da composição do lar. Só que a sua resistência não é
simplesmente contra a ideia de lar de seu pai, ou uma negação do lar no qual
cresceu e das relações afetivas – mesmo que conturbadas – que foram ali traçadas.

Peter Pál Pelbart, em seu texto intitulado “A utopia imanente”, publicado


na Revista Cult edição 108, estabelece que Deleuze reclamou para si

...uma crença no mundo (isto é, nas suas possibilidades, que caberia às artes, entre outras,
nos “devolver”), a evocação da resistência (“resistir à morte, à servidão, ao intolerável, à
vergonha, ao presente”), a defesa da criação (“criar é resistir”), o chamamento recorrente
a um “povo por vir” (que cabe à Filosofia favorecer, embora não esteja ao seu alcance
criar). Enfim, vários termos banidos do ideário pós-moderno têm aqui inteiramente
preservada sua dignidade: mundo, povo, resistência, criação, arte, Filosofia. (Pelbart,
2006, np)

No “contra-arquivo” ou no “arquivo dos sentimentos” de Alison,


materializado em seu Graphic Novel, está presente a dimensão do “porvir” e da
criação que resiste. A forma com a qual se apropria da história privada de seu pai
e dá a ela um caráter público, faz com que o trauma íntimo homossexual pré-
Stonewall seja partilhado. O trauma queer pré-Stonewall não diz respeito somente
à culpa em relação à sexualidade (até porque não podemos afirmar que todos
viveram um sentimento de culpa), mas à violência do “armário”, de ter de se
esconder, de ter de viver uma mentira para ser aceito pela sociedade. Os afetos, a
sexualidade, os sofrimentos de Bruce, não estão mais no âmbito do segredo – e, a
partir da publicação de Fun Home, as inscrições arquívicas (as fotos, as cartas, as
dedicatórias de livros, as fotografias) não correm mais o risco de ser destruídos
pela mãe de Alison, por pudor ou vergonha da homossexualidade de seu marido.

Proponho um diálogo entre a ideia de “porvir” de Deleuze, citado através


de Pelbart, e dimensão futura do arquivo tratada por Derrida – o arquivo não se
limitaria, portanto, à sua dimensão pretérita e arqueológica, como já comentado
no início desse capítulo. A dimensão futura do arquivo de Alison, e a sua
capacidade de resistir, através da criação, de produzir resistência, está justamente
no fato de que, trazendo à esfera pública algo que normalmente é segredo,
afetamos as vidas que resistem no presente, damos a elas uma história, como foi
também o caso do uso do arquivo na peça Domíno do Escuro, de Juliana
Pamplona e o filme The Watermelon Woman, de Cheryl Dunye. É a
potencialidade das vivências queers sobre a qual se debruça José Esteban Muñoz
109

em seu livro Cruising Utopia: the then and there of queer futurity (2009). As
vivências queers se tornam, para Muñoz, uma ferramenta para se pensar em uma
“futuridade coletiva”, ou seja “uma noção de futuro que funciona como uma
materialidade histórico-crítica” (Muñoz, 2009, p. 26). O arquivo queer provocaria
uma reversão na lógica histórico-temporal heteronormativa e patriarcal. A história
não se limitaria mais somente a assuntos do passado, os álbuns de fotografia e
antigas trocas de correspondência não teriam mais a função de mera fonte
histórica, mas passam a ter a função de ser evocadas como material de criação
artístico-histórica, para suprir faltas representacionais do presente, para criar zonas
de encontro, de produção de coletividade para fomentar a criação de novos e
melhores mundos. O “contra-arquivo queer” seria o lar – uma lareira, um fogo de
vida que proporciona encontro, toque, através das histórias que aproximam, que
dão sentido a vidas que antes não se viam representadas por estarem suprimidas
ou recalcadas.
5
Cuidado, precariedade e resistência utópica em Shortbus,
de John Cameron Mitchell

have you met my family


wouldn’t take long to know them well
though they number from one to a million
in this house we all dwell
say hello to jo she is a goddess and to paige she
is a saint and dana she’s from the forest and sia
paints her face

you ask me how i feed them. i tell you no lies


its grandma she brings the sunshine you can see
it in her eyes.

(Men)

Em um de seus cursos no Collège de France (1976-1977), publicados no


livro intitulado Como viver junto: Simulações de alguns espaços cotidianos
(2003), Rolland Barthes relata que no dia 1º de janeiro de 1976 observara de sua
janela uma mãe segurando um filho pequeno pela mão enquanto empurrava o
carrinho vazio à sua frente, “ela ia imperturbavelmente em seu passo, o garoto era
puxado, sacudido, obrigado a correr o tempo todo, como um animal ou uma
vítima sadiana chicoteada. Ela vai em seu ritmo, sem saber que o ritmo do garoto
é outro. E no entanto, é a sua mãe!  O poder – a sutileza do poder – passa pela
disritmia, a heterorritmia” (Barthes, 2003, p. 19). Barthes usa essa anedota para
ilustrar o conceito de idiorritmia, o que seria o ritmo próprio de cada sujeito –
cada sujeito tem a sua singularidade rítmica (Ibid., p. 13).

Barthes utiliza as imagens de “um animal” ou “uma vítima sadiana


chicoteada”, ao descrever o tratamento da mãe com o garoto, para ressaltar como
as relações de poder implicam disritmias e como o poder está presente até mesmo
nas relações mais “sagradas” ao mundo heteropatriarcal, como a de uma mãe e um
filho. Nem mesmo ali, em uma relação que teoricamente deveria transpirar
atenção, sintonia, o cuidado materno, a criança está isenta da vulnerabilidade.
111

Para Judith Butler, em seu ensaio “Vida Precária” (2011), a precariedade


atravessa todos os corpos, mas em graus distintos. Butler associa a nossa
existência à estrutura discursiva que está presente em todas as esferas da nossa
vida. Segundo ela, nós passamos a existir na medida em que o discurso nos
alcança, mas quando ele falha “a nossa existência se prova precária” (Butler,
2011, p. 15). Quando não é possível que uma vida exista através do discurso, ou
quando não é passível de representação pelo aparelho discursivo do qual
dispomos, ela entra em uma zona de precariedade.

É importante frisar que, por outro lado, mesmo quando o discurso tem o
poder de nos alcançar e nos tornar vulneráveis, ou quando uma criança está
vulnerável à disritmia em relação à sua mãe, ou seja, mesmo estando o poder por
toda a parte, as estruturas do poder são instáveis. O poder é passível de sofrer
disrupção. A vida, a força da vida, resiste, como Foucault desenvolve melhor na
entrevista intitulada “L’éthique du souci de soi comme pratique de liberté”,
publicada em Dits et Écrits II. 1976-1988 (2001). Foucault responde a uma
pergunta sobre uma suposta deficiência em seu pensamento, de uma resistência ao
poder, ao que se contrapõe:

Eu quero dizer que, nas relações humanas, quaisquer que sejam – que se trate de se
comunicar verbalmente, como fazemos agora, ou que se trate de relações amorosas,
institucionais ou econômicas – o poder está sempre presente: eu quero dizer a relação
através da qual um tenta controlar a conduta do outro. Essas são relações que podemos
encontrar em diversos níveis, sob diferentes formas; essas relações de poder são relações
móveis, quer dizer que elas podem se modificar, que elas não estão dadas de uma vez por
todas. [...] Essas relações de poder são, então, móveis, reversíveis e instáveis. Deve-se
frisar também que, só podem existir relações de poder na medida em que existam sujeitos
livres. [...] Quer dizer que, nas relações de poder, há forçadamente a possibilidade de
resistência, já que se não houvesse a possibilidade de resistência – de resistência violenta,
de fuga, de estratagema, de estratégias que revertam a situação – , não haveria, em
nenhuma hipótese/em absoluto, relações de poder. (Foucault, 2001, p. 1539) 1

1
“Je veux dire que, dans les relations humaines, quelles qu’elles soient – qu’il s’agisse de
communiquer verbalement, comme nous le faisons maintenant, ou qu’il s’agisse de relations
amoureuses, institutionnelles ou économiques –, le pouvoir est toujours présent: je veux dire la
relation dans laquelle l’un veut essayer de diriger la conduite de l’autre. Ce sont donc des relations
que l’on peut trouver à différents niveaux, sous différents formes; ces relations de pouvoir sont des
relations mobiles, c’est-à-dire qu’elles peuvent se modifier, qu’elles ne sont pas donnés une fois
pour toutes. [...] Ces relations de pouvoir sont donc mobiles, réversibles et instables. Il fault bien
remarquer aussi qu’il ne peut y avoir de relations de pouvoir que dans la mesure où les sujets sont
libres. [...] Cela veut dire que, dans les relations de pouvoir, il y a forcément possibilité de
résistance, car s’il n’y avait pas possibilité de résistance – de résistance violente, de fuite, de ruse,
des stratégies qui renversent la situation –, il n’y aurait pas du tout de relations de pouvoir.”
(Tradução livre)
112

Meu interesse nesse capítulo é de trazer a inquietação da resistência ao


poder presente nas vivências que estou designando como queers, ou de como as
vivências queers ou um “gesto queer” podem nos ajudar a pensar sobre a
resistência ao poder. O queer vai resgatar, na contemporaneidade, seja nas suas
vivências ou nas suas manifestações artísticas, os tão urgentes conceitos de
“afeto” e “empatia”, que podem colaborar para um pensamento sobre vivências
éticas, sobre o cuidado e sobre a nossa relação com a precariedade que atravessa a
todos nós. Se nas relações de poder há resistência, como elabora Foucault, é
possível pensar a resistência mesmo na precariedade. Ao contrário do que
podemos interpretar do pensamento do poder, e da ideia de precariedade – produto
das relações de poder – a resistência está presente de maneira frequente dentro da
condição de vulnerabilidade social dos corpos.

Quando se volta para o pensamento do sujeito e das práticas de si, como,


por exemplo, no último volume publicado de sua História da Sexualidade 3: o
cuidado de si (2009) e nos cursos dados no Collège de France entre 1981-1982 e
publicados no livro A Hermenêutica do Sujeito (2006), Foucault nos mostra que
existe uma forma de lidar com as práticas subjetivas que não é somente através da
coerção. Na entrevista citada há pouco, ele explica que seu pensamento sempre se
baseou nas relações entre sujeito e jogos de verdade, sendo que alguns dos seus
trabalhos foram sobre práticas coercitivas (em torno da questão psiquiátrica e
penitenciária, por exemplo), formas de jogos teóricos ou científicos (análise das
riquezas, da linguagem e do ser vivo), e essas práticas de si: “Há então uma
espécie de deslocamento: esse jogo de verdade não diz mais respeito a uma prática
coercitiva, mas a uma prática de autoformação do sujeito.” (Foucault, 2001, p.
1528) 2

O interesse investigativo de Foucault migra para o outro lado das relações


de poder, que não mais o poder em si, ou a opressão consequente das relações de
poder, mas o modo como a vida resiste sempre, e como a resistência é inerente à
vida. Foucault faz um trabalho arqueológico sobre as práticas de subjetivação
através das práticas gregas de “produção de si”, nos dando a possibilidade de
olhar a vida numa perspectiva ativa, mas ao mesmo tempo, de ponderação e de

2
“Il y a donc une sorte de deplacement: ce jeux de vérité ne concernent plus une pratique
coercitive, mais une pratique d’autoformation du sujet”. (Tradução livre)
113

cuidado, através da qual não existe somente a relação binária entre opressor e
oprimido, poder e impotência, ativo e passivo, e assim por diante.

Em A Hermenêutica do Sujeito (2006), Foucault afirma que o “cuidado de


si” grego (epiméleia heautou) é “uma formulação filosófica precoce, por assim
dizer, que aparece claramente desde o século V a.C. e que até os séculos IV-V
d.C. percorre toda a filosofia grega, helenística e romana, assim como a
espiritualidade cristã” (Foucault, 2006, p. 15). O cuidado de si seria “um certo
modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações
com o outro” (Ibid., p. 14). Além de ser uma atitude para consigo e para o mundo,
a epiméleia heautou é também “uma forma de atenção e de olhar”, uma forma de
virar o olhar para si mesmo e ao que se passa em nosso pensamento: “Há um
parentesco da palavra epiméleia com meléte, que quer dizer, ao mesmo tempo,
exercício e meditação...” (Ibid., p. 14). O cuidado de si traz também uma série de
ações e exercícios de transformação e transfiguração de si, como técnicas de
meditação, exames de consciência etc. (Ibid., p. 15).

A prática do cuidado de si recuperada por Foucault foi, para os gregos,


uma prática ética, “o cuidado de si é ético em si próprio”, já que implica em
relações complexas com o outro – para olhar para o outro e para se relacionar com
o outro, nesta perspectiva, é necessário um exercício consigo mesmo. O cuidado
de si foi, portanto, uma forma de cuidar não só de si, mas dos outros. Cuidando de
si, ouvindo as lições, os exercícios e as práticas de si propostas por um mestre, é
possível estar sempre atento à maneira de se portar no mundo e em relação ao
outro, em uma prática ética constante (Foucault, 2001, p. 1534).

Para nós, contemporâneos e ocidentais, o cuidado de si se tornou algo


completamente diferente, após sofrer inúmeras modificações que, de acordo com
Foucault, é difícil precisar quando foram produzidas. Para ele, o cuidado de si se
transformou em algo um pouco suspeito, uma forma egoísta de “amor próprio”
(Ibid., p. 1551). Em A História da Sexualidade, Vol. 3 – O cuidado de Si (2009),
Foucault afirma que a prática do cuidado de si vai além de um “serviço de alma”,
vem com o intuito ético de uma “intensificação das relações sociais” (Foucault,
2009, p. 58), ou, como é ressaltado, uma “aproximação (prática e teórica) entre
medicina e moral” (Ibid., p. 63). Apesar do “voltar-se para si mesmo”, o gesto do
114

cuidado de si é na verdade uma espécie de trabalho em si mesmo com vistas às


relações interpessoais, em um encontro mais ético com o outro.

Cuidando de si, as doenças da alma não passariam por virtudes, “a cólera


por coragem, a paixão amorosa por amizade, a inveja por emulação, a covardia
por prudência” (Ibid., p. 63). Ao reconhecer e não deixar passarem despercebidas
as doenças da alma, a solução não é o sentimento de culpa ou remorso, mas a
memorização de uma falha, uma constatação que leva a um “equipamento
racional que assegura uma conduta sábia” (Ibid., p. 67). Por isso, o cuidado de si é
considerado por Platão, pelos epicuristas e por toda a cultura e filosofia gregas
como uma prática indispensável e diária. Foucault o exemplifica, através de
Epicuro, no qual podemos encontrar uma das fórmulas do cuidado de si: “todo
homem, noite e dia, e ao longo de toda a sua vida, deve ocupar-se com a própria
alma” (Ibid., p. 12). A prática desta ordem do cuidado de si no contexto
contemporâneo é um interessante gesto de resgate do passado com o intuito de
provocar fissuras no presente. O cuidado de si pode ser extremamente útil para
tratarmos das questões da precariedade e vulnerabilidade de populações
marginalizadas através de um resgate crítico da ética do “cuida-te de si mesmo”.

Butler, em sua conferência “Rethinking Vulnerability And Resistance”,


proferida no Seminário Queer que aconteceu em São Paulo em setembro de 2015,
fala das vidas precárias, que ela define como as vidas designadas como
dispensáveis, pessoas que podem ser presas, detidas, sofrer injúria ou até mesmo
serem mortas ao caminhar na rua. O discurso da imprensa e da sociedade, de
acordo com Butler, são sempre de culpabilização dessas vítimas: se forem
mulheres, era porque estavam vestidas de tal maneira e pediram para serem
mortas e estupradas; se for a população negra é porque eram suspeitos; se forem
homossexuais ou trans, era porque estavam agindo de forma inadequada no
ambiente público (desafiando as normas de gênero ou demonstrando afeto). Para
lidar politicamente com a culpabilização, as populações vulneráveis utilizam o
argumento de que na verdade quem estava agindo de forma errada era o agressor,
e não a vítima por agir ou se vestir de maneira não-normativa. Butler argumenta
que, afirmando de forma excessiva a condição de vítima, acabamos apagando ou
115

omitindo as práticas concretas de resistência – o que não quer dizer que não
devamos continuar apontando que a culpa não é da vítima em casos de violência.
Por exemplo, há uma longa história de feminicídio na América Latina, mas
também há uma longa história de resistência (assim como tantos outros grupos:
minorias étnicas, queers, trans, trabalhadores do sexo etc). Devemos falar também
das práticas de resistência, reiterá-las, mostrar, por repetição, mapeando-as, que o
“resistir” existe e é vocábulo e prática estruturantes da sobrevivência cotidiana de
diversos grupos e indivíduos.

É preciso chamar a atenção para o fato de que as vivências queers vão


retornar a uma ética do cuidado de si através da necessidade de cooperação e
aliança com o outro para tornar a vida vivível e respirável. Butler utiliza o
conceito de queer como estratégia de reflexão em torno das formas de resistência
promovidas por populações em situações de precariedade, ressaltando que,
primeiramente, era preciso dizer que o queer é a ideia de uma “singularidade
desgarrada da norma” e que o conceito está ligado à ideia de expectativa, do
inesperado e, o mais importante, de uma aliança, e não uma identidade entre um
grupo de pessoas que não necessariamente tem algo em comum, mas dentre os
quais existe até mesmo algum tipo de suspeita ou antagonismo. O queer, então, é
a proposição de um campo de conexão erótica e política na afirmação da diferença
que não pode ser unificada identitariamente. Butler defende a postura de que “nem
todas as alianças são feitas por amor, mas também para ter o direito de amar”. O
compromisso do viver junto queer é independente das diferenças que muitas
vezes se tornam inconciliáveis na luta afirmativa. O viver junto permanece como
um imperativo ético político. Não quer dizer que desejamos todos a quem estamos
próximos, “alianças são difíceis”, como afirma Butler (Butler, 2015).

“Viver junto” se torna estratégia de resistência, forma de sobrevivência. As


vidas precárias precisam manter vivo o cuidado de si e do outro, como no
exemplo emblemático do documentário Paris is Burning (filmado em meados da
década de 1980 e lançado em 1990), dirigido por Jennie Levingston. O filme é
uma crônica do “ball culture” de Nova York e das minorias sexuais que
participavam e organizavam a cena cultural em questão. Os personagens
retratados são homossexuais e transgêneros latinos e afro-americanos, alguns
extremamente jovens, e a maioria com algum histórico de rejeição familiar, tendo
116

sido expulsos de casa por conta da sua sexualidade ou desidentificação de gênero.


Os balls, focados em performances e desfiles drags, ajudavam a deixar as vidas
desses personagens mais vivíveis, em meio a históricos de traumas, abusos
domésticos, e também pelo isolamento social. O que chama mais a atenção no
documentário de Levingston, além do rico cenário dos balls, é o modo como
aquelas pessoas se organizavam em “casas sociais”, lideradas e cuidadas por
experientes artistas drags, que emprestavam seus nomes artísticos ao título das
casas (e serviam também de sobrenome aos seus moradores): a casa de Labeija,
liderada por Peper Labeija, a Casa Dupree de Paris Dupree, a casa de Corey, e
assim por diante.

Figura 34: Cena de Paris is Burning (1990)

Figura 35: Cena de Paris is Burning (1990)


117

Ironicamente, são os desprivilegiados que podem nos ensinar a viver de


outro modo e a desafiar a individualidade contemporânea, a exemplo do filme
Paris is Burning. As vivências queers podem se tornar uma importante via de
“cura” social, contra a depressão e os ansiolíticos contemporâneos, com suas
alternativas de vida, com o seu “viver junto” singular e político. Me pergunto o
quanto a arte produzida pelas “vidas queers” não podem ajudar a provocar uma
pequena fissura, ou a plantar uma semente de modificação das subjetividades
contemporâneas, para que a vida se torne mais permeável, mais propícia ao
encontro, a “portas abertas” vigilantes, à empatia com o outro? Como a arte queer
pode representar os modos de resistências, ou os espaços de resistência, as vidas
que resistem? São perguntas mais reflexivas, com o intuito de estimular a
imaginação de outras respostas.

No filme Shortbus (2006), de John Cameron Mitchell, um outro bom


estímulo para essa reflexão, temos uma crônica da vivência queer em Nova York
após os atentados de 11 de setembro de 2001. Shortbus é uma comédia erótica e
dramática que gira em torno de personagens com dificuldades de conexão afetiva
e sexual, com cenas de sexo explícito e não simulado.

O filme inicia com uma animação com um plano fechado nos pés de uma
estátua, e depois em sua boca, com o deslizar lento da câmera; abrindo o quadro,
vamos percebendo que se trata da Estátua da Liberdade. A câmera se afasta da
estátua e vemos a cidade de Nova York ao fundo. Então a imagem rapidamente se
desloca para a janela de um apartamento de um dos prédios da cidade, passando a
nos mostrar seu interior, quando a animação dá lugar a um cenário real, de um
homem melancólico sentado nu em uma banheira, com o pênis parcialmente ereto
debaixo d’água, explicitamente visível. O homem pega uma câmera de filmar
portátil e filma seu pênis, passamos a ver a imagem do ponto de vista da sua
câmera, e o líquido amarelo da sua urina saindo lentamente, misturando-se à água
da banheira. A cena migra para o cenário animado da cidade novamente, focando
no marco-zero e no vazio dos destroços do World Trade Center. A imagem real
do marco zero surge na tela, vista através da janela de outro apartamento do qual
logo podemos ver o interior, onde uma mulher com trajes de dominatrix e um
cabelo comprido punk borrifa um dildo vermelho com spray antisséptico. Sentado
em uma poltrona, um rapaz que a observa dá início ao primeiro diálogo do filme:
118

- Você é ativa ou passiva?


- Perdão?
- Quero dizer, na vida real...
- Isso é a vida real.
- Deixa eu perguntar de outra maneira: você acha que deveríamos sair do Iraque?
- Seu pai está pagando por isso?
- Não. Você está tirando uma foto do Marco Zero, você sorri?
[Ela o chicoteia, enfurecida e grita]:
- Vá para a merda da cama! 3

O quadro torna a mostrar o homem que estava na banheira, mas dessa vez
deitado no chão de seu quarto, se masturbando na frente para a câmera presa em
um tripé, e depois levantando as pernas para levar o quadril em direção ao seu
rosto, disposto a fazer um sexo oral em si mesmo. Em seguida vemos um casal
heterossexual transando em outro apartamento: na cama, em cima de um piano,
contra uma porta, ele a penetra, ela o penetra. Todos têm orgasmos ao mesmo
tempo (menos as duas mulheres: a dominatrix e a mulher do casal heterossexual,
como entenderemos através do desenrolar do filme), e as imagens dos
apartamentos se alternam. O rapaz que está com a dominatrix ejacula com força
no quadro que está na parede do quarto, ao estilo Pollock. Ela observa a nova
mancha adicionada à pintura, com um olhar perdido, ao que ele pergunta: “Você
pode descrever o seu último orgasmo?” e ela responde: “Foi ótimo. Foi como se o
tempo estivesse parado e eu estivesse completamente sozinha”.4 Mitchell nos
apresenta cada um dos personagens que acompanharemos através do filme a partir
de suas relações com a sexualidade e o sexo, em cenas de sexo explícito e não-
simulado pelos atores.

3
- Are you a top or a bottom?
- I beg your pardon?
- I mean in real life.
- This is real life.
- Let me put it this way:
- Do you think we should get out of Iraq?
- Is your daddy paying for this?
- No. You're taking a picture of yourself at Ground Zero --
do you smile?
- Get on the fucking bed!
Disponível em <http://www.springfieldspringfield.co.uk/movie_script.php?movie=shortbus>.
Acessado em: 30 de Janeiro de 2016.
4
- Can you describe your last orgasm?
- It was great. It was like time had stopped and I was completely alone.
119

Figura 36: Cena de Shortbus (2006)

Figura 37: Cena de Shortbus (2006)

Figura 38: Cena de Shortbus (2006)


120

O enredo de Shortbus gira em torno de Sofia Lin, a mulher do casal


heterossexual, uma terapeuta de casais em um relacionamento com um homem
chamado Rob. Sofia atende o casal homoafetivo Jamie (ex-ator mirim de série de
TV) e James (um ex-trabalhador sexual), que têm dificuldades sexuais no seu
relacionamento. Após uma sessão de terapia confusa, Sofia revela ao casal que
nunca teve um orgasmo, sendo aconselhada por eles a visitar um local chamado
Shortbus, versão contemporânea e queer dos salões artísticos do início do século
XX. Shortbus tem como hostess Justin Bond, trans não-binária e artista drag. O
espaço é dividido em diversas salas, uma onde há um bar e performances, outra
com exibições de filmes, outra reservada estritamente para questões feministas e
lésbicas, e ainda outra onde acontecem orgias. Sofia conhece a dominatrix,
Severin, enquanto visitava a sala exclusiva às mulheres e revela às presentes sua
dificuldade. Sofia e Severin se tornam amigas e as duas passam a se ajudar em
relação a seus problemas sexuais e afetivos.

Linda Williams, em seu livro Screening Sex (2008), sugere/afirma que a


narrativa de Shortbus funciona como uma contrapartida à utopia do hard-core
pornográfico estadunidense, dando o exemplo de Garganta Profunda (Deep
Throat, 1972), no qual a protagonista, Linda Lovelace, procura um médico por
conta de suas dificuldades em atingir o orgasmo, recebendo o conselho de
descobrir o clitóris em sua garganta. Para Williams o filme de Mitchell expande o
alcance das táticas contra tais dificuldades, incluindo no seu menu de soluções o
sexo lésbico, gay, orgias e S/M, aderindo, portanto, “à noção pornotópica
fundamental de que a solução dos problemas com sexo é mais sexo ou uma
melhor qualidade dele” (Williams, 2008, p. 288). Williams considera que
Shortbus ainda vai além:

Apesar do filme ser inteligente o suficiente para não insultar sua protagonista feminina
identificando qualquer técnica ou filosofia únicas como solução para seu estado pré-
orgásmico, e, apesar de ser muito divertido ao oferecer a Sofia um enorme leque de
conselhos e filosofias contraditórias – desde exercitar os músculos de Kegel à privação
sensorial, da ideia de que o orgasmo representa uma imensa solidão à ideia de que nele
“finalmente não se está só” – sua narrativa, porém, simula a busca pornográfica por
prazer. No entanto, o filme direciona essa busca para um objetivo social mais amplo de
formar uma comunidade de seres “permeáveis”, sem medo. Moldado na típica narrativa
pornográfica, Shortbus, assim, também opera como um corretivo ao isolamento e à
121

fixação dos corpos e das técnicas que a pornografia solitária pode engendrar. (Ibid., p.
288) 5

Logo percebemos que a questão dos personagens em Shortbus passa por


outras esferas além do bloqueio ao orgasmo. James, ex-trabalhador sexual, tem
dificuldades de ser tocado e descobrimos, no decorrer da narrativa, que o vídeo
exibicionista que está produzindo na verdade é uma espécie de carta de despedida
para Jamie, como parte de um plano suicida. Além disso, Ceth, um jovem que
James e Jamie conhecem em Shortbus, e todo o plano de inserir um terceiro
elemento dentro da estrutura do casal, é uma estratégia de James para não deixar o
companheiro sozinho após seu suicídio. Todo o processo vivido por James é
observado de forma obsessiva por um solitário vizinho, que tem o vício de
acompanhar a vida do casal. É ele quem resgata James da sua tentativa de suicídio
na piscina da academia onde trabalha como salva-vidas e deixa o seu telefone
escrito em caneta no rosto de James que, após acordar no hospital, flagra o recado
no espelho. Após receber alta, James se dirige à casa de Ceth, que lhe mostra as
fotos que vinha fazendo de sua janela. Ao ser questionado sobre o inusitado
passatempo:

James: Quando você começou a me observar?

Ceth: Alguns anos atrás. (Constrangido.) Eu trabalho em casa. Sou revisor de textos. Não
tenho TV a cabo. Lembro de ter assistido Jamie cortar seu cabelo. E pareceu muito
interessante. E você sempre foi o meu favorito. Porque você ficava triste.

5
“Though the film is smart enough not to insult its female protagonist by identifying any single
technique or philosophy as the solution to her preorgasmic status, and though it has a lot of fun
offering Sofia a wide range of contradictory advice and philosophy – from the exercise of Kegel
muscles to sensory deprivation, from the idea that orgasm represents immense solitude to the idea
that in it one is “finally not alone” – its narrative nevertheless imitates the pornographic quest for
pleasure. However, it harnesses that quest to the larger social goal of forming a community of
“permeable”, unafraid beings. Modeled on the quintessential pornographic narrative, Shortbus thus
also operates as a corrective to the isolation and fixation on bodies and techniques that solitary
porn can engender.” (Tradução livre)
122

Figura 39: Cena de Shortbus (2006)

O vizinho-voyeur tenta convencer James a voltar para casa, dizendo que


Jamie o ama. James responde: “Eu sei. Eu vejo ao meu redor. Mas para na minha
pele. Eu não consigo deixar entrar. Sempre foi assim. Sempre vai ser assim. Eu
consigo sentir apenas em alguns momentos com Jamie, porque ele me ama tanto.
Ele me ama tanto quanto as pessoas que me trataram mal”. O vizinho então o
beija, ao que James responde: “Eu não posso sentir isso”.

Figura 40: Cena de Shortbus (2006)

O sexo, em Shortbus, nos ajuda a entender a singularidade de cada


personagem, as suas dificuldades de conexão e o medo de se tornarem permeáveis
à penetração do afeto, do toque, do cuidado e do prazer, mas também o seu
esforço para mudar isso. Williams constata que a frase mais citada do filme – “É
123

como os anos 1960, só que com menos esperança” [“It’s just like the sixties only
with less hope”] –, dita por Justin Bond a Sofia, é utilizada para ressaltar o
aspecto cínico da personagem. Mas para Williams essa frase expressa a fé que
Mitchell, o diretor do filme, tem nos ideais utópicos daquela década: “Como
Richard Colings, [colocou, ao criticar] o filme para Tune, Shortbus é ‘tão retrô
que parece reluzente de novo’” 6. (Williams, 2008, p. 289)

Nas últimas cenas de Shortbus, enquanto James consegue finalmente se


entregar sexualmente ao vizinho e ser penetrado pelo afeto, Sofia está atendendo
pacientes em seu consultório e, durante um delírio, se vê em uma praia, deitada
em um banco de praça, onde começa a se masturbar. Ela parece chegar perto do
orgasmo, e a energia do seu prazer faz a energia da cidade se apagar. Essa cena
nos remete imediatamente a um diálogo que Bond e Sofia tiveram no cabaré, no
qual ela disse não conseguir atingir o orgasmo porque tinha algo como se fosse
um coágulo no caminho entre seu cérebro e seu clitóris. Bond respondeu: “Não
pense como um coágulo. Pense como se fosse uma placa mãe conectando energia

Figura 41: Cena de Shortbus (2006)

de todo o mundo que toca em mim, toca em você, que conecta todo mundo, você
só tem que achar a conexão certa, a direção correta”. Quando a luz da cidade se
apaga, após o orgasmo de Sofia, todos se dirigem com velas ao Shortbus. A
energia dispersada de Sofia, antes contida, impedida de sair, flui e permite que os

6
“As Richard Colins, reviewing the film for Tune, put it, Shortbus is ‘so retro, it seems sparkling
new’”. (Tradução Livre)
124

Figura 42: Cena de Shortbus (2006)

outros personagens se tornem finalmente permeáveis – a “placa mãe” finalmente


conecta a energia de todos.

Deve-se notar, no entanto, que esse orgasmo não é o resultado de uma técnica melhor;
antes, é o resultado de uma confiança maior na comunidade para a qual o sexo se torna
uma metáfora. Bond conduz o grupo com uma música de encerramento (“quando começa
seu último suspiro / você encontra seus sonhos, e todos nós chegamos ao fim”). “Chegar
ao fim” é a metáfora sexual para a permeabilidade que irá possibilitar ao filme um final
feliz e aos nova-iorquinos o compartilhamento da esperança revolucionária da perversão
polimorfa que começara nos anos 1960, agora revivida, ao menos momentaneamente, no
bom sentido, imediatamente após a era do 11/9 sob o signo do circuito de uma placa-mãe.
A orgia começa e todos se tornam permeáveis, senão literalmente penetráveis, ou ao
menos abertos e disponíveis. (Williams, 2008, 292) 7

7
“Is to be noted, however, that this orgasm is not the result of better technique; rather, it is the
result of better community and trust for which sex now becomes a metaphor. The MC leads the
group in the finale’s song (“as your last breath begins / you find your dreams, your best friend /
and we all get it in the end”). “Getting in the end is the sexual metaphor for permeability that will
allow the film to end happily and for New Yorkers to have their share of the revolutionary hope of
polymorphous perversity begun in the sixties, now revived at least momentarily in the good
feeling of the immediate post-9/11 era under the sign of the circuitry of a motherboard. The orgy
commences and everyone becomes permeable, if not literally penetrated, then at least open and
avaible.” (Tradução livre)
125

Como é possível se tornar aberto e disponível em um mundo que inspira


medo e dispõe nossos corpos em inúmeras situações de vulnerabilidade? Assim
como os personagens de Shortbus, que vivem em um contexto pós 11 de
setembro, com a ameaça de novos ataques terroristas, com as políticas hostis de
“guerra ao terror”, em uma cidade cada vez mais cara, incerta e hostil às
diferenças, o problema do isolamento afetivo e emocional gera diversas
dificuldades de conexão.

Figura 43: Cena de Shortbus (2006)

Em El Tocar, Jean-Luc Nancy (2011), Jacques Derrida nos traz o


pensamento de Lévinas para trabalhar o conceito de “tenro”, ou “enternecimento”,
nos remetendo à ideia de “ternura”. Pensar essa ternura, segundo Derrida, é focar
em uma paz (que para Lévinas, é a própria ética), “que é buscada mais na ternura
da carícia – ali onde se renunciaria a possuir – que em alguma violência erótica
encarnada no gozo”. Derrida prossegue: “[a] carícia não pode ser encarnada. É
tenra já que não se encarna em agarrar. Não se deixa sequer encarnar pela carne.
Tende muito mais a dar, a tender, a tender ao tenro: toma o que nem eu nem você
possuímos, nem possuiremos nunca. Isso não nos pertencerá em propriedade,
jamais seremos seus donos e possuidores. Dom ou oferenda?”. (Derrida, 2011, p.
143)
126

Trago a citação anterior para ressaltar a importância da ternura para que


Sofia conseguisse chegar ao orgasmo, para que James conseguisse se deixar
penetrar pelo vizinho-voyeur e para que a dominatrix Severin se sentisse feliz no
meio da multidão orgiástica em festa no cabaré na cena final. A ternura conseguiu
permeabilizar esses corpos que antes tinham medo de se deixar oferecer ao outro –
“dar” ao outro ganha a ambiguidade necessária para dar conta do papel do sexo e
do gozo no filme, que não diz respeito à violência erótica de Garganta Profunda.
O gozo em Shortbus não é redutível ao sexo; posso dizer que o gozo é o resultado
de uma capacidade de tocar, no sentido que Derrida desenvolve ainda através de
Lévinas e de Jean-Luc Nancy:

Dizer “tiens”, significar “tiens”, é tender, e dar a “toucher”, a “receber”. Se sugere ao


outro agarrar, e deste modo o receber/o tocar [le toucher], tomando-o sobre si, guardando-
o em si ou junto a si. O mais perto possível. Em um ou ao alcance da mão. Tocá-lo na
proximidade, mais que a visão ou a audição – e próximo [à proximité]. E se os outros dois
sentidos, o paladar e o olfato, também o fazem, é sem dúvida por causa de sua afinidade
com o tato, de sua participação ou sua proximidade com o tato, justamente, no sentido da
proximidade. (Derrida, 2011, pp. 144, 145).

A permeabilidade alcançada pelos personagens na cena final se aproxima


muito do que propõe Butler sobre a precariedade: para nos conectarmos com
qualidade, é necessário que produzamos comunidade, que cuidemos de nós
mesmos e que pratiquemos uma vivência ética. Ainda, a comunidade queer
produzida no cabaré Shortbus, no filme homônimo de Mitchell, é bem próxima
disso que Butler define como queer, como destaquei no início desse capítulo: o
queer como uma aliança que leve em conta as diferenças e até antagonismos, e
não a unidade. Talvez esteja aí a verdadeira utopia de Shortbus, e seu adendo ao
ideário de liberdade sexual e comunitário dos anos 1960. A utopia de 2006, em
um mundo de poucas esperanças, é a inserção dos excluídos por aquela primeira
revolução dos anos sessenta como protagonistas dessa comunidade utópica: as
minorias étnicas (Sofia é sino-canadense, por exemplo), as minorias de gênero,
sexuais e de classe. O que Shortbus nos proporciona talvez seja da ordem do
afeto, de uma hipótese de “cura” pelo afeto, que torna os corpos permeáveis no
grand finale da história.

A “utopia queer” encenada em Shortbus altera a nossa concepção clássica


do conceito de utopia. Não se trata de uma convocação à paz, ou à simples
pornotopia orgiástica que tem como objetivo a liberdade sexual, mas a uma
profunda transformação nas relações interpessoais, na construção de um “espaço-
127

lar”, onde a vida pulsa e os encontros são possíveis. Shortbus reorganiza a


arquitetura da cidade através desse lugar-fora-do-lugar, um lugar que não tem uma
função específica de diversão, como os bares tradicionais ou casas de swing. Na
cena orgiástica do final do filme, todos fazem parte da vida de alguém de maneira
bastante transformadora, todos foram atravessados, conheceram alguém que os
tocou, conheceram o “tenro” do toque, e produziram empatia e um novo senso de
comunidade dentro da Nova York traumatizada e acuada pelo discurso
republicano da “guerra ao terrorismo”.

5.1
Utopia queer e outros modos de viver junto

O livro Crusing Utopia: The Then And Now of Queer Futurity, de José
Esteban Muñoz, é iniciado com a emblemática frase “Queerness is not yet here”,
demarcando uma potencialidade em uma negação estratégica do “aqui e agora” e
visionando uma concreta possibilidade de um outro mundo (Muñoz, 2009, p. 1).
Logo em seguida, Muñoz explica que embora seu livro seja significativamente
influenciado pelo pensamento da tradição idealista alemã, como os trabalhos de
Immanuel Kant e George Wilhelm Hegel, além dos filósofos da Escola de
Frankfurt, Theodor Adorno, Walter Benjamin e Herbert Marcuse, quem mais
influenciou Crusing Utopia foi Ernest Bloch.

A importância do pensamento de Bloch para as formulações de uma


futuridade queer em Cruising Utopia, vem dos três volumes do tratado filosófico
The Principle of Hope (1954, 1955 e 1959, respectivamente), no qual o pensador
alemão explora a ideia de utopia estudando todas as suas formas, inclusive nas
artes, no social, na literatura, na tecnologia, na medicina e ainda as utopias
geográficas. Para Muñoz, a utilidade do pensamento de Bloch, apesar de seus
posicionamentos não muito progressistas no que diz respeito às questões
referentes à sexualidade e ao gênero, tem a ver com sua teorização da utopia:

Ele faz uma distinção crítica entre as utopias abstratas e as utopias concretas, apreciando
as utopias abstratas somente quando exercem uma função crítica, que alimenta e
potencializa uma imaginação política transformadora. Para Bloch, as utopias abstratas
vacilam porque elas são desconectadas de qualquer consciência histórica. Utopias
concretas são relacionadas às lutas historicamente situadas, uma coletividade que é real
ou potencial. Na nossa vida cotidiana, as utopias abstratas são semelhantes ao otimismo
128

banal. (Recentes conclamações para um otimismo gay e queer parecem relacionadas a


uma evasão da elite homossexual das políticas). Utopias concretas podem também ser
como sonhar acordado, mas elas são as esperanças de uma coletividade, um grupo
emergente, ou até mesmo do excêntrico solitário que sonha por muitos. (Muñoz, 2009, p.
3) 8

Segundo Muñoz, o pensamento de Bloch sobre a utopia nos oferece a


esperança como hermenêutica, ajudando-nos a combater o pessimismo político
contemporâneo. Vivemos em um momento antiutópico, no qual existe um medo
tanto da esperança quanto da utopia, já que a esperança e a utopia podem ser
desapontadoras. No entanto, Muñoz aposta na insistência de Bloch de que sim, a
esperança pode desapontar, mas é necessário pôr em risco esse desapontamento, já
que o pessimismo político precisa ser deslocado através de uma certa reanimação
afetiva. (Ibid., p.p 4 - 9).

A crítica de Muñoz se dirige a uma agenda política de gays brancos e


financeiramente privilegiados, focada em um aqui e agora e no pragmatismo – o
casamento igualitário e as lutas pela aceitação de gays e lésbicas no exército
norte-americano, por exemplo. Há um desejo, segundo Muñoz, de gays e lésbicas
serem “ordinários” e casados. Esses desejos findariam em si mesmos, nunca
imaginando um “não-ainda-consciente” (not-yet-conscious), e seriam o sintoma
de uma “anemia política do presente”. A agenda política pragmática de gays e
lésbicas está, portanto, em oposição a um pensamento idealista que Muñoz
associa como endêmico “a um estilo queer nascente que invoque por um ainda-
não-consciente a serviço de imaginar uma futuridade [...] O ainda-não-consciente
é o reino da potencialidade que deve ser invocada e insistida, se estivermos
sempre a olhar além da pragmática esfera do aqui e agora, do oco do presente”
(Ibid., p. 21) 9.

8
“He makes a critical distinction between abstract utopias and concrete utopias, valuing abstract
utopias only insofar as they pose a critique function that fuels a critical and potentially
transformative political imagination. Abstract utopias falter for Bloch because they are untethered
from any historical consciousness. Concrete utopias are relational to historically situated struggles,
a collectivity that is actualized or potential. In our everyday life abstract utopias are akin to banal
optimism. (Recent calls for gay or queer optimism seem too close to elite homosexual evasion of
politics). Concrete utopias can also be daydreamlike, but they are the hopes of a collective, an
emergent group, or even the solitary oddball who is the one who dreams for many.” (Tradução
livre)
9
“to a forward-dawning queerness that calls on a no-longer-conscious in the service of imagning a
futurity. [...] The not-quite-conscious is the realm of potentiality that must be called on, and
insisted on, if we are ever to look beyond the pragmatic sphere of the here and now, the hollow of
the present”. (Tradução livre)
129

Munõz também produz seu pensamento sobre a utopia fazendo algumas


considerações críticas em relação ao chamado “movimento anti-relacional da
teoria queer” [“antirelational move in queer theory”] ou, como também é
conhecido, o “giro antissocial dos estudos queers” [“anti-social turn in queer
studies”]. O giro antirrelacional da teoria queer foi produzido sob influência da
definição de Leo Bersani sobre o sexo, como anti-comunitário, auto-destrutivo e
anti-identitário, como aponta Judith Halberstam na sua conferência “The Anti-
Social Turn in Queer Studies” (2008): “Ao invés de uma pulsão de vida que liga o
prazer à vida, sobrevivência e futuridade, sexo, e particularmente homossexo e
sexo receptivo, é uma pulsão de morte que dissolve o ego, libera o ego da
compulsão da coerência e da finalidade; o valor da sexualidade, ele mesmo,
escreve Bersani, ‘é para destituir a seriedade dos esforços para redimi-lo’
(Bersani. 1997: p. 222).” (Halberstam, 2008, p.140) 10

Outra grande contribuição para o giro anti-relacional (e, segundo


Halberstam, talvez a mais controversa) aos estudos queers, foi o livro No Future
(2005), de Lee Edelman. O livro descreve a rejeição do futuro e a pulsão de morte
como forças propulsoras da crítica queer, com o objetivo de se opor ao que é
denominado como “esperança heteronormativa”, que está implicada na maioria
dos projetos políticos contemporâneos. “O sujeito queer, ele argumenta, foi
compelido epistemologicamente à negatividade, ao nonsense, à anti-
produtividade, à ininteligibilidade e, em vez de lutar contra essa caracterização,
reconhecendo a sua estranheza [queerness], ele propõe que nós abracemos a
negatividade que de qualquer maneira nós estruturalmente representamos.”
(Halberstam, 2008, p. 141) 11

A crítica de Muñoz ao giro anti-relacional leva em conta que a celebração


da negação está pautada em uma lógica binária de oposição. Tanto para Muñoz,
em Cruising Utopia, quanto para Halberstam, o mais interessante seria pensar em

10
“Rather than a life-force connecting pleasure to life, survival and futurity, sex, and particularly
homo-sex and receptive sex, is a death drive that undoes the self, releases the self from the drive
for mastery and coherence and resolution; the value of sexuality itself”, writes Bersani, “is to
demean the seriousness of efforts to redeem it”” (Tradução livre)
11
“The queer subject, he argues, has been bound epistemologically, to negativity, to nonsense, to
anti-production, to unintelligibility and, instead of fighting this characterization by dragging
queerness into recognition, he proposes that we embrace the negativity that we anyway structurally
represent.” (Tradução livre)
130

uma negatividade radical, que seria uma negação da negação, como aponta
Muñoz (2009, p. 13), ou uma anti-anti-utopia, como aponta Halberstam (2008, p.
153), ou seja, uma forma de lidar com a negatividade de um modo diferente dos
teóricos queers anti-relacionais. Assim o negativo se torna “o recurso para uma
certa forma de utopia queer” (Muñoz, 2009, p. 13).

A utopia queer não teria um sujeito unificado, como observamos no


exemplo de Shortbus, mas também não se colocaria em oposição aos movimentos
identitários e afirmativos. No caso, penso que a utopia queer que Muñoz propõe,
em oposição às lutas dos homossexuais pelo casamento civil igualitário, e ao giro
anti-relacional da teoria queer, está muito bem relacionada com a ideia de uma
“multidão queer”, proposta por Beatriz Preciado em seu ensaio “Multidões queer:
notas para uma política dos ‘anormais’” (2011), a partir das ideias de Maurizio
Lazzarato de “potência de vida” e de “multidão” em Negri. Preciado afirma que a
rejeição de Foucault à identidade e ao ativismo gay, a exemplo das considerações
que o pensador francês faz na entrevista “Da amizade como modo de vida”
(1981), “leva-lo-á a forjar uma retroficção à sombra da Grécia Antiga” (Preciado,
2011, p. 13) a ainda:

É preciso evitar a segregação do espaço político que faria da multidão queer um tipo de
margem ou de reservatório de transgressão. Não precisamos cair na armadilha da leitura
liberal ou neoconservadora de Foucault que nos levaria a pensar as multidões queer em
oposição às estratégias identitárias, tendo a multidão como uma acumulação de
indivíduos soberanos e iguais perante a lei, sexualmente irredutíveis, proprietários de
seus corpos e reinvindicando seus direitos ao prazer inalienável. A primeira leitura
objetiva uma apropriação da potência política dos anormais numa ótica do progresso; a
segunda ignora os privilégios da maioria e da normalidade (hetero)sexual, não
reconhecendo que essa última é uma identidade dominante. É preciso admitir que os
corpos não são mais dóceis. “Desidentificação” (para retomar a formulação de De
Lauretis), identificações estratégicas, desvios das tecnologias dos corpos e
desontologização do sujeito da política sexual são algumas das estratégias políticas das
multidões queers. (Preciado, 2011, p. 15)

Uma multidão queer utópica nos levaria a pensar um espaço de ação


estratégica, no qual diversos sujeitos, seja através das suas estratégias de
“desidentificação”, ou através das suas identificações estratégicas, fariam
reapropriações e desvios dos discursos do poder, seja ele da medicina anatômica,
da pornografia (como o faz Mitchell em Shortbus, por exemplo), entre outros.
Preciado defende que esses corpos da multidão queer seriam os “drag kings, as
sapatões, as mulheres de barba, os transbicha sem pau, os deficientes-ciborgue”.
131

Mas Shortbus, cujo nome vem dos ônibus escolares menores, reservados para
alunos “fora da norma” ou “especiais” nos E.U.A., nos mostra que para
construirmos uma multidão queer precisamos ir além, precisamos abarcar
mulheres e homens heterossexuais com práticas sexuais desviantes – as pré-
orgásmicas, as dominatrixs, os homens com práticas S/M etc. É preciso
interseccionalizar o pensamento queer para enxergarmos que as oposições binárias
do patriarcado constroem singelas hierarquias para as quais precisamos ser
sensíveis. A multidão queer seria composta então por sujeitos que fazem uma
“reapropriação dos discursos de saber/poder sobre o sexo” (Preciado, 2011, p. 16)
e, além disso, que também se reproporiam das organizações arquiteturais sexuadas
das cidades modernas e da temporalidade heterocrononormativa.

Ao contrário dos teóricos antirrelacionais que negam o futuro, Muñoz


critica a lógica temporal heteronormativa e clama por um futuro que não é o
futuro da nação, ou o da lógica reprodutiva, mas o “ainda-não-consciente” (not yet
conscious), uma potencialidade que deve ser clamada. Nós devemos insistir nessa
potencialidade, olhando para além da pragmática espera do aqui e agora, o que
para Muñoz seria o “vazio do presente” (Muñoz, 2009, p. 21).

Em seu livro Time Binds: Queer Temporalities, Queer Histories (2010),


Elizabeth Freeman se refere ao tempo como algo que, na modernidade, passou a
organizar os corpos para uma produtividade máxima. O modo como o tempo
opera sobre os corpos é o que Freeman chama de crononormatividade. A
crononormatividade seria, então, em sua definição, “um modo de implantação,
uma técnica pela qual forças institucionais são percebidas como fatos somáticos.
Horários, calendários, fusos, relógios de pulso inculcam o que a socióloga Evitar
Zerubavel chama de ‘ritmos ocultos’, formas da experiência temporal que
parecem naturais para aqueles aos quais elas privilegiam” (Freeman, 2010, p. 3)
12
. As pessoas também se sentem ligadas umas às outras, ou agrupadas, sob o que
Freeman chama “uma particular orquestração do tempo”, o que, segundo ela,
Dona Luciano designa em seu livro Arranging Grief (2007) como

12
“Chrononormativity is a mode of implantation, a technique by which institutional forces come to
seem like somatic facts. Schedules, calendars, time zones, and even wristwatches inculcate what
the sociologist Evitar Zerubavel calls ‘hidden rhytms’, forms of temporal experience that seem
natural to those whom they privilege”. (Tradução livre)
132

cronobiopolítica, ou “‘o arranjo sexual do tempo e da vida’ de populações


inteiras” (Ibid., p. 3)

A rotina da casa seria então, de acordo com Freeman, o tempo natural,


uma espécie de “estado de inocência”, o local onde o tempo liga as pessoas “de
volta” à “natureza”. A mulher, nessa lógica hetero-crono-normativa, seria o
símbolo de um tempo que não é só sequencial, mas cíclico, seria a figura que
“suplementa a historicidade específica do Estado-nação com apelos à natureza e à
eternidade” (Ibid., p. 5) 13. O espaço da rotina doméstica, encarnado na figura da
mulher citada por Freeman, teria a função de restaurar o homem trabalhador para
que, no dia seguinte, ele pudesse voltar restaurado à sua rotina de trabalho e ao
tempo mecânico da produtibilidade (Ibid., p. 5) 14.

Na modernidade, onde há norma, há resistência e disrupção, como já


sabemos. Por isso, no arranjo sexual do tempo, existem os dissidentes sexuais, que
produzem e são portadores de novas sensações corporais, como afirma Freeman,
além de serem um contraponto entre o “agora” (“now”) e o “depois” (“then”),
como também para a lógica crononormativa da produtividade e da reprodução dos
corpos sexuados. “Nesse sentido, o corpo ‘perverso’ Freudiano se torna um
cenário e um catalizador para o encontro e para a redistribuição do passado”
15
(Ibid., p. 8) . Redistribuindo a temporalidade crononormativa, abrimos espaço
para uma anti-anti-utopia, e para um “depois” que se opõe ao pessimismo político
do “agora” problematizado por Muñoz.

O espaço heterotópico de Shortbus – o cabaré do filme homônimo –,


produz uma fissura no “vazio do presente”, preenchendo-o com fantasia e
potencialidade do desejo, que reorganiza o porvir. A incapacidade de Sofia atingir
o orgasmo e a dificuldade de conexão afetiva e sexual dos personagens é um
sintoma desse presente vazio e solitário do mundo contemporâneo. Freeman nos
13
“[...] the figure of women supplements the historically specific nation-state with appeals to
nature and eternity”. (Tradução livre)
14
Freeman diz: “Luciano dates a particularly Anglo-American version of this arrangement to the
early nineteenth century, when ‘separate spheres’ where above all temporal: the repetitions and
routines of domestic life supposedly restored working men to their status as human beings
responding to a ‘natural’ environment, renewing their bodies for reentry into the time of
mechanized production and collective national destiny”.
15
“In this sense, the ‘perverse’ Freudian body itself became the scene of and catalystic for
encountering and redistribution the past.” (Tradução livre)
133

traz a reflexão de Jameson em seu livro The End of Temporality, para nos mostrar
que “a heterogeneidade temporal [da modernidade] foi substituída pela
instantaneidade da Internet, dos celulares, e da pressa, e ‘parece claro o bastante
que quando você não tem nada além do seu próprio presente temporal, segue-se
que você não tem nada a deixar além do seu próprio corpo’” (Freeman, 2010, p.
11).

Os personagens de Shortbus formam uma cultura da multidão queer à


margem da traumatizada Nova York, que se protege do medo que os eventos do
11 de setembro provocaram através da recusa da diferença encarnada nas políticas
de “guerra ao terror” de George W. Bush e a consequente fobia a tudo o que não
era “ocidental” e familiar. O cabaré funciona como um espaço que poderíamos
chamar de heterotópico, um espaço de uma utopia concreta, que produz uma outra
realidade, o que Michel Foucault também denomina, em seu ensaio “As
Heterotopias”, publicado no Brasil no livro O corpo utópico, as heterotopias
(2014), de contra-espaços, ou “espaços absolutamente outros” (Foucault, 2014, p.
21), que se opõem aos espaços cotidianos e normativos.

A noção de coletividade construída pelos personagens que antes tinham


dificuldades de se conectar afetivamente é produzida graças a uma noção de um
“nós” que é diferente do “nós” das políticas identitárias. A coletividade em
Shortbus se aproxima, portanto, do que Muñoz chama de um “nós” que fala para
uma lógica da futuridade que não é a do progresso, mas de um “ainda não
consciente”, “uma sociedade futura que está sendo invocada e endereçada no
mesmo momento” e onde as particularidades de raça, gênero, idade, preferência
sexual, “não são coisas em si mesmas que formam esse ‘nós’”, o que não quer
dizer que esse nós vai “além de tais distinções ou [é formado] devido a essas
diferenças, mas, em vez disso, ao lado delas. Isso quer dizer que o campo da
possibilidade utópica é um no qual múltiplas formas de pertencimento na
diferença aderem a um pertencimento na coletividade” (Muñoz, 2009, p. 20) 16.

16
“This ‘we’ does not speak to a merely identitarian logic but instead to a logic of futurity. The
‘we’ speaks to a ‘we’ that is ‘not yet conscious’, the future society that is being invoked and
addressed at the same moment. The we is not content to describe who is collective is but more
nearly describes what the collective and the larger social order could be, what it should be. The
particularities that are listed – ‘race, sex, age or sexual preferentes’ – are not things in and of
themselves that format this ‘we’; indeed the statement’s ‘we’ is ‘redardless’ of these markers,
134

A noção de queer com a qual Muñoz inicia seu livro, defendendo,


estrategicamente, que “nós nunca fomos queers”, em uma evidente alusão ao livro
de Bruno Latour (1994), Jamais fomos modernos, é a coletividade e o “nós”
presentes em Shortbus, que pode sentir um “horizonte imbuído com
potencialidade”. Para existir o “nós” construído ao lado das diferenças, é
necessária uma atitude queer que sinta que o mundo não é o bastante e que, além
disso, algo está faltando – em Shortbus, algo falta a todos os personagens: afeto,
prazer, gozo, permeabilidade. A heterotopia, por isso, não funciona como uma
forma de escapar da realidade, o que acontece no cabaré heterotópico atravessa as
vidas das personagens e as leva na direção de uma potencialidade, de algo em
direção do futuro, insistindo em um outro modo de existência onde o que falta a
essas vidas é possível de existir.

Quando Justin Bond, personagem de Shortbus, diz à Sofia a frase que


permeou esse texto, “É como os anos 1960, só que com menos esperança” [“It’s
just like the sixties only with less hope”], não quer dizer que menos esperança é
falta de esperança. Nem que o espaço para o otimismo e a utopia são
incompatíveis com o espaço do cabaré e com o tipo de coletividade ali produzido.
O otimismo presente em Shortbus é perto daquele que Halberstam, em seu livro
The Queer Art of Failure (2011) vê no filme Little Miss Sunshine (2006, dirigido
por Jonathan Dayton e Valerie Faries), que conta o périplo de uma família
desajustada que leva a caçula da família de Kombi para um concurso infantil de
beleza. Para Halberstam, o Little Miss Sunshine nos ajuda a olhar pela perspectiva
do “perdedor em um mundo interessado apenas nos vencedores”, produzindo um
novo tipo de otimismo: “Não um otimismo que depende de um pensamento
positivo como um motor explicativo da ordem social, nem aquele que insiste no
lado brilhante das coisas a todo custo; mas nesse pequeno raio de luz solar que
produz luz e sombra em igual medida, e sabe que o significado de um depende
sempre do significado do outro.” 17

which is not to say that it is beyond such distinctions or due to these differences but, instead, that it
is beside them. This is to say that the field of utopian possibility is one in which multiple forms of
belonging in difference adhere to a belonging in collectivity”. (Tradução livre)
17
“[...] a new kind of optimism is born. Not an optimism that relies on positive thinking as an
explanatory engine for social order, nor one that insists upon the bright side at all costs; rather this
is a little ray of sunshine that produces shade and light in equal mesure and knows that the
meaning of one always depend upon the meaning of the other.” (Tradução livre)
6
Considerações finais

Eu nomeio de potentia gaudendi ou “força orgásmica” a potência


(atual ou virtual) de excitação (total) de um corpo. [...] [Essa força]
não privilegia um órgão em relação a outro: o pênis não possui
vantagem de força orgásmica sobre a vagina, o olho ou o dedo do pé.
A força orgásmica é a soma da potencialidade de excitação inerente a
toda molécula vivente. [...] A força orgásmica não procura a sua
resolução imediata, ela não aspira a se desdobrar no espaço e no
tempo, sobre tudo e todos, em todos os lugares e a todo momento. É
uma força de transformação do mundo em prazer-com.

(Beatriz Preciado)1

Segundo Beatriz Preciado, em seu artigo “Multidões queer: notas para uma
política dos anormais” (2011), nos anos 1950, assistimos a uma ruptura do regime
disciplinar do gênero, não estamos mais em um regime de encarceramento das
sociedades disciplinares sobre as quais descreve Michel Foucault em seus
trabalhos sobre o poder e a coerção. Nesta década, com John Money e suas
cirurgias de normalização dos corpos de crianças intersexo, observamos o
surgimento de tecnologias médicas e cirúrgicas que modificam os paradigmas da
normalização e cerceamento dos corpos sexuados. Preciado afirma que o “‘pós-
moneísmo’ é para o sexo o que o pós-fordismo é para o capital” e que “O Império
dos Normais, desde os anos 1950, depende da produção e da circulação em grande
velocidade do fluxo de silicone, fluxo de hormônio, fluxo textual, fluxo das
representações, fluxo de técnicas cirúrgicas, definitivamente, fluxo dos gêneros”.
Ela acrescenta que o conceito de “gênero” é, portanto, uma noção “sexopolítica”,
antes mesmo de se tornar uma ferramenta do feminismo (Preciado, 2011, p. 13). É
nos anos 1950, portanto, que as normas de gênero passam a agir não só em seu

1
« Je nomme potentia gaudendi ou ‘force orgasmique’ la puissance (actuelle ou virtuelle)
d’excitation (totale) d’un corps. […] Elle ne privilégie pas un organe par rapport à un autre : le
pénis ne possède pas davantage de force orgasmique que le vagin, l’œil ou le doigt de pied. La
force orgasmique est la somme de la potentialité d’excitation inhérente à toute molécule vivante.
La force orgasmique ne cherche pas sa résolution immédiate, elle n’aspire qu’à se déployer dans
l’espace et le temps, vers tout et vers tous, en tous les lieux et à tout moment. C’est une force de
transformation du monde en plaisir-avec » (Preciado. Testo Junkie : Sexe drogues et biopolitique,
2008, pp. 38-39. Tradução livre)
136

domínio disciplinar, mas a partir de múltiplas tecnologias biopolíticas. O corpo


straight, considera Preciado, “o produto de uma divisão do trabalho da carne”
(Ibid, p. 12). O corpo heterossexual se torna, então, um corpo territorializado.

Homem versus mulher, masculino versus feminino, público versus


privado. A cavidade vaginal, e toda a significação do feminino – em todas as suas
manifestações – se torna a casa, o abrigo, o doméstico, o puro, o intocado, o
acolhedor, o que se volta para dentro, o frágil. O masculino o obelisco, a avenida,
o carro em alta velocidade, os músculos que saltam, a ereção, o que sai, se
aventura, o que não chora, a guerra. Mas é necessário ter em conta que “o gênero
não é o efeito de um sistema fechado de poder nem uma ideia que recai sobre a
matéria passiva, mas o nome do conjunto de dispositivos sexopolíticos (da
medicina à representação pornográfica, passando pelas instituições familiares) que
serão o objeto de uma reapropriação pelas minorias sexuais”. É o que Preciado
denomina de uma “ofensiva dos anormais” (Preciado, 2011, p. 14).

O corpo abjeto toma de assalto às tecnologias sexopolíticas e passa a


fabricar espaços híbridos de prazer e gozo que desafiam o dentro e o fora,
espaços que não são mais constituídos pelo princípio da proteção do “externo”,
dos monstros sexuais que podem abalar a estrutura da família heteronormativa, e
que impediriam qualquer intrusão no reino da normalidade. Os espaços
produzidos pelos anormais são porosos, os corpos são ao mesmo tempo fora e
dentro, acolhedores e violentos. Podemos ilustrar isto através da ideia da lésbica
com o pau-prótese, ou strap-on.

No trabalho da artista e militante francesa Virginie Jourdain, o corpo


lesbo-feminista borra as fronteiras entre público e privado, masculino e feminino,
através de performances que jogam com ferramentas tradicionalmente restritas ao
saber médico. Segundo Jourdain, em entrevista concedida à revista Inter Actuel –
Sexes à-bras-le-corps (2012), é parte do trabalho dos artistas fabricar imagens, e
essas imagens influem sobre a nossa percepção do real. Em uma de suas
instalações / performances, exemplo em urinoirE, femme fonainte (2010 – figuras
1 e 2), ela confecciona um objeto de louça que se assemelha ao mesmo tempo um
instrumento culinário e médico, que é utilizado para fazer escorrer a urina através
de dois direcionamentos. O jato de urina, normalmente associado ao homem – e,
137

com o argumento de ter um órgão “externo”, “público”, o ato de urinar do homem


é normalmente ostentado e tolerado nas ruas –, é ressignificado através dessa
“mulher-fonte” que, através da prótese de louça, urina não em um forte jato, mas
dois:

Figura 44: Jourdain, urinoirE, femme fonainte, 2010 Figura 45: Jourdain, urinoirE, femme fonainte, 2010

Jourdain, ainda na mesma entrevista, argumenta que “jogando com as


normas, nós nos liberamos, se quisermos falar em termos de liberação.
Efetivamente, é uma liberação; é o mesmo regozijo de ver como é fácil romper
com os limites do público com um pedaço de corda. É como a estratégia de
apontar o dedo para a farsa da heteronormatividade e o que a faz legítima. Tudo
isso pode se esvair como um castelo de cartas” 2.

2
« En jouant avec les normes, on s’en libère, si tu veux parler de libération. Effectivement, c’est
une libération; c’est même parfois jubilant de voir comme il est facile de casser les limites du
public avec des bouts de ficelle. C’est une stratégie comme une autre pour pointer du doigt la
mascarade constitutive de l’héteronormativité et ce qui le rend légitime. Tout ça peut tomber
comme un châteu de cartes. » (Tradução livre)
138

Já em seus desenhos, um trabalho mais afetivo, íntimo, Jourdain retrata o


universo doméstico lésbico, ou como ela denomina transpédégouine3. Neste
território, geralmente restrito ao quarto, temos a produção de imagens do desejo e
da sexualidade “sapatão”, que se tornam públicos, ao serem emoldurados e
expostos. O gesto queer de Jourdain é o de atravessar as fronteiras
heteronormativas tanto no desejo que registra nas suas ilustrações, quanto em
transformar estes mesmos registros em algo acessível, e que penetram outras
esferas públicas e privadas. São como que segredos revelados – repletos de dildos,
fist-fucking, bondage, onde o sexo não é necessariamente genital (ou, como ela
mesma argumenta: a vagina por vezes não serve para nada em seus desenhos).

Figura 46: Desenho de Virginie Jourdain

A preferência pela prótese em seus desejos, é sintoma da “falha queer” e


da sua potência de reajustar os limites da heteronormatividade se apropriando das
suas tecnologias. Quando as transpédégouines se apropriam do dildo, o “primo”
do vibrador criado pela psiquiatria para tratamento da histeria, tornamo-nos
ciborgues, tal como Donna Haraway o define em seu Manifesto Ciborgue (2009).
3
Termo aglutinador das palavras “trans”, “bicha” e “sapatão”, utilizado em algumas ocasiões
como alternativa ao termo “queer”, por sua dificuldade de tradução.
139

Haraway vê nesse conceito uma possibilidade de saída do labirinto dos dualismos:


“trata-se não de um sonho de uma linguagem comum, mas de uma poderosa e
herética heteroglossia”4. Ele vive ao mesmo tempo de um lado e de outro da
fronteira que ainda separa o que é máquina do que é organismo. Eles são seres
compostos por “implantes, transplantes, enxertos, próteses, seres portadores de
órgãos “artificiais”. (...) Estados “artificialmente” induzidos. (...) Seres
“artificiais” que superam, localizada e parcialmente (por enquanto), as limitadas
qualidades e as evidentes fragilidades do humano”, como afirma Tomaz Tadeu da
Silva no texto introdutório do livro de Haraway5. Para Haraway, entretanto, “o
principal problema com os ciborgues é, obviamente, que eles são filhos ilegítimos
do militarismo e do capitalismo patriarcal”. E estes filhos ilegítimos são
extremamente infiéis às suas origens.6

Os filhos ilegítimos criam objetos que redistribuem as fronteiras da casa-


prótese heterocapitalista. A família falha. Em outra instalação, “FAmILLE,”
(2013) de Jourdain, temos letras em néon que apagam bem na letra M de
“famille”, transformando-a em “faille” – “família” e “falha” em francês,
respectivamente:

Figura 47: Desenho de Virginie Jourdain

4
Haraway, 2009, 99
5
Da Silva, 2009, p. 12
6
Haraway, 2009, p. 40
140

Figura 48: Jourdain, “FAmILLE”, 2013 (Instalação)

Além do dildo, nos desenhos de Jourdain também observamos o desejo se


expandir para além do “casal”, por vezes temos diversas gouines em uma só
imagem, tocando-se, trepando, expressando os seus desejos através da apropriação
de diversas práticas sexuais não-normativas. A sexualidade, o afeto, o estar junto
é fabricado criativamente, coletivamente, de forma prazerosa. Temos a
constituição de um “lar” pornográfico, que nos mostra que as vidas precárias
transformam a “dor” da vulnerabilidade em potência de vida, em deleite – e
através da reinterpretação das tecnologias políticas: a cama, a casa, o lar, a
141

família. Nada disso é descartado, os limites são apenas transpostos, deslocados,


por vezes redirecionados.

Criam-se novos espaços. O corpo queer se espalha pela geografia, pela


arquitetura. São vivências que jogam com os muros – as barreiras, além de serem
transponíveis, também se tornam matéria-prima das heterotopias, da criação.
Trepa-se no muro – existem dildos que aderem às paredes e fazem delas
superfícies prostéticas, produtoras de prazer. A casa, antes só proteção, é também
tesão, criação, superfície sensível. É um espaço que se produz enquanto acontece,
que está em constante produção. O lar e a casa: cria-se, regozija-se, pratica-se, em
vistas de um “porvir” – “nós nunca fomos queers” (we have never been queer),
como nas palavras de José Esteban Muñoz em Cruising Utopia: The Then and
There of Queer Futurity (2009). A falha queer da família e do lar se tornam dor e
possibilidade – possibilidade de algo novo, de algo que ainda não está aqui, de
algo que ainda está/estamos em vias de ser.

Apresenta-se então a ambivalência da casa: ao mesmo tempo em que é um


espaço utilizado para conduzir o fluxo dos corpos de acordo com os seus papéis
sexuais e de gênero – chegando ao ponto de não comportar, no caso da família
heteronormativa, o filho homossexual –, é também utilizada como ferramenta de
disrupção das normas. O trauma do jovem queer, que se encontra em uma
contingência precária através da tentativa de normatização pelos pais e rejeição do
seio familiar, tem a potência transformar o trauma em dispositivo da criação, ao
invés de simplesmente patologizar a sua existência.

As vivências queers constroem, através de registros de memória e


arquivos, outras significações para a ideia de lar, família e casa. Recuperando o
passado “recalcado” das vivências que precisaram se invisibilizar no passado –
mantendo fotografias, cartas e outras materialidades mnêmicas dentro do armário
– os artistas queers afetam o presente, dando às vidas minoritárias a possibilidade
de terem referências múltiplas para além dos modos de existir normativos.

O estar junto, para os modos de vida queer, torna-se necessário e político.


Uma rede. A vulnerabilidade faz com que a produção de coletividade e de novos
modos de cooperação seja a via indispensável de tornar a vida respirável e vivível.
142

No entanto, este “estar junto” não é aquele das grandes unificações das políticas
identitárias – apesar de reconhecer a relevância das identidades políticas
estratégicas –, mas aqui se trata de um “nós” que ainda está sendo endereçado
através de suas múltiplas conexões eróticas, tendo em conta, além disso, como
alerta Judith Butler em sua conferência “Rethinking Vulnerability And
Resistance” (2015), que nem sempre estaremos inseridos neste “nós” porque nos
amamos, mas para podermos ter a possibilidade amar e de criar outras formas de
existir para além do ordinário e do possível.
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em 16 de março de 2016.

Filmografia:

The Watermelon Woman. Direção: Cheryl Dunye. Co-Produção: Dancing Girl.


Filadélfia/Estados Unidos, 5 março de 1996. 90 min. Son, Col, Formato: 16mm.
Shortbus. Direção: John Cameron Mitchell . Co-Produção:
THINKFilm, Fortissimo Films, Q Television. Nova Yorque/Estados Unidos,
2006. 101 min. Son, Col, Formato: 16mm e 35mm.
Sebastiane. Direção: Derek Jerman; Paul Humfress. Co-Produção:
Cinegate, Disctac, Megalovision. Inglaterra, 1976. 86 min. Son, Col, Formato:
16mm e 35mm.
Jubilee. Direção: Derek Jarman. Co-Produção: Whaley-Malin
Productions, Megalovision. Inglaterra, 1978. Son, Col, Formato: 35mm.
Studio Bankside. Direção: Derek Jarman. Inglaterra, 1971. 6 min. Son, Preto e
Branco, Super 8.
The Art of Mirrors. Direção: Derek Jarman; Guy Ford. Inglaterra, 1973. 6 min.
Son, Col, Formato: Super 8.
Sloane Square: A Room of One's Own. Direção: Derek Jarman. Inglaterra,
1976. 9 min. Son, Preto e Branco, Formato: Super 8.
Jordan’s Dance. Direção: Derek Jarman. Inglaterra, 1977. 12 min. Son, Col,
Formato: Super 8.
Paris is Burning. Direção: Jennie Levingston. Co-Produção: Art Matters
Inc., Edelman Family Fund, Miramax. Nova Yorque/Estados Unidos, 1990. 71
min. Son, Col, Formato: 16mm e 35mm.
Óstia. Dirigido por Julian Cole. Inglaterra, 1988. 26 min. Son, Col, Formato: Não
especificado.

Artes Dramáticas:

Domínio do Escuro. Direção/Dramaturgia: Juliana Pamplona. Rio de Janeiro,


2015.
Fun Home, Musical. Música por Jeanine Tesori. Livro e letras por Lisa Kron.
Direção de Sam Gold. Off Broadway, 2013. Broadway, 2015.

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