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Coleção Ciências Agrárias

Ijuí
2015
2015, Organizadores
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Editor: Gilmar Antonio Bedin
Editor-Adjunto: Joel Corso
Capa: Alexandre Sadi Dallepiane

Catalogação na Publicação:
Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí
R948 O rural contemporâneo em debate : temas emergentes e novas
institucionalidades / organização Gisela Martins Guimarães ... [et
al.]. – Ijuí: Ed. Unijuí, 2015. – 400 p. - (Coleção ciências agrárias).
ISBN 978-85-419-0164-2
1. Desenvolvimento rural. 2. Organização rural. 3. Economia –
Finanças agrícolas. I. Guimarães, Gisela Martins (Org.). II. Título.
III. Série.
CDU : 338.431
631.16
A coleção de livros em Ciências Agrárias visa a publicação de textos
que privilegiam a abordagem multidisciplinar em sistemas técnicos de pro-
dução agropecuária e saúde animal voltados ao desenvolvimento susten-
tável. Tem por objetivo disponibilizar aos leitores um conjunto de obras
que contribua significativamente para a construção do conhecimento nas
Ciências Agrárias, qualificando a reflexão acerca da sustentabilidade.

COMITÊ EDITORIAL
Roberto Carbonera (coordenador)
Leonir Terezinha Uhde
Luciana Mori Viero
Maria Andréia Inkelmann

CONSELHO EDITORIAL
Dr. Alexandre Varella – Embrapa/RS
Dr. Adão Acosta – Embrapa, RS
Dr. Benoit Didier – Inra, França
Dr. Douglas Rodrigo Kaiser – UFFS, RS
Dra. Elena Blume – UFSM, RS
Dra. Gabrielle Freitas – UFFS, PR
Dr. Genei Antônio Dalmago, Embrapa, RS
Dr. Geraldo Ceni Coelho – UFFS/SC
Dr. Gustavo Martins da Silva, Embrapa, RS
Dr. Gustavo Trentin, Embrapa, RS
Dr. José Miguel Reichert, UFSM, RS
Dr. Júlio Viegas – UFSM, RS
Dra. Maraisa Crestani – Epagri, SC
Dra. Márcia C. T. Silveira, Embrapa, RS
Dra. Melissa Batista Maia, Embrapa, RS
Dr. Nicolas Laguarda Miró, Etsid, Espanha
Dr. Ubirajara Russi Nunes – UFSM, RS

SECRETÁRIA DA COLEÇÃO CIÊNCIAS AGRÁRIAS


Cláudia Cargnelutti Didoné – Unijuí, RS
Mas o tu não é qualquer coisa indefinida. É concretamente um
rosto com olhar e fisionomia. O rosto do outro torna impossível a
indiferença. O rosto do outro me obriga a tomar posição porque
fala, provoca, evoca e convoca. Especialmente o rosto do empobre-
cido, marginalizado e excluído.
O rosto possui um olhar e uma irradiação da qual ninguém pode
subtrair-se. O rosto e o olhar lançam sempre uma proposta em
busca de uma resposta. Nasce assim a responsabilidade, a obrigato-
riedade de dar respostas. Aqui encontramos o lugar do nascimento
da ética que reside nesta relação de responsabilidade diante do rosto
do outro e particularmente do mais outro que é o oprimido. É na
acolhida ou na rejeição, na aliança ou na hostilidade para com o
rosto do outro que se estabelecem as relações mais primárias do ser
humano e se decidem as tendências de dominação ou de cooperação.
(Leonardo Boff, 1999
– Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela terra).
SUMÁRIO

13 APRESENTAÇÃO:
O rural no século 21 – em busca de novas abordagens
Gisele Martins Guimarães
Tatiana Aparecida Balem
Paulo Roberto Cardoso da Silveira
Silvia Aparecida Zimmermann

SEÇÃO 1
19 O QUE É O RURAL CONTEMPORÂNEO?
Marco jurídico do rural e do urbano no Brasil:
21
entre a legislação e a realidade
Silvia Aparecida Zimmermann
Mariana Trotta Dallalana Quintans

O rural múltiplo: a heterogeneidade social, a construção


47 de identidades e as sociabilidades locais
José Marcos Froehlich

O protagonismo dos agricultores familiares na construção


71 social de mercados – formas de organização e ação
Gustavo Pinto da Silva
Paulo Roberto Cecconi Deon

Los movimientos y organizaciones sociales campesinas


89
en el Uruguai – resistencia y projecto de desarrollo
Emiliano Guedes
Gabriel Picos
Humberto Tommasino

Os assentamentos de reforma agrária:


113 reconfiguração territorial e repovoamento rural no RS
Aline Weber Sulzbacher
De sujeitos ocultos (off-line) a sujeitos visíveis (on-line):
139 o protagonismo da juventude rural a partir de novas
sociabilidades no rural contemporâneo
Gisele Martins Guimarães
Ezequiel Redin
Paulo Roberto Cardoso da Silveira
Janaína Balk Brandão

157 As famílias assentadas da reforma agrária: projetos em construção


Jaqueline Malmann Hass
Jairo Alfredo Genz Bolter

171 A juventude rural em ação


Ezequiel Redin
Vilson Flores dos Santos
Paulo Roberto Cardoso da Silveira

A erosão da cultura alimentar e os


187 desafios para a segurança alimentar
Tatiana Aparecida Balem
Paulo Roberto Cardoso da Silveira

SEÇÃO 2
211 REDEFININDO OS DESAFIOS
DO DESENVOLVIMENTO RURAL
A(s) ruralidade(s) nas políticas públicas brasileiras:
213 limites e possibilidades para o rural contemporâneo
Silvia Aparecida Zimmermann
Karina Yoshie Martins Kato
Catia Grisa

O papel da alimentação escolar na construção


235 de mercados para a agricultura familiar
Tatiana Aparecida Balem
Gustavo Pinto da Silva
Paulo Roberto Cardoso da Silveira

Identidades e patrimônio cultural em sistemas de produção de


253 alimentos coloniais no rural contemporâneo da Quarta Colônia-RS
Gisele Martins Guimarães
Ivaldo Gehlen
A abordagem dos sistemas agroalimentares
279 localizados (Sial): o processo de ativação em questão
Paulo Roberto Cecconi Deon
Fernanda Elisa de Oliveira Venturini
Paulo Roberto Cardoso da Silveira
Velhas e novas interrogações sobre a formação
297 tecnológica para a agricultura familiar
Tatiana Aparecida Balem
Paulo Roberto Cardoso da Silveira
Formação profissional para o rural contemporâneo:
315 reflexões acerca das experiências da Universidade
Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS.
Gisele Martins Guimarães
Benjamin Dias Osório Filho
Andréa Miranda Teixeira
Da escola no campo à escola do campo:
341 superando as velhas institucionalidades
Ana Cecília Guedes
Paulo Roberto Cardoso da Silveira
Vilson Flores dos Santos
Los Servicios de Asistencia Tecnica y Extension
367 Rural (Sater) en Uruguay: antecedentes y desafios
Pedro de Hegedüs
Félix Antonio Fúster Rebellato
Pablo Ariel Areosa

391 EPÍLOGO: O Rural no Século 21


Sílvia Aparecida Zimmermann
Gisele Martins Guimarães
Tatiana Aparecida Balem
Paulo Roberto Cardoso da Silveira

397 Sobre os autores


APRESENTAÇÃO
O Rural no Século 21 – Em Busca de Novas Abordagens

O livro O Rural Contemporâneo em Debate: temas emergentes e novas ins-


titucionalidades aborda um conjunto de reflexões relativas às transformações
que têm alcançado o espaço rural nas últimas décadas. Transformações essas
que se referem à dimensão produtiva, política e, sobretudo social, trazendo
como consequência a emergência de novas configurações no espaço rural e
novos atores, implicando diversas formas de organização no enfrentamento
aos desafios postos nas ações em prol do desenvolvimento rural.
O debate adquire expressividade neste livro a partir da reunião de
trabalhos de pesquisadores brasileiros e uruguaios que estão em constante
diálogo, por meio de projetos de pesquisa e extensão, no campo do desen-
volvimento rural em ambos os países. Essa coletânea tem como centrali-
dade as características e desafios na compreensão deste rural em mudança
marcado pela diversidade das iniciativas socioeconômicas e seus sujeitos;
pelas problemáticas de caráter difuso e complexo dos espaços em transfor-
mação; pelo surgimento de estratégias de resistência dos atores sociais; pela
necessidade de reestruturação das bases pedagógicas da formação profissio-
nal; assim como pelas possíveis implicações de todas estas questões sobre
as políticas públicas.
O rural contemporâneo problematizado nesta coletânea evidencia
um estreitamento das distâncias entre o rural e o urbano e a diluição de
muitas das diferenças percebidas no passado. Trata-se de um rural não redu-
zido ao agrícola, nem tampouco sendo concebido em oposição ao urbano. É
um novo cenário, em que agricultores familiares tradicionais, agricultores
pluriativos e produtores multifuncionais estão presentes em áreas rurais e
urbanas, usam meios de comunicação modernos e se locomovem com maior
14 Os Organizadores

facilidade pelas cidades. O rural não é mais exclusivamente associado à ati-


vidade agropecuária ou ao local de moradia, mas sim um “modo de vida”,
uma forma de relação entre os sujeitos e o mundo.
Esta nova configuração do espaço rural lhe atribui significados espe-
cíficos que inclui dimensões culturais, simbólicas e ambientais como parte
de um imaginário rural em construção. Os modos e os sentidos de vida pre-
cisam ser reconhecidos e incorporados nos processos de tomadas de decisão
por seus protagonistas, agricultores familiares, jovens, educadores, agentes
de desenvolvimento e organizações sociais que emergem como resposta à
tradicional postura neoliberal do Estado, a qual vigora com força na América
Latina desde a década de 90, tendo como princípio reduzir as despesas
públicas e reforçar o papel do setor privado na economia.
Em oposição a esta estratégia, o exercício da cidadania e o empode-
ramento dos atores e suas organizações vem gerando novas experiências de
ação político-institucional, o que denominamos de novas institucionalidades
em contraponto às tradicionais formas de organização hegemônicas até um
passado recente, como os sindicatos e cooperativas. Enfatiza-se as experiên-
cias de organização de jovens rurais, grupos informais, novas cooperativas
de agricultores familiares ou assentados de reforma agrária, associações de
agricultores e redes informais, movimentos sociais em sua diversidade. Res-
salta-se ainda as experiências de relocalização dos sistemas agroalimentares
que têm surgido e se fortalecido nas últimas décadas, demonstrando que
esse público é capaz de se rearranjar e resistir, demarcando um importante
espaço na sociedade. Seja por meio de feiras, agroindústrias familiares rurais,
agricultores ecologistas e verdadeiros Sistemas Agroalimentares Localizados
(Sials), os quais envolvem pequenos comerciantes, processadores artesanais
de alimentos, pequenos e médios supermercados e evidentemente agricul-
tores familiares.
As novas institucionalidades podem ser definidas como as distintas
formas que os atores sociais do rural têm construído para se afirmar como
protagonistas de uma história que os tem incluído em posição marginal. Os
atores sociais do meio rural não têm assumido para si a inexorabilidade do
desenvolvimento, mas têm sido hábeis no sentido de transformar, produzir
e reproduzir modos de vida. Muitas dessas novas institucionalidades têm
surgindo após o advento recente de políticas públicas diferenciadas para o
Apresentação 15

rural desde o primeiro governo Lula no Brasil e após a afirmação da noção


de desenvolvimento a partir das características de cada território. Como
exemplo podemos citar as cooperativas e associações que vêm se organizan-
do para atender ao mercado institucional da alimentação escolar e acessar o
Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), coordenado pela Companhia
Nacional de Abastecimento (Conab).
Ressalta-se, no entanto, que esse processo, em muitas situações
aparece de forma contraditória, pois, se por um lado, o Estado vem investin-
do na construção de políticas públicas que objetivam o desenvolvimento de
segmentos marginalizados, por outro, não tem avançado no sentido de resol-
ver as limitações mercadológicas e legais impostas à essas novas formas de
organização institucional. Este é o caso das Agroindústrias Familiares, que
ainda encontram barreiras para comercialização de seus produtos, impostas
pela Legislação Sanitária Brasileira, criada na década de 50.
Mesmo com a criação de espaços de participação e mecanismos de
democracia direta, o Estado ainda age por meio de ações e políticas de
caráter setorial, evidenciando a necessidade de avanços no sentido de ações
de propulsão intersetorial, capazes de articular as múltiplas dimensões que
permeiam o rural para além das atividades agrícolas.
Considerando os estudos apresentados neste livro, constatamos
que, muitas vezes, existem iniciativas geradas nas estruturas do Estado
em descompasso com o novo cenário vivido no rural contemporâneo. Por
exemplo, o Estado cria políticas públicas para a comercialização dos produ-
tos da agricultura familiar, ao mesmo tempo em que não garante um marco
legal sanitário adequado aos pequenos empreendimentos; cria políticas e
mecanismos de oferta de serviços de extensão rural, enquanto as instituições
permanecem com dificuldades de atuar com o público diverso da agricultura
familiar, principalmente devido às características de formação profissional
de seus agentes. Indo além, o Estado assume o compromisso com a educa-
ção profissional de jovens e adultos oferecendo novos cursos e instituições
de ensino e aprendizagem, no entanto essas novas instituições continuam
reproduzindo velhos paradigmas de formação tecnológica.
16 Os Organizadores

O rural contemporâneo abordado nos textos é um espaço contradi-


tório, de problemas com caráter difuso e complexo, o que exige um esforço
analítico capaz de compreender esse espaço em permanente transformação
(econômica, social, ambiental, cultural e político-institucional) de forma a
gerar contribuições significativas na orientação de políticas públicas e ações
promotoras do desenvolvimento rural.
Buscando interpretar com mais propriedade este rural contemporâ-
neo e, assim, oferecer contribuições a este novo cenário que se configura, o
presente livro está dividido em duas seções.
Na Seção 1 busca-se elucidar questões importantes do espaço rural
contemporâneo, com destaque para reflexões sobre o conceito de rural, a
relação entre o rural e o urbano e as diversas dimensões do espaço rural
que não pode ser definido apenas em oposição ao urbano. Os estudos evi-
denciam que os antigos enfoques baseados no continuum rural-urbano e nos
processos de modernização agrícola com suas consequências econômicas,
sociais e ambientais, mostram-se insuficientes para desnudar a complexi-
dade das relações existentes no rural contemporâneo.
Os textos desta seção deixam claro existir uma heterogeneidade
no uso do espaço rural, no qual permanecem as atividades agrícolas, mas
também emergem as atividades não agrícolas e ainda novos tipos de ativi-
dades ou recriadas (atividades presentes no passado, mas ressignificadas
ao emergirem no presente). As profundas transformações que atingiram
a sociedade brasileira após os anos 80 com a globalização da economia e
o processo de redemocratização do país, trazem de volta à cena política os
movimentos sociais do campo em uma nova perspectiva e sob inovadoras
formas de organização. Também as intensas transformações nos meios de
transporte e comunicação provocadas pela expansão da internet permitem
a emergência de um rural não mais caracterizado pelo isolamento e pelo
distanciamento do urbano, sendo cada vez mais reconhecida a presença
de urbanidade no rural e transformações no conceito de ruralidade. Estes
estudos trazem à tona um “outro” rural, no qual surgem novas relações
sociais e questões capazes de ressignificar velhos elementos.
Apresentação 17

Na Seção 2 discute-se acerca dos desafios ao desenvolvimento rural,


delineados pelo novo contexto econômico e social do século 21, expresso
nos contornos da nova ruralidade. Para tanto quatro questões relevantes são
abordadas: as políticas públicas, a dimensão cultural, as formas de mobi-
lização de recursos específicos de um local-território como um processo
endógeno de desenvolvimento e a educação para o rural. Nesse viés, as
argumentações a seguir explicitam discussões presentes nos textos desta
segunda seção.
As políticas públicas são importantes instrumentos de indução e
construção do desenvolvimento rural e têm sido importantes caminhos para
o surgimento de novas institucionalidades. Os estudos dos reflexos das polí-
ticas públicas têm evidenciado novas formas de interpretações do rural e do
urbano, assim como a necessidade de se pensar o desenvolvimento a partir
das distintas realidades.
A dimensão cultural esteve tradicionalmente marginalizada nos
estudos rurais, presos às perspectivas fundadas na dimensão econômica
do processo de desenvolvimento. Mediante os estudos que envolvem a
produção cultural dos atores sociais, resgata-se uma abordagem sociológica
interdisciplinar, a qual inclui em sua constituição a contribuição da Antro-
pologia rural.
As formas de mobilização de recursos específicos de um local-terri-
tório como um processo endógeno de desenvolvimento, utilizando-se do
enfoque dos sistemas agroalimentares localizados cria novas perspectivas
de interpretação do rural e de sua inserção no contexto local e global.
Os processos educativos do e para o rural, temática que emerge no
final do século 20, discute os desafios das universidades e Centros Tecnoló-
gicos de Educação para a formação profissional em Ciências Agrárias em um
novo contexto socioprodutivo estabelecido pelas transformações do espaço
rural contemporâneo. Neste, novas posturas pedagógicas são fundamen-
tais para uma formação crítica, comprometida com as dimensões sociais e
ambientais do processo de desenvolvimento rural, bem como o compromis-
so do Estado perante a atuação profissional, o que implica o reconhecimento
de novas profissões e revisão de planos de carreira das instituições que hoje
“formam” os agentes de desenvolvimento rural.
18 Os Organizadores

Esse debate acerca do papel assumido pelo Estado diante da educa-


ção rural também é apresentado pelo caráter da extensão rural no cenário
das transformações contemporâneas, abordando-a a partir de seu aspecto
educativo não formal e sua vinculação com os agricultores familiares e o
desenvolvimento. Esta é a base do processo uruguaio vivenciado sob a égide
de um governo popular, analisado em um dos textos.
De outra parte, propõe-se a reflexão sobre a consolidação da educa-
ção do campo como referencial para as escolas públicas rurais, considerando-
-se sua construção social e a inclusão como política de Estado, por meio de
proposições dos governos federal e estadual.
Por fim, os estudos apresentados no livro recolocam o desafio do
desenvolvimento rural na centralidade das discussões, considerando o
espaço contemporâneo e seus atores sociais emergentes. Ao mesmo tempo,
estes estudos buscam contribuir com reflexões teóricas e com a descrição
de experiências empíricas na construção e consolidação de novas posturas
e paradigmas para o desenvolvimento rural.
A publicação desse livro foi financiada pelo Edital Fapergs/Capes
6/2013 – Programa Editoração e Publicação de Obras Científicas, cujo obje-
tivo é ampliar e incentivar a divulgação de resultados das pesquisas cien-
tíficas, mediante o financiamento da editoração e publicação de livros e
periódicos científicos.

Gisele Martins Guimarães


Tatiana Aparecida Balem
Paulo Roberto Cardoso Silveira
Silvia Aparecida Zimmermann
(Organizadores)
MARCO JURÍDICO DO RURAL
E DO URBANO NO BRASIL
Entre a Legislação e a Realidade1

Silvia Aparecida Zimmermann


Mariana Trotta Dallalana Quintans

Nos anos 90 começaram a aparecer críticas mais sistemáticas à dico-


tomia rural/urbano, até então naturalizada entre nós. Essa crítica começou
a ser feita a partir de uma perspectiva que procura entender e valorizar os
espaços rurais, em oposição à leitura que o vê (explicitamente ou não) como
algo residual e fadado a não ser relevante (Veiga, 2001).
Nosso ponto de partida para a realização do trabalho que deu origem
a este artigo reafirma a concepção de Wanderley e Favaretto (2013), para
quem as relações entre os espaços rurais e urbanos assumem crescente-
mente um caráter de interdependência, superando definitivamente o anta-

1
Neste texto apresentamos alguns aspectos do estudo “Marcos jurídicos das noções
de rural e urbano”, coordenado por Leonilde Sérvolo de Medeiros, que é parte
do Projeto Repensando o conceito de ruralidade no Brasil: implicações para as políticas
públicas, fruto da parceria entre o Fórum de Desenvolvimento Rural Sustentável (DRS)
do Instituto Interamericano para Cooperação na Agricultura (IICA), o Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA) – por meio da Secretaria de Desenvolvimento
Territorial e do Núcleo de Estudos Agrários (Nead) –, o Banco do Nordeste do Brasil
(BNB), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Projeto de Pesquisa buscou
ampliar a discussão sobre a diversidade e as múltiplas dimensões do meio rural
contemporâneo. Os relatórios da pesquisa compõem volumes da Série Desenvolvimento
Rural Sustentável do IICA.
22 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – M a r i a n a Tr o t t a D a l l a l a n a Q u i n t a n s

gonismo que marcou sua evolução histórica nos países hoje desenvolvi-
dos, mesmo que, entre nós, a concepção de rural dominante incline-se a
considerá-lo, quando muito, como espaço de produção e não de vida social.
Tendo em vista que a delimitação entre rural e urbano é feita pelos
municípios, considerando suas realidades específicas (Medeiros; Quintans;
Zimmermann, 2013), selecionamos alguns casos que pudessem nos ajudar
a melhor pensar as formas pelas quais essa delimitação é feita localmente,
os elementos considerados para fazê-la, as tensões que atravessam esse pro-
cesso. Empreendemos então a análise dos Planos Diretores de três muni-
cípios selecionados, a legislação que os complementou e entrevistas com
pessoas-chave que participaram, de alguma forma, da elaboração dos Planos,
procurando entender que desenho de cidade estava sendo produzido. Para
desenvolver essa perspectiva, tomamos como parâmetro as novas obrigações
legais que emergiram com a Constituição da República Federativa do Brasil
(CRFB) de 1988 e sua legislação complementar.
A atual Constituição Brasileira adotou o modelo federalista e res-
tabeleceu certa autonomia municipal, exigindo uma lei orgânica própria a
cada município (artigo 29). O artigo 30 dotou genericamente os municípios
de competência para legislar sobre assuntos de interesse local, bem como
de prestar serviços como transporte público, saúde, proteção ao patrimônio
cultural-histórico e paisagístico e promoção do planejamento e controle do
uso, parcelamento e ocupação do solo urbano.
Além dessas competências, lhes foi delegada a função de executar
a política de desenvolvimento urbano, com o objetivo de permitir o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de
seus habitantes (artigo 182). Foi estabelecido que o instrumento básico da
política de desenvolvimento e de expansão urbana seria o Plano Diretor,
obrigatório para as cidades com mais de 20 mil habitantes (artigo 182, §1º
CRFB/1988). O artigo 41 do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) ampliou
o rol de municípios com a obrigação de elaborar os Planos Diretores, dentre
eles os municípios que integrassem regiões metropolitanas e aglomerações
urbanas; aqueles nos quais o poder público municipal pretenda utilizar os
instrumentos previstos no § 4º do artigo 182 da Constituição Federal (como
a desapropriação sanção, o IPTU progressivo, dentre outros); os que inte-
Marco Jurídico do Rural e do Urbano no Brasil 23

grassem áreas de especial interesse turístico e, finalmente, os que estives-


sem inseridos na área de influência de empreendimentos ou atividades com
significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional.
O Estatuto da Cidade estabelece, em seus artigos 39 a 42, as regras
a serem observadas na realização do Plano Diretor e afirma que ele deverá
englobar “a totalidade do território do município”. No entanto, embora a
legislação refira-se a um plano para o conjunto do município, o que está em
jogo é a política de desenvolvimento urbano, conforme se observa no caput
do artigo 40 (Orientações e procedimentos para a realização dos Planos Dire-
tores). Ou seja, é sob essa ótica que as áreas rurais entram no planejamen-
to local. Também define (artigo 40, § 4º, I) a necessidade de participação
popular no processo de elaboração dos Planos, com “a promoção de audi-
ências públicas e debates com a participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunidade”. Esse artigo também
reflete sobre o peso e os canais de participação das populações nas decisões
estratégicas dos Planos Diretores.
Para a pesquisa aqui apresentada, selecionamos três municípios, con-
siderando os seguintes aspectos: localização em diferentes regiões do país
e com contingentes populacionais diferenciados. Decidimos escolher um
município localizado em região metropolitana, com presença de atividades
agrícolas; outro, considerado médio, no qual houvesse uma combinação de
atividades urbanas com uma vida rural ativa e, finalmente, um município
com características predominantemente rurais, com população de menos de
20 mil habitantes (e, portanto, desobrigado pela legislação de elaborar Plano
Diretor).2 Para afinar os critérios de escolha, decidimos optar por localidades
sobre as quais pelo menos um dos membros da equipe já tivesse algum
conhecimento acumulado, de forma a facilitar a aproximação.

2
Considerando os critérios definidos pela legislação, segundo documento do Ministério
das Cidades (2005), estavam obrigados a fazer Plano Diretor, 2.342 municípios. Não
tinham essa obrigação 3.218, ou seja, 58% dos municípios brasileiros. Chama a atenção
o fato de que essa exigência de planejamento não tenha sido estendida para as cidades
com população menor, uma vez que, segundo a Pesquisa de Informações Básicas
Municipais, divulgada pelo IBGE (2012), e que apresenta dados mais recentes da
situação dos municípios no país, a maioria deles (75%) tem até 20 mil habitantes, o que
significa um total, nada desprezível, de 33,9 milhões de pessoas. Ao que tudo indica,
são municípios com características essencialmente rurais.
24 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – M a r i a n a Tr o t t a D a l l a l a n a Q u i n t a n s

Tendo em vista esses parâmetros, escolhemos os seguintes municí-


pios:
a) Nova Iguaçu, situado na região metropolitana do Estado do Rio de
Janeiro, marcada por importantes conflitos por terra entre as décadas de
50 e 70 do século 20, quando posseiros que viviam da produção agrícola
dirigida para mercados locais resistiram ao processo de expropriação da
terra. Voltou a ser palco de conflitos nos anos 80, no momento em que
uma série de ocupações de terras por populações que, muitas vezes, já
viviam nas cidades, gerou a criação de assentamentos rurais, quer sob
alçada do governo estadual (Campo Alegre), quer do governo federal
(São Bernardino, Marapicu). Paradoxalmente, o Plano Diretor do muni-
cípio, realizado em 1997, decretou Nova Iguaçu como cidade, ou seja,
município sem áreas rurais. Na revisão do Plano, nos anos 2000, isso foi
revertido, por pressão de associações de agricultores.
b) Caxias do Sul, município gaúcho de porte médio, importante produtor
de uvas e de hortifrutigranjeiros, mas também com uma atividade indus-
trial e de serviços intensa, em especial o turismo rural. Sua origem está
na formação de núcleos agrícolas, com imigrantes italianos que podiam
adquirir lotes de, no máximo, 70 hectares. A maior parte, no entanto,
comprou áreas menores, entre 10 e 30 hectares, caracterizando a região
como sendo predominantemente de minifúndios. O município tem um
histórico de leis que regem o uso do seu espaço urbano: seu primeiro
Plano Diretor foi elaborado em 1972, seguido pelo de 1979, de 1996 e o
atual, elaborado em 2007.
c) Belterra, situado no Noroeste do Pará, separou-se, em 1997, de Santarém,
município do qual era distrito. Com menos de 20 mil habitantes, Belterra
apresenta a singularidade de ter sido palco, no final dos anos 30, de um
dos empreendimentos da Ford na Amazônia, constituindo-se numa cida-
de-empresa planejada. Abandonado o empreendimento em 1945, suas
terras foram incorporadas pela União (situação que perdura até hoje em
boa parte do município). Além disso, Belterra contém a Floresta Nacio-
nal Tapajós (Flona) que ocupa expressiva área de seu território. Trata-se
de um município com características predominantemente rurais que, no
Marco Jurídico do Rural e do Urbano no Brasil 25

final do século 20, começou a ser ocupado pelo cultivo de soja. Para além
de sua história singular, Belterra se singulariza por ter elaborado um Plano
Diretor altamente participativo.
As visitas aos municípios da pesquisa foram realizadas entre o período
de fevereiro e abril de 2013, quando foram entrevistados 46 representantes
da sociedade civil e de órgãos de governo, entre Secretarias de Planeja-
mento, Urbanismo, Desenvolvimento Rural e/ou Agricultura, Habitação,
Educação, Saúde, bem como sindicatos de trabalhadores rurais, associação
de produtores, associações e movimentos urbanos, entre outras represen-
tações da sociedade civil existentes e que participaram da elaboração dos
Planos Diretores em questão. Quando foi o caso, procuramos entidades que
pouco ou mesmo não participaram do processo, mas tinham expressividade
política. Buscamos identificar a visão que os entrevistados têm do rural e
do urbano e como se reconhecem na definição destes limites nos Planos
Diretores vigentes em seus municípios.
Este texto está dividido em mais três seções além desta introdução.
Uma primeira seção apresenta como ocorreram os processos de elaboração
dos Planos Diretores nos municípios selecionados, evidenciando as deman-
das sociais que foram incorporadas (ou não) nos Planos Diretores. Uma
segunda seção aborda como tem ocorrido a delimitação do urbano e do rural
e a expansão das áreas urbanas nos municípios, contradições e conflitos.
Uma terceira seção aprofunda aspectos que caracterizam o rural evidencia-
do nos municípios estudados na pesquisa. Por fim, temos as considerações
finais e as referências bibliográficas.

A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA DEFINIÇÃO DO RURAL E URBANO


O Estatuto da Cidade estabelece a necessidade de participação da
sociedade na elaboração dos Planos Diretores, com a criação de conselhos,
realização de audiências públicas, consultas e a garantia de transparência das
informações pelo poder público, aspectos previstos no seu artigo 40, §4º, I.
Em alguns dos municípios analisados a participação social foi intensa,
em outros, reduzida ao mínimo necessário para que as exigências legais
pudessem ser cumpridas. Em qualquer das situações estudadas, no entanto,
26 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – M a r i a n a Tr o t t a D a l l a l a n a Q u i n t a n s

a participação foi norteada por um projeto técnico, previamente elaborado,


cuja leitura permite entender alguns interesses em jogo e alinhamentos
possíveis.
O Plano Diretor de Belterra foi elaborado entre 2005 e 2006, num
amplo processo participativo, conforme nos foi informado, reconhecido por
vários entrevistados.3 O processo foi orientado por assessores da Federação
de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase). Silva (2012, p. 90),
realizando uma síntese do processo de preparação do Plano, ressalta que
este: i) garantiu a participação social em todo o processo, capacitando a
população local minimamente para a fiscalização e controle social, para o
processo de implementação do Plano; ii) criou o Sistema Municipal de Pla-
nejamento e Gestão (Simplage) – como um conjunto de estruturas e proces-
sos democráticos participativos, visando a assegurar a elaboração, revisão e
operacionalização do planejamento e gestão municipal, de forma integrada,
contínua e dinâmica; iii) criou instrumentos de democratização da gestão,
tais como: o Conselho da Cidadania e o Congresso da Cidadania (como
instância máxima de participação popular); iv) instituiu o Fundo Municipal
de Desenvolvimento Urbano e de Interesse Social).
Em Belterra há uma grande quantidade de organizações sociais.
Conforme dados de 2010 coletados por Silva (2012), eram 56 as entidades
existentes, envolvendo as do distrito sede as de outros distritos e as de
abrangência municipal. Todas elas estavam envolvidas ativamente no pro-
cesso de discussão do plano.4
No caso de Caxias do Sul,5 a elaboração do Plano, entre 2005 e 2007,
foi marcada por reuniões internas ao governo municipal e convocação de
quatro audiências públicas, que contaram com a participação de sindicatos

3
O Plano foi elaborado quando da eleição de Geraldo Pastana (PT), expressivo militan-
te do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Santarém nos anos 80 e, segundo um de
nossos entrevistados, configurou-se como um experimento de desenho da “cidade que
queremos”.
4
Possivelmente não da mesma forma e com a mesma intensidade.
5
O Plano Diretor Municipal (PDM) foi elaborado em 2007, no governo de José Ivo
Sartori, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Esse prefeito esteve
à frente da administração municipal em dois mandatos (2005/2008 e 2009/2012).
Marco Jurídico do Rural e do Urbano no Brasil 27

urbanos e rurais, da União das Associações de Bairro (UAB), dos estudantes,


das faculdades da cidade, dentre outros. Na elaboração desse Plano também
participaram 40 técnicos da prefeitura. Um dos entrevistados, representante
do poder público, indicou que “não houve muitas questões polêmicas. Pri-
meiro fizemos um diagnóstico, depois eles complementaram”. Na opinião
desse entrevistado, não houve pontos conflitantes. Outras entrevistas mos-
traram que o consenso não foi tão grande.
Quando questionamos se as organizações levaram alguma proposta
para as audiências, para contribuir com o Plano Diretor e se houve aspec-
tos polêmicos, representantes de entidades de agricultores nos informaram
que o loteamento irregular na área rural e a questão ambiental foram temas
muito discutidos.
Com relação ao município de Nova Iguaçu, o Plano de 1997 restrin-
giu-se à participação mínima necessária e teve um caráter essencialmente
técnico.6 Como já referido, uma de suas marcas foi declarar Nova Iguaçu
como cidade, portanto sem áreas rurais. Segundo um de nossos entrevista-
dos, a participação popular que tem ocorrido para a elaboração dos Planos
Diretores brasileiros acaba por gerar a previsão de dispositivos que nunca
poderão ser efetivados. Por esse motivo, a gestão da época optou pela ela-
boração do Plano apenas pelos técnicos da própria prefeitura, sem a parti-
cipação da sociedade. Mesmo assim, prevê a criação de um Conselho de
Política Urbana, como órgão consultivo e fiscalizador da prefeitura, com
representação paritária entre prefeitura e sociedade civil. O atual Plano
Diretor, elaborado em 2004,7 contou com ampla participação da socieda-
de civil, tanto dos setores urbanos quanto rurais, como foi destacado em
diferentes entrevistas, entretanto o Plano apenas foi aprovado na Câmara
Municipal em 2011, por meio da Lei nº 4.092.

6
O Plano de 1997 foi elaborado logo no início da gestão de Nelson Bornier, do PMDB,
que foi reeleito em 2010.
7
Durante o primeiro mandato do prefeito Lindberg Farias, do PT, eleito em 2004 e
reeleito em 2008, com uma coligação de vários partidos, sendo eles: PT, PDT, PSB, PV,
PC do B, PT do B, PR, PTN, PRB e DEM. Não chegou a concluir o segundo mandato,
pois foi eleito para o Senado em 2010. Assumiu a prefeitura a vice-prefeita Sheila Gama
(PDT).
28 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – M a r i a n a Tr o t t a D a l l a l a n a Q u i n t a n s

O Plano atual foi elaborado com auxílio de uma firma especializada


que, segundo um de nossos entrevistados, fazia consultoria para produção
de planos em diversas cidades do país, inclusive capitais. Segundo ele, a
empresa tinha toda uma metodologia de elaboração, fundada nos princípios
estruturantes do Estatuto da Cidade. No que nos interessa mais diretamen-
te, como já afirmado, o Plano restabeleceu as áreas rurais do município.
Conforme um de nossos entrevistados, houve bastante pressão das associa-
ções existentes nas áreas rurais, lideradas pelo Assentamento de Marapicu.
Foi mencionada inclusive uma legislação, data de 2006, que já restabelecia
essa divisão. As razões para isso apresentadas nas entrevistas foram: muitos
agricultores não conseguiam aposentadoria especial, porque o município
não tinha área rural; havia dificuldade de conseguir Declarações de Aptidão
do Produtor (DAP), instrumento fundamental para acesso ao crédito, etc.
Nenhuma dessas razões pareceu ter poder explicativo forte, no entanto
houve mobilização pelo restabelecimento dessas áreas.
A retomada do rural dos marcos legais do município de Nova Iguaçu
implicou um reconhecimento da categoria dos agricultores familiares, que,
a partir de então, passaram a ter mais facilidades para acessar as políticas
públicas federais, entre os casos citados, o Programa Nacional de Apoio à
Agricultura Familiar (Pronaf).
Após a elaboração dos Planos Diretores, todos os municípios passa-
ram a contar com um conselho específico para discutir o planejamento da
cidade, todos eles previstos nos respectivos Planos Diretores.
Em Belterra foi criado o Conselho da Cidadania, órgão de caráter
consultivo e deliberativo em matéria urbanística, políticas públicas, ter-
ritorial e habitacional, constituído por representantes do poder público e
da sociedade civil e vinculado à Secretaria Municipal de Administração,
Finanças e Planejamento.8 Em Nova Iguaçu foi criado o Conselho Munici-
pal de Política Urbana e Gestão Territorial (Conpurb), um órgão colegiado

8
O Conselho da Cidadania é composto por dez representantes do poder Executivo
municipal, indicados pelo prefeito e 17 representantes da sociedade civil escolhidos
pelas respectivas organizações e/ou movimentos, dentre eles o STTR, a Flona, a APA,
indígenas, associação e sindicato de produtores rurais, juventude, idosos, estudantes,
mulheres, segmento empresarial, dentre outros.
Marco Jurídico do Rural e do Urbano no Brasil 29

que reúne representantes do poder público e da sociedade civil, de caráter


permanente, deliberativo e fiscalizador, que tem por finalidade assessorar,
monitorar, fiscalizar e propor diretrizes sobre as políticas públicas de desen-
volvimento territorial do município, entre outras questões. Diferentemente
dos casos anteriores, o município de Caxias do Sul já possuía um Conselho
para tratar do seu planejamento desde 1972 (Lei 2089 de 27/12/1972, revo-
gada em 1975, pela Lei 2228 de 15/07/1975, que instituiu o Conselho do
Plano Diretor Urbano).9 A Lei 7030, de 23/11/2009, no entanto, instituiu
o Conselho Municipal de Planejamento e Gestão Territorial (Conseplan),
composto paritariamente por membros de governo e da sociedade civil.10
Assim, percebe-se que a exigência dos marcos jurídicos dos Planos
Diretores, ao que tudo indica, vem contribuindo para a abertura de canais
de diálogo entre o poder público local e a sociedade civil para tratar, de
forma permanente, do planejamento da cidade e interferir sobre seus marcos
jurídicos, com a criação de leis complementares. Constatamos, também,
que tanto em Belterra quanto em Caxias do Sul existem representantes
de agricultores entre os membros desses Conselhos. A limitação do tempo
da pesquisa, no entanto, não contribuiu para explorarmos os sucessos e as
limitações encontradas pelos representantes dos agricultores nesses espaços.

9
A Secretaria da Agricultura do município participa do Conselho desde que este foi
criado, no entanto não havia representantes de agricultores por parte da sociedade
civil. Nessa primeira versão, o Conselho, de composição paritária, era formado por
seis membros da sociedade civil (representantes da Câmara de Indústria e Comércio;
Sindicato dos Trabalhadores; União das Associações de Bairros; associação de classe de
engenheiros e arquitetos; Ordem dos Advogados do Brasil) e seis membros do poder
público (secretários de Viação e Obras Públicas; Fazenda; Agricultura; diretor do Serviço
Autônomo de Água e Esgoto; Gabinete Municipal de Administração e Planejamento
e Consultoria Jurídica). Em 1995, pela Lei 4300, de 10 de junho, a composição foi
alterada, incluindo dois membros da sociedade civil (Universidade de Caxias do Sul e
Sindicato da Indústria da Construção Civil) e mais dois do poder público (Secretário
de Desenvolvimento Urbano e de Serviços Públicos Urbanos).
10
Em 2009, a composição do Conselho foi ampliada para 12 representantes da sociedade
civil (com destaque para representante do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Caxias
do Sul; Diretório Central dos Estudantes; Câmara de Dirigentes Lojistas e Conselhos
Distritais) e 12 do poder público (com destaque para Secretários de Habitação,
Urbanismo, Planejamento, Procurador Geral, Meio Ambiente, Gestão e Finanças,
Receita, Cultura, Trânsito, Transporte e Mobilidade Urbana, conselhos distritais).
30 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – M a r i a n a Tr o t t a D a l l a l a n a Q u i n t a n s

A DELIMITAÇÃO DO URBANO E DO RURAL


E A EXPANSÃO DAS ÁREAS URBANAS
Há na legislação brasileira uma tensão na definição do rural e do
urbano, sendo utilizado ora o critério de localização, ora o de destinação ou
utilização das áreas.
O Plano Diretor de Belterra, ao contrário da concepção vigente do
rural como espaço de produção, apresenta uma grande preocupação em
contemplar necessidades da população rural, no que se refere a lazer, saúde,
educação, transportes, meios de comunicação, etc. Dessa forma, o rural é
visto também como um espaço de vida social. O aspecto mais sensível e
bastante singular é o fato de que as áreas rurais e agrícolas estão bastante
contempladas no Plano, que realmente aparece como um plano de desen-
volvimento para o município e não só para as áreas urbanas.
No Plano Diretor de Caxias do Sul identificamos a visão do rural no
artigo 9º, que estabelece que a “zona rural é composta pela área rural do
Primeiro Distrito e pela área rural dos demais distritos, compreendendo a
porção do Município destinada a abrigar as atividades produtivas primárias,
agroindustriais, residenciais e de serviços relacionados à área da saúde, terapêuticos
e geriátricos, admitindo atividades urbanas para atendimento das comunidades
rurais e aquelas voltadas ao lazer e ao turismo” (Lei Complementar nº 290 de
24 de setembro de 2007 – Grifo nosso). Nesse artigo, a definição de área
rural foi pautada pelo critério da utilização. Outros aspectos, entretanto,
para além do econômico, foram citados, como o espaço rural enquanto local
de moradia e com atividades consideradas urbanas pelos elaboradores do
Plano Diretor, mas vistas como necessárias ao atendimento das comunidades
rurais, além de atividades de lazer e turismo. O Plano Diretor anterior de
Caxias do Sul, de 1996, já considerava a área rural espaço de moradia e com
os equipamentos necessários à vida das comunidades rurais.
O atual Plano Diretor de Nova Iguaçu utilizou como elementos defi-
nidores das áreas urbanas e rurais os critérios do artigo 32 do Código Tribu-
tário Nacional. Nesse sentido, área urbana é o espaço que possui ao menos
dois equipamentos fornecidos pelo poder público dentre os seguintes: meio-
-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais; abastecimento de
água; sistema de esgotos sanitários; rede de iluminação pública, com ou
Marco Jurídico do Rural e do Urbano no Brasil 31

sem posteamento para distribuição domiciliar; escola primária ou posto de


saúde a uma distância máxima de três quilômetros do imóvel considerado.
A zona rural foi definida no artigo 54 como a destinada às atividades primá-
rias, de produção de alimentos, reflorestamento, mineração e agropecuária,
etc. Para a caracterização do território rural, foi utilizado apenas o critério da
localização e da destinação econômica. Percebe-se dessa forma que, apesar
da retomada do rural pelo Plano Diretor e da previsão de algumas políti-
cas setoriais, ele é tratado como espaço de produção, embora as atividades
agrícolas do município sejam pouco expressivas economicamente, se com-
paradas ao PIB das atividades situadas na área urbana. O Produto Interno
Bruto de Nova Iguaçu referente ao ano de 2009 atingiu a casa de mais de
R$ 9,5 bilhões, sendo 77% deste montante oriundo do setor terciário da
economia, envolvendo atividades de comércio, hotelaria, transporte, ban-
cário, securitário, imobiliário, educacional, serviços públicos, entre outros
(Leal, 2012, p. 103).
Essa delimitação, porém, não é rígida nem permanente. Os Planos
Diretores, com previsão de revisão a cada dez anos, são instrumentos funda-
mentais para que os municípios projetem seu futuro. Desse ponto de vista,
aparecem como instrumentos políticos essenciais, lugares de disputa, em
que se confrontam interesses locais por meio de uma linguagem técnica. O
tema da expansão urbana é central nesses debates.
Nos três municípios estudados, as áreas urbanas crescem e pressio-
nam as áreas rurais, embora com intensidade distinta. Parece haver um forte
movimento de especulação imobiliária, que produz disputa sobre a terra. A
construção de uma estrada ou avenida ou mesmo pavimentação de alguma
via já existente induz a loteamentos. Como a autorização para fragmentação
e construções nas áreas urbanas só pode ser dada no plano municipal, é
compreensível a pressão para que áreas rurais (submetidas a regras esta-
belecidas pela União) sejam transformadas em urbanas. Ao mesmo tempo,
complexificando ainda mais a questão, parece haver, nos casos estudados,
uma tendência à fragmentação do solo antes mesmo de qualquer regula-
mentação. Ou seja, proliferam os loteamentos clandestinos, fora de qualquer
controle, parte deles sobre áreas antes rurais, conforme já analisado, em
termos nacionais por Maricato (2002, 2003).
32 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – M a r i a n a Tr o t t a D a l l a l a n a Q u i n t a n s

Em Caxias do Sul, o Plano Diretor estabelece as Zonas de Expansão


Urbana (ZEU), no artigo 23: “áreas com potencialidade de absorver ativida-
des urbanas, desde que haja expresso interesse público, e que serão objeto
de regramento específico”. Elas se subdividem em: áreas contíguas à área
urbana, dotadas de infraestrutura, e que, de acordo com expresso interesse
público, podem ser agregadas àquela; áreas caracterizadas como corredo-
res de desenvolvimento, de ocupação mista, de pequeno, médio e grande
porte, situadas junto as vias que ligam a cidade à Zona Especial do Novo
Aeroporto (Zena) (Lei Complementar nº 290 de 24 de setembro de 2007).
Identificamos uma falta de consenso no que diz respeito à ampliação
da área urbana e da zona de expansão urbana do município. Segundo os
representantes do governo, não houve expansão, mas, segundo os agricul-
tores entrevistados, houve.
Tivemos a oportunidade de visitar uma propriedade rural produtora
de uvas e de vinhos localizada na antiga área de expansão urbana, hoje
uma Zona de Interesse Turístico (ZIT), próximo ao Primeiro Distrito. No
entorno dessa propriedade também identificamos outros imóveis com
produção agrícola, bem como vários loteamentos urbanos surgindo, o que
exemplifica o processo vivido pelo município, com gradativa ampliação do
perímetro urbano e forte especulação imobiliária. Esse quadro, somado às
dificuldades em obter lucro com a produção do vinho, devido a fatores
como a concorrência, provocada pela redução da alíquota de imposto de
importação do vinho estrangeiro, a falta de cultura de consumo de vinho e
a Lei Seca, têm estimulado os agricultores a vender suas propriedades para
empresas de loteamento, como nos foi relatado durante as entrevistas.
Em Nova Iguaçu encontramos outra situação, visto que o Plano
Diretor, elaborado em 1997, transformou o município em cidade. Araújo
e Vainer, analisando esse Plano, afirmam que parte da área de expansão
urbana abrangeu a “Zona de Sítios (ZS), com a finalidade produtiva ou ao
recreio” (Araújo; Vainer, 2010, p. 122 – Grifos no original), ou seja, zonas
com características antes rurais foram enquadradas dentro da área de expan-
são urbana, fato que possibilitaria posteriormente a flexibilização do parce-
lamento do solo.
Marco Jurídico do Rural e do Urbano no Brasil 33

Também foram previstas Zonas de Uso Industrial, situadas tanto


nas áreas urbanas como nas áreas de expansão urbana. Essa zona deveria
ser regulamentada por legislação específica que deveria ser elaborada após
a entrada em vigor do Plano Diretor.
No artigo 8º do Plano, definiu-se que o perímetro urbano compreen-
deria todo o território da cidade de Nova Iguaçu. As macrozonas foram assim
definidas: zona urbana consolidada (áreas do território de maior adensamen-
to populacional); zona de expansão urbana correspondente “aos espaços
periféricos onde se efetivam os vetores de ocupação progressiva”, caracte-
rizada por “baixa densidade de ocupação, grandes porcentagens de lotes
vagos nos loteamentos existentes, assim como parcelamentos não consolida-
dos”; zona de transição (cinturão verde), que são as “áreas do território onde
encontram-se presentes atividades agrícolas e pecuária de pequena escala,
formada basicamente por sítios e chácaras de lazer, sendo caracterizada por
uma ocupação de baixa densidade e de edificações dispersas”. É importan-
te lembrar que os assentamentos rurais de Campo Alegre, Marapicu e São
Bernardino, todos criados na década de 80, ficaram localizados na área de
expansão urbana.
Araújo e Vainer (2010, p. 123) explicam que esse Plano Diretor
adotou uma estratégia voltada para o desenvolvimento econômico. Segundo
as autoras, o planejamento urbano recebe na década de 90 a influência de
dois modelos de cidade, de diferentes visões – a democrática, voltada para o
desenvolvimento urbano, e a estratégica, direcionada para o desenvolvimen-
to econômico. No entendimento das autoras, apesar da diferença entre esses
dois modelos, ambos são calcados em características físico-territoriais, cons-
tituem uma área de atuação e interesse dos governos municipais. Embora
estas duas estratégias, como mencionado, em Nova Iguaçu, as autoras cons-
tatam que o município optou por adotar a estratégia econômica em seu
Plano Diretor.
A preocupação com o desenvolvimento econômico do município
destacada por Araújo e Vainer (2010) foi também ressaltada pelo secretário
de Urbanismo de Nova Iguaçu na época da elaboração do Plano Diretor de
1997, em entrevista que nos foi concedida. Ele relatou que o governo da
época buscou promover um “choque de urbanização”, com a elaboração
de novas leis urbanísticas, pois as existentes eram muito antigas. Mostrava
34 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – M a r i a n a Tr o t t a D a l l a l a n a Q u i n t a n s

preocupação com o desenvolvimento dos serviços e comércio, garantindo


a autonomia do município e acabando com a característica de “cidade-
-dormitório”. O entrevistado também afirmou que a preocupação com a
preservação ambiental deveu-se à constatação de que o município já possuía
dois terços do seu território reservado a tal finalidade. Complementa que
perceberam duas lógicas de ocupação do solo que deveriam ser incentivadas:
uma comprometida com a preservação, para o futuro da própria cidade, e
outra antropofisada, com atividades humanas ou urbanas comprometidas
com a cidade e seu abastecimento, devendo ser desenvolvida para garantir
a autossuficiência do município com serviços e comércio. Essa autossufi-
ciência não diz respeito à produção agropecuária. Além dessas percepções,
o entrevistado destacou que consideraram a situação de insustentabilidade
ambiental e econômica dos assentamentos rurais e das áreas de sítios no
entorno da reserva do Tinguá, já em processo de loteamento.
Já no que se refere ao atual Plano Diretor, o artigo 20 estabelece os
objetivos da política municipal para a estruturação do território. Há uma
preocupação expressa com a limitação, ordenamento e controle da expansão
urbana que aparece nos incisos I e II do §3º do referido artigo, ao definirem
respectivamente como objetivos “conter a expansão horizontal da ocupação
urbana” e “compatibilizar a expansão urbana com a existência de áreas de
preservação ambiental, mantendo as zonas rurais como zonas de amorteci-
mento”.
Ressaltamos que o restabelecimento das áreas rurais teve algum
efeito sobre o município. Embora as atividades agrícolas rurais sejam pouco
expressivas, o reestabelecimento das áreas rurais e o reconhecimento da
existência de agricultores no município parece ter repercutido positiva-
mente sobre estes. Um dos entrevistados relacionou o fato à volta de uma
feira, conhecida como Feira da Roça, e ao crescimento da autoestima da
população rural, que hoje se afirma como tal. Segundo esse entrevistado,
certamente isso terá reflexos no próximo Censo Agropecuário, uma vez que
houve em certo encobrimento da população rural, em virtude de as pessoas
não se declararem agricultores.
Outro aspecto apontado foi uma mudança na relação com os consu-
midores, visto que alguns produtos passaram a ser produzidos e valorizados,
estimulados pela aproximação entre produtores e consumidores.
Marco Jurídico do Rural e do Urbano no Brasil 35

No que se refere a Belterra, o Plano Diretor Participativo, em seu


zoneamento, estabeleceu uma Zona Central, caracterizada pela concentra-
ção de comércio e serviços e construções de caráter histórico, presente no
seu sistema de arruamentos, nas edificações e monumentos, todos da época
da Fordlândia. Há uma clara preocupação de preservação dessa paisagem.
Chama ainda a atenção a proposta de “evitar a saturação do sistema viário
e incentivar melhores condições de circulação, de forma a garantir acessi-
bilidade a todos”, num município em que a circulação de carros e pessoas
é pequena e as avenidas são bastante largas. Destacamos ainda a preocu-
pação com a “preservação da integridade dos espaços públicos, das áreas
verdes e de lazer existentes”. A Zona Intermediária corresponde à área
externa à Zona Central e é de uso predominantemente residencial. Nela,
os arruamentos são claramente definidos, seja espontaneamente ou promo-
vidos pelos setores público ou privado. Uma das diretrizes para essas áreas
é “Preservar a vegetação de miolos de quadra ainda existentes, desde que
o proprietário não necessite utilizar para a agricultura sustentável, obede-
cendo à Legislação Ambiental Federal” (artigo 17, inciso V). Ou seja, fica
clara a intenção de preservar atividades agrícolas nas áreas urbanas, desde
que seja esta a vontade dos proprietários. A qualificação dessa agricultura
(sustentável) remete ao debate local sobre o significado da soja na região.
Finalmente, o Plano delineia, no seu artigo 19, uma Zona de Expansão,
que é a “área em processo de consolidação ou passível de ser urbanizada,
de forma contínua, no horizonte de tempo do Plano Diretor”.
Em Belterra, as áreas de consolidação do território urbano correspon-
dem, em grande medida, às antigas quadras de seringais. São lotes grandes,
muitos deles, pelo que pudemos apurar durante as entrevistas realizadas,
vendidos aos “gaúchos” que chegaram em busca de terra para plantio de
soja. Outros são marcados pela presença de agricultura tradicional, em
especial de frutas nativas da região, mas com um circuito mercantil pouco
organizado. Segundo alguns entrevistados, na época da colheita, as frutas
estragam-se nos lotes, porque não há como escoar todo o volume da pro-
dução. A possibilidade de instalação de agroindústrias não foi apresentada
espontaneamente por nossos interlocutores, dando-nos a impressão de que
não se trata de alternativa já amadurecida. Também não está prevista no
Plano. No que nos interessa neste momento, deve ser ressaltado que essas
36 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – M a r i a n a Tr o t t a D a l l a l a n a Q u i n t a n s

áreas correspondem à faixa que vai do centro histórico de Belterra à BR


163. Trata-se, assim, de um movimento planejado de aproximar a cidade
da estrada.
Um fato que chama a atenção é que muitas fazendas de soja estão
instaladas nessa área considerada pelo Plano como sendo de expansão
urbana. São recorrentes tanto nos trabalhos analíticos (Pereira; Leite, 2011;
Pereira, 2012) como também nas diferentes entrevistas que fizemos em
Belterra, as referência aos riscos que a soja traz pela proximidade dos plan-
tios com a área urbana, dada a grande quantidade de agrotóxicos utilizada,
colocando em risco a saúde de famílias que vivem próximas. Mencionou-se
inclusive a proximidade de escolas com plantações, prejudicando a saúde
das crianças, professores e funcionários.
Alguns pesquisadores afirmam que os municípios aumentam
artificialmente suas áreas urbanas, para ampliar suas receitas, visto que
a CRFB/1988 e o Código Tributário Nacional (CTN), Lei nº 5. 172/66,
determinam que os impostos municipais arrecadados nas áreas urbanas – o
Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana (IPTU) – devem ser geridos
pelos municípios, enquanto os impostos arrecadados nas áreas rurais –
Imposto Territorial Rural (ITR) – devem ser destinados à União. Embora
essa hipótese não possa ser descartada, convém destacar que atualmente a
legislação estabelece o repasse de 50% do ITR aos municípios ou a possibi-
lidade de os municípios optarem pela arrecadação integral desse imposto.11
O valor arrecadado pelo ITR, porém, é muito pequeno quando comparado
com o IPTU. Também merece destaque que, nos três municípios que visi-
tamos, os entrevistados nos indicaram alguns elementos que relativizam
essa ideia.
De um modo geral, os gestores públicos entrevistados indicaram que
a renda proveniente do IPTU não é a mais significativa para as adminis-
trações municipais, e destacaram que o Imposto sobre Serviços (ISS) tem
valores mais expressivos. Confirmamos essa argumentação a partir de dados
do Tesouro Nacional disponíveis no site do IBGE@cidades, no qual constata-

Apesar dessa possibilidade prevista no texto constitucional, como já destacado no


11

relatório, nenhum dos municípios estudados fez tal opção.


Marco Jurídico do Rural e do Urbano no Brasil 37

mos que a receita do IPTU nos municípios estudados é menor que a receita
do ISS e, ao mesmo tempo, muito pouco expressiva na totalidade da receita
orçamentária das municipalidades. Muitas vezes, o IPTU sequer é cobrado
com a rigidez que a lei prevê. Em outros casos, a expansão urbana ocorre por
meio de loteamentos clandestinos e o IPTU tarda a chegar, pois depende
da regularização e instituição de alguns serviços básicos; em outros casos,
mesmo com a tributação do IPTU em áreas com produção agrícola, obser-
vamos que a legislação municipal cria mecanismos de isenção do pagamento
desse tributo por parte dos agricultores. Diante dessa realidade, parece-nos
que a arrecadação do IPTU não se configura em motivação suficiente para
a ampliação das áreas urbanas, pelo menos nos municípios estudados.
Em relação à cobrança de impostos, no município de Caxias do Sul,
conforme a Lei Complementar nº 12 de 28/12/1994, o agricultor que mora em
área urbana que comprovar utilizar a área para destinação agrícola, torna-se
isento do IPTU. Para adquirir este benefício, entretanto, o agricultor tem
de abrir um processo administrativo, no qual são avaliadas as notas fiscais
movimentadas pelo agricultor e um fiscal realiza a vistoria da propriedade.
Após esses procedimentos, e constatada a destinação do imóvel para fins
produtivos, é dado o benefício da isenção fiscal durante o período de quatro
anos. Após esse período, há que renovar os procedimentos administrativos
no órgão municipal responsável.
Não encontramos menção a situações semelhantes em Belterra e
Nova Iguaçu, que apresentam uma agricultura local muito distinta daquela
de Caxias do Sul, menos diversificada e com um grau de informalidade
maior (salvo a produção de soja em Belterra).
Os códigos tributários municipais, por sua vez, podem sofrer ajustes
para atender às demandas específicas dos munícipes. Este é o caso de
Nova Iguaçu, em que nos foi relatado que, quando o Plano Diretor de 1997
definiu todo o município como cidade, os agricultores que procuravam a
prefeitura alegando que já pagavam ITR, conseguiram uma redução da
tributação urbana, por meio da entrada com um processo administrativo
para revisão do valor venal da área, base de cálculo do IPTU. Segundo um
entrevistado, apenas quem já não pagava ITR passou a pagar IPTU. Lem-
38 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – M a r i a n a Tr o t t a D a l l a l a n a Q u i n t a n s

bramos, no entanto, que nossos entrevistados, ao mesmo tempo em que


nos relatavam esses fatos, diziam que, na verdade, ninguém pagava IPTU,
que a cobrança era pouco rigorosa e as dívidas regularmente perdoadas, etc.
Enfim, pelas entrevistas realizadas, evidenciou-se que a decisão de
fazer um Plano Diretor (mesmo sem que isso fosse obrigatório por lei, uma
vez que o município possui menos de 20 mil habitantes) permitiu um amplo
debate público sobre o desenvolvimento municipal, envolvendo inclusive
algumas estratégias para, por exemplo, contenção da expansão da mono-
cultura da soja nas proximidades do centro urbano. Consolidar o Plano,
contudo, esbarra em outros limitantes que extrapolam as condições socio-
econômicas enfrentadas pelas municipalidades com população reduzida e
que sobrevivem de receitas baseadas em transferências do Estado e União.
Com efeito, Belterra apresenta o agravante de que parte substancial de seu
território está em mãos do governo federal (Floresta Nacional do Tapajós,
assentamentos rurais e parte substancial da antiga Fordlândia, cuja passa-
gem à prefeitura só foi feita parcialmente).

PLANEJAMENTO DA CIDADE
– O Rural e o Urbano em Evidência
Os casos que estudamos revelam que, em geral, o enfoque do pla-
nejamento esboçado nos Planos secundariza a área rural, quando não a des-
considera. Um indicador disso é o fato de que, nos municípios visitados,
não foi mencionado que políticas de educação, saúde, transporte, cultura,
entre outras, apresentam especificidades para as áreas rurais, exceto no que
se refere a Belterra.
Conforme os entrevistados, a oferta desses serviços públicos
ocorre nas sedes municipais e distritais, sem apresentar nenhuma par-
ticularização em relação à realidade rural. Não se trata somente de ter
acesso a elas ou não, mas da presença de preocupações que considerem
especificidades de modos de vida, como programas de saúde voltados
para doenças mais incidentes em áreas rurais, currículos escolares que
valorizem as particularidades da vida rural, programas de saneamento
e oferta de água que busquem alternativas para populações que, pela
Marco Jurídico do Rural e do Urbano no Brasil 39

sua natureza, não moram em concentrações, transporte que facilite a


mobilidade e a intercomunicação com distritos e a sede municipal, mas
também entre distritos, etc.
Caxias do Sul, por exemplo, apresenta um espaço urbano consolidado
no qual há forte concentração populacional e oferta de serviços públicos.
A área rural é caracterizada por uma importante produção agrícola e uma
menor oferta de serviços públicos. Nesse cenário, foi exaltado pelos entre-
vistados o Programa de Asfaltamento do Interior (PAI) e o fato de todos os
distritos terem maquinário para nivelamento das estradas. Sob essa perspec-
tiva, a melhoria das vias nas áreas do interior do município contribui para
facilitar a circulação entre o rural e o urbano e garantir o acesso da população
rural aos serviços públicos que, embora presentes em menor quantidade
no meio rural, ou mesmo ausentes, tornam-se disponíveis pelo aumento da
capacidade do município de facilitar a mobilidade de seus cidadãos. A maior
mobilidade também permite o escoamento da produção agropecuária, que a
população more no meio rural e trabalhe no meio urbano e ainda contribui
para estimular o turismo rural, que se apresenta como um setor de enorme
potencial a ser explorado no município.
Nas entrevistas realizadas com atores ligados ao meio rural, foram
reclamadas políticas públicas que dessem conta de especificidades dessas
áreas. Apareceu, por exemplo, a demanda para que o programa Luz para
Todos permita utilização de energia trifásica; que as escolas tenham currícu-
los voltados à realidade rural e de estímulo para que os jovens permaneçam
no meio rural, por meio da qualificação da comunicação da Internet e da
rede de telefonia. Foi definido como preocupante o fato de que algumas
indústrias do município busquem os jovens em suas localidades, ofereçam
emprego, transporte e ensino superior para que eles trabalhem nas empresas
e se formem em áreas ligadas à produção industrial. Se, por um lado, há a
oferta de novas oportunidades de emprego qualificado para os jovens, por
outro parece não haver políticas disponíveis que ofereçam possibilidades
para aqueles que desejam permanecer na propriedade e capacitar-se para
atuar no meio rural.
Em Belterra, como vimos, não existe uma urbanização consolidada,
semelhante ao que encontramos em Caxias do Sul ou em Nova Iguaçu.
Nesse município, a fronteira entre o rural e o urbano mostra-se tênue e os
40 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – M a r i a n a Tr o t t a D a l l a l a n a Q u i n t a n s

traços de ruralidade são muito presentes na área urbana (presença de quin-


tais grandes, criação de animais, atividades extrativas e até mesmo lavou-
ras comerciais como a soja, na área definida como de expansão urbana).12
Também é notório o grau de informalidade no comércio local, bem como a
forte presença da memória do “tempo da Ford” na população local. Embora
a ausência de serviços públicos seja visível, verifica-se, no Plano Diretor,
um esforço no sentido de que ele seja descentralizado. Uma evidência disso
foi a criação de regiões administrativas municipais, agregando comunidades
em cuja sede estão sendo oferecidos serviços básicos de educação e saúde.
Nesse caso, há que considerar as grandes distâncias a serem percorridas,
muitas vezes de barco, e o fato de que as comunidades encontram-se ou
dentro da Floresta Nacional Tapajós ou nas suas margens.
Nova Iguaçu, por sua vez, é um município de urbanização consoli-
dada, embora precária, caracterizada pela informalidade e irregularidade
típicas das grandes cidades brasileiras, tal como descrito por Maricato (2002,
2003). Diferente de Belterra, que apresenta uma ruralidade expressiva, tem
o que poderíamos chamar de uma “urbanidade expressiva”, na qual o rural
tem dificuldades de ser reconhecido. Como já destacado, o Plano Diretor
de 1997 definiu, no artigo 1º, que o município de Nova Iguaçu passava a
denominar-se Cidade de Nova Iguaçu e que o perímetro urbano compre-
endia todo o território do município, não reconhecendo, pois, a existência
de áreas rurais.
Esse processo de expansão urbana foi influenciado pela industrializa-
ção e urbanização do município do Rio de Janeiro, o que fez com que muitas
pessoas trabalhassem nesta última cidade e morassem em Nova Iguaçu,
transformando o município em “cidade-dormitório”, com habitações pre-
cárias, utilizadas por pessoas de baixa renda. A visão da equipe de gestão do
município na época era a de que os assentamentos de reforma agrária exis-
tentes na região não eram produtivos e geravam muitos problemas. As áreas
antes rurais eram consideradas insustentáveis econômica e ambientalmente.

F oi-nos narrado, por exemplo, que há um dispositivo no Código de Postura do


12

Município que determina como se deve carregar galinhas na cidade.


Marco Jurídico do Rural e do Urbano no Brasil 41

Por outro lado, alguns entrevistados nos chamaram a atenção para o


fato de que, diante das sucessivas emancipações e da perda de renda que
o município teve em razão delas, havia uma preocupação de não criação de
novos distritos, que pudessem, futuramente, se emancipar. Assim, a criação
da cidade de Nova Iguaçu, segundo essa versão, apareceu como um esforço
de evitar partilha do território e, ao mesmo tempo, consolidar a economia da
cidade. Com essa decisão, localidades em que havia assentamentos rurais
ou presença de pequenos agricultores que combinam atividades agrícolas
com empregos urbanos passaram a compor as áreas de “expansão urbana”.
Em Belterra a preocupação com as áreas rurais no Plano Diretor é
destacada e aparece associada a definições sobre a política municipal de
energia e comunicação (proposta de garantir a universalização do acesso à
rede de energia elétrica e redes de comunicação nas áreas urbanas e rurais);
oferta de serviços de telefonia celular e convencional em todo o município;
inclusão digital para benefício da gestão municipal; capacitação da popula-
ção com adequação de tecnologia para as áreas urbana e rural. O Plano, ao se
referir à educação, prevê, entre outras benfeitorias, a garantia de transporte
escolar alternativo gratuito, seguro e com regularidade aos alunos da rede
pública municipal de ensino na área urbana e na área rural; adoção e manu-
tenção de programas de ensino para tratar de educação ambiental, educação
no campo, questões relativas a gênero e relações interétnicas; promoção da
inclusão digital nas escolas tendo estas como porta de entrada da tecnologia
para as comunidades das áreas urbana e rural; incorporação da Pedagogia
da alternância, de modo a garantir a participação de jovens provenientes
de famílias rurais; ampliação de programas de elevação de escolaridade de
jovens e adultos no município, especialmente para o meio rural. O rural
também é associado à política cultural e esportiva (prevê-se a promoção de
eventos poliesportivos e de lazer nos bairros da cidade e na área rural, bem
como construção de Centros Poliesportivos e Culturais destinados à prática
esportiva e à realização de eventos culturais na sede e nas vilas distritais).
Em Caxias do Sul a preocupação com as áreas rurais aparece associa-
da ao estabelecimento das zonas de interesse turístico, motivando inclusive
a criação de uma Secretaria Municipal voltada ao tema. O rural também é
associado à orientação da política cultural e de preservação da paisagem. Na
determinação sobre as estruturas viárias, recursos hídricos e saneamento
42 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – M a r i a n a Tr o t t a D a l l a l a n a Q u i n t a n s

básico, o Plano Diretor também traz dispositivos específicos para tratar do


rural, evidenciando uma preocupação com o modo de vida, o tratamento dos
resíduos domésticos nessas áreas e a relação desse tratamento com a qua-
lidade do lençol freático. Há também a preocupação com conscientização
da população rural da necessidade de preservação e recuperação das águas,
sugerindo a instauração de um processo de educação ambiental nesses
locais, para evitar problemas sanitários e ambientais.
Em Nova Iguaçu, o Plano de 2011, que restabelece as áreas rurais,
apresenta preocupação com áreas rurais associadas ao desenvolvimento
social, ao prever como objetivos desse desenvolvimento “equipar e qualifi-
car os espaços públicos urbanos e rurais com infraestrutura, equipamentos
e mobiliário adequados”.
As questões levantadas evidenciam que é importante analisar as polí-
ticas públicas voltadas à educação, saúde, transporte, cultura, entre outras,
relacionando a previsão nos planos e legislações nacionais e suas conjeturas
nos Planos Diretores dos municípios, para uma efetiva conquista do desen-
volvimento dos municípios na sua integralidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As diferentes formas de ruralidade presentes nos municípios visita-
dos evidenciam os limites dos Planos Diretores enquanto mecanismos de
planejamento do conjunto de seu território, dado o enfoque do desenvolvi-
mento urbano a que estão sujeitos. Conforme Maluf (2004, p. 38), para ela-
borar um Plano que englobe a área rural e tenha objetivos mais amplos que
o desenvolvimento urbano, entre esses a segurança alimentar, por exemplo,
é necessário enfrentar questões preliminares, relacionadas ao enfoque a ser
adotado nessa elaboração e os instrumentos selecionados. Na opinião desse
autor, é preciso estabelecer uma compreensão sobre o mundo rural e as ati-
vidades nele desenvolvidas que superem o nítido viés urbano do enfoque
adotado no Estatuto da Cidade, que toma o rural como uma “extensão do
urbano” e propõe como diretriz a “urbanização do rural”. O autor destaca
que, no entanto, “não se trata de recolocar visões dicotômicas sobre o rural
e o urbano, negando o promissor caminho aberto pelos recentes enfoques
nos territórios que requerem considerar a interação entre o urbano e o rural”
(Maluf, 2004, p. 38).
Marco Jurídico do Rural e do Urbano no Brasil 43

Destacamos quatro desafios explicitados pelo Estatuto da Cidade


para o planejamento do desenvolvimento rural nos municípios brasileiros
no momento atual. O primeiro é o fato de que o rural continua sendo con-
siderado residual, no sentido de que é rural o que não é urbano. Até o
momento, coube à União elaborar políticas públicas para nele intervir. Da
mesma forma, a legislação atribui à União o poder de desapropriação das
áreas rurais, de recolher o Imposto Territorial Rural, de reconhecimento
das populações tradicionais que nele habitam e, consequentemente, de
assegurar seu território. O planejamento, no entanto, tem sido feito ou sob
a ótica da produção (políticas de estímulo ao aumento da ocupação do solo
de modo a torná-lo produtivo), da intervenção voltada para a resolução de
conflitos (reforma agrária, delimitação de territórios indígenas ou quilom-
bolas) e, portanto, movido por urgências ou para delimitação de reservas
ambientais, em suas diferentes formas. Não há tradição dos municípios em
executar esse planejamento, e muito menos existem instrumentos legais
para isso. Mesmo com as possibilidades que se abriram com a descentrali-
zação da execução das políticas públicas federais pós-Constituição de 1988,
o dilema não se resolveu, uma vez que elas encontraram municípios sem
cultura administrativa ou competência institucional e financeira para lidar
com determinadas ordens de problemas.
O segundo desafio diz respeito ao entendimento do rural vigente,
notadamente o viés produtivista. Este entendimento mostra-se insuficiente
para explicar as dinâmicas econômicas e sociais do rural contemporâneo.
Em virtude das reflexões sobre o mundo rural nos anos 90 e das pressões
sociais das organizações de trabalhadores do campo, a concepção do mundo
rural reclama uma nova leitura, que valorize as múltiplas faces do rural e dos
territórios nas sociedades contemporâneas. Conforme já mencionado, o meio
rural, além de produzir alimentos e fibras, também ganha destaque no que
diz respeito à preservação de comunidades e do patrimônio natural e cultu-
ral, biodiversidade, etc. Conforme Maluf (2004, p. 38), é preciso acrescentar
a ideia da pluriatividade das famílias rurais, cuja reprodução econômica e
social está assentada, em diversas situações, em atividades agrícolas e não
agrícolas, como fonte de renda. Isso envolve tanto atividades nos centros
urbanos, como outras de artesanato, turismo, preservação, etc.
44 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – M a r i a n a Tr o t t a D a l l a l a n a Q u i n t a n s

O terceiro desafio destaca a lógica que rege os Planos Diretores e sua


chegada às municipalidades: como já destacado, ele foi pensado para ser um
instrumento de “política urbana”, em que o rural é observado em relação
à área urbana do município. Nesse sentido, não está claro que existe uma
proposta de desenvolvimento local sustentável subjacente à proposta legal
de instrumentalizar a política urbana. Em que pesem essas limitações, no
entanto, a determinação de pensar o município como um todo, presente no
Estatuto da Cidade, forçou um diálogo entre o rural e o urbano nos marcos
legais dos municípios que não pode ser menosprezado.
O quarto refere-se à questão ambiental: muitos Planos Diretores res-
saltaram o rural quando trataram da questão ambiental em seus municípios.
Isso evidencia uma estreita relação entre o rural e a questão ambiental que
se reflete na elaboração dos seus marcos legais. Há tensões entre preser-
vação e ampliação de áreas, quer para a agricultura, quer para a expansão
urbana. Assim, demandas para flexibilizar a legislação ambiental aparecem
como constantes, colocando em risco a possibilidade de um desenvolvi-
mento sustentável. Por outro lado, a preservação ambiental exige políticas
e ações que ultrapassam as fronteiras administrativas, e que sejam compar-
tilhadas pelos municípios limítrofes, numa escala mais ampla, muitas vezes
regional. A atuação nessas áreas requer uma articulação para além dos muni-
cípios e exige diálogos políticos entre as municipalidades e suas ruralidades.
As dificuldades de estabelecimento de políticas territoriais recentemente
ensaiadas indicam a necessidade de maior reflexão sobre o tema.

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Desenvolvimento Rural Sustentável).
O RURAL MÚLTIPLO
A Heterogeneidade Social, a Construção de Identidades
e as Sociabilidades Locais

José Marcos Froehlich

Este texto busca abordar algumas mudanças observadas na forma


como a sociedade brasileira passou a se relacionar, projetar e depositar
expectativas sobre o rural e as ruralidades na transição do século 20 para
o 21 no Brasil, mais propriamente desde uma perspectiva do Brasil meri-
dional. Para iniciar, parte-se do pressuposto de que as possibilidades analí-
ticas de considerarmos as ruralidades no mundo ocidental contemporâneo
como múltiplas, estratégicas e compondo ativamente a dinâmica do social
no século 21, devem muito às abordagens que se dispuseram a dialogar
com reflexões que colocavam a superação ou tensionamento da moder-
nidade como ponto de partida de análises teóricas e empíricas. Pontos de
partida que tomavam como perspectiva a consciência crescente dos limites
do projeto da modernidade, na interessante expressão de Jameson (1997).
A modernidade era obcecada pela noção do tempo, sua crítica trouxe
de volta e redimensionou a noção de espaço, supostamente superado, para
estabelecer uma nova condição de vida, trabalho e sociabilidade: a com-
pressão espaço-tempo do capitalismo globalizado da acumulação flexível
(Harvey, 2012). Uma de suas consequências foi apontar para a insuficiên-
cia da mera dualidade rural X urbano como expressão do moderno (avan-
çado; melhor, rumo da civilização universal, etc.) X tradicional (atrasado;
rudimentar, irracional, etc.). Deriva-se deste redimensionamento crítico a
emergência e consolidação de uma noção e uma abordagem mais complexa
para dar conta dos complexos fenômenos sociais envolvidos: o território e a
48 J o s é M a r c o s Fr o e h l i c h

abordagem territorial, nos quais se entrelaçam e se condicionam mutuamen-


te cidades e campos, rurais e urbanos; enfim, territórios com suas heteroge-
neidades ecológicas, sociais e econômicas, suas sociabilidades e processos
de construção da realidade, nas quais se expressam atualmente as disputas
por construções identitárias.
Considerando os processos de globalização e de localização/terri-
torialização em curso como não dicotômicos e indissociados, assoma que
é a diversidade de lugares, paisagens, territórios, em suas dinâmicas, e a
impulsão das demandas sociais, que proporcionam uma realidade global
fragmentada e com muitas possibilidades de articulações. Pulverizado por
particularismos e singularidades, mas em conexão com o social mais amplo,
o lugar recebe determinações externas e as combina às narrativas locais.
Assim, as gestações de novas configurações socioespaciais são prenhes do
mundo e do lugar. O lugar supõe o mundo que no primeiro se manifesta,
pondo em movimento uma conexão dialética (Luchiari, 2000). Se antes as
populações dos lugares tinham a sua percepção do espaço social limitado
àquele necessário a sua própria reprodução, hoje o mundo – as evoluções de
uma ordem transnacional – coloca-se também como referência incontornável.
Torna-se característica da contemporaneidade a capacidade de deslo-
car a moldura, de se mover entre vários focos e escalas espaçotemporais, de
lidar com um leque de material simbólico de onde várias identidades podem
ser formadas e reformadas – construídas – em situações diferentes. Os indi-
víduos, nas sociedades contemporâneas, não pertencem mais a um só código
cultural homogêneo e, portanto, não têm mais uma única identidade distin-
tiva e coerente. Há, com isso, o fim das monoidentidades e a possibilidade de
construção de novas identidades a partir da coexistência – em um mesmo
grupo e mesmo até em um único indivíduo – de vários códigos simbólicos.
As identidades construídas e permeadas pela lógica cultural pós-moderna
são híbridas, maleáveis e multiculturais (Canclini, 2000, 2006). E, como as
possibilidades tecnológicas e sociais de nossa época possibilitam aos indiví-
duos e aos grupos intervir em escalas territoriais múltiplas, esta construção
identitária acaba por internalizar muitas vezes também as contradições (ou
os paradoxos) entre as diversas escalas de pertencimento.
O Rural Múltiplo 49

É notável, contudo, como tem havido uma extensão de repertórios


culturais e o aumento dos recursos de vários grupos para criar novos modos
simbólicos de afiliação e pertencimento, um esforço para retrabalhar e refor-
mular o significado de signos existentes, e, em todo este processo, a dimen-
são espacial (local/territorial) parece exercer um papel fundamental. Com a
hipervalorização pós-moderna do pluralismo e das diversidades, certas dife-
renças na qualidade dos lugares (da infraestrutura ao clima social) passam
a ser mais ou menos valorizadas entre potenciais investidores ou empreen-
dedores, ocasionando competição entre aqueles que disputam recursos e
buscam atraí-los para os seus respectivos espaços. Abre-se a possibilidade do
aproveitamento das novas estruturas de oportunidades promovidas pelo pro-
cesso de globalização a partir das potencialidades específicas e interessan-
tes que a escala territorial pode apresentar em relação a outras escalas. Tal
coloca como crucial a capacidade de concertamento e de ação autônoma por
parte de atores territoriais, que devem estabelecer relações de competência
e competição para mobilizar ou atrair recursos ou investimentos produtivos
(não necessariamente industriais ou de ethos produtivista) (Yañez, 1998).
Hoje, já não seria mais possível pensar o mundo ou o espaço rural
sem admitir que um mesmo espaço é sempre um espaço plural, em que há
diferentes formas de se afiliar ou se identificar com um território (produ-
ção, emprego, patrimônio, residência, residência secundária, lazer e turismo,
etc.). Não há mais a superposição quase imutável de um grupo com um
espaço, o que conforma o chamado fenômeno da “desterritorialização” ou
“deslocalização”. Este fenômeno, todavia, não anula o espaço, antes instaura
uma forma de concorrência entre territórios que se tornam jogadores dentro
de uma série de jogos sociopolíticos e socioeconômicos, fazendo valer suas
potencialidades, em que as heranças ecológica, cultural, paisagística, social,
ambiental, acabam constituindo a diferença valorizada. E, embora estes pro-
cessos toquem também ao urbano, às pequenas cidades, os territórios rurais
tornam-se predispostos atualmente a constituir o repositório do passado
histórico, da herança, dos valores seguros, da sociabilidade convivial, em
suma, a constituir o apoio de um imaginário e de práticas de relocalização
(Mormont, 1996). Neste processo a função simbólica do campo se modifica,
de reserva social para reserva cultural, mesmo que com noções idealizadas
50 J o s é M a r c o s Fr o e h l i c h

(não predador, não consumidor, equilíbrio natural, etc.). Além disso, há a


consideração do rural como valor estético, no qual a dimensão cultural pode
sobrepor-se à econômica (podendo-se aludir aqui à disjunção cultural pós-
-moderna), o que apontaria para a possibilidade de a condição camponesa
não ser mais considerada um arcaísmo a desaparecer, mas ser reconhecida
como alteridade – especificidade – em referência aos urbanos – a valorização
pós-moderna da diferença.
Nesta perspectiva, abordaremos três dimensões que expressam as
transformações nos e sobre os territórios rurais brasileiros neste início do
século 21: dizem respeito a questões ambientais, culturais e simbólicas que,
longe de serem estanques entre si, produzem seus efeitos em processos
constantemente inter-relacionados. As referências empíricas são tomadas
principalmente dos diversos trabalhos de pesquisa que vimos empreenden-
do já há tempos sobre a experiência de construção da identidade territorial
da Quarta Colônia, na região central do RS; mas vários aspectos que traze-
mos à análise neste território, também estão presentes em outros territórios
rurais neste processo de transformação e ressignificação das ruralidades no
Brasil do século 21.

QUARTA COLÔNIA:
Natureza e Cultura na Construção de uma Identidade Territorial
A recorrente preocupação ambiental contemporânea está a rebater
nas possibilidades e formas como o rural tem passado a ser construído social-
mente. Este rebatimento é multiforme e capaz de imprimir, para além das
chamadas novas funções não agrícolas dos territórios rurais, matizes renova-
dos a categorias derivadas da própria dinâmica social do mundo rural, como
as identidades coletivas e as sociabilidades locais. As identidades sociais de
grupos, quer catalisadas por variáveis territoriais, étnicas ou culturais, podem
ser definidas como o resultado de um duplo processo, de afirmação versus
distinção, que se vai forjando na base de relações de interdependência e dos
círculos sociais que os indivíduos vão estabelecendo entre si nas situações
cotidianas de sua vida (Froehlich, 2002; 2012). Este duplo processo constrói-se
em torno de práticas e sistemas de significações que, sendo partilhados
O Rural Múltiplo 51

por vários indivíduos, tende a constituí-los em grupos (Rodrigo, 1996). E


a dinâmica destes processos de (re)construção das identidades sociais, na
atualidade, constituem-se e afirmam-se progressivamente no âmbito de
redes de sociabilidade.1
No âmbito da região central do RS, podemos apontar uma expe-
riência importante no sentido do aproveitamento das novas estruturas
de oportunidades promovidas pelo processo de globalização e tangen-
ciadas pelas características da lógica cultural contemporânea a partir das
potencialidades específicas e interessantes que a escala territorial pode
mobilizar (em termos de heranças cultural, ecológica, paisagística, social,
ambiental, etc.). A experiência do Projeto de Desenvolvimento Sustentável
da Quarta Colônia do RS – Prodesus (Programa Nacional da Mata Atlân-
tica – PNMA/Projetos de Execução Descentralizada – PED-RS), inicia-
do em 1996, reuniu em consórcio nove municípios da região (Silveira
Martins, São João do Polêsine, Ivorá, Nova Palma, Faxinal do Soturno,
Pinhal Grande, Dona Francisca, Restinga Seca e Agudo). 2 Tal projeto
abarcou atividades que envolveram cursos de formação em Educação
Ambiental e Patrimonial, o resgate da memória cultural dos imigrantes
italianos, técnicas e práticas de diversificação e reconversão produtiva
para uma agricultura “ecológica” e “sustentável”, e o estímulo à dis-
cussão e execução do turismo rural, cultural e ecológico na região. O
consórcio configurou uma estratégia político-econômica de conforma-

1
Sociabilidade pode ser entendida aqui como o espaço de intensificação dos contatos
sociais mediados diretamente pela convivência entre os indivíduos para além dos
espaços de trabalho e familiar, mas que os inclui e os ultrapassa. Para aprofundamentos
sobre esta noção, ver Simmel (1971).
2
Os primeiros seis municípios citados configuram o que historicamente ficou conhecido
como a Quarta Colônia Imperial de Imigração Italiana do RS, constituída no decorrer
do ano de 1878, procedentes da região do Vêneto – província de Treviso – no norte
da Itália. As negociações para formar o Consórcio de Desenvolvimento Sustentável da
Quarta Colonia (Condesus) levaram à incorporação dos municípios de Agudo e Dona
Francisca, vinculados historicamente à Colônia Santo Ângelo (alemães), e Restinga
Seca, de ocupação afro-portuguesa, em razão da sua proximidade geográfica e agro-
ecológica com os municípios que faziam parte da Quarta Colônia de Imigração Italiana.
Para mais detalhes sobre a história e colonização da Quarta Colônia Imperial de Imi-
gração Italiana no RS, ver Sponchiado (1996) e Righi et al. (2001).
52 J o s é M a r c o s Fr o e h l i c h

ção territorial 3 em nome do desenvolvimento que buscou sobrepujar


as delimitações político-administrativas criadas ao longo dos processos
emancipatórios.
Na década de 90, organismos internacionais como a Unesco e o Banco
Mundial, preocupados com a problemática ambiental global, lançaram o pro-
grama de cooperação científica internacional Man and Biosphere-MAB, com
o objetivo de coibir a deterioração sistemática de ecossistemas e recursos
naturais singulares, reconhecendo tais áreas especialmente protegidas como
Reservas da Biosfera. Compondo uma rede internacional de intercâmbio e
cooperação científica e financeira, as ações das Reservas da Biosfera objeti-
vam, além do fomento e difusão do conhecimento científico, a conservação
da biodiversidade e a educação ambiental, a promoção do desenvolvimento
sustentável e da participação da população local na busca de soluções para
os problemas de interação com seu meio ambiente. O programa MAB, por
intermédio do Banco Mundial, disponibilizava recursos de financiamento a
fundo perdido para projetos que preenchessem estes requisitos, desde que
no âmbito de áreas reconhecidas como Reservas da Biosfera. Atendendo
a uma solicitação oficial do governo brasileiro, o MAB-Unesco declarou
como Reserva da Biosfera, entre 1991-1992, as partes mais significativas
dos remanescentes da Mata Atlântica demarcadas no Brasil.4 O país, assim,
habilitou-se a concorrer aos recursos disponibilizados pelo programa, tendo

3
Ao longo de mais de um século de ocupação, muitas migrações internas e trocas culturais
se estabeleceram, propiciando novas configurações familiares, locais e municipais, que
ao mesmo tempo em que conferem sentido ao território e a sua nova territorialidade,
também indiciam seu caráter de construção social e, portanto, em boa medida provisório
e em constante negociação.
4
A Mata Atlântica cobria, à época do descobrimento do país, cerca de 1.100.000 Km2 do
território nacional, estendendo-se ao longo de toda a costa litorânea e adentrando em
franjas para o interior, alcançando partes da Argentina e Paraguai. Atualmente, a Mata
Atlântica não cobre mais do que 8% de sua extensão original. A Reserva da Biosfera
da Mata Atlântica brasileira abrange uma área de aproximadamente 29 milhões de ha
em 14 estados brasileiros, desde o Ceará até o Rio Grande do Sul. Neste, além dos
resquícios na costa litorânea, há uma franja que incursiona pelos cimos da Serra Geral
indo até o centro do Estado e, deste modo, perpassando os municípios da chamada
Quarta Colônia.
O Rural Múltiplo 53

como gestor federal o Ministério do Meio Ambiente, o qual criou para este
fim o Programa Nacional da Mata Atlântica (PNMA) e, como parceiros, os
órgãos estaduais de meio ambiente.5
Aproveitando-se da oportunidade de financiamento a fundo perdido
de projetos que tivessem como foco a questão ambiental e o desenvol-
vimento sustentável e tendo a reconhecida Reserva da Biosfera da Mata
Atlântica em significativas parcelas de seus territórios, os referidos muni-
cípios formaram o Consórcio de Desenvolvimento Sustentável da Quarta
Colônia – Condesus –, que buscou assessoria e parcerias técnicas, e elaborou
e apresentou o Prodesus aos órgãos avaliadores, obtendo o almejado finan-
ciamento para a proposta. Ressalta-se que a capacidade de concertamento
e de ação autônoma por parte dos atores territoriais – no caso, os municí-
pios e seus parceiros: UFSM, Emater, etc. – era um requisito para desatar
o processo da experiência e sua consecução, até mesmo porque se estava
a estabelecer relações de competência e competição (com outros projetos
de outros espaços) para mobilizar e atrair os recursos necessários. E, para
além das esferas institucionais, este concertamento envolveu também parte
da sociedade civil organizada, como algumas associações de agricultores,
escolas, círculos de pais e mestres, Organizações Não Governamentais.
Os programas de Educação Ambiental e Patrimonial constituíram-se
na base para a criação do programa PED-RS na região da Quarta Colônia. A
experiência nessa área e o bem-sucedido trabalho desenvolvido pelo con-
junto de escolas municipais e estaduais dos nove municípios do Condesus
foram, inclusive, reconhecidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional – Iphan – com o Prêmio Rodrigo Mello Franco de Andrade,
categoria Educação Patrimonial, na edição de 1997. O resgate do patrimônio
histórico e cultural da região tentou levar em conta a sua articulação com o

5
No RS, no caso, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), que criou, então,
no âmbito da referida parceria, o Programa de Execução Descentralizada (PED-RS),
para financiar, com os recursos do Banco Mundial, do Ministério do Meio Ambiente
e do governo do Estado do RS, projetos socioambientais nas áreas da “Reserva da
Biosfera” da Mata Atlântica. No caso do RS, o financiamento dos projetos previa uma
contrapartida da esfera municipal da ordem de 10% do montante de recursos solicitados.
54 J o s é M a r c o s Fr o e h l i c h

ambiental, por meio da composição paisagística, como se pode constatar na


folhetaria de divulgação turística do território produzida então pelo Prodesus
(Froehlich, 2002).
No eixo do turismo, foram desenvolvidas ações pontuais, porém
básicas para a animação do território a partir da afirmação das suas poten-
cialidades culturais e ambientais. Neste sentido, foram formados 18 guias de
Turismo Regional, para fazer frente a uma carência de pessoal com formação
técnica para atender aos roteiros turísticos que se planejava criar. Do mesmo
modo, foram efetivamente criados, demarcados, sinalizados e divulgados,
com folhetaria específica, 18 roteiros (dois em cada município do Condesus),
que buscaram integrar o território dentro de suas mais marcantes caracterís-
ticas e atrair maior fluxo turístico. Constata-se, na análise dos referidos Rotei-
ros Integrados de Turismo Rural, Cultural e Ecológico, o forte entrelaçamento
de espaços rurais e urbanos e a eclética composição do chamado produto
turístico, pois as atrações propostas misturam-se numa verdadeira miscelânea
de variáveis geoecológicas e etnoculturais. Nesta mescla turística o rural é,
ao mesmo tempo, paisagem, pano de fundo e também história do modo de
vida e trabalho dos colonizadores e atuais habitantes daquele território. Este
entrelaçamento do rural com o urbano promovido pelos Roteiros Integrados...
toma mais acento ainda pelo fato de os núcleos urbanos da maioria dos
municípios integrantes do Condesus serem de pequena magnitude, con-
formando o que se poderia chamar de municípios rurais (Wanderley, 1997),
nos quais o ambiente construído – a cidade – e o ambiente natural – o rural
– não se apresentam tão demarcados. E esta característica socioespacial não
deixou de ser utilizada pelo Programa, sobrevalorando a dimensão estética
desta peculiar composição paisagística como atração turística, captando e
difundindo sua imagem mediante a produção de cartões-postais (Froehlich,
2002; Froehlich; Alves, 2007).
Estas projeções referentes ao patrimônio natural do território são
acionadas em consonância com as preocupações ambientais em pauta nas
sociedades contemporâneas e que representam atrativos aos visitantes. São
apropriações feitas a partir de conexões semânticas sobre os sentidos do
que seja a natureza, o rural, a biodiversidade, a tranquilidade, a aventura
O Rural Múltiplo 55

e o saudável.6 Estas representações estão presentes no imaginário social


sobre o rural e a natureza e são acionadas pelas localidades com o intuito
de potencializar o seu patrimônio natural, principalmente na tentativa de
promover o turismo, como um dos elementos essenciais para o desenvol-
vimento territorial.

A Quarta Colônia, área prioritária da Reserva da Biosfera da


Mata Atlântica, está situada entre os campos e várzeas da
Depressão Central, vales dos contrafortes da Serra Geral e os
campos do Planalto. Com ambientes de rara beleza esta região
preserva fragmentos de uma das florestas mais ameaçadas do
Rio Grande do Sul. Na Quarta Colônia, a Floresta Estacional
Decidual possui uma grande diversidade de espécies vegetais
e animais. São nestas matas que cobrem as serras emoldurando
campos, plantações e cidades, que está o grande patrimônio
da Quarta Colônia. Percorrer os vales, trilhas, arroios e rios,
banhar-se nas cascatas são vivências únicas onde a natureza é
muito mais que um cenário, é vida. (...)
Aventure-se na Quarta Colônia! Por terra, água ou ar, tudo
depende do seu estado de espírito e do seu fôlego para esta aven-
tura (Folder Ecoturismo, Condesus).

Pode-se afirmar que a produção dos kits de cartões-postais pelo


Condesus Quarta Colônia constituiu-se numa estratégia de marketing que
visava a inserir o território no mercado de atração turística, estratégia que
se utilizou da grande importância que a dimensão estética tem contempo-
raneamente. No caso, o foco utilizado foi a valorização estética da paisagem
natural aliada à arquitetônica – numa conjugação do que é considerado patri-
mônio natural (a Mata Atlântica) e patrimônio cultural/histórico (arquitetura
colonial italiana, artefatos de trabalho e produção etc.). Ressalta-se aqui a
construção do consumo visual – via cartões-postais –, em que há a tentativa
de cristalização da atração (turística) pela condução do olhar para pontos que
são considerados dignos de serem observados e valorizados. Implica, por-

6
Para uma abordagem sobre os sentidos do rural e da natureza na contemporaneidade,
ver Froehlich (2002) e Froehlich e Monteiro (2004).
56 J o s é M a r c o s Fr o e h l i c h

tanto, uma seleção prévia que condiciona, de algum modo, a experiência do


observador/turista, não sendo este um ato inteiramente livre a ser vivenciado
de maneira espontânea pelo sujeito observador (Luchiari, 2000; Urry, 2001).
Tais aspectos deixam entrever o papel muito importante de outras
variáveis, além da escala econômica, que passam a ser mobilizadas em nome
do desenvolvimento do território, como a sociabilidade e a cultura locais,
pois, neste âmbito, os padrões institucionais, normas e valores sociais vigen-
tes atuam como filtros dos processos, relevando-se o conhecimento e capa-
cidades dos habitantes locais, seu capital social e cultural. Em tal dimen-
são, a sociabilidade local, que implica alto grau de conhecimento mútuo e
inter-relações e, portanto, a consolidação de uma identificação territorial,
constrói e faz passar a ação dos impulsos endógenos e exógenos favorá-
veis ao desenvolvimento pelo filtro de sua constelação de forças e sistema
cultural. Analisando, para o caso do Programa Leader europeu então em
plena consolidação, este entrelaçamento entre as dimensões econômica e
cultural em processos que buscam promover uma abordagem territorial do
desenvolvimento, López-Casero (1996, p. 442) aponta:

Há, portanto, uma importância crucial da “lógica comunitária”


articulada através da identidade local (resultante de uma densa
rede de relações econômicas intralocais, forte grau de conheci-
mento mútuo, sociabilidade e abundância de tradições de caráter
lúdico e religioso), pois é bastante significativo o modo como um
mesmo sistema de valores não econômicos reforça, através da
identidade local, os distintos efeitos de uma cultura econômica
diversa.

Podemos afirmar que, em grande parte, a força desta identidade local


ou lógica comunitária assenta-se nas relações vicinais e familiares, circunscritas
a um dado território, que continuam a ser tão importantes quanto as de caráter
nacional ou mundial, mesmo num contexto caracterizado pela globalização
e o aumento da ação a distância. Segundo Yañez (1998), o motivo para tal é
a maior possibilidade e efetivação da interação direta, base para a manuten-
ção de relações constantes e intensas e a criação de uma identidade coletiva
centrada no território. Este pode ser percebido como um espaço de vida de
uma coletividade local, que tem uma história, uma dinâmica social interna
O Rural Múltiplo 57

e redes de integração com o conjunto da sociedade em que se insere, sendo


um espaço delimitado cujos contornos são demarcados por um certo grau de
homogeneidade, identificação e integração dos aspectos físicos-ambientais,
socioculturais e econômicos da população local (Wanderley, 2000). Daí por
que aspectos culturais e simbólicos são amplamente mobilizados como recur-
sos em narrativas que buscam construir identificações territoriais.

A MOBILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES ETNOCULTURAIS


E SIMBÓLICAS NO TERRITÓRIO QUARTA COLÔNIA
A narrativa identitária apoia-se no resgate da memória coletiva e
de um passado constantemente revisitado e reelaborado para produzir os
referenciais históricos e culturais de uma origem comum. É, portanto, na
descendência que se afirma um pilar da produção identitária, a qual carrega
uma historicidade de origem, de apropriação territorial por determinados
grupos e de reprodução de suas características culturais, sociais e econômi-
cas. Assim, a etnicidade7 constitui um dos principais sinais de representa-
ção identitária do território, ancorada na origem comum e na história local
demarcadas pelo contexto da colonização, que agora se manifesta como
foco e princípio da idealização territorial. As teias de significado que dão
sentido ao pertencimento territorial da Quarta Colônia são tecidas a partir
da recorrência a um tempo passado, conformando atributos a partir de rein-
terpretações do que tenha sido este passado. A colonização e seus atributos
étnicos têm sido acionados no presente pelos atores por meio da exaltação
da etnicidade, como um histórico privilegiado e gerador de mitos. Ao acionar
o passado, muitos dos elementos reivindicados pela origem étnica são relei-
turas e recriações de um tempo com objetivos e olhares do e no presente, a
que se pode chamar de tradições inventadas.8

7
Compreendemos a etnicidade a partir de Barth (2000), que a destaca como o sentimento
de pertença a uma origem comum, que tem como característica as relações de poder
imersas nos espaços de fricção interétnica.
8
Um conjunto de práticas, de natureza ritual ou simbólica, que visam a inculcar certos
valores e normas de comportamento por meio da repetição e que implicariam uma
continuidade em relação ao passado (Hobsbawm; Ranger, 1997, p. 9).
58 J o s é M a r c o s Fr o e h l i c h

As constantes referências ao passado da imigração e colonização são


acionadas para a manutenção da coesão grupal e para elaborar o processo
identitário. Recorre-se à descendência como um distintivo entre grupos
que vivem na Quarta Colônia e desta para com outras regiões. Assim, no
cotidiano da Quarta Colônia é frequente a referência à distinção entre italia-
nos, alemães e brasileiros. Ao se conversar com um morador local é comum
aparecer a pergunta pelo sobrenome familiar e exposições breves sobre a
árvore genealógica dos antecedentes. Além disso, é costumeiro entre os
descendentes identificarem-se como italianos ou alemães, sem citar, ante-
riormente, a palavra descendente, distinguindo-se dos brasileiros, o que os
diferencia dos que não apresentam ascendência italiana ou alemã. Estas
manifestações cotidianas são reivindicações do mito de origem, sinal distin-
tivo que produz a representação do que significa pertencer à Quarta Colônia
ou o que os distingue dos demais, interna ou externamente.
Percebemos estas reivindicações das origens étnicas como uma
construção mítica, uma narrativa do passado que é reconhecida pelo grupo
e que é reelaborada e acionada no presente com um objetivo específico,
neste caso, de se distinguir. A reivindicação do mito de origem entre os
descendentes alemães e italianos faz parte de um processo de valorização de
identidades ressentidas em um contexto em que a origem vem sendo res-
significada sob um processo de positivação. Esta ressignificação da origem,
portanto, deu vida à construção territorial da Quarta Colônia por meio de
ações que buscaram positivar a origem étnica ressentida pelas repressões
do Estado Novo9 e pelas estigmatizações da cultura urbano-industrial. O
que antes gerava um sentimento de vergonha nas pessoas que ali residiam,
ao confrontarem-se com os valores imperantes no imaginário do mundo
urbano-industrial sobre o rural, hoje passa a ser acionado como elemento
de afirmação identitária étnica e territorial, consumido por esta (mesma)

9
Como analisado por Zanini (2006), o período conhecido como Estado Novo marcou
de forma significativa a identidade italiana, em que o ressentimento provocado pelas
perseguições desse período, no qual falar e cantar em dialeto ou acionar símbolos
do pertencimento à cultura italiana eram proibidos. Tal se passou também com os
descendentes de alemães no mesmo período.
O Rural Múltiplo 59

sociedade urbana. Assim, o colono,10 anteriormente tido como sinônimo


de “grosso”, “atrasado”, passa a ser ressignificado como portador de uma
origem europeia não ibérica e valorizado pela sua “autenticidade”.
A identidade etnocultural aqui focalizada e reforçada encontra na
língua – na oralidade e na memória coletiva – um elemento crucial desta
articulação. O dialeto vêneto, que é o falado em quase toda a Quarta
Colônia, encontra seu lugar de destaque para ativar a memória histórica, a
trajetória e os possíveis vínculos familiares desde a região do país de origem
– a atual Itália. Esta dimensão da oralidade e do dialeto é tão forte que, em
alguns municípios da Quarta Colônia, até as placas das praças fazem questão
de denunciar a origem e identidade étnica do lugar pelo uso da escrita em
linguajar vêneto (Froehlich, 2012).
Assim como o mito de origem, o mito civilizador também é reivin-
dicado como um dos sinais distintivos dos descendentes de italianos e
alemães que habitam a Quarta Colônia. O mito civilizador é construído a
partir dos significados aportados pela vinda dos imigrantes como desbra-
vadores e povoadores das terras do Rio Grande do Sul, as quais não seriam
bem aproveitadas pelos então habitantes locais. Esta reivindicação distingue
os colonos europeus, não ibéricos, dos outros grupos que eram proprietários
de terras, representados pelo termo brasileiros. Assim, os imigrantes teriam
vindo ao Brasil para ocupar os espaços “vazios” e improdutivos. São acep-
ções que permearam o imaginário da época e que são revividas e reelabora-
das para dotar de valor a trajetória de ocupação do território Quarta Colônia.
Esta saga, em tons quase épicos, é retratada e narrada em eventos festivos
e desfiles, aludindo-se aos motivos de partir do longínquo país de origem,
a longa travessia, a chegada no Brasil, as grandes dificuldades e sacrifícios
dos primeiros dias, a coragem, o trabalho e a união dos colonos.
Estas narrativas, por vezes, constroem a figura do herói quase mártir
ao invocar e conferir virtudes de tenacidade, capacidade de superar dificul-
dades e nobreza de caráter ao imigrante que deixou sua pátria em busca de

No Brasil, colono refere-se aos imigrantes de origem europeia não ibéricos que ocuparam
10

significativas áreas rurais do Sul do país, tendo por base o trabalho familiar em pequenas
propriedades (uma colônia equivalia, geralmente, a cerca de 25 ha de terra). No caso do
território Quarta Colônia o termo colono se aplica à origem italiana ou alemã.
60 J o s é M a r c o s Fr o e h l i c h

um novo mundo; e de um colono que desbravou os espaços vazios e trouxe


a produtividade, a riqueza e a cultura ao novo mundo (Zanini, 2006). São,
portanto, os mitos fundados a partir da colonização, principalmente italiana,
que conferem sentido à territorialidade demarcada. Os elementos são reivin-
dicados para a afirmação dos colonos que, por muitas vezes, foram estigma-
tizados ao expressar sua cultura, costumes e crenças trazidas da pátria-mãe.
A linguagem contida na narrativa identitária Quarta Colônia é uma
espécie de atualização da origem étnica e, portanto, possui uma vinculação
entre o futuro utópico e o passado, presente nas práticas sociais cotidianas
e nas marcas culturais desse grupo. Isso denota uma transformação e uma
representação simbólica muito potente, resultando em tradições históricas
e culturais que são traduções do passado (Bhabha, 1998). A narrativa identi-
tária, deste modo, é construída nos contextos sociolinguísticos e práticos do
cotidiano. O narrador, ao narrar a sua história, empenha-se em transformar
um ato social em um ato de narração, um ato de afirmar ou mesmo de se
engajar no processo identitário atual, por um ato de enunciação em que
também há relação de poder implícita. Assim, constatamos que a narrativa
identitária da Quarta Colônia utiliza-se dos sentidos atribuídos pelo resgate
do passado colonial. Isso porque percebemos que a dimensão temporal
está implícita no ato de narrar, estabelecendo uma relação entre narrativa
e temporalidade. As narrativas, portanto, são interpretações de símbolos,
ou seja, ações ou características que ao serem rememoradas, são portadoras
de significado (Ricoeur, 1994). Partindo do pressuposto de que a memória
é seletiva, assim como constitui uma construção do passado no presente,
revela-se que os elementos acionados na narrativa constituem símbolos,
posto que à medida que são selecionados pela memória coletiva dotam-se
de significados (re)construídos e reconhecidos pelos grupos que os acionam
(Halbwachs,1990; Froehlich; Vendruscolo, 2012).
Não podemos deixar de lembrar também a recorrente observação de
festas e espetáculos que tematizam e têm o ambiente rural como cenário
para perceber o mundo rural como suporte de um imaginário e de práticas
de relocalização na atualidade, tornando-se substrato para a (re)construção
de novas configurações e identidades socioespaciais. Destacam-se, como
elementos estratégicos na projeção desta construção identitária, a espeta-
O Rural Múltiplo 61

cularização, a esteticização, as composições ecléticas, as simulações, num


movimento que não deixa de apresentar também peculiares ambiguidades,
ambivalências e paradoxos.
As festividades, ao mesmo tempo em que se constituem em âmbito
de consumo, revelam-se também importante substrato simbólico para a
construção e afirmação dos sinais identitários do território Quarta Colônia.
Há um calendário anual de festas com diversas motivações, sejam comu-
nitárias de cunho religioso, comemoração do aniversário de emancipação
político-administrativo dos municípios ou festas referenciadas por pro-
dutos agrícolas ou pratos elaborados a partir de saberes coloniais étnicos.
Na medida em que estes são momentos de interação, constituem espaços
de sociabilidade em que são acionados e reelaborados sinais distintivos
que compõem a reivindicação da identidade territorial. Nesse sentido,
podemos afirmar que cada público envolvido estabelece uma relação com
a localidade a partir do seu repertório (representações familiares e sociais)
e do repertório que a localidade lhe oferece para construir suas impressões,
desde uma recepção acolhedora até um atributo sensorial como o sabor
culinário.
As festas constituem um universo favorável ao “diálogo entre os
muito diferentes”, propiciando a “mediação entre as etnias, os mitos, e os
tempos históricos diversos”.11 O cenário de festa, portanto, apresenta-se
como um atrativo na medida em que a comunidade local organiza-se para
aquele momento, um momento para receber os visitantes e servi-los, um
ritual de “vestir o local”, fazer o cenário no qual será realizada a “encenação”
festiva. Cada festa é ornamentada de acordo com sua temática, as decorações
produzem imagens para o sentimento de aconchego e a afirmação simbólica.
São também frequentes nos eventos festivos da Quarta Colônia as tentativas
de acionar um sentido de abundância, projetado sobre a representação da
diversidade da produção familiar aliada aos saberes coloniais na prepara-

Amaral (1998, p. 47) “A festa é ainda mediadora entre os anseios individuais e os


11

coletivos, mito e história, fantasia e realidade, passado e presente, presente e futuro,


nós e os outros, por isso mesmo revelando e exaltando as contradições impostas à vida
humana pela dicotomia natureza e cultura, mediando ainda os encontros culturais e
absorvendo, digerindo e transformando em pontes os opostos tidos como inconciliáveis”.
62 J o s é M a r c o s Fr o e h l i c h

ção de pratos típicos. O sentido de fartura é representado, nas festas, pela


diversidade de pratos servidos em um ritual característico do que seria o
consumo alimentar do local. As imensas mesas, nas quais as pessoas sentam-
-se em um grande grupo, lado a lado, e são servidas pelos “festeiros”12 em
um cardápio pré-organizado, são elementos de um ritual característico que
remonta às grandes famílias italianas ou alemãs e que proporciona um tra-
tamento peculiar aos visitantes, como se a festa fosse uma extensão da casa
e da celebração familiar.
Esta lógica de fartura, que quer manifestar a sensação de que nada
falta, remete aos momentos de fome e dificuldades pelos quais passaram
os imigrantes italianos e alemães que colonizaram a Quarta Colônia. Busca
expressar nos eventos a lógica consumidora da gastronomia caseira, quando
as mesas seriam abastecidas de todos os produtos da estação, sempre com
variedade e quantidade, uma vez que as famílias eram grandes. A mesa
farta representa, para os descendentes de italianos e alemães, a riqueza, a
abundância adquirida com o esforço e a bravura, ultrapassando um tempo
de fome e miséria quando da chegada dos primeiros imigrantes. Significa,
portanto, a continuidade e a realização do ideal colonial dos seus antece-
dentes: “Far la América”.
Nesse contexto, as festas também servem para tematizar a vida coti-
diana pregressa dos colonos italianos ou alemães, em consonância com as
demandas do público que valoriza e busca consumir um tempo ou um modo
de vida distinto dos padrões do cotidiano urbano-industrial. A festa cons-
titui o momento em que o local se mostra para os visitantes, uma relação
dialógica entre o ethos urbano e o ethos rural (Teixeira, 1988). O ethos rural, na
narrativa identitária em questão, tem como base a cultura colonial, principal-
mente a italiana. Constitui uma relação de articulação entre a representação
do moderno, ligado à imagem do urbano, e a representação do tradicional,
vinculada à imagem do rural, camponês.

Festeiro constitui a denominação dos promotores e auxiliares das festas, os quais


12

participam do preparo, da organização ou do ato de servir os convivas.


O Rural Múltiplo 63

A valorização do modo de vida antigo não significa a autêntica vida


da colônia na atualidade, mas a representação do cotidiano de um modo de
vida pitoresco que provoca um sentimento de temporalidade vivenciada.
Nesse sentido, a produção do autêntico evoca pretensos caracteres fidedig-
nos, como um cenário teatral em que os atores buscam acionar um tempo
pretérito e elementos pitorescos como forma de exaltar percepções apre-
ciadas pelo público consumidor. Constituem-se como espetáculo no qual
o cotidiano colonial museificado é apresentado segundo a apreciação dos
visitantes (Champagne, 1977; Froehlich, 2012).
Para isso, as festas transformam-se em palcos, nos quais busca-se
retratar os afazeres cotidianos mediante reproduções de cenários e encena-
ções dos costumes e modo de vida de um rural caracterizado pela coloni-
zação alemã e italiana. Na composição estética destes cenários proliferam
utensílios e objetos antigos, pertencentes ao mundo do trabalho ou da vida
doméstica dos colonos, que agora transfiguram-se em signo materializado de
reverência histórica, numa narrativa que (re)constrói a história e a tradição
criando o seu próprio (e novo) original (Froehlich, 2012). O passado, porém,
não é apenas museificado na exposição dos objetos antigos, mas é simulado
em encenações que buscam reproduzir o próprio modo de vida dos antigos.
O conjunto de cenário e encenação que instiga o sentimento de retorno
ao rural colonial são simulações de um tempo pretérito, que produz seus
efeitos de narrativa mediante a ressignificação promovida pela sociedade
de consumo.13
Nestas encenações, a temporalidade combina-se e justapõe-se for-
mando uma noção temporal híbrida, na medida em que os elementos da
memória delineiam-se sobre “o que era”, “o que é” e “o que queremos ser”.
É o tempo que, neste caso, constitui a peça de museu e a descontinuidade
temporal compõe o enredo que assegura o espetáculo, pois a exibição do

Segundo Jameson (1997), o voraz apetite consumidor pelo mundo do espetáculo que
13

vivenciamos nas sociedades contemporâneas tem no simulacro o seu melhor substrato.


Para Baudrillard (1991), enquanto indicadores da trama narrativa pós-moderna, os
simulacros são verdadeiros; nestes cenários e encenações eles se constituem nos
dínamos do espetáculo, em que a simulação do passado é a verdade da festa, a realidade
presente, tanto para “atores” quanto para “espectadores”.
64 J o s é M a r c o s Fr o e h l i c h

cotidiano colonial constitui uma rememoração de um tempo pretérito, cuja


visitação se dá selecionando e ressaltando alguns elementos mais do que
outros. Processo coerente com a reinvenção da tradição, cujos objetivos e
significações estão impregnados com os propósitos do presente.
Na Quarta Colônia, portanto, os eventos festivos constituem impor-
tantes espaços de interação social e, assim, são momentos privilegiados de
construção da identidade territorial, pois as “festas não apenas atualizam
mitos, como revivem e colocam em cena a história do povo, contada sob
seu ponto de vista” (Amaral, 1998, p. 274). Assim, os elementos simbólicos
identitários do território são acionados nestes espaços de sociabilidade, tanto
na afirmação dos laços comunitários quanto nas interações com os “de fora”.
É neste espaço que as riquezas das negociações identitárias são manifestas
e compreendidas, em que a narrativa do “Eu” ou do “Nós”, é acionada no
contraste com os ‘Outros’. Destaca-se aqui a interpretação das festas como
parte da narrativa que busca construir a identidade territorial Quarta Colônia,
na medida em que elas “são montadas para contarem, conscientemente,
estórias locais ao público, sobretudo, externo” (Amaral, 1998, p. 42). Os
momentos festivos revelam-se como momentos de demonstrações, de ence-
nações, de reproduções do cotidiano presente e pretérito ou de elaborações
próprias dos momentos de comemoração, um espaço fértil para a construção
e reiteração de sentidos que passam a reivindicar e compor a identidade
territorial (Kegler; Froehlich, 2011).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A emergência e trajetória histórica do Condesus Quarta Colônia,
baseada no concertamento de atores territoriais e locais, aponta para uma
experiência de aproveitamento das (então) novas estruturas de oportunida-
des promovidas pelos processos de globalização e repercussões do ambienta-
lismo, a partir das potencialidades específicas e interessantes – herança eco-
lógica, paisagística, cultural, social – que o âmbito territorial apresenta(va).
Em consonância com a lógica cultural contemporânea – construção de
identidades, valorização das diferenças, ecletismo, esteticização, resgate da
tradição – esta experiência, de certa maneira, criou um novo modo simbólico
de afiliação e pertença a um território, mediante o esforço que retrabalhou e
O Rural Múltiplo 65

reformulou o sentido de signos preexistentes, reformatando positivamente


processos de identificação etnocultural e ecológicos (ambientais) na conver-
gência a uma entidade territorial: a Quarta Colônia.
O processo pelo qual as diversas comunidades locais/rurais, abarcadas
por este território, relacionam-se e se integram ao global, ao invés de diluir
as diferenças, tem possibilitado o reforço de identidades justamente apoia-
das no pertencimento ao território. Essa âncora territorial, embora mutável
e relativa atualmente, é a base sobre a qual a cultura realiza a interação
entre o rural e o urbano de um determinado modo, ou seja, mantendo uma
lógica própria que lhe garante a construção ou manutenção da identidade
(Carneiro, 1998; 2012). A intensificação das relações com a sociedade mais
ampla trouxe a incorporação de novos componentes econômicos, culturais e
sociais, e novas experiências vivenciadas pelas comunidades locais e rurais, o
que contribuiu para ampliar a própria diversidade social e cultural existente.
Esta, contudo, é também condição de existência da sociedade na medida
em que alimenta as trocas, ao enriquecer os bens (culturais e simbólicos) e
ampliar a rede de relações sociais. As modificações de hábitos, costumes, e
mesmo de percepção de mundo, ocorrem, mas de maneira irregular, com
graus e conteúdos diversificados, segundo os interesses e a posição social
dos atores, não implicando uma ruptura radical no tempo nem no conjunto
do sistema social. A heterogeneidade social e as transformações derivadas da
intensificação das trocas pessoais, simbólicas, materiais, ainda que possam
produzir situações de tensão, não provocam inexoravelmente a descaracte-
rização das culturas locais, antes talvez, a reformatação em novos compostos
culturais. O que se constata é que a diversidade pode assegurar a construção
da identidade do agrupamento social, pois há relação de alteridade com
os “de fora” (Chamboredon, 1980; Carneiro, 1998).14 O movimento entre
o estabelecido – o velho – e o novo é que impulsiona as relações do lugar
com o mundo, em que este atravessa aquele com novos costumes, hábitos,
maneiras de falar, mercadorias, modos de agir, etc.; e, assim, também neste
movimento, a própria identidade do lugar é constantemente recriada, pro-

Para S. Hall (2003), a diferença (la difference) participa do processo de construção


14

da identidade mediante a produção de “efeitos de fronteira” que promovem a


diferenciação do “outro”.
66 J o s é M a r c o s Fr o e h l i c h

duzindo um espaço social híbrido, no qual o velho e o novo fundem-se


dando lugar a uma nova configuração socioespacial. No território em tela,
esta configuração chama-se hoje Quarta Colônia.
Os territórios rurais, ao tornarem-se suporte de um imaginário e de
práticas de relocalização na atualidade, tornam-se substrato privilegiado para
a construção de identidades coletivas referenciadas em ecossistemas sobre
os quais interagem grupos humanos específicos. Essa construção ocorre
por meio de entrelaçamentos peculiares entre os meios físicos, atividades
econômicas e vida social, e se apoia no poder motivacional da História e da
tradição, resgatadas ou reinventadas segundo os propósitos do presente. O
passado e a tradição são revisitados, assim, num processo que busca agregar
valor e amalgamar, em um discurso identitário de nova configuração, antigos
(e também novos) costumes, hábitos e sociabilidades. Como estratégia de
projeção dessa construção identitária, recorre-se facilmente à esteticização
e à espetacularização, produzindo-se aí ecléticas composições. E, nesse
âmbito, os simulacros constituem-se nos dinamizadores da atratividade
mediante a recriação da aura de autenticidade com a qual se procura envolver
os objetos, as encenações e os eventos que compõem a referida estratégia.
Os eventos festivos, por exemplo, constituem-se atualmente em ele-
mentos estratégicos fundamentais na tessitura de uma narrativa identitária
que reconstrói o passado com os olhos e os interesses do presente; esta rein-
venção da tradição pelos propósitos do presente ocorre por meio da elisão,
nesse resgate, de alguns elementos e pelo realce de outros, num processo
de seletividade. O passado e a tradição, assim revisitados com os propósitos
do presente, são produzidos como simulacros ou pastiches, atendendo a
diferentes interesses de produtores e consumidores. Nesta estratégia, os
elementos lúdicos e de espetacularização das temáticas presentes na festa
reinventam a autenticidade histórica para agregar valor, amalgamar um discur-
so identitário, resgatar e incorporar, em uma nova configuração, costumes,
hábitos e sociabilidades. Na verdade, não se trata de uma confrontação entre
tradição e modernidade, mas antes de composições e justaposições ecléticas
peculiares.
Assim, os territórios rurais, ao serem perpassados pela intensificação
das relações sociais contemporâneas, combinam, a partir de suas matrizes
simbólicas, os diversos elementos advindos dos fluxos globais, promoven-
O Rural Múltiplo 67

do um movimento de decomposição-recomposição em suas configurações


socioespaciais. Essas combinações, todavia, não evoluem de modo gradual
e homogêneo em todos os espaços rurais, para os quais se processa uma
espécie de transformação em mosaico, na qual diferentes partes ou carac-
terísticas evoluem de modo relativamente independente e a diferentes
velocidades. Nesse movimento, (re)constroem-se novas configurações
e identidades socioespaciais, em que o “velho” e o “novo”, o antigo (a
“tradição”) e o “moderno” compõem-se, justapõem-se ou mesmo fundem-
-se peculiarmente. Neste processo, não só as configurações socioespaciais
tornam-se híbridas como também as identidades aí construídas não mais
se referenciam em um único código cultural homogêneo e coerente, mas
podem ser formadas e reformadas a partir da coexistência e do movimento
entre diferenciadas escalas espaçotemporais e distintos códigos e fronteiras
simbólicas. As identidades assim construídas estão em permanente (re)ela-
boração e tendem a ser, portanto, fluidas, híbridas e multirreferenciadas. Em
virtude de tais características, os indivíduos e os grupos sociais defrontam-
-se e se envolvem frequentemente com situações paradoxais e ambíguas,
muitas vezes assumindo condições e comportamentos ambivalentes, por
vezes potencialmente conflitivos.

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O PROTAGONISMO DOS AGRICULTORES FAMILIARES
NA CONSTRUÇÃO SOCIAL DE MERCADOS
Formas de Organização e Ação

Gustavo Pinto da Silva


Paulo Roberto Cecconi Deon

A mercantilização da agricultura e do sistema agroalimentar tem


avançado e adquirido novas características com a evolução do capitalismo
e a transnacionalização do capital. O imperativo da competitividade, da
especialização e do uso de bens artificiais, no entanto, sempre tem norteado
a ação. Mesmo, contudo, com a expansão do capital agrícola e industrial e a
busca por mercados globais, com homogeneização da oferta e do consumo,
normas, valores e padrões culturais, consensualmente aceitos, continuam
a influenciar a perspectiva de ação dos agentes econômicos na sociedade.
Neste texto, mesmo cotejando elementos de outras abordagens, tomaremos
como principal o institucionalismo e dentro dele a perspectiva sociológica,
para tratar dos mercados como construção social, e especialmente o papel
dos agentes como causadores de mudança institucional em circuitos curtos
de comercialização.
Muitas análises têm sido apresentadas a partir do papel exercido
pelas instituições nos mercados agroalimentares. Para Conceição (2002), o
termo encobre uma grande variedade de elementos, que vão desde normas,
leis, comportamentos até organizações, firmas e o próprio mercado. Scott
(2014) define instituições como os elementos promotores de ordem e esta-
bilidade, seja por acionar processos, orientar o comportamento, impor res-
trições, definir limites legais, morais ou culturais, ou mesmo fornecer estí-
mulos, diretrizes e recursos para apoiar e capacitar à ação. Conforme o autor,
72 G u s t a v o P i n t o d a S i l v a – Pa u l o R o b e r t o C e c c o n i D e o n

elas compreendem elementos regulativos, normativos e culturais-cognitivos


que, associados com atividades e recursos, fornecem estabilidade e signifi-
cado à vida social (Scott, 2014).
O institucionalismo enfatiza o contexto social no qual operam as
organizações muito mais do que outras abordagens (2014). Normalmente é
adotado para compreender como as pressões institucionais, determinadas
por ordens sociais estáveis, estabelecem, controlam ou alteram o compor-
tamento dos agentes. Ultimamente, porém, a atenção tem se dirigido para
autonomia dos agentes, que por diferentes graus de agência atuam sobre
a estrutura e determinam mudanças. Giddens (2009), por meio da Teoria
da Estruturação, é o teórico social que destaca o papel da agência na cons-
trução e reconstrução de sistemas sociais estáveis. Essa teoria junta-se a
outros argumentos teóricos para apoiar um papel mais proativo para os atores
individuais e organizacionais e uma visão mais interativa e recíproca dos
processos institucionais (Scott, 2014).
Entre as contribuições complementares destacam-se os trabalhos de
Neil Fligstein pela Sociologia Econômica, que procura ressaltar a importân-
cia de alguns agentes para a construção/estabilização de uma ordem social.
Segundo ele, a habilidade social desenvolvida por determinados indivídu-
os representa um microfundamento com potencial explicativo para a ação
coletiva (Fligstein, 2007).
Os mercados de circuito curto têm se constituído em iniciativas que
recapturam o espaço rural como uma força ativa e transformadora no campo
agroalimentar, no que Sonnino e Marsden (2006) denominam de relocali-
zação alimentar. Trata-se de experiências que operam à margem dos circui-
tos industriais de alimentos (Oosterveer; Guivant; Spaargaren, 2010), com
o conhecimento sobre a procedência dos alimentos (Wilkinson, 2003), ou
portador de uma qualidade ampla, como nominam Silveira e Zimermann
(2004). Revelam-se por iniciativas de comercialização de escala local e regio-
nal, como entregas domiciliares, vendas na propriedade, feiras livres, trocas
solidárias, mercados institucionais, venda direta para varejistas locais, dentre
outros. Os alimentos recebem mínima transformação e guardam certa iden-
tidade em relação à origem, ao processo e ao produto, como apontado por
O Protagonismo dos Agricultores Familiares na Construção Social de Mercados 73

Ilbery et al. (2005). Contrariando a especialização e regulação por sistemas


globais, o foco é a diversificação amparada por mecanismos validados no
interior dos próprios sistemas locais de produção.
Na medida em que tem havido um aumento da preocupação dos
consumidores em relação à qualidade biológica e físico-química dos ali-
mentos, fruto dos danos advindos da artificialização industrial, essas inicia-
tivas fortalecem-se como oportunidades para a agricultura familiar. Além de
guardar uma relação mais estreita entre a natureza e a sociedade, oferecem
maior capacidade de dinamizar economias locais, principalmente em regiões
periféricas (Azevedo, 2009).
Esses “mercados de circuito curto” (como denominados na literatu-
ra) não se sustentam pelas mesmas regularidades dos circuitos organizados
em cadeias produtivas que põem ênfase nas características relacionadas ao
mundo da produção de mercadorias. Ao contrário, colocam em destaque
um conjunto de atributos que evidenciam uma valoração de uso, e as con-
dições simbólicas do alimento, próprias de um espaço social. Sua fortaleza
encontra-se amparada nas relações interpessoais, em processos comunicati-
vos baseados na confiança, padrões e atributos construídos e validados pela
interação social e que levam à construção de significados, padrões culturais,
valores e normas sociais, além de regras de sustentação.
Na construção desses mercados destaca-se o papel de mediadores
de processos de cooperação e colaboração, que visam a fortalecer atributos
diferenciadores dessas iniciativas. Por essa razão tomaremos dois conceitos
como guarda para este texto: o de protagonista e o de animador social. Pro-
tagonista é referente àqueles agricultores que desempenham ou ocupam
um lugar de liderança, e buscam alterar as condições estabelecidas pelas
instituições vigentes. Os animadores são normalmente de fora do grupo de
agricultores, que medeiam e favorecem o fluxo de informações na tentativa
de valorizar e criar as condições para um equilíbrio de forças, podendo ser
extensionistas, técnicos, lideranças políticas, ou outros. No caso dos circui-
tos curtos de comercialização são agentes determinantes, pois pelos modus
operandi da “comoditização”, muitos agricultores não se veem operando fora
da noção de segmentação em cadeias produtivas. O desafio é justamente
retomar e reconstruir formas produtivas e de mercados que devolvam essa
autonomia para o agricultor.
74 G u s t a v o P i n t o d a S i l v a – Pa u l o R o b e r t o C e c c o n i D e o n

O texto aborda o processo de construção social de mercados na agri-


cultura familiar, analisando a experiência dos Circuitos Curtos de Santiago
(RS), em que a organização dos agricultores articulada com a ação de anima-
dores sociais foi capaz de criar relações privilegiadas junto aos consumidores.
Desse modo, busca compreender o que os agentes fizeram ou vêm fazendo
para alterar os padrões de interação social (regras, normas de conduta e laços
de significados), que definem estruturas sociais (Friedland; Alford, 1999), e
permitem estabelecer os elementos específicos determinantes das situações
de mercados de circuito curto.

A DINÂMICA DA CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS MERCADOS SOB


A PERSPECTIVA DOS CIRCUITOS CURTOS DE COMERCIALIZAÇÃO
Para compreender os quadros teóricos em que se assenta essa discus-
são, buscamos desenvolver alguns conceitos nesta seção:

Os mercados como construção social


O conceito de mercados como uma construção social tem sido bastan-
te debatido nos últimos anos, principalmente a partir dos estudos originados
na economia evolucionária, que posteriormente incorpora um conjunto de
outras abordagens fortemente críticas ao neoclassismo.
Para a economia neoclássica, os mercados estariam sob uma ordem
supostamente natural, guiada pelo interesse racionalista individual, utili-
dade marginal, inovação técnica e eficiência, em que o preço é o principal
vetor de equilíbrio e condição de objetivação. O ser humano estaria sempre
insatisfeito, motivado pela busca de um valor universal de bem-estar mate-
rial, guiado por um sentimento de insatisfação (Berthoud, 1992). A alocação
ocorreria sempre da maneira mais eficiente possível.
Entre os estudos que contrapõem essa perspectiva, Marie-France
Garcia-Parpet (2003) avaliou o mercado de morangos em Fontaines-em-
-Sologne, França. Para a autora, os meios empregados na comercialização de
morangos naquela região, embora em sua estratégia inicial tivesse ocorrido
de modo que os “fatores sociais” não perturbassem o livre jogo da oferta e
O Protagonismo dos Agricultores Familiares na Construção Social de Mercados 75

da demanda e seu ajuste por meio dos preços monetários, foram eles que
permitiram explicar suas práticas constitutivas. O mercado de Fontaines é
efeito de uma construção social e econômica, realizada por alguns indivíduos
que queriam fazer o mercado existir, e da aceitação dos demais participantes
que se beneficiam de sua existência. Ou seja, ela inverte a lógica e mostra
que a “mão invisível” na verdade é o resultado de uma construção social
(Garcia-Parpet, 2003).
Para os institucionalistas mercados não são dessocializados como
parecem, mas são socialmente e historicamente construídos, sustentados
por um conjunto de instituições, e amparados por outros elementos que
além do preço definem as preferências dos indivíduos e apoiam as transa-
ções econômicas. Mercados são arenas de interação social (Beckert, 2010),
conformados em ambientes institucionais (Abramovay, 2001), em que os
atores disputam recursos e colocam em interface distintos valores, normas
e interesses (Conterato et al., 2011).
Mesmo que os mercados convencionais também sejam construídos
socialmente, nos circuitos curtos os padrões normativos e culturais-cogniti-
vos proporcionam contornos especiais. O agricultor e suas organizações são
os principais agentes dessas construções, e organizam as técnicas de produ-
ção, agregação de valor, propaganda e venda, em virtude de compartilhar
certas relações que não são somente econômicas, mas também políticas,
culturais e sociais. O que faz desencadear e orientar o comportamento dos
indivíduos na ação econômica depende do grau de legitimidade, aceita-
bilidade e consentimento que assumem no interior da sociedade, o que é
dado pelos consumidores, ao reconhecer certos elementos em torno da ali-
mentação. Assim, os processos de comunicação e mediação entre agricultor
e consumidor é que configuram as bases de sustentação da ação econômica
em circuitos curtos de comercialização.
Entender esses mercados requer desagregar a teia de interações
que compõem o conceito de instituições, conforme sinalizado por Scott
(2014). Cada contexto apresenta suas próprias misturas institucionais, que
somente podem ser entendidas na medida em que se penetra nessas formas
de expressão. Além do mais, apresentam outros agentes que também auxi-
liam, animam e fazem constituir esses ambientes institucionais.
76 G u s t a v o P i n t o d a S i l v a – Pa u l o R o b e r t o C e c c o n i D e o n

Os circuitos curtos de comercialização


A comoditização muitas vezes revestida por uma violência ideológica
expressada na lógica fria do poder político transforma as esferas da vida
social, gerando efeitos variáveis (Berthoud, 1992). Para os mercados agro-
alimentares tem representado o aumento da impessoalidade, mantido por
um distanciamento crescente entre produção e processamento, em relação
à distribuição e consumo dos alimentos. O sistema alimentar torna-se domi-
nado por um reduzido número de agentes (grandes indústrias de insumos,
indústrias transformadoras de matérias-primas, atacadistas e supermerca-
dos), organizados em cadeias produtivas e hegemonicamente controlados
por capital multinacional (Van Der Ploeg, 2008). Mantêm-se aqueles agri-
cultores que podem responder em escala de produção.
Os circuitos curtos fortificam-se na medida em que valorizam ativi-
dades econômicas que se realizam com base em um conjunto de estruturas
e interações sociais, reveladoras de especificidades regionais e atributos
muito peculiares de alguns sistemas de produção e consumo, geralmente de
cunho familiar. A conexão com o consumidor dá-se por informações que em
geral passam por relações de interconhecimento e processos comunicativos,
sustentados pela confiança e reciprocidade.
O conceito valoriza a noção de proximidade, e segundo Azevedo
(2009), acentua os fluxos materiais contínuos e regulares entre alguns pontos
do espaço, desvelando tanto a forma como o conteúdo da organização espa-
cial do sistema alimentar. A forma, por que o circuito inclui alguns pontos de
conexão (lugares) e suas relações por meio de fluxos de capital, tecnologia,
informação, mercadorias, necessários para fazer cumprir todas as etapas do
sistema; o conteúdo por que os lugares se contrastam e se articulam segundo
a capacidade dos agentes de levarem adiante a produção e a circulação do
excedente no espaço (Azevedo, 2009).
Assim, um circuito só se explica na medida em que são analisadas as
condições institucionais nas quais se inscrevem, pois os comportamentos
e ordenamentos são condicionados pela escala delimitada por ele mesmo,
a partir de processos políticos, históricos, culturais e sociais. Para Zelizer
(2008), cada circuito incorpora diferentes práticas, informações, obrigações,
direitos, símbolos, línguas e meios de troca. Esses elementos são resulta-
O Protagonismo dos Agricultores Familiares na Construção Social de Mercados 77

dos de constantes conflitos, contestações, mas também de negociações e


ajustes, nos quais ocorre uma espécie de remodelagem das relações entre os
participantes, e determinam propriedades específicas. A autora propõe um
conjunto de condições que podem definir um circuito: expressar proprie-
dades especiais que orientam o comportamento econômico dos membros;
existir coerência na atividade econômica, e que não pode ser explicada por
interesses puramente individuais; os participantes fazem esforços delibe-
rados, ou mesmos intuitivos para manter as configurações dos circuitos;
encontra-se amparado sobre uma determinada estrutura institucional, que
tanto reforça como também organiza e exclui aspectos em desconformidade
(Zelizer, 2006).
Ao tratar da construção social dos mercados de circuitos curtos o
maior desafio está na promoção de estratégias diferenciadas da lógica dos
mercados da agricultura industrial, capazes de articular as capacidades já ins-
taladas nos locais e mobilizar outras. Os avanços já observados pela literatura
estão amparados na capacidade de obter informações, desenvolver redes de
relações interpessoais, construir normas e valores focando o consumo local,
além de estabelecer e amparar regras que permitam as condições para que
se realizem. Tudo isso, articulando e enlaçando os diversos atores sociais
vinculados ao desenvolvimento rural.

A agência
A teoria institucional aborda a restrição criada pela estrutura social,
com ênfase na forma pela qual as instituições padronizam as atividades e
relações sociais no tempo e no espaço, e assim orientam os agentes. Mesmo
assim, de acordo com Scott (2014), não deixa de reconhecer que formas
individuais possam criar manter e transformar as instituições.
A agência corresponde à capacidade que os indivíduos, por meio de
suas atividades, possuem de introduzir mudanças e alterar o curso dos fatos
(Giddens, 2009). Para Escher e Schneider (2011), na agricultura familiar o
poder de agência tem proporcionado uma diversidade de inovações socio-
técnicas e institucionais, práticas de trabalho e produção e arranjos socio-
políticos, adaptados as suas possibilidades de reprodução socioeconômica.
78 G u s t a v o P i n t o d a S i l v a – Pa u l o R o b e r t o C e c c o n i D e o n

Os circuitos curtos de comercialização dependem de um novo arranjo


jurídico, institucional e político, em favor da reciprocidade territorial e for-
talecimento de iniciativas e vínculos locais. Neste caso, a ação dos indiví-
duos pelo poder de agência, que até de maneira inconsciente, permite criar,
manter ou reforçar determinadas estruturas e configurações institucionais,
é que determina essas mudanças institucionais.
Para Scott (2014), todos os atores, individuais e coletivos, possuem
algum grau de agência, mas essa quantidade varia muito entre os atores e
entre tipos de estruturas sociais. De acordo com Fligstein (2007), ao tratar-
mos de mercados socialmente construídos, essas arenas de interação social
podem ser condicionadas por determinados indivíduos capazes de equa-
cionar os conflitos inerentes. Estes atores socialmente hábeis valem-se de
recursos disponíveis, ou mesmo desenvolvem estratégias para estabelecer os
interesses da coletividade, atuam no sentido de estabilizar as forças atuantes
e promover sinergia (cooperação) entre os atores.
O desafio nos circuitos curtos é reduzir a dependência em relação
às funções de comando e concentração em poucas mãos de algumas fases
do abastecimento alimentar, o que é próprio das grandes cadeias. De modo
que, como muito dessa agência é desenvolvido no interior das próprias
comunidades, consideramos que alguns agentes assumem o protagonismo
ou a animação, e são capazes de constranger a estrutura em favor da ordem
e da mudança institucional para benefício dessas relações dadas pela proxi-
midade. É o que propomos evidenciar no caso a seguir.

OS CIRCUITOS CURTOS DE COMERCIALIZAÇÃO EM SANTIAGO (RS):


Formas de Organização e Ação

A Organização
Historicamente, o abastecimento de frutas e hortaliças da Metade
Sul do Rio Grande do Sul provém da Central de Abastecimento (Ceasa/
RS). Desde seu surgimento em 1973, tem permitido o fornecimento para
intermediários que, posteriormente, fracionam em vendas para os varejistas
locais. Essa forma de provimento tem garantido a disponibilidade física e
O Protagonismo dos Agricultores Familiares na Construção Social de Mercados 79

regularidade dos alimentos, mas não tem resolvido questões espaciais, cul-
turais, ambientais e socioeconômicas envolvidas com a produção (Maluf,
2004). Logo, atividades produtivas deixam de ser estimuladas, limitando as
oportunidades para os agricultores familiares locais (Ibidem).
O caso de Santiago1 ocorre na mesma sistemática, todavia técnicos da
Emater-RS/Ascar em conjunto com a prefeitura motivaram os agricultores,
em 1979, à instalação da “Feira Livre do Produtor”. Podemos considerar
a Feira como a primeira fase dos circuitos curtos de comercialização de
Santiago.
A Feira Livre ocorre no lugar denominado Praça dos Brinquedos, no
centro da cidade, em que 12 feirantes comercializavam dispostos junto aos
veículos, charretes e em pequenas tendas. Dez anos mais tarde, foi criada
a Associação Santiaguense dos Feirantes, visando a congregar e aumentar
o poder de reivindicação e barganha dos agricultores. No mesmo ano, para
fazer cumprir o previsto em um Regulamento da Feira, compôs-se o Conse-
lho de Administração da Feira, formado por organizações e entidades locais.
A prefeitura disponibilizou um funcionário para auxiliar nesse objetivo e
exercer um processo de animação para que a Feira resultasse em êxito para
os feirantes e para os consumidores. Esse servidor viria a receber o nome
de Fiscal da Feira, acompanhando o grupo ainda hoje.
Esse período também é reconhecido pelo surgimento de um conjun-
to de inovações tecnológicas. Dentre elas, destaca-se o cultivo de hortaliças
em ambientes protegidos, que permitiu o aumento produtivo de folhosas
para atender ao mercado varejista local. O modelo de estufa Santiago desen-
volvido por um técnico do Escritório Municipal da Emater-RS/Ascar em
conjunto com os agricultores, veio a ser difundido por todo o Estado, como
referência para a produção hortigranjeira. Esse técnico local chegou a fazer
viagens a outros países em busca de atualização e qualificação para atender
aos agricultores na produção de hortaliças. Por meio do Fundo Estadual
de Apoio ao Desenvolvimento dos Pequenos Estabelecimentos Rurais

1
O município localiza-se na Região Central do Rio Grande do Sul numa microrregião
denominada Vale do Jaguari. Possui uma população de 50.622 habitantes e área
territorial de 2.413,133 Km2.
80 G u s t a v o P i n t o d a S i l v a – Pa u l o R o b e r t o C e c c o n i D e o n

(Feaper) alguns agricultores buscaram crédito para construção de estufas,


mas também para aquisição de equipamentos de irrigação, máquinas e ins-
trumentos de trabalho.
A segunda fase pode considerar como marco inicial a construção reali-
zada pela prefeitura do pavilhão do Hortomercado, constituído por 41 boxes
individuais, voltados à comercialização direta, inaugurado em 1992. Esse
período é caracterizado pela transição do modelo de venda direta, antes
realizado n a Praça dos Brinquedos, e pelas dificuldades em restabelecer
a comercialização nos mesmos níveis anteriores. Inicialmente nem mesmo
os agricultores se dispuseram a mudar de local, até que um grupo de prota-
gonistas liderou os demais. Problemas como distância do centro da cidade,
divergências entre feirantes, desajustes em relação a horários de funcio-
namento, exigiram um conjunto de reuniões, lideradas normalmente por
animadores, para ajustar essas questões. Muitas qualificações como cursos,
palestras e viagens foram realizados, visando a mobilizar capacidades para
atuar na produção, comercialização e comunicação com os consumidores.
Segundo Silveira et al. (2009), para que essas iniciativas de desenvolvimento
rural se realizem, muitas vezes é necessário mobilizar e/ou adicionar um
conjunto de capacidades.
A mudança promissora começa a partir de 2005, quando por con-
venção entre animadores e protagonistas, o horário de funcionamento do
Hortomercado altera-se para as 17h no inverno e para as 18h no verão. Esses
horários atenderiam consumidores de diversas faixas etárias, também cul-
minando com o final da jornada de trabalho. O resultado foi um aumento
expressivo dos clientes, tornando o Hortomercado referência de espaço de
fornecimento de alimentos com origem local, e capaz de guardar os traços
da própria identidade santiaguense. Atualmente são comercializado frutas,
hortaliças e tubérculos, mas também produtos da agroindústria caseira, como
salames, melado, geleias, bolachas, vinagres, massas, cucas, pães, dentre
outros. Semanalmente mais de mil consumidores visitam esse espaço de
comercialização.
Com a criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agri-
cultura Familiar (Pronaf) em 1996, essa fase fica marcada pelo aumento da
disponibilidade de crédito para os agricultores melhorarem seus sistemas
O Protagonismo dos Agricultores Familiares na Construção Social de Mercados 81

de produção. Na fruticultura, destaca-se também o surgimento do Programa


Estadual de Fruticultura (Profruta/RS), em 2003, que permitiu estimular
a diversificação e a criação principalmente de pomares de pêssego e citros.
A terceira e atual fase consolida e diversifica as formas de circuitos
curtos, congregando em torno de 90 agricultores.2 Grande parte desse resul-
tado provém do potencial de políticas públicas federais criadas para promo-
ver e proteger os mercados locais, sobre as quais os animadores tomaram
proveito para fomentar a produção de frutas e hortaliças. A criação do Progra-
ma Nacional de Alimentação Escolar (Pnae),3 visando à alimentação escolar,
oportunizou a criação da Cooperativa Santiaguense da Agricultura Familiar
Ltda. (Coopersaf), atualmente com 75 associados, dos quais 15 produzem
hortifrutigranjeiros. O Programa de Abastecimento Alimentar (PAA)4 via-
bilizou que 13 agricultores desde 2013 pudessem prover alimentos para
entidades assistenciais.
A produção de orgânicos, mesmo recente, contempla oito agriculto-
res, que além de uma Associação, também contam com espaço de venda
direta, na Praça Central da cidade. As vendas diretas na propriedade e entre-
gas domiciliares nas residências dos consumidores têm ganho incremento,
sobretudo na medida em que o consumidor deseja conhecer quem produz
e como são produzidos seus alimentos.

2
O número total de agricultores em atividades de comercialização de circuito curto é
superior na medida em que forem considerados aqueles que comercializam também
alimentos processados.
3
As compras da Agricultura Familiar para o Pnae foram instituídas pela Lei n.º 11.947,
de 16 de junho de 2009 e Resolução/CD/FNDE nº 38, de 16 de julho de 2009. Essa
legislação insere a obrigatoriedade de compra de no mínimo 30% dos alimentos para
a alimentação escolar da agricultura familiar, entre outras diretrizes consoantes à
alimentação saudável.
4
Instituído em julho de 2003 (Lei 10.696/2003), o PAA integra o Plano Safra da
Agricultura Familiar 2003/2004 e é uma ação estrutural do Programa Fome Zero. É
um programa que busca viabilizar uma maior estabilidade para a produção familiar,
beneficiando os agricultores enquadrados no Pronaf, por meio da compra, sem licitação,
de produtos da agricultura familiar. As aquisições são destinadas à formação de estoques
e à distribuição de alimentos para pessoas em situação de insegurança alimentar
(Cerqueira; Rocha; Coelho, 2006, p. 5).
82 G u s t a v o P i n t o d a S i l v a – Pa u l o R o b e r t o C e c c o n i D e o n

Em volume de comercialização destacam-se as vendas para os super-


mercados e redes de varejistas, para os quais pelo menos 18 agricultores
encarregam-se do abastecimento, a ponto de o município já poder colocar-se
como autossuficiente na produção de hortaliças folhosas. No caso das frutas
isso é diferente, pois a grande maioria ainda é proveniente de fora.
O resultado é que existe um movimento dinâmico e processual em
prol dos circuitos curtos de comercialização. O fornecimento local tem
tornado acessíveis os alimentos, preservando as características naturais com
mais frescor. Também tem havido aumento do número de agricultores pro-
dutores, a ponto de influenciar positivamente o potencial de geração de
oportunidades de trabalho e renda no meio rural.

O papel dos agentes


A ação protagonista dos agricultores familiares e dos animadores do
desenvolvimento5 estabeleceu a estrutura social que configura as bases ins-
titucionais dessa experiência. Os circuitos curtos vão se realizando por meio
de ações articuladas, que pelos recursos existentes e/ou incrementados,
constroem combinações e geram desdobramentos para o reconhecimento
moral, a regularidade de produção e o aumento da venda e consumo local.
De acordo com Zelizer (2006), esses espaços são delimitados por laços inter-
pessoais, em que os agentes constantemente estão negociando, contestando
e remodelando as relações uns com os outros.
Na organização e para tornar permanentes os circuitos, alguns anima-
dores revezam-se em induzir a cooperação de outros agentes e construir coa-
lizões dentro de certa ordem negociada. A prefeitura exerce certa autoridade
regulativa, oportunizando o acesso a políticas públicas, captando recursos,
criando infraestruturas, instituindo e fazendo cumprir regulamentos. Pelo
seu poder de agência, por vezes acaba constrangendo o ambiente institu-

5
As seguintes organizações locais destacam-se como animadores: Prefeitura de Santiago,
Emater-RS/Ascar, Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santiago, Sindicato Rural de
Santiago, Serviço Nacional da Aprendizagem Rural (Senar/RS), Centro Empresarial de
Santiago, Serviço Brasileiro de Apoio as Pequenas e Microempresas (Sebrae) e o Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai).
O Protagonismo dos Agricultores Familiares na Construção Social de Mercados 83

cional e conferindo certa legitimidade a estas formas de comercialização.


A Emater/RS-Ascar cria as condições do ambiente institucional e técnico,
facilitando ações de crédito, articulando políticas públicas, oportunizando
a qualificação contínua, a assistência técnica e a extensão rural. Além disso,
desenvolve o pensamento reflexivo dos agricultores, fomentando a criati-
vidade, a iniciativa própria e a formalização de compromissos e consensos
entre os agricultores e agentes locais. A capacidade de liderança dessas duas
organizações para a construção de novas instituições está de acordo com Fli-
gstein (2007) quando este autor salienta que alguns atores são mais hábeis
em obter a cooperação dos outros.
Outras organizações e entidades possuem ações mais periféricas e
pontuais, mas quando analisadas no conjunto, mostram articulação com as
demais. Para as ações resultarem em construção e reprodução de certas
ordens locais, os atores sociais hábeis acabam fornecendo os elementos para
a construção de arranjos institucionais, em que animadores intermediários
mesmo em momentos pontuais fornecem contribuições importantes. Muitas
das qualificações da segunda fase dos circuitos curtos, por exemplo, foram
realizados por esses agentes. Essa foi uma das fases que mesmo turbulenta,
determinou certo pacto social entre agricultores, consumidores, animado-
res e outros agentes, fortalecendo a emergência de um padrão de intera-
ção social entre todos. Este pacto resultou em soluções institucionais que
podem ser consideradas aderentes aos elementos regulativos, normativos e
culturais-cognitivos que moldam e legitimam a ação econômica dos agentes
nas situações de mercados de circuito curto.
Por outro lado, foram os protagonistas que buscaram alterar os proces-
sos específicos da comercialização local de alimentos em busca de soluções
para que as instituições próprias dos mercados convencionais pudessem ser
alteradas. Diversas decisões e escolhas dos animadores foram tomadas em
virtude da ação dos protagonistas. Foram os agricultores que recuperaram
formas de produção, inovaram, acessaram recursos, entre outras atividades
que se tornaram rotinizadas, a ponto de fazer participar da vida econômica
e social mediante essas formas de comercialização.
Os circuitos curtos tornaram-se viáveis em razão do conjunto de
ações que permitiram estabelecer a estrutura social da mudança institucio-
nal. Essas estruturas, como observa Giddens (2009), tanto reprimem como
84 G u s t a v o P i n t o d a S i l v a – Pa u l o R o b e r t o C e c c o n i D e o n

capacitam os atores, e de forma evolutiva vão induzindo e rotinizando prá-


ticas sociais tanto dos agricultores, entre os agricultores e consumidores, e
entre estes e os agentes de desenvolvimento. Muito além de uma prática
de preço, o mercado é fruto da organização coletiva das relações sociais, da
capacidade de agência dos indivíduos, que definem práticas institucionais
próprias para essas formas de comercialização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caso analisado ilustra o que a literatura tem denominado de cir-
cuito curto de comercialização. Ademais, aponta para a importância desse
mecanismo para a agricultura familiar. Mais que uma forma de gerar renda,
estes circuitos representam a reconexão entre produção e consumo, cujo
distanciamento é uma realidade imputada pelas cadeias alimentares. Em
municípios como Santiago isto não é diferente, as redes de supermercados
fazem a ponte com os consumidores, cuja demanda é atendida a partir de
produtos de outras regiões, constituindo o circuito longo.
Na contramão desse processo, as formas de comercialização aqui
apresentadas representa um rompimento com essa lógica ao estabelecer um
outro padrão, legitimado por elementos institucionais próprios, que foram
sendo construídos a partir da interação entre os múltiplos agentes locais.
Esta (re)aproximação é garantida pelos próprios agricultores familiares, e
neste sentido podem ser considerados protagonistas.
O caso, entretanto, revela que este protagonismo foi mobilizado a
partir da ação de animadores locais, quando o poder público, sobretudo os
agentes de extensão, foram sensíveis em perceber as potencialidades dos
agricultores, dos seus produtos, e capazes de orientar quanto aos caminhos,
formas de organização, recursos necessários, etc. Entre esses animadores e
protagonistas, alguns desenvolveram maiores habilidades sociais para mediar
os conflitos na trajetória dessa experiência.
Em síntese, os circuitos curtos de comercialização representam uma
construção social, em que os atores devem ser capazes de constranger a
estrutura e o fluxo dos acontecimentos em favor da ordem e da mudança
social. Ou então, segundo Fligstein (2007), revelam a construção de um
O Protagonismo dos Agricultores Familiares na Construção Social de Mercados 85

novo marco institucional, característico de uma nova ordem social, desvin-


culando-se da lógica que prevalece no atual sistema alimentar, qual seja,
uma alternativa local aos circuitos longos de comercialização.

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LOS MOVIMIENTOS Y ORGANIZACIONES
SOCIALES CAMPESINAS EM EL URUGUAI
Resistencia e Projecto de Desarrollo

Emiliano Guedes
Gabriel Picos
Humberto Tommasino

A través de este artículo los autores pretenden presentar brevemen-


te las características del medio rural uruguayo, en relación a la existencia,
estrategias y relaciones de los sujetos colectivos (movimientos y organi-
zaciones sociales) de tipo campesino y las posibilidades de desarrollo de
los mismos. En primer lugar y como se deriva del nombre del artículo,
se trabajara en la caracterización de los actores sociales del medio rural
uruguayo (con foco en la agricultura familiar y los trabajadores asalariados
rurales) desde una óptica de campesinado como clase social y como proyecto
político. Partiendo de la comprensión de los factores que afectan la susten-
tabilidad de los mismos, se analizaran las dinámicas de relacionamiento de
estos actores, y las estrategias colectivas que se construyen para mitigar los
procesos de diferenciación social (estrategias contratendenciales) derivados
de su inserción en el mercado y la lógica de relacionamiento capitalista. A
partir de este análisis los autores pretenden poner a discusión la posibilidad
de transcender a partir de la organización de estos actores sociales, de un
estado de resistencia de la agricultura familiar a una estrategia de lucha que
apunte a generar cambios en las relaciones sociales. Desde el análisis de las
experiencias existentes en el medio rural uruguayo, pretendemos visualizar
aquellos elementos que pueden generar cambios en este pasaje planteado,
de una situación de resistencia a lucha social de clase.
90 E m i l i a n o G u e d e s – G a b r i e l P i c o s – H u m b e r t o To m m a s i n o

EL DEBATE DE LA CLASE CAMPESINA EN EL URUGUAY:


Agricultura Familiar y Asalariados Rurales
En Uruguay no hay campesinos.
Esta afirmación, es sostenida mayoritariamente tanto desde los espa-
cios de la academia, como también desde las propias organizaciones socia-
les del campo popular, sean éstas de origen urbano (sindicatos por ej.), o
de origen rural. La hegemonía en relación al análisis de la sociedad rural
uruguaya, desde una perspectiva sociológica estructural clásica y de base
marxista, nos plantea la existencia de tres clases sociales o tres grandes
grupos en el medio rural uruguayo: el empresariado rural, los productores
o agricultores familiares, y los asalariados rurales (Latorre, 1993; Piñeiro,
1994). Otras perspectivas, como la de Errandonea (1989), donde plantea el
análisis de lo social rural desde lo que él llama una “sociología de la domina-
ción”, no han tenido por el momento mayor impacto en la propia academia y
mucho menos en las organizaciones rurales de nuestro país. Recientemente,
sin entrar en una discusión acerca de la nominación de las clases sociales del
medio rural uruguayo, Oyhantçabal (2014) incorpora en su análisis de un
caso particular de acceso a tierras en el norte de nuestro país, el concepto de
campesinado “para hacer referencia a los productores directos de mercancías
agropecuarias que utilizan mano de obra familiar y que se subsumen en el
capital a través de diversos mecanismos” (Oyhantçabal, 2014, p. 5).
Para el caso del empresariado rural y de los asalariados, las definiciones
son claras, principalmente para este último, en donde lo que lo define es la
no posesión de medios de producción y una relación de compra-venta de su
fuerza de trabajo que no ofrece dudas de su situación. En relación a su número
tampoco hay muchas discusiones. Tanto desde las organizaciones sindicales,
como el propio Ministerio de Trabajo y Seguridad Social (MTSS),1 se calcula
su número en poco más de 90.000 trabajadores vinculados a este sector.
Pero en lo que refiere a los productores agropecuarios, sus defini-
ciones quedan más atadas a concepciones políticas de perspectivas que no
siempre son visibles pero que operan con clara incidencia. El uso de la cate-

1
Información disponible en: <http://www.mtss.gub.uy/documents/11515/2d2702f2-5c92-
4d80-bc0e-e7b15db6ccc6 y http://90000invitantrabajadoresrurales.wordpress.com/>.
Los Movimientos y Organizaciones Sociales Campesinas en el Uruguai 91

goría Agricultura Familiar, así como el no uso del Campesinado, hace a una
perspectiva hegemónica sobre lo rural, donde predomina la ubicación del
campesino como sujeto social pre-capitalista, con definiciones más cercanas
a la antigua tradición de los estudios campesinos (Sevilla Guzmán, 2011;
Martins de Carvalho, 2013), que a las de las nuevas tradiciones; opera princi-
palmente una mirada “descampesinista” sobre el tema. En Uruguay, el con-
cepto de Agricultores Familiares se instala entonces desde la academia en
la década del 80 del siglo pasado, y las propias organizaciones que nuclean
a este tipo de productores comienzan a asumirlo como propio a partir de
finales de los 90, principalmente de Comisión Nacional de Fomento Rural
(CNFR), organización de la que hablaremos en detalle más adelante. Más
cercano en el tiempo (2008, y reformulada en 2014), la institucionalidad
pública construyó su propia definición de Agricultura Familiar con motivo
de delimitar los alcances de las políticas públicas hacia ese sector.
Más allá de matices, todas las definiciones de Agricultura Familiar
toman como elementos centrales de la misma dos pilares: el trabajo fami-
liar como predominante en los predios, y la posesión de la tierra (tanto en
propiedad como en arrendamiento). Esto por lo menos hasta los ajustes a la
definición realizado en el 2014 desde el Ministerio de Ganadería, Agricul-
tura y Pesca (Resolución nº 387/2014, MGAP), donde se han incorporado
una mayor flexibilización en relación al tema de los ingresos extraprediales,
así como al tema de la tenencia de la tierra, dada la necesidad de incluir un
rubro particular como es el de los apícolas. Es que la Agricultura Familiar
no deja de ser un concepto que engloba una diversidad de situaciones y
realidades cada vez más complejas.
En términos estadísticos, la posibilidad de ubicar la cantidad de Agri-
cultores Familiares en el Uruguay, también presenta algunas dificultades. Si
tomamos el último censo agropecuario realizado en nuestro país (2011), se
nos presenta un escenario que nos dice que el Uruguay cuenta con 44.781
explotaciones que hacen uso de 16,4 millones de hectáreas explotables
(Diea – MGAP, 2014). Dado que el censo en sí mismo no discrimina a la
interna de las explotaciones, cuales estarían en manos de agricultores fami-
liares y cuales en manos de empresarios, por el momento podemos estimar
que el número de Agricultores Familiares, surge de una estimación a partir
de las 36.797 explotaciones de menos de 500 hectáreas del censo 2011, y las
92 E m i l i a n o G u e d e s – G a b r i e l P i c o s – H u m b e r t o To m m a s i n o

21.645 explotaciones con las que cuenta el Registro de la Agricultura Fami-


liar del MGAP a octubre de 2013 (Sganga; Cabrera; González, 2013). Para
complejizar un poco más, a esto se le suma que como vimos, desde la propia
definición del MGAP, la tenencia de tierra no es definitoria para ubicar a los
sujetos ubicados en este sector. La presencia de apícolas y ganaderos sin
tierra, si bien marcan una incidencia menor en cuanto a su número, fueron
lo suficientemente significativos como para que implicara su inclusión en la
reformulación 2014 de la definición institucional de Agricultor Familiar. Se
espera que en el correr de los próximos meses puedan salir cifras oficiales
un poco más precisas al respecto.
Si está claro de todas maneras a partir de los datos disponibles, que
la Agricultura Familiar ha sufrido grandes impactos en los últimos 14 años
del medio rural uruguayo. Tomando en cuenta de que el censo del año 2000
consignaba la presencia de 57.131 explotaciones (esto es, 12.350 unidades
más que en el censo 2011), y que el mayor impacto de esa baja se da en el
número de explotaciones que se ubican en la franja de 1 a 200 hectáreas,
con una caída de 12.126 unidades (de 42.427 en el 2000 pasan a 30.301 en
el 2011), la síntesis de que en los últimos 14 años han desaparecido más de
12.000 Agricultores Familiares es una conclusión inevitable.
Otro dato significativo hace a los datos que surgen en relación a la
nacionalidad de los tenedores de tierra. En el año 2000, los tenedores de
tierra de los cuales no se podía definir su nacionalidad dado que su titular
no era una persona física, se contabilizaban en 493 explotaciones (0,9%
del total) que manejaban 157.266 hectáreas (1% del total). Para el 2011,
ese cuadro sufrió uno de las mayores transformaciones: 7.510 explotaciones
(16,8% del total), manejan 7.721.388 hectáreas (47% del total).
La desaparición de 12.000 Agricultores Familiares se acompaña por
un drástico cambio en la tenencia de la tierra en Uruguay; el manejo de casi
la mitad del territorio nacional, por parte de empresas de carácter anónimas.
Un fenómeno de escala continental sin dudas, que era constatable en el día
a día del trillar los campos, pero que una vez que se respalda en el plano
estadístico se hace inocultable. La instalación del Agronegocio impacta,
entre otros efectos no menores también, en forma muy significativa en lo
que hace a las posibilidades de la existencia de la Agricultura Familiar.
Los Movimientos y Organizaciones Sociales Campesinas en el Uruguai 93

SUSTENTABILIDAD Y ORGANIZACIÓN SOCIAL


En este apartado se presenta el esquema conceptual empleado en
este trabajo para la discusión en torno a la sustentabilidad de la agricultura
familiar y la posibilidad de superación a las lógicas de relacionamiento capi-
talista. A través del mismo se caracterizaran y analizaran las prácticas desar-
rolladas por los sujetos colectivos del medio rural uruguayo que puedan
indicar tendencias en el sentido planteado de resistencia a superación.
Para ello presentaremos brevemente la concepción teórica sobre
sustentabilidad empleada por los autores y el rol de la organización social a
la hora de pensar la sustentabilidad de la producción familiar. Trataremos
también de dar cuenta de las estrategias generadas por los sujetos colectivos
del medio rural, identificando su impacto en términos de sustentabilidad y
asociando las estrategias generadas a proyectos de resistencia o superación
de las relaciones sociales imperantes.
Cuando abordamos la temática sustentabilidad, generalmente asocia-
da al término desarrollo sustentable, se nos presenta ante nosotros un amplio
paraguas conceptual2 que mantienen como punto en común la concordancia
con que el término engloba tres dimensiones de análisis: social, económica y
ambiental. No obstante existen diferentes corrientes de pensamiento según
el énfasis puesto en cada una de las dimensiones y los modelos de sociedad
que impulsan las diferentes propuestas.
En este sentido los autores, basándose en las clasificaciones pro-
puestas por Pierri (2001, p. 28) y Tommasino (2001, p.148), se enmarcan
dentro de una postura crítica al modelo y las lógicas capitalistas de relacio-
namiento, la cual denominamos de In-Sustentabilidad, sosteniendo que no
se puede pensar en sustentabilidad de los sistemas de producción familiar
como un todo, bajo la lógica del sistema capitalista. Es decir, que mientras
los mismos estén sometidos a las lógicas capitalistas y el relacionamiento

2
Según Tommasino (2001, p. 143) este “paraguas conceptual de sustentable”
presenta como objetivos generales y básicos: a) Mejorar la salud de los productores y
consumidores; b) Mantener la estabilidad del medio ambiente (métodos biológicos de
fertilización y control de plagas); c) Asegurar lucros a largo plazo de los agricultores y
d) Producir considerando las necesidades de las generaciones actuales y futuras.
94 E m i l i a n o G u e d e s – G a b r i e l P i c o s – H u m b e r t o To m m a s i n o

con el mercado, estarán expuestos al proceso de diferenciación social. Este


proceso, se producirá independientemente de las relaciones técnicas que
determinen la eficiencia productiva de los sistemas de producción.

Si bien la diferenciación social es la tendencia central que debe


ser considerada a los efectos de ver la dinámica de los sistemas
agropecuarios, esta es solo una parte de la ecuación de la que
resultara la realidad concreta en la cual los sistemas se inviabi-
lizan o reproducen. La diferenciación social es una tendencia
constante que opera sobre los sistemas de producción pero, en
todo momento se presentan contratendencias, como pueden ser
las políticas agrarias vigentes (Tommasino, 2001, p. 160).

En este aspecto las prácticas que apuntan a generar contratendencias,


son aquellas de cooperación y coordinación entre actores que tienden a la
generación de escala (compra de insumos en conjunto, venta de productos,
maquinaria compartida, campos de uso colectivo – forrajes, recría, etc.),
inserción en cadenas productivas (siempre y cuando las mismas no signifi-
quen extracción de excedentes para los productores), políticas agrarias dife-
renciadas (programas de extensión y asistencia técnica, subsidios, créditos,
acceso a tierras, etc.) (Guedes; Prieto, 2009, p. 107). Diversos autores han
identificado un rol importante de las organizaciones de productores en la
generación de este tipo de estrategias colectivas de apoyo a la producción
y han identificado el impacto positivo de las mismas a nivel de los sistemas
de producción agropecuaria en relación a los indicadores de sustentabilidad
relacionados a la dimensión económico-productiva (Tommasino; González;
Franco, 2006; García Ferreira, 2008, Narbondo; Paparamborda; Sancho,
2010; Oreggioni, 2011).
Si bien estas prácticas generan contratendencias al proceso de dife-
renciación social, las mismas solo tendrán un efecto parcial en la medida
que se dan en un marco de relacionamiento con el mercado y signadas por
los principios de la competencia. Es decir, la generación de estrategias con-
tratendenciales a los efectos del mercado y a las lógicas de relacionamiento
capitalista, se enmarcan dentro de un estado de resistencia de la agricultura
familiar. El pasaje a un estado de superación solo se dará en la medida que
se avance en generar cambios en las relaciones sociales los cuales se rijan
Los Movimientos y Organizaciones Sociales Campesinas en el Uruguai 95

por los principios de cooperación y solidaridad. Esto conlleva pensar en


nuevas formas de organización social en donde las clases subalternas (en
este caso la agricultura familiar y asalariados rurales), en base a un proyecto
político, accedan a los espacios de poder y toma de decisiones de la sociedad
y especialmente a los medios de producción y las tecnologías3.
A continuación se presenta gráficamente (Figura 1), la interacción plan-
teada entre sustentabilidad (abordada desde sus tres dimensiones) y la transi-
ción de un estado de resistencia a un estado de superación. Como se observa
en el mismo se coloca a la organización social como eje central para el análisis
de las prácticas sean estas vistas como un elemento articulador para generar
contratendencias (estado de resistencia), o como un elemento transformador
de las relaciones sociales en base a un proyecto político (estado de superación).
Figura 1 – Esquema conceptual: sustentabilidad y estrategias de resistencia y superación

RESISTENCIA SUPERACIÓN

ORGANIZACIÓN ORGANIZACIÓN
SOCIAL SOCIAL
CONTRATENDENCIAS PROYECTO POLITICO
SOCIAL

• Políticas de promoción al asociativismo y • Relaciones sociales de


fortalecimiento institucional. cooperación y solidaridad.
• Generación de espacios de toma de decisiones
y autogestión. Identidad social de las clases
SUSTENTABILIDAD

• Recuperación de espacios sociales y culturales subalternas.

FORMACIÓN
Estrategias colectivas de generación de escala Socialización de los medios de
ECONÓMICA

• •

y acceso a tecnologías. producción y las tecnologías.


• Acceso a Tierra y Reforma Agraria.
• Acceso a crédito y subsidios. • Intercambio de bienes y
• Programas de Extensión, Asistencia Técnica y servicios alternativos (p. ej.
capacitación. economía solidaria).

Conservación de RRNN.* • Conservación de los RRNN*


AMB.

• Adaptación al Cambio Climático.


• Practicas Agroecológicas. • Agroecología

LOGICAS DE RELACIONAMIENTO CAPITALISTA


REGULACIÓN DEL MERCADO *Recursos Naturales

3
Este tema es de difícil abordaje, ya que los modelos técnicos, sobre todo para la
producción animal, responden básicamente al agronegoció y a las concepciones de alta
productividad con utilización en extenso de tecnologías de insumo. Esto incluye una
amplísima utilización de biocidas que generan impactos muy fuertes tanto en la salud
humana como ambiental.
96 E m i l i a n o G u e d e s – G a b r i e l P i c o s – H u m b e r t o To m m a s i n o

Para Martins de Carvalho (2013), cuando plantea la propuesta de las


Comunidades de Resistencia y Superación (CRS), reconoce el rol de las
organizaciones y movimientos sociales como elementos centrales para dar
consistencia a los cambios4 necesarios para la superación de las relaciones
sociales capitalistas. Si bien la propuesta se plantea en un principio con base
en cambios que deberán desarrollarse a nivel de las unidades familiares de
producción, serán necesarios niveles de organización para trabajar en la con-
cientización política (formación) y la generación de alianzas necesarias para
la construcción de una identidad social de clase, con base en un proyecto
transformador de las relaciones sociales.

ORGANIZACIONES Y MOVIMIENTOS SOCIALES (SITUACIÓN ACTUAL,


ESTRATEGIAS GENERADAS Y PROYECTOS DE DESARROLLO)
A continuación presentaremos un breve panorama en relación a los
niveles de organización existentes en el medio rural, con respecto a la agri-
cultura familiar y los asalariados rurales. En el mismo trataremos de analizar
las principales estrategias desarrolladas por estos sujetos colectivos y sus
principales reivindicaciones sociales. Se hace necesario entonces, comen-
zar por una breve caracterización contextual del agro uruguayo, lo cual nos
permitirá comprender de mejor manera el contexto en el cual se desarrollan
estos procesos asociativos.
Podríamos decir que el contexto en el cual se desarrolla la agricultura
familiar en el Uruguay, está pautado por una serie de fuerzas divergentes, las
cuales impactan promocionando por un lado los procesos colectivos de estos
actores y por otro lado generando un escenario adverso para el desarrollo de

4
“El desencadenamientos de cambios en la concepción del mundo se dará a partir del momento
(de varios momentos en lo cotidiano de la vida de las personas) en que las personas asuman
resistir activamente, o sea, cambiando las matrices de consumo y de producción, y de buscar,
cada uno a su manera, nuevas formas de relacionarse con los capitales (resistiendo y superando
la opresión), con los gobiernos (negando las políticas compensatorias y el clientelismo), con la
naturaleza (producción ecológica), con las demás personas y familias oprimidas (la CRS), con
las demás clases sociales populares del campo y la ciudad (alianzas) y , sobretodo, consigo mismo,
al redescubrir nuevas esperanzas, y siempre que sea posible, construir utopías” (Martins de
Carvalho, 2013, p. 344).
Los Movimientos y Organizaciones Sociales Campesinas en el Uruguai 97

la misma. En primer lugar existe un fuerte impulso desde las políticas públi-
cas vinculadas a lo rural, con énfasis en el fortalecimiento de los procesos
asociativos de la agricultura familiar y los asalariados rurales. En este sentido
se crea por ley 17.930, la Dirección General de Desarrollo Rural en la órbita
del Ministerio de Ganadería, Agricultura y Pesca, que empieza a funcionar
en el año 2008, como la encargada del diseño y ejecución de políticas públi-
cas para la actividad agropecuaria con énfasis en la producción familiar. A su
vez, por ley 18126 de abril de 2007, se crean las Mesas de Desarrollo Rural,
con la finalidad de promover un mayor involucramiento de la sociedad civil
organizada en la implementación de las políticas públicas. A esto se suma,
la revitalización del Instituto Nacional de Colonización, el cual ha aumen-
tado su capacidad de compra de tierras en los últimos años (40.000 ha en
los últimos cuatro años)5 y ha instrumentado una política de acceso a tierra
dirigida a grupos y organizaciones de productores y/o asalariados rurales.
A nivel de políticas públicas dirigidas a los trabajadores rurales,
se destaca la ley 18441 de 2008, donde se establece la jornada laboral de
8 horas para los trabajadores rurales y la incorporación de los Sindicatos
Rurales en los Consejos de Salarios. Por otra parte, existe un escenario
adverso al desarrollo de la agricultura familiar, dado por un contexto nacional
que favorece el desarrollo de las empresas capitalistas en el campo (princi-
palmente a través de exoneraciones fiscales), lo que ha hecho de Uruguay
un país propicio para el desarrollo de inversiones por parte de grandes capi-
tales extranjeros y empresas transnacionales. En este sentido en la última
década se ha generado una disputa por el acceso a la tierra por parte de las
empresas capitalistas dedicadas principalmente a la producción de granos
(soja) y a la forestación. Otra de las inversiones que podemos decir ha gene-
rado gran impacto a nivel rural, sobre todo desde la movilización de los
sujetos colectivos, es la propuesta de extracción minera a cielo abierto para
la obtención de hierro por parte de capitales extranjeros.

5
El dato es sacado de la página de Presidencia: <http://www.presidencia.gub.uy/
comunicacion/ comunicacionnoticias/colonizacion-fideicomiso-comprara-tierras-nuevas-
colonias-lecheras>.
98 E m i l i a n o G u e d e s – G a b r i e l P i c o s – H u m b e r t o To m m a s i n o

En este escenario el Uruguay ha vivido un proceso de multiplicación


de los sujetos colectivos de la agricultura familiar y asalariados rurales en los
últimos años, los cuales trataremos de caracterizar a continuación en base a
los casos más representativos existentes a nivel país, pero que sin dejar de
aclarar que no son los únicos. A nivel de la agricultura familiar, podríamos
decir que la organización más representativa a nivel nacional es Comisión
Nacional de Fomento Rural (CNFR),6 organización de segundo grado que
nuclea a más de 90 organizaciones de la agricultura familiar, en su mayoría
Sociedades de Fomento Rural (SFR).
La CNFR surge en el año 1915 a instancias de las Sociedades de
Fomento Rural, con el objetivo de aunar esfuerzos para la mejora de la
calidad de vida en el medio rural. Dentro de sus funciones se destacan
la acción gremial, promocional y de fiscalización de las Sociedades de
Fomento Rural (Ley 14.330 del 19 de diciembre de 1974). La misma nuclea
a 98 organizaciones de base (Sociedades de Fomento Rural, Cooperativa
Agrarias, etc.) distribuidas en todo el territorio nacional y que en conjunto
vinculan a más de 15.000 productores rurales.
Las principales acciones desarrolladas por CNFR, más allá de su rol
gremial, la cual más adelante presentaremos, son las acciones de promoción
y apoyo a las organizaciones que esta nuclea. En este sentido CNFR, cuenta
con un equipo técnico multidisciplinario de apoyo a las organizaciones y
una serie de acuerdos y convenios con tercera instituciones (Universidad
de la República Uruguay – UdelaR, Ministerio de Ganadería, Agricultura
y Pesca – MGAP, Instituto nacional de Investigación Agropecuaria – INIA,
etc.) para el desarrollo de estas actividades. En este sentido se destacan
las actividades formación de dirigentes gremiales (con énfasis en género y
juventud), las actividades de investigación y capacitación en aspectos técni-
co-productivos (con énfasis en manejo de los recursos naturales y adaptación
al cambio climático) y el apoyo a los procesos organizativos (con énfasis en
el fortalecimiento institucional y el asesoramiento legal a las Sociedades de
Fomento Rural – SFR).

6
La información presentada en esta caracterización surge del análisis de la información
institucional (quienes somos, noticias, convenios, publicaciones y documentos)
presentada en su página web <www.cnfr.org.uy>. Revisión de fecha agosto de 2014.
Los Movimientos y Organizaciones Sociales Campesinas en el Uruguai 99

A nivel local se observa en las organizaciones de base, como princi-


pales estrategias de trabajo, el desarrollo de equipos de asistencia técnica,
la generación de estrategias asociativas de apoyo a la producción (acceso a
tierra, maquinaria, crédito, etc.), la capacitación en aspectos técnico-produc-
tivos y en muchos casos la venta de insumos y servicios para los productores.
Estas acciones son en la mayoría de las veces apoyadas y financiadas
desde las políticas públicas, por ejemplo si analizamos los datos correspon-
dientes a la reciente convocatoria a Propuestas de Fortalecimiento Institu-
cional 2012-2013 (Dirección General de Desarrollo Rural – DGDR-MGAP),
se presentaron 207 propuestas de las cuales 194 corresponden a organiza-
ciones de carácter local y dentro de ellas 115 corresponden a propuestas de
organizaciones de productores familiares. Estas propuestas de trabajo con
las organizaciones apuntan a

desarrollar herramientas para promover y mejorar sus capacidades


para analizar, proponer y ejecutar acciones que contribuyan al
desarrollo rural sustentable, fomentando la integración de pro-
ductores, trabajadores y otros pobladores rurales a las organiza-
ciones (DGDR – MGAP, 2013).

Por otra parte a través del accionar de las SFR en las Mesas de Desarrollo
Rural, las mismas han gestionado ante la institucionalidad publica, el acceso
a servicios básicos para las localidades donde están insertas (salud, educa-
ción, electrificación rural, caminería y transporte, etc.), así como han rei-
vindicado el apoyo a la agricultura familiar a través del acceso a tierras, el
acceso a créditos y subsidios y la gestión de estas herramientas por parte de
las organizaciones locales.
En relación a la actividad gremial, pilar fundamental de la CNFR,
la misma participa de distintos espacios a nivel nacional y regional. A nivel
nacional, la misma presenta delegados en diversos organismos como ser,
Instituto Plan Agropecuario, Instituto Nacional de Investigación Agrope-
cuaria, Junta Nacional de la Granja, Sistema Nacional de Áreas Protegidas,
Instituto Nacional de Semillas, etc. A su vez la misma se vincula a nivel
regional, siendo miembro fundador de la Confederación de Organizaciones
de Productores Familiares de Mercosur (Coprofam) y participando activa-
mente de la Reunión Especializada en Agricultura Familiar (Reaf).
100 E m i l i a n o G u e d e s – G a b r i e l P i c o s – H u m b e r t o To m m a s i n o

Dentro de las principales reivindicaciones gremiales de CNFR, en


los últimos años encontramos, dos líneas centrales, la necesidad de políticas
diferenciadas para el desarrollo de la agricultura familiar y reivindicaciones
vinculadas al acceso tierra (función social de la tierra vs. concentración y
extranjerización). Dentro de la propuesta de políticas diferenciadas para
la agricultura familiar las principales líneas desarrolladas por CNFR son:
educación, juventud, seguridad social, vivienda, infraestructura, seguri-
dad, registro de la producción familiar, acceso a tierra e inserción produc-
tiva, financiamiento (fondo para la AF), gestión del riesgo, investigación,
extensión y transferencia de tecnología, comercialización, legislación, rela-
cionamiento con el estado (descentralización) y promoción del sistema de
fomento rural (CNFR, 2009).
A nivel de los asalariados rurales, ha existido en los últimos años un
fuerte impulso en la sindicalización de los mismos, sobre todo a impulso de
su incorporación en los Consejos de Salarios. A nivel sindical los mismos se
nuclean en sindicatos específicos por actividad y vinculados globalmente a
la Unión Nacional de Asalariados, Trabajadores Rurales y Afines (Unatra),
la cual se funda el 5 de diciembre de 2004 en Bella Unión y se vincula a
la coordinadora nacional de sindicatos de los trabajadores (PIT – CNT)
(Mascheroni, 2011).
Según Carámbula et al. (2012) al evidenciar la última década, se
veía por un lado, la existencia de pocas organizaciones y por otro lado un
bajo nivel de afiliación sindical, teniendo capacidad de organización en ese
entonces los asalariados rurales de rubros con contratación intensiva de
mano de obra.

No obstante, el nuevo marco normativo ha estimulado la sindica-


lización rural, lo que se manifiesta a través del incremento de las
organizaciones desde 2005. Inclusive, se ha logrado expandir la
sindicalización hacia sectores donde no existía. Tales son los casos
del rubro arrocero, y la incipiente organización en los tambos y
ganadería. Sin embargo, el mencionado crecimiento cuantitativo
a nivel de las organizaciones sindicales rurales, no necesariamente
se ha visto acompañado de un aumento sustantivo en la afiliación
(Carámbula et al., 2012, p. 357).
Los Movimientos y Organizaciones Sociales Campesinas en el Uruguai 101

A continuación se presenta en el siguiente cuadro el mapa de sindi-


catos rurales vinculados a Unatra:
Cuadro 1 – Sindicatos Rurales en Uruguay
Sindicato Año de inicio Rubro Ubicación geográfica
de actividad
Sindicato de Obreros de Calvi- 1998 Vitivinicultura Bella Unión
nor (Socal)
Sindicato Único de Calagua 2002 Riego y Bella Unión
Maquinaria
Unión de Trabajadores Rurales 2005 Citrícola Pueblo Gallinal (Pay-
y Agroindustriales de Azucitrus sandú)
(Utria)
Sindicato de los Trabajadores de 2009 Arándanos Salto
Arándanos y Afines (Sitraa)
Sindicato de Trabajadores Hortí- 2011 Horticultura Bella Unión
colas (STH)
Unión de Trabajadores Azucare- 1961 Caña de Bella Unión
ros de Artigas (Utaa) Azúcar
Sindicato de Obreros Rurales 1985 Horticultura San José
y Destajistas de San José
(Sorydesa)
Sindicato Único de Obreros 1992 Citricultura, Salto
Rurales y Agroindustriales Horticultura
(Sudora)
Unión de Trabajadores Rurales 1995 Horticultura, San José, Florida,
asalariados del Sur del País Fruticultura y Canelones y Monte-
(Utrasurpa) Avicultura video
Organización de Obreros 1998 Fruticultura Rio Negro y Paysandú
Rurales (Osdor)
Sindicato Único de Obreros 2004 Forestación Tranqueras (Rivera)
Forestales (Sunof)
Sindicato de Trabajadores Citrí- 2005 Citricultura y Salto, Belén y Consti-
colas y Afines (Sitracita) Horticultura tución
Sindicato de Obreros Indus- 1907 Forestación Río Negro, Paysandú,
triales de la Madera y Afines Tacuarembó, Durazno,
(Soima) Lavalleja y Rocha
Sindicato de Trabajadores 2005 Ganadería y Flores, Lavalleja,
Rurales (Sitra) Agricultura Soriano y
Artigas
Sindicato Único de Trabadores 2005 Arroz Cerro Largo (Melo,
del Arroz y Afines (Sutaa) Vergara, Río Branco),
Treinta y Tres
Sindicato Único de Trabajadores 2008 Tambos, Florida, Colonia,
de Tambos y Afines (Sutta) Forestación y Rocha, Canelones,
Agricultura Tacuarembó, Durazno
Fuente: Carámbula et al., 2012.
102 E m i l i a n o G u e d e s – G a b r i e l P i c o s – H u m b e r t o To m m a s i n o

Entre las principales reivindicaciones asociadas a los sindicatos de


trabajadores rurales, debemos mencionar, las asociadas a un salario digno,
jornada y condiciones de trabajo, salud y seguridad social, acceso a vivienda
y en algunos casos el acceso a tierra (ej. Utaa y Sutaa).
Debe destacarse un convenio celebrado ente el MGAP y la Uni-
versidad de la República para favorecer y consolidar la organización de los
sindicatos rurales, tanto Unatra como los sindicatos de base. Este convenio
que se viene desarrollando desde 2013 contribuye a la organización y forma-
ción de los trabajadores desde el ámbito jurídico, organizativo y de la salud
laboral y la comunicación.

DE UN ESTADO DE RESISTENCIA A UNA LUCHA SOCIAL DE CLASE


¿UN ESCENARIO POSIBLE EN EL URUGUAY ACTUAL?
“La concepción hegemónica de mundo afirma, de manera general
y bajo diferentes argumentos, que el campesinado tiende a desaparecer a
consecuencia del desarrollo de la empresa capitalista en el campo”, nos dice
Martins de Carvalho (2013), concepción que paradojalmente comparten
tanto las perspectivas liberales como la perspectiva marxista más ortodoxa.
Como ya hemos planteado desde el inicio de este trabajo, Uruguay parecería
estar a la vanguardia de este postulado.
Sin embargo, compartimos con Martins de Carvalho también, que
este escenario puede cambiar. Es más, es deseable y se vuelve un desafío
por el que luchar el hecho que esta realidad cambie. Nos planteamos una
utopía, un horizonte de lo posible, la posibilidad de que Agricultores Fami-
liares y asalariados rurales puedan asumir la identidad social campesina.

Es en esta perspectiva, que la idea general de campesinado podrá,


en tanto concepto político a ser alcanzado, contribuir de manera
fundamental con la construcción de la unidad política de clase
de los aquí denominados, en sentido amplio, productores rurales
familiares, particularmente los que no incorporaron una relación
social de asalariamiento en sus unidades de producción. Además,
las nociones de autonomía y acumulación campesina, de control
familiar de los procesos de trabajo, de otro modelo tecnológico,
de otra relación con la naturaleza y con la sociedad, etc., aliadas a
Los Movimientos y Organizaciones Sociales Campesinas en el Uruguai 103

la percepción de que las empresas capitalistas del agronegocio y


los bancos les son estructuralmente antagónicos, contribuirán con
la construcción de la unidad de clase de la diversidad campesina
en el Brasil. (...) No es la diversidad de las identidades sociales,
constatadas actualmente en el país con relación a los productores
rurales familiares, lo que los torna o no campesinos. Al contrario,
es la concepción de mundo y de práctica social que experimen-
tan: su praxis social (Martins de Carvalho, 2013, p.170-173).

Teodoro Shanin alertaba décadas atrás, que “el campesinado es


un proceso y necesariamente una parte de la historia social más amplia”
(Shanin, 1979). Pensar la clase como proceso histórico nos permite explicar
relaciones sociales del presente, pero que por sobre todas las cosas, nos
permite ubicar proyectos políticos que se ponen en juego y sobre los que
construyen las luchas sociales en la actualidad. Procesos que podrían impli-
car por ejemplo, salirse del lugar de resistencia en el que hoy está ubicado el
Agricultor Familiar ante al embate del capitalismo en el campo, para pasar
a partir de la praxis y la lucha colectiva; ubicarse identitariamente como
parte de un proyecto global alternativo, el proyecto campesino. O la posibi-
lidad incluso de constituir parte de la clase campesina para muchos sujetos
nacidos en lo urbano que a partir de diferentes encuentros han tomado la
opción de la vida en el medio rural como una propuesta deseable y por la
que luchar.

ALGUNOS INDICADORES QUE NOS PERMITEN VISLUMBRAR


ESA POSIBILIDAD EN EL URUGUAY
El movimiento campesino actual se caracteriza por la disputa contra
la hegemonía capitalista desde un proyecto en el que podemos destacar
tres líneas programáticas fundamentales: reforma agraria y acceso a tierra,
soberanía alimentaria como estrategia para la construcción de autonomía
política, y la agroecología como marco que orienta algunas de sus accio-
nes en el plano tecnológico productivo. Tres líneas que si bien podemos
encontrarlas también en nuestro país, las mismas se encuentran dispersas,
desflecadas en múltiples organizaciones, la mayor parte de ellas de escala
local y con dificultades de conectarse unas con otras.
104 E m i l i a n o G u e d e s – G a b r i e l P i c o s – H u m b e r t o To m m a s i n o

En lo que refiere a la lucha por el acceso a tierras y la reforma agraria,


se ha producido una intensificación a partir del ingreso del nuevo siglo. Un
primer impulso fue la resistencia al intento de cierre del Instituto Nacional
de Colonización (INC) en el año 2002, resistencia sostenida por parte de
organizaciones sociales como el PIT-CNT (coordinación nacional de sindi-
catos), sindicatos rurales, la Federación de Estudiantes Universitarios del
Uruguay (FEUU), la Asociación de Colonos del Uruguay, diversas Socie-
dades de Fomento Rural, e incluso alguna institucionalidad pública (juntas
locales). CNFR toma en su Asamblea Anual de ese año la temática de la
Tierra y la Colonización, repitiendo la preocupación por ese tema a lo largo
de esa década y la siguiente, algo novedoso desde la restauración de los
gobiernos democráticos en nuestro país (1985).
El 15 de enero del 2006, tres organizaciones del norte del país ocupan
tierras en la lejana Bella Unión (departamento de Artigas), marcando un hito
en la historia de la lucha por la tierra en el Uruguay. La Unión de Trabaja-
dores Azucareros de Artigas, la mítica Utaa creada a impulsos del guerrillero
Raúl Sendic en la década del 60, junto con el Sindicato de Obreros de Calnu
(Soca), y la Asociación de Pequeños Agricultores y Asalariados Rurales de
Bella Unión (Apaarbu), “cansados de esperar justicia” ocuparon “tierra
para trabajar” (32 hectáreas del INC).7 Un hecho inédito en nuestro país, y
que luego de cuatro ocupaciones más (tres de ellas también en la zona de
Bella Unión, una en Kiyú, departamento de San José) se suspendieran a
partir de la criminalización de este tipo de medidas. El gobierno del Frente
Amplio, modificando la Ley Nº 18.116 del Código Penal, habilitó por parte
de la justicia una mayor celeridad para penar las “usurpaciones” de fincas
y predios. De esta manera se le quitaba a las organizaciones sociales de una
herramienta de lucha fundamental y que ha sido clave en otros países del
continente, con la excusa de que el acceso de tierras debía transitarse por
las vías institucionales.

7
Información disponible en: <http://www.espectador.com/politica/60309/ocuparon-
tierras-del-instituto-de-colonizacion>.
Los Movimientos y Organizaciones Sociales Campesinas en el Uruguai 105

A pesar de esto, la demanda por el acceso a tierras y una profundi-


zación de la necesidad de una estrategia de reforma agraria en el marco
de la Ley de Colonización, no ha hecho más que crecer. Se calculan en
más de 10.000 aspirantes a tierra en el marco del INC,8 cifra que contrasta
con los poco más de 5.000 colonos que son beneficiados por el INC en la
actualidad9.
En el mismo año que el INC pretende ser cerrado (2002), la crisis
social y económica que se instala como consecuencia de las políticas neoli-
berales de los 90’s, hace visible la fuerte dependencia en la que nos encon-
trábamos sobre la producción y acceso de los alimentos en el Uruguay, cues-
tión que lleva entre otras cosas a la instalación de cientos de huertas fami-
liares, comunitarias, de localización urbana y a lo largo de todo el país. Un
nuevo concepto se instala también con ellas: la de la Soberanía Alimentaria.
Quizás por este motivo es que son organizaciones de extracción urbana (PIT
CNT, o la FEUU por ejemplo), junto con algunas organizaciones no guber-
namentales (Redes-amigos de la tierra) y espacios académicos (Universidad
de la República) desde donde el concepto se muestra con mayor presencia.
Sin embargo, en los últimos años el concepto ha venido cobrando
fuerza, incluso en organizaciones más tradicionales del medio rural como
CNFR, que en los últimos cinco años (por lo menos), comienza a tomar la
discusión sobre la Soberanía Alimentaria en diferentes espacios institucio-
nales. Paradojalmente (o quizás no tanto), la conexión con este concepto
por parte de las organizaciones de Agricultores Familiares se da principal-
mente a partir de los encuentros generados principalmente a partir de la
Reunión Especializada de Agricultura Familiar (Reaf) del Mercosur, parte
de sus redes internacionales. La incidencia en las agendas de discusión por
parte de organizaciones campesinas de Brasil y Paraguay, provocan estos

8
Datos proporcionados en febrero de 2013 por el ex Presidente de INC, Andrés
Berterreche (<http://www.radiouruguay.com.uy/innovaportal/v/31243/22/mecweb/
colonizacion_reclama_mantener_seccion_constitucional_del_icir?parentid=28545>).
9
El INC consigna 3.832 colonos en su página web, con fecha febrero 2011 (<http://
www.colonizacion.com.uy/content/view/26/152/>), a eso habría que sumarle las
adjudicaciones de estos últimos 3 años. El dato es sacado de la página de Presidencia
(<http://www.presidencia.gub.uy/comunicacion/comunicacionnoticias/colonizacion-
fideicomiso-comprara-tierras-nuevas-colonias-lecheras>).
106 E m i l i a n o G u e d e s – G a b r i e l P i c o s – H u m b e r t o To m m a s i n o

puentes. Evidentemente, es en estos encuentros donde mayor potencia


podemos visualizar en relación a la aspiración que marcamos del pasaje de
un estado de resistencia de la Agricultura Familiar, a la superación en clave
de proyecto campesino. En la medida de que el capitalismo y sus expre-
siones (trasnacionales y banca principalmente), continúen su tendencia de
acaparación de la tierra y los bienes comunes en el medio rural uruguayo,
las alianzas con organizaciones de iguales permitirán una deseable conexi-
ón de las organizaciones locales con el resto del continente y el planeta; la
visión de lo global del problema, la globalización (internacionalización) de
la lucha y la esperanza.
Sobre la agroecología como tercera línea planteada por los movi-
mientos campesinos, podemos encontrar también experiencias colectivas
vinculadas a esta propuesta. La existencia de una Red de Agroecología que
nuclea unos cientos de productores principalmente al sur de nuestro país,
así como la Red de Rescate y Revalorización de Semillas Criollas y Nativas
del Uruguay, con más de veinte productores, la ONG Redes – Amigos de
la Tierra, y la Facultad de Agronomía de la Universidad de la República
son parte de las mismas. Esta línea impacta no solo a nivel de productores,
sino también en la creación de diferentes organizaciones que nuclean “con-
sumidores” también a partir de la búsqueda de nuevas formas de acceder
a alimentos, redes de Economía Solidaria, cooperativismo, comercio justo,
etc. Son espacios y redes donde organizaciones más nuevas se encuentran
con organizaciones más tradicionales vinculadas al cooperativismo en sus
diferentes expresiones (vivienda, producción industrial, etc.), o emprendi-
mientos de empresas recuperadas entre otras.
Otra línea de acumulación en relación a la posible constitución de
una clase campesina, son las expresiones de lucha en relación a la instalación
de megaemprendimientos productivos vinculados a trasnacionales y que
generan fuertes impactos en el plano de lo ambiental y del ordenamiento
territorial. Megaminería a cielo abierto, industria papelera, puerto de aguas
profundas, gasificadora, y etcs., se han transformado en movilizadoras de
un importante número de organizaciones que han configurado un polifa-
cético frente que nuclea entre otros, productores ganaderos tradicionales
y agricultores familiares, ambientalistas, organizaciones barriales y locales,
partidos políticos de izquierda “radical”, grupos anarquistas, asociaciones
Los Movimientos y Organizaciones Sociales Campesinas en el Uruguai 107

indigenistas, y un largo etc. Estas organizaciones han generado una movili-


zación que se ha instalado definitivamente, constituyendo la “Marcha por
la Tierra, el agua, y los bienes naturales” su expresión más visible (marcha
que lleva ya 6 ediciones).10
Estas cuatro líneas mencionadas, son los indicios de lo existente
en relación a una lucha que puede conectarse con las luchas campesinas
continentales. Máxime cuando en cada una de ellas podemos visualizar
además, otras alianzas “posibles y necesarias” que potencien un proyecto
de resistencia y superación (Martins de Carvalho, 2013, p. 348). Así como
no podemos afirmar una constitución de alianzas más específicas que con-
formen un frente campesino del tipo Vía Campesina (de escala nacional y
regional principalmente), podemos si visualizar pequeñas alianzas entre
organizaciones de productores, organizaciones de consumidores, ambienta-
listas, de derechos humanos, pueblos originarios, trabajadores, vecinos, etc;
a partir de frentes de lucha específicos y generalmente localizados.
Aun así, solo una intensificación de estas luchas podrán lograr con-
figurar la constitución de una clase campesina en nuestro país. En esta
clave, entendemos que existen por lo menos tres elementos para que esa
intensificación sea posible.
En primer lugar, la irrupción de una crisis social y económica, que
configure un nuevo escenario de polarización de la lucha. De la misma
forma que en el 2002, la Soberanía Alimentaria pudo instalarse como con-
cepto, hoy día existe suficiente acumulado como para que el concepto
pueda redimensionarse en clave de estrategia de lucha desde las organi-
zaciones sociales.
Otra posible forma de fortalecimiento de la agricultura familiar podría
ser, como aconteció durante la primera mitad del siglo 20, una serie de
políticas públicas coordinadas e impulsadas por la colonización. Este es un
escenario poco probable dado lo realizado durante el periodo de gobierno
del progresismo. En efecto, durante este lapso, si bien se trató de impulsar

Ver por ejemplo el blog de La Asamblea Nacional Permanente en Defensa de la Tierra,


10

el Agua y los Bienes Naturales, una de las principales organizaciones conformadas


(<http://endefensadelatierraylosbienesnaturales.noblogs.org/>).
108 E m i l i a n o G u e d e s – G a b r i e l P i c o s – H u m b e r t o To m m a s i n o

a la agricultura familiar se diseñó una estrategia que intento compatibilizar


el modelo del agronegocio (forestación- soja) y la producción familiar. Los
resultados están a la vista, se redujo el número de agricultores familiares
en aproximadamente 10000, una quinta parte del total de productores en
el Uruguay.
En tercer lugar, la intensificación de las luchas se puede desplegar a
partir de la acumulación de una serie de episodios vinculados a los efectos
ambientales que las prácticas del modelo productivo del agronegocio tienen
como consecuencia. Hacemos referencia a episodios vinculados a efectos de
la fumigación de agrotóxicos en escuelas o predios aledaños a plantaciones
donde su uso es habitual; contaminación de aguas, principalmente el agua
potable de centros densamente poblados; efectos de la instalación de la
minería y del puerto de aguas profundas (en el caso de que se concreten);
etc.

REFLEXIONES FINALES
El panorama que trazamos para el campesinado en Uruguay parece
tener caminos muy complejos y dificultosos. No parece existir en el corto
plazo un proceso de crecimiento y consolidación de estos sujetos colecti-
vos en Uruguay. Claro está, las dinámicas sociales y los ciclos de lucha son
impredecibles. Nos corresponde como estudiosos de la temática que hemos
tomado partido por los sectores subalternos, profundizar los análisis sobre
los procesos de lucha aportando elementos que permitan que estos sujetos
puedan consolidarse en grupos sujetos de la transformación social.

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OS ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA:
Reconfiguração Territorial e Repovoamento Rural no RS

Aline Weber Sulzbacher

Há algum tempo vimos refletindo, sobretudo de forma coletiva, sobre


as transformações do espaço agrário gaúcho e, nesse caso em especial, sobre
a Campanha gaúcha ou, como ainda é usual, a “Metade Sul” do Rio Grande
do Sul.
Os processos de expansão da fronteira agrícola brasileira tiveram
dinâmicas particulares conforme as diferentes regiões. No Rio Grande do
Sul, sobretudo a partir da década de 80 do século 20, a “direção sul” passou a
receber, progressivamente, uma atenção diferenciada, sobretudo diante das
diferentes possibilidades de uso da terra e de “preencher” o vazio demográ-
fico. Trata-se de uma região que vem ganhando importância não somente
nas políticas desenvolvimentistas, mas também no campo acadêmico. Há
diferentes estudos que mostram tanto processos históricos quanto conflitos
e transformações recentes envolvendo a instalação e os impactos dos assen-
tamentos de reforma agrária (Alves; Silveira, 2008; Chelotti, 2003; Medeiros;
Lindner, 2013), os impactos da silvicultura (Diesel et al., 2006; Brandão;
Froehlich; Breitenbach, 2014) e da vitivinicultura (Flores; Medeiros, 2011).
Há ainda estudos que apresentam os conflitos agrários e a mudança dos
modos de vida (Fialho, 2011; Brito, 2010; Losekann; Wizniewsky, 2012,
2013) e a formação e o reconhecimento de territórios a partir das indicações
geográficas, dentre outros.
Não temos a pretensão de revisitar todas essas diferentes abordagens,
mas, de forma modesta, construir uma reflexão que atente para algumas
particularidades desse processo. Procuramos examinar, sobretudo, como os
114 A l i n e We b e r S u l z b a c h e r

diferentes projetos em disputa, que implicam concepções sobre como desen-


volver, são colocados em marcha. Muitas vezes, projetos como esses ocorrem
sem a aquiescência daqueles que vivem e que fazem da metade sul do Rio
Grande do Sul não só um lugar de vida, mas onde depositam suas expec-
tativas, seus projetos, seu futuro, reconstroem seus habitus1 e adaptam sua
cultura na esperança de dias melhores. Por esses prados, o desenvolvimento
passa a ser um processo cuja concepção é construída por outros, pelos de
fora, pelo forasteiro, que ali nada reconhece como moderno, que por ali só
vê ausências. Nesse ponto, concordamos com Brandão, Froehlich e Breiten-
bach (2014, p. 232), ao apontarem que “Em regiões periféricas do ponto de
vista econômico-industrial, como a Metade Sul do Estado [...], acredita-se
que o caminho para a melhoria das oportunidades e da qualidade de vida
das pessoas não virá através de receitas prontas de desenvolvimento”.
Partimos, portanto, de uma perspectiva de que os assentamentos de
reforma agrária representam não somente a contestação e a mudança de
uma estrutura agrária desigual, mas também implicam uma estratégia de
entrada em uma região até então relativamente marginalizada diante do
processo de desenvolvimento moderno no campo. Os assentamentos envol-
vem, sobretudo, uma mudança não só da paisagem, mas de todas as redes
de sociabilidade, dos habitus, da organização política, social e econômica de
uma região; implicam um conflito para a construção de um novo território,
com novos atores, regras e, em especial, novas demandas.2
Desenvolveremos as reflexões, muitas delas ainda especulativas, em
duas sessões, começando por uma abordagem geral sobre a formação da geo-
grafia agrária gaúcha e a interação de fatores como o meio natural, as polí-

1
Sobre conceito de habitus ver Bourdieu, Pierre. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2007.
2
Destacamos que os procedimentos metodológicos deste texto fazem parte da pesquisa
de Doutorado (2011-2015) junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia (Unesp,
São Paulo) e que contou com financiamento da Fundação de Apoio à Pesquisa do
Estado de São Paulo (Fapesp), sob orientação do professor doutor Antonio Nivaldo
Hespanhol.
Os Assentamentos de Reforma Agrária 115

ticas de colonização e as políticas desenvolvimentistas. Na segunda sessão


analisaremos um pouco o cenário em que se instalam os assentamentos de
reforma agrária e os conflitos decorrentes desse processo.

PROJETOS EM CONFLITO E A GEOGRAFIA AGRÁRIA GAÚCHA


Nesta seção apresentaremos aspectos históricos e geográficos da for-
mação do Estado do Rio Grande do Sul, de modo a demonstrar o processo
de diferenciação regional e suas influências na dinâmica agrária. Estes são
dois aspectos fundamentais na formação das identidades regionais, vincu-
lados a saberes e práticas produtivas, culturais, etc., em especial aqueles
relacionados à transformação do meio geográfico. Tal contextualização visa
a situar a inserção dos assentamentos de reforma agrária, as dificuldades de
adaptação e as estratégias de articulação produtiva, bem como lançar hipó-
teses sobre como o meio geográfico influencia as concepções sobre o devir3
dos assentamentos e da participação política.
No processo histórico-geográfico de formação do território gaúcho,4
destacamos a importância de três fatores: (1) os de ordem natural, uma vez
que dois biomas contribuíram na regionalização das aptidões agrícolas e

3
Conforme o Dicionário de Filosofia de Abbagnano (1998), o devir pode ser entendido
também como o “vir a ser”, ou seja: “Uma forma particular de mudança, a mudança
absoluta ou substancial que vai do nada ao ser ou do ser ao nada. Esse é o conceito
de Aristóteles e Hegel”. Aristóteles afirmava: “Diz-se D. em muitos sentidos: ao lado
daquilo que vem a ser absolutamente [...], há aquilo que vem a ser isto ou aquilo. O D.
absoluto é só das substâncias: as outras coisas que vêm a ser precisam necessariamente
de um sujeito, já que a quantidade, a qualidade, a relação, o tempo e o lugar vêm a ser
só em referência a certo sujeito; e enquanto a substância não pode ser atribuída como
predicado a nenhuma outra coisa, todas as outras coisas podem ser atribuídas como
predicado a uma substância” (p. 277).
4
Conforme Fialho (2011, p. 16, grifos do autor) “A figura do gaúcho, construída ao longo
do processo histórico de ocupação e formação do território rio-grandense, incorporou
diversas significações até alcançar a atual – habitante do Estado do Rio Grande do Sul
– Brasil. A palavra gaúcho, no decorrer dos anos, passou por um processo de construção
do sentido de identidade, seguindo dois caminhos que convergiram para o significado atual
da palavra. Esses dois caminhos estão identificados com a personalidade dos indivíduos
e com o espaço físico que ocupam. Antigamente referido a certa casta de características
depreciativas que ocupava determinada região que compreendia parte dos territórios
da Argentina, do Brasil e do Uruguai; atualmente, desvinculada das características
depreciativas, atribuídas aos habitantes do Rio Grande do Sul”.
116 A l i n e We b e r S u l z b a c h e r

pecuárias; (2) as políticas e estratégias de ocupação e povoamento, como


as sesmarias, que foram basilares para a concentração da propriedade da
terra, seguida da política de colonização com imigrantes europeus, refor-
çando o “lugar” marginal dos povos que já ocupavam o território; e, por fim,
(3) as políticas recentes de Estado, que incentivam o desenvolvimento do
capitalismo no campo, sendo priorizadas áreas com aptidão agrícola, propí-
cias para a modernização da agricultura, a industrialização e a urbanização,
aliadas também a recentes estratégias de expansão da fronteira agrícola para
a porção sul do Rio Grande do Sul.
As características de ordem natural e o processo de ocupação contri-
buíram para que se forjasse uma tênue linha, de significativo cunho sim-
bólico, estabelecendo a Metade Sul e a Metade Norte, a Campanha e as
Colônias. Elas contrapõem modos de vida diferentes – o gaúcho peão versus
o colono –, em suas formas de se relacionar com a natureza, com o trabalho,
com os outros, consolidando uma diferenciação nas formas de uso, inserção
e transformação do meio geográfico:

Na história da colonização do Rio Grande do Sul, pode-se obser-


var a clara separação étnica, as colônias alemãs e italianas, cada
uma no seu território, isolamento étnico que ainda hoje se observa
(amenizado com os anos) na sociedade rio-grandense. Apesar da
segregação racial velada existente no interior da sociedade rio-
-grandense, a representação do gaúcho reúne as etnias sob um
mesmo tipo social – gaúcho (Fialho, 2011, p. 4).

Na prática agrícola do colono, a labuta diária envolve arar a terra


para produzir. Por outro lado, a “vida cotidiana do gaúcho peão brasileiro,
no interior da estância, respeitava o tempo da natureza” (Fialho, 2011, p.
18). Logo, para o gaúcho peão, o solo não é revolvido e o campo nativo é
preservado a partir do manejo com o gado, de modo a garantir sua perma-
nência, enfim, para o “gaúcho peão, a atividade agrícola não estava entre as
suas atribuições” (p. 18).
Os Assentamentos de Reforma Agrária 117

Para Haesbaert (1988), há uma contraposição 5 entre “o pêlo duro


(descendente de luso-brasileiro) x colono (geralmente de ascendência ita-
liana ou alemã), manifestando a manutenção da segregação e das raízes
‘culturais’ na explicação do ‘atraso’ dos luso-brasileiros frente aos demais
colonizadores europeus” (p. 69). Os dois tipos sociais também represen-
tam modelos agrários e projetos diferentes, implicando conflitos e acirran-
do disputa não somente por terra, mas também pela continuidade de sua
existência, principalmente a partir da década de 80, quando alguns colonos
começaram a migrar para a metade sul em busca de novas áreas para pro-
dução de arroz e soja.

Rio Grande do Sul: influências do meio e ações políticas


A formação geológica e climática do Rio Grande do Sul contribuiu
para demarcar uma divisão política e administrativa entre o norte e o sul.
Historicamente, no norte, o domínio do Bioma Mata Atlântica foi progres-
sivamente substituído por lavouras, a partir da ocupação de descendentes
dos colonos imigrantes. O sul, com predominância do Bioma Pampa, carac-
terizado pelo campo nativo, foi ocupado pela pecuária extensiva, conforme
apresenta a Figura 1. Nela, usamos como referência a divisão biogeográfica
e os municípios considerados como na “metade sul” pelo Ministério da
Integração Nacional (MIN).6

5
Haesbaert (1988) analisa documentos da Cooperativa Mista Aceguá, referente aos
esforços para formação do ideal de cooperação na Colônia Nova Esperança, situada
próxima a Bagé e criada em 1949 por imigrantes alemães de origem ucraniana.
6
De acordo com o MIN (Brasil, 2009), a denominada mesorregião Metade Sul do Rio
Grande do Sul é um território de aproximadamente 154.100 km², com 105 municípios
fazendo fronteira com o Uruguai e a Argentina. Para o Instituto Brasileiro de Geografia
e statística (2012), o Rio Grande do Sul possui sete mesorregiões: Noroeste, Nordeste,
Centro-Ocidental, Centro-Oriental, Sudoeste, Sudeste e Metropolitana.
118 A l i n e We b e r S u l z b a c h e r

Figura 1 – Mapas com divisão das “Metade Norte” e “Metade Sul” do Estado
Os Assentamentos de Reforma Agrária 119

O primeiro mapa contém uma aproximação da divisão dos biomas. O segundo está de acordo
com os municípios considerados pelo MIN como integrantes da mesorregião da Metade Sul.
Fonte: Rio Grande do Sul (2011) e Brasil (2009) – Mapas adaptados.

Reconstituindo os principais aspectos históricos da instituição desses


modelos agrários, pode-se indicar o ano de 1531 como marco para o primeiro
contato dos exploradores europeus com a área que atualmente se refere ao
Estado do Rio Grande do Sul. As terras já eram povoadas por nativos dos
grupos Tapes, Carijós, Minuanos, Charruas e Coroados.
A segunda referência temporal, cerca de cem anos depois, é o período
de 1605 a 1633, com a fundação das reduções jesuíticas (de origem espanho-
la), reorganizadas posteriormente nos Sete Povos das Missões (1682 a 1750).
Na eminente disputa territorial pela demarcação da fronteira entre as
colônias espanholas e portuguesas, a partir do século 18, a Coroa Portuguesa
distribuiu sesmarias e instalou acampamentos militares, visando a garantir
120 A l i n e We b e r S u l z b a c h e r

a posse e a defesa das terras. Instituiu-se assim um marco inicial da questão


agrária: a concentração de terras, destinadas a militares e a membros da
nobreza. Os campos da “Metade Sul”, disputados entre Portugal e Espanha,
foram povoados por luso-brasileiros em uma lógica ocupacional segregadora,
como assinala Haesbaert (1988, p. 34):

Muitos autores vêem na doação de sesmarias (com área de 13.068


ha) e na expansão da pecuária, marcos originais da formação da
estrutura latifundiária gaúcha, a única forma de viabilizar a ocupa-
ção e defesa do território, tendo em vista a concessão de terras e
escassez de elementos povoadores. Contudo, raramente atentam
para o caráter social da distribuição das terras, profundamente
segregador, privilegiando os chefes militares de maior patente
[...] e aqueles que, por usucapião, já tivessem algum tipo de ins-
talação, mesmo temporária (as invernadas ou currais). Tratava-se
sempre, é óbvio, de uma prática clientelista, onde não se respei-
tava nenhum preceito legal.

Das sesmarias surgiram as estâncias e, como afirma Brito (2010,


p. 12), o acesso à terra e aos meios de produção esteve “pouco ou nada
acessível às camadas menos abastadas de distintas maneiras durante o
decorrer dessa história”. Para a autora, a história agrária da Metade Sul
(ou região da Campanha) pode ser periodizada a partir de seis ciclos
econômicos. O primeiro ciclo corresponde à captura do gado solto, que
se reproduziu após a destruição das reduções jesuíticas. O segundo é
marcado pela produção de gado, quando as tropeadas de gado vivo inter-
ligaram o Rio Grande do Sul e São Paulo, abrindo as primeiras estradas.
O terceiro ciclo tem por característica um “sistema agrário-estância” que
se iniciou a partir da redução da mineração e da queda na demanda por
carne, fazendo com que as estâncias da Campanha passassem a produzir
charque. O quarto período marca um processo de desmantelamento da
economia do charque, guerras civis (Revolução Farroupilha e Revolução
Federalista), a Guerra do Paraguai e a instalação do “sistema agrário de
campo”. O quinto ciclo (1900-1930) é marcado pela diversificação, com
produção de vitivinicultura, milho e arroz irrigado. Na pecuária, houve
um estímulo para a ovinocultura, principalmente na produção de lã. Ao
longo desses ciclos,
Os Assentamentos de Reforma Agrária 121

O latifúndio e o município constituíram a base territorial mínima


de poder que levou os grupos dominantes da Campanha à hege-
monia política do território estadual por tantas décadas. Isso não
significa que esses grupos tenham, concomitantemente, assegu-
rado seu domínio econômico (Haesbaert, 1988, p. 53).

A década de 30 inaugurou o sexto ciclo econômico na Metade Sul, em


que se destacam a produção de gado extensiva “melhorada” e a produção de
arroz irrigado. A modernização da pecuária e da agricultura foi incentivada
a partir de crédito e financiamentos pelo Estado. Assim, “coube ao arroz, a
partir da década de 1920, afirmar a atividade lavoureira e o arrendamento
num meio praticamente exclusivo de pecuaristas” (Haesbaert, 1988, p. 58),
no entanto “A rizicultura não alterou a estrutura agrária da Campanha” (p.
58). Além disso, as políticas de desenvolvimento poucas vezes favoreceram
a região, como demonstra estudo de Haesbaert (1988, p. 71, grifos nossos):

A dicotomia Campanha x Serra (Colônia) estaria definitivamente


superada com a nova política econômica e de transportes iniciada
nos anos 50. A opção pelas rodovias e a estagnação do transporte fer-
roviário contribuíram ainda mais para reforçar o pouco dinamismo e
o empobrecimento da Campanha. Desprovida de eixos rodoviários
em boas condições de tráfego, e com a desaceleração também
das ligações aéreas regionais, deixando de servir várias cidades, a
Campanha dos latifundiários “fecha-se” ainda mais em torno do
que lhe era possível preservar (à escala local): o poder municipa-
lista e a economia pastoril latifundiária.

Esse cenário começa a mudar – ainda que lentamente – a partir de


1960, quando se inicia um processo de “capitalização dentro da própria
pecuária e sua transformação em atividade intensiva, voltada para a expor-
tação [...]. A proliferação de cabanhas, propriedades especializadas na criação
de gado de raça [...]” (Haesbaert, 1988, p. 62). Associada a essa moderniza-
ção da pecuária, a “penetração do capital dos ‘colonos’, através da empresa
rural agrícola ou ‘granja’, especialmente no setor rizícola, tem sido o agente
de mais intensa transformação socioespacial da Campanha gaúcha nos
últimos anos” (Id., p. 63). Essas características passam a moldar o sistema
agrário contemporâneo da Metade Sul.
122 A l i n e We b e r S u l z b a c h e r

Enquanto isso, a “Metade Norte” apresentou uma dinâmica vincu-


lada à propriedade familiar, geralmente de pequeno porte, e a um modo
de vida marcado pelas práticas e cultura agrícolas. Do ponto de vista geo-
político, a colonização do Rio Grande do Sul por imigrantes europeus foi
deslocada para outras regiões. Como lembra Haesbaert (1988, p. 54), “o
governo imperial, sem interesse em tocar diretamente no espaço latifundiá-
rio, promoveu a apropriação privada e a colonização das áreas de mata do Rio
Grande do Sul, embrião de uma futura expansão tentacular das pequenas e
médias propriedades em direção à fronteira”.
A colonização das áreas de mata iniciou-se a partir de 1748. Em
especial, imigrantes de origem europeia contribuíram para a formação de
identidades regionais ligadas à gastronomia, ao idioma, à religião, à arquite-
tura e ao processamento artesanal de alimentos. A recepção aos imigrantes
iniciou-se com a chegada de 2 mil casais açorianos. Além deles, entre 1824
e 1914, chegaram aproximadamente 45 mil alemães e, entre 1784 e 1914,
cerca de 160 mil italianos.
Significativa parte desses imigrantes recebeu colônias de terras e foi
responsável pela expansão da fronteira agrícola do Estado, povoando inicial-
mente os vales, depois as encostas, em direção ao centro. Em seguida, seus
descendentes formaram as “colônias novas”, seguindo nas direções norte
e noroeste, a partir da substituição das matas por uma prática agropecuária
voltada basicamente para a subsistência do grupo familiar. As novas colô-
nias reproduziram a organização socioespacial das antigas, com pequenas
e médias propriedades de base familiar, com perfil produtivo baseado na
policultura, em trocas mercantis e na adoção do sistema de pousio dos índios
e dos caboclos. Sua produção era de milho, mandioca, feijão e batata, para
consumo da família, e de banha, como principal produto comercial (Lima;
Hennig, 2008). Constitui-se, principalmente, um conjunto de características
que entram em colapso a partir das décadas de 60 e 70, com as partilhas das
terras por herança, a perda de fertilidade dos solos e a progressiva diferen-
ciação social entre os colonos, fatores que vão contribuir para a mobilização
e constituição do público da reforma agrária.
A primeira parte do século 20 foi marcada por significativas trans-
formações no tocante a esse perfil produtivo, introduzindo nova dinâmica
agrária que se consolidou com a modernização da agricultura. O ingresso
Os Assentamentos de Reforma Agrária 123

nos sistemas “modernos” de produção agrícola com integração à indústria


e à produção de soja e trigo, a necessidade de racionalizar os fatores de pro-
dução, as características agroecológicas e a busca de mercado foram alguns
dos fatores que provocaram grandes mudanças no meio rural e a progressiva
desestruturação da agricultura colonial (Picolotto, 2006).
Nesses marcos, a porção centro-norte-nordeste do meio rural gaúcho
começou a experimentar as primeiras ondas da especialização produtiva,
baseada em sistemas de produção intensivos que geralmente integravam
grãos com a atividade pecuária, a partir da formação dos complexos agroin-
dustriais nas cadeias produtivas de leite, suínos, aves, soja e milho – inten-
sivos e exigentes de força de trabalho.
Na Metade Sul, a crise na pecuária extensiva comprometeu a manu-
tenção das estâncias. Por meio do arrendamento de terras, a lavoura empre-
sarial penetrou nas áreas de pecuária com a produção de grãos: inicialmente
com arroz na década de 20, com o trigo logo em seguida e com a soja a
partir da década de 70. Essa relativa diversificação, a partir do arrendamento,
garantiu a manutenção da renda e a concentração da estrutura fundiária na
Campanha. Tal processo teve implicações diretas no modo de vida do gaúcho
peão, conforme analisa Fialho (2011, p. 16, grifos nossos):

Para o gaúcho peão foram séculos de vida (gerações) sob o olhar e


cuidado do gaúcho estancieiro, a mudança decorrente do processo
de desenvolvimento modificou seu estilo de vida levando-o à
transformação de peão-empregado a agricultor-proprietário. Este
último ainda não totalmente assimilado. Ainda encontra-se angus-
tiado. Por conta do passado e das dificuldades de adaptabilidade é
estigmatizado e desprezado.

A contraposição entre os modos de vida está em franca expansão,


principalmente com os recentes investimentos na área da vitivinicultura
em alguns municípios, a partir da década de 90, e da silvicultura, principal-
mente a partir dos anos 2000. Rozalino e Silveira (2012, p. 17) analisam tal
processo na Metade Sul:

[...] com a introdução da soja e eucalipto, observamos mudanças


na paisagem pampiana, mas não se consegue vislumbrar mudan-
ças positivas no panorama socioeconômico da região. A estrutura
124 A l i n e We b e r S u l z b a c h e r

fundiária permanece praticamente inalterada e, em alguns casos,


houve até certo aumento da concentração de terras nas áreas com
estas culturas.

A estrutura fundiária manteve-se concentrada, porém alteraram-se


aspectos essenciais ligados à paisagem (do campo à floresta plantada, em
grande parte exótica), ao tipo de trabalho disponível e ao perfil de traba-
lhador que passou a ser exigido pela indústria da silvicultura e vitivinícola.
Haesbaert (1988, p. 65) já apontava essas iniciativas empresariais como um
agente transnacional, de capital privado: “o capital vinculado à agroindústria
vitivinicultora é que parece efetivamente se impor como um agente transna-
cional a acelerar a incorporação da Campanha no espaço global capitalista”,
porém dadas suas características,

altamente mecanizada, sem utilizar mão-de-obra e alicerçada em


grandes propriedades, a vitivinicultura certamente irá acirrar as
contradições socioespaciais da Campanha. [...] irão apenas dina-
mizar um novo setor econômico, sem alterar significativamente
a base da estrutura social local, certamente fortalecendo as desi-
gualdades [...] (Haesbaert, 1988, p. 66-67).

Para Rozalino e Silveira (2012), o arrendamento de terras transfor-


mou-se em uma estratégia de manutenção da concentração fundiária, ala-
vancada principalmente com a inserção dos cultivos de arroz e de soja a
partir de 1990. Com base na análise de dados do Censo Agropecuário de
2006, os autores destacam:

Percebe-se que os cultivos de trigo e milho, além de pouca par-


ticipação, ainda sofreram certa redução em sua área plantada, o
que pode ser explicado pelos preços pouco atrativos no período.
Já para a cultura de arroz, detecta-se um salto na área plantada a
partir da segunda metade da década de noventa, ficando estabili-
zada nos anos posteriores, principalmente pela escassez de áreas
agricultáveis. A lavoura de soja, por sua vez, aparece com sua área
de cultivo triplicada em vinte anos, mostrando o grande interesse
obtido por esta cultura, já que a mesma encontra-se em processo
Os Assentamentos de Reforma Agrária 125

de avanços técnicos e preços atrativos devido a sua importância


como commoditie no mercado exportador brasileiro (Rozalino; Sil-
veira, 2012, p. 16, grifos nossos)

A produção de arroz tem se destacado nos últimos anos, atingindo 14,8%


do valor agregado bruto da agropecuária no Rio Grande do Sul, em virtude
da “introdução de novas variedades com maior potencial produtivo, manejo,
sistemas produtivos e gerenciamento, que acrescentaram rentabilidade a esta
lavoura” (Rio Grande do Sul, 2011). Em 2010, a produção de arroz correspon-
deu a 62% da produção nacional, e destacaram-se as mesorregiões Sudoeste
(44%), Metropolitana (23%) e Sudeste (20%) (Instituto..., 2012). Os mapas na
Figura 2 ilustram a mudança na área plantada com arroz nos últimos 20 anos.
Quanto à produção de soja, pode-se destacar que, enquanto a Metade
Norte continua se destacando no valor da produção, a Metade Sul tem se
tornado uma área propícia para a expansão da área plantada. Entre os anos
2000 e 2010, houve incremento aproximado de 700% na área plantada na
mesorregião Metropolitana e de 200% e 100% nas mesorregiões Sudeste e
Centro Ocidental (Instituto..., 2012), respectivamente.
Por sua vez, na pecuária de corte extensiva, a produção gaúcha vem
decrescendo. A concentração de rebanho está na porção oeste e sul do Estado,
associada à presença dos campos ou integrada à produção de arroz, com des-
taque para três regiões: a Fronteira Oeste, com 24,2% do rebanho; a região
da Campanha, com 10,6%; e o Sul, com 12,7% (Rio Grande do Sul, 2011).
Quanto ao leite, o Rio Grande do Sul responde por 12% da produção
nacional. No Estado, a quantidade de leite produzida no período de 2000
a 2010 aumentou 73%, enquanto o preço do produto aumentou R$ 0,34
por litro (de R$ 0,28 a R$ 0,61/litro) (Instituto..., 2012). A Figura 3 apre-
senta dois mapas referentes ao efetivo de bovinos e de vacas ordenhadas,
permitindo uma análise comparativa das regiões em que cada atividade
predomina.
A Metade Sul mantém a pecuária de corte extensiva como uma ati-
vidade importante, mesmo diante de alguns investimentos recentes em
fruticultura e silvicultura, vinculados, entretanto, a um projeto de moder-
nização que não altera a estrutura fundiária. Por sua vez, a Metade Norte
apresenta uma relativa diversidade na composição de sistemas de produção.
126 A l i n e We b e r S u l z b a c h e r

Figura 2 – Porcentagem da área municipal plantada com arroz (esq.) e soja (dir.)
Os Assentamentos de Reforma Agrária 127

Fontes: Malha cartográfica do IBGE e Censo Agropecuário 2006. Elaboração:


Sulzbacher, A. W.
128 A l i n e We b e r S u l z b a c h e r

Nesses sistemas, a predominância da produção de grãos, soja e milho nas


propriedades “consolidadas” é combinada com outras estratégias nas pro-
priedades de agricultura familiar, como é o caso dos sistemas de integração.
É principalmente junto a agricultores familiares, em especial aqueles em
que a propriedade da terra já é um fator limitante à reprodução social, que a
integração ao complexo agroindustrial se tornará uma alternativa para a per-
manência no meio rural, mesmo com todos os problemas sociais e ambien-
tais que podem ser decorrentes dessa relação.
É diante desses modelos agrários, vinculados a projetos de desen-
volvimento rural, que as famílias assentadas tentam recomeçar suas ati-
vidades produtivas. Em muitos casos, são igualmente marginalizadas e
estigmatizadas, ao mesmo modo dos “gaúchos peões” de outrora, restan-
do à organização política e econômica do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) um enorme desafio no sentido de construir
projetos alternativos de inclusão social e econômica, conforme analisa-
mos a seguir.

AS DIFERENÇAS REGIONAIS E OS ASSENTAMENTOS DE REFORMA AGRÁRIA


Em sua maioria, os assentamentos foram criados a partir do deslo-
camento da população para outras regiões – preponderantemente do norte
para o sul do Estado. Esse fato desencadeou uma série de mudanças, ainda
em processo, com muitas delas sendo marcadas pelo enfrentamento político-
-ideológico, pelo contraponto aos modos de vida e às concepções de mundo
entre os sujeitos sem-terra e os gaúchos peões ou pelo duro da região da Campa-
nha. Neste exercício analítico, levantamos reflexões hipotéticas sobre como
o meio geográfico influencia as concepções sobre o devir dos assentamentos,
da região e, principalmente, sobre os processos de participação política,
internos ao MST.
Significativa parte dos assentamentos no Rio Grande do Sul tem
relação direta com a atuação do MST. O Movimento iniciou o processo de
luta pela terra pela ocupação de grandes propriedades na Metade Norte,
seguindo em direção ao sul. Uma das ocupações, em 2009, foi realizada em
uma propriedade no município de São Gabriel, conhecido como “coração
do latifúndio” do Rio Grande do Sul.
Figura 3 – Municípios que se destacam na produção de bovinos (esq.) e vacas ordenhadas (dir.).
Os Assentamentos de Reforma Agrária

Fontes: Malha cartográfica do IBGE e Censo Agropecuário 2006. Elaboração: Sulzbacher, A. W.


129
130 A l i n e We b e r S u l z b a c h e r

A partir da Tabela 1 pode-se constatar que, entre 1990 e 2000, foram ins-
talados 60% dos assentamentos que existem atualmente no Estado. Cabe desta-
que às regiões Território Zona Sul, Fronteira Oeste-Livramento e Metropolitana,
ressaltando-se que as duas últimas não possuíam, até então, áreas reformadas.
Conforme os dados, há atualmente cerca de 13 mil famílias assentadas no Estado.
Tabela 1 – Assentamentos instalados, número de famílias e área
Assentamentos
Capacidade Área
Regiões Incra* até 1990- 2001-
Famílias (ha) Total
1989 2000 2011
Centro-Norte-Nordeste 4.423 95.687,47 6 55
97 36
Metropolitana 1.066 21.882,96 0 26
32 06
Missões 1.286 26.628,34 2 23
36 11
Território Zona Sul 4.694 99.582,18 6 70
116 40
Fronteira Oeste – Livra-
1.856 38.462,83 0 26 22 48
mento
 Total 13.325 282.243,77 14 200 115 329
*Consideramos a regionalização adotada internamente pelo Incra-SR 11, a fim de
facilitar a sistematização dos dados obtidos.
Fonte: Incra, dados de 2011 – Pesquisa de Campo (fevereiro 2012).
Elaboração: Sulzbacher, A. W.

A instalação de assentamentos rurais contribuiu, ainda que de forma


tímida, à desconcentração da estrutura fundiária, ao acréscimo da densidade
populacional e ao dinamismo econômico da “Metade Sul”, já em meados dos
anos 90. Na Figura 4 apresentamos três croquis com o número e a capacidade
de famílias dos assentamentos nos municípios gaúchos. Pode-se observar que
os municípios situados na Metade Sul, além de apresentarem maior número
de assentamentos, indicam também uma maior capacidade, fatores associados
à desapropriação de grandes propriedades. Destaca-se também a predominân-
cia (70%) no Estado de assentamentos com capacidade inferior a 133 famílias.
A mobilidade populacional, com fluxo principalmente no sentido norte a
sul, repercutiu diretamente no processo de reprodução social das famílias assen-
tadas, em especial na dimensão produtiva, como comenta Gomes (2005, p. 163):

Hoje o que se observa em determinadas regiões, como na metade


sul do Rio Grande do Sul, é que depois de quase 15 anos de insta-
lação dos primeiros assentamentos muitos agricultores ainda não
encontraram uma proposta ou arranjo produtivo que lhes garanta
a tão almejada sustentabilidade.
Os Assentamentos de Reforma Agrária 131

A começar, as famílias assentadas têm dificuldades impostas pelo


meio, com condições edafoclimáticas diferentes daquelas a que estavam
habituadas e nas quais muitas delas embasavam seu saber-fazer agrícola.
Figura 4 – Assentamentos no Rio Grande do Sul

Observação: Mesmo que não seja recomendado o uso do mapa coroplético para
dados absolutos (capacidade dos assentamentos), optamos pelo uso de cores, a fim
de permitir contraste visual, facilitando a rápida associação ao leitor.
Fontes: Malha cartográfica do IBGE e Censo Agropecuário 2006. Elaboração:
Sulzbacher, A. W.
132 A l i n e We b e r S u l z b a c h e r

Melgarejo (2000, p. 15), ao analisar a relação homem-ambiente,


aponta que, “em mais do que 50% dos assentamentos, a totalidade das
famílias não possuía experiência compatível com as exigências do local
onde foram assentadas”. O relato a seguir revela a situação de um grupo de
famílias que têm origem na Metade Norte e foram assentadas na Região
Metropolitana, em terras baixas:

Mas uma característica aqui, até pelas famílias, que vêm de uma
região de muita diversidade, e isso foi refletido aqui. Então o
que não tinha aqui na região, nas outras propriedades era ou só
arroz ou só gado... [...] Depois é óbvio, o tempo foi passando e as
famílias vão descobrindo de que “ah, essa plantação aqui a gente
consegue produzir para o consumo, essa outra produção consegue
comercializar” (Grupo Focal 2, 2012).

Cabe ainda citar a fala de uma família assentada em Hulha Negra:

Nós tivemos dificuldades. Nós éramos de uma região onde se


produzia soja, produção tradicional, né. Chegamos aqui e nos
deparamos com uma dificuldade porque na época não tinha
estrada pra ir na Hulha Negra, que dá 34 quilômetros. Muitas
vezes nós tinha que ir de a pé, porque não tinha... E a comu-
nidade [os peão por aqui, que faziam aquilo que o patrão dizia]
daqui não recebeu nós bem... A visão da comunidade era de que
nós era ladrão e vagabundo, que nós era assaltante de fazenda e
coisa assim e tal... [...] nós somos de uma região e somos filhos
de pequeno agricultor, então queira ou não, cada um tinha uma
raiz, tinha um capitalzinho lá do pai ou do irmão, coisa assim...
Então a primeira discussão nossa foi “vamos voltar para a casa
dos pais”, [...] fazer a discussão com os parentes para ver no que
podiam ajudar... (Liderança Local 22, 2012).

Em ambos os casos houve famílias que desistiram do assentamento


por falta de condições para enfrentar as dificuldades impostas pelo meio e,
inclusive, pela distância dos familiares. Estudando o caso do município de
Santana do Livramento, Chelotti (2003) também relata as dificuldades dos
Os Assentamentos de Reforma Agrária 133

agricultores assentados em adaptar seu saber agrícola às condições locais,


destacando, inclusive, que essa falta de conhecimento sobre como manejar
o meio comprometeu a segurança alimentar de algumas famílias:

Ao chegarem ao assentamento, as famílias começaram a cultivar


feijão, milho, soja, ou seja, os mesmos produtos e na mesma época
de plantio que estavam acostumadas em suas áreas de origens, ou
seja, em grande parte, na região do Alto Uruguai. [...] aos poucos
eles passaram a conhecer as especificidades regionais, como a
época do plantio de milho, maneira de arar a terra sem degradá-la,
entre outros (Chelotti, 2003, p. 193).

Em muitos casos, as famílias levaram ao menos dez anos para se


adaptarem. Isso significa passar por um processo de tentativa de produção
das culturas conhecidas e, especialmente, utilizando as práticas agrícolas
convencionais, por sucessivas frustrações que desencadeiam a percepção da
necessidade de mudança e de dominar novas técnicas. Um caso típico ocorre
nos assentamentos com terras baixas, as quais inevitavelmente acabam
sendo direcionadas para a produção de arroz, cujo cultivo é desconhecido
por grande parte das famílias. Gomes (2005, p. 165) também comentou essa
situação:

[...] na metade sul do Rio Grande do Sul, onde os assentados


ainda têm dificuldade de obter resultados satisfatórios com cul-
turas que faziam parte da tradição de cultivo em suas regiões de
origem e das suas próprias histórias de vida, como é o caso da
mandioca ou da soja. Como as condições e aptidões do agroe-
cossistema são diferentes, os resultados negativos aconteceram,
gerando decepção e até mesmo abandono do assentamento.

Em geral, para aqueles que ficaram, a estratégia se construiu a partir


da união das famílias e da definição de pautas de reinvindicação para garan-
tir infraestruturas básicas e a liberação dos créditos iniciais. Essas pautas são
mediadas pelas lideranças, debatidas no MST e defendidas diante de outras
instâncias políticas (como as prefeituras, secretarias regionais do governo
estadual, etc.).
134 A l i n e We b e r S u l z b a c h e r

Desse modo, o lugar do assentamento passou a ser um local de


encontro, ao modo proposto por Massey (2000, p. 184): “o que dá a um
lugar sua especificidade não é uma história longa e internalizada, mas o
fato de que ele se constrói a partir de uma constelação particular de relações
sociais, que se encontram e se entrelaçam num locus particular. [...] Trata-se, na
verdade, de um lugar de encontro”. O assentamento constituiu-se enquanto
um lugar de encontro de diferentes trajetórias em processo de ressignifi-
cação, de redefinição dos projetos de vida e, inclusive, do devir do assenta-
mento. Esse foi um encontro dos diferentes, que compartilham a particu-
laridade de serem sujeitos políticos sem-terra (mas, ainda assim, cada qual
singular), em um local diferente a ser transformado em lugar – material para
a objetivação de projetos de vida. Esse momento repercute na formação das
lideranças, sendo elas a combinação contraditória entre uma posição social
no âmbito da estrutura do MST e a situação de um sujeito político que tem
suas próprias aspirações na condição de um agricultor assentado.
Em síntese, a definição das “pautas de luta” tem sua particularidade
regional, por assim dizer. E essa particularidade, ao ser apresentada por sujei-
tos políticos sem-terra em posição social de liderança regional, participa da
disputa, junto com outras demandas e projetos, no âmbito desse subcampo
em que o Movimento se organiza e se articula. Em entrevistas realizadas com
lideranças do MST, podemos observar algumas das “pautas de luta” conside-
radas ainda de “necessidade básica” e sem as quais provavelmente torna-se
muito difícil construir ou discutir projetos para o desenvolvimento regional:

[...] a falta de infraestrutura básica nos assentamentos é ainda uma


vergonha para um governo como o nosso, que se diz a favor dos
pobres, enche de bolsa família, um monte de ajuda para pobre
que não tem emprego e deixa as pessoas que lutaram anos por
um pedaço de terra, que não têm estrada, não têm água potável,
que têm mais de [?] 5 mil famílias sem água potável. [...]

Agora tão discutindo de novo demanda de estrada, tem gente


que não tem acesso a recursos, não tem água potável. Não tem
acesso ao programa “Minha Casa, Minha Vida”, então quer dizer,
há ainda um conjunto de demandas de necessidade básica, né, de
famílias nos assentamentos dessa região sul (Direção Cooperativa
9, 2012).
Os Assentamentos de Reforma Agrária 135

Na Metade Sul, além do enfrentamento com a ideologia latifundiária


do pecuarista tradicional, as famílias assentadas também têm dificuldades
de adaptação dadas as restrições agroecológicas para a produção e a pequena
extensão dos lotes, o que inviabiliza a produção de gado de corte. A opção
para os agricultores assentados tem sido a integração à cadeia produtiva do
leite, geralmente viabilizada pelas cooperativas vinculadas ao próprio movi-
mento social: “Pega desde [...] São Gabriel a Livramento, Hulha Negra,
Candiota, Piratini, os produtores que produzem leite, quem recolhe o leite
são as cooperativas ligadas ao MST” (Direção Cooperativa 9, 2012). Uma
frente pioneira, já com dez anos, é a produção de sementes agroecológicas
nos assentamentos. Essa, no entanto, é uma atividade que tem inúmeras
dificuldades, devido à limitação da escala de produção, da equipe técnica
(falta recursos humanos) e de pesquisas para o desenvolvimento técnico e
tecnológico do setor.
Enquanto isso, os assentamentos da Metade Norte do Estado são
diferentes. A liderança comenta: “E o campo, aqui na nossa região, é muito
bem servido. Você está dentro do desenvolvimento econômico, tem acesso
[...]” (Direção Cooperativa 9, 2012). Esse acesso vai além do mercado – só
nos assentamentos da Fazenda Anoni (em Pontão), há pelo menos sete
empresas que circulam para recolher leite nos lotes. Faz-se referência
também às oportunidades de educação, de lazer e, principalmente, às opor-
tunidades para escolher a qual sistema de integração o agricultor assentado
pretende se vincular (soja, leite, aves, suínos). Mesmo que isso talvez não
seja o ideal no âmbito do projeto político do MST, com certeza faz muita
diferença na formulação de pautas reivindicatórias. Aliás, muitas das pautas
propostas no âmbito político do Movimento sequer mobilizam as famílias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Discutimos, de forma geral, aspectos do processo de formação histó-
rico-geográfica do Rio Grande do Sul, relacionando com algumas das difi-
culdades de adaptação das famílias assentadas, sobretudo na Metade Sul.
É importante lembrar que existem diferenças, como é o caso da região das
136 A l i n e We b e r S u l z b a c h e r

Missões (em que o isolamento e a dificuldade com áreas arenosas compro-


metem a sobrevivência das famílias) ou mesmo da Região Metropolitana (a
qual, por sua vez, apresenta outro conjunto de problemáticas).
A questão essencial por detrás dessas diferenças regionais – seja no
norte, sul, leste ou oeste – é que a realidade local e regional, aliada à trajetó-
ria de vida dos sujeitos políticos que ali passaram a viver, constituirá a base
para a reivindicação de demandas específicas, para a criação de estratégias
de reprodução social que podem potencializar ou comprometer o desen-
volvimento dos assentamentos. Fundamentalmente, essas particularidades
regionais, muitas vezes, estão ocultas à percepção do Estado e, frequente-
mente, passam à margem das discussões políticas do próprio MST.

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DE SUJEITOS OCULTOS (OFF-LINE)
A SUJEITOS VISÍVEIS (ON-LINE)
O Protagonismo da Juventude Rural a Partir
de Novas Sociabilidades no Rural Contemporâneo

Gisele Martins Guimarães


Ezequiel Redin
Paulo Roberto Cardoso da Silveira
Janaína Balk Brandão

Desde a década de 90 a literatura vem documentando elementos


de mudança no rural brasileiro, como a redução do número de famílias
envolvidas com a agricultura, a emergência de atividades não agrícolas no
espaço rural, a presença da agricultura de tempo parcial e ainda a pluria-
tividade como nova característica da organização do trabalho das famílias
rurais. Neste “novo rural”, atividades como turismo, indústria, comércio e
serviços surgem com crescente importância na ocupação da força de trabalho
disponível, enquanto fenômenos de êxodo rural são observados a partir do
envelhecimento da população do campo e a masculinização entre os seus
remanescentes (Camarano; Abramovay, 1999).
Estudos recentes sobre o desenvolvimento rural brasileiro enfatizam
uma intensa migração dos jovens rurais para os centros urbanos em busca
de opções de estudo, emprego com salários fixos e direitos de Previdência
Social respeitados (Stropasolas, 2006). Esse êxodo dos jovens vem trazendo
consigo ameaças à sucessão familiar, levando a um provável esvaziamento
do rural em um futuro próximo. Ao examinar este processo no qual a juven-
tude rural assume a perspectiva de não permanecer no campo, as pesqui-
sas apontam diversas motivações para este comportamento, indo da baixa
140 Gisele Martins Guimarães – Ezequiel Redin – Paulo Roberto Cardoso da Silveira – Janaína Balk Brandão

expectativa de renda na agricultura camponesa, a falta de participação na


gestão da economia familiar e ainda a busca por melhores condições de infra-
estrutura, serviços públicos e opções de lazer (Redin; Silveira, 2012). Nesse
contexto, adverte-se para a necessidade de estudos que possam ir além dos
fatores que estimulam a saída do rural apontando e refletindo sobre aspectos
que incentivem a juventude rural a permanecer nestes espaços.
Neste texto o conceito de juventude rural assume significado de um
ator coletivo, relacionado a um projeto identitário que implica a dimensão
da organização e luta política. Desse modo, ultrapassa-se o enfoque que
ressalta apenas fatores de ordem individual, a qual tem como consequên-
cia uma análise que particulariza a situação de cada família e não enfatiza
os elementos relativos às expectativas e perspectivas dos jovens enquanto
grupo social, os quais agem e reagem condicionados, sobretudo, por políticas
públicas que interferem nas condições estruturais e conjunturais presentes
em cada território (Redin; Silveira, 2012).
Sob este prisma, busca-se abordar as contemporâneas formas de
sociabilidade possibilitadas pelas novas Tecnologias de Informação e Comu-
nicação (TICs), como a internet e os telefones celulares e a possibilidade
de estas exercerem interferências nas decisões da vida rural, a partir da
possibilidade de interação com a sociedade global, afetando assim a expec-
tativas dos jovens em relação a sua trajetória de vida e em última instância
nas formas de participação destes nos movimentos da juventude rural. Este
processo implica novas perspectivas para a população rural, seja nos aspectos
de acesso à informação como nas novas possibilidades de interação social.
Abordamos assim a relação entre estas novas sociabilidades e o processo
organizativo da juventude rural, buscando identificar efeitos das TICs nas
expectativas e perspectivas dos jovens rurais. Como referência empírica,
apresenta-se a experiência de organização dos jovens rurais da Região Cen-
tro-Serra do Rio Grande do Sul, reunidos e organizados pela Associação
Regional da Juventude Rural do Território Centro-Serra (Arejur), a qual
envolve cerca de 9 mil jovens de 12 municípios da Região Centro-Serra do
Estado: Arroio do Tigre, Cerro Branco, Estrela Velha, Ibarama, Jacuizinho,
Lagoão, Lagoa Bonita do Sul, Passa Sete, Salto do Jacuí, Segredo, Sobra-
dinho e Tunas.
De Sujeitos Ocultos (Off-line) a Sujeitos Visíveis (On-line) 141

As experiências vivenciadas por essa organização social permite-nos


compreender como as TICs vêm influindo na ação coletiva dos atores rurais,
considerando que essas novas formas de sociabilidade podem permitir que
os jovens rurais conectem-se com a sociedade globalizada, redimensionando
suas relações sociais e redefinindo as bases de seu processo identitário.
Os dados empíricos aqui analisados derivam de estudos que vêm
sendo realizados na Região Centro-Serra/RS pela Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM), por meio do Núcleo Interdisciplinar de Extensão e
Pesquisa sobre Alimentação e Sociedade (Nepals), em que se busca refletir
sobre o papel exercido pelos jovens no rural contemporâneo, objetivando
conhecer suas demandas enquanto atores coletivos.
O presente texto está dividido em três seções. Na primeira apre-
senta-se a juventude rural sob a conceituação de atores sociais coletivos
com identidade em construção, responsáveis pela preservação do patri-
mônio natural e social do rural, agentes políticos e ainda promotores de
transformação nos espaços em que vivem. Nesse sentido, acredita-se que
as TICs, por meio da Internet e mais recentemente, os smartphones, vêm
promovendo a criação de novos espaços de sociabilidade no rural, bem como
interatividade entre os atores, o que pode estar condicionando o surgimento
de novas organizações sociais e ainda o fortalecimento das já existentes
em virtude da aproximação dos jovens pelas redes sociais. Diante deste
cenário pergunta-se: Quais as implicações das TICs sobre as expectativas
e demandas prioritárias da juventude rural, bem como a organização destes
enquanto categoria sociopolítica?
Na segunda seção apresentamos a experiência da Associação Regio-
nal da Juventude Rural da Região Centro-Serra-RS, a Arejur enquanto orga-
nização social da categoria. Esta, formada por associações de jovens rurais
dos municípios integrantes da Região Centro-Serra, constitui instância de
representação e legitimidade das demandas dos jovens rurais da Região.
Trabalhos realizados pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
permitem-nos refletir sobre questões referentes às expectativas e demandas
prioritárias dos jovens rurais apontando para o fomento e qualificação no
acesso às TICs como fundamental para a permanência destes no meio rural,
juntamente com outro grupo de elementos que incluem questões de melho-
rias de infraestrutura (estrada, energia, telefonia, etc.), produção e mercado.
142 Gisele Martins Guimarães – Ezequiel Redin – Paulo Roberto Cardoso da Silveira – Janaína Balk Brandão

Por fim, a última seção apresenta reflexões no âmbito dos desafios da


juventude rural enquanto categoria sociopolítica emergente no rural con-
temporâneo.

JUVENTUDE RURAL E AS TECNOLOGIAS


DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO (TICS).
A juventude rural contemporânea está imersa em um conjunto de
novas relações de sociabilidade que constituem e se reconstituem diante das
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) cada vez mais presentes
no rural brasileiro. Estas, por sua vez, correspondem a todas as tecnologias
que interferem e medeiam os processos informacionais e comunicativos.
As TICs constituem um conjunto de recursos tecnológicos integrados
entre si, que proporcionam, por meio das funções de hardware, software e
telecomunicações, interações entre processos de negócios, de pesquisa cien-
tífica, de ensino e aprendizagem. Como exemplo citamos o rádio, o telefone
(fixo e móvel), a televisão (analógica e digital) e a Internet, considerada a
responsável pela revolução das redes em virtude de sua capacidade de pro-
mover interatividade entre os sujeitos, aproximando sentidos por meio da
informação e mecanismos de sociabilidade, como o fazem as redes sociais.
Nesse sentido, considera-se que estas têm papel fundamental no
desenvolvimento uma vez que facilitam o processo de comunicação, com-
preendido, em sua essência, como capital social para os atores que necessi-
tam dela para tomar suas decisões de produção e convivência (Bordenave,
1983).
Vale lembrar que o processo de comunicação no meio rural sempre
esteve ligado à informação, esta sob uma perspectiva técnica, tecnológica
ou ainda de lazer, como faziam (e ainda o fazem) os inúmeros programas de
rádio que atingem o meio rural por meio de músicas e informes técnicos.
Salienta-se, no entanto, que sob esta perspectiva, a informação não é reco-
nhecida como comunicação pela passividade com que os sujeitos a recebem.
Completando essa análise nos reportamos a Paulo Freire (1977), que assinala
a importância da reciprocidade que não pode ser rompida para que haja o
ato comunicativo, o que implica uma relação dialógica e não unidirecional.
De Sujeitos Ocultos (Off-line) a Sujeitos Visíveis (On-line) 143

De outro lado, considerando-se a revolução da comunicação por meio


da Internet, percebe-se a possibilidade de interatividade entre os sujeitos,
esta dada pela troca em duas ou mais vias de diálogo. Este fenômeno de
reciprocidade seria então capaz de promover comunicação, ou seja, ocorreria
por meio de relações e significações sociais construídas de forma coletiva
pelas partes envolvidas: emissores e receptores, tendo a máquina como meio
de mediação. E é deste mecanismo de construção em rede, proporcionado
pela Internet, que surgem as possibilidades de sociabilidade, termo este
sugerido por Georg Simmel (1983), que implica interação entre os sujeitos.
Esta, movida na sociedade por objetivos comuns partilhados, como posição
social, cultura e aumento de capacidades por meio da informação e forma-
ção. Todas estas e outras questões são favorecidas pelo acesso crescente dos
atores às Tecnologias da Informação e Comunicação, cada vez mais presen-
tes entre os jovens, tanto urbanos quanto rurais, muito embora os últimos
ainda estejam em evidente desvantagem quando comparados aos primeiros
no acesso ao serviço, como demonstram os dados de pesquisa do Comitê
Gestor da Internet no Brasil, indicando que a presença do computador na
área urbana atinge 51% dos estabelecimentos, enquanto na área rural chega
a 16% nos domicílios (Comitê..., 2012).
É fundamental, porém, que se reconheça que as TIC no meio rural
potencializam a comunicação e facilitam as trocas de experiências, sobretu-
do entre os jovens, que veem nela a possibilidade de sair para além de seus
espaços geográficos e sociais, podendo fazer-se pertencer a diferentes redes,
nas quais a organização social pode emergir como resultado de um processo
de partilha de interesses e sentimentos de pertencimento.
No recorte empírico deste estudo (Região Centro-Serra do RS/Brasil)
encontram-se disseminados, em ordem cronológica, o rádio, a televisão, tele-
fone fixo, o celular, computador, Internet e por último, mais contemporâneo,
os smartphones. Para fins metodológicos, este trabalho realiza um recorte
em relação ao computador e à Internet, que cada vez mais fazem parte do
cotidiano dos rurais influenciando, em um primeiro momento, nos trabalhos
escolares, estendendo-se aos momentos de lazer. Num segundo momento,
significam um potencial de mudança na sociabilidade, antes dependente
das festas locais e hoje fundada também na aproximação com jovens urbanos
(fisicamente ou virtualmente) por meio das redes sociais.
144 Gisele Martins Guimarães – Ezequiel Redin – Paulo Roberto Cardoso da Silveira – Janaína Balk Brandão

Nesse ínterim, reconhece-se que o avanço das TIC no meio rural


vem fornecendo novas dinâmicas em relação à comunicação e à sociabili-
dade, promovendo simbioses na juventude rural, aqui compreendida como
uma construção social, como sugere Bourdieu (1984, p. 152), quando afirma
que “(...) a juventude e a velhice não são dadas, mas construídas social-
mente, na luta entre jovens e velhos”. A relação entre idade social e idade
biológica é muito complexa, cujas ações estão ancoradas no sujeito coletivo,
diante das esferas do circuito social em que se estabelecem e legitimam
enquanto gerações juvenis.
Ainda enfatizando a abordagem metodológica e conceitual do pre-
sente trabalho, salienta-se que a juventude rural é aqui analisada no campo
teórico como: sujeito de transformação do campo (Castro, 2005); grupo res-
ponsável pela sucessão ou êxodo rural (Dirven, 2001); agentes da manuten-
ção e preservação do patrimônio da família rural mediante estratégias matri-
moniais e reprodução biológica (Bourdieu, 2009); ator político (Stropasolas,
2006; Castro, 2009); agentes promotores de espaços sociais ligados ao lazer,
convívio, entretenimento e troca de experiências (Redin; Silveira, 2012).
A juventude nas sociedades camponesas geralmente coincide com
uma etapa de semidependência social, assinalada por uma precoce inserção
produtiva e por um status subordinado dos jovens no seio da família. Apesar
da subordinação doméstica, em que não possuem prestígio e poder, ocupam
lugar central no espaço lúdico no âmbito da comunidade e, frequentemente,
participam em muitos aspectos da vida festiva, institucionalizada, mediante
agrupamentos coletivos (Feixa Pàmpois, 2004), como os grupos de jovens
rurais unificados na Associação Regional da Juventude Rural no Território
Centro-Serra, RS, objeto deste estudo.
Estudos como o de Champagne (1986) alertam para a ampliação do
espaço social dos jovens rurais e a redução de controle da família campo-
nesa. O isolamento geográfico e social do meio rural tradicional tem efeitos
sobre a socialização dos jovens. A partir do caso das zonas de bosques, o
autor mostra que a dispersão do habitat e a relativa autonomia econômica
reforçavam o isolamento das famílias rurais e lhes davam um monopólio de
fato na socialização de seus filhos, favorecendo assim uma reprodução social
De Sujeitos Ocultos (Off-line) a Sujeitos Visíveis (On-line) 145

estritamente ligada a sua concepção de mundo, uma transcrição análoga. Tal


fato proporcionava às famílias rurais controle de todos os seus membros ao
longo do tempo, sem concorrência.
Em contexto contemporâneo, especificamente na realidade sul-bra-
sileira, acredita-se que o avanço das TICs para o meio rural e a expansão e
interiorização das universidades e institutos federais de educação técnica e
superior, têm colocado em xeque o saber da família e o controle mais rígido
do jovem no meio rural. Esse fenômeno provoca um empoderamento deste
perante a família e, em certa medida, uma ampliação das opções em relação
ao seu futuro profissional, o que certamente pode favorecer os processos
migratórios.
Conforme Champagne (1986), em um espaço de interconhecimento
em que tudo se sabia, as famílias podiam se envolver total e continuamente
na vida de seus filhos, vigiando suas atividades e suas amizades e até mesmo
induzindo seus casamentos. Desse modo, impunham seus valores, seu estilo
de vida e sua acepção de excelência profissional. Nesse contexto de micros-
sociedade, acontecia a sucessão porque isso era evidente, seja por dever ou
por obrigação familiar e também pelas reduzidas opções que se colocavam
como viáveis diante da incerteza do abandono da vida na aldeia. A sociedade
global mostrava-se hostil e o estranhamento dos jovens, diante das vivências
possíveis fora da aldeia, os atemorizava e acuava (Champagne, 1986).
Assim, no contexto do sul do Brasil, a partir das décadas de 40-50, as
famílias de agricultores passam a ver no estudo uma possibilidade para os
filhos conseguirem trabalho no meio urbano, considerando a saída do rural
sinônimo de acesso a melhores condições de vida (Silveira, 1994). Segundo
investigação conduzida pelo grupo de pesquisa “Sociedade, Ambiente e
Desenvolvimento Rural”, da Universidade Federal de Santa Maria, entre
os anos 1990 e 1994 o trabalho era visto como sacrifício e principalmente
as mulheres eram estimuladas a migrarem, uma vez que os filhos homens
representavam potencial de mão de obra capaz de definir a capacidade de
reprodução social da família. Alia-se a esta questão a prática ainda comum
no sul do Brasil, de as famílias adquirirem áreas em regiões de novas fron-
teiras agrícolas em estabelecimento e com isto viabilizar a migração de parte
da família (ou até de famílias inteiras), buscando manter-se na agricultura.
146 Gisele Martins Guimarães – Ezequiel Redin – Paulo Roberto Cardoso da Silveira – Janaína Balk Brandão

Neste sentido salienta-se o papel que a educação tem cumprido no


processo de desvalorização da vida rural, enquanto reforça a ideia de que o
espaço urbano oferece mais atrativos, tanto em trabalho quanto em qualida-
de dos serviços públicos disponíveis. De outro lado verifica-se na atualidade
um movimento em defesa de uma educação voltada à realidade rural, bus-
cando despertar nos jovens novas expectativas a partir de fontes de geração
de trabalho e renda pautados pela multifuncionalidade e mesmo a agricul-
tura em tempo parcial, ressignificando os sentidos “da vida no campo”.
Este contexto muda radicalmente quando a crise econômica que se
instala no Brasil, na década de 80, provoca diminuição da oferta de empre-
gos urbanos de maior remuneração, enquanto os problemas da hipertrofia
urbana passam a ser sentidos de forma mais precisa. Assim, a atração pelo
meio urbano arrefece e, em algumas regiões, é o trabalho em tempo parcial
que guia as estratégias de reprodução social (mantendo a família toda no
campo, mas com alguns membros se assalariando em parte ou na integrali-
dade no meio urbano).
Já no início dos anos 2000 as condições de infraestrutura rural têm
uma pequena, mas significativa melhora com relação ao acesso à informa-
ção e sociabilidade, iniciando-se assim um processo lento, mas contínuo de
mudanças a partir da expansão das TICs trazendo novas e mais diversas
possibilidades de interação social. Pergunta-se: Que implicações estas novas
sociabilidades têm sobre os atores do rural contemporâneo, mais especifica-
mente sobre a juventude rural?
A principal justificativa deste estudo está relacionada à hipótese
de que essas transformações que podem estar ocorrendo no espaço rural
terão reflexo em relação à sucessão rural e, se compreendidas e atendidas
as demandas desses atores, poder-se-á estruturar um novo cenário de pos-
sibilidades e motivações.
Para tanto a investigação realizada pelos atores do presente trabalho
realiza dois movimentos: o primeiro apresenta o processo organizativo da
Arejur, conhecendo seus códigos em relação às perspectivas político-cultu-
rais enquanto jovens rurais, avançando-se desta forma para o conhecimento
do processo de constituição de um campo em torno da juventude rural como
ator social coletivo, o qual se articula em torno de suas demandas/expecta-
De Sujeitos Ocultos (Off-line) a Sujeitos Visíveis (On-line) 147

tivas e de um conjunto de relações institucionais. O segundo movimento


dirige o olhar para as transformações que perpassam o rural com a vivência
e uso das TICs.

EXPECTATIVAS E DEMANDAS PRIORITÁRIAS DOS JOVENS RURAIS


A PARTIR DAS NOVAS FORMAS DE SOCIABILIDADE:
Experiências da Associação Regional da Juventude Rural
da Região Centro-Serra/RS (Arejur)
A Arejur foi fundada em 2005, constituindo uma entidade educa-
cional, social, cultural e esportiva com tempo indeterminado de duração,
de fins não econômicos. Permanentemente, tem como sede o município
de Candelária, Rio Grande do Sul, podendo atuar em todos os municí-
pios em que exista organização de Conselho ou Associação Municipal
de jovens rurais filiados à entidade. Segundo seu estatuto, a Arejur tem
como principais objetivos: a) ser um órgão representativo dos conselhos
e associações filiadas; b) assessorar os conselhos e associações munici-
pais filiadas; c) participar e apoiar os eventos dos conselhos e associa-
ções municipais filiadas; d) divulgar os trabalhos realizados em prol da
juventude rural em âmbito municipal, regional e estadual nos meios
de comunicação; e) buscar o patrocínio para a realização de atividades
socieducativas, tais como: excursões, encontros, convenções, exposições,
intercâmbios, seminários, desfiles, treinamento de lideranças, atividades
esportivas, culturais, etc.
A formação da associação regional insere-se no processo de organiza-
ção social dos jovens rurais, além da realização de eventos, aspectos legais
e de legitimidade social, constituindo um campo simbólico que valoriza as
origens, os valores e a força do segmento rural na região que tem a economia
primária como motriz. Além disso, a mobilização dos jovens por meio de
conselhos e associações municipais possibilita a exaltação de sua identi-
dade enquanto categoria sociopolítica, com demandas, direitos e deveres
específicos.
148 Gisele Martins Guimarães – Ezequiel Redin – Paulo Roberto Cardoso da Silveira – Janaína Balk Brandão

E é sob esta condição que as entidades sociais de jovens rurais têm


conseguido concretizar reconhecimento, laços de confiança e respeito nas
comunidades ao longo do tempo, legitimando-se cada vez mais a partir do
avanço das tecnologias de informação e comunicação e instrumentos digitais
como as redes sociais
Trabalho realizado por Redin (2012) na Região Centro-Serra/RS
identificou que a expansão da Internet tem sido estimulada nas famílias, por
demanda dos jovens. Em Arroio do Tigre, por exemplo (um dos municípios
constituintes da Região) 45% dos usuários são famílias agricultoras (Internet
via rádio) que estão, aos poucos, aumentando suas interações com o mundo
virtual, sendo um dos motivos citados o estímulo aos filhos. Esta informação
foi disponibilizada em 2012, pela empresa “Interativa Informática”, que atu-
almente atende aproximadamente 95% dos usuários de Internet no rural do
município e boa parte do rural de outros municípios da Região Centro-Serra.
O acesso à Internet via rádio vem facilitando a vida dos moradores
rurais, em especial a dos jovens, aproximando-os dos espaços sociais. Em
certa medida, no entanto, esse processo pode provocar uma vontade intrín-
seca de sair do rural pela percepção fascinante e idealizada do urbano por
meio da exaltação a estilos de vida ancorados no consumo exacerbado e
facilitação de serviços, ampliando ainda mais as desigualdades entre o rural e
o urbano no que se refere às condições de infraestrutura e lazer, provocando
insatisfação dos jovens rurais com as pertinentes desigualdades visualizadas
(Redin, 2012).
Ainda sobre o município de Arroio do Tigre, Redin (2011) obser-
vou várias famílias com um, dois ou mais celulares, bem como, em menor
expressão (mas já bastante visível), computadores, Internet via rádio e tele-
visão a cabo. Também foram visualizadas famílias de agricultores com acesso
a informações em tempo real sobre o comportamento do clima durante a
semana, sobre as projeções para a safra, sobre o comportamento do mercado
agropecuário, do dólar, ou informações ligadas ao lazer e ao entretenimento.
Segundo o pesquisador, dentre as motivações citadas pelos agri-
cultores para adquirirem computadores ligados à Internet, destacam-se os
seguintes fatores: a) existência de jovens na propriedade, que necessitam
elaborar trabalhos pelo computador, para fins de estudos no Ensino Médio,
De Sujeitos Ocultos (Off-line) a Sujeitos Visíveis (On-line) 149

sendo muito dispendioso o deslocamento destes à cidade; b) o agricultor


adquire a tecnologia e os serviços de Internet com o objetivo de motivar
a permanência do jovem rural na propriedade (Redin, 2011). Esse último
elemento é bastante relevante para a compreensão da expansão do uso das
TICs no meio rural, uma vez que, normalmente, quem domina o manu-
seio dos equipamentos são os jovens. Em um processo de transferência de
conhecimentos os pais aprendem com os filhos estabelecendo a aceleração
dos processos de inclusão digital entre os agricultores.
Sob este aspecto, atenta-se para Internet no espaço rural como
uma possibilidade de ampliação ou criação de novos espaços sociais e, em
segundo plano, como auxílio no processo de qualificação dos aspectos pro-
dutivos, possibilitando informação, conhecimento de tecnologias e ainda
qualificação profissional por meio e cursos a distância. Neste sentido, Sorj
(2003) esclarece que a Internet pode tornar-se um investimento necessário
para potencializar o capital humano e social dos jovens e de agricultores
familiares, mas para tanto, é imprescindível mobilizar recursos e serviços
relativos ao seu aperfeiçoamento, ligados diretamente aos anseios dos
jovens, como a possibilidade de acesso ao ensino agrotécnico e cursos supe-
riores voltados à vida rural. Nessa alusão, as TICs podem cumprir papel
fundamental na melhoria do conhecimento técnico e produtivo, na gestão
da propriedade e dos recursos naturais.
Outro trabalho significativo para as análises deste artigo foi realiza-
do por pesquisadores do Nepals/UFSM no ano de 2013, quando em par-
ceria com a Emater1 Regional de Santa Maria-RS foram realizados cursos
de formação de lideranças jovens para as associações de Juventude Rural
da Região Centro-Serra. Por ocasião de um dos encontros realizou-se uma
pesquisa investigativa acerca das expectativas e demandas prioritárias dos
jovens rurais com a entrada das TICs no meio rural e em particular na casa
das famílias.2 As perguntas foram direcionadas aos jovens por meio da uti-
lização da técnica de Grupo Focal. O emprego desta metodologia, de abor-

1
Emater-RS – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Rio
Grande do Sul.
2
Este trabalho poder ser visualizado na íntegra em: <http://www.revistas.usp.br/
signosdoconsumo/article/viewFile/76390/80099>.
150 Gisele Martins Guimarães – Ezequiel Redin – Paulo Roberto Cardoso da Silveira – Janaína Balk Brandão

dagem essencialmente qualitativa, tem como objetivo revelar as percepções


dos participantes sobre os tópicos em discussão. Por meio de um agrupamento
de pessoas com objetivos e elementos em comum, discute-se percepções e
conceitos, promovendo no coletivo a formação de ideias específicas de um
grupo. A técnica gera possibilidades contextualizadas pelo próprio grupo,
oportunizando a interpretação de crenças, valores, conceitos, conflitos, con-
frontos e pontos de vista (Debus, 1997).
No campo das expectativas dos jovens da Arejur foram citadas várias
questões, indo desde elementos produtivos, de planejamento, crédito, entre
outros, todos atrelados ao “sucesso” dos jovens como empreendedores
rurais. Entre as respostas sugeridas pelos jovens de cada associação consti-
tuinte da Arejur, destaque para: 1) criação de uma escola técnica na região
Centro-Serra/RS para qualificação dos jovens rurais; 2) construção de polí-
ticas e projetos específicos voltados aos grupos de jovens; c) melhorias nas
condições de comunicação, envolvendo demandas por acesso à Internet e
telefonia rural. Diante da voz dos jovens, foram reivindicados ainda maiores
investimentos destinados a empreendimentos gestados por jovens rurais.
Estas expectativas dão visibilidade à necessidade de políticas de
inclusão digital no meio rural, buscando facilitar o acesso aos serviços de
Internet e, ainda, a qualificação dos atores para o uso das informações, o que
se daria por meio de escolas técnicas, universidades ou institutos federais
com oferta de cursos voltados para o meio rural, incluindo a modalidade “a
distância”, cada vez mais presente na formação dos jovens. Nota-se que a
formação aparece como elemento central nas demandas, com a oferta de
cursos profissionalizantes revelando-se uma condição para a permanência
do jovem no meio rural.
A percepção conjunta dos atores também aponta para expectativas
de caráter regional (e não apenas municipal), como a instalação de agroin-
dústrias de beneficiamento dos produtos produzidos pelos jovens da Arejur,
entendendo esta como condição de fortalecimento dos produtores da Região
Centro-Serra, diante do mercado consumidor. Também aparecem de forma
expressiva expectativas por melhores condições das estradas, transporte e
crédito.
De Sujeitos Ocultos (Off-line) a Sujeitos Visíveis (On-line) 151

Dentre as expectativas citadas, são colocadas como demandas prioritá-


rias dos jovens da Arejur: 1) Incentivos socioeconômicos ligados às ativida-
des de produção e comercialização dos produtos produzidos e processados
(caso das Agroindústrias Familiares); 2) Políticas que garantam a expansão
e qualificação dos serviços de Internet e telefonia celular, possibilitando
aos atores acesso e ampliação do uso das TICs; 3) Oferta de cursos pro-
fissionalizantes voltados para o meio rural; 4) Melhorias nas condições de
infraestrutura e transporte público (estradas e serviços de ônibus).
As narrativas obtidas pela pesquisa a partir da técnica de Grupos
Focais mostram que a juventude rural tem consciência de suas potenciali-
dades, bem como as do espaço rural, redefinindo seu sentido como espaço
de vida. Para tanto, reivindica mecanismos de formação profissional (escolas
técnicas e universidades), como forma de permanência e atuação socioeco-
nômica e ainda, ampliação na oferta de serviços de infraestrutura básica, o
que inclui melhorias de deslocamento rural-urbano e também, avanços em
termos de qualidade e acesso as tecnologias da informação e comunicação,
principalmente Internet, como forma de adquirir conhecimento e garantir
interatividade, saindo do isolamento para o centro das sociabilidades.
Nesse sentido, o conjunto de dados citados neste texto revela que
as TICs mantêm relação direta com as expectativas e as prioridades esta-
belecidas pela juventude rural entrevistada. Os jovens rurais conectam-se
a outros jovens, trocam contatos, combinam dias de lazer, encontros e jogos
esportivos fortalecendo o sentido do “ser jovem rural”. Os entrevistados
relatam que por meio das redes sociais, informam-se do cotidiano, recebem
informações da comunidade local e até de noticiários nacionais e internacio-
nais. Compartilham e recebem informações, inserem sua visão de mundo
e estão expostos a contrapontos, o que nos permite (ou autores) identificar
sua passagem de sujeitos ocultos (off-line) a sujeitos visíveis (on-line) na
sociedade contemporânea.
Quanto às redes sociais, percebe-se que estas convocam os jovens
a se organizarem em forma de grupos para compartilharem informações.
Além disso, a rede social serve como forma de convocação para participação
de espaços deliberativos entre os grupos de jovens, tanto em âmbito local,
municipal ou regional, fortalecendo as organizações sociais.
152 Gisele Martins Guimarães – Ezequiel Redin – Paulo Roberto Cardoso da Silveira – Janaína Balk Brandão

A criação de perfis (Facebook) das entidades representativas, nas redes


sociais (como exemplo, a Ajurati)3 tratam de legitimar socialmente as ações
dos jovens rurais, que acontecem no espaço público e transcendem para a
rede virtual. A participação da juventude rural em festivais artísticos e cul-
turais, eventos esportivos, espaços deliberativos sobre ações de intervenção
local/regional, organização de eventos sociais, participação em ações alusivas
à cultura e as convenções sociais do território pode ser encontrada nos sites
e nas páginas de relacionamento virtual.
A sociabilidade do jovem rural, em interação com diferentes usuários
mediados pela conexão digital promove entre os atores uma posição de
autonomia em relação as suas decisões, legitimada pela organização destes
enquanto categoria social. No caso em estudo (AREJUR) a representação
organizativa cria uma rede social que congrega determinados capitais sociais,
culturais e simbólicos angariando um importante espaço na sociedade regio-
nal, interagindo com as disputas e se relacionando enquanto categoria socio-
política, dotada de anseios e particularidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Os Desafios da Juventude Rural Enquanto Categoria Sociopolítica Emergente
Os dados das pesquisas apresentadas mostram a importância das
Tecnologias de Informação e Comunicação na construção da identidade da
juventude rural e o consequente fortalecimento desta enquanto categoria
sociopolítica emergente. A possibilidade de interação e interatividade entre
os jovens, por meio da Internet, permite a aproximação (mesmo que virtual)
dos atores, conectando-os mediante uma rede de expectativas, demandas
e valores reforçando o sentido de “ser jovem rural”, derivando daí a organi-
zação social destes enquanto atores sociais coletivos.
Por isso, acredita-se que o avanço das TICs no meio rural pode
potencializar a ativação de recursos humanos, como o fortalecimento das
organizações de jovens, gerando inclusive uma transmissão de valores e sig-
nificados ligados ao ethos camponês (jovem rural). Nesse sentido, o processo

3
Disponível em: <https://www.facebook.com/ajurati.arroiodotigre?fref=ts>.
De Sujeitos Ocultos (Off-line) a Sujeitos Visíveis (On-line) 153

de organização da juventude rural permite aos jovens uma maior visibilidade


enquanto categoria social, com expectativas e demandas específicas, o que
faz destes, “novos” atores no cenário político. A partir disso, são muitos os
que passam a ocupar funções públicas (vereadores, secretários, membros de
consórcios intermunicipais) e de liderança, como presidência de sindicatos,
associações e cooperativas. Diante deste processo de organização, constroem
possibilidades de poder intervir nas políticas públicas e nas decisões sobre
o desenvolvimento de suas comunidades.
As TICs, no entanto, ainda não atingiram uma escala totalizante no
meio rural, mesmo que se verifique um acentuado avanço no que diz respei-
to à popularização da tecnologia. Deve-se ainda considerar que as TICs no
rural brasileiro, apesar dos efeitos globalizantes, são incipientes para munir
a juventude rural de informações capazes de tornar os jovens agentes ver-
dadeiramente ativos do desenvolvimento rural. Para tanto, faz-se necessário
um processo de animação social que os conduza e mobilize, no sentido de
torná-los sujeitos mediadores das demandas locais com as expectativas e
desafios do rural contemporâneo. Acredita-se que os agentes de extensão e
desenvolvimento rural devam exercer este papel, colocando-se na condição
de “impulso externo” às organizações da juventude rural.
No caso da Arejur, partindo-se das TICs como fundamentais no
processo de fortalecimento dos jovens rurais enquanto organização social,
percebe-se que é na busca por formação profissional que a juventude rural
pode encontrar nas TICs um grande potencial. Estas podem viabilizar novas
formas de construção de conhecimento e de aproximação com instituições
de conhecimento, como escolas técnicas e universidades (inclusive por meio
da modalidade de “Ensino a Distância”), que passam a ser demandadas em
caráter prioritário pelos jovens rurais como condição para sua permanência
no meio rural, como demonstram os dados das pesquisas aqui citadas.
As TICs, ainda no sentido da qualificação profissional, podem garan-
tir suporte informativo nos aspectos produtivos, oferecendo dados de clima,
mercado e suporte ao uso das tecnologias agrícolas, oportunizando, assim, a
possibilidade de melhorias produtivas e sociabilidade, transpondo a questão
do isolamento e da falta de informação como características do rural.
154 Gisele Martins Guimarães – Ezequiel Redin – Paulo Roberto Cardoso da Silveira – Janaína Balk Brandão

As experiências vivenciadas pela Arejur revelam o potencial da


juventude rural enquanto categoria sociopolítica emergente, colocando
a organização da Região Centro-Serra/RS como destaque no Estado no
que se refere à mobilização e visibilidade de jovens rurais. Os desafios no
sentido de efetivação destes enquanto protagonistas do rural contempo-
râneo, contudo, ainda são muitos, com destaque para a ausência de políti-
cas públicas que garantam sua legitimação enquanto atores do processo de
desenvolvimento rural.
Quando referimo-nos às políticas públicas, entendemos que estas
não podem limitar-se à agricultura enquanto atividade produtiva, tendo em
vista que o rural contemporâneo é cada vez mais multifuncional e pluriativo.
Assim, apenas políticas de crédito ou mesmo de acesso à compra de terras
não são suficientes para garantir a permanência dos jovens no meio rural,
fazendo-se urgente políticas voltadas à educação rural, lazer, saúde e acesso
à cultura na agendas das políticas públicas brasileiras.
Nesse contexto, quanto mais os jovens estiverem preparados para
as “novas atividades” que hoje perpassam o rural contemporâneo, maiores
serão suas possibilidades de realização pessoal e profissional, considerando-
-se que os jovens procuram afirmações para o seu futuro e aspiram à cons-
trução de seus projetos, e que estes geralmente são vinculados ao desejo de
inserção no mundo moderno, o que é facilitado pelo uso das TICs.
Outro desafio atribuído à juventude rural enquanto categoria socio-
política refere-se a sua representatividade nas instâncias de decisão parti-
cipativa das gestões públicas, como vagas em fóruns colegiados, Conselhos
Municipais de Desenvolvimento Rural, Cultura, Conselho Regional de
Desenvolvimento (Corede) ou ainda fóruns deliberativos dos Territórios
da Cidadania. A inserção nos espaços de discussão e deliberação para o
desenvolvimento permite o exercício de seu protagonismo, servindo como
impulso ao fortalecimento de suas organizações representativas, bem como
a afirmação da juventude rural como categoria política.

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De Sujeitos Ocultos (Off-line) a Sujeitos Visíveis (On-line) 155

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AS FAMÍLIAS ASSENTADAS DA REFORMA AGRÁRIA
Projetos em Construção

Jaqueline Malmann
Jairo Alfredo Genz Bolter

O meio rural tem sido cenário de grandes transformações em sua


dinâmica produtiva e social nas últimas décadas. Em maior ou menor escala,
essas transformações são originárias das intervenções mais ou menos pla-
nejadas por agentes externos, sejam estes representantes do Estado ou de
grandes grupos econômicos agroindustriais. Enfatiza-se que os processos de
intervenção no meio rural são conduzidos de diversas formas, com diferentes
objetivos e por uma grande diversidade de agentes sociais.
Cabe reconhecer que nos últimos 60 anos o desenvolvimento do
modo de produção capitalista brasileiro, interconectado com a economia
internacionalizada, conforme Gonçalves (2008), provocou transformações
sociais, econômicas, políticas, tecnológicas e ambientais no meio rural,
gerando, por sua vez, graves impactos. Entre os mais significativos destaca-
-se um elevado grau de pobreza. Em tal contexto, a elaboração e execu-
ção de políticas públicas direcionadas ao agrário e ao agrícola no Brasil são
permeadas por disputas entre as forças políticas e sociais que defendem
distintas estratégias e interesses.
A reforma agrária apresenta-se, então, como uma das mais significati-
vas políticas de intervenção orientada a reverter o quadro de desigualdades
sociais no meio rural brasileiro, e, especialmente, defendida por aqueles que
reconhecem que o rural não se restringe apenas a um espaço de produção
e sim de vida.
158 Jaqueline Malmann – Jairo Alfredo Genz Bolter

Assim, interessa-nos debater aqui, no âmbito das novas ruralidades,


como esses processos de intervenção, que buscam diminuir as desigualda-
des, afetam as diferentes trajetórias sociais dos agentes de determinados
espaços rurais. Especificamente o texto tem como tema central as trajetórias
sociais de famílias estabelecidas em assentamentos de reforma agrária, logo
espaços caracterizados por intervenções externas. Nesse sentido, tem-se por
objetivo compreender como as trajetórias sociais das famílias vinculadas a
esses espaços são transformadas e influenciadas e como os mesmos percur-
sos influenciam nas respostas dos agentes aos processos de intervenção a
que são submetidos.
O arcabouço teórico utilizado para auxiliar nessa compreensão está
baseado nas noções de habitus, campo, capital e prática propostos pelo soció-
logo Pierre Bourdieu. A partir deste referencial, faz-se possível uma inter-
pretação sobre as diferenças que se estabelecem em espaços aparentemente
homogêneos.
Assim, para uma análise mais aprofundada dos questionamentos, a
investigação será referente às trajetórias sociais das famílias estabelecidas
no assentamento Lagoa do Junco, localizado no município de Tapes-RS.
Espaço esse conformado fundamentalmente a partir de intervenções exter-
nas, e que por sua vez acaba determinando algumas formas de agir e a
adoção de específicas estratégias com relação aos modos de vida. Espaço
esse também fortemente influenciado a partir de um habitus pregresso, e do
campo social e político no qual estão inseridas hoje as familias.

AS NOÇÕES DE BOURDIEU
Trabalhar com Bourdieu implica reconhecer, ao mesmo tempo, que
o homem, enquanto ser historicamente determinado, traz em si disposições
que são frutos de sua história, e se insere em campos sociais que condi-
cionam suas possibilidades de ação. Enquanto tais disposições orientam a
ação dos agentes, provocando a transformação dos cenários em que atua,
tais cenários contribuem para a contínua readequação dessas disposições.
Neste sentido, Bourdieu (1987) aponta que uma trajetória é a objetivação
das relações entre os agentes e as forças presentes no campo. As situações de
vulnerabilidade, entretanto, que muitas vezes se fazem presentes, podem
As Famílias Assentadas da Reforma Agrária 159

interferir radicalmente nas dinâmicas observadas, uma vez que permitam


a existência de necessidades que devem ser atendidas de forma imediata.
Nesse contexto, pode-se inferir que as expectativas e/ou projetos se veem
hipotecadas em prol de necessidades concretas a serem supridas referentes
às condições mínimas de cidadania.
Bourdieu (2004a) introduz então a noção de habitus no intuito de
romper com o paradigma estruturalista, o qual coloca o agente reduzido ao
papel de suporte da estrutura. Ao mesmo tempo em que Bourdieu revela o
indivíduo como um ser essencialmente social (acentuando o habitus como
resultado do processo histórico e condicionado pelas “soluções” dadas pelo
agente às situações enfrentadas no passado), com costumes reconhecidos e
exigidos pela sociedade em que está inserido (Bourdieu; Wacquant, 2008),
pretende pôr em evidência as capacidades “criadoras”, ativas, inventivas,
do habitus e do agente.
Bourdieu (2004a) afirma, ainda, que a exposição repetida a determi-
nadas condições sociais imprime nos indivíduos um conjunto de disposições
duráveis e transportáveis, que são a interiorização da realidade externa, o
que ele denomina de habitus. Com este conceito, Bourdieu pretende integrar
todas as experiências passadas, com o habitus funcionando a cada momento
como uma matriz de percepções, apreciações e ações e que, por sua vez,
torna possível a realização de diferentes tarefas. O habitus, em outras palavras
“[...] constitui a nossa maneira de perceber, julgar e valorizar o mundo e
conforma a nossa forma de agir, corporal e materialmente’’(Bourdieu, 2001,
p. 185 apud Thiry-Cherques, 2006, p. 33).
A noção de “habitus” é, de certo modo, complementada pela noção
de prática, pois o autor entende como prática social a relação entre situação
(realidade objetiva) e habitus. Percebe-se que a noção de habitus assume
significado de disposições, capacidades, propensões ou tendências de ação.
Tais estruturas internalizadas transformam-se no momento do contato do
agente com uma determinada conjuntura ou situação, em estruturas gera-
doras das práticas sociais (Souza, 2007). Ou seja, a prática dos sujeitos não é
um jogo de cartas marcadas, há sempre espaço para a transformação criadora.
160 Jaqueline Malmann – Jairo Alfredo Genz Bolter

Já a ideia de campo, proposta por Bourdieu, propõe-se a superar a


noção, muitas vezes, estanque de classe social, permitindo uma análise das
sociedades a partir das constantes movimentações de seus agentes. Assim,
os campos são “lugares de relações de forças que implicam tendências ima-
nentes e probabilidades objetivas” (Bourdieu, 2004b, p. 27), pois o que
existe no mundo social são as relações (Bourdieu; Wacquant, 2008), e nesse
contexto passam a ser espaços de relações em movimento, que em última
análise representam a estrutura social.
O campo, segundo Bourdieu (2004b), consiste no espaço em que
ocorrem as relações entre os indivíduos, grupos e estruturas sociais, é dinâ-
mico, obedece a leis próprias, apresenta disputas em seu interior, e tem
interesse em ser bem-sucedido nas relações entre seus componentes. Ainda,
em outras palavras, segundo Bourdieu e Wacquant (2008), o campo pode
ser caracterizado como uma mediação crítica entre as práticas daqueles que
dele participam e as condições sociais e econômicas que os cercam.
A estrutura do campo seria como um constante jogo, no qual, cientes
das regras estabelecidas, os agentes participam, disputando posições e inte-
resses específicos, sabendo-se que, em cada momento, é o estado das rela-
ções de força entre os jogadores o que define a estrutura do campo (Bour-
dieu; Wacquant, 2008).
A noção de capital, por sua vez, nas obras de Bourdieu, assume um
entendimento distinto e/ou ampliado da concepção marxista de capital,
entendendo esse termo não apenas como o acúmulo de bens e riquezas
econômicas, mas todo recurso ou poder que se manifesta em uma atividade
social. Capital pode não só ter uma denotação econômica, referindo-se à
renda, salários, imóveis, mas também é necessária a consideração da exis-
tência e importância de outros capitais, como o capital cultural (saberes e
conhecimentos reconhecidos por diplomas e títulos), o capital social (rela-
ções sociais que podem ser revertidas em capital, relações que podem ser
capitalizadas) e ainda o capital simbólico (prestígio e/ou honra), entre outros.
Reconhecer que o capital pode adotar várias formas é indispensável para
explicar a estrutura e a dinâmica das sociedades diferenciadas (Bourdieu;
Wacquant, 2008).
As Famílias Assentadas da Reforma Agrária 161

Buscar a compreensão das dinâmicas sociais em curso nos assenta-


mentos de reforma agrária requer considerar que estes então constituem
um momento em um processo que se inicia com anterioridade, seja na
formação dos habitus daqueles que serão assentados e daqueles que serão
mediadores da luta social. Percebe-se previamente que teremos habitus e
situação definindo as práticas e também delimitando o que hoje se constitui
como trajetória social.

A CONFORMAÇÃO DO CAMPO SOCIAL


NO ASSENTAMENTO LAGOA DO JUNCO
O campo social do assentamento Lagoa do Junco, localizado no
município de Tapes, à beira da Lagoa dos Patos, configura-se a partir de
um histórico precedente, o qual tem importância significativa, uma vez que
determinadas formas de ação (práticas) verificadas, atualmente, devem-se
à influência dos diversos agentes sociais. Entre esses agentes destaca-se o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), exercendo maior
intervenção no contexto do assentamento que o próprio Estado.
A decisão de se integrar a um acampamento ocorre por uma insatis-
fação com a realidade vivida e pela esperança de um futuro com melhores
condições de vida para si e sua família. Segundo Martins (2003), o sujeito da
reforma agrária, ao deparar-se com a falta de perspectiva no local de origem
ou com o processo de desagregação, visualiza na reforma agrária possibili-
dades de acesso à terra e à moradia. A luta pelo acesso à terra materializa a
luta por um lugar, por melhores condições de vida e por cidadania.
Os assentados, quando recebem o lote de terra, assumem neste
momento a difícil tarefa de transformar o seu projeto de vida em realidade.
Nesse sentido, existe uma necessidade, conforme lembram Medeiros et al.
(1994), de encarar os assentamentos como processos sociais complexos, cuja
constituição está inserida em um intrincado e contraditório jogo de forças
sociais. Segundo Medeiros et al. (1994), se, no momento da luta, de gestação
de uma utopia, é possível falar da priorização de uma identidade construída
nesse processo, uma vez obtido o acesso à terra e colocadas questões em
162 Jaqueline Malmann – Jairo Alfredo Genz Bolter

termos da produção, de decisão sobre formas de organização, e, até mesmo,


de localização de famílias, revelam-se diferenciações que se referem a aspec-
tos tanto econômicos quanto culturais e políticos.
Diante de um leque restrito de possibilidades dentro da ordem social
estabelecida, o assentado, muitas vezes, percebe que as práticas precisam
ser modificadas, configurando um momento em que o habitus herdado entra
em crise e logo o indivíduo em conflito, pois não responde mais aos desafios
impostos, revelando-se as experiências pregressas insuficientes para orien-
tar suas ações para manter sua sobrevivência. Observando novas possibili-
dades de melhorar de vida, e diante das transformações na ordem social,
nas práticas e experiências, existe uma ressignificação de sentidos nesse
período de sua vida, havendo, consequentemente, uma ressignificação de
seu habitus pelo ineditismo das circunstâncias vividas. Concomitantemente
compreende-se que as trajetórias sociais também passam por momentos de
ruptura, perdendo sua continuidade, sua coerência, abalando, por sua vez,
o habitus, e gerando novas práticas.
Segundo Zimmermann (1994, p. 205), os assentamentos devem ser
compreendidos enquanto “espaço de relações sociais, onde as caracterís-
ticas heterogêneas individuais, homogeneizadas no processo de luta pela
terra, ressurgem em bases novas”. No cotidiano do assentamento, diferentes
formas organizativas voltadas para a produção são criadas e recriadas, numa
dinâmica rica de situações, impasses e enfrentamentos, causados, na maioria
das vezes, pelas necessidades sentidas e pelas vulnerabilidades vividas.
Ante um contexto frequentemente caracterizado pela pobreza, a
prática social desenvolvida nos assentamentos, no período denominado de
consolidação, pode ser compreendida como a dialética entre a realidade
objetiva do assentamento (normalmente de restrições e quadro geral de
pobreza), os projetos dos mediadores e os habitus das famílias assentadas,
sejam estes “habitus” herdados ou adquiridos.
Identifica-se que fundamentalmente o Estado, após constituídos os
assentamentos, procura condicionar padrões de organização da produção.
Lembrando, no entanto, que cada região do país apresenta uma dada rea-
lidade, pois o projeto do MST também busca se afirmar em relação ao que
fazer no assentamento, além da tradicional presença de empresas privadas,
As Famílias Assentadas da Reforma Agrária 163

que buscam exercer também alguma influência sobre o espaço social que
aí se constitui. Sobre este aspecto é necessário destacar que neste período
de consolidação do assentamento ocorre, muitas vezes, uma emancipação
das famílias na forma de agir, com relação às orientações, tanto do Estado
quanto do MST.
Bourdieu (1996) argumenta que as ações, comportamentos, escolhas
ou aspirações individuais não derivam de cálculos ou planejamentos, pois
são produtos da relação entre um habitus e as pressões e estímulos de um
campo.
O assentamento Lagoa do Junco foi criado em 1995, e é composto por
35 famílias, sendo, algumas que já trabalhavam na fazenda desapropriada
e outras oriundas dos acampamentos do MST (localizados em sua grande
maioria na Região Noroeste do Estado).
O deslocamento da Região Noroeste para a Região Sul do Estado1
representou, para as famílias vinculadas ao MST, a necessidade do enfrenta-
mento de diversas barreiras, entre elas a mais imediata foi a necessidade de
trabalhar em um solo com características desconhecidas pelos assentados e
distintas entre os lotes.
Parte das dificuldades, especialmente produtivas, enfrentadas no
primeiro ano de instalação do assentamento, podem ser compreendidas
se considerarmos a relação que se estabelece entre o capital de origem e
o capital de chegada necessário para enfrentar os desafios de produção e
organização, uma vez que, muitas vezes, torna-se “impossível dar conta das
práticas em função unicamente das propriedades que definem a posição
ocupada, em determinado momento, no espaço social” (Bourdieu, 2011, p.
105). Na questão da produção, percebe-se claramente que o habitus herdado
exerceu grande influência no momento de decisão sobre qual cultivo a ser
adotado,2 pois tratava-se inicialmente de um ambiente novo e distinto.

1
Fato esse vivenciado por muitas famílias assentadas no Estado do Rio Grande do Sul.
2
O primeiro cultivo realizado na área do assentamento foi o de milho.
164 Jaqueline Malmann – Jairo Alfredo Genz Bolter

As seis famílias que já moravam na área da antiga fazenda deram


seguimento à produção, como tradicionalmente realizavam, sem maiores
aproximações com o grupo das famílias recém-assentadas na área. Esse
relativo “distanciamento” entre os dois grupos pode ser explicado pelas
diferentes trajetórias sociais das famílias que os compunham.
Destaca-se que desde o período de acampamento, algumas famílias
já discutiam sobre as melhores formas de organização em um assentamento
para o alcance de melhores resultados na produção e comercialização, con-
tando sempre com as formações oferecidas pelo MST para tais idealizações.
Assim, quando chegaram ao assentamento, 20 famílias optaram por trabalhar
coletivamente, e, em 24 de fevereiro de 1998, formaram oficialmente a Coo-
perativa de Produção Agropecuária dos Assentados de Tapes Ltda – Coopat.
A Cooperativa foi assim constituída por agricultores assentados oriun-
dos de várias regiões do Rio Grande do Sul, principalmente do Norte do
Estado, como uma estratégia de gerar emprego para as famílias associadas
a partir da agregação de renda à produção desenvolvida. Atualmente, as
principais atividades realizadas, no âmbito da cooperativa, são a produção e
agroindustrialização de arroz orgânico, panificação, criação de gado de corte
e leite, entre outras atividades de menor expressão na renda das famílias
assentadas.
Hoje, os assentados continuam vinculados ao MST, auxiliam os novos
acampamentos e, também, a coordenação estadual e nacional do movimen-
to, bem como participam ativamente da Coceargs.3 Continuam lutando
por crédito, moradia, assistência técnica, escolas, atendimento à saúde e
outras necessidades. Especialmente, para as famílias ainda vinculadas à
cooperativa,4 não se trata de uma luta individual e sim coletiva, em que
cada integrante do movimento trabalha com afinco para que todos tenham
terra e condições de viver da terra e na terra.

3
Cooperativa Central dos Assentamentos do Rio Grande do Sul.
4
Destaca-se que hoje são apenas dez famílias que ainda permanecem vinculadas à
Coopat.
As Famílias Assentadas da Reforma Agrária 165

Quando se considera o assentamento Lagoa do Junco na condição


de um campo social, diante das suas características, é necessário retomar o
referencial teórico desse trabalho, o qual aponta que os campos têm suas
próprias regras, princípios e hierarquias. São definidos a partir dos conflitos
e das tensões no que diz respeito a sua própria delimitação e constituídos
por redes de relações ou de oposições entre os agentes sociais que são seus
membros. Demonstra ainda Bourdieu que há, em cada campo, princípios
de organização que lhes são próprios.
Assim, para a compreensão do assentamento Lagoa do Junco, é
preciso ter em mente que ele é constituído por um conjunto de microcos-
mos sociais dotados de autonomia relativa, com lógicas e necessidades pró-
prias, específicas, com interesses e disputas irredutíveis ao funcionamento
de outros campos. Lagoa do Junco constitui-se, então, como um “sistema”,
ou ainda como um “espaço” estruturado de posições, permeado pelas lutas
entre os diferentes agentes que ocupam as diversas posições.
Percebe-se que a prática dos sujeitos observada no assentamento em
grande parte é definida pelo habitus de cada um, sendo o princípio gerador
das estratégias utilizadas, dos modos de pensar, sentir e agir em determi-
nadas situações, além de tal fator permitir superar de diferentes formas
as situações imprevistas. As práticas, segundo Cruz (2008, p. 3), que “o
habitus produz resultam de um processo de aprendizagem (socialização), que
é dominado por um conjunto de regularidades estatísticas que se encontram
associadas a um meio ambiente socialmente estruturado”. Conforme Bour-
dieu (2004a), ao se interligarem os habitus com os campos, torna-se evidente
que a produção das práticas sociais é, simultaneamente, reprodução das
estruturas sociais que as determinam.
Os conflitos sociais, por outro lado, também ocorrem a partir das
lutas entre agentes, os quais mobilizam recursos de poder e sanção para dar
procedência aos interesses, crenças, decisões e ações, ou também para dar
prioridade a um sistema de regras sobre outro (Bourdieu; Wacquant, 2008).
Em suma, o assentamento Lagoa do Junco enquanto campo social
apresenta-se como um universo marcado pela heterogeneidade de trajetó-
rias sociais, reunindo, em um mesmo espaço, agricultores com diferentes
habitus, práticas e capitais. O processo de construção como campo social
166 Jaqueline Malmann – Jairo Alfredo Genz Bolter

foi definido concomitantemente a uma série de limitações e imperativos,


como pela expectativa de reprodução de um modo de vida. O conceito de
habitus, aparentemente, colocou-se no centro da dialética entre a reprodução
e a produção das condições materiais e subjetivas de existência, tendendo
a incorporar novas referências a partir do momento em que o cotidiano se
torna exceção das experiências vividas, variando independentemente do
controle exercido pelos habitus já interiorizados.
O campo social em estudo apresenta-se, nesse sentido, como resulta-
do da incorporação desigual de recursos econômicos, culturais e simbólicos,
que tendem a se expressar nos comportamentos dos agentes, e, portanto,
no uso de diferentes estratégias em busca do atendimento das carências
conformadas histórico-socialmente.

A TRAJETÓRIA SOCIAL DAS FAMÍLIAS DO ASSENTAMENTO LAGOA DO JUNCO:


Projetos em Construção
Quando se considera o espaço social do assentamento Lagoa do
Junco, na qualidade de um campo social, diante das suas características,
é necessário lembrar que os campos têm suas próprias regras, princípios e
hierarquias, que são definidos a partir dos conflitos e das tensões no que
diz respeito a sua própria delimitação e constituídos por redes de relações
ou de oposições entre os agentes sociais que são seus membros. E nessa
teia de questões verifica-se a existência constante de projetos de vida em
construção.
Entre as famílias assentadas, via MST, no assentamento Lagoa do
Junco, há uma expressiva diversidade étnica, constatando-se que, em sua
maioria, são descendentes de imigrantes alemães, italianos e poloneses, e
seus municípios de origem distam entre 500 e 600 quilômetros do municí-
pio de Tapes. Algumas famílias vieram ainda, posteriormente, por meio de
trocas de lote, oriundas de outros assentamentos situados em municípios
próximos a Tapes. Compartilham também as famílias assentadas de diferen-
tes origens em termos de posições sociais: filhos de pequenos agricultores,
filhos de empregados rurais temporários ou permanentes, filho de agricultor-
-assentado, ex-pequeno agricultor e ex-empregados rurais – em algumas
situações também eram arrendatários e/ou meeiros.
As Famílias Assentadas da Reforma Agrária 167

Segundo Bourdieu e Wacquant (2008), as situações positivas e nega-


tivas vivenciadas constituíram um estado adquirido e firmemente estabe-
lecido de caráter moral, orientando futuramente os sentimentos e desejos
dos indivíduos que as vivenciaram. Dessa forma, os acampamentos, além da
função de pressionar o governo para a efetivação da reforma agrária, nas pala-
vras das famílias entrevistadas, servem também como “escola preparatória
para a vida no assentamento”, em que as diferenças devem ser minimizadas
para que haja um objetivo comum entre os assentados. Ou seja, a própria
definição de movimento social engloba o sentido de uma coletividade em
que se manifestam e se buscam objetivos comuns.
Pode-se considerar, então, que, no período de acampamento, interna-
liza-se um novo habitus, enquanto capacidade de uma determinada estrutura
social ser incorporada pelos indivíduos por meio de disposições para sentir,
pensar, agir, perceber e fazer. Tudo parece ocorrer, então, em função de que
as circunstâncias vividas no acampamento, caracterizadas pela incerteza, ins-
tabilidade, ansiedade, perigos e oportunidades, além do ineditismo dessas
circunstancias, as quais podem provocar uma reestruturação dos sistemas
socioculturais devido à necessidade de encontrar novas normas de conduta
e compreensão, ou, ao mesmo tempo, podem ser vividas sem afetar seria-
mente os habitus já constituídos. Nesse contexto, as significações atribuídas
às realidades vivenciadas tendem a se dar a partir das disposições adquiridas
até então, que agem como uma “chave” para produção de novos sentidos e
incorporação de novas referências, em um ambiente coletivo.
A estruturação do assentamento Lagoa do Junco, na qualidade de
campo social, está muito relacionada à influência e ao poder exercido pelo
MST sobre um grupo de indivíduos. E sobre a importância do Movimento
para as famílias, destaca-se que estas indicam que, por meio dele, con-
seguiram efetivar vários direitos, considerando o MST a “tábua de salva-
ção”, pois, na maioria dos casos, eram agricultores que viviam em peque-
nas porções de terra, ou que trabalhavam como agregados, meeiros, etc. O
ingresso no movimento significou, e ainda significa para eles, a possibilidade
de avanço social, econômico e político. Nota-se que, mediante a conquista
da terra, consideram que conquistaram a credibilidade na sociedade, sua
casa, educação, crédito, e, acima de tudo, dignidade, o que de certa forma
os “obriga” a uma eterna dívida de colaboração com o Movimento.
168 Jaqueline Malmann – Jairo Alfredo Genz Bolter

Em suma, percebe-se que, quando do ingresso na luta pela terra,


os assentados não buscavam somente a conquista da terra, mas sim poder
efetivamente trabalhar nela de forma a mostrar à sociedade sua dignidade,
tornando-se tal questão um status adquirido e firmemente estabelecido do
caráter moral que orienta os sentimentos e desejos das famílias durante toda
a trajetória posterior à entrada no processo de luta pela terra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do apresentado, é possível verificar uma nova ruralidade em
voga, na qual faz-se urgente reconsiderar a visão do rural como um espaço
estanque, ou meramente de produção.
A percepção de diferentes trajetórias sociais no interior de um mesmo
campo social pode ser compreendida a partir do habitus, na condição de
mediador entre o passado e o presente, como sistema que funciona como
categoria de diferenciação, mas também, como princípio organizador da ação
prática, que tanto explica a naturalização, a aceitação, como ajuda a encon-
trar respostas criativas às demandas do meio social (Bourdieu; Wacquant,
2008). Em outras palavras, muito da relação entre habitus e trajetórias sociais
está em que o habitus modifica-se com as experiências, sendo este, entre-
tanto, sempre uma referência para a ação. Assim, as famílias assentadas, de
forma geral, são pressionadas por um sistema de regras que é hegemônico
no campo, impondo-se como algo natural, mas que, no entanto, também é
passível de mudanças, as quais só se realizarão pelas experiências vividas.
Com isso, pode-se constatar a partir da realidade do assentamento
Lagoa do Junco, que este é um espaço que, independentemente de sua
trajetória social, sofre com as intervenções externas, não possuindo os indi-
víduos uma total liberdade sobre as decisões de suas trajetórias de vida.
Ao final, a partir da análise realizada via conceitos propostos por
Bourdieu, tem-se uma tendência à compreensão de que é o indivíduo que
tem a capacidade de articular as múltiplas referências que lhe são propostas
ao longo de sua caminhada social. Verificou-se, porém, que é a história da
trajetória dos sujeitos que vai determinar relacionalmente os enfrentamen-
tos, as estratégias, as vantagens e desvantagens materiais e simbólicas de
cada indivíduo ou campo social.
As Famílias Assentadas da Reforma Agrária 169

Fica claro que no sujeito cruzam-se e interagem sentidos particulares


e diferentes. Ou seja, todo indivíduo exposto a uma pluralidade de campos
sociais submete-se aos princípios de socialização heterogêneos e, às vezes,
contraditórios, não respondendo ou agindo segundo um sistema único de
disposições de habitus. Este, desse modo, não depende somente da posição
social do agente, de sua situação atual, mas também de sua trajetória pessoal.
Em suma, com base no caso estudado, pode-se verificar que, depen-
dendo de uma maior ou menor presença do Estado no meio rural, tem-se
maior ou menor espaço para realização do habitus, com a trajetória social
sendo condicionada pela presença de agentes externos, os quais limitam ou
favorecem a emergência do habitus nas práticas dos agentes locais. Pode-se
concluir que, do campo projetado ao campo realmente vivido pelos agentes,
existe uma trajetória social permeada por processos de intervenção, que por
vezes transformam a realidade das famílias assentadas da reforma agrária a
viverem com projetos em permanente construção.

REFERÊNCIAS
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1987.
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170 Jaqueline Malmann – Jairo Alfredo Genz Bolter

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MEDEIROS, L. et al. (Org). Assentamentos rurais: uma visão multidiscipli-
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tamento rural. In: MEDEIROS, Leonilde et al. (Orgs.). Assentamentos rurais:
uma visão multidisciplinar. São Paulo: Ed. Unesp, 1994.
A JUVENTUDE RURAL EM AÇÃO

Ezequiel Redin
Vilson Flores dos Santos
Paulo Roberto Cardoso da Silveira

Este texto constitui-se como um ponto de partida para uma leitura


sobre a juventude em ação em um espaço rural moderno, enfocando-se a
capacidade de se colocarem como protagonistas de uma história construída
pela mobilização social e norteada pela perspectiva de futuro. A juventude
rural como objeto de análise, neste estudo, é considerada constantemen-
te em movimento, tomando-se como referência empírica a experiência
da Associação Regional da Juventude Rural (Arejur), instituída na Região
Centro-Serra, a qual envolve em torno de 9 mil jovens de 12 municípios do
Estado do Rio Grande do Sul.
Justifica-se este recorte, pois entre o nascimento e a consolidação
desta experiência emerge um rico leque de reflexões que incorporam o
rural para além das questões agrícolas e as expectativas dos jovens rurais.
Trata-se de um espaço fértil para a mobilização social em busca de formas
de entretenimento, lazer, educação, convivência, fortalecimento de laços e
a elaboração de projetos coletivos para e pela juventude rural.
Os estudos sobre a juventude rural no Brasil têm sido marcados por
recortes empíricos localizados, analisando-se experiências centradas no fluxo
migratório para os centros urbanos. Neste texto, analisamos a organização da
juventude do rural e no rural. Apresenta-se aqui um processo de organização
social que envolve uma instituição guarda-chuva, a qual legitima a experiên-
cia da juventude rural em âmbito territorial. Em estudo anterior, Redin et
al. (2013) traçaram uma correlação entre a juventude rural e os espaços de
sociabilidade vivenciados em um processo de transformação da vida rural
172 E z e q u i e l R e d i n – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

provocado pela universalização do uso das Tecnologias de Informação e


Comunicação (TICs) no campo. Neste estudo, coloca-se essa experiência
como sui generis, o que torna relevante sua abordagem acadêmica.
A organização social da juventude rural do Centro-Serra está com-
prometida com um projeto de desenvolvimento humano e social, no âmbito
comunitário, criando e recriando espaços de sociabilização, constituindo-
-se como uma categoria que rompe com sua condição de invisibilidade e
negação, resquícios de um passado recente de desvalorização e estigma
da juventude da roça, o qual internalizou estigmas sociais – o adjetivo de
atrasados, com traquejo social caricaturado e excluídos. Por outro lado, a
juventude rural ainda é socialmente vista como rebelde, imatura, em pro-
cesso de aprendizagem, sem trabalho remunerado próprio e, portanto, sem
autonomia. Pesquisadores como Castro (2005) e Stropasolas (2006) identi-
ficam, em suas investigações, a consciência rebelde dos jovens rurais e os
juízos de valor impostos pela sociedade adulta.
Esse processo de estigmatização também tem servido como mote de
luta por reconhecimento e participação social, buscando-se espaços autôno-
mos e de valorização na sociedade. Nesse alento, a Arejur tem se afirmado,
historicamente, como uma organização social distintiva no Território Centro-
-Serra com foco no desenvolvimento de uma identidade social.
A Região Centro-Serra, localizada na Região do Vale do Rio Pardo,
configura-se espacialmente como um dos importantes polos de concentra-
ção de atividades agropecuárias de base familiar como principal estratégia
econômica, com destaque para a produção de fumo em folha. A juventude
rural é percebida como um problema social recorrente, porém, nesse caso
particular, apresenta-se com um arranjo social com raízes rurais assentadas
na promoção da sociabilidade e na produção de sujeitos ativos, de forma
permanente, nos fóruns comunitários.
O objetivo do trabalho é analisar a organização social da juventude
rural da Região Centro-Serra, sobre a perspectiva da construção de espaços
sociais e refletir sobre as prioridades da juventude rural que sustentam
sua ação política. Toma-se como referência um estudo de caso baseado
A Juventude Rural em Ação 173

em experiência coordenada por um dos autores,1 quando foram realizadas


um conjunto de reuniões nas 12 associações municipais que compõem a
Arejur, seguidas de um seminário regional. Como resultado deste processo,
obtiveram-se as expectativas da juventude rural, as quais devem alimentar
sua ação.
Metodologicamente, confronta-se este estudo de caso com a pesquisa
bibliográfica e os documentos da Arejur, buscando-se compreender os ele-
mentos fundantes do processo organizacional e suas implicações na propo-
sição de linhas interpretativas e na sugestão de futuros esforços analíticos.
No percurso deste texto, inicialmente focamos a historicidade do
processo de construção social da organização da juventude rural que desem-
boca na constituição da Arejur; avança-se no resgate do estudo de caso como
base empírica e conclui-se com uma reflexão sobre as diferentes dimensões
dessa experiência social.

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA ORGANIZAÇÃO


DA JUVENTUDE RURAL
Nesta seção será tratada a organização histórica da juventude rural da
Região Centro-Serra-RS, a qual parte da mobilização que se converteu num
projeto de conformação jurídica de vários grupos de jovens em associações
municipais e agregadas regionalmente na Arejur. Recorre-se aqui a docu-
mentos históricos no escopo da associação regional para a reconstituição da
trajetória desta organização social.
A juventude é idealizada por Galland (1985, 1993,), importante soció-
logo da juventude na França, sob a noção de ingresso na vida adulta, um
rito de passagem que lhe concebe a responsabilidade para trabalhar e casar.
A juventude rural é uma construção social, pois “a juventude e a velhice
não são dadas, mas construídas socialmente, na luta entre jovens e velhos”
(Bourdieu, 2003, p. 152). Além de uma construção social, a juventude rural

1
Trata-se de uma ação coordenada por Vilson Flores dos Santos, então doutorando em
Extensão Rural, objetivando atender demanda da Arejur em conhecer as principais
solicitações das diferentes associações municipais de jovens rurais suas constituintes.
174 E z e q u i e l R e d i n – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

é percebida como um problema social ao ser relacionada com as consequ-


ências de sua migração em busca de novas perspectivas de vida. O fato de
os jovens desistirem do rural tem sido foco de inúmeras pesquisas, seja
focando a dimensão individual (jovens rurais) ou análises do comportamento
coletivo (juventude rural).
No âmbito do jovem rural, vários estudos sociológicos colocam o
dilema dos agricultores com a indefinição de futuro da propriedade rural
na iminência da carência de herdeiros na França (Bourdieu, 2008), a amplia-
ção do espaço social dos jovens rurais e a fragilização do controle social da
família camponesa (Champagne, 1986). Por outro lado, diversas pesquisas
abordam a inserção dos jovens rurais na agricultura familiar, particularmente
no Brasil.2 A maioria destes trabalhos focam nas relações dos jovens rurais no
seio da família rural, as relações de gênero, os fluxos migratórios, a sucessão
rural. Os trabalhos acadêmicos com jovens rurais têm tido a preocupação
de direcionar o foco à unidade camponesa na lógica vital da produção e
consumo.
Já neste esforço analítico, pousamos o olhar no coletivo e para os
espaços de sociabilidade, ou seja, para a juventude rural como promotora
de espaços sociais ligados ao lazer, convívio social, entretenimento e troca
de experiências (Redin, 2012; Redin; Silveira, 2012) e também como um
ator político (Stropasolas, 2006).
Abdicamos aqui, portanto, da análise sobre os projetos individuais
para realçar um projeto coletivo de juventude rural. As decisões coletivas
situam-se na projeção de espaços sociais, ações culturais, educacionais e de
mobilização institucional como estratégia de reconhecimento e legitimida-
de. A organização social da Arejur tem construído um espaço sui generis no
campo coletivo, momento em que se valorizam identidades positivadas,
sustentam-se analogias com os jovens urbanos e os situam no âmbito do
discurso e na esfera da representação como equivalentes e com posição

2
Nessa perspectiva podem-se elencar os seguintes trabalhos: Schneider, 1994; Cama-
rano; Abramovay, 1999; Carneiro, 1998; Sacco dos Anjos; Caldas, 2003; Castro, 2005;
Stropasolas, 2006, Brumer; Anjos, 2008; Marin, 2009; Weisheimer, 2009; Froehlich et
al., 2011; Marin; Redin, Costa, 2014.
A Juventude Rural em Ação 175

social idêntica à juventude urbana. Forjam-se espaços de reconhecimento,


duelam pela honra social e demonstram à sociedade regional que têm força
e capital cultural para influenciar nos espaços legítimos da sociedade adulta.
A condição juvenil que busca realização social, autonomia e emanci-
pação é exposta para a sociedade sem a necessidade de negar sua condição
camponesa, seu modo de vida e suas formas de reprodução social. Essa
característica diferencia a juventude rural da Região Centro-Serra, a todo o
momento, pois aspira ser reconhecida como juventude rural protagonista no
território, cria e recria um sistema de referência para a sociedade e retrabalha
sua identidade, fortalecendo projetos coletivos com o objetivo de revigorar
seu status social. Essas simbologias são transmitidas em todos os espaços em
que as representações da juventude estão presentes, como nos eventos pro-
movidos pela Arejur, nos colegiados territoriais, nos diferenciados espaços
de legitimação social que a entidade ocupa na região.
A organização social privilegia reforçar o papel da juventude rural na
comunidade. Ela é mantida conforme um sistema de participação arbitrário,
necessário para fortalecer a coesão social dos grupos de jovens de distintos
municípios rurais. O universo rural em que vivem e se socializam dentro
do território é explicitado por relações de cumplicidade e aproximação, até
mesmo de diferenciação social e da valorização de um projeto de fortificação
do ato de ser um jovem agricultor de referência. Referência como agricultor
implica produtividade ou produção de algum produto de destacada parti-
cipação econômica.
O econômico move a organização social, enquanto esta move-se por
formas de trabalho voluntário, de ações, de reciprocidade e de auxílio da
sociedade institucionalizada. É uma força de corresponsabilidade. A presen-
ça da Arejur é requerida, estimulada e desenhada também pela sociedade
adulta, pelas comunidades rurais, pelo comércio urbano, pelas empresas
da área da agricultura, pelas entidades sociais da região. É uma forma de
codependência, enquanto interesses de uma sociedade coletiva de ações
particularizadas ou no escopo de estratégias sociais formuladas no âmbito
dos espaços legítimos de ascensão social.
176 E z e q u i e l R e d i n – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

A Arejur é fruto da organização do Conselho Regional de Juventude


Rural da Região Central, cujo foco prioritário gira em torno dos espaços
de sociabilidade, como as atividades esportivas, festivais artísticos e cultu-
rais, conferências municipais de juventude rural, participação em eventos
regionais, em conselhos municipais, em sindicatos rurais e nos meios de
comunicação, em especial, rádio e jornal.
A Arejur, entidade guarda-chuva, é representativa de todos os grupos
de jovens dos municípios da Região Centro-Serra e fora desta, caso algum
município próximo solicitar adesão. No âmbito municipal, a associação
municipal de juventude rural (ou conselho) coordena seus grupos nesta
delimitação geográfica, com os grupos de juventudes rurais formados em
suas localidades rurais diretamente atrelados à associação municipal. As
juventudes rurais nas suas respectivas localidades, as associações municipais
e a associação regional possuem uma diretoria composta pelo presidente e
vice-presidente, secretários e tesoureiros eleitos pelos pares. Essa equipe
tem a responsabilidade de protagonizar os encontros sociais, criar espaços de
animação, seguir as diretrizes acordadas pelos grupos, representar a juventu-
de em reuniões deliberativas e promover eventos de interesse da juventude
rural (Figura 1).
Figura 1 – Escala da organização social das juventudes rurais da Região Centro-Serra

Fonte: Elaborado pelo autor.


A Juventude Rural em Ação 177

Para validação social, a escolha das soberanas da juventude rural


municipal e, posteriormente, as soberanas da Arejur compõem o sistema
de estratégias de reconhecimento e demarcação do espaço. A simbologia
da beleza da jovem rural – escolhida por um júri especializado envolvendo
conhecimentos gerais e específicos, o desfile e também um conjunto de
características físicas – carrega consigo a bandeira e a imagem de uma juven-
tude rural que se traduz em sentimentos de pertencimento, de conquista
de novos espaços e de promoção da categoria rural.
Geralmente as soberanas eleitas pelas juventudes rurais em seu
município são visadas para participação em outros concursos de beleza
na região ou em outros espaços. Algumas soberanas eleitas e visibilizadas
pela Arejur têm alcançado projeção social, como contratos com agências de
modelos, participação em meios de comunicação de expressão no país, em
concursos em âmbito nacional e internacional.
O espaço promovido pelas associações de juventude rural, portanto,
tem ofertado também a oportunidade de crescimento pessoal em dimen-
sões que mudam a perspectiva de vida das jovens rurais. Essa ascensão é
concebida como extremamente positiva para o reconhecimento social do
trabalho da juventude rural na região. Nesse caso, o fato de as meninas não
permanecerem no meio rural não é um problema, mas uma forma de romper
com as barreiras físicas do rural e do urbano, da distância que se encontram
em relação às grandes capitais.
Os espaços promovidos pela Arejur objetivam também formar líderes
capazes de promover uma mudança social, um comportamento coletivo que
comande a juventude rural. As lideranças locais, municipais e regionais
formam um grupo com capital social para manter viva essa rede de inter-
-relacionamentos da juventude rural. Ademais, é necessário salientar que
esta organização foi historicamente cotutelada pelo trabalho da extensão
rural, fruto de um processo longo de auxílio e organização das entidades
representativas no Estado. A juventude rural depende da ação dos exten-
sionistas e cobra sua presença e articulação, mas ao mesmo tempo pretende
constituir-se autônoma.
178 E z e q u i e l R e d i n – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

De uma forma geral, parece existir uma compatibilidade entre o estí-


mulo da extensão rural e o desenvolvimento da ação da juventude rural,
como se a primeira necessitasse da segunda, ou como se existisse uma
grande sintonia entre ambas. A extensão rural promove a qualificação, os
cursos de formação, a organização dos espaços de lazer e sociabilidade e, de
outra parte, a juventude rural protagoniza o espetáculo, promove a organi-
zação, são os atores que atuam no cenário social.
A ausência de autonomia da juventude rural estava diretamente vin-
culada à carência de recursos para realizar trabalhos com direção e execução
próprias. A criação de uma associação, como entidade jurídica, fornece essa
autonomia, ou seja, o repasse de verbas para o desenvolvimento dos traba-
lhos da juventude rural. Nesse contexto, a Arejur foi fundada em 3 de maio
de 2005, constituindo uma entidade educacional, social, cultural e esportiva
com tempo indeterminado de duração, sem fins lucrativos. A sua data de
criação legal é posterior à das Associações de Juventudes Rurais Munici-
pais, como é o caso da Associação da Juventude Rural de Arroio do Tigre
(Ajurati), legalizada em 1996. É uma dinâmica processual e transitória, mas
não delimita o início da história da organização da juventude rural, apenas
legitima juridicamente um trabalho desenvolvido há muitos anos.
O papel da associação regional, além da atuação em cursos de capa-
citação sobre as questões produtivas, está em estimular o lazer, a recreação,
a cultura e a formação da juventude rural em diferentes âmbitos, em pro-
mover ofertas significativas de atividades de lazer, entretenimento e festas
nas comunidades rurais. Por isso, a organização socioespacial da juventude
rural amplia as redes de sociabilidade, quando coloca em interação diferen-
tes jovens rurais de distintos municípios, de culturas similares ou, às vezes,
díspares.
A ampliação das redes de sociabilidade entre os jovens rurais
promove no imaginário uma condição de liberdade, uma abertura para
conhecer novas pessoas, novos modos de vida, diferentes comportamen-
tos sociais. A possibilidade do novo interage com as trajetórias pessoais e
se reflete nos relacionamentos entre moças e rapazes no cotidiano rural.
Essa ampliação dos espaços pode causar um efeito contrário, ou seja, uma
A Juventude Rural em Ação 179

revalorização do seu modo de vida, do seu cotidiano rural local. Conhecer


a realidade do outro pode cognitivamente proporcionar um sentimento de
maior valor a sua realidade.
A interação social entre as juventudes rurais é, de certa maneira, uma
forma de romper com a estrutura de relacionamentos comunitários para
relacionamentos intercomunidades ou interurbanos. Nessa realidade social
existem moças rurais estabelecendo namoros com jovens rurais de outros
municípios, bem como moças urbanas estabelecendo relações socioafetivas
com jovens da roça. Em certas ocasiões, observam-se meninas urbanas trans-
formando-se em agricultoras, assumindo uma condição camponesa ao casar-se
com um jovem rural. Assim, o coletivo social pode implicar a condição indi-
vidual, as contingências sociais no estabelecimento de laços de união, uma
reconfiguração nas relações comportamentais de reprodução biológica ou de
estilo de vida, em que o rural passou a ser considerado moderno.
A aspiração da juventude rural mobilizada refere-se à formação de um
capital cultural vinculado a um sistema de referência, cujo pertencimento
ao segmento social da juventude rural os coloca numa condição de destaque
social. Nesse sentido, a mobilização da juventude rural tem se mostrado
necessária justamente porque existem determinados sentidos coletivos não
necessariamente naturalizados que, a partir de uma organização social, pro-
movem formas de protagonismo que emergem do rural para o urbano, ou
de forma mais complexa, de uma lógica que transcende o sistema binário
rural-urbano. A identidade da juventude rural principia a ganhar força no
cenário contemporâneo.

EM BUSCA DE EXPECTATIVAS COLETIVAS


Em 2012, a Arejur conseguiu recursos do Ministério de Desenvolvi-
mento Agrário, via Consórcio Intermunicipal do Vale do Jacuí para realizar,
mediante contratação de consultoria, um processo de mobilização das juven-
tudes rurais dos 12 municípios da Região Centro-Serra, visando a definir
um espectro comum que pudesse unificar as pautas reivindicatórias a serem
defendidas coletivamente.
180 E z e q u i e l R e d i n – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

Com apoio da Emater-RS, efetivaram-se encontros com cada asso-


ciação municipal, quando se abordou os temas da Sucessão na Agricultu-
ra Familiar, Formação de Lideranças e Motivação, por meio de palestras
a cargo de membros dos grupos Nepals 3 e Nemad4 da UFSM. Em um
segundo momento os jovens participantes, divididos em grupos, buscaram
responder sobre quais seriam os principais problemas enfrentados em seu
município e quais as possíveis soluções. Estes dados sistematizados acaba-
ram por produzir um interessante painel das diferentes expectativas de cada
associação municipal.
Posteriormente, em seminário regional com a participação das juven-
tudes rurais de todos os municípios, apresentou-se às autoridades presentes
e às lideranças da Arejur as expectativas de cada associação. Neste espaço,
uma contribuição importante foi a possibilidade de que cada juventude rural
conhecesse os problemas e expectativas das demais, criando um sentido
de unicidade a partir das diferenças. Isto serviu para reforçar ainda mais as
pautas a serem trabalhadas pela Arejur.
Entre as principais prioridades da juventude rural em âmbito regio-
nal destacam-se: a necessidade de disponibilização de sinal de Internet
e telefonia em todas as comunidades rurais; a instalação de uma escola
técnica; a criação de projetos de diversificação produtiva; a construção de
vias de escoamento de produção; investimento na área de lazer e esportes;
a garantia de comercialização em espaços institucionais como mercados
públicos e privados para os produtos da agricultura familiar; o incentivo
com verbas municipais para fortalecimento das associações da juventude
rural e promoção do desenvolvimento social e cultural; o agenciamento de
atividades culturais, sociais, recreativas e de desenvolvimento rural; criação
de Lei Municipal de Incentivo à Juventude Rural, entre outras demandas
mais específicas.

3
Núcleo Interdisciplinar em Extensão e Pesquisa sobre Alimentação e Sociedade.
4
Núcleo de Estudos sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.
A Juventude Rural em Ação 181

ENTRE AS PRIORIDADES LOCAIS E O SONHO DA JUVENTUDE RURAL


Nesta seção trata-se de um dilema ambíguo, entre as expectativas e
sonhos da juventude rural (voltados ao rural ou fora dele) e as prioridades
locais de um rural em construção. Identifica-se que no momento em que
a juventude rural prospecta melhorias às comunidades em que vivem ou
transitam, por outro lado, anseiam por um futuro com projeções que envol-
vem atividades não agrícolas ou até mesmo aparecem suas idealizações em
projetos urbanos.
Aqui se lança a tese da desmistificação da projeção de um rural fixo,
de uma juventude que deveria visar estritamente a um futuro no campo,
construindo-se um cenário em que a juventude rural é protagonista não
só em espaços rurais, mas no cenário urbano e político. Propõe-se, então,
desbancar a noção da juventude rural tutelada, suplantando a proposição
positivista que vê as ambições dos jovens e o papel das políticas públicas
direcionadas a ações voltadas à questão produtiva. Ao negarmos tal enten-
dimento, desnuda-se o fato da flagelação da família rural ao imputar-se uma
força de coação, um mote discursivo em torno de que o problema de sucessão
rural inviabilizaria a reprodução social da agricultura familiar.
Para esta linha de pensamento, alguns aspectos são evidenciados
neste segmento social coletivo. As prioridades da juventude rural em âmbito
regional equivalem a contemplar as ações em curto e médio prazos que
podem facilitar ou fornecer melhores oportunidades no meio rural. Nesse
sentido, as ações dependeriam da atuação da gestão pública e da articulação
política para oportunizar condições básicas que a juventude rural reivindica
nos espaços coletivos de base.
Como vimos anteriormente, as prioridades da juventude rural giram
em torno da situação coletiva vivenciada, tanto ligadas à questão da ativi-
dade agrícola quanto dos espaços de fortalecimento social coletivos. Essas
ações são consideradas requisitos fundamentais para elevar o índice de
desenvolvimento na região, bem como segurar o capital social dos jovens
neste espaço. Para tanto, transportam a histórica exclusão social e os proble-
mas estruturais para a esfera pública, demandam como sujeitos protagonistas
da gestão pública eleita a responsabilidade de fornecer condições mínimas
para o desenvolvimento do mundo rural, tendo em vista que também
182 E z e q u i e l R e d i n – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

elegem vereadores como representantes políticos da juventude rural. Cabe


destacar que nem tudo é consensual, existem disputas pelo poder simbólico
representativo, demarcação de espaços individuais e coletivos e também
interesses particulares em movimento, por isso construídos no contexto
ambíguo da participação da juventude rural.
A luta da juventude rural na Região Centro-Serra afirma-se, majori-
tariamente, no âmbito da persistência, da organização e da vontade, mais do
que nas formas consensuais de resolução dos problemas locais. Os líderes da
juventude rural são jovens mais experientes e articulados politicamente, em
especial com a finalidade coletiva de buscar legitimar o trabalho que vem
sendo construído nos pleitos locais e nas instâncias da sociedade. Calcada no
êxtase do reconhecimento e da participação social, a juventude rural clama
por intervenções mais enfáticas, mas também se contrapõe a projetos que
não estejam focados nas demandas historicamente defendidas coletivamen-
te nos meandros de sua organização.
Conforme Stropasolas (2006), a juventude rural também tem reagido
com seu movimento migratório, pois nele se manifesta uma reação à degra-
dação das condições de vida na sociedade rural. Para Sacco dos Anjos, Caldas
e Pollnow (2014), uma das explicações para este movimento migratório é
a possibilidade de poder ir para além das fronteiras, buscando ampliar os
horizontes sociais em que se fecha a agricultura e o mundo rural, os quais
até bem pouco tempo atrás, estavam circunscritos ao espaço local. Assim,
segundo Stropasolas (2006), a mobilização em diferentes espaços sociais
e a valorização pela sociedade de suas reivindicações dependerão de sua
habilidade em ganhar apoio fora de sua própria coletividade.
As expectativas referem-se ao plano individual e, ao mesmo tempo,
ao plano coletivo. Os sonhos da juventude rural evocam conquistas sociais
como a ascensão, seja como agricultor ou não, a sua qualificação profissio-
nal, a busca por atividades agrícolas ou não agrícolas que oportunizem que
a juventude possa reproduzir-se economicamente. O sonho, em geral, fica
no plano do inconsciente, mas se batalha para que ele ultrapasse a barreira
psíquica para a sua realização. Uma das demandas, de forma unânime e
aclamada, tem relação direta com a necessidade de valorização dos produtos
agrícolas e, consequentemente, do seu trabalho rural.
A Juventude Rural em Ação 183

A resolução dos problemas da juventude rural podem propiciar inú-


meros benefícios à sociedade, consistindo na possibilidade de serem os prin-
cipais protagonistas no processo de reversão da erosão social e cultural em
curso nas pequenas localidades, na dinamização e ampliação das oportuni-
dades de emprego, educação e lazer, nas iniciativas de desenvolvimento que
visam à melhoria das condições de vida e na conquista de uma igualdade de
direitos entre os gêneros (Stropasolas, 2006).
A rede de associações, guiada pela Arejur, coloca a juventude rural
em sintonia com as propostas e as demandas de gênero e da agricultura fami-
liar. Para canalizar as ações e reproduzir projetos voltados para a juventude
rural envolve-se, sobretudo, o esforço do Estado em assegurar recursos de
animação, capacitação e de estímulo para a juventude dar o pontapé inicial
em projetos que sejam protagonistas, além do plano do lazer e entrete-
nimento. A oportunidade de desenvolver projetos atinentes ao desenvol-
vimento rural coloca o grupo social em evidência como responsáveis por
estimular o crescimento da região e o fortalecimento do rural.
Isso posto, a sucessão rural não será afetada simplesmente pelo aban-
dono de um jovem rural ao projeto camponês, mas sua saída será requeri-
da para participar como agente de desenvolvimento que pode promover a
sucessão e o desenvolvimento das unidades produtivas de toda a região.
Dessa forma, a saída do jovem do meio rural não deve ser vista como uma
aflição, mas como um exemplo de que a sua capacitação futura possa auxi-
liar muitos outros jovens a suceder seus pais, de forma que assim os frutos
positivos do esforço da juventude rural são vistos de outra perspectiva. A
juventude rural organizada com cunho social, educativo e produtivo tem
boas chances de tornar o rural, além de um espaço produtivo, um lugar
de referência por sua mobilização e seu capital social investido na Região
Centro-Serra.

O DESFECHO
O processo de construção social da juventude rural em ação desen-
rola-se pela trama destes atores rurais movidos pela ânsia de prospectar um
futuro mais promissor e digno, seja no espaço rural ou no urbano. O enredo
procrastina-se sobre a forma de adaptação da juventude rural a uma vida
184 E z e q u i e l R e d i n – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

moderna, distanciando-se daquela caricatura estigmatizada de um recente


rural que sofre de resquícios cognitivos, ainda não completamente saneados.
Ao mobilizar a juventude do campo na dimensão política e social, dada a
legitimação pela sociedade local de um grupo organizado e reconhecido
em espaços da comunidade “adulta”, tenciona-se a sociedade a respeitar os
jovens rurais enquanto agentes protagonistas não, somente, do rural, mas
da sociedade regional como um todo.
A experiência social demonstra, antes de tudo, que a juventude rural
quando orientada para a ação política significa a mobilização de recursos
inativos no território até então. Desse modo, não apenas reproduzem cultu-
ralmente suas concepções e ideais transmitidos de geração em geração, mas
reinventam, a todo instante, novas estratégias que vão impactar tanto no seio
da família rural quanto na sociedade regional em questão. O desfecho dessa
trama tem apontado roteiros da mais completa imprevisibilidade, mas um
fato é certo: a juventude rural na região em análise não mais será como antes
e, como consequência, o rural também não será mais visto como já o foi.

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A EROSÃO DA CULTURA ALIMENTAR
E OS DESAFIOS PARA A SEGURANÇA ALIMENTAR

Tatiana Aparecida Balem


Paulo Roberto Cardoso da Silveira

A Agricultura Familiar (AF) embora tenha sido reconhecida recente-


mente como categoria política e social no Brasil,1 sempre esteve vinculada à
produção de alimentos básicos, inclusive para o autoconsumo.2 Para Guan-
ziroli (2007), a diversidade de atividades econômicas é uma característica
histórica da AF, a qual tem sido impactada negativamente pela ausência
de políticas adequadas a esse modelo de organização produtiva, levando as
famílias de agricultores a se dedicarem à produção de commodities em virtude
da pressão do processo evolutivo da agricultura.
Também é necessário considerar que desde o início da instituição
do processo de modernização da agricultura (anos 60) até os dias atuais, a
Agricultura Familiar vem sofrendo um progressivo esvaziamento, princi-
palmente ocasionado pelo forte êxodo e pelo envelhecimento da população
rural (Froehlich; Rauber, 2009). Essa questão somada à entrada progressiva
dos agricultores familiares no modelo de agricultura baseado na monocul-
tura e na produção voltada para a exportação, transformou a realidade rural

1
A criação e estabelecimento do Pronaf em 1996 abre um debate na agenda pública e
inaugura um conjunto de políticas diferenciadas para a agricultura, partindo do reconhe-
cimento econômico da agricultura familiar e da sua conceitualização no fórum científico
(Grisa, 2012).
2
Para definir autoconsumo usamos a abordagem de Grisa e Schneider (2008), em que
este é considerado como a parcela da produção produzida pela família e destinada ao seu
consumo, o que segundo os autores é diferente de subsistência, quando os agricultores
cultivam produtos para o consumo e comercializam o excedente.
188 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

brasileira e está levando ao abandono progressivo dos cultivos para o auto-


consumo, os quais estão diretamente relacionados com a soberania alimentar
dos próprios agricultores.
Por outro lado, os debates com relação ao abastecimento, segurança
e soberania alimentar, têm estado presentes em vários espaços acadêmicos
e políticos. Diversas iniciativas políticas têm sido fomentadas com o intuito
de buscar uma maior soberania alimentar. O lançamento do programa Fome
Zero e o restabelecimento do Conselho Nacional de Segurança Alimen-
tar e Nutricional (Consea) em 2003, assim como a construção do Sistema
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), com a criação da
Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) em 2006, são
exemplos neste sentido.
Nesse contexto, em que se observa, por um lado, o abandono pro-
gressivo da produção para o autoconsumo pelos agricultores e de outro uma
agenda política na qual se destaca a construção de um sistema de Seguran-
ça Alimentar e Nutricional (SAN) insere-se o problema abordado neste
texto. A Agricultura Familiar, diante da pressão modernizante, conserva a
sua histórica diversidade alimentar ou apresenta um processo de erosão da
cultura alimentar?
A estrutura do texto conta com esta seção introdutória, uma seção
em que se apresenta a realidade pesquisada, seguida de uma abordagem do
processo de estreitamento da diversidade produtiva dos assentamentos de
reforma agrária e os possíveis reflexos na segurança alimentar das famílias de
agricultores. Após, discute-se o processo de modernização do sistema agro-
alimentar e a consequente erosão da cultura alimentar. Na seção seguinte
busca-se construir a ideia da cultura alimentar como elemento fundamental
para a SAN. E por último, enfatizam-se algumas reflexões sobre a possibi-
lidade da retenção do processo de erosão cultural alimentar. Neste trabalho
aprofundamos o conceito “Erosão Cultural Alimentar”, enunciado de forma
inicial e discutido em outro artigo de nossa autoria em 2005. Trata-se agora
de revisitar este conceito e verificar como nestes últimos dez anos ele tem
se manifestado no contexto da agricultura familiar e, em específico, nos
assentamentos de reforma agrária.
A Erosão da Cultura Alimentar e os Desafios Para a Segurança Alimentar 189

Por que estudar a cultura alimentar a partir dos assentamentos de


reforma agrária em Júlio de Castilhos?
Esse ensaio é preponderantemente qualitativo, pois apesar de uti-
lizarmos alguns dados numéricos sobre a produção nos assentamentos, a
análise interpretativa e a reflexão sobre o contexto investigado sob deter-
minada perspectiva teórica é predominante. Para responder à questão-pro-
blema deste texto, investigamos a matriz produtiva dos assentamentos da
Reforma Agrária do município de Júlio de Castilhos (JC). Os dados utili-
zados foram obtidos no instrumento de registro do trabalho de Assessoria
Técnica Social e Ambiental dos assentamentos denominado Sistema Inte-
grado de Gestão Rural da Ates/RS (Sigra).3 Também foi realizado um grupo
focal com a presença de quatro agricultoras assentadas e que fizeram parte
do assentamento desde a sua criação, buscando-se verificar como o grupo
pesquisado coloca-se diante da problemática em questão.
O município de JC possui 19.579 habitantes, com 4.821 famílias resi-
dentes no meio urbano e 1.015 famílias no meio rural (Instituto..., 2012).
No município existem cerca de 1.400 estabelecimentos rurais, dos quais
cerca de 900 são unidades de produção familiar e nesse universo, 265 são
unidades de famílias assentadas em quatro Assentamentos de Reforma
Agrária: Assentamentos Alvorada, Ramada, Nova Ramada II e Santa Júlia
(Emater-RS/Ascar, 2009a). Esses dados apontam para a importância social
e econômica dos assentamentos para o município.4
A região de JC no passado era marcada pelos sistemas produtivos
baseados na grande propriedade, tendo num primeiro momento a hege-
monia da criação de gado extensivo e, atualmente, a predominância da

3
O Sigra é um sistema integrado em que constam os dados de diagnóstico da realidade
dos assentamentos de Reforma Agrária no RS. É alimentado pelos extensionistas rurais
que atuam nos assentamentos. A Ates, por sua vez, é a sigla utilizada para denominar o
programa de Assessoria Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária concebido em
2003 no Brasil.
4
Representando 18,93 % dos estabelecimentos agropecuários, as famílias assentadas
dinamizaram a economia local com seu potencial de consumo e representa um grande
peso na produção leiteira do município e na ocupação da força de trabalho. São apro-
ximadamente 76% das famílias que produzem leite, com a produção anual girando em
torno de 5,4 milhões de litros.
190 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

agricultura empresarial, principalmente voltada para as lavouras de grãos,


destacando-se o monocultivo da soja (Moreira, 2008). Sendo assim, verifica-se que
em JC o direcionamento da estrutura produtiva e a logística de escoamen-
to da produção estão voltados para esta cultura. Observa-se no município
uma gama de empresas e uma grande cooperativa, todas especializadas na
compra de soja, constatando-se que a assistência técnica particular pre-
dominante, a venda de insumos, equipamentos e maquinários, também
estão voltados para essa cultura. O Quadro 1 demonstra a área ocupada com
os principais cultivos de verão no município, em que um total de 84.558
hectares plantados 80 mil são ocupados com a lavoura de soja.

Quadro 1 – Área ocupada, em hectares, com as lavouras temporárias de verão no


município de Júlio de Castilhos
Cultura Área plantada em hectares
Soja 80.000
Milho 3.000
Feijão 550
Batata inglesa 530
Mandioca 300
Girassol 88
Fumo 70
Outros 20
Total 84.558
Fonte: Instituto..., 2012.

Segundo Nuñes e Balem (2003), os assentados ao iniciar as atividades


produtivas nos lotes acabam reproduzindo o modelo produtivo do municí-
pio, principalmente condicionados pela estrutura disponível (maquinários) e
o comércio local, os quais são organizados para atender à atividade predomi-
nante (no caso a soja), exercendo uma pressão indireta nas decisões tomadas
pelos assentados. Outra questão discutida por estas autoras diz respeito ao
referencial anterior ao acampamento, quando a maioria dos assentados tra-
balhava com o modelo de agricultura convencional, o qual, apesar de tê-los
levado à exclusão, reaparece como possibilidade de ascensão social agora em
novas condições agroecossistêmicas e no contexto do assentamento como
novo espaço social em disputa.
A Erosão da Cultura Alimentar e os Desafios Para a Segurança Alimentar 191

Nesta perspectiva e considerando o exposto por Balem e Silveira


(2005) ao caracterizarem as transformações vivenciadas pelos agriculto-
res familiares, podemos afirmar que os assentamentos, assim como outras
regiões de agricultura familiar, acabam sendo influenciados pela pressão
modernizante e abandonam progressivamente os cultivos voltados para o
autoconsumo. Esse fator, aliado à decrescente presença de mão de obra dis-
ponível no grupo familiar, condiciona uma situação de dependência externa
para a alimentação da família. Na próxima seção aprofundamos a discussão
relacionada ao conceito de Erosão Cultural Alimentar, ao mesmo tempo em
que dialogamos com os dados dos assentamentos.

SOBERANIA ALIMENTAR X EROSÃO CULTURAL ALIMENTAR:


Um Estudo da Produção de Alimentos dos Assentamentos de Júlio de Castilhos
A segurança alimentar e nutricional é a garantia do direito de todos
ao acesso a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e de modo
permanente, com base em práticas alimentares saudáveis e respeitando as
características culturais de cada povo, manifestadas no ato de se alimen-
tar (Maluf; Menezes, 2000; Maluf, 2000). Alimento, por sua vez, segundo
Poulain (2004), é “o que nutre, o que traz ao homem os elementos que o
dispêndio da vida lhes faz perder”. O mesmo autor (p. 259) complementa:

Para que um alimento seja reconhecido como tal, ou seja, capaz


de manter a vida, ele não deve somente possuir qualidades nutri-
cionais, é preciso ainda que ele seja conhecido e/ou aceito como
tal pelo comedor e pelo grupo social ao qual ele pertence.

A expressão segurança alimentar sempre esteve presente na essência


da agricultura familiar, em que se verifica uma duplicidade de sentido na
produção agropecuária, ora para a criação de oportunidades de geração de
trabalho e renda, ora para melhorar a oferta de alimentos para a própria dieta
da família rural. Embora para o processo modernizante essa produção para
consumo familiar seja vista como um obstáculo aos ganhos de escala e da
intensificação produtiva, dentro dos crescentes cenários de insegurança ali-
mentar e nutricional parece que as atenções voltam-se para esse setor como
o melhor caminho para a busca de um sistema alimentar sustentável. De
192 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

acordo com Maluf e Menezes (2000), isto deve ocorrer devido às caracterís-
ticas que lhes são inerentes, uma vez que a agricultura familiar, pela maior
mobilidade na alocação dos fatores de produção disponíveis, consegue variar
entre os extremos de depender exclusivamente de transações no mercado
para sua reprodução social ou de recuar até o completo autoabastecimento.
Embora a mercantilização da agricultura tenha afastado progressi-
vamente os agricultores da produção para o autoconsumo, na agricultura
familiar ainda está presente a cultura da diversificação (mesmo que de forma
simbólica). Tal fato gera potencialidades a serem exploradas por programas
de desenvolvimento. Nesse sentido o debate da qualidade da alimentação
tem o potencial de desnudar a mudança das práticas e hábitos alimentares5
ocorridos nas últimas décadas, resgatando nos agricultores a preocupação
com a soberania alimentar e capacitando-os para a construção de mercados
alternativos.
Partindo-se do conceito de SAN, definido em 2004 na segunda Con-
ferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional promovida pelo
Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional:

O direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos


de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o
acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas
alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade
cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sus-
tentáveis (p. 81).

Podemos fazer os seguintes questionamentos: Os agricultores fami-


liares têm garantido o acesso regular e permanente a alimentos de qualida-
de? Têm preservado as práticas alimentares que respeitam a diversidade
cultural?

5
Entende-se por hábitos alimentares o que envolve os tipos de alimentos que costumam
fazer parte como componentes da dieta cotidiana e suas formas de preparação; práticas
alimentares referem-se ao número de refeições, os rituais que as envolvem, os níveis de
sociabilidade, marcadamente reduzidos pela refeição fora do domicílio e pelo abandono
da prática de a família sentar-se à mesa em conjunto para celebrar o ato alimentar
(Silveira; Guimarães, 2010).
A Erosão da Cultura Alimentar e os Desafios Para a Segurança Alimentar 193

De acordo com Belik (2012, p. 96), a utilização do conceito moderno


de Segurança Alimentar e Nutricional surgiu na “Conferência Internacio-
nal sobre Nutrição”, realizada em 1992 sob o patrocínio da Organização
das Nações Unidas (ONU) e que definiu um plano de ação direta para o
combate à fome ao redor do mundo. Segundo o autor supracitado, os docu-
mentos da Conferência também tratavam da qualidade do alimento e das
ligações entre nutrição e desenvolvimento agrícola. Ainda segundo o autor,
em 2003, com o lançamento do programa Fome Zero, começa-se a desenhar
uma proposta de política de segurança alimentar para o Brasil com vários
programas interligados, partindo-se de uma abordagem interdisciplinar para
explicar e intervir no fenômeno da fome, adotando-se uma estratégia mul-
tissetorial (Menezes; Santarelli, 2013, p. 14).
Segundo Leão e Maluf (2012, p. 14), a construção do Sistema Nacio-
nal de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan)6 “não foi uma decisão polí-
tica de um governo, mas sim um processo partilhado com a sociedade civil,
resultante de duas décadas de mobilização e luta social”. Nesse contexto
político, quando se busca restabelecer padrões alimentares mais saudáveis
e endógenos, o meio rural também precisa ser alvo de um olhar atento, visto
que não está isento da influência da modernização agrícola na transformação
da alimentação das famílias agricultoras.

EROSÃO CULTURAL ALIMENTAR: Resultado das Transformações no Rural


A preocupação política com a SAN deriva da análise das consequên-
cias do processo de mudança nos hábitos e práticas alimentares, geradas pelo
domínio da indústria sobre a alimentação. Para entendermos um pouco esse
processo, a evolução dos regimes alimentares apresentada por Friedmann
(1993) é ilustrativa. Segundo a autora, a evolução dos sistemas agroalimen-

6
Brasil. Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) Lei nº 11.346, de 15
de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
– Sisan com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras
providências.
194 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

tares modernos no mundo acompanhou a evolução do sistema de produção


capitalista, podendo-se identificar três períodos distintos denominados de
regimes alimentares.
O primeiro regime marcou a criação do mercado mundial de alimen-
tos e nasceu entre 1870 e 1914. Esse regime foi impulsionado pelo progres-
sivo desenvolvimento da produção capitalista europeia, a qual criou uma
crescente massa de trabalhadores urbanos e consumidores de alimentos
que deveriam ser ofertados pelo mercado, forçando a criação de medidas
para estimular a produção e as importações desde as colônias ultramarinas.
O segundo regime alimentar instituiu-se entre 1950 e 1970 e de
acordo com Friedmann (1993), é o período que estabelece forte relação
entre a agricultura nacional e a transnacionalização do capital. Esse regime
marca o desenvolvimento do imperialismo norte-americano sobre os países
pós-coloniais, com a industrialização seletiva, a internalização do modelo
industrial, o processo de Revolução Verde e uma agricultura voltada para
atender às demandas das cadeias de fornecimento globais.
O terceiro regime alimentar pode ser considerado ainda emergente
e deu os primeiros sinais a partir de 1980, com o processo de globalização e
completa internacionalização dos impérios alimentares:

... um conjunto complexo, multifacetado em expansão e cada vez


mais monopolista nas relações produção-distribuição-consumo
(uma rede coercitiva) que coloca processos, lugares, pessoas e
produtos em contato de uma forma específica (Van Der Ploeg,
2008, p. 279).

Trata-se de um momento de constituição da hegemonia da indústria


no sistema agroalimentar. Segundo a antropóloga Mabel Garcia Arnaiz, o
que caracteriza a industrialização do setor agroalimentar é

uma ruptura fundamental nas relações que os seres humanos


mantêm com seu meio, com seus alimentos e com o fato de
numerosas tarefas, que haviam sido feitas pelas donas-de-casa
em suas cozinhas, hoje serem feitas nas fábricas (Arnaiz, 2005,
p. 147).
A Erosão da Cultura Alimentar e os Desafios Para a Segurança Alimentar 195

A alimentação das famílias, que antes seguiam os conhecimentos


tradicionais de cada comunidade ou nação, quando as mães e avós eram as
responsáveis pela escolha cotidiana dos alimentos, passa a seguir os ditames
da indústria da alimentação e seus apelos à segurança (vista como inocuida-
de) e às vicissitudes da “dieta equilibrada” (Pollan, 2008).
A abordagem nutricional utilizada pela indústria alimentar baseia-se
na ênfase ao nutriente, ao invés do alimento, o que lhe permite desvin-
cular nutrientes dos alimentos que os contêm. Desta forma, gera-se uma
oferta de produtos diferenciados pela adição de um determinado nutriente
e possibilita-se à indústria alimentar um intercâmbio de fontes de nutrientes
(utilização de várias fontes de origem animal, vegetal ou sintetizadas indus-
trialmente), fazendo que os agricultores percam espaço como fornecedores
de alimentos.
Deste modo, utiliza-se uma abordagem mais restrita dos alimentos,
buscando-se desvincular a alimentação dos simbolismos culturais e sociais
com os quais ela sempre esteve envolvida (Poulain, 2004; Hernandez, 2005).
Como apontam Papaléo e Gutierrez (2009, p. 120), se por um lado persistem
os pratos típicos de cada nação, por outro eles sofrem uma metamorfose a
fim de se adaptarem à expansão e ao consumidor global e com isso perdem
sua peculiaridade.
As tecnologias de armazenamento, transporte, embalagens e pro-
cessamento (conservação artificial com uso de produtos químicos) possi-
bilitaram o advento da “comida global”. Papel relevante neste processo
assumiram as conquistas tecnológicas na área dos equipamentos voltados ao
preparo da alimentação que revolucionaram a cozinha doméstica e reduzi-
ram o tempo de preparo dos alimentos, além de estimularem novos hábitos
culinários em direção aos alimentos pré-processados, estes ofertados cada
vez em maior quantidade e variedade nos supermercados (Paulillo; Pessa-
nha, 2002; Arnaiz, 2005, 2007; Silveira; Guimarães, 2010).
Assim, estão dadas as condições de criação de um estilo de alimenta-
ção que ultrapassa todas as fronteiras, o fast food, condizente com a comen-
salidade contemporânea caracterizada pelas mudanças nas práticas e hábitos
alimentares, em que cumprem papel relevante as refeições fora de domicílio
196 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

e a redução do tempo para cozinhar, processo correlacionado com o aumento


da presença das mulheres no mercado de trabalho (Contreras, 2000; Silveira;
Guimarães, 2010).
Com a dieta contemporânea cada vez baseada em alimentos proces-
sados industrialmente em detrimento dos alimentos in natura,7 as indús-
trias adquirem o poder de induzir o consumo, por meio do uso maciço do
marketing, das facilidades oferecidas pela logística de distribuição (o produto
consegue chegar aos lugares mais distantes, aproximando-se dos consumi-
dores) e pela crescente oferta de alimentos “pré-prontos”, adequados a um
consumidor ávido por refeições rápidas e cômodas.
Deve-se salientar que sem a emergência de redes de supermerca-
dos globais, as quais passam a concentrar a comercialização de alimentos8
e a gerar novas opções de consumo, tal processo de generalização do ali-
mento-massa não teria alcançado os níveis atuais. Os supermercados têm se
demonstrado o local de aquisição da maior parte da alimentação, inclusive
pelos habitantes das zonas rurais, devido a sua capacidade de reduzir preços,
diversidade de produtos disponíveis e por representar um espaço que atrai
consumidores pela segurança e funcionalidade (estacionamento, espaços de
lazer, prestação de serviços), além de representar ao consumidor um gerador
de opções (Silveira; Guivant, 2012).9
A constituição deste terceiro regime alimentar tem produzido,
segundo Van der Ploeg (2008), três desconexões: a desconexão entre pro-
dução e consumo, a desconexão entre a produção agrícola e os agroecos-
sistemas e a mais radical desconexão, a ocorrida entre o alimento e seus
constituintes fundamentais. Sobre a terceira desconexão já comentamos

7
Aqui considerados aqueles alimentos que não passam por nenhuma etapa de proces-
samento, assumindo grande perecibilidade e advindos da agricultura sem passar pela
indústria alimentar.
8
Em 2005, as dez maiores redes de varejo do mundo eram responsáveis por um fatur-
amento de 840 bilhões de dólares, 24% do mercado global, estimado em 3,5 trilhões
de dólares e somente a rede Wal-Mart possuía 8% do faturamento bruto do mercado
varejista global (Oosterveer; Guivant; Spaargaren, 2007).
9
Segundo os autores, os supermercados buscam atrair consumidores para produtos que
eles não pretendiam comprar, seduzidos pelas estratégias de promoção e marketing.
A Erosão da Cultura Alimentar e os Desafios Para a Segurança Alimentar 197

anteriormente, quando mencionamos a fragmentação das fontes de alimento


em nutrientes e a sua recombinação sobre a orientação dos interesses da
indústria agroalimentar.
Sobre as outras duas desconexões, de forma sucinta deve-se salientar
sua relação com o conceito de erosão cultural alimentar que aqui adotamos.
Como já mencionado, a desvinculação do consumo alimentar da produção
em nível de unidade de produção, comunidade ou região, faz com que não
se dependa da capacidade produtiva e da disponibilidade de alimentos em
esfera local, pois o acesso ao alimento se dá via os grandes distribuidores (os
supermercados). Assim, abre-se a possibilidade de os agricultores não mais
produzirem seu próprio alimento. Pode-se preferir comprar toda a alimen-
tação e alocar os fatores de produção disponíveis para a produção de com-
modities, as quais significam ingresso monetário e contam com um conjunto
de facilidades, ausentes na produção de alimentos para consumo familiar.
A desconexão entre a produção agrícola e os agroecossistemas assume
materialidade quando as tecnologias desenvolvidas pela pesquisa agríco-
la permitem superar os limites naturais, sejam edáficos ou bioclimáticos,
generalizando a produção de algumas commodities pelas diversas regiões do
mundo. Duas consequências são evidentes: o estreitamento da base alimen-
tar caracterizada pela elevada redução da diversidade de alimentos presentes
na dieta contemporânea10 e a liberação dos consumidores das amarras que
os prendiam aos limites da disponibilidade de produção de alimentos em
âmbito local/regional.
Este processo atinge também os agricultores. Diante da pressão para
produzir os cultivos de valor comercial acabam direcionando todos os esfor-
ços e planejamento da propriedade para esses. Assim, há um progressivo
desligamento da agricultura familiar com os cultivos de autoconsumo, des-
vinculando a alimentação da produção. Esse fator é facilmente observado na

Segundo Pollan (2008), mais de dois terços das calorias consumidas diariamente vêm de
10

apenas quatro vegetais cultivados em escala mundial e vinculados aos grandes impérios
alimentares: milho, soja, trigo e arroz.
198 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

realidade estudada, pois por meio dos dados produtivos dos assentamentos
percebemos que a prioridade tem sido os cultivos comerciais, gerando-se
uma situação de insegurança alimentar ou de falta de soberania alimentar.
De acordo com os dados do Sigra, 72% das famílias produzem soja e
76,6% estão envolvidas com a atividade leiteira. Os Planos de Recuperação
dos Assentamentos (PRA), elaborados pela Emater-RS, demonstram um
avanço da produção leiteira nas áreas de soja nos assentamentos. Esse fator
pode ser considerado positivo se for analisada a questão da geração de valor
agregado por área e as possibilidades desse sistema ser desenvolvido com
vista à sustentabilidade, como apontam Machado e Balem (2012). Balem,
Secretti e Marostega (2011), no entanto, demonstram que a atividade lei-
teira nos assentamentos em JC é basicamente desenvolvida em sistemas
convencionais de produção, com alta demanda de mão de obra e custo de
produção. Assim, cabe a reflexão se a substituição da monoatividade soja
pela monoatividade leite11 em sistemas convencionais seria uma alternativa,
pois isso gera uma dependência dos quatro assentamentos diante de apenas
duas atividades produtivas, praticamente.
No escopo da nossa discussão o maior impacto dessas atividades
produtivas está relacionado à produção de alimentos. A atividade leiteira,
segundo as agricultoras que participaram do Grupo Focal, tem garantido
uma renda satisfatória às famílias envolvidas, o que influencia na compra
de alimentos em supermercados. Elas afirmaram que antes da expansão da
atividade leiteira no assentamento a produção era para o autoconsumo, mas
agora, como a maioria das famílias tem renda mensal com o leite, adquirem
mais alimentos.
Uma questão importante nessa discussão é a disponibilidade de
mão de obra nas famílias, pois de acordo com os dados do Sigra (2013) os
assentamentos de Júlio de Castilhos possuem em média 2,8 pessoas por
família. Essa questão é importante, pois com restrição de mão de obra é de
se esperar que as famílias priorizem os cultivos comerciais em detrimento

S egundo os Planos de Recuperação dos Assentamentos – PRAs – realizados nos


11

Assentamentos o leite é responsável pelo ingresso líquido de 60%, 53% e 57% dos
recursos nos assentamentos Santa Júlia, Ramada e Nova Ramada II, respectivamente.
Esse dado não consta no PRA do assentamento Alvorada.
A Erosão da Cultura Alimentar e os Desafios Para a Segurança Alimentar 199

da produção para o autoconsumo. Outro dado que corrobora com isso é o


número de pessoas que se identificam como agricultor(a) ou do lar, ou seja,
457, o que confere menos de duas pessoas por família envolvidas com as
atividades dos lotes.
Esse fator também foi abordado pelas agricultoras quando afirmam
que as atividades praticadas pelas famílias são altamente demandantes
de mão de obra, assim precisam priorizar o que traz renda. Elas decla-
raram que nas famílias nas quais os agricultores são mais velhos parece
que há uma maior produção para o autoconsumo. Essas famílias, mesmo
sem muito tempo e com pouca mão de obra, ainda carregam a cultura da
produção para alimentação da família. Já nas famílias em que os casais
são mais jovens, a presença de cultivos para o autoconsumo é menor.
Elas afirmam que as gerações mais novas não têm os mesmos hábitos
que os pais.
Outra relação que as agricultoras fizeram com as gerações mais
jovens é que estas não “vão perder o dia para produzir alimentos, pois podem
comprar tudo no supermercado”. Uma afirmação importante realizada pelas
agricultoras é que os filhos não são educados para serem agricultores e
aqueles que o são, acabam saindo do lote por falta de renda para garantir
a reprodução da família dos pais e a sua. A erosão da cultura alimentar, nos
assentamentos, segundo as agricultoras, parece ser maior com relação aos
produtos processados, tais como pães, bolachas, massas, doces, etc. Tanto
que algumas famílias que produzem alimentos processados artesanalmente
e in natura para comercialização têm também como público consumidor
seus vizinhos.
Cultivos considerados importantes para o autoconsumo não estão
presentes em todas as famílias. No Quadro 2 é possível observar o número
de famílias que produzem para o autoconsumo, separadas por produtos.
No universo de 265 famílias assentadas, cabe destacar que cem não criam
suínos e 85 não criam aves, o que significa que essas famílias praticamente
dependem da compra externa de carnes e ovos. Cultivos importantes e
intrínsecos da agricultura familiar, como frutíferas e hortícolas, também
merecem destaque, pois não há pomar em 71 famílias e 107 não possuem
horta.
200 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

Quadro 2 – Produção para autoconsumo representada pelos produtos e número de


famílias que produzem e porcentagem de famílias que não produzem
Produto/cultivos/criações Número de famílias Porcentagem de famí-
que produzem lias que não produzem
Suínos 165 37,7
Aves 182 31,3
Massa 3 98,9
Panificados 170 35,8
Processados de leite 112 57,7
Chimias, geleias, doces e conservas 125 52,8
Batata inglesa 6 97,7
Batata doce 128 51,7
Mandioca 172 35,1
Pomar 194 26,8
Horta 158 40,4
Feijão 103 61,1
Amendoim 16 94,0
Pipoca 4 98,5
Trigo 3 98,9
Fonte: Sigra, 2013.

Os agricultores ao serem meramente produtores de mercadorias têm


o “ser agricultor” modificado. Nesse processo, observamos que tanto na
agricultura familiar como nos assentamentos de reforma agrária, muitos agri-
cultores vivenciam o que chamamos “Erosão Cultural Alimentar”:

O processo de simplificação da dieta pelo abandono da produção


para subsistência gera o que denominamos de erosão cultural
alimentar, definida como a perda gradativa de uma alimentação
variada, mais complexa nutricionalmente e alicerçada na cultura
do agro e a adoção de práticas e hábitos alimentares urbanos
(Balem; Silveira, 2005, p. 4).

A pressão da agricultura moderna transformou os agricultores em


produtores de mercadorias, assim a cultura atrelada ao saber-fazer agrícola
foi sendo considerada sem importância e, em muitos casos, impeditiva para a
modernização, ocorrendo assim uma desagregação da agricultura como uma
“cultura do Agro” (Balem; Silveira, 2002). A introdução de uma agricultura
“científica” impôs como referência para a decisão e ação do agricultor os
A Erosão da Cultura Alimentar e os Desafios Para a Segurança Alimentar 201

conhecimentos gerados nos centros de pesquisa traduzidos em produtos


(insumos químicos ou mecânicos), os quais, aliados a um conjunto de reco-
mendações sobre quais práticas agrícolas adotar, leva a uma dependência do
agricultor diante daqueles que “dominam” tais conhecimentos.
Neste contexto, o saber do agricultor construído no “fazer” agrícola
não é mais a referência para superar os desafios da chamada agricultura
moderna. Por outro lado, a especialização numa determinada atividade passa
a ser sinônimo de capacitação crescente e a diversificação de atividades a
ser vista como uma dispersão de esforços e menor qualificação na atividade
principal no tocante à renda da unidade de produção.
Outro processo altamente impactante na cultura dos agricultores é
a absorção do ideário urbano pelo rural. As características do atual regime
alimentar, em que os alimentos industriais não têm mais fronteira, também
alcançam o rural, facilitados pelo desenvolvimento dos meios de transporte
e propagandeados pelos meios de comunicação. O que pode ser visto como
positivo, o rompimento do isolamento do rural, parece ter impactado seve-
ramente a cultura rural num processo de rápida absorção do consumo de
mercadorias modernas. Nesse sentido, o agricultor figura como consumidor
potencial dos bens urbanos, entre os quais a alimentação.
As agricultoras assentadas afirmaram que a “modernidade” é tanta
que é necessário os agricultores acompanhar, senão ficam para trás. Assim,
para determinadas famílias, consumir produtos industrializados é sinôni-
mo de progresso e o contrário de atraso. Outra questão levantada pelas
agricultoras é a distinção social pelo consumo. Assim, os agricultores que
consomem mais produtos industrializados “são melhores” e “mais compe-
titivos”. Trata-se de critérios de distinção social. Para Bourdieu (2007), os
sujeitos sociais distinguem-se entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar,
o que exprime a sua condição social. O autor afirma que os alimentos não
fogem a essa regra de distinção social, assim a sociedade constrói uma antí-
tese entre a quantidade e a qualidade, a grande “comilança” e os quitutes,
o conteúdo e a forma.
Interpretando a realidade dos agricultores, a partir de Bourdieu
(2007), para os agricultores produzir o que consomem significa não ter pro-
gredido socialmente; portanto, mesmo que subjetivamente, há uma neces-
202 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

sidade de se afirmar como ser que ascendeu socialmente, participando dos


mercados globais mediante a compra de produtos, inclusive alimentos. Para
isso, necessita-se romper com a cultura alimentar que evoluiu juntamen-
te com os agricultores, considerada atrasada, para assumir como cultura
moderna e “boa”, a alimentação industrial.
Entre a questão da distinção social e a necessidade de se modernizar
somam-se outros dois importantes fatores discutidos pelas agricultoras no
Grupo Focal: a capitalização das famílias, com consequente aumento do
poder aquisitivo, e a facilidade de deslocamento para a cidade. No início
do processo de estabelecimento dos assentamentos de reforma agrária, as
famílias não tinham como ir à cidade para comprar com frequência, pois o
poder aquisitivo era baixo, não tinham carro próprio e os transportes cole-
tivos eram precários, dessa forma eram obrigados a produzir a maior parte
dos alimentos. Hoje um grande número de famílias possui carro e as linhas
de transporte dos assentamentos para a cidade são diárias e de relativa qua-
lidade.
Ainda há que ser considerada a incompatibilidade de alguns culti-
vos comerciais praticados pelos agricultores com a cultura alimentar local.
Algumas mercadorias agrícolas não são alimentos, como o caso da produção
de fumo e outras commodities, que até podem ser utilizadas como alimentos,
mas são estranhas às dietas locais. No recorte de estudo estabelecido para
esse ensaio a maior área cultivada nos assentamentos é coberta com a cultura
da soja. No caso dos assentamentos de JC são 2.080,8 hectares cultivados
com a soja, totalizando aproximadamente 39% do total da área ocupada com
os assentamentos. Embora existam muitos alimentos preparados a partir
deste vegetal, eles não fazem parte da cultura alimentar brasileira, com
exceção de alguns produtos processados industrialmente, como o óleo e a
margarina, introduzidos pela indústria alimentar e substitutos de alimentos
endógenos, a gordura animal (banha de porco) e manteiga.
As consequências desse processo de erosão cultural alimentar é a
modificação do ser agricultor e o estreitamento da base alimentar das famí-
lias, o que as coloca em uma dependência da compra de alimentos externos,
de menor qualidade e processados industrialmente. Outro agravante é o
impacto na reprodução social das famílias, pois grande parte do ingresso
monetário das propriedades é gasto com aquisição de alimentos que pode-
A Erosão da Cultura Alimentar e os Desafios Para a Segurança Alimentar 203

riam ser cultivados. O gasto monetário e a dependência dos agricultores em


relação à compra dos alimentos os colocam em uma situação de vulnerabili-
dade. Por outro lado, o gasto com alimentos poderia ser investido em outros
setores da propriedade ou no bem-estar da família.
Segundo Grisa e Schneider (2008), a produção para o autoconsumo é
de extrema relevância, pois é uma fonte de renda não monetária, o que efe-
tivamente auxilia na melhoria das condições de vida, na segurança alimentar
e no combate à pobreza rural. Gazolla (2004) afirma que a produção para o
autoconsumo reduz a vulnerabilidade e insegurança alimentar das famílias
de agricultores, dialogando diretamente com a soberania das famílias. No
tocante à soberania alimentar o resgate dos valores que dão identidade aos
agricultores parece ser um caminho importante para que estes continuem
agricultores.

AS POSSIBILIDADES DE RETENÇÃO DA EROSÃO CULTURAL ALIMENTAR


Desde a virada do século, têm crescido os estudos sobre a emergência
do padrão alternativo que se contrapõe ao modelo alimentar industrial, pro-
pondo novas formas de organização de produção, as quais são denominadas
de “Alternative Agro-Food Networks” (AAFNs) (Goodman, 2003). As discus-
sões em torno das AAFNs complementa um renovado interesse no local,
baseado em práticas alimentares alternativas socialmente incorporadas.
Neste nível, imersão, confiança e local são conceitos-chave do movimento
Quality Turn (“virada” da qualidade) em práticas alimentares (Goodman,
2003).
Os sistemas alimentares alternativos são baseados em espaços des-
centralizados, ecologicamente aterrados e em consonância com as prerro-
gativas do desenvolvimento territorial e sustentável (McMichael, 2009;
Morgan, 2010). Assim, criam-se novas convenções de qualidade nas quais
os elementos sociais, culturais, territoriais e de saúde compõem um sistema
de qualidade, em que se resgata o conceito de segurança alimentar que
havia sido abandonado nas três décadas finais do século 20 em virtude do
imperativo da quantidade ofertada.
204 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

A emergência de um sistema agroalimentar alternativo representa


uma possibilidade de os agricultores familiares retomarem a rota da produ-
ção de alimentos e reafirmarem a sua identidade de agricultor, pois estariam
produzindo alimentos e não produtos agrícolas, para um mercado local e com
identidade, e não impessoal. As agricultoras participantes do Grupo Focal
abordaram essa questão, embora de forma empírica, pois as afirmações: “está
na hora de revalorizar os alimentos que são realmente “bons”; os produtos que as
agricultoras fazem têm mais sabor; o agricultor tem que voltar a produzir alimen-
tos; há uma grande demanda no urbano por produtos coloniais e os agricultores têm
que aprender a explorar esse mercado”; revelam que há uma compreensão da
cultura alimentar industrial como negativa e surge uma predisposição para
construir um modelo agroalimentar alternativo, o qual retome a produção
de alimentos como o centro da ação do agricultor familiar.
Para fazer frente ao modelo agroalimentar moderno é necessário
fazer um movimento de relocalização baseado em connecting, embedding e
intertwining12 (Wiskerke, 2009). Nesse sentido, a qualidade da alimentação
no escopo do conceito quality turn e a segurança alimentar e nutricional
precisam fazer parte de um diálogo permanente da sociedade. Abordamos
esse debate, pois visualizamos a narrativa alternativa dos alimentos como
uma possibilidade de os agricultores familiares, assentados ou não, resga-
tarem a cultura alimentar perdida e preservarem aqueles hábitos, cultivos
e criações que ainda praticam. Isso significaria também um processo de
reenraizamento do ser agricultor.
As agricultoras em muitos momentos afirmaram que um dos maiores
responsáveis pelos problemas do assentamento e da erosão da cultura ali-
mentar das famílias é o cultivo de soja e a alta especialização na produção
leiteira. Uma agricultora ressaltou que a única possibilidade de mudar a
atual conjuntura de insegurança alimentar dos assentamentos é os agri-
cultores voltarem a produzir alimentos e não soja. As agricultoras afirma-
ram que enquanto há essa contracultura enraizada entre os agricultores de
que comprar alimentos industrializados é o ideal, o meio urbano privilegia

As expressões connecting, embedding e intertwining podem ser traduzidas como conexão,


12

enraizamento e entrelaçamento.
A Erosão da Cultura Alimentar e os Desafios Para a Segurança Alimentar 205

os alimentos considerados coloniais. Afirmam que tudo o que produzem


e levam até a cidade vendem. Na visão das agricultoras há uma grande
demanda, porém não organizada no município, de alimentos coloniais, tais
como panificados, processados de leite, frutas, verduras, doces, compotas e
geleias. Essas questões levantadas por elas, principalmente a demanda de
produtos de origem local, vem ao encontro da defesa de Wiskerke (2009) da
necessidade de sistemas alternativos conectados, enraizados e entrelaçados
culturalmente no local, com fortes relações entre a produção e o consumo.
Nesse sentido, as agricultoras apontam alguns programas e ações,
os quais vivenciam nos assentamentos como primordiais para se discutir
outra via da produção da agricultura familiar, tais como: o Programa de Ali-
mentação Escolar; a organização de um grupo para produzir hortaliças para
comercialização; a presença de várias agricultoras que fazem panificados
para comercializar e um trabalho de resgate da cultura alimentar realizado
pela Emater-RS no ano de 2013. Elas alertam que essas ações têm aberto
um diálogo no assentamento que até pouco tempo não existia e afirmam
que talvez a saída seja um trabalho no sentido de desmistificar a agricultura
moderna, como a salvadora da agricultura familiar e construir alternativas
de produção, comercialização e geração de renda a partir da diversificação
da produção.
A presença de uma discussão em prol dos sistemas alternativos
parece ser um caminho importante. O desenvolvimento desses sistemas
provocaria uma reconexão, um reenraizamento e um reentrelaçamento da
agricultura familiar com a cultura alimentar local, gerando novos mercados
como alternativas de renda, o que indiretamente impactaria na produção
para o autoconsumo, posto que as famílias estariam se dedicando para pro-
duzir alimentos e não meramente produtos comerciais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quatro parecem ser os fatores fundamentais que ocasionam a erosão
da cultural alimentar: a pressão modernizante, em que o tradicional é sinô-
nimo de atrasado e o industrial de moderno; a diminuição da mão de obra
206 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

presente na agricultura familiar; a distinção social que as famílias acreditam


possuir por meio do consumo, e a facilidade de compra pelo aumento do
poder aquisitivo e fácil acesso ao meio urbano.
A erosão cultural alimentar implica quatro processos importantes na
agricultura familiar. Em primeiro lugar separa o agricultor da cultura rela-
cionada ao agro e o transforma em produtor de mercadorias. Nesse sentido,
talvez algumas questões mereçam maior aprofundamento e podem fazer
parte de uma agenda de pesquisa, tais como a mudança ou a erosão da
relação com natureza, a perda de vínculos afetivos com o rural e a sucessão
familiar completamente desvinculada da produção de alimentos.
Em segundo lugar, a erosão cultural alimentar compromete a sobe-
rania alimentar, a qual sempre esteve na essência da agricultura, ao deixar
os agricultores dependentes da compra externa de alimentos. Em terceiro
lugar, compromete a qualidade da alimentação da família, pois substitui
alimentos processados artesanalmente e in natura, por produtos industriais.
E por último provoca um processo de perda de cultura, de saber fazer, de
receitas, de hábitos e de identidade. Na reversão desses processos, porém,
está a essência da construção de um sistema agroalimentar alternativo e
talvez os debates atuais em prol da emergência de um regime alimentar
enraizado, conectado e entrelaçado sejam o caminho para a retenção deste
processo de erosão cultural alimentar.

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A(S) RURALIDADE(S) NAS POLÍTICAS
PÚBLICAS BRASILEIRAS
Limites e Possibilidades Para o Rural Contemporâneo

Silvia Aparecida Zimmermann


Karina Yoshie Martins Kato
Catia Grisa

Desde o final dos anos 90 do século 20 o tema da ruralidade brasilei-


ra tem sido objeto de novas reflexões, incorporando na análise elementos
relacionados às crescentes inter-relações entre rural e urbano, às dinâmicas
dos territórios, à diversificação das formas de trabalho e de renda no meio
rural, à diversidade de atores e suas formas organizativas, às diversas funções
que a agricultura e o meio rural podem desempenhar e à compreensão do
meio rural como um “espaço de vida” (Wanderley, 2009). Deste debate,
ao menos três consensos acadêmicos sobre a ruralidade brasileira parecem
ter sido construídos ao longo do tempo, ainda que com divergências sobre
como agir diante de tais evidências e com poucas recupercussões políticas
e institucionais.
O primeiro consenso refere-se ao reconhecimento de que “nem todo
o urbano é urbano”. A discussão aqui recai sobre os critérios de definição do
urbano e, em contrapartida, do rural nas estatísticas oficiais dos países. Isso
traz como consequência a superestimação das taxas de urbanização no país,
atribuindo ao urbano um peso maior nas estatísticas do que ele representa
na realidade. Ao considerar as sedes municipais e distritais como perímetro
urbano, o rural acaba sendo definido por exclusão. Essa definição remonta
às décadas de 40-50, que foi o período no qual o Estado brasileiro adotou a
definição do urbano. O rural fica definido, portanto, por oposição às áreas
214 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – K a r i n a Yo s h i e M a r t i n s K a t o – C a t i a G r i s a

consideradas urbanas. Adicionalmente, desde essa época, como o fenômeno


da urbanização era associado à industrialização e à modernidade, o rural
ficou associado à agricultura e ao atraso (Delgado et al., 2013). Um outro
aspecto recai sobre as classificações dicotômicas entre rural e urbano e o
entendimento de que um acaba nos limites em que o outro se inicia. Críti-
cas destacam que essa classifiação não daria conta das complexas relações e
processos que caracterizam os espaços rurais e urbanos, o que, em alguma
medida, impulsionou uma discussão recente sobre territórios e desenvolvi-
mento territorial.
O segundo consenso refere-se ao reconhecimento de que nem todo
o rural é agrícola, o que chama a atenção para os riscos e as imprecisões
derivados da atribuição de um corte setorial ao rural. Como observam
Delgado et al. (2013), estudos alertam para o fato de estarmos vivencian-
do atualmente o surgimento e a valorização da ruralidade resultado dos
seguintes fatores: aumento da preocupacão com a conservação do patrimônio
natural; instalação de outras atividades econômicas e de outros interesses
sociais que não se resumem à agricultura; valorização do patrimônio imaterial;
atribuição e valorização de novas funções para o meio rural, etc. Diversas
pesquisas também passaram a ressaltar a expansão de construções rurais com
o fim de moradia (chácaras e sítios de lazer) para os chamados “neorurais”
ou à população “menos favorecida”; o crescimento da oferta de serviços no
meio rural (comércio, restaurantes, serviços auxiliares, prestação de serviços,
etc.); o desenvolvimento de atividades de turismo e de lazer; a forte pre-
sença da indústria de transformação e de construção civil; a recorrente con-
cialiação de rendas agrícolas e não-agrícolas nas estratégias de reprodução
social, e as “novas” funções que o rural e a agricultura podem desempenhar,
como a conservação da natureza, a manutenção das paisagens, o fortaleci-
mento da cultura e dos saberes locais, etc. (Wanderley, 2009).
O terceiro consenso diz respeito à constatação da marcante diversida-
de característica da ruralidade brasileira contemporânea, que é reflexo das
distintas relações estabelecidas entre sua população e os recursos naturais,
das características edafoclimáticas de seus biomas, da presença notável de
uma grande diversidade de atores sociais e culturas, das diferentes relações
que são estabelecidas entre rural e urbano, da trajetória de distintos projetos
de desenvolvimento direcionados a essas áreas pelo Estado, bem como dos
A(s) Ruralidade(s) nas Políticas Públicas Brasileiras 215

variados fluxos e “referênciais globais” que são disseminados por organi-


zações mediadoras, como o Banco Mundial, normalmente sob a forma de
boas práticas (Delgado et al., 2013; Wanderley; Favareto, 2013). Não que
esta diversidade seja uma característica apenas da sociedade contemporânea,
contudo o que chama a atenção é a recente visibilidade que grupos sociais e
atividades produtivas rurais têm conseguido angariar no cenário político, o
que tem se refletido num crescente reconhecimento político e institucional
de suas particularidades e direitos. Para além da agricultura patronal e da
agricultura familiar, destacamos a presença de diferentes povos e comu-
nidades tradicionais cujas ações cotidianas e práticas produtivas e sociais
constroem o território e, portanto, as diferentes ruralidades que representam
o meio rural brasileiro.
O rural, portanto, deve ser compreendido como uma categoria
histórica (Wanderley; Favareto, 2013; Wanderley, 2009), objeto de disputa e
reflexo de relações de poder estabelecidas entre atores durante sua trajetória
contínua de construção e desconstrução do território. Assim, similarmente
a Wanderley e Favareto (2013, p. 415), concebemos a ruralidade enquanto
“a forma como se organiza a vida social, levando em conta, especialmente, o
acesso aos recursos naturais e aos bens e serviços da cidadania; a composição
da sociedade rural em classes e categorias sociais; os valores culturais que
sedimentam e particularizam os seus modos de vida.”
Se as discussões iniciadas nos anos 90 conseguiram construir alguns
consensos sobre a diversidade do rural no plano acadêmico, não podemos
transpor a mesma afirmação para o plano das políticas públicas. Ainda que
com alguns avanços significativos consolidados nos tempos mais recentes,
alguns estudos alertam que as políticas públicas voltadas para o meio rural
têm mantido um forte viés setorial que limita o desenvolvimento rural ao
desenvolvimento agrícola (Delgado et al., 2013; Leite, 2013; Favareto,
2010).
Tendo em vista essa constatação, este texto pretende problematizar a
forma como o meio rural vem sendo identificado, incorporado e interpretado
nas políticas públicas, ressaltando a capacidade (ou não) dos seus instrumen-
tos para reconhecer e potencializar a diversidade social, ambiental, cultural
e econômica das áreas rurais no cenário contemporâneo. Para esta análise
216 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – K a r i n a Yo s h i e M a r t i n s K a t o – C a t i a G r i s a

pesquisamos seis políticas públicas,1 quais sejam: Programa Nacional de


Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf); Programa Nacional de Ali-
mentação Escolar (Pnae); Programa de Criação de Assentamentos Rurais;
Plano Nacional de Banda Larga (PNBL); Programa Nacional de Acesso ao
Ensino Técnico e Profissional (Pronatec); Programa Minha Casa, Minha
Vida Rural (PMCMV Rural). Estas políticas estão presentes no Plano Pluria-
nual 2012-2015, algumas delas de caráter universal e outras especificamente
direcionadas para áreas rurais.
A apresentação deste texto foi organizada em mais três seções. A pri-
meira apresenta algumas características das politicas públicas selecionadas.
A seguinte procura revelar o modo como o rural é incorporado e compreen-
dido por estas ações públicas. E, por fim, são apresentadas algumas con-
siderações sobre as políticas públicas pesquisadas e a ruralidade brasileira.

BREVE CARACTERIZAÇÃO DE SEIS POLÍTICAS PÚBLICAS SELECIONADAS


Entre as políticas selecionadas, a mais antiga é o Pnae, que teve
início na década de 50 com a Campanha Nacional de Alimentação Escolar.
Em 1979 o Programa passou a denominar-se Programa Nacional de Alimen-
tação Escolar (Pnae), assumindo um caráter mais amplo e disseminando-se
por todo o território nacional. Seu objetivo era “proporcionar suplementação
alimentar aos escolares do primeiro grau matriculados nos estabelecimentos

1
O presente texto fundamenta-se em reflexões e evidências no âmbito do Projeto de
Pesquisa “Repensando o conceito de ruralidade no Brasil: implicações sobre as políticas públi-
cas”, fruto da parceria entre o Fórum de Desenvolvimento Rural Sustentável (DRS)
do Instituto Interamericano para Cooperação na Agricultura (IICA), o Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA) – por meio da Secretaria de Desenvolvimento Terri-
torial e do Núcleo de Estudos Agrários (Nead) –, o Banco do Nordeste do Brasil (BNB),
o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Projeto de Pesquisa buscou ampliar a
discussão sobre a diversidade e as múltiplas dimensões do meio rural contemporâneo,
culminando na construção de uma tipologia atualizada dos espaços rurais, que consid-
ere os avanços conceituais da temática da ruralidade e da territorialidade no âmbito da
academia, dos gestores públicos e dos movimentos sociais. Os relatórios desta pesquisa
compõem volumes da Série Desenvolvimento Rural Sustentável do IICA.
A(s) Ruralidade(s) nas Políticas Públicas Brasileiras 217

de ensino público e aos pré-escolares, através do fornecimento de uma refei-


ção de valor nutricional equivalente a 15% das recomendações nutricionais
diárias durante o ano letivo” (Peixinho; Abranches; Barbosa, 2010).
Após várias mudanças institucionais, nos dias de hoje o Pnae tem
se destacado por beneficiar todos os alunos da Educação Básica (Educa-
ção Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação de Jovens
e Adultos) matriculados em escolas públicas, filantrópicas e em entidades
comunitárias (conveniadas com o poder público). Em 2014 foram aplicados
R$ 3,5 bilhões, para beneficiar 43 milhões de estudantes da Educação Básica
e de Jovens e Adultos (Brasil, Ministério da Educação, 2012).
No que concerne ao meio rural, o Pnae não traz nenhum tratamen-
to específico, exceto o valor per capita diferenciado que é repassado para
escolas indígenas e quilombolas. Desde os anos 90, porém, começaram a
emergir iniciativas de aquisição governamental de produtos de agricultores
das áreas rurais situadas no entorno das escolas ou do município/região para
a alimentação escolar. Estas iniciativas “tomaram corpo” e se massificaram
com uma importante mudança institucional ocorrida no Programa em 2009,
a partir da Lei nº 11.947, de 16 de junho. Esta Lei instituiu a aplicação de,
no mínimo, 30% dos recursos totais repassados pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE) na aquisição de gêneros alimen-
tícios diretamente da agricultura familiar. Trata-se de uma mudança com
expressivas repercussões para a ruralidade brasileira, seja no que respeita
à garantia de mais um mercado institucional para a agricultura familiar e a
sua amplitude, seja em termos de reconhecimento e de ressignificação da
categoria social, redefinição de modelos de produção e consumo (com suas
possíveis repercussões na estrutura agrária das diversas regiões brasileiras),
e sinergias ao desenvolvimento local/territorial.
A segunda política mais antiga estudada é a política de reforma
agrária e criação de assentamentos rurais. A reforma agrária no Brasil tem
sido uma promessa historicamente adiada (Fernandes; Welch; Gonçalves,
2012). A concentração da estrutura fundiária do Brasil é antiga e remete ao
processo de colonização do território pelos portugueses (Buainain, 2003;
Delgado, 2005; Fernandes; Welch; Gonçalves, 2012), permanecendo into-
cada (e incrementada) ao longo do processo de modernização da agricultura
que teve início nos anos 50.
218 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – K a r i n a Yo s h i e M a r t i n s K a t o – C a t i a G r i s a

O primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária (1º PNRA) foi aprova-


do pelo Decreto nº 91.766, de 10 de outubro de 1985, e foi alvo de inúmeras
críticas (Monte, 2013; Fernandes; Welch; Gonçalves, 2012; Delgado et al.,
2013). Em meio à controvérsias, a reforma agrária recebeu nova atenção com
a criação do 2º PNRA, em 2003/2004. Não obstante as distintas experiências
de gestão da estrutura agrária nacional e de enfrentamento de sua concen-
tração, a questão agrária ainda se mantém bastante atual e urgente para a
sociedade brasileira. A pesquisa aqui realizada identificou que ao longo do
tempo, o Programa de Criação de Assentamentos Rurais foi sendo modifica-
do e adaptado de forma a incorporar em seus instrumentos parte das críticas
e demandas da sociedade civil organizada e as mudanças pelas quais passou
o mundo rural. Não obstante isso, todavia, o avanço da política de reforma
agrária tem esbarrado em certos limites dados pelo modelo macroeconômico
adotado, pelo avanço (e pela importância política e econômica) do agrone-
gócio, por outras questões mais conjunturais, como foi a crise dos alimentos
de 2008, e questões operacionais, como a excesso de burocracias e a lentidão
dos processos judiciais de desapropriação (Delgado, 2005).
Similarmente à política de criação de assentamentos rurais, o Pronaf
tem como foco de atuação exclusivamente as áreas e a população rurais.
Criado em 1995, o Pronaf é a primeira política nacional direcionada espe-
cificamente para a categoria agricultura familiar. Até então não existiam
políticas com abrangência nacional voltadas ao atendimento exclusivo deste
segmento social, tratando-se de experiências regionalizadas que buscavam a
inserção deste público na modernização da agricultura ou referiam-se a polí-
ticas de combate à pobreza rural. Deste modo, a criação do Pronaf marcou
o reconhecimento do Estado brasileiro a esta categoria social – que era até
aquele momento reconhecida por termos estereotipados como “pequeno
agricultor”, “produtores de baixa renda” ou “agricultores de subsistência”
– e legitimou a reivindicação dos movimentos sociais e sindicais dos traba-
lhadores rurais por políticas diferenciadas de desenvolvimento rural que
contemplassem as suas especificidades.
Este programa ressignificou elementos da ruralidade brasileira ao
considerar a importância econômica e social da agricultura familiar; ao
apostar no desenvolvimento a partir dos pequenos municípios rurais e ao
contribuir para a valorização do meio rural como “lugar de trabalho e de
A(s) Ruralidade(s) nas Políticas Públicas Brasileiras 219

vida” a partir do incremento das possibilidades de reprodução social das


famílias rurais. Inicialmente organizado em quatro linhas visando a con-
templar várias dimensões do desenvolvimento rural, atualmente o Pronaf
expressa-se como um programa de crédito rural para a agricultura familiar.
Trata-se da política agrícola para a categoria social de maior envergadura em
termos de recursos aplicados e agricultores beneficiários.
O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) surgiu em 2009,
para atender a uma demanda reprimida por habitação social no país, com-
preendendo o Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU) e o Pro-
grama Nacional de Habitação Rural (PNHR). O processo que tornou este
problema social foco de uma política pública específica é assentado em uma
história de reivindicações, que se confunde com a história de formação dos
municípios brasileiros, evidenciando principalmente exigências relacionadas
ao acesso à propriedade, tanto em áreas urbanas quanto rurais. Embora o
PMCMV também incluísse o meio rural, por meio do PNHR, apenas em
2011, após a criação da Superintendência Nacional de Habitação Rural na
Caixa Econômica Federal (CEF), a área rural passou a ser foco de um pro-
grama específico.
Para isso, foram necessárias mudanças nas regras do programa, volta-
das às especificidades do meio rural. Conforme Brasil (2013, p. 148-149), o
Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE) contratou entre 2011
e 2012 cerca de R$ 151,6 bilhões para aquisição, reforma ou construção de
novas moradias, o que correspondia a 72% a mais do previsto para o período,
representando mais de 890 mil famílias beneficiadas em todo o país. Os
investimentos governamentais contratados no período citado equivalem a
36 bilhões de reais. Neste universo, os contratos na área rural chegaram a
109 mil unidades, sugerindo que o meio urbano tem uma participação maior
no programa do que o meio rural.
Recentemente, em 2010, surgiu o Programa Nacional de Banda
Larga (PNBL), sob tutela do Ministério das Comunicações (MC), com obje-
tivo de ampliar a infraestrutura e os serviços de telecomunicações, a partir
de melhores condições de oferta de preços, cobertura e qualidade do sinal.
Com a revolução das telecomunicações nos tempos atuais, estar conectado
tem se tornado uma condição importante, tanto para os habitantes do meio
urbano como do meio rural, para produzir e circular conhecimento, para
220 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – K a r i n a Yo s h i e M a r t i n s K a t o – C a t i a G r i s a

acessar políticas públicas; e para se municiar de informações que permitam


melhores negociações no mercado. Em tempos recentes, a “inclusão digital”
tem se tornado grandemente uma condição de cidadania.
Expandir e melhorar o sinal de Internet foi um compromisso assumi-
do pelos países que participaram da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da
Informação (CMSI), em 2003 e 2005, e no caso brasileiro, houve também
uma determinação governamental que vinculou o Programa à Presidência
da República. Buscando fundamentalmente baratear os custos do uso das
telecomunicações no país, o PNBL prevê ações de médio e longo prazos,
para ampliação da área cabeada com fibra óptica, construção de novas linhas
e uso de vias ópticas sob domínio da União parcialmente ociosas. O PNBL
comporta uma ação voltada especificamente para a área rural, o Programa
Nacional de Telecomunicações Rurais, instituído pela Portaria do MC nº
431/2009.
Outra política pública recente analisada é o Programa Nacional de
Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), criado em 2011, voltado
para a ampliação do acesso ao Ensino Técnico e Profissional. O Projeto de
Lei número 1.209, que criava o Programa, tinha como objetivo ampliar a
profissionalização e o público beneficiário dos cursos técnicos, por meio da
concessão de bolsas aos estudantes, do financiamento do acesso ao sistema
S e da expansão das vagas em escolas públicas. O Pronatec opera por meio
de variados instrumentos, como a ampliação das vagas e expansão da rede
federal de educação profissional, científica e tecnológica; o fomento à
ampliação de vagas e à expansão da rede estadual de educação profissional;
o incentivo à ampliação de vagas e à expansão da rede física de atendimento
dos serviços nacionais de aprendizagem, etc.
Quando se trata do meio rural, o Pronatec possui a modalidade Pro-
natec Campo, ofertado no âmbito do Programa Nacional de Educação do
Campo (Pronacampo), a partir de 2012. Por meio de uma parceria do MDA
com o MEC, foi criado o Bolsa-Formação Pronatec Campo, com financia-
mentos ofertados a cursos de educação profissional e tecnológica para os
públicos da agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais e grupos
da reforma agrária. O Pronatec Campo define como seu público beneficiário
A(s) Ruralidade(s) nas Políticas Públicas Brasileiras 221

um amplo e diversificado universo composto por: agricultura familiar, povos


e comunidades tradicionais e mulheres do campo, da floresta e das águas,
compreendendo os segmentos da agricultura familiar tradicional, campone-
ses, acampados, assentados da reforma agrária, povos de terreiro, ciganos,
quilombolas, açorianos, atingidos por barragens, mineradoras e hidrelétricas,
extrativistas, seringueiros, quebradeiras de coco, fundos de pasto, faxina-
lenses, pescadores artesanais, ribeirinhos, aquicultores familiares, caiçaras,
marisqueiros, retireiros, torrãozeiros, geraizeiros, vazanteiros, pomeranos,
pantaneiros, catingueiros, dentre outros2 (Brasil, 2013).
É importante destacar que as políticas analisadas apresentam
características, estruturas e tempos de existência distintos (cf. Quadro). Essa
forte diferenciação entre as políticas também se expressa na disparidade de
materiais encontrados sobre cada uma delas, bem como influencia o tipo de
análise que pode ser realizada em relação a elas. Algumas das políticas ainda
são muito recentes, com menos de 5 anos, ao passo que outras já possuem
mais de 30 anos.

Quadro 1 – Quadro-síntese das seis políticas públicas analisadas


Assentamentos Pronaf Pnae PMCMV Banda Pronatec
Larga
Ano de 1985 (IIPNRA 1996 1979 2009 2010 2011
criação em 2003/04)
Exclusiva Sim Sim Não Não Não Não
rural
Diferen- Não se aplica Não se Sim Sim Sim Sim
ciado para aplica Lei nº. Programa Programa Pronatec
rural 11.947 de Minha Casa Nacional de Campo
2009 Minha Vida Telecomu- (Prona-
Rural nicações campo)
Rurais

2
Os termos citados expressam como alguns grupos sociais se reconhecem. Por exemplo,
faxilanenses são grupos sociais que compõem territórios específicos das regiões Centro
e Centro-Sul do Estado do Paraná; retireiros são povos que vivem às margens do Rio
Araguaia, região entre Mato Grosso e Tocantins; geraizeiros são populações tradicionais
que vivem nos cerrados do norte do Estado de Minas Gerais; vazanteiros são populações
que habitam as ilhas e barrancos de rios como São Francisco, Tocantins e Araguaia.
Estes termos têm a ver com a forma com que estas populações se relacionam entre si,
e, também, com as relações que estabelecem com a natureza.
222 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – K a r i n a Yo s h i e M a r t i n s K a t o – C a t i a G r i s a

Público Trabalhadores Agriculto- Agricultores Agricultores Populações Jovens e


beneficiário sem terra, res Fami- Familiares, familiares e localizadas traba-
agricultores liares empresas população em áreas lhadores
familiares do Sistema urbana com rurais e com
com pouca Agroali- certo limite urbanas priorida-
terra, povos e mentare de renda de à agri-
comunidades escolares cultura
tradicionais familiar
e povos e
comuni-
dades tra-
dicionais
Exigência Não se aplica Declaração DAP DAP Não se Não se
para acesso de Aptidão aplica aplica
ao Pronaf
(DAP)
Recursos No orçamento 15,9 363,00 Estima-se 3,5 36 bilhões
totais apli- de 2012 se bilhões milhões a concessão bilhões de reais
cados destinou R$ de em 2013 investidos
4,6 bilhões 4 bilhões – Urbano e
para a função de insenção rural
da organi- fiscal nas (2011 a
zação agrária licitações 2012)
(Mansur, das faixas
2011). de 2,5 GHz
e 450 MHz
Nº. de Segundo Data- 1,8 milhões Informação R$ 3,2 31.398
contratos/ luta (2013), (2012) indisponível milhões - vagas
operações/ foram assen- contratados em 2013
matrículas/ tadas 4.854 na área rural (Sistec/
famílias famílias em (2013) MEC)
assentadas, 2012 e 4.854
etc. em 2013.
Conforme o
Incra, foram
assentadas
23.075 em
2012
Ministérios Incra/MDA MDA MEC/ Ministério Ministério MEC e
responsá- FNDE e das Cidades das Comu- MDA
veis MDA nicações
Marco 2º PNRA e Decreto nº Lei nº Lei nº Decreto nº Lei
jurídico Medida Provi- 1.946/1996 11.947/2009 11.977 de 7.175/2010 12.513,
principal sória nº 636 e Resolução 7.7.2009 (PNBL) de 26 de
Manual do nº. 26/2013 Portaria nº outubro
Crédito do FNDE 431/2009, de 2011
Rural MC
(PNTR)
Fonte: Elaboração das autoras com base em pesquisa.
A(s) Ruralidade(s) nas Políticas Públicas Brasileiras 223

O RURAL AS POLÍTICAS PÚBLICAS SELECIONADAS


Dado o objetivo deste documento, optamos por sintetizar alguns
aspectos que consideramos relevantes relacionados ao rural nas políticas
públicas selecionadas. Um primeiro aspecto que nos chamou a atenção é
que as seis políticas investigadas dispensam, cada uma a sua maneira, um
tratamento diferenciado às áreas rurais.
Além das políticas de desenvolvimento rural, as quatro políticas
universais analisadas procuram contemplar as especifidades das áreas
rurais em relação às urbanas, tanto no âmbito das ações que propõem
quanto nos arranjos e estruturas institucionais que garantem seu funcio-
namento. Por exemplo, o Pnae criou uma estrutura institucional para tratar
das particularidades da agricultura familiar (a Divisão de Desenvolvimento
da Agricultura Familiar-Didaf), e ofereceu um tratamento diferenciado às
escolas situadas em áreas indígenas e quilombolas. A criação da Superinten-
dência Nacional de Habitação Rural na Caixa Econômica Federal facilitou
que o PMCMV apresentasse ações específicas para o rural, estabelecendo
regras mais apropriadas às características destas áreas, como a possibilidade
de autoconstrução assistida e mutirão assistido, a flexibilização quanto
às infraestruturas necessárias para o início do projeto, e adaptações dos
projetos das casas de acordo com as peculariedades regionais, climáticas
e culturais da localidade ou comunidade beneficiada. O PNBL possui
o Programa Nacional de Telecomunicações Rurais, que procura avançar
em algumas questões fundamentais para o meio rural, como a ampliação
do acesso à Internet nas escolas e nas residências, a partir de tecnologias
que prezem pelo acesso e pela qualidade do serviço oferecido. E, enfim, o
Pronatec apresenta o Pronatec Campo – o qual se insere em um programa
maior – o Pronacampo – que visa à promoção da inclusão social de jovens
e trabalhadores do campo por meio da ampliação da Rede Federal de
Educação Profissional, Científica e Tecnológica e da oferta de cursos de
formação inicial e continuada para trabalhadores de acordo com os arranjos
produtivos rurais de cada região.
224 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – K a r i n a Yo s h i e M a r t i n s K a t o – C a t i a G r i s a

É importante esclarecer, no entanto, que o tratamento diferenciado


dado ao rural nas políticas públicas é bastante recente. Esse avanço resul-
tou em parte de reivindicações de um conjunto de atores, principalmente
da sociedade civil organizada, que já vinha cobrando ações do Estado há
vários anos.
No que respeita à participação social, estas políticas se diferenciam
significativamente. Num primeiro olhar, há diferenças marcantes quanto as
suas dinâmicas de constituição, em particular no que diz respeito aos atores
que se fizeram mais presentes nas suas discussões e, principalmente, nas
formas de participação da sociedade civil organizada. Em algum grau, as
discussões, as pressões e a participação prévia à formulação das políticas
estudadas acabam por influenciar a forma como elas são pensadas e exe-
cutadas, o que pode significar uma maior adesão e adaptação à realidade e
aos seus públicos beneficiários e, não raro, uma maior flexibilidade em seus
instrumentos.
Concebido como uma política anticíclica voltada principalmente para
dinamizar o segmento da construção civil, aliando esse objetivo à ampliação
da moradia, o PMCMV contou no momento de sua formulação e gestação
com uma menor participação da sociedade civil organizada, ainda que o
movimento pelo direito à habitação e à cidade fosse bastante atuante e
forte no cenário político. Com uma ênfase importante na moradia urbana e
sendo objeto de muitos interesses do setor da construção civil, o programa
passou a ter, somente na última década, uma preocupação específica com a
moradia rural e com o atendimento das especificidades dessas áreas e dos
segmentos que ali habitam. Enquanto a política de habitação urbana já era
objeto de ação do Estado desde a década de 60, a habitação rural somente
entrou na agenda pública nacional em 2003, com a criação do Programa de
Habitação Rural e, então em 2009, com o PNHR no PMCMV. O crescimen-
to do rural na política e a criação de instâncias e instrumentos específicos
para lidar com essa realidade podem ser atribuídos às reivindicações das
organizações da agricultura familiar, em particular do movimento sindical
dos trabalhadores rurais, realizadas desde a década de 90. E hoje podemos
afirmar que a presença dos movimentos e organizações sociais do campo
nas discussões recentes da política tem possibilitado uma rápida dinâmica
A(s) Ruralidade(s) nas Políticas Públicas Brasileiras 225

de adaptação e flexibilização da política pública às características do meio


rural e dos grupos que nele habitam (modelo das casas, forma de construção,
valores diferenciados, etc.).
Representantes da sociedade civil vinculados ao tema da segurança
alimentar e nutricional vinham demandando articulações entre a alimenta-
ção escolar e a agricultura familiar desde a década de 90. Apenas em 2009,
no entanto, e somente em 2012 foi criada uma estrutura no FNDE para
tratar especificadamente das compras da agricultura familiar. Até então o
mercado institucional da alimentação escolar era de “livre concorrência”,
com todos os interessados na comercialização de seus produtos sendo sub-
metidos à Lei de Licitações e Contratos da Administração Pública (nº.
8.666/1993). O excesso de burocracia e de formalização dificultava a parti-
cipação dos agricultores familiares, dadas as suas limitações para competir
com outros padrões de escalas e custos de produção. Ainda que persistam
dificuldades em sua operacionalização, o Pnae é um exemplo de como a
forte presença das organizações representativas da agricultura familiar e
de outros segmentos relacionados com a produção de alimentos, nutrição
e educação, dota a política de uma maior flexibilidade para lidar com pro-
blemas que são próprios do meio rural e das organizações sociais e sindicais
atuantes no campo. Para além de uma política social, o Pnae ganha contorno
de política agrícola e política de desenvolvimento rural, na medida em que
estimula a produção da agricultura familiar e promove outra relação com
o meio ambiente e com o território, chamando a atenção também para a
questão ambiental e cultural.
O Pronaf resultou (entre outros fatores) de uma intensa mobilização
social de representantes de movimentos sociais e sindicais da agricultura
familiar para a criação de uma política específica de apoio à “pequena pro-
dução”. Essa política tornou-se, de certo modo, o principal instrumento
legitimador das demais políticas voltadas à categoria social, na medida em
que o instrumento criado para que as famílias tivessem acesso a esta política
pública, a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), passou a ser também
instrumento de acesso dessas famílias a mais 12 políticas voltadas à agricul-
tura familiar.
226 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – K a r i n a Yo s h i e M a r t i n s K a t o – C a t i a G r i s a

Envolvendo um elevado grau de conflito, a criação de assentamentos


de reforma agrária é outra política instituída especificamente para o meio
rural. Sob pressão e conflito intenso dos movimentos sociais e das organi-
zações da sociedade civil, a política, ainda que não tenha expandido nos
últimos anos o número de assentamentos, vem tendo sua meta ampliada de
maneira a incluir no seu instrumental medidas para melhorar a qualidade
e a sustentabilidade dos assentamentos rurais. Se na sua origem a principal
discussão era a distribuição de terra pela criação de assentamentos, cada vez
mais a política tem se ampliado de modo a permitir a sua melhor articulação
com outras políticas de apoio à produção e à comercialização, de auxílio à
instalação da família, de fomento a projetos culturais, de reforma da moradia,
de preservação ambiental, etc. Adicionalmente, nos últimos anos, a política
de criação de assentamentos de reforma agrária tem procurado direcionar e
compatibilizar suas ações com as características da região. Foram definidas
três principais rotas de intervenção: a voltada para o combate à pobreza, a
que busca a consolidação da produção e aquela que tem como principal
preocupação a questão ambiental.
Estas questões, no limite, levariam à viabilização e ao fomento da
instalação de um novo modelo produtivo e de vida no meio rural que teria
na criação e fortalecimento dos assentamentos um instrumento importante.
As organizações sociais e sindicais e os movimentos sociais ligados ao meio
rural e à reivindicação da reforma agrária, contudo, têm mantido um posi-
cionamento bastante desconfiado e resistente às ações do governo federal
no campo da reforma agrária que, conforme pudemos apurar, tem estado
muito aquém do esperado. Ainda que as ocupações de terra estejam menos
comuns desde o início do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva,
nos últimos anos o diálogo dos movimentos e organizações sociais e sindicais
com o governo federal também não tem ocorrido a contento da sociedade
civil (Albuquerque, 2014).
Assim, da nossa análise, identificamos que o tratamento dado às áreas
rurais pelas políticas universais tem, aos poucos, procurado atender as suas
especificidades do meio rural. Embora algumas destas políticas públicas
não conferissem nenhum tratamento privilegiado à população urbana em
detrimento da população rural, alguns elementos favoreciam (e, em grande
medida, continuam favorecendo) a concentração das políticas públicas nas
A(s) Ruralidade(s) nas Políticas Públicas Brasileiras 227

áreas urbanas. Neste sentido, embora existam muitas limitações e desafios


para o acesso da população rural às políticas públicas, é importante destacar
o esforço recente de diferenciação de instrumentos dentro das políticas
universais no sentido de atender às particularidades das populações rurais
e de ampliar o acesso aos seus serviços nestas áreas.

ALGUMAS QUESTÕES TRANSVERSAIS


NO CONJUNTO DAS POLÍTICAS ANALISADAS

Infraestrutura e Intersetorialidade
Ao longo do estudo identificamos algumas questões a serem explo-
radas se quisermos compreender as formas pelas quais as políticas públicas
podem vir a incluir as diferentes dimensões do mundo rural.
Identificamos que algumas mudanças proporcionadas pelas políticas
públicas estudadas, na medida em que dotam de infraestrutura o mundo
rural e reconhecem como categoriais sociais pertencentes ao mundo rural
outros segmentos para além do agricultor familiar (quilombolas, pescado-
res, ribeirinhos, etc,), podem fomentar o surgimento de novas ruralidades,
abrindo outros horizontes para se pensar o rural. As reflexões que se seguem
não estão voltadas a um olhar normativo sobre as políticas públicas, mas
buscam, essencialmente, refletir sobre o mundo rural, e em que medida
diferentes ruralidades são reconhecidas e exigem diferentes tratamentos
no âmbito de execução das políticas públicas.
Um aspecto a ser ressaltado relaciona-se com a infraestrutura e a
provisão de serviços no meio rural. Nas sociedades contemporâneas, as fron-
teiras tornam-se mais fluidas, não representando um limite estático entre os
lugares (sejam esses regiões, territórios, cidades, rural e urbano) e reduzindo
o tempo de deslocamento de ideias e informações. Este contexto reclama de
forma ainda mais veemente a superação da falta de infraestrutura no espaço
rural, demandando políticas públicas de moradia, transporte, saneamento,
telecomunicações, saúde, entre outras. A garantia do direito à infraestrutura
no espaço rural também exige uma ação intersetorial das políticas públicas,
228 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – K a r i n a Yo s h i e M a r t i n s K a t o – C a t i a G r i s a

tendo em vista que é cada vez mais evidente a insuficiência em se tratar o


mundo rural com políticas públicas voltadas, exclusivamente, para a agri-
cultura.
Entendemos que existem atualmente inúmeros limitantes para a
difusão das políticas de infraestrutura, visto que as grandes distâncias e a
baixa densidade populacional contribuem para a reduzida atratividade de
investimentos públicos e privados desta natureza. A escassez de recursos,
ou pouco investimento, a ausência de vantagens competitivas de atração de
investimentos nos distantes rincões brasileiros acabam sendo fatores centrais
que obstaculizam a ampliação das infraestruturas de diferentes naturezas
no espaço rural. Não podemos esquecer, contudo, que todas elas impli-
cam direitos básicos condicionantes da manutenção de uma vida digna e da
garantia de uma equidade de oportunidades entre o meio urbano e o meio
rural. Nesta situação, a ideia do rural sem infraestrutura e do lugar do atraso
acaba se tornando, como revelado por Medeiros, Quintans e Zimmermann
(2013), uma “profecia que se autocumpre” e que tem como consequência
a reprodução da negação de direitos básicos aos habitantes do meio rural.
Em um país como o Brasil, que tem nas desigualdades sociais uma de suas
marcas principais, essa questão torna-se ainda mais urgente.

A senha de acesso às políticas públicas


Das quatro políticas direcionadas para a agricultura familiar, três
(Pronaf, Pnae e PMCMV) exigem uma “senha de acesso” manifesta na
Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP). A DAP é um recurso institucio-
nal reivindicado e criado pelas organizações da agricultura familiar para se
diferenciarem de outras categorias sociais, garantindo exclusividade e tra-
tamento diferenciado em relação às políticas públicas (Santos, 2011). Este
mecanismo foi criado em 1997, estabelecendo-se como um “certificado” de
adequação dos agricultores aos critérios de enquadramento na categoria polí-
tica “agricultor familiar”. Para acessar este documento os agricultores fami-
liares devem atender aos critérios definidos pelo Pronaf, sendo igualmente
beneficiários: a) pescadores artesanais; b) aquicultores; c) silvicultores; d)
extrativistas, integrantes de comunidades quilombolas rurais, povos indíge-
A(s) Ruralidade(s) nas Políticas Públicas Brasileiras 229

nas e demais povos e comunidades tradicionais. Também podem solicitar


DAP as formas associativas da agricultura familiar organizadas em pessoas
jurídicas, sendo neste caso conferida DAP Jurídica.
Pensada originalmente para uma política específica, a transferência
da DAP para outras políticas não tem se dado de forma automática, o que
gera distorções e dificuldades principalmente no seu acesso e, portanto, no
acesso às políticas públicas. As limitações estão relacionadas ao desconheci-
mento da exigência legal; à distância física e social das entidades cadastra-
das; à falta de documentações pessoais; à cobrança indevida para a emissão
do documento; às dificuldades de adequação das exigências à diversidade
de modos de vida, formas de organização social da agricultura familiar e
relacionamentos com a terra; à falta de infraestruturas (recursos humanos
e Internet) e de capacitações das entidades responsáveis pela emissão da
declaração, etc. (Brumer; Spanevello, 2012; Prado, 2012). Fora esses aspec-
tos mais operacionais, destacamos a seguir algumas dificuldades do instru-
mento em lidar e reconhecer a diversidade social e econômica da categoria
da agricultura familiar e, ao mesmo tempo, das novas dinâmicas presentes
no meio rural que o tornam cada vez mais multissetorial.
a) reconhecimento da agricultura urbana e periurbana: o acesso às políticas
diferenciadas de desenvolvimento rural por este público tem como pri-
meira barreira institucional o reconhecimento da realização de atividades
agrícolas em áreas consideradas urbanas. Outro elemento importante para
as dificuldades de agricultores urbanos e periurbanos acessarem a DAP
refere-se à natureza pluriativa de muitos estabelecimentos, nos quais
estratégias de reprodução não agrícolas e modos de vida urbanos rela-
cionam-se estreitamente com atividades econômicas tipicamente rurais.
b) mulheres: além de dificuldades recorrentes a diversos grupos sociais,
cabe destacar que até a safra 2004/2005 o formulário da DAP solicitava
a “identificação do(a) Agricultor(a) Familiar”, no qual na maioria dos
casos constava o nome do marido. Após esta data, a DAP passou a incluir
obrigatoriamente o nome do casal. Não obstante os avanços, ainda há
muito a ser feito para garantia de direitos das mulheres e para o rompi-
mento da cultura machista que ainda se enraiza em boa parte do meio
rural brasileiro.
230 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – K a r i n a Yo s h i e M a r t i n s K a t o – C a t i a G r i s a

c) quilombolas: segundo informação governamental (Brasil, MDA, 2014b),


em 2013 existiam mais de 200 mil famílias quilombolas no país, no
entanto apenas cerca de 37 mil apresentavam DAP. Esse documento,
contudo, é fundamental para o acesso a várias iniciativas presentes no
Programa Brasil Quilombola (como o Pnae, o PAA, o Selo Quilombos do
Brasil e a Ater). As dificuldades de acesso estão relacionadas também à
necessidade de reconhecimento e de prévia certificação das comunidades
quilombolas pela Fundação Cultural Palmares.
d) o reconhecimento do rural não exclusivamente agrícola: também cabe
uma reflexão sobre os critérios do Pronaf, condicionantes para a obten-
ção da DAP, seriam adequados para a viabilização de políticas públicas
que não têm no fomento da produção agrícola seu principal objetivo.
Por exemplo, haveria necessidade de o PNHR exigir que, no mínimo
50% da renda bruta familiar seja originária da exploração agropecuária?
Compreendendo o rural como um modo de vida (Wanderley, 2009) e
entendendo que viabilizar habitações adequadas, principalmente às
populações mais carentes é essencial para ampliar a qualidade de vida
dos requerentes, questiona-se: seria necessário garantir a produção agro-
pecuária para incluir um habitante do meio rural no PMCMV? Qual a
necessidade de exigir a DAP para o Selo Quilombos do Brasil se o modo
de vida do agricultor já foi reconhecido e certificado como pertencente a
uma comunidade quilombola pela Fundação Cultural Palmares?
Mencionadas estas dificuldades, também é importante destacar um
conjunto de modificações e ações que já foram realizadas visando a ajustar
este mecanismo à diversidade da agricultura familiar e das políticas públicas
que a utilizam como senha de acesso. Citamos a criação da Declaração de
Aptidão Indígena (DAP-I) (Brasil, MDA, 2012); a ampliação e diversifica-
ção das entidades cadastradas para emissão da DAP (Fundação Cultural
Palmares, Incra, Funai, Instituto Chico Mendes de Conservação da Bio-
diversidade, etc.); o reconhecimento da agricultura familiar realizada em
áreas urbanas (Brasil, 2014a); a dupla titularidade da DAP (marido e esposa)
(Brasil, 2014b) e a realização de mutirões visando à ampliação do acesso à
DAP. O desafio consiste em publicizar estas mudanças normativas, estabele-
cer um processo constante para seu aperfeiçoamento, capacitar as entidades
cadastradas a colocar em prática (execução) estas alterações institucionais.
A(s) Ruralidade(s) nas Políticas Públicas Brasileiras 231

CONSIDERAÇÕES FINAIS
De um modo geral, das seis políticas públicas analisadas neste traba-
lho, quatro (PMCMV, o Pronatec, a política de assentamentos e o PNBL)
exaltam elementos que são fundamentais para a compreensão do rural como
um espaço de vida para além de um espaço de produção. A ampliação do
acesso à terra, a garantia de um lugar para viver e garantir a reprodução social
e econômica da família, a valorização das habitações rural, o incremento da
qualidade de vida, o acesso ao consumo de bens e serviços (energia elétrica,
saneamento) e o acesso à informação e à comunicação são elementos basi-
lares destas políticas citadas. Sua razão, nesse sentido, situa-se no campo
da ampliação de direitos e de uma maior equalização da qualidade de vida
e de oportunidades no campo e na cidade.
O Pronaf, PNAE, política de assentamentos rurais e PMCMV, por
sua vez, são políticas destinadas exclusivamente no público da agricultura
familiar e dos povos e comunidades tradicionais. Elas caminham na direção
de privilegiar e fortalecer uma ruralidade específica, que compreende um
rural que produz, e que é um “rural com gente” (como destacou a 1ª Con-
ferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário, em
2008). Suas iniciativas, ainda que pouco articuladas, nos sugerem um rural
diversificado, que produz boa parte dos alimentos agrícolas brasileiros, que
busca formas mais sustentáveis de produção (em que há grupos que pautam
a agroecologia e outras práticas sustentáveis), e que guarda um importante
patrimônio cultural. Além de destacar a importância social e econômica das
áreas rurais – e a necessidade de fortalecê-las –, estas políticas reconhecem
que o desenvolvimento rural passará pelo fortalecimento de segmentos
específicos, portadores de distintas ruralidades.
Da investigação empreendida, podemos sugerir que o êxito nas
políticas públicas está relacionado principalmente ao avanço realizado
na direção da ressignificação e da ampliacão da forma como este espaço
rural vem sendo interpretado e conduzido em algumas políticas públicas e
também do maior reconhecimento da diversidade dos grupos sociais que
constituem o rural. Destacamos como um desafio premente, contudo, o
reconhecimento da importância de que as ações governamentais entendam
a ampliação de boa parte das infraestruturas enquanto direitos fundamen-
232 S i l v i a A p a r e c i d a Z i m m e r m a n n – K a r i n a Yo s h i e M a r t i n s K a t o – C a t i a G r i s a

tais que devem, logo, ser garantidos também no espaço rural. A promoção
do desenvolvimento rural tem como condicionante o rompimento com o
senso comum que interpreta o desenvolvimento e o rural como categorias
incompatíveis de serem conjugadas. E o alargamento da infraestrutura e
dos serviços básicos para o meio rural evidenciam-se como um bom começo
nessa direção.
Adicionalmente, persiste no horizonte a necessidade de se pensar as
políticas públicas para o rural a partir de um corte territorial (e não setorial)
e, ao mesmo tempo, em uma perspectiva multidimensional (e que incorpore
para além da econômica, as dimensões social, ambiental, cultural e política)
que, muito embora não perca de vista a importância da agricultura nos ter-
ritórios rurais, não reduza os seus fins à produção agrícola.
Não haverá uma fórmula geral a ser posta em prática de maneira
uniforme para o alcance desse objetivo. Ao contrário. O desenvolvimento
rural requer que as políticas públicas cada vez mais articulem, de forma
diferenciada, a ampliação de direitos e serviços e certa flexibilidade para
dar conta das especificidades do território, de sua matriz produtiva e dos
grupos sociais que o constituem.
Isso requer não apenas o contínuo monitoramento participativo das
políticas públicas instituídas e o controle social, mas a introdução de meca-
nismos retroalimentadores que permitam a geração e adoção de práticas
inovadoras que facilitem a sua aderência à diversidade do meio rural. Exige,
ademais, o melhor tratamento dos distintos grupos sociais que constituem
o rural brasileiro, rompendo, aos poucos, com o olhar reducionista que isola
o rural do todo, para que, enfim, passe a considerá-lo a partir das relações
que estabelece com o seu entorno.

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Tatiana Aparecida Balem


Gustavo Pinto da Silva
Paulo Roberto Cardoso da Silveira

A Agricultura Familiar (AF) no Brasil vem experimentando, desde


2003, um momento histórico em que abundam as políticas públicas a ela
destinadas, a partir do reconhecimento político enquanto categoria e da
recente visão de que é necessário ir além do acesso ao crédito. As políticas
que vêm sendo adotadas com o intuito de superar um dos principais pro-
blemas enfrentados pelos agricultores, o acesso aos mercados, demonstram
um amadurecimento da percepção do rural e da AF. Além disso, revelam
ser potenciais mobilizadores da produção agrícola, pois visam a outros pro-
dutos, que não os tradicionalmente demandados pelos mercados, podendo
ser considerados pontos de partida para a consolidação de sistemas agroa-
limentares locais.
A exigência legal de compra de no mínimo 30% dos alimentos
empregados na alimentação escolar provenientes da AF aliada às diretrizes
do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) configura um mercado
institucional intimamente ligado ao local. A exigência da obrigatoriedade
no Pnae acaba sendo um elemento que provoca a discussão e o estabele-
cimento do mercado institucional em todos os municípios do país. A Lei
n.º 11.947, de 16 de junho de 2009, e a Resolução/CD/FNDE nº 38, de 16
de julho de 2009, instituem o marco legal da compra dos produtos da AF
para a alimentação escolar. A resolução supracitada possui como diretrizes:
os gêneros da alimentação escolar oriundos da região; interligados à cultura
236 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – G u s t a v o P i n t o d a S i l v a – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

alimentar local e procedentes no mínimo 30% (trinta por cento) diretamente


da AF. Nestes termos, estabelece a garantia de mercado para um significati-
vo número de famílias desse segmento social que sempre esteve à margem
dos mercados institucionais. A política pública ainda facilita o acesso dos
agricultores familiares quando permite que a comercialização dos gêneros
alimentícios possa ser realizada por grupos formais ou informais, organizados
e representados por uma entidade articuladora.
As questões apontadas pelo Pnae, relacionadas à cultura e à diversi-
ficação da alimentação, são elementos centrais para a mobilização da pro-
dução, visto que possibilitam que as famílias se organizem para produzir
alimentos variados e típicos da produção familiar. A garantia de mercado e
a demanda de produtos com características intrínsecas da AF são elementos
diferenciadores dessa política, que direta e indiretamente provocam uma
mobilização local, envolvendo diversos atores e entidades. Nesse sentido,
é necessário um processo de concertação e de organização, que envolve
muitos fatores. A garantia de mercado fornece a ancoragem inicial para o
investimento nesse tipo de produção, antes normalmente direcionada para o
autoconsumo e, talvez em muitos casos, já não praticada pelas famílias, pois
a tendência de produção de um ou dois produtos demandados pelo mercado
convencional e a diminuição da mão de obra no meio rural provocaram uma
erosão da produção diversificada (Balem; Silveira, 2005).
Nesse sentido a compra institucional poderá ser uma importante
ferramenta para o desenvolvimento local, fortalecimento da agricultura
familiar, além de uma estratégia de segurança alimentar. Este texto visa a
discutir em que medida o Pnae tem impactado a AF no município de São
Francisco de Assis, localizado no Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Para
isso, além desta introdução, traz na metodologia a forma como as infor-
mações empíricas foram coletadas. A seção seguinte analisa o objetivo do
programa de alimentação escolar brasileiro e o lugar dos programas de ali-
mentação escolar na discussão dos regimes agroalimentares. Na sequência
é discutida a adoção da política no município de São Francisco de Assis. As
considerações finais apresentam de forma sintética as lições aprendidas por
meio do estudo.
O Papel da Alimentação Escolar na Construção de Mercados Para a Agricultura Familiar 237

METODOLOGIA
A base empírica do estudo deu-se no município São Francisco
de Assis (SFA), no Rio Grande do Sul (Brasil). A investigação, realizada
nos anos de 2012 e 2013, valeu-se de entrevistas semiestruturadas com
os agentes de desenvolvimento envolvidos com a política no município e
análise documental. Complementou-se a pesquisa com a participação dos
autores em reuniões realizadas no município e na vivência junto aos agricul-
tores familiares e agentes de desenvolvimento envolvidos. Os dados foram
avaliados de forma qualitativa, por meio da análise de conteúdo.
O município de São Francisco de Assis (SFA) está localizado na
região central do Estado do Rio Grande do Sul e possui características simi-
lares, ou seja, uma economia fortemente baseada no setor agropecuário.
Uma região do município apresenta características do Bioma Pampa voltada
à agricultura empresarial e outra de Rebordo do Planalto, no qual predomi-
nam os traços de uma agricultura típica de colonização italiana, com uma
agricultura mais diversificada e de pequena escala.

OS PROGRAMAS DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR


NO FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA FAMILIAR
A AF no século 21 precisa ser analisada situando-a no contexto da
emergência do terceiro regime agroalimentar,1 fortemente marcado pelas
controvérsias da evolução da acumulação de capital. Esse regime é definido
pela concentração do comércio mundial de alimentos nas mãos de poucas
empresas (Flexor, 2008; Van Der Ploeg, 2008).

1
De acordo com Friedmann (1993): o Primeiro Regime Alimentar marcou a criação
do mercado mundial de alimentos e nasceu entre 1870 e 1914; o Segundo Regime
Alimentar institui-se entre 1950 e 1970 e estabelece forte relação entre a agricultura
nacional e a transnacionalização do capital; o Terceiro Regime Alimentar pode ser
considerado ainda emergente e vem a dar os primeiros sinais a partir de 1980, com o
processo de globalização e completa internacionalização dos impérios alimentares.
238 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – G u s t a v o P i n t o d a S i l v a – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

De acordo com Friedmann (1993), os regimes agroalimentares carac-


terizam-se por marcar o papel da agricultura e da alimentação na acumula-
ção de capital, envolvendo estruturas governadas por regras de produção e
consumo de alimentos em escala mundial, bem como por regras implícitas,
as quais buscam estabelecer relações relativamente estáveis. Essa discus-
são fornece uma chave de leitura importante, pois possibilita a análise dos
processos de estruturação da economia e das relações globais estabelecidas
com os mercados de alimentos (McMichael, 2009).
Inúmeras estratégias alternativas ao modelo dominante, porém, estão
surgindo, o que demonstra que começam a se estruturar contramovimentos
(Friedmann, 2005). A emergência de vários movimentos de contrarraciona-
lidade sistêmica, questionando o modelo alimentar industrial e lhe opondo
forma de organização de produção alternativas, estão sendo denominados
de “Alternative Agro-Food Networks” (AAFNs) (Goodman, 2003). As AAFNs
são baseadas em espaços descentralizados, ecologicamente aterrados e em
consonância com as prerrogativas do desenvolvimento territorial (McMi-
chael, 2009; Morgan, 2010).
Assim, para Friedmann (2005), o terceiro regime alimentar apresen-
ta uma contradição sistêmica representada pela alimentação industrial e
transnacional e pela emergência das AAFNs, assim como das estratégias dos
próprios impérios alimentares que buscam se adequar à pressão social rea-
lizada pelos movimentos sociais e movimentos ambientalistas. Os impérios
alimentares oferecem produtos que apresentam identidade com: a crescente
preocupação em relação à saúde, às consequências da alimentação industrial,
assim como a defesa do comércio justo e o bem-estar animal (Friedmann,
2005). Para a autora, o capitalismo está buscando “esverdear” a sua ação em
razão dessas pressões, dando início a uma fase em que os lucros são reno-
vados por meio de mecanismos de diminuição do esgotamento ambiental,
menor poluição e a venda de produtos ambientalmente superiores.
De acordo com Morgan (2010), mesmo diante dessas contrarieda-
des e da pressão da narrativa convencional de “esverdear-se”, a narrativa
alternativa dos alimentos vem ganhando espaço. Esta tendência ampara-se
em valores associados à integridade ecológica, à justiça social, à identidade
cultural e ao desenvolvimento econômico mais enraizado, ou seja, em con-
sonância com as características de cada local. Nesse sentido, a produção de
O Papel da Alimentação Escolar na Construção de Mercados Para a Agricultura Familiar 239

alimentos realizada pelos agricultores familiares e comunidades tradicionais


ganha um sentido maior quando se discute alimento, associado à saúde,
cultura alimentar e integridade social.
A conjunção de motivações que contestam o sistema alimentar indus-
trial pode ser agregada na terminologia usada pela literatura internacional
como “Turn of Quality” (Goodman, 2003). Trata-se de um processo de reação
ao padrão alimentar fordista2 e suas convenções de qualidade, resgatando
uma dimensão da segurança alimentar abandonada nas três décadas finais
do século 20 em função do imperativo da quantidade ofertada. Surge no
debate atual a discussão de garantia de um alimento seguro, como algo além
da mera soma de nutrientes. Reivindica-se uma qualidade validada e enrai-
zada na confiança (sistema de confiabilidade baseado no interconhecimento
entre produtor e consumidor) (Silveira; Guimarães, 2010), na tradição e nos
lugares como fator de diferenciação territorial e cultural, na produção ecoló-
gica e formas de organização econômica da produção alternativas (AAFNs)
(Goodman, 2003). Assim, passa-se a delinear um novo sistema alimentar,
ainda incipiente, mas emergente (Goodman, 2003; Pollan, 2007).
Diante do surgimento do desenho de um paradigma alternativo ali-
mentar, cabe discutir como esse paradigma poderá se firmar e enfrentar o
agroindustrial, nos marcos do processo de globalização, o qual impactou de
forma intensa os modos de produção, distribuição e consumo no mundo.
Nesse sentindo, duas questões colocam-se nessa discussão.
A primeira refere-se à potencialidade das políticas públicas em criar
espaços privilegiados para o desenvolvimento de sistemas alimentares alter-
nativos. Seja apoiando as redes socioprodutivas locais e protegendo as ini-
ciativas de comercialização direta ou em segmentos do pequeno varejo ou
mediante a criação de mercados institucionais, como o Programa Nacional
de Alimentação Escolar, objeto de análise deste texto.
Nessas possíveis ações do aparato estatal, temos uma questão de
fundo: o Estado em suas diferentes instâncias é o guardião do atual sistema
alimentar industrial, sendo o agente regulador das relações de produção-dis-

2
Entende-se por padrão fordista um conceito de alimento produzido e consumido em
massa, indiferenciado e desenraizado do contexto (Pollan, 2007).
240 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – G u s t a v o P i n t o d a S i l v a – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

tribuição-consumo, por meio de um conjunto de instituições encarregadas


de zelar por um determinado padrão de qualidade. Assim, cobra-se de um
alimento ou bebida que seja adequado aos padrões sanitários, ambientais e
fiscais, definidos por uma legislação voltada para a grande escala de produ-
ção e grande intervalo entre produção e consumo (Silveira; Zimmermann,
2004). Sabe-se que estas exigências legais excluem um grande contingen-
te de agricultores familiares, potenciais fornecedores dos circuitos locais
e dos mercados institucionais. Assim, ao mesmo tempo em que o Estado
cria possibilidades, via políticas públicas, continua atrelado ao aparato legal
anterior relacionado à grande indústria alimentícia. Esse, por sua vez, repre-
senta barreiras à participação dos empreendimentos da AF nos espaços de
mercado criados, levando a uma contradição. No caso aqui analisado, novas
institucionalidades foram criadas para dar suporte à entrada dos agricultores
familiares nos mercados locais e institucionais.
O segundo aspecto a que nos referíamos anteriormente é a capacida-
de dessas novas institucionalidades em consolidar a participação dos agri-
cultores nos espaços criados sem abandonar a referência de seus produtos:
a qualidade diferenciada e a oposição ao regime alimentar industrial. Os
programas de alimentação escolar assumem uma particularidade, entre as
políticas públicas que buscam criar espaços institucionais para a comercia-
lização de produtos da AF, por seu duplo objetivo estratégico: a educação
alimentar para um consumo de produtos locais e a criação de uma demanda
por produtos diferenciados.

OS PROGRAMAS DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR


De acordo com Morgan (2010), os programas de alimentação escolar
que incluem a compra de produtos locais como mote principal de ação sina-
lizam ser algo radicalmente novo. Para o autor, esses programas são capazes
de alcançar três grandes objetivos: o componente da saúde proporcionado
pela adequada nutrição; o componente educacional por meio do fortaleci-
mento de uma cultura alimentar e valorização da produção local e um com-
ponente de desenvolvimento, pelo uso de produtos produzidos localmente.
O Papel da Alimentação Escolar na Construção de Mercados Para a Agricultura Familiar 241

Na maioria dos casos os agricultores balizam-se unicamente pelas


estratégias dos mercados convencionais orientados pelo sistema agroalimen-
tar industrial, pois o paradigma moderno de produção conseguiu se enrai-
zar na cultura das populações de tal forma que compreender, decidir e fazer
acaba sempre sendo percebido a partir das grandes cadeias de commodities.
Nesse sentido, as políticas públicas mostram-se como instrumentos capazes
de propor novos arranjos para que essas estratégias se desenvolvam. Especifi-
camente, em termos de Brasil, a política de compra de alimentos dos agricul-
tores familiares e de suas organizações para a alimentação escolar, instituída
desde 2009, tem se mostrado um marco importante na inflexão das políti-
cas públicas, tradicionalmente calcadas em crédito e Assistência Técnica e
Extensão Rural (Ater), assumindo reconhecimento pela sua efetividade. Esse
significativo avanço tem permitido pensar políticas diferenciadas e capazes de
atender aquilo que Morgan (2010) aponta como radicalmente novo em uma
política, ou seja, para além da alimentação adequada, o desenvolvimento local
e a inclusão de agricultores, viabilizando novos arranjos produtivos.
A compra de produtos para a alimentação escolar estabelecida nos
marcos do Pnae brasileiro vem no sentido dos argumentos de Friedmann
(2005), ou seja, o surgimento de contramovimentos, contrariando a lógica
de que todo o mercado seria globalizado. Pode-se conjeturar que se trata
de elemento indicativo do surgimento de um quarto regime alimentar, mais
aterrado,3 mais de acordo com o desenvolvimento local e mais híbrido, no
entanto, de qualquer forma evidenciam-se estratégias diferenciadas de inclu-
são da agricultura familiar, as quais pode-se perceber no caso em análise.

A IMPORTÂNCIA DO PNAE NO FORTALECIMENTO DA AGRICULTURA FAMILIAR


No Brasil, a participação da Agricultura Familiar na economia e no
abastecimento interno de produtos alimentícios é de grande relevância,
como evidenciam os dados publicados por Brasil (2009). Por outro lado, os
circuitos curtos de comercialização, quando os produtos são comercializados

3
É comum na literatura da chamada Nova Sociologia Econômica a utilização do termo
embeddedness, traduzido por enraizamento social das relações econômicas, segundo a
tradição iniciada por Karl Polanyi.
242 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – G u s t a v o P i n t o d a S i l v a – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

nos limites da própria região onde são produzidos abastecem-se, principal-


mente, da AF. Segundo Cerqueira, Rocha e Coelho (2006), a agricultura
familiar formou estratégias de reprodução que, contraditoriamente ao papel
destinado a esse tipo de produção na política agrícola, manteve sua impor-
tância no espaço rural brasileiro.
Atualmente há um conjunto de políticas públicas que visam a fortale-
cer os agricultores familiares, público historicamente excluído das políticas
agrícolas governamentais. As políticas do Programa de Aquisição de Alimen-
tos (PAA), Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
(Pronaf), Pnae e a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão
Rural (Pnater), são exemplos, neste sentido. As políticas públicas para a
agricultura familiar, até a criação do PAA e da obrigatoriedade de aquisi-
ção de produtos da agricultura familiar para o Pnae, estavam centradas no
crédito rural, com a criação do Pronaf constituindo seu principal marco.
O Pronaf foi criado numa época em que se acreditava que a escassez de
crédito era o principal limitante da agricultura familiar (Guanziroli, 2005).
Questões como o limite das instituições financeiras, no entanto, as quais são
pouco adequadas ao fornecimento de crédito para famílias que não ofere-
cem garantias patrimoniais (Ibidem; Anjos et al., 2004) e o financiamento
prioritário de algumas culturas tradicionais, normalmente voltado para a
produção de grãos, são pontos que identificam a necessidade de repensar
as estratégias de instituição do Pronaf e o próprio alcance da política pública
de financiamento apenas da produção.
De acordo com Anjos et al. (2004), apesar de o Pronaf representar um
instrumento de superação das desigualdades no campo e de democratização
no acesso às fontes de financiamento da agricultura, a inserção no mercado
dos agricultores realmente marginalizados pelo processo de modernização
da agricultura precisa ser superado. Nesse contexto, destacam-se as políticas
públicas capazes de mobilizar as famílias marginalizadas do processo de
modernização agrícola, de forma que possam comercializar a produção com
mercados diferenciados. Ao mesmo tempo, essas políticas demonstram ser
importantes mobilizadoras da produção, visto que fortalecem outros produ-
tos, que não os tradicionalmente demandados pelo mercado convencional.
O Papel da Alimentação Escolar na Construção de Mercados Para a Agricultura Familiar 243

Essas questões revelaram-se fundamentais ao se discutir o alcance e os


benefícios para a AF da reformulação da política de alimentação escolar
brasileira, em 2009.
De acordo com a Resolução/CD/FNDE nº 38, de 16 de julho de
2009, a alimentação adequada é um direito fundamental do ser humano,
devendo o poder público adotar as políticas de segurança alimentar neces-
sárias. Fazem parte das diretrizes do Pnae “o emprego da alimentação sau-
dável e adequada, que compreende o uso de alimentos variados, seguros,
que respeitem a cultura, as tradições e os hábitos alimentares saudáveis”,
assim como “o apoio ao desenvolvimento sustentável, com incentivos para
a aquisição de gêneros alimentícios diversificados, produzidos em âmbito
local e, preferencialmente, pela agricultura familiar e pelos empreendedores
familiares, priorizando as comunidades tradicionais indígenas e de remanes-
centes de quilombos” (Brasil, 2009, p. 3).
Os princípios desse marco legal do Pnae estabelecem um diálogo
entre as questões apontadas por Morgan (2010), ao propor que esses progra-
mas inovam pela capacidade de hibridar a alimentação e desenvolvimento
local, com os sistemas agroalimentares convencionais. O Pnae tem o poten-
cial de se tornar uma ferramenta de mobilização dos agricultores familiares,
visto que estes precisam se organizar e produzir alimentos diversificados
e saudáveis. O Pnae apresenta a capacidade de mobilizar os agricultores e
resgatar aqueles cultivos que foram preteridos em relação àqueles voltados
às commodities. Além disso, estimula as economias locais, possibilitando a
diversificação da produção, o aumento da renda e dos conhecimentos téc-
nicos dos agricultores, inclusive dos mecanismos de comercialização de seus
produtos.

A ADOÇÃO DA POLÍTICA DE COMPRAS DO PNAE


NO MUNICÍPIO DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS
O principal desafio para alcançar os objetivos de desenvolvimento
pretendidos com a política do Pnae em sua execução é a concertação social
necessária para que a política pública aconteça no nível micro. A experiência
do município de São Francisco de Assis, no RS, é exemplo da articulação de
uma série de atores sociais e de estratégias para que fosse possível a oferta
244 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – G u s t a v o P i n t o d a S i l v a – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

dos alimentos pela AF para a alimentação escolar. Surgem novas institucio-


nalidades, definidas com espaços de organização política e construção de
novos arranjos interinstitucionais com a participação dos agricultores, comu-
nidade escolar, gestores municipais e agentes de desenvolvimento local,
sejam profissionais de Ater ou organizações representativas dos agricultores.
O desafio não é só a formulação da política pública, mas definir estratégias
de instituição no âmbito local que possam ser reproduzidas de forma contí-
nua, dialogando e se sustentando nas formas locais de coordenação. A insti-
tucionalidade é o processo pelo qual essas políticas se articulam e desenham
a coordenação e a prática, de modo a assumir um caráter de permanência na
reprodução da execução. Uma institucionalidade pode assumir um caráter
de regramento, tornando-se ininterrupta, mas também pode estar fragiliza-
da a ponto de nas trocas de governos, por exemplo, representar momentos
de rompimento da continuidade. Em outros casos ela está sustentada no
modo de fazer dos agentes locais, internalizada em suas formas cognitivas
ou mesmo de valores, com o que se deseja para o desenvolvimento de uma
região, independendo dos mecanismos legais que a legitimam.
No município de SFA é possível observar uma articulação de políticas
públicas municipais que antecedem a obrigatoriedade da compra de alimen-
tos da AF para a alimentação escolar, a qual vem se fortalecer e consolidar
com a inserção dos agricultores no mercado institucional do Pnae a partir
de 2009. As políticas locais são viabilizadoras de sistemas agroalimentares
no sentido de fortalecer o que já existe, além de instaurar novos sistemas
de comercialização. Para Malina (2012), são indispensáveis estratégias locais
para que a política universal do Pnae se viabilize.
Em SFA, em 2006, o poder público municipal instituiu uma série
de debates, promovendo formações para agricultores e agentes de desen-
volvimento locais, partindo de uma estratégia para fomentar o desenvolvi-
mento de pequenas unidades de processamento de alimentos. Parte-se do
entendimento de que essa estratégia promoveria o desenvolvimento local,
por meio da geração de renda e consequente fortalecimento da AF. Esse
processo resultou em uma política pública local que foi criada efetivamente
em maio de 2006 pela Lei n.º 183/2006, que instituiu o programa de desen-
volvimento agroindustrial – Pacto São Chico – “Produtos Jeito Caseiro”.
O objetivo principal desse programa é: “a inserção do produtor familiar no
O Papel da Alimentação Escolar na Construção de Mercados Para a Agricultura Familiar 245

processo produtivo, com incentivo à produção e ao processamento de produ-


tos in natura, de origem animal e vegetal, assim como em outras atividades
industriais, a fim de agregar valor à produção, aumentando a renda familiar
e a geração de empregos”.
A política pública de fomento aos processos de agregação de valor
em torno de agroindústrias foi organizada na forma de programa, integrando
várias instituições do município que se tornaram corresponsáveis do pro-
cesso. A prefeitura de São Francisco de Assis, por intermédio das Secreta-
rias Municipais de Agricultura e Abastecimento e de Indústria e Comércio,
tornaram-se os agentes executores, mobilizando a estrutura para o apoio na
realização de atividades, além de disponibilizar um técnico responsável pela
execução do Programa, o qual teria como função acompanhar os projetos
instalados. Foi estabelecido um grupo gestor com o objetivo de analisar,
avaliar e deferir projetos que viessem a se inscrever no programa. O que se
percebe foi a preocupação de estabelecer estratégias no nível local, capazes
de potencializar as políticas públicas federais para gerar projetos de desen-
volvimento que não fiquem restritos em iniciativas pulverizadas, muitas
vezes propensas ao fracasso por não terem o apoio necessário no nível micro.
Entre os exemplos está o caso do Pronaf, o qual os agricultores acabaram
acessando para o financiamento dos projetos das agroindústrias, permitindo
construir infraestruturas ou adquirir máquinas e equipamentos.
O Programa “Jeito Caseiro” iniciado em 2006 e ainda em construção
teve um maior reforço quando os agricultores acessaram o mercado insti-
tucional da alimentação escolar em 2008. A experiência traz um elemento
novo, pois não existiam agroindústrias formalizadas no município e várias
delas se organizaram a partir da possibilidade de os agricultores comercia-
lizarem para a alimentação escolar. Em SFA, o que se vislumbrava ante-
riormente ao desenvolvimento do programa “Jeito Caseiro”, era apenas a
cultura dos “quitandeiros”, ou seja, a venda de porta em porta de alguns
agricultores que comercializavam o excedente do consumo. A comercializa-
ção para alimentação escolar era uma possibilidade, mas que quando vislum-
brada dentro dos mecanismos da licitação pública colocavam os agricultores
familiares em desvantagem.
246 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – G u s t a v o P i n t o d a S i l v a – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

Para sanar essa dificuldade foi organizada em 2006, pelos agricultores


que participam do Programa, a Cooperativa Mista de Produtores Familiares
de São Francisco de Assis – Cooper Jeito Caseiro. Ela teria entre os objetivos
amparar com a forma legal para a participação das licitações para a alimentação
escolar (nesse período ainda não era possível a compra por meio das chama-
das públicas, instituída em 2009), além de outras potencialidades, tais como
aumento do poder de barganha e de reivindicação. A organização dos agricul-
tores deixa evidente a necessidade de se apoiar na ação coletiva para o acesso
às políticas públicas, assim como para a própria construção social dos mercados.
A insegurança dos agricultores ao desenvolver uma atividade nova e a
dificuldade de construir os mercados locais poderiam ter inviabilizado o esforço
do poder público local ao propor esse programa inovador, no entanto os agricul-
tores que se organizaram para o processamento de matérias-primas de origem
animal ou vegetal, ao se defrontarem com a possibilidade de um mercado
fixo, com garantia de renda, sentiram-se seguros para fazer investimentos e
contrair financiamentos para construir ou adaptar as estruturas, assim como
para comprar equipamentos. A comercialização para a alimentação escolar aos
moldes da lei das licitações chegou a acontecer em 2008, quando quatro agroin-
dústrias comercializaram para a prefeitura, mediante a Cooper Jeito Caseiro.
Mesmo havendo essa movimentação anterior a 2009, a experiência de
fato se consolidou após a mudança das bases filosóficas do Pnae. Em 2010,4
em virtude da obrigatoriedade da compra de produtos da AF e da substi-
tuição da licitação pelo instrumento jurídico de compra pelas chamadas
públicas para a alimentação escolar houve um grande avanço. Segundo os
agentes de desenvolvimento envolvidos, o processo de licitação inviabiliza-
ria a inserção dos agricultores familiares, pois além de exigir muitos procedi-
mentos documentais que esses não dominam, tornaria o processo demorado
e menos dinâmico. Mesmo assim, a Cooper Jeito Caseiro continua sendo um
agente importante que intermedeia o processo de compra e organiza a oferta
em função da demanda. Mesmo que o instrumento de chamadas públicas
tenha facilitado o acesso aos mercados institucionais, exige conhecimentos
que fogem do dia a dia dos agricultores, tais como elaboração de projeto

4
Antes de 2010 participaram dez agroindústrias das chamadas públicas.
O Papel da Alimentação Escolar na Construção de Mercados Para a Agricultura Familiar 247

de venda, definição de quantidades, formalização legal do compromisso,


dentre outros, e a cooperativa acaba atuando nesses pontos mais específicos
e burocráticos. Um dos principais benefícios da cooperativa é a atuação na
organização da produção, o que reduz a concorrência entre as agroindústrias.
A relação entre os atores também adquire mais complexidade, pois agru-
pa-se uma série de novos agentes, entre os quais há necessidade de ajustes,
tais como as prefeituras, os conselhos de alimentação escolar, os diretores de
escolas, as nutricionistas, os responsáveis pelo financeiro nas administrações
municipal e estadual, os órgãos de fiscalização, e até mesmo as próprias orga-
nizações dos agricultores. Organizados em uma cooperativa, a intermediação
entre esses diversos atores ocorre de forma mais organizada e eficaz, assim a
informação chega a todos os associados, o que não aconteceria se a relação com
essa multiplicidade de atores se fizesse com todas as famílias, individualmente.
O caso de SFA corrobora com o que afirmam Marsden, Banks e
Bristow (2000), quando abordam os circuitos curtos de comercialização, ou
seja, novas equações entre o espaço, natureza e valor de qualidade podem
ser construídos com ações cuidadosamente organizadas e com a criação de
novas sinergias. O número de agroindústrias participantes das chamadas
públicas ascendeu entre os anos de 2010 e 2012, de 10 para 12 famílias. Além
das agroindústrias “Jeito Caseiro”, incorporaram-se também produtores de
frutas, verduras e de hortaliças no mercado institucional. Atualmente a Coo-
perativa Jeito Caseiro possui 36 sócios, dos quais 25 participam dos projetos
de comercialização para o Pnae, com um total de vendas em 2013 de R$
60.000,00. A partir da consolidação das vendas para o Pnae, mais 10 famílias
tornaram-se sócias da cooperativa com o objetivo de acessar esse mercado,
o que de certa forma reforça a “tese” de que esse mercado é fortalecedor ou
responsável pelo desenvolvimento de novas iniciativas no município. Para
os agricultores o Pnae representa uma segurança, é a “âncora que esse precisa,
pois o resto do mercado que o agricultor acessa é inseguro, assim se não tivesse as
compras para o Pnae o programa Jeito Caseiro teria sido bem diferente”.5 A venda

5
Expressão utilizada por um dos informantes qualificados.
248 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – G u s t a v o P i n t o d a S i l v a – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

para o Pnae fortalece pequenas iniciativas, que acabam se consolidando e


criando as capacidades para acessar outros mercados, paralelo aos próprios
mercados convencionais, como é o caso dos supermercados locais.
Um fator importante é a necessidade de mais agentes de desenvol-
vimento em constante diálogo com as famílias, inclusive no amparo admi-
nistrativo das cooperativas, pois os agricultores carecem de sustentação
nestas atividades. Isso demonstra a importância e a necessidade do mercado
institucional estar sendo constantemente fomentado pela extensão rural e
por outros agentes de desenvolvimento. Esse mercado tem particularida-
des que criam a necessidade de uma série de agentes de desenvolvimen-
to envolvidos com o rural, criando relações com os agricultores que antes
ficavam muito mais circunscritas aos extensionistas rurais. As nutricionistas
do município, por exemplo, representam agentes viabilizadores do mercado,
são agentes ativos e envolvidos com o processo. Isso demandou uma série
de desconstruções da visão desses profissionais a respeito da alimentação,
assim como um envolvimento com o rural, que antes não existia. Esse envol-
vimento vai desde a elaboração do cardápio, à descrição diferenciada do
produto para contemplar a AF, até o diálogo com os agricultores visando à
qualidade do produto e garantia de oferta.
Entre os principais problemas levantados para que o mercado se
amplie para além dos 30% exigidos pela legislação, está a dificuldade de
organização da produção por parte dos agricultores, pois muitas vezes faltam
produtos demandados. A falta de confiança dos agricultores faz com que se
tornem temerários em planejar uma produção que antes não era visada pelo
mercado convencional, o que resulta em falta de oferta de alguns produtos
solicitados pelas chamadas públicas.
O mercado institucional estabelecido pelo Pnae ainda se encontra
em formação, pois traz consigo uma série de desafios no que tange a criar
situações de desenvolvimento e de inserção diferenciada de agentes de
desenvolvimento e a construção de espaços para os produtos da AF. As
características específicas desse programa são um grande diferencial para
o desenvolvimento regional. Esse fator, aliado à segurança nos mercados,
faz com que novos atores se envolvam e novos sistemas de produção se
desenvolvam nos municípios. É necessário, no entanto, que os agricultores
O Papel da Alimentação Escolar na Construção de Mercados Para a Agricultura Familiar 249

se apoderem mais do processo para que o mercado se amplie para além do


mercado institucional, pois esse mercado, embora seja garantido, é limitado
e absorve um número pequeno de famílias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A venda para o Pnae fortaleceu os agricultores envolvidos e motivou o
investimento em sistemas diferenciados de produção, aumentando e/ou qua-
lificando aqueles já existentes, mas que eram voltados quase exclusivamente
para o autoconsumo. Os valores referentes à comercialização dos produtos da
agricultura familiar para a alimentação escolar foram aumentando a partir da
efetivação das mudanças na política pública, em 2009, de forma significativa.
Ao mesmo tempo, no entanto, em que se nota a comercialização de uma
grande variedade de produtos, percebe-se dificuldades de produção de alguns
produtos demandados, o que revela que é necessário avançar no processo.
A partir da experiência estudada pode-se afirmar que há um movimen-
to de concertação dos agentes envolvidos com o processo, no sentido de forta-
lecer os sistemas de produção locais e de estimular o acesso dos agricultores a
outros mercados, além do possibilitado pelo Pnae. Neste sentido, parece ser
uma inferência importante a necessidade da criação de novas institucionalida-
des, espaços de negociação de normas de relacionamento, as quais dialogam
permanentemente com as instituições tradicionais, buscando-se transformar
o seu modus operandi. A criação da cooperativa e a concertação de agentes
para acesso às chamadas públicas e construção dos projetos de compra são
exemplos destas novas institucionalidades, as quais enfrentarão, certamente,
em vários momentos, a oposição das “velhas” institucionalidades, pois estas
representam o Estado e este é o ente regulador das relações sociais, muitas
vezes comprometidas com uma forma tradicional de pensar e agir conflitantes.

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IDENTIDADES E PATRIMÔNIO CULTURAL EM SISTEMAS
DE PRODUÇÃO DE ALIMENTOS COLONIAIS NO RURAL
CONTEMPORÂNEO DA QUARTA COLÔNIA-RS

Gisele Martins Guimarães


Ivaldo Gehlen

IDENTIDADES COMO PATRIMÔNIO CULTURAL


O resgate das culturas, sobretudo as identitárias, e das histórias par-
ticulares, constitui-se no diferencial para a sobrevivência e afirmação social
das diferentes etnias e formações sociais específicas nesses tempos de meta-
morfoseamento, conhecido como globalização. A valorização dos saberes
gerados historicamente e das formas ou modos de vida se constitui num
meio eficaz para evidenciá-las.
Neste sentido, afirmar especificidades referenciadas nas identidades
socioculturais se constitui numa estratégia de enfrentar as dicotomias da
globalização, entendida como um conjunto de processos socioeconômicos,
político-institucionais e simbólico-culturais, permeados pela acelerada circu-
lação de pessoas, mercadorias e ideias vem ocasionando transformações no
âmbito da compreensão e do agir dos indivíduos no território em que vivem.
Sob a égide do território como significância local da globalização, este
texto analisa as estratégias de desenvolvimento de um território composto
por nove municípios, localizados na Região Central do Rio Grande do Sul,
conhecidos no seu conjunto como Quarta Colônia/RS. Suas estratégias de
desenvolvimento são pautadas pela valorização das identidades socioculturais
e profissionais presentes nesse território. Essas identidades estão materiali-
zadas, entre outros atributos, na valorização de produtos artesanais típicos da
254 Gisele Martins Guimarães – Ivaldo Gehlen

colônia (produtos coloniais), idealizados a partir do saber-fazer, que manifes-


tam seu caráter identitário transmitido intergeracionalmente entre as famílias
de agricultores e de empreendedores inovadores que mantêm a centralidade
na família produtora. A maioria de descendência étnica europeia, predominan-
do a italiana e a alemã, porém no interior do território vivem diversas outras
etnias, como quilombolas, caboclas, e afrobrasileiras.
O sentido às especificidades locais é dado pelo conceito de território,
que pode ser considerado uma referência globalizante, em construção na
Quarta Colônia em paralelo ao conceito de globalização, opondo-se, por
vezes, pelas possibilidades que oferece de reconhecer e valorizar as especi-
ficidades locais e regionais, à pretensão de uniformização pela globalização
(Gehlen; Riella, 2004).
Dentre os vários sentidos que o conceito de território carrega, des-
tacam-se aqueles auferidos pela Sociologia, que o entende como espaço de
ação coletiva, construído a partir de seus atores sociais. Sob esta concepção,
o conceito de território envolve um processo de interação entre o espaço
e a ação humana, que se expressa na forma de uso e nas alterações que o
agir dos indivíduos produz sobre a “base física” em que vivem (Schneider,
2004). Surge, portanto, como “[...] resultado de uma ação social, que de
forma concreta e abstrata, se apropria de um determinado espaço físico ou
simbólico, denominado de construção social” (Flores, 2006, p. 4).
É neste contexto de construção e ressignificações, que as identidades
ganham sentido como orientadoras das ações voltadas ao desenvolvimento terri-
torial. Estas ações projetam-se numa perspectiva relacional interna, mobilizando
e motivando dinâmicas e resultados, consolidando o sentido de pertencimento
a um lugar, às comunidades (Santos, 2002). Sob este aspecto, materializam-se,
por meio de expressões, sentimentos, valores, cultura e trabalho.
A cultura à qual a identidade se reporta não é estanque no tempo,
nem marcada exclusivamente pela ideia de se voltar aos atos e valores do
passado, mas se configura por um processo contínuo de transformações das
relações sociais e suas significações. As identidades, portanto, são constru-
ídas a partir de significações partilhadas entre as memórias temporais dos
atores sociais, lembrados ou esquecidos, e os interesses construídos a partir
da interseção entre a memória e o presente.
Identidades e Patrimônio Cultural em Sistemas de Produção de Alimentos Coloniais no Rural Contemporâneo da Quarta Colônia-RS 255

O conceito de identidade, como um código local, material e cognitivo,


é produto social da territorialização e se constitui no patrimônio cultural, eco-
nômico, político, cultural e ambiental de cada lugar. A ideia de patrimônio cul-
tural remete à riqueza construída e transmitida, de geração para geração, como
o legado que influencia a identidade dos indivíduos e grupos sociais. Assim,
a identidade se constitui numa construção cultural de artefatos, costumes,
gêneros de vida, sistemas de produção, construídos a partir de subjetividades
individuais e coletivas relacionadas a sentimentos de pertencimento territorial.
Ocorre aí um forte vínculo dos atores sociais com o espaço no qual estão inseri-
dos, que se reconhecem a partir de sua territorialização num determinado lugar.
Explicitando melhor, as formas como tais significações se manifes-
tam expressam as identidades socioculturais e socioprofissionais, como a
materialização dos sentidos e motivações dos atores sociais. As identidades
socioculturais remetem o indivíduo a uma condição de existência privada,
expressa por relações interativas com o seu universo social, demarcado cul-
turalmente por um conjunto de valores, culinária, hábitos, expressões artís-
ticas, ou condições de semelhanças, como grupos étnicos, por exemplo. As
identidades socioprofissionais referem-se a um conjunto de significações e
interesses atribuídos a fatos ou demandas específicas de grupos de atores
sociais que partilham objetivos, interesses e significações comuns vinculadas
às atividades socialmente exercidas. As atividades profissionais, bem como as
profissões formalizadas, são exemplos de condições de identidades sociopro-
fissionais estabelecidas entre os que se autorreconhecem como semelhantes.
A partir de uma abordagem territorial, reconhecendo o lugar, suas espe-
cificidades e condições de pertencimento de seus atores, as ações, bem como o
planejamento destas, passam a ser significadas e materializadas em produtos e
em modos de vida. Assim, enquanto estratégia para o desenvolvimento, o recorte
territorial pode maximizar dinâmicas produtivas específicas dotadas de singula-
ridades, promovendo uma re-localização do lugar e de suas funções, por meio do
território e das suas identidades, explicitando uma valorização do cotidiano e de
seus significados como forma de viabilização de iniciativas (Schneider, 2004). Isto
inclui a preservação do patrimônio cultural existente e estratégias de valorização
de seus produtos e formas de fazer, atualmente esquecidas ou substituídas por
modelos industrializados de produção, mas que permanecem vivas, como patri-
mônio cultural de determinadas categorias socioprodutivas.
256 Gisele Martins Guimarães – Ivaldo Gehlen

CONSTRUÇÃO DA QUARTA COLÔNIA/RS


COMO TERRITÓRIO DE DESENVOLVIMENTO
Localizada na Região Central do Rio Grande do Sul, a Quarta
Colônia localiza-se aproximadamente a 30 quilômetros da cidade de Santa
Maria e cerca de 250 quilômetros da Capital, Porto Alegre. Seu território é
formado por nove municípios: Silveira Martins, Faxinal do Soturno, Pinhal
Grande, Dona Francisca, São João do Polêsine, Ivorá, Agudo, Nova Palma e
Restinga Seca. Todos estão localizados geograficamente na área de Reserva
da Biosfera da Mata Atlântica que foi tombada pela Unesco como patrimô-
nio natural da humanidade. Isto lhe confere vantagens como patrimônio
paisagístico (matas, morros, córregos, cachoeiras, etc.), porém também lhe
atribui desvantagens no uso do solo, por situar-se em Áreas de Preservação
Permanente (APPs). Observa-se ainda uma predominância demográfica com
ascendência étnica italiana e alemã.

Figura 1 – Localização dos municípios da Quarta Colônia

Fonte: Hectare do Brasil Ltda. Localização Quarta Colônia no Mapa do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre, 2015.
Identidades e Patrimônio Cultural em Sistemas de Produção de Alimentos Coloniais no Rural Contemporâneo da Quarta Colônia-RS 257

A denominação “Quarta Colônia” foi atribuída por ser a quarta área


do Rio Grande do Sul destinada e estruturada para receber imigrantes de
origem europeia nas últimas décadas do século 19. A economia, atualmente,
é predominantemente agropecuária, com destaque para o arroz irrigado,
batata-doce, batata-inglesa, feijão-preto, tabaco, gado de leite, entre outras.
Tem forte presença de atividades econômicas não agrícolas, como a agroin-
dustrialização de alimentos, representada pela presença de estabelecimentos
processadores de panificados, embutidos cárneos, queijos, vinhos e cachaça.
A estrutura fundiária caracteriza-se pela predominância de unidades
de exploração de tipo familiar,1 áreas médias de 30 hectares (Instituto...,
2006) e atividades produtivas diversificadas. O tipo conhecido como familiar
se constitui num modo de produção e, portanto, de vida, que afeta tanto a
economia, quanto a cultura e as representações simbólicas.
A construção do território “Quarta Colônia”, inicia-se na década de
80, coincidindo com o processo de emancipação da maioria dos municípios
componentes. Em 1989, em Silveira Martins inicia-se o “Projeto Identida-
de”, com base nos princípios da educação patrimonial centrado em troca de
experiências por meio de relatos, palestras, inventários históricos, etc., real-
çando os saberes transmitidos pelos antecedentes europeus e tendo como
premissa o resgate da cultura herdada como patrimônio. Essa iniciativa,
entre outras, colocam a preservação da memória histórica do lugar como
fundamental para o desenvolvimento da região, inspirando os demais muni-
cípios a valorizarem suas identidades como estratégia de desenvolvimento.
Esse resgate identitário possibilitou a mobilização dos demais muni-
cípios para o engajamento numa proposta de desenvolvimento integrado.
A legitimação das ações conjuntas ocorreu com a criação do Projeto de
Desenvolvimento Sustentável da Quarta Colônia, o Prodesus, que articula
as identidades materiais expressas na paisagem e edificações e as imate-

1
A tipologia “Agricultor Familiar” refere-se a uma categoria social, política e produtiva
reconhecida pela Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006 (Lei da Agricultura Familiar) que
designa dimensão, mão de obra e renda anual adquirida específica para enquadramento.
Ver <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11326.htm>.
258 Gisele Martins Guimarães – Ivaldo Gehlen

riais, expressas pela cultura, religiosidade e gastronomia. O objetivo destas


estratégias era alavancar o chamado turismo rural, centrado no ecológico e
no cultural simbólico.
A criação do Prodesus provocou a necessidade da formação de um
consórcio para gerir os recursos e ações políticas dos nove municípios, o que
ocorreu em 1996 com o Consórcio para o Desenvolvimento Sustentável da
Quarta Colônia (Condesus), objetivando a integração destes por meio de
projetos e ações em comum, tendo como eixo central, em suas iniciativas, o
desenvolvimento do turismo. Assim, a institucionalização das identidades
passa a servir de mote para o desenvolvimento do então criado Território
Quarta Colônia.

Entre 1989, 1990, a Quarta Colônia teve mudanças políticas muito


importantes em função das emancipações dos municípios. Os pro-
cessos políticos todos vinham no sentido de juntar os cacos deixa-
dos pela divisão do território entre Cachoeira do Sul, Santa Maria
e Júlio de Castilhos. Nessa fase se agregam muitas pessoas às
discussões na região, contribuindo para a criação de novas ideias.
Antes dessas, havia o predomínio de políticos muito conservado-
res, no caso de Silveira Martins podemos citar os representantes
ligados à UDN e PSB, que sempre tiveram vitórias avassaladoras.
Tinham também algumas lideranças ligadas ao PDT de Brizola,
mas estes sempre foram abafados, sem muita expressão. Com as
emancipações dos municípios o PMDB ganha visibilidade em
função do governo Simon, predominante na época, que vai então
subsidiar muito da estrutura da Quarta Colônia, como asfalta-
mento das estradas de acesso aos municípios. Também tem o
fato que na década de 90 a Emater teve um grande aporte de
novos técnicos, com novas visões, muitos vindos de movimentos
estudantis. Isso dá a Quarta Colônia uma nova possibilidade de
desenvolvimento, criando movimento propício para novos rumos.
Nesse cenário que nasceu o Prodesus, que na verdade é resultado
de um trabalho longo feito com os municípios, escolas, prefeituras
e instituições (onde entrou a Emater) e que foi de muita impor-
tância para consolidação da região (agente técnico entrevistado).
Identidades e Patrimônio Cultural em Sistemas de Produção de Alimentos Coloniais no Rural Contemporâneo da Quarta Colônia-RS 259

Estruturalmente o Prodesus/Condesus idealiza quatro eixos nortea-


dores de ações para o desenvolvimento sustentável do território. O primeiro
é o manejo dos recursos naturais da Quarta Colônia; o segundo é o desen-
volvimento da agricultura ecológica; o terceiro trata do desenvolvimento
do turismo ecológico, turismo rural e turismo cultural e o quarto aborda a
educação ambiental. Os quatros eixos interagem complementarmente e
em cada um desenvolveram-se ações de educação ambiental e patrimonial,
resgate da memória cultural, técnicas e práticas para agricultura com bases
ecológicas e sustentáveis, capacitação e qualificação de produtores em pro-
cessamento de alimentos e estabelecimento do turismo rural, cultural e
ecológico.
A culminância desses eixos foi a projeção do turismo, com foco no
ecológico (patrimônio ambiental a ser preservado), no rural, pela presença
da agricultura familiar no desenho socioprodutivo do território, e no cultural,
com materialização das tradições nas formas de vida, nas técnicas artesanais
de produção (artesanato e gastronomia) e nas potencialidades naturais a
serem exploradas no campo científico, no último caso, por meio de pesqui-
sas nos campos da Biologia (riqueza de fauna e flora), Arqueologia (sítios de
civilizações pré-históricas) e Paleontologia, em que a Quarta Colônia passa a
ser referência, a partir da criação e instalação do Centro de Apoio à Pesquisa
Paleontológica (Cappa), projetado pelo Condesus.
Desses eixos estruturantes nascem as rotas turísticas no território: a
Rota Gastronômica, a Rota Cultural e a Rota Ecoturística. Todas promovidas
pelo Condesus, que se legitima pelo reencontro de atores locais com as suas
histórias, buscando promover a superação das lembranças de um passado
ligado ao atraso, sob a resignação de “imigração esquecida” (Santin, 1986).
Dentre os quatro eixos idealizados, o turismo foi o que mais se con-
solidou a partir do discurso ideológico a respeito da Quarta Colônia, assim
as ações do Condesus foram constituindo, aos poucos, um lugar no imagi-
nário dos consumidores turistas (Guimarães, 2011). Assim, como resultado
do processo de resgate (Projeto Identidade), legitimação (Prodesus) e ins-
titucionalização (Condesus) das identidades presentes no lugar, tem-se a
constituição do território “Quarta Colônia”.
260 Gisele Martins Guimarães – Ivaldo Gehlen

Esse processo de resgate das identidades e legitimação de seu uso


para o desenvolvimento repercute fortemente nos atores sociais, especial-
mente no seu cotidiano e em seus modos de vida. Estes traços, somados à
beleza paisagística do lugar, fazem da Quarta Colônia um local de particula-
ridades, tendo, de um lado, a singularidade de seus recursos naturais como
patrimônio paisagístico e, de outro, as limitações ambientais impostas por
esta condição, uma vez que parte considerável de suas terras está localizada
em áreas consideradas de preservação permanente – APPs.
Diante deste cenário, devido às limitações de uso do solo, dadas as
condições ambientais, a agroindustrialização de alimentos aparece como
importante alternativa de renda para as famílias, sendo esse potencial per-
cebido como impulsionador da economia local, ancorada basicamente na
agricultura familiar e nos serviços rurais não agrícolas, com destaque para
as Agroindústrias Familiares Rurais (AFRs).
As AFRs, em sua complexidade de conceitos (Guimarães; Silveira,
2007) e significados, toma como referência para sua caracterização uma série
de fatores de ordem específica como mão de obra utilizada, instalações,
máquinas, equipamentos e formulações tradicionais que possuem, em sua
essência, significações culturais. É o saber-fazer como expressão da iden-
tidade sociocultural de um determinado território que, passado de forma
histórica, entre as gerações, pode constituir recurso específico a ser ativado
como oportunidade produtiva e ainda estratégia de reversão ao quadro de
êxodo rural seletivo que caracteriza as atuais pesquisas demográficas do
meio rural brasileiro, que evidenciam um processo de envelhecimento e
masculinização entre esta população (Spanevello, 2008; Froehlich, 2011).
Assim, a Quarta Colônia/RS, com um potencial sociocultural instala-
do de forma intergeracional entre os atores do território, mais as limitações
de uso do solo pela localização dos municípios em áreas de APP, a partir da
criação do Consórcio dos municípios (Condesus) passa a promover ações de
qualificação dos produtos e serviços de caracterização identitária (gastrono-
mia italiana e alemã) como estratégia de atratividade turística, no intuito do
desenvolvimento territorial.
Identidades e Patrimônio Cultural em Sistemas de Produção de Alimentos Coloniais no Rural Contemporâneo da Quarta Colônia-RS 261

A partir de uma série de políticas locais e regionais, emerge um


mercado turístico territorial gerado pelas ações de visibilidade das identi-
dades socioculturais presentes, possibilitando aos produtores de alimentos
coloniais novas oportunidades produtivas oriundas da significação de seu
trabalho como patrimônio cultural. O turismo, porém, na condição de um
gerador de mercados, impõe novas necessidades aos produtores de alimen-
tos coloniais, sobretudo de inovações técnicas exigidas pelo conjunto de leis
e normativas que regram o mercado formal.
Tais leis e normativas são, em muitos casos, incompatíveis com a
estrutura dos produtores artesanais (instalações e equipamentos) e conver-
tem-se em barreiras mercadológicas a estes, impulsionando a necessidade
de adaptações nas dinâmicas produtivas tradicionais, promovendo uma série
de rearranjos nos sistemas produtivos, visando à obtenção de certificação da
qualidade e em consequência, possibilidade de circulação dos produtos em
caráter formal (Guimarães; Silveira, 2007).
Assim, a partir das iniciativas de desenvolvimento integrado dos nove
municípios, idealizadas pelo Condesus, iniciam-se atividades de capacitação
dos produtores para o mercado, em que emerge a presença de diferentes
organizações de apoio às famílias produtoras como Sebrae, Emater, universi-
dades e organizações de caráter não governamental. Estas passam a investir
na “formação” dos produtores em Boas Práticas de Fabricação (BPF), gestão
dos empreendimentos e ainda comercialização e marketing dos produtos.
Cada uma das instâncias de apoio possui formas e métodos especí-
ficos de trabalho, indo de cursos formais a trocas de experiências entre os
atores, no entanto constata-se entre estas uma característica em comum
no que se refere ao mote condutor das ações de capacitação, ou seja, a
formação convencional dos produtores. Convencional no sentido de as
qualificações em produção e processamento serem promovidas pelas insti-
tuições no caminho da legislação sanitária, o que prediz não diferenciação
ou consonância com as tradições artesanais de produção que caracterizam
os alimentos coloniais. Este processo, em curso há mais de 20 anos, vem
promovendo adaptações nas formas de produção dos chamados produtos
típicos da colônia.
262 Gisele Martins Guimarães – Ivaldo Gehlen

O SABER-FAZER COMO ELEMENTO DE DIFERENCIAÇÃO


NOS SISTEMAS PRODUTIVOS DE ALIMENTOS
O saber-fazer é uma forma de expressão da cultura local, constitui um
conjunto de habilidades específicas, que estabelecem relações de mútuo
reconhecimento entre os que com ele se identificam. Resulta de conheci-
mentos herdados e repassados de geração em geração, por isso possibilitam
promover bens e serviços com singularidades específicas que atribuem
sentido ao território no qual são gerados. Este sentido é construído a partir
de patrimônios identitários socioculturais, passados entre as gerações e se
expressam como reivindicação de legitimação das identidades.
O saber-fazer na agricultura familiar está associado à condições de
produção historicamente desenvolvidas pelas famílias produtoras como
forma de conservação e armazenagem de produtos ou como práticas alimen-
tares tradicionais carregadas de sentidos, como as manifestações culturais
(festas, mutirões, etc.), que são reforçadas quando a origem da comunidade
é de imigrantes que já portavam essa identidade.
Na Quarta Colônia convencionou-se priorizar para fins comerciais
a tradição trazida da Itália que, reformulada no convívio local, propiciou
saberes específicos. Agrega-se outras tradições, como a alemã, a quilombola
e a gaúcha ou nativa, caso do chimarrão e do churrasco, entre outras. Dessa
forma, as singularidades geradas a partir da história e das experiências de
cada família impulsiona e orienta atividades de elaboração de alimentos,
como um produto único, ligado a um modo de vida local.
Neste contexto, em várias regiões do Rio Grande do Sul e na Quarta
Colônia, os chamados produtos coloniais estão associados às formas tradi-
cionais de produzir dos imigrantes europeus. A denominação de produto
colonial origina-se da associação com as tradições e saberes cultivados pelos
colonos (agricultores familiares, prestadores de serviços, artesãos, etc.), imi-
grantes nos séculos 18 e 19. Por meio desse tipo de produto, pode-se rea-
vivar e difundir modos de vida de imigrantes por materializarem as identi-
dades socioculturais, como construção modificada das matrizes originárias
e, além de as expressarem, promoverem um capital cultural passível de
Identidades e Patrimônio Cultural em Sistemas de Produção de Alimentos Coloniais no Rural Contemporâneo da Quarta Colônia-RS 263

geração de renda e patrimônio material. Essa capitalização de um valor sim-


bólico ocorre pela diferenciação dos produtos coloniais ou artesanais, como
são reconhecidos, dos convencionais industrializados.
Os produtos elaborados com base em características artesanais, geral-
mente processados na cozinha doméstica das famílias, ou em instalações
simples, materializam o sentido do saber-fazer como expressão da cultura
local, permitindo que os consumidores percebam e degustem os significados
imateriais ou imaginários ou ainda simbólicos dos produtos. Esta significa-
ção é percebida como diferencial nos alimentos pelo emprego da matéria-
-prima local, o processamento em pequena escala e o uso de equipamentos
tradicionais.
Sob esta racionalidade, os produtores têm a possibilidade de con-
solidar novos espaços de mercado por meio de seus conhecimentos e pela
ampla diversidade de oportunidades, a partir da agregação de valor a produ-
tos e serviços por eles produzidos. É o saber-fazer como resultante de um
conjunto de elementos socioprodutivos específicos (sistemas de produção,
localização, tecnologias próprias e/ou adaptadas) que podem conferir espe-
cificidade aos territórios, por meio da materialização de suas identidades,
expressas em bens e serviços.
Com o propósito de valorização do saber-fazer enquanto oportunida-
de produtiva constrói-se no Brasil e no Rio Grande do Sul, a partir da década
de 90, políticas públicas de fomento à agroindustrialização de alimentos
como estratégia de afirmação da agricultura familiar. No bojo destas ações
encontram-se iniciativas de capacitação dos produtores e de suas estruturas
produtivas, visando à inserção dos produtos processados no mercado formal,
promovendo agregação de valor aos produtos agropecuários locais.
Esta alternativa de reprodução socioeconômica apresenta desafios
para se concretizar no universo da agricultura familiar que se orienta por
racionalidades específicas, e, no caso de regiões de ascendências étnicas
diferentes, por fazeres que, além de serem produtos ou mercadoria, expres-
sam significados simbólicos e/ou culturais particulares. Dentre estes desafios
destaca-se a legalização dos empreendimentos no tocante à legislação sani-
tária, ambiental, tributária e fiscal, relativa às atividades de processamento
e comercialização de alimentos. Esta adequação à formalização e legalização
264 Gisele Martins Guimarães – Ivaldo Gehlen

dos empreendimentos implica a necessidade de qualificar os processos pro-


dutivos de agroindustrialização, incluindo utilização de máquinas e equipa-
mentos e os procedimentos específicos de produção industrial, afetando seu
perfil diferenciado pelo saber-fazer específicos, pelo uso de seu patrimônio
identitário e cultural.
A diferenciação das estratégias de desenvolvimento que priorizem
especificidades, não reconhecidas pela legislação sanitária vigente, con-
frontadas com a normatização da produção do mercado de alimentos e o
uso de mecanismos de regulação da qualidade geram a contradição entre
territorialização x globalização e que interferem diretamente nos processos
produtivos rurais.
Diversos estudos, como os de Prezzoto (1999), Mior (2005), Guima-
rães (2001; 2011), entre outros, demonstram que as estratégias de valoriza-
ção dos produtos identitários para obterem êxito exigem uma articulação
entre os saberes locais e o saber científico, na construção tanto de novos
saberes quanto de mecanismos regulatórios. Este diálogo é fundamental
para inserção dos produtos no mercado consumidor, cujas normas e regra-
mentos sanitários, muitas vezes, são incompatíveis com os saberes tradi-
cionais. O que está em jogo, portanto, é a valorização e a capacitação dos
saberes e não a sua padronização, sob o viés da especialização produtiva
industrial.

RACIONALIDADES IDENTITÁRIAS E REPRESENTAÇÕES SOBRE O


“COLONIAL” NOS SISTEMAS PRODUTIVOS DA QUARTA COLÔNIA/RS
Analisando-se o contexto produtivo dos estabelecimentos familiares
da Quarta Colônia, verifica-se a ocorrência de dois sistemas de produção:
o “Sistema de Produção de Alimentos Coloniais Tradicional” e o “Sistema
de Produção de Alimentos Coloniais Transformado”. Entende-se aqui por
sistema de produção, o conjunto de fatores mobilizados para realizar a finali-
dade produtiva da unidade, ou seja: mão de obra, insumos, máquinas, equi-
pamentos e as tecnologias utilizadas. Ambos os sistemas estão em interação
dinâmica e são organizados para a produção e comercialização de alimentos
coloniais.
Identidades e Patrimônio Cultural em Sistemas de Produção de Alimentos Coloniais no Rural Contemporâneo da Quarta Colônia-RS 265

Tais sistemas apresentam-se distintos entre si no que se refere as


suas práticas, identificadas pelos componentes conceituais referidos e que
caracterizam suas dinâmicas produtivas. Concorre também o saber-fazer, a
qualificação da força de trabalho utilizada e as condições legais dos estabele-
cimentos. Cada sistema possui sua representação sobre o colonial, derivando
daí as racionalidades identitárias que guiam os atores no que se refere ao
uso de suas identidades como oportunidades produtivas.
As representações sociais são aqui compreendidas como as ações em
que se manifesta a capacidade de se projetar para fora de seu contexto espe-
cífico, por meio de afirmações, conceitos e valores por meio da comunicação,
da convivência e da aceitação em um determinado grupo social (Moscovici,
1998). Trata-se, pois, de uma forma de conhecimento que contém especifi-
cidades e que é gerado e se expressa mediante ações e sentidos particulares.
Daí a importância deste conceito como suporte para a identificação e a
compreensão das racionalidades expressas nas ações sociais.
Sendo as representações um produto social, é necessário sempre
remetê-las às condições sociais que as engendram, ou seja, ao seu contexto
(Jodelet, 2001). As representações sociais são complexas e sua riqueza feno-
mênica, manifesta-se de formas diversas, tais como elementos informativos,
cognitivos, ideológicos, normativos, crenças, valores, atitudes, opiniões e
imagens. Objetiva organizar os saberes sobre a realidade. Daí a emergência
das racionalidades identitárias como a procura pela razão que exprime o
sentido que cada ator dá a sua própria conduta, inspirado e inspirando sua
identidade.
Conhecer as racionalidades permite compreender as motivações que
mobilizam os componentes identitários, transformando em oportunidades e
desencadeando processos de transformação dessa mesma identidade.
No Sistema de Produção de Alimentos Coloniais Tradicional –
Sistema Tradicional – os alimentos coloniais são processados a partir de for-
mulações ou receitas passadas entre as famílias, de geração em geração,
como patrimônio cultural delas, não seguindo padronização, sendo regidos
pela arte do saber-fazer. Os produtores não possuem instalações próprias de
beneficiamento ou transformação da matéria-prima, com o processamento
sendo realizado predominantemente nas cozinhas das moradias, com uten-
266 Gisele Martins Guimarães – Ivaldo Gehlen

sílios adaptados e equipamentos construídos por eles mesmos, como fornos,


cantinas e defumadores. Sob estas condições, os estabelecimentos produ-
tores não possuem certificação legal de seus produtos no que diz respeito
aos aspectos sanitário e ambiental.
Destas rotinas produtivas, a comercialização do excedente é feita sob
encomenda e entregue diretamente no domicílio do consumidor ou vendido
em feiras, como um produto a mais ao lado de outros, como feijão, leite e
hortigranjeiros. Para circulação destes produtos os agricultores utilizam o
Bloco de Produtor.
Nesse Sistema Tradicional a significação da produção é constituí-
da como parte do contexto da agricultura familiar e o processamento da
matéria-prima, como continuidade das demais atividades, objetivando incre-
mentar a renda familiar. O mote para agregar valor pelo turismo às práticas
tradicionais é a afirmação do uso de mão de obra familiar, uso de receitas e
procedimentos passados entre as gerações e o uso de tecnologia de carac-
terização artesanal, conferindo singularidade aos produtos afirmados como
patrimônio cultural sobrevivente.
Para o estudo que deu origem a este texto (Guimarães, 2011) foram
realizadas entrevistas com produtores do território. Entre os entrevistados,
quase metade (43,3%) tem seus estabelecimentos enquadrados no Sistema
Tradicional. Detectou-se uma crise de sobrevivência desse sistema, pois a
grande maioria situa-se entre 55 e 70 anos de idade e informaram (64%) que
seus descendentes não pretendem seguir nessa função, pondo em risco a
sucessão familiar nas atividades. Os motivos alegados para a desmotivação
dos descendentes são o excesso e penosidade do trabalho e as dificuldades
para manter e/ou entrar no mercado.
De outro lado, o Sistema de Produção de Alimentos Coloniais Trans-
formado – Sistema Transformado – abarca pouco mais da metade dos entre-
vistados (56,7%). Esses produtores apresentam dinamismo de investimentos
em tecnologias, em equipamentos e máquinas modernas (tipo industrial),
utilização de aditivos químicos na cura de salames e defumação, prensas de
inox na confecção de queijos, tanques de salga, etc.
Identidades e Patrimônio Cultural em Sistemas de Produção de Alimentos Coloniais no Rural Contemporâneo da Quarta Colônia-RS 267

A adoção destes equipamentos em substituição aos tradicionais


acarreta modificações nos produtos finais, no que se refere à apresentação
(formatos), padronização, cor, cheiro, sabor, etc. Estas mudanças impõem
transformações ao saber-fazer tradicional, impostas quer pela legislação
sanitária, quer pela necessidade de regularidade junto ao mercado, impli-
cando também a requalificação da força de trabalho. A formulação desses
produtos sofre adaptações em relação à tradicional e, em alguns casos, são
substituídas, porém sempre preservando a representação identitária como
patrimônio sociocultural.
O objetivo deste tipo de empreendimento é atender a demandas e
ampliar o acesso ao mercado formal, para isso a adequação às normas legais
se antepõe como dificuldade ou risco de sustentabilidade. Em 2011 quase
dois terços (64,28%) relataram como principal dificuldade a adequação às
normas sanitárias, cerca de um terço (28,57%) destacou dificuldade na ade-
quação tributária, explicitando assim a necessidade de ainda comercializa-
rem os produtos com a Nota de Produtor. Os demais (71,42%) comerciali-
zam com nota fiscal. O uso de nota fiscal gera o enquadramento jurídico dos
empreendimentos como empresas, podendo inviabilizar o funcionamento
de muitos deles.
A produção e a comercialização dos produtos sob a racionalidade
de uma empresa implica readaptações nos sistemas produtivos, que por
sua vez refletem-se nas identidades socioprofissionais dos produtores. De
produtores a empresários (de CPF a CNPJ), a incidência de novos tributos,
as exigências legais e as necessidades de adaptações técnicas fazem com
que os produtores percam vínculos com as instituições das quais estavam
acostumados a participar e receber apoio, como Sindicatos de Trabalhadores
Rurais, a Emater e as Secretarias de Agricultura dos municípios e Estado.
Há um desamparo técnico e legal a esses produtores que trocam de
classificação ou categoria socioprofissional para a de micro ou pequenos
empresários. Evidentemente, eles não deixam de se sentir agricultores, mas,
por enquadramento fiscal tributário, passam a conviver com novas exigên-
cias legais, nem sempre de seu conhecimento.
268 Gisele Martins Guimarães – Ivaldo Gehlen

Ao ingressarem no Sistema Transformado, os produtos são comercia-


lizados em centros convencionais do varejo regional, como supermercados,
padarias, armazéns coloniais, entre outros, colocando-os na condição de
concorrentes, disputa de preços e condições, semelhantes às grandes redes.
A caracterização etária dos pertencentes ao Sistema Transformado
revela uma relativa juventude (maioria entre 30 e 45 anos), portanto ali-
mentam projetos e sonhos, pois percebem na atividade oportunidades de
empreendedorismo. Por isso investem na agroindustrialização como um
negócio estratégico, não como complemento de renda. A expectativa de
terem sucessor no empreendimento é alta (92,8 % dos entrevistados), o que
lhes possibilita cultivarem sua cultura e utilizá-la como motivação principal
de sustentabilidade de seus investimentos na atividade e de mudanças de
seus saberes e fazeres, adequando-se às exigências legais.
Para garantir maior eficiência, são efetivadas trocas ou inter-relações
entre os sistemas, estas em formato de rede, que se unem por meio de laços
identitários comuns que se solidificam pelo sentimento de pertencimento à
mesma tradição, ao mesmo lugar e, portanto, compartilham idêntico patri-
mônio cultural e por vezes a mesma identidade socioprofissional. A partir
daí, consolidam-se relações de troca no que se refere ao abastecimento ao
turismo, em que os diferentes tipos de empreendimentos interagem media-
dos pela demanda do consumidor.
Essa noção de rede foi explorada por Mior (2005) ao analisar estra-
tégias de desenvolvimento em algumas regiões europeias, identificando os
arranjos institucionais territoriais e as relações de cooperação como funda-
mentais para o fortalecimento das potencialidades internas em oportunida-
des produtivas. Os laços tecidos pela noção de pertencimento dinamizam
redes de troca no que se refere à partilha de saberes, qualificação e mercado.
Considerando o papel da legalização dos empreendimentos na consolidação
das redes, criam-se dois tipos de rede: a Rede Estratégica de Abastecimento
e a Rede Informal de Abastecimento.
A Rede Estratégica de Abastecimento (Reat), formada por empreendi-
mentos legalizados ou em vias de legalização, é denominada de Estratégica
por promover visibilidade ao território com produtos de sua marca, comer-
Identidades e Patrimônio Cultural em Sistemas de Produção de Alimentos Coloniais no Rural Contemporâneo da Quarta Colônia-RS 269

cializados dentro e fora da Quarta Colônia. Os integrantes desta Rede são


predominantemente pertencentes dos Sistemas Transformados, com foco
na legalização dos empreendimentos como uma oportunidade de negócio.
A Rede Informal de Abastecimento (Riat) formada por produtores tradi-
cionais, apresenta limitações mercadológicas impostas aos estabelecimentos
não legalizados pelas normativas sanitárias que regulam o mercado.
Na Reat, a certificação dos produtos dá-se pela legalização dos
empreendimentos a partir do uso de mecanismos de regulação a distância
(como selos certificadores de qualidade); na Riat, efetiva-se pelas relações
de proximidade e vivência, construídas socialmente entre produtores e con-
sumidores.
Considerando-se os elementos produtivos presentes nos Sistemas
Tradicional e Transformado, tais como mão de obra utilizada, saber-fazer,
equipamentos usados, relação dos empreendimentos com o mercado, evi-
denciam-se distintas motivações no que se refere às identidades sociocul-
turais como alicerce dos processos produtivos.
Analisando os sistemas produtivos e as relações dos estabelecimentos
com o mercado, verifica-se que na Reat, a produção e a comercialização de
alimentos coloniais constituem a atividade principal dos integrantes, o que
faz com que o empreendimento seja tocado como um negócio, sendo esta
racionalidade representada por 43,3% dos entrevistados. Seu sentido empre-
endedor, focado em produtos certificados pelos processos técnicos de padro-
nização, secundariza o saber-fazer tradicional, por incompatibilidade com
as exigências legais de instalações e procedimentos, por isso negociam suas
potencialidades, transformando os seus produtos e os sistemas de produção,
A produção para o mercado exige aumento na escala produtiva e,
consequentemente, descaracterização de receitas tradicionais devido às
preocupações com a padronização dos produtos (aparência) e aos riscos de
sua contaminação, levando os produtores a exercerem suas atividades sob a
égide das normas de ciências e tecnologia de alimentos e pelas obrigações
legais de sanidade.
Os processos legais de certificação de qualidade, que incluem técni-
cas, insumos, máquinas e instalações específicas, estão diretamente relacio-
nados ao tipo de produto final e, portanto, são considerados fatores deter-
270 Gisele Martins Guimarães – Ivaldo Gehlen

minantes para a compreensão das racionalidades identitárias em evidência.


Assim, a produção e a comercialização de alimentos coloniais, embora ainda
dotada de sentimentos de afeto pelos produtores, dá lugar a uma racio-
nalidade produtiva, pautada pela lógica do negócio, investindo em novos
elementos, como escala de produção, saber científico e conquista de espaços
de mercado.
Sob outra perspectiva, a racionalidade produtiva evidenciada na
Riat tem seu viés na tradição, representando cerca 56,7% dos entrevista-
dos. Neste contexto produtivo, a atividade surge como aproveitamento da
matéria-prima produzida e, portanto, sem escalas de produção preestabele-
cidas, uso de tecnologias artesanais (máquinas, equipamentos e instalações
adaptadas pelos próprios produtores), sem certificação legal de qualidade
de seus processos produtivos.
Numa lógica de produção não amarrada às exigências de mercado
(escala produtiva e especialização), a comercialização dá-se por encomen-
das e entregas em domicílio ou vendidos na própria Unidade de Pro-
dução e nas feiras locais. As atividades de produção e comercialização
de alimentos coloniais emergem como continuidade e manutenção de
conhecimentos herdados de gerações passadas, dotadas de significados
de valor, como memória e afeto em virtude de vínculos tradicionais ainda
existentes entre as famílias.
Importante mencionar que ambas as redes são importantes para o
cenário turístico do território. A Rede Estratégica pela capacidade de levar o
nome Quarta Colônia para além das fronteiras territoriais, promovendo atra-
tividade turística, e a Rede Informal pela importância de preservar estilos
de vida herdados, como forma de sustentar pelas práticas e pelo discurso
oficial, mesmo que idealizado, um turismo alicerçado na valorização da tipi-
ficidade e da tradição.
Salienta-se ainda que o turismo em curso no território, consubstancia-
do pelo patrimônio natural e cultural presentes no lugar, promove feedback
entre as redes a partir de laços identitários firmados entre os integrantes de
uma e outra, por sentimentos de pertencimento ao lugar, dando contorno
às dinâmicas socioprodutivas da Quarta Colônia.
Identidades e Patrimônio Cultural em Sistemas de Produção de Alimentos Coloniais no Rural Contemporâneo da Quarta Colônia-RS 271

AS RACIONALIDADES EXPRESSAS NO USO DAS IDENTIDADES


A PARTIR DA DELIMITAÇÃO DOS SISTEMAS PRODUTIVOS
E REDES DE ABASTECIMENTO AO TURISMO
As relações tecidas entre os diferentes sistemas produtivos de ali-
mentos coloniais e as trocas efetivadas entre estes por meio das redes de
abastecimento ao turismo possuem pelo menos três significações no que se
refere as uso das identidades, o que denominados aqui de Racionalidades
Identitárias, o que segue.
1ª) Racionalidade Identitária de Origem, que tem a tradição como oportuni-
dade de diferenciação dos produtos. Com base no saber-fazer tradicional
materializa-se numa produção marcada pela cultura e pelo sistema de
conhecimento local que abriga processos produtivos específicos, dotados
de valor sentimental, como memória e afeto, em função de vínculos his-
tóricos com seus antepassados. A elaboração de produtos típicos faz parte
do cotidiano das famílias, sendo agora potencializadas em oportunidades
produtivas, por meio do turismo e sua estratégia de valorização das formas
de vida do território.
2ª) Racionalidade Identitária em Transformação, que tem na ideologização do
lugar, mediante a construção de imaginários lógicos, sua identificação
social. Para estes, o ideal do típico colonial apresenta-se caracterizado
por elementos de singularidade não materializados integralmente pelos
sistemas produtivos, visto que muitas formulações e dinâmicas de produ-
ção foram adaptadas às exigências legais, mas continuam sendo acionadas
pelos discursos e ações de promoção do território, pelo sentido lúdico e
ideológico, orientando o consumidor turista em sua subjetivação. Des-
perta sentidos e significações de caracterização simbólica, emergindo daí
oportunidades produtivas.
3ª) Racionalidade Identitária Transformada, guiada pela necessidade de
legalização dos estabelecimentos processadores de alimentos coloniais,
como resultado da interação entre as Racionalidades de Origem e a em
Transformação. Os atores, tendo como referencial os seus saberes, con-
vertem seus sistemas de produção sob a lógica do mercado, exigente em
padronização e certificações legais de qualidade, transformando-se pelas
272 Gisele Martins Guimarães – Ivaldo Gehlen

oportunidades de mercado dadas pelo turismo. Assim, a especialização


dos sistemas produtivos apresenta-se como condição negociada, em que
os estabelecimentos, percebendo o seu potencial, convertem suas ativi-
dades tradicionais em oportunidade de negócio.
Neste processo de constantes trocas e reconstruções de sentidos,
as identidades presentes permutam suas significações, construindo novas
referências a partir dos discursos ideológicos de exaltação à tipicidade como
ponto de partida para as iniciativas de valorização dos elementos identitá-
rios do território, dando assim contorno a este, marcado pelo influência de
um passado vivo, mas constantemente reconstruído a partir do global e sua
interseção com o mercado.

A CENTRALIDADE DO PATRIMÔNIO CULTURAL


PARA O DESENVOLVIMENTO DA QUARTA COLÔNIA/RS
O saber-fazer local e a capacidade dos atores para promover desenvol-
vimento fundado em suas características endógenas fortalecem os sentidos
de territorialidade. Tais características, no entanto, não podem ser analisadas
apenas pelo viés da cultura histórica dada, mas também pela construída, por
meio dos atores locais e das suas leituras do mundo contemporâneo.
Abramovay (2002) alerta para o fato de que os projetos de desen-
volvimento, quando apoiados exclusivamente nos atores sociais e em seus
elementos histórico-culturais dados ou de origem, podem limitar ou inibir
a descoberta de novas potencialidades a partir de sinergias entre o local e
o externo. Nessa ótica, as identidades, como patrimônio cultural aparecem
como uma condição negociada mediante a reconstrução dos artefatos, cos-
tumes, gêneros de vida, sistemas de produção e relações institucionaliza-
das. Elas emergem reconstruídas a partir de subjetividades individuais e
coletivas, estando relacionadas a sentimentos de pertencimento territorial,
permitindo que os atores se reconheçam a partir de sua territorialização.
No caso aqui exposto, os atores vêm reconfigurando seu patrimônio
cultural expresso no saber-fazer das famílias produtoras de alimentos colo-
niais, como forma de enfrentamento aos ditames da globalização, acionando
Identidades e Patrimônio Cultural em Sistemas de Produção de Alimentos Coloniais no Rural Contemporâneo da Quarta Colônia-RS 273

a territorialização como forma de significação de seus arranjos produtivos


e formas de vida, que se manifestam por meio de seus fazeres e saberes,
valorizados como oportunidade produtiva a partir do eixo turismo.
Ilustrando este processo, Cammarata (2006) anota que a dimensão
territorial do turismo, calcada em recursos imateriais, como a cultura, pode
constituir mercados potenciais para as formas de vida vigente, materializan-
do sentidos e significados em produtos. A sua mercantilização, contudo, está
atrelada a ações de especialização das atividades, bem como à necessidade
de negociações das identidades em um processo de construção ou reconfi-
guração de novos saberes, promovendo muito além de produtos, transfor-
mações nas representações dos atores sobre o território e suas identidades.
Se por um lado a promoção do turismo como mecanismo de desen-
volvimento potencializa oportunidade aos atores locais, de outro exige
transformações em seus saberes e fazeres tradicionais pela lógica legal e
burocrática do mercado. Como resultado deste processo, presencia-se uma
nova racionalidade socioprodutiva entre os produtores, marcada pela trans-
formação das identidades, em legitimação ao “novo” território, promovendo
a mercantilização das identidades, considerando que os recursos específicos,
reputados como patrimônio cultural, não são mais contemplados em sua sin-
gularidade material, mas presentes nos discursos institucionais do Condesus
a partir do culto ao ideal “típico colonial”.
Constata-se aqui a ausência de mecanismos legais que reconheçam
a possibilidade de fortalecimento dos empreendimentos tradicionais, sem
alterar as características que lhes são peculiares. É o que salientam Moi-
ty-Maizi et al. (2001) quando alertam para a necessidade de articulação
entre saber local e o conhecimento científico, apontando para a urgência
na construção de arranjos entre instituições, organizações e atores locais,
pois os recursos específicos, mesmo existindo em toda a sua potenciali-
dade, podem não estar sendo mobilizados em ativos, fazendo com que a
vinculação produto-território não seja alcançada como potencialização do
patrimônio cultural existente.
Um caminho possível seria trabalhar no sentido de obtenção de selos
de Indicação Geográfica (IG) como ferramenta de desenvolvimento e pro-
moção regional. As Indicações Geográficas têm papel importante em áreas
274 Gisele Martins Guimarães – Ivaldo Gehlen

nas quais há baixos volumes de produção e escala, em razão, na maioria das


vezes, da tradicionalidade da produção. Nessas regiões, as IGs podem ajudar
a manter e a desenvolver as atividades da produção, buscando agregar valor
justamente a esta tipicidade (Kakuta et al., 2006, p. 13).
No Brasil, a lei sobre Propriedade Industrial (Lei 9.279/96), além
de dar incumbência ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi)
como responsável pelo registro e pela gestão das Indicações Geográficas,
coloca a obrigatoriedade de cada pedido de Indicação Geográfica ser indivi-
dual e constar de vasta documentação (descrição do produto ou serviço, as
características do produto ou serviço, dentre outras formalidades).
Além disso, para obtenção de IG, necessita-se ainda descrever as
qualidades e características do produto ou do serviço, as quais existem,
exclusiva ou essencialmente, em decorrência do meio geográfico, incluindo
os fatores naturais e humanos, bem como relatar o processo ou método de
obtenção do produto ou do serviço, que devem ser locais, leais e constantes;
elencar, ainda, os elementos que comprovem a existência de uma estrutura
de controle sobre os produtores ou prestadores de serviços que tenham o
direito ao uso exclusivo da denominação de origem, e finalmente comprovar
a existência de produtores ou prestadores de serviços estabelecidos na área
geográfica demarcada e exercendo, efetivamente, as atividades de produção
ou de prestação do serviço.
Ora, na Quarta Colônia-RS, percebe-se que o processo de capaci-
tação dos produtores em curso no território a partir das organizações de
apoio (Sebrae, Emater, universidades), vem promovendo a secundarização
dos saberes ao serem guiados pelas exigências da legislação sanitária, que
ao mesmo tempo em que padroniza os produtos, convenciona os conhe-
cimentos tradicionais ao esquecimento e possível desaparecimento como
patrimônio cultural. Então como preservar? Seria a informalidade da produ-
ção necessária para a manutenção do patrimônio cultural? Estariam as insti-
tuições presentes no território, contribuindo para o desmonte dos recursos
específicos do lugar?
O patrimônio imaterial é a herança de toda uma evolução histórica.
Sua proteção é imprescindível para a conservação e manutenção dos conhe-
cimentos e expressões culturais tradicionais. Toda comunidade, nação ou
Identidades e Patrimônio Cultural em Sistemas de Produção de Alimentos Coloniais no Rural Contemporâneo da Quarta Colônia-RS 275

Estado deve preservar (no presente) seu legado para garantir às futuras
gerações a oportunidade de conhecer os valores e manifestações que deram
existência a sua origem.
Neste sentido, acredita-se que a transformação dos produtos a partir
das exigências sanitárias e a secundarização do saber-fazer em sua apresen-
tação “De Origem” pode estar causando o desmonte das especificidades
do território, em que a ideologização do lugar e seus atributos históricos de
colônia parecem cultuar o patrimônio cultural do lugar, apenas de forma
simbólica, promovendo apenas o uso “comercial” das identidades.
A racionalidade, no entanto, fundamentada no saber-fazer tradicio-
nal é fundamental para a caracterização dos produtos diante dos turistas
que buscam “consumir” a cultura do lugar em todas as suas expressões,
o que inclui gastronomia típica. Tais saberes, materializados em produtos
alimentares de caracterização colonial, valorizados pelo consumidor turista
como típicos do lugar, podem fazer com que os atores reforcem a sua iden-
tidade a partir da valorização de seus produtos por meio de saberes-fazeres
tradicionais.
Diante de um quadro de “mercantilização das identidades”, contudo,
salienta-se que a preservação dos saberes e dos valores “de origem” é pri-
mordial para a caracterização do território e que a ausência de estratégias
institucionais de preservação das identidades “originais” pode condenar o
território à perda de suas raízes, o que implicaria o “desmonte” de recursos
específicos e possibilidades de visibilidade que se dão via saberes enraiza-
dos culturalmente entre os atores.
Por fim, sem a pretensão de encerrar conclusões sobre tema tão pro-
fícuo e complexo, salienta-se que o processo em curso, ao mesmo tempo
em que cria condições propícias para desenvolvimento e valorização das
comunidades locais, gera graves riscos de deterioração, desaparecimento
e destruição do patrimônio cultural, devido à falta de consciência e meios
para protegê-lo no ambiente, sobretudo do mercado de alimentos, talvez
um dos mais regrados e regidos por normas de cunho industrial. Caminhos
que apontem para o reconhecimento legal de saberes tradicionais como
276 Gisele Martins Guimarães – Ivaldo Gehlen

riquezas, são emergenciais, visto o patrimônio (material e imaterial) expresso


na história de colonização de nosso país e o legado cultural que se expressa
nos fazeres de sua gente.

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A ABORDAGEM DOS SISTEMAS
AGROALIMENTARES LOCALIZADOS (SIAL):
O Processo de Ativação em Questão

Paulo Roberto Cecconi Deon


Fernanda Elisa de Oliveira Venturini
Paulo Roberto Cardoso da Silveira

Este texto assenta-se na perspectiva teórica do desenvolvimento territo-


rial, tomando como referência a obra de Bernard Pecqueur e da ampla literatura
sobre o enfoque dos Sistemas Agroalimentares Localizados – Sial – no Brasil e
na América Latina. Propõe-se uma reflexão a partir das experiências vivenciadas
pelos autores no município de Jaguari – RS. Toma-se como central nesta abor-
dagem o processo de ativação de recursos, definido como uma ação articulada
pelos diferentes atores sociais na mobilização de territorialidades1 capazes de criar
uma dinâmica de desenvolvimento territorial. Busca-se refletir sobre seus limites
e potencialidades em contextos nos quais a produção artesanal de alimentos e
bebidas surge como um recurso a ser ativado2 e capaz de articular um Sial.
O enfoque dos Sials como uma perspectiva de desenvolvimento
territorial: compreendendo as dinâmicas empreendidas em processos de
“ativação” com base em agroindústrias rurais

1
Compreende-se aqui como territorialidades, os aspectos objetivos e subjetivos que
representam a especificidade de um território, conceito que desenvolveremos adiante.
2
Neste caso, este recurso é tomado como capaz de obter valorização econômica e
diferenciar-se diante do mercado por suas características culturais, gerando uma
sinergia positiva com os demais segmentos econômicos para alavancar uma dinâmica
de desenvolvimento territorial.
280 Paulo Roberto Cecconi Deon – Fernanda Elisa de Oliveira Venturini – Paulo Roberto Cardoso da Silveira

Neste item refletimos sobre dinâmicas que se estabelecem entre


os diferentes atores locais e extralocais, tendo em vista a possibilidade de
ativar recursos relacionados às agroindústrias rurais em um território, os
quais podem ser mobilizados no sentido de configurar/ativar um Sial. Por
esta perspectiva, o desenvolvimento pode ser definido como “[...] todo pro-
cesso de mobilização dos atores que leve à elaboração de uma estratégia de
adaptação aos limites externos, na base de uma identificação coletiva com
uma cultura e um território” (Pecqueur, 2005, p. 12).
Com origem nos estudos da geografia econômica focados na concen-
tração de empresas de um mesmo setor como elemento de sinergia capaz de
promover desenvolvimento a partir do local, no enfoque dos Sials a centrali-
dade está nas perspectivas de articulação entre agricultura, a agroindustria-
lização da produção agropecuária e os diferentes canais de comercialização,
o que permite constituir uma relação privilegiada com os consumidores. De
outra parte, os consumidores e sua organizações são atores fundamentais
ao orientarem sobre as potencialidades geradas na construção de mercados
locais/regionais.
O enfoque destaca as vantagens comparativas atribuídas pela sinergia
interna do SIAL e sua capacidade de gerar inovações sociotécnicas e organi-
zacionais (Requier-Desjardins, 1999; Gómez; Boucher; Requier-Desjardins,
2006), as quais promovem espaços de construção de mercados específicos
orientados por atributos de qualidade ampla em seus produtos e pelas carac-
terísticas de identidade territorial e/ou cultural (Muchnik, 2006; Wilkinson,
2006).
As atividades agroalimentares e sua ancoragem territorial são ele-
mentos centrais para o enfoque dos Sials, posicionando-as como uma forma
de compreender e projetar o próprio desenvolvimento territorial (Fournier;
Muchnik, 2012, p. 139).
Pecqueur (2005, p. 18) sugere que essa forma de “organização territo-
rial” é uma realidade apontada em diversas experiências do Hemisfério Sul,
e acrescenta que uma das principais virtudes dessa abordagem está em seu
objetivo analítico, o qual possibilita “articular as tradições e os saber-fazer
antigos com a inovação de processo e a qualidade da produção”. Com isso o
autor constrói a ligação lógica, não só entre desenvolvimento territorial e os
A Abordagem dos Sistemas Agroalimentares Localizados (Sial) 281

Sistemas Agroalimentares Localizados, mas também dá indícios de que o


desenvolvimento pode ocorrer a partir da integração entre as potencialida-
des que a inovação proporciona, com os métodos de produção artesanal, os
quais compõem sistemas de conhecimentos intergeracionais localizados. É
neste contexto que refletimos sobre a “ativação” de um Sial.
Como enfatizou Bernard Pecqueur, um Sial pode existir em potência,
quando ocorrem recursos genéricos ou específicos que podem ser valoriza-
dos, mas não sendo obrigatoriamente ativados como geradores de uma dinâ-
mica de desenvolvimento local ou regional (Pecqueur, 2005). Nesta lógica,
a ativação de um Sial necessita de uma ação articulada entre os diferentes
atores sociais envolvidos capaz de criar “externalidades positivas”, ou seja,
relações intra e extralocais/regionais promotoras de uma sinergia positiva
dada pelo posicionamento do Sial na economia nacional ou internacional.
Pecqueur (2005, p. 13) define como recursos genéricos aqueles que
independem do processo de produção, cujo valor é um valor de troca, ou
seja, seu preço é determinado pela oferta e demanda em termos quan-
titativos, “[...] independente do ‘gênio do local’ onde é produzido”. De
forma contrária, os recursos específicos são totalmente intransferíveis, pois
constituem seu valor a partir das condições em que é utilizado; nascem de
processos interativos, constituindo “[...] a expressão do processo cognitivo
que se inicia quando atores dotados de competências diferentes põem essas
competências em comum e, dessa forma, produzem conhecimentos novos”.

AGROINDÚSTRIA RURAL E O SIAL


A agroindústria rural é considerada atividade de significativa impor-
tância enquanto seu potencial catalisador para ativação de Sistemas Agroa-
limentares Localizados. Boucher et al. (2000) apontam exemplos de recur-
sos (genéricos e específicos) que caracterizam as agroindústrias rurais na
América Latina, os quais representam ativos em potencial em um Sial: a
especificidade local das técnicas de processamento (relacionado aos conhe-
cimentos tradicionais); a existência de referências locais no desempenho de
uma determinada atividade; as relações constituídas entre os atores locais
e/ou extralocais; a vinculação entre a agroindústria e a agricultura; o caráter
local dos mercados e das técnicas de gestão.
282 Paulo Roberto Cecconi Deon – Fernanda Elisa de Oliveira Venturini – Paulo Roberto Cardoso da Silveira

Requier-Desjardins (1999) sugere a existência de etapas para que


as agroindústrias rurais se consolidem como estratégia competitiva, como
um Sial: a primeira delas diz respeito à existência de concentração desses
empreendimentos como uma forma de transpor limites que decorrem de sua
escala de produção (a pequena escala individual que dificulta sua inserção
no mercado é superada pela escala coletiva, viabilizada por meio de arranjo
organizacional, possibilitando diminuir os custos de transação); em uma
segunda etapa, configura-se um processo de seleção entre essas agroindús-
trias rurais em que sobrevivem atores dominantes, diferenciados por suas
características de inovação e reação às condições de mercado. A análise do
autor enfatiza um Sial caracterizado pelo crescimento de uma parcela dos
empreendimentos agroindustriais em detrimento da exclusão de outros.
Em contextos configurados pela existência dessas experiências de
agroindústrias rurais, a articulação entre os atores pode ser compreendida a
partir da noção de redes.

AGROINDÚSTRIA RURAL, REDES E ATIVAÇÃO DO SIAL


Enuncia-se, assim, a possibilidade de se revelarem as motivações
extraeconômicas das ações dos produtores e demais atores sociais envolvidos
na ativação de um Sial. Neste sentido, segue-se a tradição da nova sociologia
econômica, pois a mobilização ocorre pela conformação de redes sociotécni-
cas e socioprodutivas de caráter multi-institucionais (Latour, 1994; Callon,
2001; Mior 2003; Deon; Silveira; Venturini, 2013).
As redes sociotécnicas podem ser compreendidas como arranjos entre
os atores sociais que mobilizam esforços coletivos e interinstitucionais para
geração de inovações tecnológicas e de gestão, estas capazes de garantir a
continuidade dos processos de mudança técnico-organizacionais (Latour,
1994; Callon, 2001). Estes processos são vitais para permitir que os atores
articulados em um Sial possam responder aos desafios colocados em sua
consolidação. Nestas redes cumprem papel fundamental as instituições de
ensino, pesquisa e extensão, as quais são mediadoras entre as demandas
concretas do segmento produtivo e o conhecimento científico, articulando
A Abordagem dos Sistemas Agroalimentares Localizados (Sial) 283

espaços de interação com o conhecimento tradicional, oriundo das trajetórias


específicas de cada comunidade. A este conhecimento tradicional pode-se
associar o conceito de capital social.3
As redes socioprodutivas constituem-se como relações informais de
cooperação, mesmo que em alguns casos percorram um processo de forma-
lização, por meio de associações ou cooperativas, ou mediante colaboração
ou articulação interinstitucionais lideradas por ONGs, universidades e/ou
organizações de Ater. É uma configuração organizacional horizontal, não
hierárquica e não burocratizada, mas normatizada tacitamente a partir de
interesses coletivos em torno de uma determinada atividade produtiva.
Neste sentido enfatizamos a existência de dois diferentes tipos de
redes socioprodutivas: o primeiro tem como atores-referência os agricultores
ou suas organizações; e o segundo possui como atores-referência as instituições
locais e extra-locais, as quais promovem ações de fomento e formalização das
agroindústrias rurais, normalmente justificadas pelo objetivo do desenvol-
vimento local/regional.
Aqui o discurso das agroindústrias rurais como alternativa de desen-
volvimento assume caráter polissêmico. Por vezes, enfatizando a necessida-
de de agregação de valor aos produtos da agricultura familiar, visando a seu
fortalecimento como importante segmento econômico ou como atividade
capaz de gerar uma dinâmica de desenvolvimento territorial, por meio da
sinergia com estratégias de incentivo ao turismo e/ou a consolidação de cir-
cuitos curtos de mercados (Wez Junior; Trentin; Filippi, 2009; Guimarães,
2011). Em outros casos, autores e gestores de políticas públicas veem a
agroindústria rural como uma possibilidade de desenvolver o empreende-
dorismo, visando a competir em circuitos longos de mercado ou até mesmo
a exportação (Serviço..., 2008).

3
Para Putnam (1996), capital social é um conjunto de recursos que interagem, tais como
confiança, reciprocidade, são recursos dados como simbólicos, os quais quando acessados
promovem a mudança do destino de certo grupo social. Para Bourdieu (1989), capital
social é um conjunto de recursos e poderes efetivamente utilizados pelos atores sociais.
284 Paulo Roberto Cecconi Deon – Fernanda Elisa de Oliveira Venturini – Paulo Roberto Cardoso da Silveira

Trata-se de duas perspectivas diferenciadas em relação ao caminho


a trilhar e aos objetivos a perseguir com as experiências de agroindústrias
rurais; enquanto a primeira aposta na constituição de um Sial, a segunda
recorre à lógica da inserção nas cadeias produtivas agroalimentares (circui-
tos longos de comercialização), em que a articulação entre agentes locais
não seria fator importante. Em comum, as duas perspectivas remetem a
“pensar” as agroindústrias rurais a partir de processos de formalização.
Pecqueur (2005) sugere que a ativação de um Sial deve passar pela
valorização dos recursos tradicionais,4 sendo estes que poderão constituir-
-se como ativos, sobretudo simbólicos, gerando possibilidades de inserções
positivas em mercados locais e extralocais. Na contramão dessa lógica, as
ações de instituições locais e extralocais têm contribuído para conflitos em
potencial. Nas tentativas de fomento às agroindústrias rurais como alterna-
tiva de desenvolvimento, as ações institucionais são orientadas em direção
a processos de formalização legitimados pela “segurança alimentar”, o que
contribui para a marginalização das práticas tradicionais de processamento5
(Silveira; Zimmermann, 2004; Boucher; Poméon, 2010).
A ativação configura-se como um ato coletivo constituído pela arti-
culação de atores sociais que buscam a valorização de recursos genéricos e
específicos presentes em determinado território (Pecqueur, 2005). As redes

4
Neste caso, recursos tradicionais são aqueles que sempre estiveram presentes em
determinado espaço geográfico, mas nunca foram valorizados como potencial de
desenvolvimento. São oriundos das formas específicas de ocupação do espaço e da
organização social que lhes deram sustentação, mas não ativados podem permanecer
apenas como potência, não representando capacidade de articulação intra ou inter-
setorial (Pecqueur, 2005).
5
A legislação sanitária vigente no Brasil foi elaborada em 1951 para garantir a segurança
alimentar em situações de grande escala de produção e elevado tempo entre produção
e consumo (Silveira; Zimermann, 2004). No caso da produção artesanal de alimentos
em pequena escala e destinada a circuitos locais/regionais de produção-distribuição-
consumo, tal legislação mostra-se incompatível com a realidade vivenciada, sendo sua
aplicação dificultada pelo investimento necessário em estrutura física (instalações e
equipamentos), a qual exigiria elevada capacidade de pagamento. Os empreendedores
devem aumentar a escala de produção para alcançar a capacidade de pagamento,
precisando aumentar a matéria-prima e a mão de obra necessária, além de necessitar
expandir a comercialização para novos consumidores além dos circuitos locais/regionais
(Guimarães; Silveira, 2007).
A Abordagem dos Sistemas Agroalimentares Localizados (Sial) 285

socioprodutivas são resultado desta articulação e quando são capazes de


gerar consensos de como promover a sinergia entre os diferentes atores e
assumir-se como ator político com poder de interferência nas políticas públi-
cas podem contribuir decisivamente para a consolidação de um Sial. Tais
redes, muitas vezes, definem estratégias de ação, estabelecendo alianças
com diversos atores sociais, assumindo papel de ator-referência coletivo, ao
qual cabe coordenar a dinâmica do Sial.
Em outros casos, as redes socioprodutivas são frágeis, assumindo
papel reativo às políticas públicas e tendo no poder público e nas organiza-
ções de Ater os atores-referência do processo de articulação local. Nestes
casos, a consolidação de um Sial é dificultada pelo caráter individualizado
das ações, as quais buscam priorizar seletivamente alguns empreendimen-
tos. Aqui a lógica de capacitação individual suplanta a lógica da aprendiza-
gem social coletiva, presente na argumentação de Fligstein (2007), a qual
desenvolveria uma habilidade social decisiva na conformação das redes aqui
denominadas socioprodutivas. O poder do Estado ou de outros agentes
externos, em nosso entendimento, tem limitado esta habilidade social.
Papel importante neste processo de ativação cumprem as redes socio-
técnicas6 capazes de buscar estratégias de diferenciação dos produtos locais,
associando processos tecnológicos de produção com a identidade cultural
manifesta no saber-fazer intergeracional (Silveira et al., 2009).
Na discussão dos casos analisados avançaremos em duas questões
determinantes para a análise da ativação do Sial: a) o que favorece (ou inibe)
o desenvolvimento da habilidade social, em que a tradicional discussão do
capital social emerge como aspecto relevante, mas a natureza e a gênese

6
Para nossa argumentação ter coerência sociológica, as redes sociotécnicas estão em
um nível mais macro que as redes socioprodutivas, pois constituem um arranjo de
forças políticas, econômicas e institucionais que, em determinado momento, definem
as estratégias político-institucional e de geração/difusão de tecnologias, explicando
por que algumas vicejam e outras, também cogitadas, sejam preteridas. Já as redes
socioprodutivas são arranjos locais/regionais, buscando assegurar melhores condições
de produção, organização e relação com os mercados, por meio de ações coletivas de
cooperação e colaboração. O desempenho destas redes socioprodutivas em muito é
condicionada pela conformação de redes sociotécnicas capazes de influenciar a dinâmica
política e econômica do segmento em questão.
286 Paulo Roberto Cecconi Deon – Fernanda Elisa de Oliveira Venturini – Paulo Roberto Cardoso da Silveira

da rede, associadas à história pregressa de seus membros assume, também,


papel de destaque; b) as diferentes capacidades exigidas para que os atores
vençam desafios como os impostos pela formalização da atividade de pro-
cessamento de alimentos ou bebidas, impondo a conformação de outras
redes, inclusive as sociotécnicas, as quais criam possibilidades de geração
de inovações tecnológicas capazes de redefinir os horizontes de produção
e organização dos atores constituintes (Latour, 1994; Callon, 2001; Mior,
2003).
Argumentamos, até aqui, que os estudos sobre Sistemas Agroalimen-
tares Localizados referenciam as agroindústrias rurais como atividade com
potencial ativador dos recursos locais (genéricos e específicos) no sentido de
promover o desenvolvimento com ancoragem territorial. A “ativação” desses
recursos, entretanto, não ocorre ao acaso, pelo contrário, depende de ações
articuladas entre os diferentes atores do território (e de fora dele), capazes
de promover as “externalidades positivas” para o Sial, gerando desenvolvi-
mento territorial. Pontuamos, também, “como” essas articulações podem
ser constituídas (as dinâmicas das redes socioprodutivas e sociotécnicas) e
os entraves contemporâneos (a formalização).
No item a seguir procuramos articular essas reflexões com os casos
analisados a partir do universo empírico configurado pela vivência dos
autores junto a processos/tentativas de mobilização de recursos em torno de
projetos de formalização7 de agroindústrias rurais realizados no município
de Jaguari, com base na produção artesanal de alimentos e bebidas.

A PRODUÇÃO ARTESANAL DE ALIMENTOS E BEBIDAS


ENQUANTO ATIVIDADE CATALISADORA DA ATIVAÇÃO DE SIALS
A produção artesanal de derivados da uva (vinhos e sucos) e deri-
vados da cana-de-açúcar (sobretudo a cachaça artesanal de alambique) são
atividades que se confundem com a história do município de Jaguari-RS.

7
Mesmo que na maior parte dos casos as agroindústrias rurais não consigam atingir a
formalização plena.
A Abordagem dos Sistemas Agroalimentares Localizados (Sial) 287

Relatos de agricultores remetem à introdução dessas atividades por ocasião


do processo de colonização, principalmente pela imigração de italianos e
alemães que chegaram à região por volta de 1880.
A produção de uvas no município ocupava em 2006 uma área de 108
ha, nos quais 65 produtores cultivavam uva para produção de vinhos e/ou
sucos, sendo em parte consumido e o restante comercializado (Instituto...,
2006).
Os dados mais atuais apontam que a cana-de-açúcar ocupa uma área
de 850 ha no município de Jaguari, estimando-se a existência de 99 alam-
biques.8 Em relação à fabricação de cachaça, melado, açúcar mascavo e da
rapadura, muitas são as famílias que mesmo conservando procedimentos
artesanais de produção dependem dessa atividade para o seu sustento (Ins-
tituto..., 2006).
No caso dos derivados da uva, a fundação da Cooperativa Agrária
São José, em 1932, representa um marco na organização do processamento
industrial, cujo objetivo central era de melhorar o processo de produção e
de comercialização do vinho, uma vez que individualmente os produtores
vinham encontrando restrições de ordem técnica e também de mercado.
Quanto ao perfil dos atuais 58 cooperados, a maioria é de agricultores fami-
liares, pois aproximadamente 90% deles têm acesso aos recursos do Pronaf.
Para a maior parte desses produtores a vitivinicultura é a atividade principal,
pois além de entregarem suas uvas para a cooperativa, parte é utilizada para
elaboração de vinho e comercialização na informalidade.
A persistência dessas pequenas agroindústrias rurais informais ao longo
da história demonstra que elas ainda existem porque apresentam dinamicida-
de socioeconômica, principalmente em relação ao mercado local. Nesse caso,

8
Embora o Censo Agropecuário de 2006 aponte para 99 estabelecimentos no município
em que os produtores declaram produzir cachaça, as informações são contraditórias
quando entrevistados informantes-chave ligados a instituições de apoio no município,
os quais apontam que esse número chega a mais de 250 alambiques. Por outro lado,
estudos preliminares apontam para a substituição desses empreendimentos (Redin,
2010; Deon et al., 2012). Essa falta de conhecimento dos números reais desse público
poderia ser apontado como um ponto frágil tendo em vista a ativação de um Sial, pois
limita a capacidade de ação do poder público e demais agentes de apoio, os quais não
possuem base concreta para planejamento e envolvimento dos produtores.
288 Paulo Roberto Cecconi Deon – Fernanda Elisa de Oliveira Venturini – Paulo Roberto Cardoso da Silveira

sobressaem-se principalmente as capacidades mobilizáveis,9 pois produtores


e consumidores estão ligados por laços de confiança-fidelidade-reciprocidade,
sendo o saber-fazer embutido no produto um aspecto central, uma vez que
se trata de algo reconhecido como colonial.10 A criação da Cooperativa São
José é em si um fator que ativa outras capacidades, como as instaladas, pois
proporcionam condições que expandem a infraestrutura disponível.
Em relação às capacidades adquiridas e aprimoradas, entretanto,
quando analisamos o caso à luz da proposta de Fligstein (2007), a promoção
dessas capacidades ainda são incipientes, pois as ações assumem caráter
individualista, sendo pouco representativas as de cunho coletivo.
A realidade anteriormente apresentada dialoga com as fases verifi-
cadas por Requier-Desjardins (1999) na configuração de um Sial, ou seja,
existe um claro processo de concentração das agroindústrias rurais “artesa-
nais”, o que traz consigo a exclusão, pois se alguns produtores estão aptos a
comercializar em mercados extralocais por estarem formalizados, no caso por
intermédio da cooperativa, outros produtores terão de competir no mercado
local, o que explica os baixos preços pagos pelos intermediários.
Em junho de 2010 foi fundada a Associação dos Produtores de Vinho
e Derivados de Uva do Vale do Jaguari/RS – Aprovija – com objetivo de
fomentar o setor vitivinícola da região, fortalecendo a agricultura familiar.11

9
Referimo-nos às capacidades categorizadas por Guimarães e Silveira (2007), e que
nos casos aqui analisados podem ser compreendidas como: mobilizáveis – relações
de confiança-fidelidade com consumidores, habilidade de comerciar; instaladas –
estrutura disponível para processamento, transporte, etc.; adquiridas – aquelas advindas
das instituições-suporte, baseadas no conhecimento técnico-científico e gerencial;
aprimoradas – aquelas advindas de processo de formação e adoção de Boas Práticas de
Fabricação; além das adicionadas, descritas em nota posterior.
10
“Colonial” é a denominação para o produto produzido artesanalmente por descendentes
de imigrantes europeus, os quais receberam áreas de terras denominadas de colônia
(Silveira et al., 2008).
11
Dentre as entidades participantes destacam-se o papel do Instituto Federal Farroupilha
– Campus de São Vicente do Sul (IFF Campus SVS) que atuou na mobilização,
organização e em todo processo de criação da instituição, além de instituições locais
como a prefeitura de Jaguari e o Escritório Municipal da Emater/RS, o Sebrae/RS e o
próprio Comitê Gestor do Centro Mesorregional de Uva e Vinho de Jaguari. Aliás, a
criação da associação é um resultado das ações projetadas por este Comitê e que havia
ficado sob responsabilidade do IFF Campus SVS.
A Abordagem dos Sistemas Agroalimentares Localizados (Sial) 289

O fortalecimento da Aprovija contribui para o processo de marginalização


dos demais produtores vitivinícolas do município, no sentido de que a pro-
posta de fortalecimento girava em torno de quatro empreendimentos for-
malizados ou em vias de formalização.
Retomando a análise de Requier-Desjardins sobre a consolidação de
um Sial, nota-se a configuração de duas redes socioprodutivas: uma informal
(sem a presença de agentes fomentadores externos) e outra formal (circun-
dada por agentes fomentadores), com a Aprovija sendo a rede socioprodutiva
formal e o restante dos vitivinicultores, em torno de 12, os quais elaboram
seus vinhos de forma artesanal em cantinas caseiras, organizados por meio
da rede informal.
A manutenção da rede informal de produtores de uva/vinho se dá
pelas capacidades de estes atores se articularem e mobilizarem recursos a
partir de elementos de sociabilidade que sustentam as relações socioprodu-
tivas, tais como interesse, interação, confiança e reciprocidade, ou seja, pela
habilidade social demonstrada (Fligstein, 2007).
No caso dos derivados da cana-de-açúcar, cuja comercialização na
região é predominantemente informal, a fundação da Cooperativa de Deri-
vados de Cana-de-Açúcar (Coodercana), em 2007, representa a constituição
de uma estratégia de cunho regional na qual 31 produtores de cachaça arte-
sanal de alambique, dos municípios de Santiago, Jaguari, Mata, São Pedro
do Sul e Toropi, organizaram-se como forma de encontrar meios para acessar
mercados, procurando adequar-se às condições legais e com isso buscando
potencializar este segmento como estratégia de desenvolvimento.
Assim como no caso dos derivados da uva, a criação dessa coopera-
tiva contou com o apoio de diversas instituições da região, como o Sebrae12
e prefeituras, que fomentaram todo o processo organizativo para que os
produtores de cana-de-açúcar estivessem capacitados para produzir, pro-
cessar e gerir um empreendimento cooperativo e suas unidades de bene-
ficiamento. O processo desenvolveu-se até que as instituições de fomento

Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas.


12
290 Paulo Roberto Cecconi Deon – Fernanda Elisa de Oliveira Venturini – Paulo Roberto Cardoso da Silveira

estiveram presentes. No momento em que o suporte técnico-organizativo


se retirou,13 os produtores sozinhos não conseguiram dar continuidade e
alcançar as metas pretendidas.
Na trajetória de estabelecimento dessa estratégia há mobilização de
recursos públicos, os quais em sua maioria foram aplicados na infraestru-
tura do projeto, ou seja, na capacidade instalada (estrutura disponível para
processamento, transporte e armazenamento), necessária para dar conta da
formalização dos alambiques. As capacitações, visitas técnicas e outras ações
do tipo parecem ter contribuído para as capacidades adquiridas e aprimora-
das. As capacidades mobilizáveis permanecem e justificam a existência da
atividade mesmo ainda informal, devido ao saber-fazer transmitido entre as
gerações desses agricultores e os laços de confiança-fidelidade com os con-
sumidores. Por sua vez, as capacidades adicionadas14 mostram-se deficientes
devido à descontinuidade ocorrida no processo de ação junto a Coodercana,
na qual vários atores se sucedem sem manter uma coordenação efetiva das
ações, capazes de articulá-las.
Esse conjunto de capacidades identificadas não configuram habilida-
de social consistente para constituir uma ação coletiva, em que os próprios
atores possam conferir uma dinâmica à rede capaz de transformar as condi-
ções de processamento e comercialização da cachaça e demais derivados da
cana, gerando as externalidades positivas para o Sial, como sugere Pecqueur
(2005).
Percebe-se que houve, nesse caso, por parte das instituições poten-
ciais fomentadoras da ativação do Sial, uma postura que não permitiu consti-
tuir ações articuladas com os atores sociais para a ativação dos recursos espe-
cíficos (o saber-fazer que viabiliza um produto de qualidade, a experiência
na comercialização), os quais são intransferíveis e que exigem a participação
ativa de cada produtor. Os agentes que promoveram o processo de articula-
ção da rede de produtores de cana não perceberam que sua estratégia prio-

Principalmente pelo término da vigência de projeto que sustentava as ações do Sebrae.


13

Entende-se por capacidades adicionadas aquelas advindas da ação de agentes externos,


14

os quais apoiam técnica e organizacionalmente os empreendimentos dedicados ao


processamento artesanal de alimentos ou bebidas e o processo de consolidação das
redes socioprodutivas (Guimarães; Silveira, 2007).
A Abordagem dos Sistemas Agroalimentares Localizados (Sial) 291

rizava a mobilização dos recursos genéricos a serem ativados, os específicos


relacionados, por exemplo, à tradição na produção de cana que configuram
uma especificidade do local, sua identidade, como sugerem Silveira et al.
(2009), não foram ativados.
Uma rede necessita de elementos de formação e de sustentação. De
uma forma geral a busca dos agentes fomentadores é uma estratégia para a
formação das redes utilizando-se mais de elementos de formação (interesse
e capacitação) do que elementos de sustentação (confiança e reciprocidade)
das redes. Deste modo, a constituição da Coodercana não foi suficiente para
consolidar a ação coletiva, a qual poderia alicerçar uma rede socioprodutiva
capaz de direcionar o sentido do processo de formalização e a ativação do
Sial. Hoje, quando os produtores de Jaguari falam em criar uma associação,
estão motivados pela criação de uma nova institucionalidade (desvinculan-
do-se da proposta original de uma organização de cunho regional), na qual
sua identidade e as relações de confiança possam produzir uma ação coletiva
sob sua coordenação.
Assim, ambas as redes socioprodutivas formadas mostram-se frágeis
e não constituem bases suficientes para ativar um Sial configurado pela
produção artesanal de alimentos e bebidas derivados da uva e/ou da cana-
-de-açúcar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os casos analisados sugerem a formalização como uma consequên-
cia do fomento às agroindústrias rurais. Este processo tem significado um
entrave para a “ativação” do Sial, gerando uma clivagem entre unidades pro-
cessadoras, as quais apresentam capacidades diferenciadas e que obstaculi-
zam uma política comum e articulada para desenvolver o Sial, acabando por
provocar a pressão pela adoção de mecanismos de seleção dos “mais aptos”.
As redes socioprodutivas constituídas são atualmente o resultado de
anos de adaptação às adversidades, reações perante diferentes contextos, o
que pode explicar sua sustentação no tempo e no espaço. Não se percebe,
todavia, estas redes como capazes de gerar consensos para promover siner-
gia entre os diferentes atores e assumir-se como ator político com poder de
292 Paulo Roberto Cecconi Deon – Fernanda Elisa de Oliveira Venturini – Paulo Roberto Cardoso da Silveira

interferência nas políticas públicas; pelo contrário, são redes frágeis, assu-
mindo papel reativo às políticas públicas e tendo no poder público e nas
organizações de Ater os atores-referência do processo de articulação local.
Os agentes fomentadores do processo de articulação, por sua vez,
se utilizam de estratégias de formação de redes a curto prazo, não estabe-
lecendo um processo de aprendizagem organizacional coletiva, o qual vise
a desenvolver elementos de sociabilidade capazes de empoderar os atores
para que a rede se sustente no tempo e no espaço.
O contexto em análise sugere que tanto por parte das redes sociopro-
dutivas quanto das redes sociotécnicas, parece não ocorrer aspirações signi-
ficativas no sentido de ativação de um Sistema Agroalimentar Localizado
no município de Jaguari, pois prevalece uma lógica setorial, fragmentária, e
de cunho assistencialista, incapaz de perceber que as potencialidades terri-
toriais, presentes na produção artesanal de alimentos e bebidas, poderiam
articular-se como eixo orientador para um processo de desenvolvimento
territorial.
Finalmente, deve-se enfatizar que as estratégias de ativação de recur-
sos genéricos e específicos, via formalização do processamento artesanal de
alimentos e bebidas, até o momento tem fracassado, exigindo que novas
institucionalidades sejam construídas e consolidadas.

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VELHAS E NOVAS INTERROGAÇÕES
SOBRE A FORMAÇÃO TECNOLÓGICA
PARA A AGRICULTURA FAMILIAR

Tatiana Aparecida Balem


Paulo Roberto Cardoso da Silveira

O reconhecimento da agricultura familiar (AF) na década de 90, tanto


na dimensão política quanto na pesquisa e na extensão, envolveu políticas
públicas específicas para este segmento. Na dimensão acadêmica a pes-
quisa e a extensão passam a focar a agricultura familiar como seu objeto de
estudo e ação, no entanto foram pouco significativas as mudanças no ensino
nos aspectos metodológicos e de conteúdo. Permanecem as instituições de
ensino, tanto em nível médio como de Ensino Superior, presas a um para-
digma herdeiro da Revolução Verde, em que a maximização da produção e
produtividade são os principais critérios de validação tecnológica.
Para a consolidação do modelo agrícola dominante no país foi neces-
sária a “preparação de profissionais especializados no âmbito do ensino
universitário e técnico” (Balestro; Sauer, 2009, p. 9). Ressaltam os autores
que a criação de cursos de Ciências Agrárias nas universidades públicas e
de escolas técnicas agrícolas de nível médio tiveram papel fundamental na
difusão dos pacotes tecnológicos levados a cabo pela extensão rural brasileira
pari passu com a pesquisa e o crédito subsidiado.
Na aurora do século 21, ao surgir apelos em prol da necessidade de
um novo modo de fazer agricultura em substituição a este modelo capital-
-intensivo capitaneado pelo sistema industrial alimentar, torna-se razoável
o questionamento de qual formação para as Ciências Agrárias devem buscar
as universidades e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia.
As necessidades dos agricultores familiares em sua diversidade sociocul-
298 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

tural e agroecossistêmica impõem abordagens múltiplas e complexas, as


quais ultrapassam a possibilidade de um padrão tecnológico definido para
determinadas e estritas condições sociais, econômicas e agroecossistêmicas.
Assim, alguns questionamentos que levam ao rumo da reformulação ou não
dos currículos da formação profissional das Ciências Agrárias parecem neces-
sários: continuaremos formando para o agronegócio e ignorando a supre-
macia numérica dos agricultores familiares (84,4% dos estabelecimentos
brasileiros segundo França, Grossi e Marques, 2009) e a importância desse
segmento para a sociedade brasileira? Manteremos os currículos presos no
velho paradigma de repasse de pacotes tecnológicos ou saremos dessa zona
de conforto e buscaremos construir uma formação profissional mais com-
plexa e holística?
Assim, urge uma reavaliação do ensino de Ciências Agrárias, sendo
necessária nova base epistêmica e novos referenciais teóricos, aspectos sobre
os quais nos deteremos neste texto. Para tanto, serão abordados de forma
sintética as características da agricultura familiar e seus desafios para a ação
profissional. A seguir faz-se uma reflexão sobre o sentido de educar, enfati-
zando a construção coletiva, o interagir com o mundo da produção e da vida,
além de buscar a autonomia dos educandos diante de cânones de cunho
ideológicos, políticos ou científicos. Ao confrontar o paradigma educacional
tradicional, descortina-se a problemática desafiadora de preparar para o tra-
balho com os agricultores mais pobres, em permanente ameaça de exclusão
das cadeias produtivas do agronegócio e na perspectiva de fornecer uma
base conceitual sustentada no referencial da agroecologia, pois se considera
esta orientação capaz de gerar a transformação do mundo rural.

FORMAÇÃO PROFISSIONAL PARA AS CIÊNCIAS AGRÁRIAS


E AGRICULTURA FAMILIAR
A Agricultura Familiar (AF) brasileira foi conceituada e reconheci-
da socialmente enquanto segmento com características específicas e com
relevância econômica para o desenvolvimento do país, apenas a partir de
meados da década de 90 (Guanziroli; Cardim, 2000; Guanziroli; Buainain;
Sabbato, 2011). Esse processo de reconhecimento, no entanto, é lento e
contraditório e, no cenário rural brasileiro, continua-se ouvindo vozes que
Velhas e Novas Interrogações Sobre a Formação Tecnológica Para a Agricultura Familiar 299

tendem a desvalorizar a AF. Segundo Buainain, Romeiro e Guanziroli


(2003), questões como o êxodo rural, o envelhecimento da população rural,
a “ineficácia” dos agricultores familiares em acompanharem o progresso
técnico e a suposta eficiência da agricultura empresarial continuavam nos
anos 2000 corroborando com a interpretação de que a AF tende a enfraque-
cer ao longo do tempo.
Guanziroli, Buainain e Sabbato (2011) salientam que até o documen-
to “Novo Retrato da Agricultura Familiar: o Brasil Redescoberto” publicado
pelo MDA e FAO em 2000, a AF era reconhecida como a “pequena produ-
ção”, e que a unidade familiar era vista como “depósito e reserva de mão
de obra”. Desse modo, entende-se, em parte, a orientação das instituições
de ensino na área agrícola, que priorizam as demandas de um segmento
visto hegemonicamente como o eixo central da futura agricultura brasileira,
o denominado popularmente de “agronegócio”. Isso, na verdade, busca
identificar uma agricultura fortemente inserida e subordinada aos ditames
do sistema alimentar industrial.
Este cenário, no entanto, passa a mudar na virada de século. Passa-
-se a destacar que no caso brasileiro, a participação da AF na economia e
no abastecimento interno de produtos alimentícios é de grande relevância
(Ministério..., 2009).1 Por outro lado, os circuitos curtos de comercialização,
em que os produtos são comercializados no escopo da própria região onde
são produzidos abastecem-se, principalmente, por esse segmento da agricul-
tura. Segundo Cerqueira, Rocha e Coelho (2006), “a AF formou estratégias
de reprodução que, contraditoriamente ao papel destinado a esse tipo de
produção na política agrícola, manteve sua importância no espaço rural bra-
sileiro”. Esta importância passa a ser mais evidente a partir dos anos 2000,
considerando o desempenho do segmento em relação ao setor agrícola como
um todo. Nesse sentido, verifica-se que AF, mesmo alijada do desenho
de políticas públicas no período anterior a 1996, manteve sua importância

1
A Agricultura Familiar produz 38% do valor bruto da produção agrícola brasileira e
ocupa apenas 24,3% da área total dos estabelecimentos agropecuários, apesar de ser a
principal fornecedora dos alimentos básicos para a população brasileira.
300 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

social e econômica por ser grande fornecedora de gêneros alimentícios de


consumo básico e por ser geradora de ocupação no cenário rural brasileiro
(Plata et al., 2011).
Ao contrário do que se poderia pensar, o crescimento da produção
agrícola como papel estratégico na economia brasileira por alavancar a
balança de pagamentos, vem acompanhada da consolidação da AF. Para
Guanziroli, Buainain e Sabbato (2011, p. 4), “se agricultura familiar fosse
sinônimo de agricultura de “subsistência ou camponesa”, como muita gente
pensa, o boom do agronegócio a teria relegado a uma posição de insignificân-
cia, o que, como se vê, não foi o que ocorreu na última década”.
Dessa forma, precisamos refletir sobre quais transformações devem
sofrer o ensino técnico e tecnológico para dar respostas a essa agricultura.
E mais: é necessário perceber quais as dimensões centrais no contexto da
agricultura familiar para perspectivar uma formação profissional adequada.

POR QUE A AGRICULTURA FAMILIAR EXIGE UM PROFISSIONAL


CAPAZ DE IR ALÉM DOS REPASSES DE TECNOLOGIAS?
Já é lugar-comum na discussão sobre a agricultura familiar brasileira,
argumentar que existe uma indefinição conceitual e uma grande heteroge-
neidade abrigada sob o manto deste conceito.2 Precisamos considerar que
segundo a Lei n. 11.326 (Brasil, 2006) o conceito de AF abriga todos aqueles
agricultores que não possuem área maior que quatro módulos fiscais, utili-
zem predominantemente mão de obra da família, têm o percentual mínimo
exigido de renda originada nas atividades do estabelecimento rural e dirijam
seu empreendimento. Ainda, para efeito dessa lei considera-se agricultor
familiar pescadores artesanais, extrativistas, silvicultores, povos indígenas
e remanescentes de comunidades quilombolas. Nesse sentido, parece-nos
possível elencar algumas especificidades da agricultura familiar que devem
condicionar as estratégias de fortalecimento deste segmento.

2
Ver Neves (2007) e Buainain (2007).
Velhas e Novas Interrogações Sobre a Formação Tecnológica Para a Agricultura Familiar 301

Pode-se iniciar por reconhecer que a própria diversidade indica a


necessidade da construção de alternativas de gestão e de arranjos tecnológi-
cos baseadas nas condições específicas de cada região e cada tipo de inserção
nos mercados. Para tal construção torna-se fundamental reconhecer que as
condições agroecossistêmicas particulares das regiões (microclima, variá-
veis edáficas, topográficas) implicam diferentes possibilidades de adoção
de tecnologias, interações com o ambiente e no favorecimento de deter-
minadas atividades produtivas. Assim, cabe ao profissional e às instituições
de extensão rural estabelecer um processo específico de interação com os
atores locais, definindo quais ações a realizar, o que impede que modelos
de intervenção padronizados possam ser aplicados indiscriminadamente em
qualquer comunidade rural.
Epistemicamente, este fator deve levar a que o processo de ensino
migre de uma ótica de adequação dos agricultores às tecnologias disponíveis
e às demandas de mercado para uma perspectiva de desenvolver tecnolo-
gias adequadas aos diferentes contextos não somente agroecossistêmicos,
como histórico-sociais e culturais. Para tanto, a difusão de inovações perde
sua força e fortalece-se a geração participativa de tecnologias de produção
e gestão. Cabe salientar que a propalada heterogeneidade da agricultura
familiar obriga-nos a reconhecer que as diferentes realidades encontradas
são historicamente constituídas, a partir das formas de ocupação do espaço
e das relações que os agricultores desenvolveram com o Estado, por meio
do acesso às políticas públicas e com o capital agroindustrial. Nesse sentido,
quando se pretende agir junto a agricultura familiar, deve-se considerar
que o rumo pretendido antes de uma tecnologia mais eficiente da utilizada
pelos agricultores, talvez seja tecnologia socialmente adequada ao perfil das
diferentes regiões do país (Plata et al., 2011, p. 5).
Para Plata et al. (2011), a tarefa dos profissionais que atuam junto a
agricultura familiar deve ser aprimorar a utilização dos fatores de produção
disponíveis nas unidades de produção agrícolas familiares respeitando as
condições socioeconômicas, ambientais e culturais. Assim, a primeira con-
clusão a que se pode chegar é que os conhecimentos sobre agroecologia,
capazes de fornecer constructos-base para geração e desenvolvimento de
302 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

práticas condizentes com cada agroecossistema e comprometidas com sua


sustentabilidade, devem ser parte fundamental da formação dos futuros
profissionais da área da agricultura.
A segunda questão que já é possível elencar é a necessidade da uti-
lização dos métodos de diagnóstico que empregam o enfoque sistêmico,
visando a compreender os encadeamentos entre os diferentes fatores de
produção e os critérios adotados pelo agricultor para definir suas rotinas e
sistema de gestão. Com o uso da análise-diagnóstico dos sistemas agrários,
tem se possibilitado identificar os pontos críticos dos sistemas de produção,
seja relativos a aspectos internos à unidade de produção ou a sua inser-
ção no contexto regional, em que as condições de infraestrutura, serviços
públicos, a organização dos agricultores e a ação das políticas públicas são
considerados. Assim, pode-se obter a compreensão da diferenciação social
e agroecológica entre os agricultores familiares e seus condicionantes (Silva
Neto, 2007).
A terceira questão relaciona-se à necessidade de utilização de meto-
dologias participativas para se aproximar das expectativas dos agricultores
e apropriar-se do conhecimento tácito ou tradicional que inspira as práticas
de produção e gestão (Balem; Silveira, 2002). A cultura do agro trata-se de
um componente fundamental na racionalidade típica da AF, a qual define
a relação com os mercados e com os padrões tecnológicos difundidos pelo
capital agroindustrial (Redin; Silveira, 2011). No sistema de ensino de Ciên-
cias Agrárias, costumam ser marginais os referenciais das Ciências Humanas,
sendo considerados pelos alunos conhecimentos subjetivos e sem aplicação
efetiva na agricultura. Deste modo, aqui está uma das variáveis mais impor-
tantes na redefinição do ensino voltado para a ação na agricultura familiar.
Mais uma questão deve aqui ser mencionada: a especificidade no
aspecto da gestão que tem sido sempre colocada como uma característica
que diferencia a agricultura dita familiar da empresarial. Ao contrário do
que pregam os manuais de Economia, em que a maximização de lucro é a
orientação de qualquer sistema de gestão, na Agricultura Familiar é a melhor
combinação entre os fatores disponíveis. A opção nem sempre é a mais
rentável possível, mas a que apresenta o menor risco, o menor esforço de
Velhas e Novas Interrogações Sobre a Formação Tecnológica Para a Agricultura Familiar 303

trabalho ou o melhor posicionamento de mercado, além de variáveis relacio-


nadas aos objetivos particulares de cada família em determinado momento
histórico (Silveira, 1994; Redin; Silveira, 2011).
Faz sentido aqui mencionar uma questão singular, a existência de
um mercado de trabalho não agrícola que atrai membros da família, repre-
sentando uma fonte de renda importante na composição da renda familiar,
o que pode definir uma estratégia de organização das atividades produtivas
a partir da mão de obra disponível e não da alternativa de maior escala
possível. Trata-se, porém, apenas de um exemplo, pois as decisões-ações
dos agricultores acontecem em um conjunto complexo e dinâmico de con-
dicionantes ligados a diferentes restrições e pressões analisadas a partir do
conhecimento adquirido pela trajetória pregressa (Silveira, 1994).
Nesta sucinta abordagem, tentamos apontar algumas questões que
condicionam os conceitos e metodologias que devemos utilizar no ensino
voltado à agricultura familiar. A seguir aborda-se a base epistêmica que
norteará nossa perspectiva de ensino profissional. A grande superação da
formação é substituir o processo formativo baseado em pacotes tecnológi-
cos por outra capaz de elevar os profissionais de passivos depositários de
tecnologias modernas para profissionais criativos, capazes de juntamente
com os agricultores formular as melhores soluções tecnológicas, amparadas
no desenvolvimento social e econômico das propriedades e na capacidade
de resposta e resiliência do ambiente.

QUAIS AS BASES EPISTÊMICAS NECESSÁRIAS PARA UMA FORMAÇÃO


PROFISSIONAL PARA O DESENVOLVIMENTO RURAL?
A educação brasileira passa por um amplo processo de debate, em
que se busca a valorização dos sujeitos no seu contexto social e o resgate
desses como “sujeitos” e não objetos dos processos educacionais (Freire,
1996), no qual os paradigmas holísticos de educação buscam “restaurar a
totalidade do sujeito, valorizando a sua iniciativa e a sua criatividade, valo-
rizando o micro, a complementaridade, a convergência e a complexidade”
(Gadotti, 2000). Essas reflexões têm influenciado o ensino agrícola?
304 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

O ensino agrícola, baseado na transmissão ordenada e sistemática de


conhecimentos tecnológicos, com o objetivo de difundir tecnologias, passa
a ser questionado e precisa ser repensado considerando uma nova cultura de
trabalho e de produção (Brasil, 2009). Esse questionamento está presente,
por exemplo, na Lei 11.892 29/2008, que cria uma nova concepção para
a educação profissional e tecnológica, quando institui a Rede Federal de
Educação Profissional, Científica e Tecnológica e cria os Institutos Fede-
rais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs). Na concepção dos IFs há o
imperativo de romper com a lógica do treinamento técnico. Além disso,
as estratégias de ensino, pesquisa e extensão deveriam ser propulsoras do
desenvolvimento local, além de contemplar aqueles públicos historicamente
excluídos.
Percebe-se uma resistência em mudar as concepções do ensino agrí-
cola, pois o atrelamento à lógica “modernizante” ainda é o norte da edu-
cação profissional. Segundo o documento que discute a “Ressignificação
do ensino agrícola da rede federal de educação profissional e tecnológi-
ca” (Brasil, 2009), exige-se uma educação comprometida com as múltiplas
necessidades sociais, culturais e ambientais da população brasileira. Esse
debate vem ao encontro dos debates da década de 80 acerca da concepção
da educação brasileira e da necessidade de se criar processos educativos
crítico-construtivistas, superando a concepção tradicional bancária na pers-
pectiva proposta por Paulo Freire. A concepção de educação defendida por
Paulo Freire é definida por Gadotti (2000) como o paradigma da educação
popular, no qual devem se refletir os valores de solidariedade e de recipro-
cidade e novas formas de produção e de consumo. O paradigma da educação
popular parte do princípio de que a conscientização dos educandos e de sua
presença no mundo é o princípio para a libertação enquanto sujeitos.
Para Freire (1979), o homem ao tomar consciência do mundo (natu-
reza e cultura) enquanto sujeito que é fruto de relações sociais e políticas
contraditórias e opressoras, torna-se capaz de agir nesse ambiente com cri-
ticidade. O primeiro passo, segundo Freire (1979), para uma ação verda-
deiramente libertadora, a qual busca relações sociais mais equânimes e que
valorizam os diferentes sujeitos, é a conscientização. Os indivíduos precisam
tomar consciência do mundo em que vivem e quais são as relações de forças
e de poder desse mundo.
Velhas e Novas Interrogações Sobre a Formação Tecnológica Para a Agricultura Familiar 305

Ainda segundo Freire (1996), a prática docente que considera os edu-


candos depositários de conteúdos concebidos pelos “educadores”, deve ser
substituída pela prática docente crítica que envolve o movimento dinâmico
e dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer. Nesse sentido, o ensino
exige reflexão crítica sobre a realidade. Assim o ensinar para a atuação na
agricultura exige obrigatoriamente reflexões sobre as diferentes realidades
rurais e agrícolas. Educandos e educadores precisariam ter o conhecimento
e análise crítica das realidades, buscando reconhecer o dinamismo das dife-
renças sociais, econômicas e ambientais do meio rural. A ação de repasse de
informações deve ser substituída por uma ação dialógica, concebida num
processo de educação diferenciado.
Buscamos um processo de educação capaz de formar para a hetero-
geneidade do meio rural, a qual possibilitará aos futuros “técnicos” o ato de
identificar problemas inerentes ao rural e conceber uma agricultura fora da
concepção da monoatividade altamente tecnificada, ou seja, um processo
de educação emancipadora. A educação emancipadora, segundo Gadotti
(2000), torna os sujeitos da educação mais livres, menos dependentes do
poder econômico, forma sujeitos políticos e éticos, capazes de aprender e
a viver melhor, além de indivíduos comprometidos com a transformação
social, capazes de romper as amarras do modelo que aprisiona os sujeitos
no individualismo.
Como o ensino agrícola no Brasil tem uma trajetória de adaptação
aos modelos agrícolas preconizados, alguns questionamentos básicos podem
balizar o debate acerca da formação profissional nas Ciências Agrárias: Que
modelo de agricultura queremos desenvolver? Que processos educativos são
necessários para esse modelo? Ainda pode-se pensar a educação profissional
voltada ao treinamento técnico de profissionais cuja atuação seria o repasse
de técnicas para os agricultores, num modelo que tenta igualar os desiguais?
É possível considerar o cultivo agrícola à revelia dos ecossistemas? Os agri-
cultores, alvo desse modelo ainda são (ou podem ser) aqueles “modernos”
ou capazes de se modernizar? E o que é realmente a agricultura?
Em nosso entendimento, essas questões são balizadoras de um
repensar da formação profissional para as Ciências Agrárias. O ensino
baseado no repasse de pacotes tecnológicos mantém os educadores, edu-
candos e futuros profissionais em um patamar de repassadores de informa-
306 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

ção acrítica, sem compromisso de transformação da realidade. Espera-se


que a tecnologia resolva os problemas, sendo assim, o papel do humano é
repassar (extensionista) e aplicar as tecnologias (agricultor). É um processo
de quase divinização do componente tecnológico, como se esse fosse isento
de intenções, valores ou qualquer carga ideológica. O discursos da neutra-
lidade científica parecem imperar e camuflar a intenção de educar para o
agronegócio. Para Fonseca (1985), as teorias pedagógicas têm se revestido
da racionalidade técnica e da neutralidade científica para ocultar o caráter
político da educação, assim há uma redução dos problemas educacionais a
problemas de ordem metodológica, técnica e administrativa.
Impossível crer que depois de tantos estudos que consagraram a agro-
ecologia como ciência e que mostram a superioridade técnica da agricultura
familiar, os profissionais das Ciências Agrárias continuem “não acreditando”
que um outro modelo é possível. Parte-se do pressuposto de que o modelo
da modernização é o científico e qualquer outro proposto encontra-se no
patamar da crença. Assim, todo o conhecimento científico produzido em
prol de uma ruptura paradigmática do modelo de agricultora convencional
continua sendo ignorado pelos cânones do ensino agrícola.

ROMPER O PADRÃO FORMATIVO OU CONTINUAR NA ZONA


DE CONFORTO DO RECEITUÁRIO TECNOLÓGICO
O meio rural pode ser considerado um espaço amplo e construído a
partir de relações entre vários atores sociais, interesses políticos e econô-
micos, relações homem-natureza, ou seja, a partir dos fatores relacionados
a esquemas culturais e sociais historicamente construídos. A visão reducio-
nista que encara o meio rural simplesmente como um espaço de produção
agrícola confronta-se com a visão de que o espaço rural é um complexo de
relações sociais e culturais historicamente construídas. Essas relações sociais
e as forças que condicionaram o seu desenvolvimento determinam a forma
de exploração do espaço.
De acordo com Couto Filho (2007), os paradigmas tecnológicos
definem as oportunidades de inovações e as trajetórias tecnológicas a serem
adotadas em determinado setor de produção. No caso do meio rural, por
décadas a trajetória traçada foi a da modernização com adoção de insumos
Velhas e Novas Interrogações Sobre a Formação Tecnológica Para a Agricultura Familiar 307

mecânicos, químicos e biológicos voltados para aumentar a produtividade


da terra e do trabalho. Forçou-se e ainda forçam-se, as sociedades e recursos
naturais a obedecerem aos padrões técnicos predefinidos. Os resultados eco-
nômicos (a subordinação dos agricultores ao capital agroindustrial), sociais
(êxodo rural e manutenção da pobreza rural) e ambientais (degradação do
solo e da qualidade da água), são evidentes e exigem outro tipo de inter-
venção, em que o mito da maior produtividade é substituído pela melhor
qualidade de vida para as famílias rurais.
Em muitos contextos da AF, a melhor qualidade de vida dos agri-
cultores não será garantida pela tecnologia do padrão dominante, mas pelo
fortalecimento e constituição de sistemas de produção menos exigentes
em insumos externos, com ênfase na produção para o consumo familiar e
para os mercados locais. Nestas condições, os extensionistas ao invés de
reproduzirem o interesse das empresas de insumos, devem potencializar
os recursos locais e os mercados locais/regionais. Trata-se de um enfoque
que traz ao profissional a necessidade de mudar a racionalidade com que
analisa a agricultura, passando da produção e produtividade máxima para
ver o bem-estar das famílias rurais como princípio orientador. Nesse sentido,
aqueles conhecimentos necessários para o trabalho com mercados locais,
construção social de mercados, organização de agricultores, conhecimentos
sobre cultura, sociedade e desenvolvimento aterrado, assim como a base
científica da agroecologia, não devem ser elementos curriculares dispersos
no itinerário de formação dos futuros profissionais, mais sim a base da sua
formação.
Na racionalidade dominante em nosso ensino de Ciências Agrárias,
tanto em nível superior quanto em nível médio, as ações artificializadoras
do meio rural, discutidas por Santos (1996), são desenvolvidas considerando
que todas as situações, por mais diversas que sejam, devem ser palco de um
conjunto de técnicas escolhidas como as mais eficazes. Eis o grande equí-
voco dessa trajetória tecnológica, na qual as diversas realidades são forçadas
a se adequarem à tecnologia que foi definida à revelia dessas realidades
ecossistêmicas e socioculturais. E ainda mais, á revelia do interesse e expec-
tativa dos agricultores.
308 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

A mudança da base paradigmática do atual modelo, de acordo com


Couto Filho (2007), está centrada em duas discussões principais: a manu-
tenção do padrão produtivista adaptado, em que as dificuldades enfrentadas
pelo modelo seriam superadas com adaptações tecnológicas e gerenciais, ou
uma proposta de inovação radical, o que implica

(...) pensar um modelo agrícola alternativo, socialmente correto,


ecologicamente equilibrado e não dependente de combustíveis
fósseis que, levando em conta as especificidades das condições de
produção agrícola para diferentes climas, permita conciliar uma
agricultura mais equilibrada com a realidade socioeconômica e
cultural de cada país (Couto Filho, 2007, p. 40).

Assim, buscar uma reorientação dentro do modelo do crescimento


econômico e do uso indiscriminado da natureza provavelmente não levará
o “desenvolvimento” para outro caminho, logo a alternativa da manutenção
do padrão produtivista, adaptando-o com tecnologias mais brandas e mais
eficientes do ponto de vista gerencial, não produzirá impactos significativos
na redução da entropia. O modelo de agricultura, como um processo pro-
dutivo que se desenvolve com base na supressão da paisagem natural e das
características dos ecossistemas precisa ser repensado.
Por outro lado, há que se considerar a agricultura além do processo
produtivo, mas também com um processo cultural que evolui e se recons-
trói ao longo do tempo (Balem; Silveira, 2002). Nos tempos atuais, porém,
esse processo foi altamente impactado pelas técnicas homogeneizadoras
do processo de modernização, ou seja, substitui-se o componente cultural
produzido pela coexistência do agricultor nos agroecossistemas pelo com-
ponente artificial-tecnificador. A reorientação da agricultura deve considerar
que cada agroecossistema é resultado das condições ecológicas e das rela-
ções econômicas e sociais locais. Assim, de acordo com Couto Filho (2007,
p. 42), “a forma de intervenção em uma unidade de produção agrícola deve
ser adequada a sua estrutura. Nesse sentido, é preciso conhecer o potencial
de cada região, considerando os recursos naturais, a estrutura socioeconô-
mica, etc.” O autor supracitado ainda defende que os sistemas produtivos
Velhas e Novas Interrogações Sobre a Formação Tecnológica Para a Agricultura Familiar 309

agroecológicos devem partir da realidade de cada comunidade e das pessoas


aí inseridas, rompendo-se com a lógica da introdução e produção a partir
dos pacotes tecnológicos sem considerar as características locais da região.
A lógica de trabalho para a agricultura, seja da pesquisa, da extensão
rural ou dos próprios agricultores, quando se tem como horizonte a agricul-
tura ecológica, é completamente diferente da lógica linear da agricultura
moderna, em que a pesquisa cria as soluções tecnológicas que são repassadas
aos agricultores na forma de receitas. “Na agricultura ecológica, as soluções
mais adequadas são sempre locais, e se visa alimentar a tomada de decisão
do agricultor” (Khatounian, 2001, p. 297). A pesquisa e a extensão rural, no
contexto da agricultura ecológica, tomam significações diferentes e mais
complexas, e ao extensionista cabe traduzir as informações científicas à luz
das situações da região. Já aos agricultores fica a tarefa de refletir sobre os
aprimoramentos desejáveis nos seus sistemas de produção e o pesquisador
pode contribuir com o pensar global, mas apenas o agricultor pode decidir
sobre o agir local (Ibidem).
De acordo com Pacífico e Soglio (2010), para o trabalho com sistemas
de produção orgânicos, deve-se elaborar processos diferenciados de forma-
ção e construção, para não cair no equívoco da estratégia de transferência de
tecnologias. Segundo os autores, a transição agroecológica deve considerar
a perspectiva dos atores, o seu habitus e os seus conhecimentos sobre os
agroecossistemas locais, obrigatoriamente. Fica evidente a necessidade de
se recriar o processo de intervenção no meio rural. A extensão e pesquisa
devem reorientar-se para dar respostas a um modelo de se desenvolver agri-
cultura em sistemas de interação entre cultura, ambiente e relações sociais,
casada com a produção de produtos agrícolas, sejam alimentares ou não.
O grande desafio está em refletir sobre a complexa organização entre os
saberes globais e saberes locais, implicados na construção social da sustenta-
bilidade, pois não tem como pensar a sustentabilidade do desenvolvimento
reproduzindo o mesmo processo civilizatório que afogou saberes e culturas
(Morin, 2008). Nesse sentido, Santos, Meneses e Nunes (2005) discutem a
hegemonia do pensamento científico moderno, que ignora qualquer outra
forma de conhecimento. Os autores apontam para a necessidade de perceber
a pluralidade de sistemas de produção e de saber no mundo, assim como
para a sua importância nos processos de desenvolvimento.
310 Ta t i a n a A p a r e c i d a B a l e m – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a

A busca pela visão global do conhecimento científico faz com que as


tecnologias geradas para a sociedade sejam homogeneizadoras. O conheci-
mento técnico é considerado um só e deve ser generalizado para as diferen-
tes realidades. Os pacotes tecnológicos na agricultura são um exemplo das
técnicas globais homogeneizantes. Quebrar o paradigma de que o científico
é global talvez seja uma das questões de fundo, quando se discute agroeco-
logia e sustentabilidade. A superação da dualidade global/local é necessária,
pois conhecimentos globais não é sinônimo de tecnologias globais, uma vez
que os objetos de conhecimento “se transformam quando colocados em
novas situações, seja adquirindo novas propriedades sem perder as que os
caracterizavam, seja assumindo identidades novas que permitem sua rea-
propriação em novas condições” (Santos; Meneses; Nunes, 2005, p. 43).
O desafio, ao pensar estratégias para o meio rural, além de buscar
incorporar aqueles conhecimentos até então rechaçados pelo paradigma
dominante, é buscar reconstruir processo locais em lugares em que a cultura
local-tradicional aparece erodida pelo tecnicismo-homogeneizador. O conhe-
cimento tradicional depende para sua reprodução do surgimento de novas
pessoas e do aprendizado sobre o modo de reprodução que as caracteriza,
sua circulação depende do contato direto entre os atores sociais, num con-
texto histórico e cultural (Gomes, 2011). Por outro lado, inúmeros dos agroe-
cossistemas já não respondem a muitas das suas realidades socioeconômicas,
o que evidencia, além do processo de degradação ambiental, a necessidade
de construção de novos sistemas.
Assim, ao reconstruir os agroecossistemas, é necessário um processo
de coevolução capaz de garantir que os conhecimentos gerados e apropria-
dos alimentem o sistema e não sejam erodidos ao logo do tempo. Nesse
sentido, as soluções tecnológicas devem ser pensadas em consonância com
os conhecimentos existentes e não os suprimindo. Ao expor essa discussão
sobre a base epistêmica da formação profissional para o rural, ao desnudar
a completa falta de orientação da formação para o público da agricultura
familiar ao mesmo tempo em que apontamos como possível caminho a agro-
ecologia e a construção de conhecimentos técnicos em consonância com as
especificidades de cada local, chegamos a uma encruzilhada. Ou rompemos
com o padrão formativo da modernização ou continuamos com ele. Se a
Velhas e Novas Interrogações Sobre a Formação Tecnológica Para a Agricultura Familiar 311

opção, contudo, continuar sendo a zona de conforto do ensino do receituário


técnico, é necessário assumir a opção política da não formação para a AF e
não o discurso de que formamos para todos os públicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões deste texto, nem de longe são conclusivas, ao contrá-
rio, lançam mais interrogações do que caminhos, pois não partimos de um
modelo preconcebido e sim de premissas que apontam para a necessária
mudança da base epistêmica do ensino agrícola. Partimos do pressuposto
de que a AF necessita de um serviço de extensão rural de acordo com
a sua diversidade e especificidade. Assim, profissionais com outras bases
epistêmicas são imprescindíveis. Por outro lado, a formação para o modelo
modernizador é insustentável e não compatível com a produção de alimen-
tos saudáveis. AF no cenário brasileiro é a grande responsável pelos ali-
mentos da cesta básica, mesmo sem o compromisso político dos “centros
do saber”. Um serviço de extensão adequado, associado à políticas públicas
de qualidade poderiam alavancar ainda mais esse setor.

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FORMAÇÃO PROFISSIONAL
PARA O RURAL CONTEMPORÂNEO
Reflexões Acerca das Experiências da
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS

Gisele Martins Guimarães


Benjamin Dias Osorio Filho
Andréa Miranda Teixeira

Este texto tem como objetivo refletir sobre as recentes transforma-


ções no mercado de trabalho do profissional em Ciências Agrárias, marcadas
pela necessidade de planejamento e gestão para além das atividades agrope-
cuárias, incorporando conceitos como pluriatividade e multifuncionalidade
nos espaços rurais. Neste cenário, o profissional passa a atuar em múltiplas
dimensões, partindo do pressuposto do rural não apenas como local res-
ponsável pela produção de matérias-primas, mas sobretudo como lugar de
permanência e espaço de vida.
Busca-se discutir o papel das universidades na formação destes pro-
fissionais trazendo à tona uma série de reflexões acerca de novos cursos
de Graduação pensados para uma nova realidade rural protagonizada pelo
agricultor familiar e sua participação na economia brasileira. Como análise
empírica explana-se a experiência da Universidade Estadual do Rio Grande
do Sul (Uergs), como instituição comprometida com o desenvolvimento
regional. Discute-se o perfil de seus cursos de Graduação em Ciências Agrá-
rias, pensados na conjuntura das novas ruralidades buscando a colocação de
seus egressos a partir de demandas do mercado de trabalho regional.
316 G i s e l e M a r t i n s G u i m a r ã e s – B e n j a m i n D i a s O s o r i o F i l h o – A n d r é a M i r a n d a Te i x e i r a

Apresenta-se o processo de criação, instituição e readequação dos


cursos de Ciências Agrárias propostos pela Uergs, que vão do Bacharela-
do aos Cursos Superiores de Tecnologia – CSTs –, buscando a inovação
e adequação curricular para o rural contemporâneo, a partir da criação de
novas profissões, mais especificamente os tecnólogos, insituídos na Uergs
em 2004 a partir da política brasileira de expansão da educação profissional
do Ministério da Educação (MEC).
As reflexões aqui expostas partem da vivência dos autores como pro-
fessores e gestores acadêmicos por cerca de oito anos na Uergs, quando par-
ticiparam dos processos de decisão, criação e reformulação dos cursos desta
Universidade. As análises empíricas são então confrontadas com documen-
tos oficiais como leis, decretos, projetos político-pedagógicos e diretrizes
legais de Conselhos Profissionais que legislam as instâncias da educação
profissional no Brasil e na Uergs em particular.
Os caminhos trilhados pela Instituição apontam para uma série de
desafios encontrados pelos egressos para sua inserção no mercado de tra-
balho, principalmente no que se refere às organizações governamentais do
Estado do Rio Grande do Sul atuantes no desenvolvimento rural, colocando
em discussão a postura do Estado como gestor de políticas públicas para
a formação profissional e a (in)ação deste como mediador dos espaços de
trabalho.

CONTEXTUALIZANDO A FORMAÇÃO PROFISSIONAL


A formação profissional tem sua significação atrelada a um conjunto
de atividades que visam à aquisição de conhecimentos, capacidades, atitu-
des e formas de comportamento exigidos para o exercício das funções pró-
prias duma profissão ou grupo de profissões em qualquer ramo de atividade
econômica, por isso são mecanismos constantemente revistos e recriados.
Paulo Freire, uma das maiores referências em educação no país, argu-
menta que a formação é um processo constante de contrastes e sucessivas
aproximações à realidade, contribuindo inclusive para a sua transformação.
Por isso, “(...) não existe formação momentânea, formação do começo, for-
mação de fim de carreira. Nada disso. Formação é uma experiência, que não
pára nunca” (Freire, 2001, p. 245).
Formação Profissional Para o Rural Contemporâneo 317

Tal argumentação é comprovada quando analisamos a historicidade


da educação profissional no Brasil. Nela percebe-se os esforços das políticas
públicas no sentido de acompanhar os diferentes modelos de desenvolvi-
mento: do progresso à sustentabilidade.
O primeiro paradigma (o progresso) trouxe consigo a crença no cres-
cimento econômico como desenvolvimento, impondo à sociedade uma
conjuntura de novos desafios, que apontavam para a necessidade de uma
série de transformações nos aspectos socioeconômicos, éticos e políticos na
sociedade da década de 30, quando com o início dos processos de industria-
lização do país, emergia a necessidade de qualificação imediata de mão de
obra. Para tanto várias escolas de ensino tecnológico foram criadas buscando
acompanhar as tendências de um modelo de desenvolvimento ancorado
no crescimento econômico, em que a qualificação da mão de obra se fazia
urgente (Frigotto, 2010).
Nesse contexto, buscando associar desenvolvimento e educação, a
expressão educação tecnológica passa a ser usada na década de 70 sob um
certo preconceito associado à formação de classes menos favorecidas, com
as universidades com seus cursos de Licenciatura e Bacharelado, sendo
reservadas para a formação de intelectuais e não mão de obra (Takahashi;
Amorim, 2008).
Dentro deste propósito e diante da necessidade crescente de profis-
sionais formados e prontamente aptos e disponíveis para o trabalho, o Brasil
regulamenta a educação e formação profissional no país, premissas estas
presentes nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBs) que
objetivam mediar interesses da sociedade brasileira no que se refere, dentre
outros aspectos, à importância da formação profissional para o mercado de
trabalho.
A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 4.024 foi publi-
cada em 20 de dezembro de 1961 pelo presidente João Goulart, quase 30
anos após ser prevista pela Constituição de 1934, mas é a segunda versão
desta, Lei nº 5.692, de 1971, regida pelo então governo militar, que vai dar
os primeiros passos regimentais para a educação profissional. A LDB/71
inclui um novo paradigma na educação brasileira: formar técnicos em regime
da urgência. Para tanto, reestrutura o ensino de 1º e 2º graus, e entre as
318 G i s e l e M a r t i n s G u i m a r ã e s – B e n j a m i n D i a s O s o r i o F i l h o – A n d r é a M i r a n d a Te i x e i r a

diretrizes de seus 88 artigos, dá obrigatoriedade aos estudantes do então


segundo grau (atual Ensino Médio) na realização de cursos profissionalizan-
tes. Antoniazzi (2012), buscando refletir sobre tal obrigatoriedade, aponta
para a seguinte justificativa:

Vivia-se a fase do “milagre brasileiro” e a opção política do governo


militar foi dar uma resposta diferente às demandas educacionais
das classes populares, criando “possibilidades” à inserção dos traba-
lhadores no mercado de trabalho, em função do desenvolvimento
do capitalismo brasileiro naquele momento histórico.

Essa diretriz formou massas de novos profissionais de formação


técnica, disponibilizando trabalhadores para as mais diferentes áreas do
conhecimento, principalmente aquelas ligadas à indústria (técnicas indus-
triais) e à administração (cursos técnicos de Contabilidade). A LDB de 71
propunha formação integral, buscando compatibilizar segundo grau e forma-
ção profissional como estratégia para a formação de novos profissionais, mão
de obra indispensável diante da aceleração do processo de industrialização.
No final dos anos 80 e metade dos anos 90, o debate sobre tal obri-
gatoriedade retorna na atual LDB nº 9.394/96. A partir desta, o modelo
de formação integral é deixado de lado, e dessa forma as escolas deixam
de oferecer o ensino profissionalizante. Este fica sob a responsabilidade
das Escolas Técnicas Federais e Escolas Agrotécnicas, que passam a ser
fortemente criadas no país no final dos anos 90. Dentre os objetivos destas
escolas está a necessidade de se superar o então preconceito com a educação
profissional, destinando a ela investimentos e políticas específicas.
A LDB de 1996 reserva entre seus 92 artigos, 2 deles para a educação
profissional. Os artigos 39 e 42 regulamentados pelo Decreto nº 2.208/97,
distinguem 3 niveis no ensino profissional: básico, técnico e tecnológico,
este último correspondente ao ensino superior.
Estes níveis vão ser atualizados em 2004 pelo Decreto 5.154 deter-
minando que a educação profissional se dará nos 3 níveis, a saber:
– Formação inicial e continuada de trabalhadores
– Educação profissional técnica de nível médio
– Educação profissional tecnológica de Graduação e Pós-Graduação
Formação Profissional Para o Rural Contemporâneo 319

O primeiro objetiva à elevação do nível de escolaridade do trabalha-


dor. O segundo é ofertado integrado ao Ensino Médio, concomitante ou
subsequente, aperfeiçoando a formação de jovens. O terceiro consiste na
educação profissional tecnológica de nível superior visando à qualificação de
profissionais para as novas necessidades do mercado de trabalho, marcado
pelo surgimento de novas tecnologias exigidas pela globalização. Por esta
razão, os cursos tecnológicos não constituem cursos permanentes, mas sim
aqueles que precisam ser sempre revistos e redesenhados para garantir as
novas necessidades do mercado de trabalho (Anet, 2003).
Os cursos superiores tecnológicos (CSTs) costumam ser de duração
mais curta que os tradicionais cursos de Licenciatura e Bacharelado. Esta
nova configuração curricular é obtida, em geral, mediante redução de con-
teúdos de base científica e humanística, procurando focar na especializa-
ção de um determinado segmento, voltando seus currículos para conteúdos
técnicos aplicados e para a organização e gestão da produção empresarial,
objetivando a capacidade de absorção rápida deste profissional pelo mercado
de trabalho (Frigotto, 2010).
Do ponto de vista de um olhar setorial específico sobre a formação
profissional em Ciências Agrárias observa-se, a partir do ambiente rural,
bem como das pautas de reivindicação dos movimentos sociais do campo,
uma demanda profissional de caráter multidimensional quando o objeti-
vo é o desenvolvimento rural (e não unicamente o agrícola). Esta análise
aponta para a necessidade de uma formação para além da tecnologia, indo
ao encontro dos preceitos da educação humanística, voltada para o homem
como ser social, integrado à sociedade (constituindo-se como ator a partir
desta) e ao meio ambiente.
Estudos brasileiros dirigidos ao rural dão visibilidade a esta concep-
ção, demonstrando análises que vão muito além da perspectiva tenológica
disseminada pela revolução verde da década de 70, como caminho para o
crescimento socioeconômico e pressuposto desenvolvimento rural. As abor-
dagens teóricas e políticas que hoje se ocupam de comprender os fenô-
menos socioprodutivos, econômicos e ambientais no Brasil, consideram o
meio rural como espaço de vida, ou seja, muito além da ideia de um local
longínquo, fornecedor de matéria-prima e dependente do meio urbano para
infraestrutura básica, educação, saúde e lazer (Wanderley, 2001).
320 G i s e l e M a r t i n s G u i m a r ã e s – B e n j a m i n D i a s O s o r i o F i l h o – A n d r é a M i r a n d a Te i x e i r a

É o paradigma da sustentabilidade, que abarca questões como


geração de trabalho e renda no meio rural, agroindustrialização da produ-
ção (e não apenas oferta de matéria-prima), infraestrutura rural (transporte,
água, energia, saúde, educação, lazer, etc.), preservação do meio ambiente
e cultural local, entre outras questões, que precisam ser incorporadas às
políticas e ações dos profissionais no sentido de um novo rural brasileiro .

O NOVO RURAL E A FORMAÇÃO PROFISSIONAL


Dentro do paradigma da sustentabilidade, preconiza-se a necessidade
de o rural permanecer e reproduzir-se no transcorrer dos tempos, incitando
a inclusão de novas atividades e significados para além do trabalho marcado
pela racionalidade econômica, nas pautas de discussão e ações dos agentes
de desenvolvimentor rural.
Assim, o Novo Rural é marcado essencialmente pela superação do
mito de que o rural é sinônimo de atraso, atividade agrícola, êxodo e pobre-
za.1 A noção de espaço rural passa a ser rediscutida, trazendo à tona uma
série de novos questionamentos: O que é rural? Quais as conexões do espaço
rural com o urbano? Quais são de fato as atividades típicas do rural? A partir de
novas funções definidas pelo rural, como promover seu desenvolvimento? Estas e
outras indagações quando refletidas e confrontadas com a realidade, levam
à constatação da existência de um Novo Rural Brasileiro, marcado por um
conjunto de novas dinâmicas produtivas, arranjos institucionais e atores
sociais, dando corpo ao rural como espaço multifuncional e pluriativo.
Segundo Schneider (2003), a pluriatividade é o fenômeno mediante
o qual membros das famílias que habitam o meio rural optam pelo exercício
de diferentes atividades, ou, mais rigorosamente, pelo exercício de ativida-
des não agrícolas como o turismo, artesanato ou agroindústrias, mantendo
a moradia no campo e uma ligação, inclusive produtiva, com a agricultura
e a vida no espaço rural. A multifuncionalidade, por sua vez, é o termo que
designa as novas funções do rural, como a reprodução socioeconômica das

1
Para conhecer mais sobre o debate da superação dos mitos do rural, ver o documento
“O novo rural brasileiro: uma atualização”. Disponível em <http://www.sober.org.br/
palestra/2/823.pdf>.
Formação Profissional Para o Rural Contemporâneo 321

famílias rurais a partir de estímulos a atividades não agrícolas, a promoção


da segurança alimentar das famílias rurais e da sociedade, manutenção do
tecido social e cultural e preservação dos recursos naturais e da paisagem
rural, associando sempre biodiversidade e diversidade cultural.
Nesse contexto, emerge o conceito de território como referência para
as iniciativas de desenvolvimento rural, pela sua capacidade de articular
espaço de trabalho e vivência a partir da consideração das culturas, iden-
tidades e formas de ocupação dos espaços historicamente contruídos pelo
homem a partir de suas significações:

A idéia central é que o território, mais que simples base física


para relações entre os indivíduos e empresas, possui um tecido
social, uma organização social complexa feita por laços que vão
muito além de seus atributos naturais, dos custos de transpor-
tes e comunicações. Um território apresenta uma trama de rela-
ções com raízes históricas, configurações políticas e identidades
que desempenham um papel ainda pouco conhecido no próprio
desenvolvimento econômico (Abramovay, 2000).

O território passa a ser a referência localizante, convidando que se


abandone um horizonte estritamente setorial, que considera a agricultura
o único setor e os agricultores os únicos atores que importam nas regiões
rurais. Ele sugere que se dê ênfase para a maneira como uma sociedade
utiliza os recursos de que dispõe em sua organização produtiva e, portanto,
na relação entre sistemas sociais e ecológicos. Por fim, o conceito de terri-
tório tem seus preceitos ancorados na concepção do espaço rural como não
dissociado do urbano, mas em constante troca, interação e cumplicidade,
daí a importância do conceito quando o assunto é desenvolvimento rural,
pois a partir dele é possível analisarmos o espaço para além das atividades
agrícolas, incorporando nas ações de planejamento e gestão os propósitos
de um rural contemporâneo.
Não há dúvidas de que o novo rural ao qual nos referimos é multifun-
cional e pluriativo, designações estas que nos permitem identificar a multi-
plicidade de formas de trabalho e renda das unidades agrícolas, colocando
entre suas funções, além da alimentar e econômica, as funções ambiental,
322 G i s e l e M a r t i n s G u i m a r ã e s – B e n j a m i n D i a s O s o r i o F i l h o – A n d r é a M i r a n d a Te i x e i r a

patrimonial, recreativa, estética e social, nas quais emerge a agricultura


familiar enquanto categoria social e política, como protagonista deste novo
cenário
A agricultura familiar, delimitada e definida por lei desde 2006 (Lei
nº 11.326, de 24 de julho), tem sido desígnio de inúmeras políticas públicas
nos últimos 20 anos, proporcionando uma crescente visibilidade da cate-
goria como agricultura moderna (e não mais apenas como de subsistência),
importante produtora de alimentos e base do desenvolvimento de vários
países. Mesmo em ascensão visível, contudo, obervamos uma carência de
profissionais de Ciências Agrárias aptos para trabalhar com a categoria, carac-
terizada sobretudo (segundo a Lei) pelo tamanho da propriedade (até quatro
módulos fiscais), predominância no trabalho de mão de obra familiar e renda
de no mínimo 50% vinda da propriedade, caracterização esta que lhe confere
dinâmicas socioprodutivas específicas.
Desta forma emerge a necessidade de uma formação profissional
capaz de responder às demandas de trabalho deste novo rural, com proble-
mas de caráter difuso, como desafios de geração de emprego e renda e valo-
rização do espaço não apenas como local de produção, mas como ambiente
de vida, posto que trabalho e vivência passam a ser cada vez mais integrados.
Assim, a multidisciplinaridade, a partir de abordagens mais sistêmicas de
trabalho e ação, possui papel relevante na formação de profissionais capazes
de olhar o todo (e não o específico), como um dos instrumentos para o
desenvolvimento sustentável.
Estas demandas, somadas às exigências globais de eficiência e com-
petitividade, têm imposto às universidades brasileiras o desafio da formação
de profissionais complexos, que deem conta das habilidades técnicas neces-
sárias, mas que também sejam capazes de perceber e planejar as dinâmicas
socioambientais estabelecidas pelos atores rurais.
Considerando a demanda crescente por estes profissionais e a neces-
sidade de estes estarem rapidamente disponíveis para o mercado de tra-
balho, crescem exponencialmente no país a oferta de cursos de formação
superior tecnológica, como demonstram os dados do censo da educação
superior no país (Figura 1), realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2013).
Formação Profissional Para o Rural Contemporâneo 323

Figura 1 – Evolução do número de matrículas de Graduação, por Grau Acadêmico


no Brasil

Fonte: MEC/Inep – adaptado pelos autores.

Os dados apontam para o crescimento na oferta de cursos tecnoló-


gicos pelas Instituições de Ensino Superior – IES – no Brasil desde 2004,
ano de investimento do Ministério da Educação em políticas de expansão
da educação profissional, principalmente da modalidade tecnólogo.
No Rio Grande do Sul existem mais de 30 centros educacionais
públicos oferecendo cursos de tecnologia, considerando os Institutos Fede-
rais (IFs) e Universidades. Dentre as universidade do RS a Uergs, em 2004,
foi uma das pioneiras em ofertar cursos de formação superior tecnológica
em Ciências Agrárias, os CSTs, com enfoque na produção, processamento e
industrialização dos produtos de agropecuária, idealizados como estratégia
de promoção do desenvolvimento regional, formando profissionais condi-
zentes com perfis e vocações regionais.
Os resultados desta política, bem como os desafios impostos por
ela, representam profícuas reflexões sobre o tema formação profissional
e desenvolvimento, o que apresentamos e discutimos nos tópicos subse-
quentes.
324 G i s e l e M a r t i n s G u i m a r ã e s – B e n j a m i n D i a s O s o r i o F i l h o – A n d r é a M i r a n d a Te i x e i r a

A UERGS E O DESAFIO DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL:


Formação Profissional e Mercado de Trabalho
A Universidade Estadual do Rio Grande do Sul foi criada em 2001
pela Lei 11.646/01 em formato multicampi com o intuito de promover o
desenvolvimento regional sustentável nas diferentes regiões do Estado,
caracterizadas pela sua heterogeneidade no que diz respeito à geografia,
cultura e consequentemente economia. Sua criação busca valorizar as carac-
terísticas socioculturais e políticas do Estado e responder à demanda por
ensino superior, público e gratuito. Lê-se na lei que dá origem a sua criação:

O objetivo de sua criação é ministrar o ensino de graduação, de pós-


-graduação e de formação de tecnólogos; oferecer cursos presenciais
e não presenciais; promover cursos de extensão universitária; fornecer
assessoria científica e tecnológica e desenvolver a pesquisa, as ciências,
as letras e as artes, enfatizando os aspectos ligados à formação huma-
nística e à inovação, à transferência e à oferta de tecnologia, visando ao
desenvolvimento regional sustentável, o aproveitamento de vocações
e de estruturas culturais e produtivas locais (Artigo 2º, Lei 11.646/01).

Como resultado de uma pauta de reivindicações da sociedade, a


Uergs busca promover a inovação e o conhecimento por meio do ensino, da
pesquisa e da educação permanente, voltados à resolução dos problemas
regionais, com sua filosofia fundamentada no desenvolvimento integral do
ser humano, buscando assim preencher lacunas do Estado no âmbito do
Ensino Superior, compreendendo este como dever maior e investimento
sociopolítico, indo ao encontro dos preceitos da democratização do acesso à
Universidade (Universidade..., 2012).
Com esse entendimento, em 2001 a Universidade foi instalada em 29
municípios gaúchos,2 com unidades estruturadas de acordo com as vocações
produtivas regionais e vinculadas a projetos de desenvolvimento do Estado,
considerando a atividade econômica e problemas da região. Os cursos bus-

2
Atualmente a UERGS oferece 19 cursos de Graduação ativos, 14 cursos de Pós-Grad-
uação Lato sensu e encontra-se instalada em 24 municípios: Alegrete, Bagé, Bento
Gonçalves, Cachoeira do Sul, Caxias do Sul, Cruz Alta, Encantado, Erechim, Frederi-
co Westphalen, Guaíba, Litoral Norte – Osório, Montenegro, Novo Hamburgo, Porto
Alegre, Sananduva, Santa Cruz do Sul, Santana do Livramento, São Borja, São Francisco
de Paula, São Luiz Gonzaga, Soledade, Tapes, Três Passos, Vacaria. Está vinculada à
Secretaria Estadual de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia.
Formação Profissional Para o Rural Contemporâneo 325

cavam um caráter inovador, baseados no conceito de universidade voltada


para o desenvolvimento e tecnologia com o grande objetivo de reforçar e
modernizar a matriz produtiva gaúcha.
Assim as áreas contempladas foram: formação de professores, gestão
pública, saúde pública, gestão ambiental, agricultura e sistemas produtivos
industriais, como demonstra o Quadro 1:
Quadro 1 – Áreas do conhecimento contempladas pelos cursos da UERGS – 2001
ÁREA DE CURSO DESCRIÇÃO
ATUAÇÃO
Educação Pedagogia anos iniciais Formar professores de crianças, jovens e adul-
e Educação de Jovens tos para trabalharem com pesquisa-ensino e
e Adultos - graduação desenvolverem processos educativos numa
perspectiva emancipatória.
Artes - Graduação Em elaboração
Gestão Pública Gestão Pública Partici- Formar profissionais com perfil de gestor e pla-
pativa - especialização nejador para desenvolver o conhecimento e a
solução de problemas concretos nas adminis-
trações públicas e na economia solidária.
Saúde Pública Administração de Formar gestores e planejadores do sistema de
Sistemas e Serviços de saúde pública municipal, estadual e federal, ca-
Saúde - Graduação pacitados para otimizar os recursos, através do
planejamento participativo.
Gestão Am- Engenharia em Biopro- Formar profissionais com habilitação para de-
biental cessos e Biotecnologia senvolver gerenciar o sistema produtivo atra-
- graduação vés de tecnologias limpas e adequadas á pre-
servação do ambiente.
Desenvolvimen- Desenvolvimento Formar profissionais para o planejamento do
to de Sistemas Rural e Gestão agroin- desenvolvimento rural e na gestão de unidades
Agrícolas e dustrial – graduação de produção agrícola e agroindustrial com ênfa-
Agroindustriais se a economia familiar.
Engenharia de Alimen- Formar profissionais para o gerenciamento de
tos e Química Indus- sistemas industriais no processamento de ali-
trial de Alimentos mentos e fiscalização.
- Graduação
Desenvolvimen- Automação Industrial e Formar profissionais para o desenvolvimento
to de Sistemas Engenharia – de processos automatizados no setor coureiro
de Produção Tecnólogo –calçadista.
Industrial
Desenvolvimen- Engenharia em energia Formar profissionais para trabalhar com as
to de Sistemas e Desenvolvimento potencialidades nas fontes energéticas, dispo-
de Produção Sustentável - níveis e alternativas vinculadas a outras áreas
Industrial Graduação da UERGS como gestão ambiental e agroin-
dustrial.
Desenvolvimen- Engenharia Mecânica Formar profissionais para atuarem no pólo me-
to de Sistemas – Graduação talmecânico em Panambi, potencializando o
de Produção curso existente na região.
Industrial

Fonte: Elaborado pelos autores, 2015.


326 G i s e l e M a r t i n s G u i m a r ã e s – B e n j a m i n D i a s O s o r i o F i l h o – A n d r é a M i r a n d a Te i x e i r a

No que diz respeito aos cursos pensados no âmbito das Ciências


Agrárias3 cabe destacar, nos primeiros anos da Universidade, a criação do
curso de Desenvolvimento Rural e Gestão Agroindustrial (DRGA). Este
Bacharelado, com enfoque multidisciplinar, foi idealizado no intuito de
sanar lacunas no mercado de trabalho, de profissionais habilitados a pensar
o planejamento e gestão de toda a cadeia produtiva (produção da maté-
ria-prima – processamento – comercialização dos produtos) com vistas ao
desenvolvimento rural (e não apenas o agrícola).4
Este curso foi pensado para além das atividades de produção, con-
templando estratégias de agregação de valor aos produtos produzidos, inser-
ção de produtores no mercado de alimentos (e não apenas como fornecedo-
res de matéria-prima) e ainda educação para a participação como ferramenta
de planejamento para a geração de emprego e renda e ainda melhorias na
qualidade de vida. Lê-se no Projeto Político Pedagógico que dá origem ao
curso:

O Objetivo do Curso de Desenvolvimento Rural e Gestão


Agroindustrial é formar profissionais multidisciplinares capazes
de contribuir para a geração de propostas de desenvolvimento,
com e para a comunidade local e socializar técnicas e processos
inovadores visando valorizar e qualificar os sistemas locais de pro-
dução (Universidade..., 2012).

Faz-se importante observar que o curso de DRGA foi oferecido em


municípios de perfil socioeconômico voltado para o agronegócio de grãos
(Bom Progresso, Cachoeira do Sul, Encantado, Frederico Westphalen, São

3
As Ciências Agrárias compõem uma área multidisciplinar de estudos envolvendo campos
como Agronomia, Agroecologia, Engenharia Florestal, Engenharia de Pesca, Medicina
Veterinária, Zootecnia, Ciências de Alimentos, Engenharia de Aquicultura entre outros
cursos pensados para a realidade rural e que visam à busca do aprimoramento técnico, o
aumento produtivo, qualidade de vida, melhorias no manejo e preservação dos recursos
naturais.
4
Uma boa discussão acerca das diferenças e propósitos que cercam os conceitos de
Desenvolvimento Rural e Desenvolvimento Agrícola pode ser encontrada no artigo
“Desenvolvimento rural no Brasil: os limites do passado e os caminhos do futuro”,
de Zander Navarro. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-
40142001000300009&script=sci_arttext>.
Formação Profissional Para o Rural Contemporâneo 327

Borja, São Luiz Gonzaga e Sananduva), buscando formar profissionais volta-


dos para a demanda de qualificação e planejamento das cadeias produtivas,
bem como elaboração e fomento de políticas, programas e projetos para o
desenvolvimento rural, propondo uma formação para além das questões
tecnológicas.
Foram formados cerca de 220 alunos desde a primeira turma, no
entanto o curso, inovador no âmbito de uma conjuntura multidisciplinar,
apresentava aos recém-formados uma ausência de conselho organizativo
profissional (Conselhos Profissionais). A grade curricular do curso que previa
conhecimentos no campo das Ciências Humanas, do meio ambiente e da
vida, fazia com que a então nova profissão não se enquadrasse em nenhum
dos conselhos profissionais existentes, nem no Conselho Regional de Admi-
nistração (CRA), nem no Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e
Agronomia (Crea).
Com a demanda pelos profissionais formados de um conselho pro-
fissional que lhes oferecesse a possibilidade de organização enquanto cate-
goria socioprofissional e consequentes ganhos na profissão, como vagas
em concursos e expansão da visibilidade da profissão, o curso passou por
adaptações buscando aproximar-se de profissões preexistentes no intuito
de reconhecimento por parte de conselhos profissionais. Em virtude de sua
grade curricular aproximar-se de um curso de Administração, o Conselho
Regional de Administração – CRA – acenou favoravelmente no sentido de
incluir a nova profissão em sua organização, mas sugerindo algumas altera-
ções no curso como condição. Assim o DRGA teve seu nome alterado para
Administração Rural e Agroindustrial, com a inclusão de um semestre a
mais (de oito para nove), anexando à grade de disciplinas conteúdos mais
relacionados à Administração. Neste curso de Administração a Uergs formou
desde a primeira turma cerca de 350 alunos.
Destaca-se nesta experiência que de um curso amplo, de base sis-
têmica e inovadora, o Bacharelado em Desenvolvimento Rural e Gestão
Agroindustrial por exigência do CRA, aproximou-se do curso de Adminis-
tração, incluindo em sua grade curricular disciplinas comuns aos cursos dessa
área, dissolvendo, em partes, seu diferencial, o que fica ilustrado a partir
da troca de nomes, deixando de ser Desenvolvimento Rural para se tornar
Administração Rural e Agroindustrial.
328 G i s e l e M a r t i n s G u i m a r ã e s – B e n j a m i n D i a s O s o r i o F i l h o – A n d r é a M i r a n d a Te i x e i r a

Percebe-se nos primeiros anos de existência da Uergs um esforço no


sentido da inovação da base intelectual, propondo discussões sobre modelos
de desenvolvimento, bem como a formação de profissionais modernos,
capazes de se integrar a um novo mercado de trabalho, este com um inova-
dor conceito sobre o rural, mais multidimensional, pluriativo, integrado ao
meio ambiente e à sociedade e por fim com a emergência de “novos atores”
protagonistas do desenvolvimento rural.
Dar conta deste novo cenário foi desafio da Uergs desde sua criação,
no entanto em 2004, como fruto de uma reestruturação política da Universi-
dade, o curso de Administração Rural e Agroindustrial não é mais ofertado.
Passam a ocupar o seu “nicho”, os Cursos Superiores Tecnológicos – CSTs
–, em subáreas das Ciências Agrárias, dentro de uma proposta de formação
tecnológica, como resposta às então demandas do mercado gaúcho por pro-
fissionais capazes de garantir, com rapidez, a modernização da base produti-
va agropecuária do Estado. Passa-se então a investir na especificidade (e não
mais complexidade) como caminho para o desenvolvimento e consequente
investimento profissional acadêmico.

OS CURSOS SUPERIORES TECNOLÓGICOS DA UERGS:


Propósitos e Desafios de sua Aceitação no RS
Em 2004 foram criados os cursos Superiores de Tecnologia em Agro-
pecuária, que se subdividiam em: Sistemas de Produção, Horticultura, Fru-
ticultura, Silvicultura e Agroindústria. Este último com quatro ênfases: em
Frutas, Hortaliças e Fermentados, em Produtos Cárneos e Fermentados, em
Cereais e Produtos Cárneos e em Produtos de Origem Animal.
A proposta de criação destes cursos de Tecnologia em Agropecu-
ária em diferentes áreas e ênfases buscava atender a uma demanda local
por profissionais diferenciados, em cursos com menor número de semes-
tres e focados na especificidade, como sugere a atual LDB/96 nos artigos
39 e 42 quando regulamenta a Educação Profissional Tecnológica como
aquela voltada para a qualificação de profissionais para as novas exigências
do mercado, marcado pelas modernas tecnologias exigidas pela globaliza-
Formação Profissional Para o Rural Contemporâneo 329

ção. Ressalta ainda que estas constituem demandas dinâmicas, ou seja, não
estanques no tempo e por essa razão os cursos tecnológicos precisam ser
constantemente revistos, o que justificaria também sua curta duração.
Sob este prisma os CSTs em Ciências Agrárias da Uergs foram pen-
sados a partir da necessidade de profissionais específicos, o que fica com-
provado nos cursos idealizados com focos bem delimitados, com exceção
do CST em Sistemas de Produção, que mais tarde, foi reformulado e teve
o nome trocado para Agropecuária Integrada. Como os nomes sugerem,
fomentavam a integração campo e lavoura, tendo como pilar o agroecossis-
tema e não apenas a tecnologia.
Os cursos em sua conjuntura ideológica apresentavam conflito com
a política de desenvolvimento que deu origem à Universidade, voltada à
formação de profissionais multidisciplinares. Ao contrário desta perspectiva,
a educação profissional tecnológica investia na formação de profissionais
específicos, e isso em um cenário rural marcado cada vez mais pela multi-
funcionalidade.
Vale lembrar que nesta ocasião, a Uergs possuía uma Reitoria Pró-
-tempore, sem reitor eleito direta e democraticamente, mas sim com cargos
de confiança vinculados aos então governos de Estado. Esta situação tirava
a autonomia da Universidade de pensar e exercer sua própria política de
desenvolvimento regional, fazendo da instituição parte executora de polí-
ticas de governo.
Nesse período observa-se no Brasil uma expansão significativa na
oferta de cursos tecnológicos pelas Instituições de Ensino Superior, que pas-
saram a criar cursos com nomes, grades e cargas horárias bastante diversas.
Isso levou o Ministério da Educação (MEC) a elaborar em 2006 a primeira
versão do Catálogo Nacional de Cursos Superiores de Tecnologia, delimitando
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível
Tecnológico. Dentre uma série de delimitações, está a diretriz de utilização
das denominações, das cargas horárias e da infraestrutura preestabelecidas
pelo catálogo nos cursos superiores de Tecnologia oferecidos pelas Institui-
ções de Ensino Superior.
330 G i s e l e M a r t i n s G u i m a r ã e s – B e n j a m i n D i a s O s o r i o F i l h o – A n d r é a M i r a n d a Te i x e i r a

Desta forma, em 2007, tendo de se adequar ao catálogo nacional dos


cursos superiores de Tecnologia do Ministério da Educação, a Uergs inicia
um processo de reformulação de seus cursos quanto as suas denominações,
grades curriculares e tempo de duração dos cursos.5
Estas mudanças, muito além de trocas de denominações, impuseram
aos cursos um perfil de maior especificidade. O que anteriormente era Agro-
pecuária com ênfases em fruticultura, horticultura, etc., passa a ser delimita-
do com mais rigor e foco, perdendo o caráter de formação em Agropecuária
(com exceção do CST em Agropecuária Integrada), transformando-se em
cursos pontuais de Tecnologia, afastando cada vez mais a Instituição de
seus propósitos de desenvolvimento a partir da formação de profissionais
complexos e multidisciplinares.
No momento que ingressavam turmas nos cursos reformulados, os
alunos das versões antigas dos respectivos cursos começavam a colar grau
e a tentar oportunidades no mercado de trabalho. As dificuldades relatadas
pelos egressos são muitas, indo da ausência de vagas em concursos públi-
cos às dificuldades em ingressar em programas de Pós-Graduação que não
permitiam os tecnólogos. Além disso, a ausência de um conselho de classe
específico impedia a mobilização dos profissionais para a reversão desse
quadro.
Nesta mesma época, a Uergs iniciava uma difícil crise institucional
que duraria por mais de quatro anos, quando deixaria de ser uma Universi-
dade de Reitorias Pró-tempore, para ser uma Universidade gerida por uma
Reitoria eleita direta e democraticamente. Nos anos de crise, a Universidade
teve seu quadro docente enfraquecido drasticamente, ao mesmo tempo em
que as universidades federais abriam concursos, absorvendo grande parte
dos professores da Uergs. Somado a tudo isso, as dificuldades enfrentadas

5
O curso de Agropecuária: Sistemas de Produção passou a ser denominado Agropecuária
Integrada, o curso de Agropecuária: Fruticultura, passou a ser Fruticultura; o curso
de Agropecuária: Horticultura passou a Horticultura e o curso de Agropecuária:
Agroindústria com todas as suas ênfases foi transformado em Agroindústria. Apenas o
curso de Agropecuária: Silvicultura não foi reformulado, sendo extinto na Universidade.
Formação Profissional Para o Rural Contemporâneo 331

pelos egressos para sua colocação no mercado de trabalho com suas profis-
sões não tradicionais maculavam a imagem da instituição, contribuindo para
a diminuição pela procura por vagas.
Diante de um quadro de crise institucional (poucos alunos e lacunas
no quadro docente), a Universidade sentiu a necessidade de repensar o
perfil de seus cursos nas diferentes regiões. Os professores da Uergs, na
maioria doutores, por terem na sua base profissional formação em Bacha-
relado ou Licenciatura, relatavam dificuldades em atuar na docência em
cursos de tempo reduzido.
Após as reformulações, ainda estavam presentes nos cursos supe-
riores de Tecnologia algumas características diferenciais, pois alguns dos
professores da Uergs que participaram da construção destas novas propostas
insistiam no papel inovador desta Universidade, bem como sua importância
no desenvolvimento regional. As grades curriculares avançavam em direção
às necessidades de um rural contemporâneo, quando comparadas às grades
de cursos tradicionais (incluindo componentes como Gestão das Relações
Humanas, Desenvolvimento Sustentável, Uso e Conservação dos Recursos
Naturais, Ética e Cidadania, etc.), no entanto, a curta duração dos cursos
mostrava-se insuficiente para uma formação mais ampla, rebaixando muitas
vezes a qualidade da formação profissional.
Somada a estas questões, a necessidade de desenvolver pesquisa
e extensão criava uma dinâmica acadêmica distinta dos pressupostos dos
projetos político-pedagógicos dos cursos tecnológicos, que preconizavam
formação rápida, envolvendo os alunos em atividades de pesquisa, e assim,
aumentando o tempo necessário para a formação profissional. O interes-
se dos discentes pela pesquisa científica fez com que muitos tecnólogos
egressos, mesmo diante de algumas dificuldades, como o preconceito com a
profissão, ingressassem em programas de Pós-Graduação. Tanto que atual-
mente há dezenas de tecnólogos egressos da Uergs com títulos de mestres
e doutores.
Vale ressaltar que os cursos de Tecnologia da Uergs diferenciavam-se
dos cursos de Tecnologia da maioria das Instituições de Ensino Superior,
que consistem em Graduações realmente curtas, podendo chegar à reduzida
integralização em quatro semestres. Ao contrário, o aluno que ingressava na
332 G i s e l e M a r t i n s G u i m a r ã e s – B e n j a m i n D i a s O s o r i o F i l h o – A n d r é a M i r a n d a Te i x e i r a

Uergs, para receber um diploma de tecnólogo precisava cursar no mínimo


sete semestres, aproximando-se de um curso de Bacharelado, tanto em
duração quanto em semelhança de perfil profissiográfico. Com um diploma
de pouco reconhecimento no mercado de trabalho, porém, os egressos não
eram absorvidos pela maioria dos concursos públicos, nem mesmo os das
instituições estaduais, como Emater/RS,6 Irga7 e Secretaria de Agricultura do
Estado. Uma nova crise se instaurava, tendo os alunos egressos como atores
principais, reivindicando uma posição da Instituição de Ensino Superior que
garantisse vagas aos tecnólogos em concursos públicos estaduais.
Este desafio, de atender á demanda discente e pensar no futuro do
ensino na Uergs teve de ser encarado pela primeira Reitoria eleita. A gestão
da Universidade buscou diálogos com os órgãos públicos estatais para incluir
em seus quadros de recursos humanos essas categorias profissionais. Houve
tratativas com a Secretaria Estadual de Agricultura, Pecuária e Abasteci-
mento, com a Emater/RS e com o Irga, além de alguns municípios. Entre
os órgãos estaduais, apenas a Emater abriu vagas para profissionais tecnoló-
gicos, após alterações no Edital solicitadas pela Uergs. A justificativa dada
pelas instituições era de que estas profissões não estavam contempladas em
seus planos de carreira.
As dificuldades enfrentadas pelos alunos egressos ao se formarem
estimularam a criação da Associação Riograndense dos Tecnólogos, Artec-
nol, fundada em 2012, que está se empenhando na consolidação da profissão
de tecnólogo das Ciências Agrárias no Estado do RS. Entre as pautas da
Associação está, inclusive, a reivindicação da inclusão dos tecnólogos em
concursos para docentes nas Instituições de Ensino Superior do Estado,8
demonstrando que a formação recebida foi além da capacitação de mão
de obra para o mercado de trabalho, preparando inclusive professores e
pesquisadores.

6
Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Sul.
7
Instituto Rio Grandense do Arroz.
8
Algumas Universidades, como Universidade Federal de Pelotas (UFPel),
Universidade do Pampa (Unipampa), e a própria Uergs, vêm incluindo os tecnólogos
em seus editais de seleção docente.
Formação Profissional Para o Rural Contemporâneo 333

Analisando-se a criação da Uergs, seus propósitos de desenvolvi-


mento regional, a idealização de seus cursos voltados para uma formação
profissional diferenciada e em conexão com um novo rural, evidencia-se, na
esfera estadual, um descompasso entre a política de formação profissional e
mercado de trabalho, em que a educação profissional em Ciências Agrárias,
se por um lado foi pensada a partir de demandas contemporâneas da socie-
dade, de outro pouco dialogou com as demais instâncias estatais de atuação
no segmento produtivo rural.
A ausência de uma política de reestruturação das instâncias estatais
de atuação no desenvolvimento rural, como a atualização dos planos de
carreira, levou a categoria dos tecnólogos a uma condição de “subalternos”
dos bacharéis, o que pode ser evidenciado pelo teto salarial das profissões.
Segundo normativas do Sindicato dos Engenheiros (Singe/RS) o piso sala-
rial de um agrônomo para jornada de trabalho de até seis horas diárias é
de 6 salários mínimos. O de um tecnólogo em agropecuária ainda não está
bem definido, uma vez que ainda não há sindicatos para essa categoria. Na
prática, um tecnólogo recebe em torno de 2,6 salários mínimos, ao mesmo
tempo em que um técnico agrícola recebe 2,2 salários mínimos pela mesma
jornada de trabalho, tendo este último formação de nível médio e não supe-
rior.
Levando em consideração atuação e formação semelhantes entre um
agrônomo e um tecnólogo em agropecuária, evidenciam-se sinais de precon-
ceito com a formação profissional. Esta profissão ainda não é conhecida pela
sociedade que de maneira geral ignora sua funcionalidade e mesmo exis-
tência, confundindo-a em muitas situações com formações de nível médio
que dão origem aos técnicos em agropecuária.
Esta situação culmina com baixas procuras pelos cursos tecnológicos
de Ciências Agrárias da Uergs, com poucas inscrições de alunos nos proces-
sos seletivos. Diante deste quadro a Universidade mais uma vez reformula
seus cursos tendo, de um lado, a necessidade de superar a baixa procura
pelos alunos e de outro a de permanecer comprometida com a formação de
profissionais diferenciados e engajados com o desenvolvimento sustentável,
dentro dos propósitos de um rural contemporâneo.
334 G i s e l e M a r t i n s G u i m a r ã e s – B e n j a m i n D i a s O s o r i o F i l h o – A n d r é a M i r a n d a Te i x e i r a

FIM DA LINHA DOS CSTS? Do Retorno aos Cursos de Bacharelado


Em 2011, a Universidade inicia um amplo debate no sentido de
reformular os seus cursos de Graduação na área das ciências da vida e do
meio ambiente. Nessas discussões levou-se em consideração os objetivos da
Universidade na promoção do desenvolvimento regional, sua relação com o
mercado de trabalho e, consequentemente, a necessidade de oferecer cursos
de maior procura pelos estudantes.
Depois de intensos debates envolvendo professores, representações
de alunos e funcionários da Universidade, bem como representantes da
sociedade civil, surge a iniciativa de se voltar a oferecer cursos de Bacha-
relado. Estes remodelados a partir da necessidade de formar profissionais
mais modernos, comprometidos com as questões ambientais, engajados em
um modelo de desenvolvimento pautado pela sustentabilidade, com viés
na agroecologia e agricultura familiar.
Surge então o curso de Bacharelado em Agronomia, com ênfase em
Agricultura Familiar e Agroecologia, apostando em ingressos mais exitosos
e facilitação de colocação dos profissionais no mercado de trabalho. Em
2013 o curso teve início na Unidade em Santana do Livramento, em 2014
em Cachoeira do Sul e em 2015 em Três Passos, substituindo basicamente
os CSTs em Agropecuária Integrada e o CST em Fruticultura.
Juntamente com o projeto da Agronomia, surgem o Bacharelado em
Ciência e Tecnologia de Alimentos, que atualmente é oferecido nas Uni-
dades de Encantado, Cruz Alta e Caxias do Sul, e o bacharelado em Gestão
Ambiental, que é oferecido em Erechim, Sananduva, São Borja, São Fran-
cisco de Paula, Soledade, Tapes e Três Passos.9
Cabe ressaltar que de todos os CSTs de formação para as Ciências
Agrárias, o CST em Horticultura oferecido no município de Santa Cruz do
Sul é o único que não foi substituído. Isso porque o curso dialoga com as
demandas regionais, encontrando na Horticultura uma alternativa ao fumo,

9
O Bacharelado em Ciência e Tecnologia de Alimentos veio para substituir o
CST em Agroindústria e o Bacharelado em Gestão Ambiental para substituir o CST
homônimo.
Formação Profissional Para o Rural Contemporâneo 335

cultura de grande expressão no município. Além disso, os demais cursos


não apresentavam especificidade, caso do CST em Agropecuária Integrada,
que possuía perfil sistêmico, levando os egressos a saírem com formação
ampla semelhante à Agronomia, mas sem terem suas profissões incluídas
nas agendas de concursos nem com salários compatíveis com elas.
Mais tarde, em 2014, a Uergs cria mais um curso apostando na
procura e oportunidades no mercado de trabalho, o de Licenciatura em
Ciências Agrárias. Este consiste numa Graduação de quatro anos, formando
professores para atuar principalmente na Educação Básica e Profissionali-
zante, indo ao encontro do perfil da Universidade de estar em consonância
com as demandas regionais, que passam a evidenciar lacunas de profissio-
nais aptos para lecionar nas escolas profissionalizantes. Esta lacuna havia
sido sentida pela própria Uergs quando passou a oferecer a educação pro-
fissional por meio dos CSTs, nos quais o quadro docente, em sua maioria
formado por bacharéis, relatava dificuldades pedagógicas para exercer o
ensino profissionalizante, principalmente no que se refere ao curto tempo
de duração dos cursos.
Nestes primeiros anos de oferta dos novos cursos, a instituição vem
observando uma grande procura, com ingressos concorridos, redução da
evasão e mais otimismo por parte dos estudantes em relação a sua formação.
No caso da Agronomia, imagina-se que os profissionais serão mais absorvi-
dos pelo mercado de trabalho (quando comparados aos tecnólogos), por ser
uma profissão já consolidada, ao mesmo tempo em que estes profissionais
terão o potencial, graças a sua formação em agricultura familiar e em agroe-
cologia e ainda com oportunidades de estágios de vivências em propriedades
e organizações sociais locais (obrigatórios no curso), de contribuírem com o
desenvolvimento rural a partir de suas novas demandas que vão ao encontro
das múltiplas funções do rural, a protagonização do agricultor familiar neste
contexto e os propósitos da sustentabilidade.
Vale destacar ainda nesse período de reformulação de cursos de Gra-
duação, o retorno dos cursos de Bacharelado em Desenvolvimento Rural e
Gestão Agroindustrial (DRGA), ofertado na unidade da Uergs de Santana
do Livramento, e o Bacharelado em Administração Rural e Agroindustrial
na unidade de Cachoeira do Sul, ambos sem oferta de vagas desde 2004 por
ocasião dos CSTs. Optou-se pela oferta dos dois cursos buscando respeitar
336 G i s e l e M a r t i n s G u i m a r ã e s – B e n j a m i n D i a s O s o r i o F i l h o – A n d r é a M i r a n d a Te i x e i r a

as demandas regionais nas quais as respectivas unidades estão inseridas.


Os cursos oferecem formação semelhante na área das Ciências Humanas,
mas dialogam diretamente com as Ciências Agrárias, sendo considerados
de caráter multidisciplinar.

FORMAÇÃO PROFISSIONAL E OPORTUNIDADE DE TRABALHO:


Amarrando Arestas
Analisando-se a história da Uergs e sua relação com a formação pro-
fissional em Ciências Agrárias, duas questões emergem como norteadoras
para reflexões acerca dos processos estabelecidos, bem como dos resultados
colhidos nos propósitos do desenvolvimento regional sustentável.
A primeira questão refere-se à política de desenvolvimento regional
da Uergs balizada pela formação humanística e a inovação como caminho
para a promoção da sustentabilidade. Seria ela compatível com os cursos
superiores de Tecnologia idealizados pela instituição? Levando-se em consi-
deração a especificidade dos cursos, característica dos tecnólogos idealizados
pela política do MEC e suas grades curriculares, evidenciam-se conflitos
entre a necessidade de uma formação profissional tecnológica pontual, polí-
tica dos CSTs e os anseios da instituição pela educação de um profissional
para além das questões da tecnologia.
As disciplinas ofertadas, bem como o tempo de duração dos cursos
revelam uma não especificidade na formação dos profissionais, principal-
mente o CST em Agropecuária Integrada e o CST em Agropecuária: Sis-
temas de Produção, que propunham a formação de profissionais capazes
de trabalhar com a complexidade. Além disso, o tempo de duração dos
cursos era de no mínimo sete semestres, ao passo que nos CSTs similares
oferecidos por outras instituições, os cursos totalizam seis semestres, ou
seja, a necessidade de dar conta da formação de profissionais mais amplos e
humanísticos (objetivo da política de desenvolvimento regional da Uergs)
comprometia a formação específica tecnológica objetivada pela política do
MEC, fazendo com que os alunos permanecessem na Universidade por um
tempo similar aos cursos de Bacharelado, cerca de oito semestres. Agrava-
-se ainda mais este quadro quando os então formados não são reconhecidos
Formação Profissional Para o Rural Contemporâneo 337

pelo mercado de trabalho, colocando em questão a seguinte pergunta: Qual


o compromisso do Estado com o desenvolvimento e modernização institu-
cional a partir destas novas profissões?
A busca por esta resposta nos remete à segunda questão a ser pontua-
da neste texto: a necessidade de as políticas de educação serem pensadas
conjuntamente com os segmentos institucionais de atuação profissional e
não descoladas destes segmentos. No que se refere à Graduação Tecnoló-
gica, fica evidente que a política de expansão do ensino tecnológico, muito
embora objetive a superação com o preconceito a esta formação profissional,
não contempla em seu planejamento diálogo com as instâncias geradoras
de postos de trabalho (setores públicos, empresas privadas, ONGs, etc.), o
que poderia garantir aos profissionais reconhecimento e atuação das novas
profissões, estas ainda representadas por tradicionais Conselhos de Classe
Profissional, no caso dos tecnólogos em Ciências Agrárias, o Crea, fazendo
com que as novas profissões ainda sejam secundarizadas quando comparadas
aos tradicionais cursos de Agronomia, por exemplo.
Os indicadores dessa realidade são representados pela ausência de
cargos para tecnólogos em Ciências Agrárias na maioria dos concursos públi-
cos das instâncias governamentais do Estado do RS e mesmo nos muni-
cípios. Tais instituições parecem permanecer presas a velhos conceitos e
atuações, não contemplando novas profissões em seus planos de carreira,
acrescentando-se que nenhum ou pouco movimento vem sendo feito no
Rio Grande do Sul no intuito de reverter este quadro, nem o Crea, organi-
zação de representação da classe, tem atuado neste sentido, daí a criação da
Associação dos Tecnólogos do RS, a Artecnol.
Contextualizando a política de desenvolvimento regional da Uergs
e a política de expansão dos cursos tecnológicos de nível superior do MEC,
verifica-se um hiato entre os propósitos da formação de um profissional
moderno voltado para as complexidades do rural contemporâneo (idealiza-
da pela Universidade em questão) com a capacitação específica e de curta
duração idealizada para os tecnólogos pelo Ministério da Educação.
Entendemos que a oferta dos CSTs pela Uergs não foi a melhor
estratégia institucional, principalmente em sua incipiente consolidação. Os
cursos, no entanto, formaram profissionais capazes de dar conta da realidade
338 G i s e l e M a r t i n s G u i m a r ã e s – B e n j a m i n D i a s O s o r i o F i l h o – A n d r é a M i r a n d a Te i x e i r a

difusa hoje apresentada pelo novo rural, isso graças a uma formação mais
sistêmica (e menos específica) proposta pela Universidade. Estes profissio-
nais, mesmo enfrentando dificuldades de reconhecimento no mercado de
trabalho, veem conseguindo colocação em espaços alternativos às instâncias
governamentais, como empresas privadas, cooperativas, sindicatos e movi-
mentos sociais, porém é urgente uma participação mais ativa do Estado nas
instâncias de decisão e ação (para além do neoliberalismo que preconiza
isenção do Estado nestas questões), o que não vem acontecendo no Rio
Grande do Sul.
A Universidade Estadual do Rio Grande do Sul encontra-se num
momento de reencontro com os propósitos idealizados em sua criação, pri-
mando pelo diálogo com a sociedade, o que faz com que a instituição possa
estar atenta às demandas regionais e a partir destas constituir-se como agente
de desenvolvimento sustentável. Muitos são os desafios a serem superados,
sobretudo no que se refere à formação em Ciências Agrárias, foco de análise
neste texto, no entanto o retorno aos cursos de Bacharelado a partir da moder-
nização de seus propósitos vem oferecendo mais otimismo e credibilidade à
instituição, com significativas procuras pelos cursos atualmente oferecidos,
o que leva a Uergs a estar mais próxima do compasso almejado desde sua
criação, entre o profissional formado e o mercado de trabalho
Ainda há muito caminho a ser trilhado, na busca por uma formação
profissional mais apropriada às novas ruralidades. Neste, os docentes preci-
sarão de formação continuada, no sentindo de dominar o entendimento da
visão sistêmica, deixando de lado a simplificação da agricultura que o forte
apelo dos pacotes tecnológicos da revolução verde proporciona. Além disso,
o pensar da formação profissional contemporânea deve atravessar os muros da
Universidade e promover diálogos com a sociedade civil e instâncias governa-
mentais, para que os novos profissionais, em suas mais diferentes formações,
sejam absorvidos e valorizados no intuito da ação para o rural contemporâneo.

REFERÊNCIAS
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porâneo. Rio de Janeiro: Ipea, 2000. (Texto para Discussão nº 702).
Formação Profissional Para o Rural Contemporâneo 339

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340 G i s e l e M a r t i n s G u i m a r ã e s – B e n j a m i n D i a s O s o r i o F i l h o – A n d r é a M i r a n d a Te i x e i r a

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DA ESCOLA NO CAMPO À ESCOLA DO CAMPO
Superando as Velhas Institucionalidades

Ana Cecília Guedes


Paulo Roberto Cardoso da Silveira
Vilson Flores dos Santos

Vive-se um momento no país em que as políticas públicas tendem a


motivar as escolas rurais a adotarem o referencial da Educação do Campo.
Originada da reflexão sobre a necessidade da mudança profunda no tipo
de educação praticada no rural para os sujeitos do campo, a Educação do
Campo surge no seio dos movimentos sociais críticos ao modelo de moder-
nização agrícola instalado no país e imbuídos de reinventar a relação cidade-
-campo. Para estes movimentos sociais deve-se abandonar a perspectiva de
subordinação do campo diante da cidade, da agricultura diante da indústria,
deixando a população rural de ser objeto do projeto dos outros. Trata-se
de recriar o campo como espaço de produção de sentidos e de futuro, em
contraponto à ideia de rural como espaço a esvaziar-se junto com a expan-
são da agricultura capital-intensiva, a qual necessita cada vez menos força
de trabalho. Neste sentido, a reforma agrária e uma agricultura adaptada
às especificidades dos agroecossistemas locais, bem como o direito à terra
para indígenas e quilombolas, passam a ser lutas estratégicas e necessárias.
A educação no espaço rural tem sido marcada pela precariedade.
Perguntam-se os gestores públicos e os estudiosos do campo brasileiro:
Para que investir em escolas rurais de qualidade se diminui cada vez mais
a população no campo? Se o objetivo é preparar os jovens do campo para a
vida na cidade, então para que pensarmos uma educação de qualidade no
campo, atendendo às especificidades da vida rural? Em resposta a estas
342 A n a C e c í l i a G u e d e s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s

indagações, os poderes públicos sempre relegaram as escolas rurais a um


segundo plano, sendo em sua maioria fechadas e seus estudantes trans-
portados para as escolas urbanas ditas de melhor qualidade, com melhor
estrutura física e professores mais preparados1 (com maior nível de forma-
ção). Contra esta realidade levantam-se os movimentos sociais do campo,
reivindicando uma escola que dialogue com o projeto de transformação pelo
qual lutam, a emancipação dos trabalhadores do campo, a consolidação de
um outro projeto para o país construído com os historicamente marginaliza-
dos: os milhares de agricultores familiares com pouca ou nenhuma terra, os
assalariados rurais, os indígenas, quilombolas, ribeirinhos, povos da floresta
e os novos atores no cenário do campo brasileiro no final do século 20, os
trabalhadores sem-terra.
Para este movimento em defesa de uma Educação do Campo esta
nomenclatura exprime uma concepção de educação associada a educadores
comprometidos com as lutas pelos direitos dos educandos, capazes de se
sintonizarem com o contexto cultural e político-social de cada comunidade
escolar. Nesta perspectiva, a precariedade a enfrentar não está na estrutura
acanhada historicamente reservada à escola rural, mas o desafio está em
superar os preconceitos em relação aos “rurais” como sinônimo de res-
quício de um passado a ultrapassar e que precisam ser preparados para as
vicissitudes da vida urbana. Preconceitos que se manifestam na postura
dos educadores, normalmente urbanos e que creem serem os conteúdos
e metodologias a aplicar uma réplica do que ocorre nas escolas urbanas.
Ao dissimular as diferenças entre rurais e urbanos, relega-se os primeiros
a navegar no barco dos outros em direção ao projeto de outros. Ou seja,
uma educação que não produz sujeitos políticos, cidadãos ativos, mas mão
de obra para as necessidades do mercado de trabalho, seja agrícola ou para
outros segmentos da economia.

1
Na perspectiva dos gestores públicos a preparação está associada ao saber acadêmico e
não se considera a capacidade metodológica de relacionar as práticas pedagógicas com
a realidade vivida pelos educandos. As diferenças são subsumidas na escola tradicional,
sendo o tratamento igual aos desiguais a forma de preservar as desigualdades.
Da Escola no Campo à Escola do Campo 343

A Educação do Campo tem sido realidade no Brasil há muitos anos.


Na década de 80, as Casas Familiares Rurais estruturadas a partir da Pedago-
gia da Alternância2, iniciam sua caminhada no Estado do Paraná e espalham-
-se pelo país como uma nova forma de fazer educação para os jovens do
campo. Aproximar a escola da realidade da família e os conteúdos da vida
cotidiana possibilitam imprimir à educação um caráter de instrumentalizar
para a ação e mais, exige dos agricultores que assumam a gestão do proces-
so educacional, não mais deixando a escola na mão dos profissionais que
pensam saber o que se precisa ensinar e como ensinar. Esta experiência
faz da escola um espaço de promoção da autoestima das crianças rurais,
valorizando seu modo de vida e convidando-as a projetar seu futuro, seja
no campo ou na cidade, mas orientado pela critica de seu lugar no mundo.
Com a emergência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST), a escola nos assentamentos e acampamentos passa a ser deba-
tida em sua relação com a luta pela terra. Para que se quer a escola? As
escolas tradicionais passam a ser vistas como incapazes de dialogar com
a identidade dos sem-terra, considerando a dinamicidade do movimento
social que educa na ação e esta ação precisa ser objeto de reflexão no pro-
cesso pedagógico. Por isso, a necessidade de desenvolver novas matrizes
pedagógicas, preparar novos educadores. “É a escola que deve ajustar-se
em sua forma e conteúdo, aos sujeitos que dela necessitam; é a escola que
deve ir ao encontro dos educandos e não o contrário” (Caldart, 2011, p. 93).
Fomenta-se, assim, um movimento em direção a uma Educação do Campo,
a qual irá em sua caminhada acolher outras experiências gestadas por outros
grupos sociais marginalizados historicamente, os quais também reivindicam
o direito a uma educação de qualidade e que potencialize suas lutas pela
transformação social.

2
Originada na França, a Pedagogia da Alternância baseia-se no princípio de
que os educandos não devem se afastar do contexto de produção vivenciado por suas
famílias e que os conteúdos abordados na escola devem ser relacionados efetivamente
com as práticas dos agricultores; nesse sentido, a formação dos educandos deve alternar
o tempo escola (aulas com os professores formadores em espaço escolar) e o tempo
comunidade (o educando volta para sua família ou comunidade e busca aplicar os
conhecimentos adquiridos, bem como refletir sobre os problemas enfrentados no
cotidiano e que passam a ser objeto de abordagem no tempo escola).
344 A n a C e c í l i a G u e d e s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s

Ultimamente o governo federal vem atuando no sentido de concla-


mar os educadores e gestores das escolas rurais a adotarem a referência da
Educação do Campo como matriz pedagógica. No Rio Grande do Sul, o
governo passa a promover encontros regionais e a incentivar as escolas rurais
da rede pública estadual a adotar a Educação do Campo como referencial.
Todo este processo de institucionalização de uma concepção gestada fora
da esfera do Estado, não acontece sem sobressaltos. Com todos os limites
por que passa a escola pública, agravados no contexto das escolas rurais, o
processo assume imensos desafios.
A forma de gestão do sistema público de Educação Básica, marcado
pela burocracia e pela influência das disputas políticas locais e regionais,
mostra-se estranha aos princípios basilares da Educação do Campo: seu per-
manente processo de reconstrução relacionado com a dinâmica sociocultural
e de organização política de cada comunidade. Cabe também refletir sobre
a necessária apropriação por parte dos professores da rede pública estadual
do novo referencial a adotar e sua capacidade de redimensionar suas práticas
pedagógicas e de organização curricular.
Neste texto, ainda que de forma exploratória, dedicamo-nos a ana-
lisar as diferentes dimensões deste processo de institucionalização, a partir
dos documentos que orientam as escolas na adoção de uma Educação do
Campo e da referência empírica de duas escolas rurais da Região Noroes-
te do Rio Grande do Sul. Abordamos a institucionalização como processo
de incorporação no âmbito do Estado de uma concepção que se gera na
desinstitucionalização de uma representação de escola rural e de um sistema
educacional vertical urbanizante, sendo então os confrontos, resistências e
contradições, inevitáveis. Analisa-se como tem transcorrido esta institucio-
nalização e os problemas que vêm sendo evidenciados.
Buscando referenciar a análise que nos propomos aqui, abordaremos de
forma sucinta nas duas próximas sessões o histórico da educação rural no tocante
às legislações vigentes e os princípios orientadores da Educação do Campo.

ANOTAÇÕES SOBRE O PERCURSO DA EDUCAÇÃO RURAL NO BRASIL


Historicamente houve um descaso com a educação no meio rural
brasileiro, e até a Constituição de 1891 não havia menção a este respeito.
Diretrizes políticas e pedagógicas específicas que regulamentassem a Edu-
Da Escola no Campo à Escola do Campo 345

cação do Campo e que previssem recursos financeiros que possibilitassem


a institucionalização e manutenção da escola no meio rural sempre foram
escassas e relegadas a um segundo plano. Como afirma Leite (1999, p. 14):

A educação rural no Brasil, por motivos sócio-culturais, sempre


foi relegada a planos inferiores e teve por retaguarda ideológica o
elitismo acentuado do processo educacional aqui instalado pelos
jesuítas e a interpretação político-ideológica da oligarquia agrária,
conhecida popularmente na expressão: “gente da roça não carece
de estudos. Isso é coisa de gente da cidade”.

Ainda segundo este autor, deve-se considerar que o processo de cons-


tituição das escolas rurais tem início entre 1910 e 1920 com o objetivo de
manter os agricultores no meio rural, uma vez que se iniciava um processo
de industrialização no país e atraía mão de obra para o meio urbano. Para
amenizar esta situação, começa-se então a efetivação de um processo intitu-
lado “ruralismo pedagógico”, o qual previa ações que visavam a criar escolas
integradas às condições do meio rural, objetivando assim uma educação
voltada à vocação do país, entendida como agrária. A precariedade vivencia-
da nas escolas rurais e o baixo nível de formação dos docentes, porém, levou
a que esta proposta não conseguisse alcançar os seus objetivos, sendo extinta
oficialmente nos anos 30. Nesse mesmo período é que podemos detectar as
primeiras ações reais voltadas para escolarização do povo do campo com a
criação de duas frentes: uma que incentivava formação técnica-profissional
do homem do campo (que atuaria como mão de obra no meio urbano) e
outra que visava a continuar a conter a migração no campo.
No ano de 1931 foi realizada a 4ª Conferência Nacional de Educação,
que teve como tema “as grandes diretrizes da educação popular no Brasil,
onde a preocupação central era a intervenção federal na difusão do ensino
primário, técnico, normal e profissional” (Xavier, 2002, p. 17). Em 1937 é
criada a Sociedade Brasileira de Educação com o objetivo de

expansão do ensino e preservação da arte e folclore rurais. O


sentido de contenção que orienta as iniciativas no ensino rural se
mantém, mas, agora, coloca-se o papel da educação como canal
de difusão ideológica. Era preciso alfabetizar sem descuidar dos
princípios de disciplina e civismo (Leite, 2002, p. 31).
346 A n a C e c í l i a G u e d e s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s

Com o início do Estado Novo (1937 a 1945), a escolarização do


homem do campo começou a se fortalecer, surgindo os primeiros programas
que visavam a oferecer educação ao meio rural, no sentido de manuten-
ção produtiva e desenvolvimento da sociedade política e civil. De acordo
com Antonio e Lucini (2007), a partir dos anos de 1950-1960, começam a
se consolidar vários movimentos sociais, como o Movimento de Cultura
Popular (MCP), o Movimento de Educação de Base (MEB), criado pela
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e os Centros Popula-
res de Cultura (CPC), criados pela União Nacional dos Estudantes (UNE).
Conforme Saviani (2008, p. 317):

A mobilização que toma vulto na primeira metade dos anos de


1960 assume outra significação. Em seu centro emerge a preocu-
pação com a participação política das massas a partir da tomada de
consciência da realidade brasileira. E a educação passa a ser vista
como instrumento de conscientização. A expressão “educação
popular” assume, então, o sentido de uma educação do povo, pelo
povo e para o povo, pretendendo-se superar o sentido anterior,
criticado como sendo uma educação das elites, dos grupos diri-
gentes e dominantes, para o povo, visando controlá-lo, manipulá-
-lo, ajustá-lo à ordem existente.

Nas décadas de 60-70 a educação era vista como um fator de desen-


volvimento socioeconômico, não podendo-se evidenciar grandes avanços,
visto que havia uma supervalorização da educação urbana e também devido
à ausência de investimentos no setor rural.
Segundo Feng (2008), em meados da década de 70, em contraposi-
ção à ditadura militar, os movimentos sociais assumem como bandeira de
luta a democratização da sociedade, de conscientização popular e reivin-
dicação de direitos, fazendo com que as diferentes iniciativas situadas no
campo da educação popular começassem a ser pensadas dentro de uma
análise crítica de sua relação com a educação escolar e da formação para
o trabalho.
Da Escola no Campo à Escola do Campo 347

Com a intensificação das lutas pelos direitos sociais quando da aber-


tura política do final dos anos 70, os Movimentos Sociais retomam3 a crítica
da Educação Rural, como urbanizante e descontextualizada das questões
relativas ao campo e ao camponês. Com professores urbanos e livros didá-
ticos que falam do urbano e da urbanidade como positivos e o rural como
espaço do atraso, sem currículos específicos às escolas rurais, a Educação
Rural é vista como inadequada e descompromissada com a luta dos traba-
lhadores do campo por melhor condição de vida. Ganha força um outro olhar
para a relação campo e cidade, agora vista dentro do princípio de igualdade
social e diversidade cultural.
É neste contexto de mobilização social, que no ano de 1988 a Cons-
tituição Federal consolidou o compromisso do Estado e da sociedade brasi-
leira em promover a educação para todos, garantindo o direito ao respeito e à
adequação da educação às singularidades culturais e regionais. Neste cenário
que a partir da década de 90, com objetivos de pensar alternativas para suprir
as necessidades da educação no meio rural, os movimentos sociais começam
a se organizar e intensificar suas lutas em prol da elaboração e efetivação das
políticas educacionais voltadas para a realidade do rural brasileiro.
Com a promulgação da Lei Federal nº 9394/96, que estabelece as Dire-
trizes e Bases da Educação Nacional – LDB – pode-se afirmar que o contex-
to sociopolítico insere-se no arcabouço legal e passa a reivindicar políticas
públicas para a Educação do Campo. A LDB preconiza, segundo o Artigo 28:

Na oferta da educação básica para a população rural, os sistemas


de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação,
às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente:
I – conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais
necessidades e interesses dos alunos da zona rural;
II – organização escolar própria, incluindo a adequação do calen-
dário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas;
III – adequação à natureza do trabalho na zona rural.

3
Porque antes, nos anos 60, Paulo Freire ao inovar metodologicamente faz a crítica a esta
educação.
348 A n a C e c í l i a G u e d e s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s

É, contudo, no seio dos movimentos sociais rurais, tendo destaque o


Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST – que se constrói
uma proposta de Educação do Campo como um processo enraizado nas
condições histórico-sociais dos trabalhadores rurais e que torna a luta polí-
tica pela emancipação como princípio educativo. Deste modo, contrapõe-se
esta perspectiva educacional a uma Educação no Campo e para o campo
vinculada a projetos exógenos de dominação política e cultural, aliada aos
interesses de uma agricultura capitalista em expansão.
A perspectiva de uma Educação do Campo apresenta uma relação de
proximidade e compartilhamento na concepção do processo educativo com
os referenciais da Educação Popular, a qual se fortalece na América Latina a
partir da década de 60 do século 20 como base epistêmica dos movimentos
de libertação dos trabalhadores do campo e da cidade em luta contra os
regimes autoritários que se entronizam no continente nos anos 70.

DA EDUCAÇÃO POPULAR À EDUCAÇÃO DO CAMPO


Segundo Paludo (2001), é a partir da década de 60 com os escritos de
Paulo Freire que as classes populares no Brasil e na América Latina são con-
templadas com uma Pedagogia mais consistente e adequada a seu projeto
emancipatório. A Pedagogia de Freire voltada a uma Educação Popular
começa a ser incorporada pelos educadores compromissados com o resgate
da cidadania e a necessidade da superação da subalternidade,4 historicamen-
te imposta aos trabalhadores do campo e da cidade.
De acordo com Freire (1982), a educação pode se tornar uma dimen-
são importante nos processos de libertação do indivíduo e da sociedade. E
tornar popular a educação compreende sua universalização e democratização
em diferentes níveis, tornando-a de fato acessível às camadas populares
pela via do conhecimento e da cidadania, diante das condições necessárias

4
A subalternidade é definida por Martins (1989) como uma condição que
envolve a exploração econômica, a dominação política e a exclusão cultural.
Da Escola no Campo à Escola do Campo 349

à transformação social e à emancipação humana, finalidade da ação político-


-pedagógica. É uma estratégia de construção da participação popular para o
redirecionamento da vida social.

Um saber da comunidade torna-se o saber das frações (classes,


grupos, povos, tribos) subalternas da sociedade desigual. Em um
primeiro longínquo sentido, as formas – imersas ou não em outras
práticas sociais, através das quais o saber das classes populares
ou das comunidades sem classes é transferido entre grupos ou
pessoas, são a sua educação popular (Brandão, 1986, p. 26).

Para a proposta deste texto é de suma importância a reflexão que


faz Carlos Rodrigues Brandão sobre o conceito de Educação Popular e sua
possibilidade de ser assimilada pelo sistema educacional tradicional. Para o
autor, na retórica liberal a escola deve incluir a todos, a universalização da
educação deve ser o objetivo a ser perseguido. Esta retórica, porém, oculta
que a escola não acolhe a todos da mesma forma e condena ao denomina-
do “fracasso escolar” grandes contingentes de filhos das classes populares.
Nesta perspectiva, “o fracasso é o instrumento de recriação da desigualda-
de....” (Brandão, 1986, p. 51-52). A reprodução da desigualdade faz parte da
lógica do sistema educacional:

A deficiência aparentemente acidental sustenta a necessidade


de que a educação seja desigual. Afirmando possuir as condições
do jogo, onde todos de início são dados como iguais e partem das
mesmas condições, sobre as quais a diferença da qualidade indi-
vidual estabeleça a diversidade dos resultados, ela se realiza como
um rito, onde as posições estão demarcadas de modo antecedente
e desigual, e os resultados, portanto, são conhecidos antes de
serem cumpridos pelos atores da escola (1986, p. 50-51).

Se aliarmos à compreensão do sistema escolar como reprodutor das


desigualdades sociais ao fato de que incorporados precocemente ao mundo
do trabalho, crianças e adolescentes deixam a escola ainda nas primeiras
séries, temos um cenário em que a educação das classes populares não
ocorre no sistema formal de ensino. Neste sentido, pode-se perceber que o
ensino nas periferias urbanas e no espaço rural é condenado a uma precarie-
350 A n a C e c í l i a G u e d e s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s

dade, pois na concepção hegemônica das elites dirigentes os trabalhadores


braçais precisam de pouco estudo, basta aprender a ler e adquirir conheci-
mentos rudimentares de operações matemáticas, não cabendo a eles uma
formação de cidadãos plenos.
Segundo Brandão, sempre se atribui a uma “Educação de Adultos”,
esta fora da escola, resgatar aqueles que o sistema educacional não conse-
guiu educar: os que nunca estiveram na escola, os que a deixaram cedo (os
evadidos) e os que não conseguiram passar de ano (os repetentes ou retidos).
Ou seja, produz-se

fracassados escolares de um ensino que, de uma determinada


“faixa salarial familiar” para baixo, funciona justamente através
de fazer crianças e adolescentes trabalhadores passarem pela
escola sem nunca haverem passado pela educação escolar para
que o seu trabalho adulto, subalterno, seja o de quem aprendeu
sem tempo de tirar do estudo o proveito que torne dignos o tra-
balho e a vida (Brandão, 1986, p. 52).

Então a institucionalização de uma concepção de educação popular


como se propõe a ser a “Educação do Campo” não pode ser assimilada pelo
sistema escolar sem que este seja transformado em suas premissas. Talvez,
porém, a questão ainda mais importante é quando o mesmo autor aborda
a educação popular como uma forma de circular os saberes entre o povo e
deste passando para as próximas gerações o saber que se origina nas práti-
cas do próprio povo. Nesta perspectiva, valoriza-se o saber produzido pelo
povo e nega-se a superioridade do saber dito científico, o conhecimento
erudito transmitido pelo sistema escolar, o qual não atende às necessida-
des do cotidiano do trabalho. Por isto a Educação do Campo, como vimos
anteriormente, questiona os conteúdos trabalhados pela escola nos quais
os filhos dos agricultores não se reconhecem e veem como algo que os
afasta do seu modo de vida. A escola vista na perspectiva da Educação do
Campo deve ser um espaço de produção de conhecimento sobre a vida da
comunidade e da relação do conhecimento que a humanidade produziu até
o momento com a concretude dos sujeitos do campo. E assim, buscar-se a
emancipação de um sistema a serviço do capital que oprime, historicamente,
os trabalhadores do campo.
Da Escola no Campo à Escola do Campo 351

Ora, a institucionalização da perspectiva da Educação do Campo sig-


nifica que o Estado brasileiro estaria assumindo um projeto educativo que
busca a autonomia e não a subjugação aos ditames do capital. Estabelece-se
aqui um claro conflito entre a retórica dominante de colocar todos na escola
para terem acesso ao saber necessário para participarem em melhores con-
dições do sistema capitalista e uma escola comprometida com a Educação
Popular. Entendemos que o projeto emancipatório construído pelos oprimi-
dos do campo e que teve origem na proposição de uma “outra escola” para
permitir uma “outra educação” terá dificuldade em acomodar-se no sistema
educacional brasileiro. Voltaremos adiante a esta questão, mas antes preci-
samos olhar atentamente para a construção deste projeto emancipatório.
Segundo Arroyo (2000), a Educação Popular e o pensamento freiria-
no tiveram origem quando se percebeu que o camponês tem seu próprio
conhecimento, seus mestres e sua sabedoria e que esta tem um grande
valor. Quando na década de 80 o MST surge como um forte movimento
de luta dos trabalhadores do campo assume como uma das suas linhas de
luta a educação e uma das bases da Pedagogia do Movimento5 situa-se na
Pedagogia Libertadora proposta por Freire.
E nesse contexto a Educação Rural é renomeada para Educação do
Campo como afirmam Fernandes, Cerioli e Caldart (2004, p. 25):

Decidimos utilizar a expressão campo e não mais a usual meio


rural, com o objetivo de incluir no processo (...) uma reflexão
sobre o sentido atual do trabalho camponês e das lutas sociais e
culturais que hoje tentam garantir a sobrevivência deste trabalho.
Mas quando discutimos a educação do campo estamos tratando
da educação que se volta ao conjunto dos trabalhadores e tra-
balhadoras, incluindo quilombolas, sejam as nações indígenas,
sejam os diversos tipos de assalariados vinculados à vida e ao
trabalho no meio rural.

5
No processo de construção de uma educação do campo, os educadores do MST
tomam como princípio a Pedagogia do Movimento “por ter o sem-terra como sujeito
educativo e ter o MST como sujeito da intencionalidade pedagógica sobre esta tarefa de
fazer educação. E é também do movimento, porque se desafia a perceber o movimento
do Movimento, a transformar-se transformando” (Caldart, 2011, p. 98).
352 A n a C e c í l i a G u e d e s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s

Partindo dessa afirmação pode-se considerar que este é um reconhe-


cimento fundamental para os trabalhadores do campo e que, sobretudo,
evidencia que a concepção de educação discutida e reivindicada pelos movi-
mentos sociais do campo para as comunidades campesinas diferencia-se do
modelo proposto pela Educação Rural. Conforme Kolling et al. (1999, p. 18):

O propósito é conceber uma educação básica do campo voltada


ao interesse do campo, voltada ao interesse e ao desenvolvimento
sociocultural e econômico dos povos que habitam e trabalham no
campo, atendendo às suas diferenças históricas e culturais para que
vivam com dignidade e para que, organizados, resistam contra a
exploração e a expropriação, ou seja, este do campo tem o sentido
do pluralismo das idéias e das concepções pedagógicas: diz respeito
à identidade dos grupos formadores da sociedade brasileira (confor-
me os artigos 206 e 216 da nossa Constituição). Não basta ter escolas
no campo, queremos ajudar a construir escolas do campo (grifo nosso).

A Educação do Campo vai além da concepção do rural que era conside-


rado um lugar retrógado, visto agora como um lugar de produção diferenciado,
compreendendo os diferentes aspectos culturais, sociais, econômicos e políti-
cos, englobando também os diferentes povos do campo, como os indígenas e
quilombolas, historicamente marginalizados pelas políticas públicas.
Nas últimas duas décadas, o movimento de luta por uma Educação
do Campo tem se consolidado. Esta consolidação vem se dando a partir da
mobilização dos Movimentos Sociais Populares do Campo, os quais têm assu-
mido a responsabilidade de lutar pelo direito do povo do campo à educação.
Identifica-se então uma proposta que vem sendo materializada por meio da
luta coletiva na perspectiva da garantia dos direitos dos sujeitos do campo, a
qual tem relação direta com a proposição de uma Educação Popular.

O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO


DO CAMPO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS
Segundo Henriques et al. (2007), antes da Constituição Federal de
1988 a educação para populações agrícolas havia apenas sido mencionada
para propor uma educação instrumental, assistencialista ou de ordenamen-
Da Escola no Campo à Escola do Campo 353

to social. Em uma conjuntura de mobilização social advinda do processo


de redemocratização que vive o país, a Constituição de 1988 consolidou o
compromisso do Estado e da sociedade brasileira em promover a educação
para todos, garantindo o direito ao respeito e à adequação da educação às
singularidades culturais e regionais.
Após o debate que culmina na aprovação da LDB em 1996, ancorado
na construção de uma nova perspectiva para a Educação Rural ocorrida no
seio dos movimentos sociais do campo, surgem no âmbito do Estado inicia-
tivas de promover a mudança das escolas do campo.
Caldart (2008) ressalta a importância do processo de construção do
que veio a se designar por Educação do Campo:

A Educação do Campo nasceu como crítica à realidade educa-


cional da população que vive do trabalho do campo e tomando
posição no confronto de projetos de educação: contra uma visão
instrumentalizadora da educação, colocada a serviço das deman-
das de um determinado modelo de desenvolvimento do campo
(que sempre dominou a chamada “educação rural”), a afirmação
da educação como formação humana, unilateral e de perspectiva
emancipatória, vinculada a projetos históricos, de longo prazo.

Pode-se afirmar que a partir de 1987, quando é criado o setor de edu-


cação no MST, é que se amplia a luta por direitos que fossem além daqueles
conhecidos como a própria luta pela terra e reforma agrária. Além do MST
podemos vincular outras instituições – Comissão Pastoral da Terra (CPT),
da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e do
Movimento Eclesial de Base (MEB) – na constituição de experiências em
educação do campo.
O Rio Grande do Sul foi um dos pioneiros a se inserir neste con-
texto da educação do campo, pois no ano de 1996 são criadas as primeiras
Escolas Itinerantes de Acampamentos do MST, com estrutura mínima, as
quais possuíam uma proposta pedagógica diferenciada, voltada à realidade
vivenciada pelas famílias sem-terra. Esta proposta pedagógica começa a
ser defendida para as escolas dos assentamentos de reforma agrária, estas
gestadas pelo governo estadual. Trava-se a partir de então, uma luta pela
354 A n a C e c í l i a G u e d e s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s

adoção da Educação do Campo como orientação pedagógica nas escolas de


assentamento, o que enfrenta vários tipos de resistência, conjuntura que
somente se modifica recentemente.
Outro marco referencial nesta luta foi a realização do Encontro
Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária em 1997, sur-
gindo a partir desse encontro a 1ª Conferência para a Educação Básica do
Campo, que se realizou em 1998, seguida de outra em 2004. Merece desta-
que a criação, em 2004, no âmbito do Ministério da Educação, da Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, a qual significou a
inclusão em nível de estrutura estatal – federal de uma instância responsá-
vel, especificamente, pelo atendimento dessa demanda a partir do reconhe-
cimento de suas necessidades e singularidades.
Outro ponto que podemos citar como marco no que diz respeito ao
processo de institucionalização da Educação do Campo é a Portaria nº 10/98,
de 16 de abril de 1998, por meio da qual foi criado o Programa Nacional
de Educação na Reforma Agrária – Pronera – vinculado ao gabinete do
Ministério Extraordinário da Política Fundiária. Em 2001, o Programa passa
a ser gestado pelo INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária, no MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário. Segundo
Lacerda, 2010, p.23,

O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (...). Tem


como objetivo geral fortalecer a educação nas áreas de Reforma
Agrária estimulando, propondo, criando, desenvolvendo e coor-
denando projetos educacionais, utilizando metodologias voltadas
para a especificidade do campo, tendo em vista contribuir com
a promoção do desenvolvimento, resgatando e religando dois
mundos historicamente apartados, quais sejam, o mundo escolar/
acadêmico e o mundo rural. Atua na perspectiva da ampliação das
condições que fazem a consolidação da democracia.

No ano de 2002 foi aprovada a Resolução CNE/CEB nº 1 de 3 de


abril, que instituiu as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas
Escolas do Campo a serem observadas nas propostas das instituições que
Da Escola no Campo à Escola do Campo 355

integram os diversos sistemas de ensino. Tais diretrizes consolidaram-se


como um marco para a história da educação brasileira e, em especial, para
a educação do campo.
Podemos observar que partir de 2004, no governo Lula, o Ministério
da Educação –MEC – propôs a construção de uma política nacional de
Educação do Campo, a partir do diálogo com as demais esferas da gestão do
Estado e com os movimentos e organizações sociais do campo brasileiro. Os
eixos orientadores dessa política em construção seriam: a diversidade étnico-
-cultural como valor, o reconhecimento do direito à diferença e a promoção
da cidadania (Brasil, 2005).
As Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do
Campo são referências para as Políticas de Educação do Campo, estabele-
cendo um conjunto de princípios que visam a ajustar o projeto institucional
das escolas do campo às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Básica.
Ao longo dos últimos anos alguns decretos vêm ajudando a constituir
um cenário que permita aprimorar as ações para melhor desenvolvimento
da Educação do Campo. Em 29 de janeiro de 2009 foi instituído o Decreto
nº 6.755, o qual pode ser considerado de relevância histórica neste processo,
pois instituiu a Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério
da Educação Básica e disciplinou a atuação da Coordenação de Aperfeiçoa-
mento de Pessoal de Nível Superior – Capes – no fomento a programas de
formação inicial e continuada. Outro decreto importante para a consolidação
da Educação do Campo é o Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010,
que dispõe sobre a Política de Educação do Campo e o Programa Nacional
de Educação na Reforma Agrária – Pronera – o qual é voltado aos princípios
da Educação do Campo, visando assim ao desenvolvimento de políticas de
formação de profissionais da educação, apoiando também a participação da
comunidade e dos movimentos sociais.
Por fim cabe citar a Lei nº 12.695, de 25 de julho de 2012 (conver-
são da MP 562/2012), encaminhada a partir do lançamento do Programa
Nacional de Educação do Campo – Pronacampo –, que, entre outros, altera
o artigo 8º da Lei 11.494, de 20 de junho de 2007, admitindo para efeito
de distribuição dos recursos previstos no inciso II do caput do artigo 60
356 A n a C e c í l i a G u e d e s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s

do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em relação às insti-


tuições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e
conveniadas com o poder público, o cômputo das matrículas efetivadas na
Educação do Campo oferecida em instituições credenciadas que tenham
como proposta pedagógica a formação por alternância, observado o disposto
em regulamento.
O governo do Estado do Rio Grande do Sul no período 2011-2014,
por meio da Secretaria Estadual de Educação, procurou desenvolver ações
considerando a realidade das comunidades nas quais as escolas estão inse-
ridas, reconhecendo a importância de um trabalho coletivo, de reconheci-
mento das necessidades e dos direitos dos sujeitos do campo.
De acordo com o censo escolar de 2012, existiam no Estado 9.987
escolas. Destas 2.586 estão localizadas na área rural, 670 das quais perten-
cem à Rede Pública Estadual (26%), 7 pertencem à Rede Pública Federal
(0,3%), 1.893 pertencem à Rede Pública Municipal (73%) e 16 pertencem
à Rede Particular (0,6%) (MEC/INEP, 2012).
Dentro desta perspectiva, buscando a melhoria e consolidação destas
escolas rurais, a Secretaria Estadual de Educação em 2011 iniciou processo
de discussão sobre a realidade da Educação do/no Campo, constituindo-se
assim o Grupo de Trabalho (GT), composto por representantes de diversos
departamentos da Seduc. Os primeiros trabalhos do GT foram a consulta
de documentos, legislações, além de realizar pesquisas, visitas técnicas e
mapeamento das escolas do campo, em busca de conhecer suas estruturas
físicas, localização, distâncias, recursos humanos, níveis e modalidades de
ensino, população de estudantes, turmas e demandas da escola multisse-
riada/seriada, realidade indígena, quilombola, entre outras (Rio Grande do
Sul, 2013).
Em 2013 a Secretaria Estadual de Educação lança o “Documento
Orientador da Reestruturação Curricular das Escolas do Campo”, no qual
propõe as diretrizes para a organização das Escolas do Campo em Ciclos de
Formação. Assume-se a necessidade de uma proposta pedagógica diferen-
ciada para as Escolas do Campo a partir de alguns princípios elaborados em
diálogo com as comunidades escolares e os diversos movimentos sociais do
campo: “respeito à diversidade, respeito à biodiversidade, incentivo à for-
Da Escola no Campo à Escola do Campo 357

mulação de propostas político-pedagógicas específicas, desenvolvimento de


políticas de formação de profissionais da educação, valorização da identidade
da escola do campo e controle social da qualidade da educação escolar” (Rio
Grande do Sul, 2013, p. 7).
Neste documento propõe-se a adoção dos ciclos de formação,

uma das formas de organização escolar do ensino fundamental,


previstas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/
Lei n.º 9394/96, na qual a organização dos grupos de estudantes
ocorre com referência na idade, buscando o seu desenvolvimento
integral, com uma Proposta Político-Pedagógica que contemple a
especificidade e a heterogeneidade dos grupos como mobilizador
da aprendizagem escolar. Esta forma de organização considera
que o educando que ingressa no Ensino Fundamental passa,
quanto a seus aspectos biológico e emocional, por transformações
que dialogam com seu processo de aprendizagem, sendo conside-
rados seu ritmo e especificidades (Rio Grande do Sul, 2013, p. 8).

Nesta proposta, a organização curricular necessita partir da pesquisa


socioantropológica, a qual deve envolver a comunidade escolar no reconhe-
cimento da realidade local e no diálogo com as expectativas dos atores locais.
Percebe-se a intenção de que se construa um projeto político-pedagógico
comprometido com os anseios da comunidade local, deixando a escola de
ser um veículo de conhecimentos ditos universais que são “trazidos” para
o meio escolar prontos e acabados. A lógica do referencial da Educação do
Campo é percebido como base orientadora dessa proposta pedagógica.
Deve-se enfatizar, no entanto, que tal documento foi publicizado
em dezembro de 2013, mas como o então governo estadual não obteve a
reeleição em 2014, delineia-se uma grande incerteza para o futuro, posto
que os líderes do atual governo (2015-2018) não são adeptos desta concep-
ção de educação devido a seus vínculos com os setores mais conservadores
da sociedade. A continuidade de um processo ainda em estágio inicial é
evidentemente ameaçada, traduzindo-se em um revés desta tentativa de
institucionalizar o referencial da Educação do Campo na rede estadual de
ensino.
358 A n a C e c í l i a G u e d e s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s

O DIÁLOGO COM A REALIDADE EMPÍRICA


Guedes (2015)6 analisou duas experiências de escolas rurais da rede
estadual de ensino localizadas na Região Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul, as quais enfrentam o desafio de adotar a proposta pedagógica dos
ciclos de formação, orientadas pelo esforço de adoção do referencial da Edu-
cação do Campo. O foco da investigação foi o processo de institucionalização
deste referencial em suas adversidades conjunturais e estruturais.

A Escola Estadual de Ensino Fundamental Espírito Santo


Situada na zona rural do município de Alegria, no distrito de Espírito
Santo, trata-se de uma Escola do Campo na qual os educandos provêm de
famílias de agricultores familiares, pertencentes a etnias diversas, havendo
por isso diferentes matrizes culturais em confronto. O espaço escolar possui
uma área de quatro hectares e conta hoje com 51 educandos, 38 distribuídos
nos três ciclos e em turno integral, e 13 na Educação Infantil num convênio
com a rede municipal. Para atender esta demanda possui 12 profissionais:
uma diretora (40h), Coordenadora Pedagógica (20h), Coordenadora do Pro-
grama Mais Educação (20h), uma educadora da rede municipal e sete edu-
cadores, a grande maioria com 20h e alguns com apenas algumas horas na
escola, e uma funcionária (40h).
Com a promulgação da LDB de 1996 e com base no seu artigo
23, prevê-se que a Educação Básica pode se organizar em “séries anuais,
períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos,
grupos não seriados, com base na idade, na competência e em outros crité-
rios, ou por forma diversa de organização”. Fundamentada neste artigo da

6
Trata-se do trabalho elaborado por Ana Cecília Guedes, intitulado “A Educação do
Campo na Perspectiva do Desenvolvimento Rural: Um estudo de caso de duas escolas
rurais da Região Noroeste do estado do Rio Grande do Sul”, CPGER-UFSM, 2015.
Da Escola no Campo à Escola do Campo 359

LDB, a escola no ano de 2001 inseriu-se no regime de ciclos,7 pois encon-


trou nesta metodologia uma alternativa para inovar as ações pedagógicas,
bem como visou a uma maior participação da comunidade e dos educandos
nas ações da escola.
A partir da pesquisa socioantropológica, foi elaborado pela comuni-
dade escolar o projeto “Terra é Vida”, a fim de buscar novas alternativas
de produção ecológica com vistas ao incentivo de uma produção baseada
nos preceitos da produção orgânica e agroecológica. Pretendeu-se também
que os educandos pudessem adquirir uma formação mais humanizadora,
tornando-os mais críticos perante a realidade local, além de lhes proporcio-
nar uma oportunidade de interação com o meio ambiente.

A nova metodologia aplicada mudou a organização e rotina da


escola. O planejamento é coletivo, envolvendo todos os segmen-
tos da comunidade escolar. Realizamos quinzenalmente reuniões
pedagógicas para avaliar o que está sendo feito e planejar novas
práticas. Sempre que se considera necessário, fazem-se reuniões
com toda a comunidade escolar, a qual é muito participativa. Na
organização do currículo da escola, as horas-aula são distribuídas
em módulos e a carga horária é anual, o que favorece o planeja-
mento coletivo e o desenvolvimento das práticas. O conteúdo
desenvolvido nas aulas é baseado no Tema Gerador,8 voltado para
educação do meio rural com objetivo de manter os recursos natu-
rais, mantendo a produtividade, de forma que sejam diminuídos
os impactos ao meio com a redução do uso de produtos químicos
(Projeto Terra é Vida, 2005).

7
O regime de ciclos adotado pela escola organiza-se da seguinte maneira: 1° ciclo: 1° ano
(1° ano), 2° ano (2° ano), 3° ano (3° ano); 2° ciclo: 1° ano (4° ano), 2° ano (5° ano), 3 ano°
(6° ano); 3° ciclo: 1° ano (7° ano), 2° ano (8° ano), 3° ano (9° ano), utilizando do regime
de progressão quando necessário. Este ciclo de formação foi organizado baseado nos
estudos de fases de formação que são refenciados em estudos de Piaget, Vigotski e
Wallon.
8
Os temas geradores têm origem no pensamento freiriano da década de 50, o qual propõe
um estudo da realidade, o que se dá por meio da “fala” do educando e sua família e
a escola propõe-se a organizar os dados, surgindo assim os temas geradores, extraídos
então da prática de vida do educando e sua família.
360 A n a C e c í l i a G u e d e s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s

Na escola a avaliação é realizada mediante pareceres, não por meio


de notas, pois a aprendizagem é vista como um processo que se efetiva em
tempos diversos do individuo.
A Avaliação Formativa que consiste na avaliação destinada a informar
a situação que se encontra o educando (a) no que se refere ao desenvolvi-
mento da sua aprendizagem, acontecendo de forma contínua, sistemática e
o seu resultado vai sendo registrado em parecer descritivo. Assim a avaliação
formativa do(a) educando(a) é um processo permanente de reflexão e ação,
entendido como constante diagnóstico e concebendo o conhecimento como
uma construção histórica, singular e coletiva dos sujeitos. (...). A Avaliação
Sumativa consiste no quadro diagnóstico geral resultante no final de cada
ano letivo e de cada Ciclo de Formação, evidenciada pela avaliação forma-
tiva. Portanto, traz em si um juízo globalizado sobre o desenvolvimento
da aprendizagem do(a) educando(a). A Avaliação Especializada consiste na
avaliação requerida pelos(as) educadores(as) com o apoio do Laboratório de
Aprendizagem, destinada àqueles(as) educandos(as) que necessitam de um
apoio educativo especial e muitas vezes individualizado. Esta modalidade
de avaliação ocupa-se com os educandos que exigem uma atenção mais
demorada, ampla e profunda do que normalmente seria necessário, por esta
razão, torna-se fundamental, após sua realização o trabalho de outros pro-
fissionais. A avaliação especializada é realizada sempre que necessário ou
indicado, quando for o caso, na progressão de um ciclo para outro (Guedes,
2015).

Verifica-se que há uma mudança nas práticas pedagógicas, mas


como será examinado adiante, como os próprios educadores per-
cebem, esta transformação na relação professor-aluno-conteúdos
trouxe melhores resultados dentro do objetivo de fazer que os
conhecimentos das diferentes áreas sejam mais facilmente assi-
milados e que o ambiente de aprendizagem se torne mais inte-
ressante. O objetivo a ser perseguido, todavia, ainda é que os
alunos alcancem o saber científico e não que reelaborem o saber
da comunidade na perspectiva da educação popular. Esse tema
voltaremos a comentar adiante.
Da Escola no Campo à Escola do Campo 361

A ESCOLA ESTADUAL DE ENSINO FUNDAMENTAL DUQUE DE CAXIAS


Situada na zona rural do município de Independência, distrito de
São Miguel, foi fundada no ano de 1957 e atende alunos provenientes de
famílias de agricultores familiares locais e de localidades vizinhas. Conta
hoje com um total de 42 alunos,9 dos quais 8 são do primeiro ciclo,10 18 do
segundo ciclo e 16 do terceiro ciclo. Para atender a esta demanda a escola
conta com um total de 7 professores efetivos (entre estes o diretor) e mais
uma professora contratada. Em 2014 a escola inseriu-se nos ciclos de forma-
ção, pois de acordo com a determinação da Secretaria Estadual de Educação
em 2013, todas as Escolas do Campo deverão ser cicladas até 2015.
Em busca de resultados positivos, como melhoria e transformação da
sua comunidade, a escola buscou maneiras de trabalhar com uma educação
diferenciada, com a participação de toda a comunidade escolar, visando a
construir uma escola voltada à realidade do campo. Para isto há mais ou
menos 12 anos vem realizando a cada ano uma pesquisa socioantropológica
participativa,11 em que o fator prioritário é conhecer a realidade dos educan-
dos, articulando a partir disso o planejamento de todo o trabalho pedagógico.
Segundo Haguette (1987), o processo da Pesquisa Participante con-
tribui para a interação dos sujeitos sociais, numa perspectiva emancipatória
que respeite, sobretudo, os saberes dos educandos e da comunidade escolar
e contraponha-se à lógica de um currículo fragmentado e desnecessário para

9
A Educação Infantil teve suas atividades cessadas em 2009.
10
O 1º Ciclo de Formação – infância de 6 a 8 anos de idade com o primeiro contato
com a escola, o grupo de colegas, os educadores onde inicia-se o processo de ampliação
da socialização. Neste momento a alfabetização e o letramento exigem prática
pedagógica centrada no lúdico; o 2º Ciclo de Formação – segunda infância situada entre os
9 e 11 anos de idade, ocorre a consolidação das relações estabelecidas na primeira fase e
inicia-se a fase das operações concretas, da aquisição intelectual e da introspecção, das
dúvidas, das perguntas e de um certo grau de reflexão; 3º Ciclo de Formação – entre os
12 e 14 anos de idade. Esta fase conhecida como fase de transição entre adolescência e
jovem, em que seus processos de pensamento assemelham-se aos dos adultos, é a fase
da abstração e da construção de hipóteses (Rio Grande do Sul, 2013, p.15).
11
H aguete (1985, p. 142): “a idéia de participação envolve a presença ativa dos
pesquisadores e de certa população em um projeto comum de investigação que é ao
mesmo tempo um processo educativo, produzido dentro da ação”.
362 A n a C e c í l i a G u e d e s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s

a vida. Os professores, partindo dos resultados da pesquisa participativa na


comunidade, entenderam que era necessário inserir a escola na comunidade
do entorno, buscando conhecer e atender suas expectativas, com a escola
servindo como espaço de confronto entre as questões levantadas na comu-
nidade escolar e o conhecimento universal sistematizado, construindo suas
ações pedagógicas com base nos conceitos que direcionem e apontem uma
perspectiva de transformação social.
Dentro desta perspectiva a escola trabalha com a formação de temas
geradores,12 que possuem como objetivo central reflexões que ampliem
a compreensão que a comunidade possui de si mesma, e possibilitem ao
educando operar e interagir com o conhecimento, construindo-o ele próprio.

AMARRANDO AS PONTAS – a Educação do Campo pode ser


institucionalizada como parte do sistema educacional vigente?
Para encontrar a resposta a esta questão, primeiro buscamos a contri-
buição das comunidades escolares aqui abordadas. Neste pequeno espaço
não é possível detalhar como os educadores, alunos e pais estão perceben-
do a mudança pedagógica em curso, o que pode encontrar-se em Guedes
(2015). Apenas ressaltamos que existe uma satisfação dos professores e
estudantes ao verem que o processo educativo consegue relacionar-se com
a vida local, sendo objetos de reflexão os problemas da agricultura e o modo
de vida rural. Afirmam que percebem a valorização do rural e a preparação
para o trabalho agrícola. Fator de grande relevância, no entanto, aparece na
posição dos estudantes que não desejam permanecer no rural,13 afirmando
que pretendem seguir os estudos e arrumar um trabalho fora da agricultura.

“ O Tema Gerador não se encontra nos homens isolados da realidade, nem


12

tampouco na realidade separada dos homens. Só pode ser compreendido nas relações
homens-mundo. Investigar o tema gerador é investigar, repitamos, o pensar dos homens
referido à realidade, é investigar o seu atuar sobre a realidade que é sua práxis(...)”
(Freire, 1987, p. 98).
E ntre os educandos, na Escola Espírito Santo, 62,5% afirmaram que têm
13

interesse em permanecer e 37,5% responderam que desejam sair. Já na Escola Duque


de Caxias, 50% afirmaram que desejam permanecer e 50% afirmaram que desejam sair.
Da Escola no Campo à Escola do Campo 363

Deixam clara a percepção de que seguir os estudos vincula-se à preparação


para a vida urbana e que para ficar na agricultura não é necessário aprofundar
os estudos.
De outra parte, é possível constatar que os pais enfatizam positiva-
mente os conteúdos que ajudam a “trabalhar melhor” na agricultura e que
valorizam o rural. Tanto em um caso como no outro, porém, deve-se ter
claro que tais conteúdos advêm de um conhecimento científico instituído
e fiel a uma lógica de substituir um saber popular por um saber mais eficaz
e associado a tecnologias intensivas em capital. Aqui fica explícito que a
proposta pedagógica, mesmo sendo um revitalizador da escola rural, não
parte do pressuposto da reelaboração do saber popular, como argumenta o
referencial da Educação do Campo.
Então, verifica-se que os educadores nas duas escolas aprovam a
forma de trabalhar em ciclos, apesar de enfatizarem os limites na formação
dos professores e a conjuntura que cada vez mais impõe professores contra-
tados (os chamados horistas e que atuam em mais de uma escola), os quais
não se envolvem no planejamento das atividades e nem estão presentes no
cotidiano escolar para o desenvolvimento dos projetos e na relação íntima
com a comunidade. Os educadores sentem-se desafiados a mudar sua forma
de ensinar, mas quanto à compreensão real do objetivo da Educação do
Campo não têm clareza e alegam que falta para eles maior entendimento
do significado deste referencial. E na Escola Estadual Duque de Caxias, na
qual o processo está apenas no início, além da carência de uma base mais
sólida na Educação do Campo, os professores já percebem as contradições
que irão enfrentar em relação ao futuro da escola, o confronto com as expec-
tativas de estudantes e pais. Tornar a escola mais interessante e eficaz não
significa adotar a Educação do Campo como referencial.
Observa-se nos alunos uma boa receptividade em relação à nova
forma de se relacionar com os conteúdos, pois sentem-se mais animados em
desenvolver atividades práticas do que ficar horas sentados em sala de aula,
mas certamente que aqueles que valorizam a escola como espaço de acesso
ao conhecimento universal manterão a expectativa de se prepararem para
disputar vagas em universidades ou institutos federais, pois a escolaridade
364 A n a C e c í l i a G u e d e s – Pa u l o R o b e r t o C a r d o s o d a S i l v e i r a – V i l s o n F l o r e s d o s S a n t o s

ainda é uma forma de ascensão social e no caso dos rurais, possibilidade de


aspirar ir para outros lugares, experimentar a vida urbana e suas promessas
de melhores condições.
Aqui deve-se ressaltar que no caso dos movimentos sociais ao cons-
truírem o referencial da Educação do Campo, definiram como objetivo da
escola dar suporte ao processo de transformação social, em que os sujeitos
do campo buscam preparar-se para subverter a dominação diante do capital,
buscando dar um novo sentido à agricultura e ao desenvolvimento rural. Já
no caso do sistema estadual de ensino a escola continua sendo um espaço
retoricamente comprometido com o conhecimento produzido pela huma-
nidade, este tido como universal e capaz de formar cidadãos, independen-
temente de sua origem social. Assim, sob o guarda-chuva do Estado e con-
dicionada pelas concepções de cada governo, a escola como espaço institu-
cional tem claro limite para assumir um referencial da Educação do Campo,
este vinculado a um projeto de Educação Popular no sentido explicitado
anteriormente com base no trabalho de Carlos Rodrigues Brandão (1986).

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LOS SERVICIOS DE ASISTENCIA TECNICA
Y EXTENSION RURAL (SATER) EN URUGUAY:
Antecedentes y Desafios

Pedro de Hegedus
Félix Antonio Fúster Rebellato
Pablo Areosa

Durante la década de los 90 Uruguay introdujo reformas de diverso


tipo a los Sater, que debilitaron o suprimieron su accionar. Las reformas rea-
lizadas en Uruguay se efectuaron sobre la base de que los Sater no cumplían
adecuadamente su papel de articulación con la Investigación. A partir del
2005 se generaron cambios que alentaron nuevas posibilidades debido a:
i)Nuevos lineamientos a partir de cambios políticos ocurridos en el país
desde el 2005, en concordancia con la región, y que se continúan hasta
hoy. Los mismos en esencia priorizan el desarrollo rural inclusivo como
un eje central de las políticas vigentes, conjuntamente con el fortaleci-
miento de la vocación agroexportadora del país.
ii) Nuevos conceptos que desde la academia han jugado a favor de estos
cambios, en particular capital social, acuñado en la década del 90, que
en esencia significa la promoción de las organizaciones y los procesos
asociativos.
iii) Los avances de las TICs (tecnologías de información y comunicación)
que abren posibilidades para los Sater, hasta el punto de que el e-learning
es entendido como un nuevo enfoque de Extensión.
368 Pe d r o d e H e g e d u s – F é l i x A n t o n i o F ú s t e r R e b e l l a t o – Pa b l o A r e o s a

Se destacan en este periodo tres cambios significativos: i) creación


de la Dirección General de Desarrollo Rural (DGDR) en el MGAP, ii) crea-
ción de la ley de descentralización y coordinación de políticas agropecuarias
departamentales, y iii) reforma del Instituto Plan Agropecuario (IPA).
El primer cambio relevante ocurre en el 2005 cuando se crea por
ley la DGDR con la misión de “…diseñar políticas diferenciadas para la
actividad agropecuaria, con el objetivo de alcanzar el desarrollo rural con
una nueva concepción de modelo de producción, basado en la sustentabi-
lidad económica, social y ambiental, con la participación de los actores en
el territorio. Y diseñar políticas sectoriales, complementadas con políticas
macro, a los efectos de levantar las causas estructurales con el objetivo de
lograr una justa participación de los productores, asalariados y sociedad en
el reparto de la riqueza generada.”
En el nuevo período se define como población priorizada a los pro-
ductores familiares, estableciendo políticas diferenciales hacia esta pobla-
ción de interés. A tales efectos, la creación de un registro de productores
familiares (actualmente hay 23.431 productores registrados) fue clave para
su instrumentación. La DGDR comenzó a funcionar en el MGAP recién
en el 2008.
Un segundo cambio relevante es la aprobación en 2007 de la ley de
descentralización y coordinación de políticas agropecuarias con base depar-
tamental, creando el Consejo Agropecuario Nacional, los Consejos Agrope-
cuarios Departamentales y las Mesas de Desarrollo Rural Departamental.
En la actualidad en el país funcionan 19 Consejos Agropecuarios Departa-
mentales, 40 Mesas de Desarrollo Rural (MDR) y el Consejo Agropecuario
Nacional se reúne una vez al año.
Según su ley de creación, los Consejos Agropecuarios Departamenta-
les (CAD) tienen por finalidad vincular y coordinar las políticas agropecua-
rias nacionales con los gobiernos departamentales. Las Mesas de Desarrollo
Rural (MDR), con una base más local (departamental), tienen por objetivo
promover un mayor involucramiento y participación de la sociedad agrope-
cuaria en la instrumentación de las políticas del sector. El MGAP definió,
para coordinar las acciones en el territorio, la formación de “Equipos Territo-
riales de Desarrollo Rural” (ETDR). Estos equipos son los responsables del
Los Servicios de Asistencia Tecnica y Extension Rural (Sater) en Uruguay 369

funcionamiento de los CAD y las MDR. En este contexto las organizaciones


de productores recibieron un fuerte apoyo (por ejemplo, las Sociedades de
Fomento Rural).
Finalmente, otro cambio relevante ocurrido es la reforma del Insti-
tuto Plan Agropecuario (IPA). El Plan Agropecuario es históricamente una
institución asociada a la Extensión en ganadería. El instituto funcionaba,
desde su creación como persona publica no estatal en 1996 hasta el 2013,
bajo control privado (mayoría de los integrantes del directorio designados
por las gremiales), aunque financiado con fondos públicos. Estaba sin polí-
ticas y sin recursos (el presupuesto permanecía congelado desde 1996), lo
cual limitaba el accionar. Tras un cambio en la legislación se modificó actual-
mente la constitución del directorio donde el Poder ejecutivo se reserva el
nombramiento de 2 representantes (Presidente y Vice) y las gremiales de
productores los otros 2 integrantes. También se le incrementó el presu-
puesto al Instituto.

METODOLOGIA
El trabajo que se presenta se realizó en el marco de un estudio regio-
nal del BID, efectuado en el segundo semestre del 2013, comparando la
situación de los SATER en un conjunto de países especialmente seleccio-
nados. La primera parte de este estudio regional refiere a la situación de los
países (constituye este trabajo).
El objetivo general del trabajo es analizar los Sater de Uruguay, con
énfasis en las dimensiones de pertinencia, efectividad y sostenibilidad. El
abordaje tiene una base metodológica relacionada al paradigma cualitativo
(en función del tiempo y los recursos disponibles). Se efectuó un análisis
descriptivo y exploratorio, con generalizaciones de tipo analítico, recono-
ciendo que el carácter de los datos, y las limitaciones existentes, hacen
que el tratamiento de la información muchas veces sea más ilustrativo que
estadísticamente riguroso.
El trabajo está caracterizado como una entrevista semiestructurada
a informantes calificados de los principales Sater. La información fue reco-
lectada entre julio y agosto del 2013. Se realizó un taller de presentación
de avances (24 de setiembre de 2013) el cual generó sugerencias que se
370 Pe d r o d e H e g e d u s – F é l i x A n t o n i o F ú s t e r R e b e l l a t o – Pa b l o A r e o s a

incorporaron al trabajo. Se ofrece en el anexo 1 una lista de las 20 personas


entrevistadas y las organizaciones representadas, participantes del taller. Se
complementaron las entrevistas con el análisis de documentos pertinentes
a los efectos del trabajo, en lo que constituye la información secundaria. Se
agradece a la Dirección de Estadísticas Agropecuarias del MGAP el proce-
samiento de información relativa a la cobertura de predios con asistencia
técnica para el Censo General Agropecuario del 2011.
El trabajo reconoce dos ejes de reflexión. Por un lado el carácter
público o privado de los SATER. Por otro lado las dimensiones de perti-
nencia, efectividad y sostenibilidad.

RESULTADOS Y DISCUSIÓN

La cobertura de asistencia técnica


El siguiente cuadro ilustra la evolución de los datos censales para los
últimos 4 censos generales agropecuarios realizados.
Cuadro 1 – Cobertura de predios que reciben Asistencia Técnica (AT)
1980 1990 2000 2011
Total de predios 68.362 54.816 57.131 44.781
No. de predios con AT 13.424 19.003 16.105 20.695
En % sobre el total 19,6 34,7 28,2 46,2
Fuente: Elaborado en base a información de los Censos Generales Agropecuarios,
MGAP, Uruguay.

Se puede observar una tendencia de aumento de la cobertura de


predios que reciben asistencia técnica. Es necesario realizar dos conside-
raciones. La primera es destacar que la variable “recibe asistencia técnica”
adquiere una respuesta positiva tanto si el productor la obtiene en forma
ocasional o permanente. La pregunta que el Censo formula es si el produc-
tor ha recibido por lo menos la visita de un técnico en el año anterior. En
este sentido hay que relativizar las conclusiones que se derivan. La segunda
es enmarcar las últimas décadas en una dinámica de descenso del número
de predios, que son básicamente familiares y con alta probabilidad de no
recibir AT.
Los Servicios de Asistencia Tecnica y Extension Rural (Sater) en Uruguay 371

Igualmente el cuadro muestra el efecto de la acción combinada de las


políticas que generaron estabilidad, promovieron inversiones, y alentaron
el cambio técnico (Sater privados y técnicos en ejercicio liberal), conjun-
tamente con las políticas de desarrollo rural que estimularon a los Sater
(en especial los públicos). Es probable que el próximo censo mantenga o
profundice esta tendencia.

Recursos humanos en los Sater


En general los Sater están reconstruyendo, salvo algunas excep-
ciones, los equipos de trabajo. Se observa una tendencia de estructurar el
trabajo en dos niveles. Un primer nivel corresponde a un espacio central
de planificación institucional, localizado en Montevideo y en las regiones
(capitales departamentales). El segundo nivel, de trabajo directo con los
productores y las organizaciones, queda a cargo de técnicos privados, que
dependen de los usuarios, y esta co- financiado (por ej. por el MGAP o
Conaprole). En Conaprole el cofinanciamiento se aplica con una política
diferencial, en tambos chicos es mayor el apoyo que en tambos grandes.
Esta situación, de complementación de esfuerzos entre el sector público
y el privado, es uno de los fenómenos más importantes que caracterizan a
los Sater en este siglo.
En general el perfil de edad de los técnicos que trabajan en los Sater
tiende a ser relativamente joven, sobretodo en el trabajo directo con los pro-
ductores, y en algunas instituciones como ser la DGDR (por ser de reciente
creación), o por haber existido un recambio generacional (INC).
Predomina en los equipos técnicos una formación de grado, con una
tendencia creciente a la formación de posgrado. Existe una oferta nacional
reciente de dos posgrados, vinculados al Desarrollo Rural y la Extensión
Rural, uno se dicta desde el 2005 en Fagro, el otro desde 2012 en la Facul-
tad de Veterinaria, con participación del Sceam. Esta oferta, junto con otros
posgrados relacionados, está en condiciones de dar respuesta a las demandas
crecientes de formación al nivel de posgrado.
372 Pe d r o d e H e g e d u s – F é l i x A n t o n i o F ú s t e r R e b e l l a t o – Pa b l o A r e o s a

Se destaca la presencia en algunos Sater (DGDR) de otras profesio-


nes (además de las clásicas vinculadas al Área Agraria), relacionadas a las
Ciencias Sociales, y en particular a las menos tradicionales (comunicadores,
trabajadores sociales, psicólogos). Esta situación permite encarar proble-
máticas integrales que no son estrictamente productivas. La presencia de
equipos multidisciplinarios, con el aporte de las diferentes disciplinas de
las Ciencias Sociales, es de valor, por ejemplo, en lo que hace al análisis de
los procesos participativos y asociativos (lo cual implica la promoción de
estos procesos, las capacidades para la negociación por los conflictos que
emergen), y en la búsqueda de la sustentabilidad en todas sus dimensiones
(social, económica, ambiental).
Igualmente todos los Sater enfrentan problemas que no son estric-
tamente productivos. En Conaprole los responsables zonales son fuente de
consulta en temas como sucesión familiar. El envejecimiento del colono es
un tema de preocupación en las Regionales. Las cooperativas por definición,
tienen una sensibilidad por lo social que se manifiesta en su accionar (por
ejemplo, políticas para la formación de jóvenes como futuros dirigentes).
En el IPA los técnicos tienen una visión de la realidad social de la produc-
ción agropecuaria. Fucrea se orienta por el crecimiento de la producción y
también de las personas, en principio los productores Crea tienen inquie-
tudes y una actitud participativa en sus comunidades.
La capacitación y actualización de los recursos humanos trabajando
en los Sater es uno de los factores que inciden en la eficiencia y eficacia del
trabajo. Se observa una política de estimular la formación de los técnicos.
Las modalidades son: i) actividades de duración corta, compatibles con el
trabajo, (1-2 días), y ii) capacitación en temas técnico productivos y meto-
dológicos. Los proveedores más mencionados a nivel del país son MGAP,
Udelar, Inia, IPA y SUL.
En el pasado se visualizaba una carencia en este punto. Esta situa-
ción originó, con otros factores, la perdida de valoración del extensionista
en relación con otros colegas. La relación entre la investigación y los Sater
no puede reproducir la clásica mera intermediación de información entre
investigadores y los productores. Los equipos de extensión deben ser “faci-
litadores de procesos de innovación co-diseñada horizontalmente” (Procisur,
2012, p. 16). Para esto deben estar formados.
Los Servicios de Asistencia Tecnica y Extension Rural (Sater) en Uruguay 373

Se destaca en las políticas de capacitación existentes el Plan de regis-


tro y habilitación de técnicos privados que lleva a cabo la DGDR, de modo
que estén en condiciones de desempeñar su actividad. Había al momento
de las entrevistas en el 2013: i) 1.710 técnicos registrados, el 62 % del área
agraria, un 18 % del área social, y un 20% de otras áreas, y ii) 1.329 técnicos
habilitados.

La población objetivo
En este apartado se ofrece información relacionada con la población
objetivo de las acciones de los Sater. Este aspecto es también importante ya
que uno de los problemas que existían en la década del 90 era la débil defi-
nición de quienes constituían la población objetivo (desde el punto de vista
conceptual y cuantitativo). Se declaraba “trabajar con todos, chicos, media-
nos y grandes” y en definitiva se terminaba interactuando con algunos, los
que se acercaban “a la oficina”.
Con rigor en la definición conceptual y en la cuantificación de los
productores familiares se destaca la DGDR del MGAP. Es de conocimien-
to general la definición que el MGAP maneja al respecto y es de destacar
la actualización reciente (2014) en los criterios establecidos, flexibilizando
las definiciones para reflejar mejor la realidad actual. El resto de los Sater
tiende a ubicar al público objetivo como ‘la empresa familiar”, utilizando
una concepción más flexible, y vinculándola a los objetivos específicos de la
organización. Por ejemplo, Digegra señala que trabaja “con la empresa fami-
liar granjera, no de subsistencia”. El IPA trabaja con la “empresa familiar
ganadera, de diferente escala”. Puede plantearse como hipótesis un primer
nivel de atención integral de la producción familiar en la DGDR, y luego
un segundo nivel de atención técnica específica, a cargo de Digegra e IPA,
para las situaciones relativamente más dinámicas de inserción.
Además de la categoría producción familiar, hay otras menciones que
también son objeto de atención según los entrevistados. Cabe señalar a los
asalariados rurales (DGDR, INC, Udelar/Sceam). Se destaca el trabajo del
Sceam (Udelar), en base al Centro de formación localizado en Bella Unión,
y el Convenio de trabajo con asalariados rurales que se implementa en
acuerdo con la DGDR y la Udelar. Gracias a esta dinámica, puede afirmarse
374 Pe d r o d e H e g e d u s – F é l i x A n t o n i o F ú s t e r R e b e l l a t o – Pa b l o A r e o s a

que el sindicato de segundo grado Unión Nacional de Trabajadores Rurales


y Afines (Unatra) se ha fortalecido como organización representativa de los
asalariados agropecuarios, producto de procesos de crecimiento interno y
de factores externos, como es el lugar protagónico que algunas políticas
públicas le han asignado (la instalación de los consejos de salarios rurales,
la acción de del MGAP y de diversas instituciones como la Universidad de
la República).1
El IPA enfatiza una línea de trabajo de sucesión familiar en ganadería
que se vincula al trabajo con jóvenes rurales. CAF señala como otra categoría
de trabajo aquellos productores con problemas de gestión en el establecimiento
que requieren del asesoramiento técnico. Se ha constatado dispersión en los
ingresos de los productores en una misma zona que se originan en proble-
mas de gestión (en la aplicación de insumos). Esto constituye actualmente
una línea de trabajo interesante en el Departamento de Ciencias Sociales
de Fagro, a cargo del Ing. Agr. Dr. J. Alvarez.

Dimensión de pertinencia
La dimensión de pertinencia intenta responder el grado en que los
Sater y sus acciones son relevantes para los productores y responden a sus
necesidades. Un aspecto central a estudiar es el de la participación de la
población objetivo. La participación de los beneficiarios puede implicar
tres niveles: (a) aportando información, (b) en la toma de decisiones, y (c)
gestión y co-gestión en el manejo de los recursos.
En los Sater privados, son los productores los que controlan las orga-
nizaciones, toman las decisiones y realizan la gestión de los recursos. Se
puede esperar que exista correspondencia entre los problemas que se per-
ciben y las actividades que se ejecutan. En los Sater pertenecientes a la
institucionalidad pública la participación tiene dos formas: i) a través de

1
Información proporcionada por el Ing. Agr. Dr. M. Carambula. Facultad de
Agronomía, Departamento de Ciencias Sociales. Coordinador Convenio de trabajo con
asalariados rurales (MGAP/ Udelar).
Los Servicios de Asistencia Tecnica y Extension Rural (Sater) en Uruguay 375

delegados representantes de los gremios en ámbitos como ser juntas, con-


sejos y otras estructuras similares, y ii) a través de los mecanismos previstos
en programas y proyectos del MGAP (DGDR).
Los delegados representantes aportan información y toman decisio-
nes, en especial en relación con planes y estrategias; el seguimiento a los
mismos se hace en forma descentralizada. Esta participación puede tener
problemas en la medida que los canales de comunicación entre esos dele-
gados y sus organizaciones, y entre estas y la masa social no sean adecuados,
de forma que no existan mecanismos que identifiquen las necesidades de la
masa social. Hay organizaciones recién creadas que presentan además una
cierta fragilidad institucional.
En la DGDR se destaca como un hecho de gran significación la
existencia de Mesas de Desarrollo Rural (MDR) que plantean las demandas
locales y regionales al MGAP. Es verdaderamente un mecanismo descen-
tralizado que está consolidado en el país para la captación de demandas de
la población rural. Es una gran diferencia con lo que acontecía en el siglo
pasado. Además, existen ámbitos que se desarrollan en las acciones de asis-
tencia técnica y extensión rural (Ater) de la DGDR, como el de la cogestión
entre DGDR y las organizaciones de productores, o el programa microcrédi-
to con la participación social en la gestión de los comités de crédito locales,
en donde también hay una intensa participación de la población rural. Este
programa ha permitido el acceso al crédito de 7.000 personas por casi 10
millones de dólares.
Si bien en los organismos privados la presencia de los productores
está dada, se necesitan estructuras de participación que alienten la interac-
ción con los asociados. Los espacios y canales de participación existentes
es un elemento a considerar en relación a la participación. En este sentido
CNFR tiene un sistema diseñado con gran representación del padrón social
para la toma de decisiones. Otras medidas en las organizaciones privadas
para favorecer la participación descentralizada (y poder captar las necesi-
dades de las regiones) son: i) efectuar reuniones regionales de directivos y
productores de las zonas, y ii) reforzar la presencia en los órganos de decisi-
ón con delegados zonales que concurren en forma aperiódica.
376 Pe d r o d e H e g e d u s – F é l i x A n t o n i o F ú s t e r R e b e l l a t o – Pa b l o A r e o s a

Dimensión de Efectividad
La dimensión de efectividad intenta responder en qué medida las
acciones logran tener los efectos buscados en la población objetivo. En
este aspecto es importante considerar: las líneas de acción y los efectos
generados; los vínculos que los Sater realizan con otros actores; el enfoque
metodológico de trabajo, y el uso de sistemas de seguimiento y evaluación.

Principales líneas de acción


Se presenta, de acuerdo con los entrevistados, las principales líneas
de acción de los Sater.
1. Capacitación, (a cargo de técnicos propios de la organización o
coordinando),
2. Gestión del conocimiento, (generar conocimiento e informaciones,
sistematización, difusión para su uso), en este sentido Fucrea e
IPA son ejemplos, trabajando a partir de la información de los
Grupos Crea, o del seguimiento participativo a predios seleccio-
nados por Departamento,
3. La promoción y el desarrollo de organizaciones de tipo cooperario,
(se destaca el fortalecimiento organizativo que ha impulsado la
DGDR; también la contribución a la organización de los sujetos
colectivos en el caso del Sceam),
4. Acciones de Asistencia técnica y Extension rural, a cargo de técnicos
privados cofinanciados, por ejemplo a través de convocatorias
(DGDR), los servicios de Extensión con estrategia asociativa
(ANPL), proyectos de Conaprole (proyecto de apoyo a la gestión
lechera y proyecto de producción competitiva), acciones de faci-
litación de los procesos de desarrollo (INC), acciones de transfe-
rencia articuladas al campo experimental (SUL).
5. Comercialización, es mencionada con más importancia por orga-
nismos privados de tipo cooperativo (CAF, Conaprole). SUL
aporta información de precios y mercados en forma regular. Pero
también desde los Sater públicos hay acciones. Se destacan los
Los Servicios de Asistencia Tecnica y Extension Rural (Sater) en Uruguay 377

planes de negocio de Digegra (MGAP), que constituyen una


herramienta valiosa para promover la inserción de productores
familiares en cadenas de valor.
Esta descripción da paso a la pregunta acerca de los logros alcanza-
dos. La información disponible no es suficientemente completa para dar
una respuesta. Téngase presente que los Sater se están reconstruyendo en
el país, los registros tienen sus limitaciones (los sistemas de seguimiento y
evaluación se están recién fortaleciendo), y deberían existir estudios realiza-
dos desde el punto de vista de los usuarios, para dar cuenta de los impactos.
Las respuestas de los entrevistados con respecto a los logros alcan-
zados (percepción del cumplimiento de las líneas de acción institucionales)
son positivas. Muchas veces se asocia logros con el acceso a la información
por parte del público objetivo (el supuesto es que el acceso equivale al uso
de la información). En este sentido, el uso de medios masivos (pag web,
revista) permite aumentar la cobertura y el acceso.
La DGDR cuenta con información precisa en lo que hace a pobla-
ción objetivo y cobertura. La misma señala que de una población objetivo
estimada en aproximadamente 27.000 productores familiares, la cobertura
es de aproximadamente 23.000 productores. En los Sater privados, la propia
existencia y permanencia (ej. Fucrea) habla de sus méritos. No hay mejor
valoración que la disposición de los usuarios a financiar o cofinanciar los
servicios. Todos los proyectos que subsidian a la asistencia técnica a grupos
de productores saben que la prueba de éxito final es cuando terminan los
subsidios.

Vinculaciones para el trabajo coordinado


Un estudio de diferentes diagnósticos efectuados al funcionamiento
de los Sater en el país en las últimas décadas desde diferentes perspectivas
indica como factores críticos los siguientes: i) carencia de políticas y recur-
sos, ii) problemas en la capacitación de los técnicos, iii) falta de coordinación
entre las instituciones, y iv) falta de tecnología apropiada según las diferen-
tes realidades y tipos sociales (Díaz Rossello, 1986; Morelli, 1988; Vassallo,
1995; Olveyra, 1995; Rucks, 1995; Torres, 1997; Trigo, 2000, Vassallo, 2001).
378 Pe d r o d e H e g e d u s – F é l i x A n t o n i o F ú s t e r R e b e l l a t o – Pa b l o A r e o s a

De lo anterior surge que un aspecto deficitario es la escasa coordina-


ción entre los Sater, y de los Sater con la Investigación. La vinculación entre
la investigación y los Sater es de gran significación. Inia ha generado dos
herramientas que vinculan a la investigación con las necesidades del mundo
productivo: el Consejo Asesor Regional (CAR) y los grupos de trabajo (GT).
Según Restaino, se necesita mejorar el funcionamiento de los CAR y GT
ya que “hay como principales barreras aspectos operativos (frecuencia de
reuniones, agendas extensas, objetivos de reuniones poco conocidos) y
de comunicación entre la Institución (Inia) y los delegados participantes”
(2005, p. 36). Se necesita integrar a los Sater en estas herramientas con una
presencia institucional más que personal, que asegure el seguimiento a las
propuestas (conclusiones del InterCar 2003 realizado en Flores, Uruguay).
El Inia tiene un área de trabajo en difusión con una estrategia de
articulación interinstitucional que procura contribuir a la necesidad de infor-
mación tecnológica de todos los actores vinculados al sector agropecuario y
a la sociedad en su conjunto. Es necesario señalar que Inia realiza difusión
de informaciones a: i) técnicos mediante cursos, jornadas, pag web, publi-
caciones, y ii) productores a través de medios masivos y de las unidades
experimentales o predios demostrativos. Inia no desarrolla actividad propia
de transferencia de tecnología o de extensión rural, lo hace a través de las
articulaciones con los restantes actores. En relación con el aporte del Estado
al financiamiento de Inia es importante señalar que el MGAP le ha pedido
un compromiso con la gestión, a los efectos de esta contribución, en donde
el tema de la articulación para la transferencia de tecnología está presente
como preocupación central. Si no existen Sater en el país, o hay mecanismos
débiles de enlace, las acciones antes señaladas no pueden desarrollarse en
toda su magnitud.
Un análisis general de las articulaciones para el cambio técnico por
Estación Experimental (EE) de Inia indica lo siguiente, analizando los pro-
gramas más importantes de cada EE (tomando en cuenta la realidad del
2013) y los actores relevantes.
En Treinta y Tres los programas claves son arroz y carne y lana. En
arroz existe una situación dinámica con la Asociacion de Cultivadores de
Arroz y Gremial de Molinos; hay integración a la cadena agroindustrial. En
Los Servicios de Asistencia Tecnica y Extension Rural (Sater) en Uruguay 379

ganadería de cría hay una brecha en cuanto a la aplicación de un paquete


de propuestas de manejo, y el actor clave en la articulación es el IPA. Afor-
tunadamente hay al presente una buena relación.
En Tacuarembó los programas básicos son carne y lana, y forestal. El
programa forestal tiene conexiones con las empresas que son las que “tiran”
del cambio técnico (como lo hace la industria arrocera). En carne y lana
caben las consideraciones del caso anterior, se agrega el SUL como actor
para las articulaciones. Las Sociedades de Fomento Rural, que tuvieron
un fuerte impulso por la acción del MGAP, también son actores claves en
Tacuarembó y Salto.
En Salto están los programas de citricultura y horticultura intensiva.
La industria citrícola juega un papel importante; a la misma están integrados
un porcentaje no mayoritario de los productores citrícolas. La horticultura
intensiva de Salto presenta un fuerte dinamismo tecnológico, con organi-
zaciones de productores y colonias del INC en los alrededores. La ventaja
competitiva de poder llegar antes al mercado con un sobreprecio importan-
te, orienta a los sistemas productivos en las decisiones.
La Estanzuela (Colonia) tiene programas en lechería, cultivos y gana-
dería intensiva. Lechería es un sector que demanda tecnología, y en donde
se articula con la ANPL y el Inale. Tradicionalmente la Unidad de Lechería
jugó un papel importante en el impulso al cambio técnico, aunque en la
actualidad hay también otros actores (Udelar). En cultivos se observa un
fenómeno similar con la presencia de otros actores que traen su tecnología
propia, nos referimos por ejemplo a las grandes empresas agrícolas como “El
Tejar”, Agronegocios del Plata que controlan un % muy alto de la super-
ficie plantada. Existe una importante presencia de técnicos trabajando en
forma liberal o en consultorías (seguimiento a los cultivos); también hay
que destacar la existencia del sistema de cooperativas agrarias nucleado
en CAF, y de otras empresas de venta de insumos como ser Barraca Erro.
La acción de Inia se concentra en enfermedades, nutrición y manejo. En
ganadería intensiva se repite la situación: junto con el Inia existen otros
actores como la Udelar que son fuente de informaciones para el cambio
técnico. Los frigoríficos, Fucrea, el IPA, el sector cooperativo, son actores
para las articulaciones.
380 Pe d r o d e H e g e d u s – F é l i x A n t o n i o F ú s t e r R e b e l l a t o – Pa b l o A r e o s a

En Las Brujas (Canelones), fruticultura y horticultura son progra-


mas tradicionales. El sector frutícola tiene mayor dinamismo tecnológico
(como los horticultores de Salto); el sector hortícola es el más problemático.
Siempre ha existido un relacionamiento directo con productores; además
hay actores importantes para articular como ser Digegra, DGSA (MGAP),
CNFR y las Sociedades de Fomento Rural, y Jumecal.
Las respuestas de entrevistados señalan que existe articulación entre
actores. Se pueden mencionar experiencias de articulación interesantes (por
ejemplo en el este en donde INIA e IPA interactúan con mayor intensidad),
en el marco de políticas firmes del MGAP que procuran la coordinación
entre la institucionalidad agropecuaria. Es probable también que existan
acciones puntuales de articulación, muchas veces de carácter informal, sobre
todo a nivel local, en donde siempre hay espacio para coordinar esfuerzos
basados en la amistad o la común membresía de las personas.

Metodología de trabajo
De acuerdo al número de personas que participan se clasifican los
métodos como: i) masivos (impresos, radio, TV, WEB, email, mensajes texto
en celular), que son aquellos que permiten trasmitir rápidamente informa-
ción a amplios sectores en forma eficiente, y ii) interpersonales, que son los
que permiten por la interacción que se genera entre los participantes, capa-
citar y educar (grupos, talleres, giras, predios demostrativos, visitas al predio,
programas informáticos interactivos). La metodologia de trabajo se relaciona
con los paradigmas y enfoques que se emplean en las intervenciones.
En el 2005 se realizó una importante investigación de los Sater en el
Mercosur, con foco en la década del 90, a cargo de Ricardo Thornton (2006),
importante investigador y experto en comunicación del Inta (R. Argentina).
Los resultados indicaban que convivían en el Mercosur enfoques de inter-
vención amparados en el paradigma difusionista, que presentaban sus difi-
cultades en proyectos vinculados a la sustentabilidad, y enfoques basados
en el paradigma educativo, en donde se constataba que el tiempo que los
proyectos tienen no contemplaba las necesidades requeridas. Esta situación
sigue vigente.
Los Servicios de Asistencia Tecnica y Extension Rural (Sater) en Uruguay 381

Las respuestas de los entrevistados en cuanto a enfoques de trabajo


empleados indican lo siguiente:
• Los Sater privados están más orientados a la “transferencia de
tecnología” en función de los objetivos de las organizaciones. En
los Sater públicos hay un equilibrio de enfoques con énfasis en
el desarrollo de capacidades para la organización.
• El nivel vinculado al” trabajo de campo” emplea metodología
individual o grupal, el restante nivel de apoyo procura trabajar en
una combinación que tiende al énfasis de los métodos masivos
(TIC), ya sea público o privado. El nivel de “campo” es gene-
ralmente un técnico privado.
Las cooperativas agrarias brindan un asesoramiento técnico específi-
co y puntual, trabajando con la masa social; el asesoramiento técnico integral
y permanente es privado. En ambos casos es metodología individual. El
SUL realiza transferencia de tecnología a través de grupos (ej., en jornadas
de discusión de temas en predios de productores), y por metodología indi-
vidual (en la realización de servicios por los cuales cobra, por ej., atención
de planteles, control de calidad del cordero pesado).2
Las restricciones de recursos en el pasado facilitaron la aparición de
abordajes que pueden constituirse en enfoques de trabajo, como ser Edu-
cación a distancia (TIC). El IPA ha construido capacidades interesantes en
este sentido (incluyendo también a la Revista y recientemente un programa
de radio). Un avance innovador es el uso de programas informáticos inte-
ractivos para motivar la discusión y el análisis con los productores (por ej.,
el Megane, Modelo de una Explotación Ganadera Extensiva, desarrollado
por el IPA).

2
En la década del 90 se desarrolló el proyecto de cordero pesado (16 kg)
mediante una excelente articulación entre investigación, industria, mercados y servicios
de asistencia técnica/extensión. Los actores claves fueron SUL, Central Lanera, y
Frigorífico San Jacinto. Hoy genera exportaciones por decenas de millones de dólares.
382 Pe d r o d e H e g e d u s – F é l i x A n t o n i o F ú s t e r R e b e l l a t o – Pa b l o A r e o s a

En el caso del INC, tiene una tradición ‘bancaria’ que llevaba a una
atención individualizada, en donde el vínculo con el colono es el pago de la
renta. No obstante, desde el 2005 va operando un cambio de modelo, ya que
la visión clásica de parcela individual aislada, con limitaciones de tamaño y
financieras, y uso de tecnología tradicional no es viable.
La utilización en el país de las TICs es clasificada en general como
incipiente para los entrevistados con excepción del IPA. En el caso de la
producción familiar la alfabetización digital y la no existencia de problemas
de conectividad son condiciones previas. Todos entienden que debería ser
mayor su empleo por diferentes razones: i) porque puede llegar a regiones
alejadas en donde otras posibilidades no existen, ii) porque los productores
familiares no pueden ausentarse de sus predios, iii) porque ahorra tiempo y
recursos (tanto a los Sater como a los destinatarios), y iv) porque permitiría
mejorar la relación entre entidades y socios.
Las opiniones indican que el celular es un medio de mucha utili-
zación en las áreas rurales por todos los actores, y que permite trasmitir
rápidamente mensajes de texto breves, por ejemplo alertas o invitaciones
a reuniones. El correo electrónico, para quienes tienen conectividad, cons-
tituye un medio de creciente aceptación, y se ubica en segundo lugar. El
acceso a internet se relaciona en Uruguay con el nivel educativo y econó-
mico del productor (esto es válido también para la radio y TV). Y cada vez
más se hace en forma diaria (igual para la radio y TV). Las percepciones de
los entrevistados tienden a ubican como importante el porcentaje de acceso
a internet por parte de los productores.

Seguimiento y evaluación
La cultura de seguimiento y evaluación (SyE) incide en la efectivi-
dad de los Sater. De una ausencia en el siglo pasado se ha ganado conciencia
en torno a la importancia de incorporar en la actualidad estos mecanismos.
El peligro latente es considerar que cuanto más sofisticados son estos dispo-
sitivos mejor es. Es justamente al revés. Lo más adecuado es emplear pocos
indicadores y mecanismos de seguimiento participativos, para evitar caer en
la trampa de que el SyE se convierta en un fin en sí mismo.
Los Servicios de Asistencia Tecnica y Extension Rural (Sater) en Uruguay 383

Un resumen de la situación según las respuestas obtenidas indica


que:
• El seguimiento de las actividades es a nivel regional en donde
los técnicos pueden: a) hacer informes mensuales siguiendo un
modelo y elevar los mismos a consideración de la gerencia, o b)
ingresar las actividades realizadas en un sistema informatizado,
que elabora informes de frecuencia variable, que se elevan a los
niveles de dirección para su análisis.
• La evaluación tiende a ser al final de los proyectos en base al
cumplimiento de los objetivos (establecidos en el marco lógico).
En los Sater privados los objetivos tienden a ser más de tipo
productivo/económico (Conaprole) y sobre ellos es que se evalúa
al técnico.

Dimensión de sostenibilidad
La dimensión de sostenibilidad analiza los factores que aseguran la
continuidad de los Sater en el futuro. En este sentido cabe considerar el
financiamiento y la estabilidad laboral de los técnicos.

Financiamiento
Las fuentes básicas de financiamiento de los Sater en el país son las
siguientes: i) asignaciones presupuestales por parte del Gobierno central,
ii) fondos parafiscales o impuestos (ej., Fondo de la granja para Digegra) iii)
recursos de financiamiento externo de proyectos, (ej., proyectos con BID,
Banco Mundial), iv) donaciones (ej., Fondo de adaptación del protocolo de
Kyoto) y v) financiamiento directo a cargo de los productores (ej., Fucrea).
La fuente de financiamiento externo debe ser el componente de
mayor peso en el total de recursos invertidos para los Sater en el país. Al
respecto, el Programa de desarrollo rural productivo con el Banco Interame-
ricano de Desarrollo contribuye con 33,3 millones de dólares, y el Programa
de manejo de cambio climático con el Banco Mundial tiene un monto de
32,2 millones de dólares (solo para el componente relacionado con DGDR).
En la medida que el país continúe utilizando esta vía de financiamiento, es
384 Pe d r o d e H e g e d u s – F é l i x A n t o n i o F ú s t e r R e b e l l a t o – Pa b l o A r e o s a

necesario renovar los Proyectos a los efectos de no interrumpir el funcio-


namiento. Lo deseable es que en un futuro aumente la importancia de las
asignaciones presupuestales del Gobierno central.
La DGDR centraliza y coordina estos proyectos de financiamiento
externo. Esto es un avance ya que en el pasado (en la década del 90 con
su máxima intensidad) se observaba una autonomía de cada proyecto (y su
unidad ejecutora) que se relacionaba con la entidad financiadora interna-
cional correspondiente. Estos proyectos manejaban sus propios recursos y
establecían sus prioridades, sin coordinar con los restantes proyectos y uni-
dades ejecutoras del Ministerio. Se proyectaban al medio como siglas y se
desdibujaba la presencia institucional del MGAP. La situación mejoró en la
actual década, y con la creación de la DGDR se facilitó que los proyectos se
integren también a una misma concepción de trabajo que tiene continuidad.
Los organismos privados son sensibles al tema de cuidar su inde-
pendencia económica para poder emitir opiniones. En ese sentido Fucrea
se destaca por la estabilidad en el financiamiento de los propios producto-
res, que vigilan ese aporte con celo para no depender de otras fuentes. A
los fines ilustrativos, la institución manifiesta un presupuesto de 600.000
dólares anuales, de los cuales el 70% es para salarios del personal; un 25%
son costos operativos; y un 5% para gastos de infraestructura. Aproximada-
mente el 70% es aportado por los Productores (50 grupos, 600 producto-
res, 52 técnicos incluyendo Fucrea), el resto se cubre con otras fuentes. El
costo total anual del productor (incluye el aporte a Fucrea, pago del asesor
técnico, y algún otro costo menor), es de 2.400 dólares en promedio.

Estabilidad de la relación laboral


Es evidente que la sostenibilidad de un Sater es afectada por la
estabilidad del personal. Si predominan contratos a término, en el marco
de proyectos, la sostenibilidad decrece y el Sater se ve expuesto a perder
memoria institucional. Lo mismo ocurre si predomina una edad avanzada
en el cuerpo técnico, próxima a la edad de retiro. En algunos casos existe
una política de pasaje a dedicaciones part time que tampoco favorece la
sostenibilidad. A los efectos de darle continuidad al trabajo, ocurre que se
busca desde la gerencia de los Sater construir una “ingeniería de proyec-
Los Servicios de Asistencia Tecnica y Extension Rural (Sater) en Uruguay 385

tos”, que posibilite la continuación de los equipos técnicos, para no perder


personal formado. Esta situación dificulta una proyección estratégica de las
organizaciones.
También se observa en los técnicos jóvenes una nueva cultura de
trabajo, con mayor predisposición a la movilidad, facilitada en la actual
coyuntura por las posibilidades laborales. Los niveles vinculados al trabajo
directo con los productores (el llamado “nivel 2”) presentan en general una
mayor rotación (puede deberse a factores económicos también), y tienen un
perfil de edad más joven en comparación con el pasado.
En general no hay políticas de reconocimiento y/o remuneración
adicional en los Sater. No obstante, la motivación por trabajar en un empleo
que se relaciona con el perfil del técnico, el propio reconocimiento de la
población objetivo, así como también las facilidades que se brindan para
la capacitación, son aspectos valorados por los técnicos y pueden incidir
en explicar una baja rotación. En algún caso, como Conaprole, los técnicos
reciben una compensación si los productores que asesoran crecen en pro-
ductividad más que el promedio general de la cooperativa.

PROYECTANDO EL FUTURO
De acuerdo al contexto y a las dinámicas observadas, se proyecta una
situación de futuro con dos escenarios. Un escenario representante de un sistema
público de Sater compuesto básicamente por el MGAP (Digegra, DGDR)
y el IPA, coordinando con el Inia/Udelar y el resto de la institucionalidad
agraria, y trabajando con la producción familiar y empresarial. Algunas líneas
de trabajo en este escenario incluyen: i) el impulso a los planes de negocio
y estrategias de comercialización e inserción en cadenas de valor, ii) la pro-
moción de la calidad e inocuidad de los productos exportables, y iii) la con-
servación de los recursos naturales (ej., planes de uso y manejo del suelo)
y la mitigación de los impactos ambientales de los procesos productivos
(ej., plan regional de manejo de plagas en frutales racionalizando el uso de
productos fitosanitarios).
En este escenario se visualiza a la DGDR trabajando con la pro-
ducción familiar y otros sectores de la población rural con exclusión socio-
económica, y en las regiones y comunidades más alejadas, a los efectos
386 Pe d r o d e H e g e d u s – F é l i x A n t o n i o F ú s t e r R e b e l l a t o – Pa b l o A r e o s a

del fortalecimiento de las organizaciones. Las acciones se van a relacionar


con el fortalecimiento de organizaciones y de comunidades, y el apoyo a
la participación y descentralización en la toma de decisiones a través de
las MDR. Las mismas, además de ser un espacio para plantear demandas
e intercambiar informaciones, tienen el desafío de constituirse en ámbito
para la elaboración de propuestas de desarrollo territorial y desde el cual
potenciar la construcción de capacidades. Los gremios de la producción
familiar (como ser CNFR), los sindicatos de asalariados rurales, y la Udelar,
a través del Sceam y las macro áreas, son actores relevantes para articular
políticas. La soberanía alimentaria para sectores de la producción familiar
vinculados a la granja y la quesería artesanal, pueden ser políticas de alter-
nativa a considerar.
En lo operativo es razonable esperar que muchas de las propues-
tas se implementen mediante un fuerte relacionamiento público-privado,
en donde el trabajo directo con productores y organizaciones es efectuado
por técnicos privados y el financiamiento es del Estado o de los privados.
También continuará en forma creciente el uso de TIC como estrategia de
trabajo, la formación de posgrado, y la acreditación de técnicos. El contexto
general se va a caracterizar como de pluralismo institucional, lo que significa
que en las diferentes regiones van a coexistir e interactuar diversos Sater, y
los abordajes metodológicos serán variados. Las políticas públicas tendrán
que gestionar esta diversidad y darle una visión de conjunto y una direc-
cionalidad de avance.
Existe otro escenario que representa al sistema privado de Sater y técnicos
liberales que responde a los lineamientos de:
1. los productores organizados en grupos y en el sistema coope-
rativo
2. empresas comerciales como ser Barraca Erro, y
3. productores empresariales que se vinculan directamente con téc-
nicos asesores (en ejercicio liberal o trabajando en consultoras).
Todo indica que el proceso de modernización tecnológica del agro va
a continuar, alentado por una demanda mundial de consumo de alimentos
que parece ser sostenida. Este escenario va a seguir demandando asesores
técnicos generales y asesores especialistas para un modelo intensivo que
Los Servicios de Asistencia Tecnica y Extension Rural (Sater) en Uruguay 387

está presente en la agricultura empresarial clásica y en la nueva forma de


“empresas agrícolas en red”. El manejo de buenas prácticas y las nuevas
capacidades requeridas por la intensificación productiva son cuestiones
centrales en este escenario. Los Sater privados dependientes de Fucrea
y el sistema cooperativo (en donde se expresa la agricultura empresarial
tradicional), tienen un impacto que excede el productivo, ya que procu-
ran un desarrollo de la unidad familiar que toma las decisiones y de las
comunidades en donde están presentes desde hace décadas, en buenas y
malas coyunturas. La gestión de la nueva forma empresarial en red, más que
integrarse a las regiones, puede entrar rápidamente en conflicto con ellas,
ya que sus decisiones y lógicas se toman en otros lugares y son diferentes.
En este sistema privado veremos un uso intenso de las TICs. Por
ejemplo, Fucrea ya está desarrollando una Plataforma para disminuir los
costos de transacción de la información para tomar decisiones en tiempo
real. El impulso de la Educación a distancia en el IPA ha alcanzado niveles
de excelencia y es una capacidad disponible para el resto.
El desafío central para estas dos grandes escenarios es el de lograr una
mayor interacción, que permita generar sinergias a todo nivel. El Estado,
a través del MGAP, debe cumplir un papel de gestión y coordinación para
instrumentar las políticas que sean priorizadas desde el Gobierno. Los esce-
narios además están relacionados en la medida que la organización de la
producción familiar es el paso ineludible para que luego pueda mejorar la
producción y acceder a mercados en mejores condiciones (sistema público).
Eventualmente productores asistidos en este nivel pueden terminar en pro-
cesos de acumulación crecientes que posibiliten la contratación directa de
técnicos asesores (sistema privado).

CONCLUSIONES
1. La gran lección aprendida es que el Estado no se puede retirar de la
gestión del cambio técnico integral. El sector público tiene un papel
importante que cumplir en la generación de conocimiento confiable y
transparente, pero también en la utilización del mismo. El mercado por
sí solo no asegura que se desarrollen los Sater; rápidamente emergen las
“fallas” en las áreas social y ambiental.
388 Pe d r o d e H e g e d u s – F é l i x A n t o n i o F ú s t e r R e b e l l a t o – Pa b l o A r e o s a

2. Uruguay se encamina en este siglo a una situación de pluralismo institu-


cional en las regiones, con presencia de diversos Sater, en función de las
características y antecedentes de cada región. Nos alejamos del modelo
hegemónico de una organización nacional con su propia mirada, carac-
terístico del siglo pasado. Los Sater públicos tienen un rol de gestión en
esta nueva situación, en donde la interacción en las regiones deberá tener
una perspectiva más territorial que institucional.
3. Una característica metodológica que asume como tendencia es la de
trabajar con grupos y organizaciones en base a convenios con equipos
multidisciplinarios contratados (técnicos de campo), en una modalidad
de cogestión, que implicó en los hechos compartir la toma de decisiones
en conjunto entre el MGAP y las organizaciones. Esta modalidad puede
generar tensiones a los técnicos y actores institucionales acerca de las
estrategias a seguir. Por eso resulta importante mantener el vínculo con
estos técnicos de campo, al tiempo de que se necesita fortalecer las capa-
cidades de las organizaciones para la negociación.
4. En lo que hace a la dimensión de pertinencia, se aprecia una mejora en la
comparación con respecto a las situaciones del pasado. Los Sater privados
no presentan grandes diferencias en esa comparación; en la medida que
el control está a cargo de los productores es de suponer que las accio-
nes se relacionan con las necesidades y problemas que los productores
plantean. En los Sater públicos analizados hay mecanismos establecidos
para la participación de la población objetivo mediante delegados repre-
sentantes (Juntas, Directorios y otros), y en el marco de estructuras como
las MDR.
5. La dimensión de efectividad también ha tenido una mejora sustancial
con respecto al pasado, sobre todo en lo que hace a los Sater públicos,
en donde esta operando una reconstrucción con recursos y políticas que
fortalecen el accionar. En los Sater privados, en la medida que existe
disposición a continuar pagando por los servicios, se puede afirmar que
las acciones generan los logros buscados. La dimensión de efectividad se
relaciona positivamente con: i) la identificación de la población objetivo y
su mayor acceso a la información, ii) el grado de articulaciones existentes
entre los diferentes actores, iii) el uso de métodos de trabajo apropiados
(innovadores), iv) la infraestructura disponible (recursos humanos, vehí-
Los Servicios de Asistencia Tecnica y Extension Rural (Sater) en Uruguay 389

culos, oficinas, internet), y v) el empleo de dispositivos de seguimiento


y evaluación. En todas estas variables el país está mejorando, aunque
existe todavía espacio suficiente para continuar en esa direccionalidad.
6. La dimensión de sostenibilidad debe ser evaluada con más atención. El
financiamiento de los Sater públicos, en particular la DGDR, que tiene
especial importancia por los recursos que maneja, depende en buena
medida de los proyectos con financiamiento externo, que son a término.
Esto debilita la sostenibilidad. En lo que hace a la situación contractual del
personal conviven en los Sater varias situaciones de menor a mayor incer-
tidumbre: i) personal estable, pero en general próximo a su edad de retiro,
ii) personal contratado a término en los proyectos, y iii) personal part-time.
7. En definitiva, el análisis en su conjunto evidencia una mejoría notoria por
la acción básica de las políticas públicas (las que alientan el cambio técnico
y las que promueven el desarrollo rural). Las dimensiones consideradas
presentan tendencias positivas a tomar en cuenta, aunque son también
procesos que no necesariamente pueden extrapolarse al futuro dado las
inestabilidades que pueden emerger en la sostenibilidad de los mismos.
8. Tomando en cuenta lo anterior, la proyección de futuro abarca dos esce-
narios. Un escenario que representa un sistema público compuesto
básicamente por el MGAP (Digegra, DGDR) y el IPA, con el apoyo
de la restante institucionalidad ampliada del agro (Inase, Inavi, otros),
coordinando con la investigación, trabajando con la producción familiar
y empresarial, en pos de la inclusión y la innovación. Otro escenario es
el que representa a un sistema privado compuesto de Sater y técnicos
liberales, en una línea más vinculada a la transferencia de tecnología,
que responde a los lineamientos de: a) los productores organizados en
grupos y cooperativas, b) empresas comerciales como ser Barraca Erro, y
c) productores empresariales que se vinculan directamente con técnicos
asesores (en el ejercicio liberal o trabajando en consultoras). La presen-
cia de TIC, y la acreditación estarán presentes en ambos escenarios. El
desafío central es lograr una mayor interacción entre ambos escenarios,
que permita generar sinergias para un mejor funcionamiento a todos
los niveles. El Estado, a través del MGAP, debe cumplir un papel de
coordinador para instrumentar las políticas que sean priorizadas desde
el Gobierno.
390 Pe d r o d e H e g e d u s – F é l i x A n t o n i o F ú s t e r R e b e l l a t o – Pa b l o A r e o s a

REFERENCIAS
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de tecnología en el Uruguay (p. 19-35). In: Sistemas de información e inter-
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Problemas conceptuales y situación. In: HEGEDÜS, P. de (Ed.). Lecturas
de Extensión Rural. Montevideo, Uruguay: Universidad de la República;
Facultad de Agronomía, 1995. p. 14-22. (Código 368/95).
______. Desarrollo Rural: Teorías, enfoques y Problemas Nacionales. Facul-
tad de Agronomía, Departamento de Ciencias Sociales, 2001. 176 p.
EPÍLOGO
O Rural no Século 21

Sílvia Aparecida Zimmermann


Gisele Martins Guimarães
Tatiana Aparecida Balem
Paulo Roberto Cardoso da Silveira

Após abordarmos o rural contemporâneo sob diferentes perspectivas,


buscando identificar os desafios que se colocam para o desenvolvimento
rural no século 21, cabe uma reflexão que exponha algumas questões a
serem objeto de futuros esforços analíticos e de debates pelos diferentes
segmentos da sociedade brasileira.
Ao especularmos sobre o futuro do rural como espaço de análise e campo
social de produção cultural e não apenas de produção de bens e serviços, não
pretendemos antecipar cenários, mas sim apontar elementos elencados nos
textos presentes nesta obra capazes de estimular abordagens que deem conta
das profundas transformações em curso. Tais mudanças nas dimensões tec-
nológica, econômica, social, cultural e ambiental, têm imposto aos agentes
envolvidos nos processos de desenvolvimento rural a criação de novos arranjos
político-institucionais, o que denominamos de “novas institucionalidades”.
Buscou-se demonstrar como as transformações societárias têm impli-
cado em uma nova configuração rural-urbano, na qual se supera as antigas
representações de um rural como espaço distante dos centros de coordena-
ção econômica e política, lugar da produção agrícola subordinada à dinâmica
do sistema agroalimentar. Nesta representação hegemônica durante o século
20, o rural era visto como espaço de carências e ausências. Carências de
infraestrutura e serviços presentes no urbano; ausências de protagonismo
político e da ação das políticas públicas.
392 Sílvia Aparecida Zimmermann – Gisele Martins Guimarães – Tatiana Aparecida Balem – Paulo Roberto Cardoso da Silveira

De outra perspectiva, os diversos textos explicitam que tais carên-


cias e ausências, mesmo que ainda presentes em determinadas regiões, não
mais caracterizam o rural contemporâneo e nem esgotam as pautas de lutas
e reivindicações dos diferentes atores em ação nos processos de desen-
volvimento rural. Evidencia-se um espaço rural com relevância estratégica
na dimensão econômica, apresentando uma diversidade de atividades e
potencialidades de encaixe no cenário global; com relevância política, no
qual diferentes movimentos sociais propõem papéis a serem desempenha-
dos pelo rural, sustentados pela organização de sua população; relevância
na produção de sentidos que ressignificam as expectativas em relação às
funções que o rural pode ocupar no futuro.
Nesse viés, os diversos artigos levantam algumas indagações a serem
aprofundadas pelos estudiosos e agentes de desenvolvimento rural: Qual
identidade assumirá o rural no futuro? Ou serão múltiplas identidades em
convivência em um mundo marcado pela pluralidade? Quais as formas de
sociabilidade que assumirão posição hegemônica em um rural em transfor-
mação? Quais serão as estratégias de reprodução social adotadas pelos dife-
rentes atores sociais em ação no rural? Qual será o peso da ação do Estado
no espaço rural? Quais configurações emergirão como centrais na relação
dos agricultores familiares com a produção e o mercado? Quais institucio-
nalidades se firmarão como estratégicas na definição do cenário futuro para
o rural? Como deve ser reconfigurada a extensão rural e a educação no rural
para enfrentar os desafios postos para as próximas décadas?
Arriscaremos aqui esboçar algumas contribuições para responder
a estas indagações com o cuidado de não pretender sermos taxativos em
nossas afirmações. Trata-se de um processo em constante e intensa trans-
formação, no qual não cabe projetar vias únicas, apenas trajetórias possíveis.
São estas trajetórias que os textos buscaram apontar.
No século 21 certamente o rural apresentará uma intensificação das
relações com a sociedade envolvente, pois as tecnologias de transportes e
comunicação permitirão uma ampliação do alcance das redes sociais, tradu-
zindo-se na troca de costumes, hábitos, tradições e implicando a constituição
de uma heterogeneidade social e cultural. Nesse sentido, o rural deixa de ser
visto como espaço de resistência às inovações e passa a compartilhar com o
urbano as novas possibilidades de sociabilidade que reestruturam os modos
de convivência e os antigos espíritos comunitários.
Epílogo 393

Neste cenário, o território surge como instrumento explicativo das


articulações entre os atores e suas construções sociais, culturais e simbóli-
cas, mas também como ferramenta para se operacionalizar ações e políticas
públicas que pretendam atender o espaço rural em suas conexões com o
espaço urbano (Zimmermann; Kato; Grisa [nesta obra]).
Tais construções implicam novas formas de sociabilidade possibili-
tadas pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) as quais têm
envolvido, especialmente, os jovens que vivem no espaço rural. A possibi-
lidade de interação e interatividade entre os jovens rurais vem proporcio-
nando um movimento de afirmação de suas identidades, ressignificação do
“ethos” camponês e ainda visibilidade da juventude rural como categoria
sociopolítica emergente (Guimarães et al. [nesta obra]).
Tecnologias como o telefone celular e a Internet vêm promovendo
agilidade comunicacional, servindo aos mais amplos propósitos, desde suporte
às atividades produtivas e reprodutivas das famílias rurais, até questões rela-
tivas ao lazer (interação por meio das redes sociais) e à educação. Ressalta-se
ainda a potencialidade destas formas de interação como fator de impulso e
consolidação dos processos organizativos no rural (Redin; Flores [nesta obra]).
Como aponta Froelich ([nesta obra]), o rural do século 21 apresenta-se
múltiplo com uma diversidade de grupos sociais, não apenas agricultores fami-
liares, mas também indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, assen-
tados, entre tantas outras categoriais sociais já reconhecidas, quanto aquelas
por serem descobertas. Ao mesmo tempo, é um rural em que seus atores
reconfiguram seu patrimônio cultural expresso no saber-fazer das famílias e
delimitam seu patrimônio imaterial (Guimarães; Gehlen [nesta obra]).
Seguindo a lógica empregada por estes autores, a origem do alimento
ganha ainda mais sentido no rural do século 21, pois representa o patrimônio
imaterial preservado pela tradição e reconexão entre produção e consumo
(Silva; Deon [nesta obra]). A multiplicidade do rural também reflete o rural
agrícola e não agrícola, de famílias pluriativas e lugar da multifuncionalida-
de, não podendo mais estar delineado por marco- jurídicos de viés produti-
vista (Zimmermann; Quintans [nesta obra]).
O rural setorial que predominou no século passado perderá sentido e
a intersetorialidade será objetivo das políticas públicas para o rural, tendo o
território como unidade de planejamento do rural, a partir de uma perspecti-
394 Sílvia Aparecida Zimmermann – Gisele Martins Guimarães – Tatiana Aparecida Balem – Paulo Roberto Cardoso da Silveira

va multissetorial, que incorpore dimensões sociais, ambientais e econômicas


(Zimmermann; Kato; Grisa [nesta obra]). O repovoamento do rural e sua
reconfiguração por meio dos assentamentos de reforma agrária, deverá resul-
tar em mudanças na realidade local e regional, bem como na trajetória dos
sujeitos, considerando que seus projetos estão em permanente construção
(Sulzbacher [nesta obra]; Hass; Bolter [nesta obra]).
Para que este rural do século 21, entretanto, possa conquistar espaço
político, garantir condições econômica e social de reprodução das famílias
que o habitam, é necessário superarmos desafios, muitos destes citados nos
textos presentes nesta obra.
É necessário, definitivamente, que consigamos romper com a referên-
cia do rural atrasado e do rural estritamente agrícola. Esta discussão está pre-
sente em inúmeras obras acadêmicas (Wanderley; Favareto, 2013;1 Delgado et
al., 2013;2 Wanderley, 2009),3 que exaltam a pluriatividade e o rural como um
modo de vida. Vê-se, entretanto, que embora estas questões venham sendo
discutidas, aprofundadas e, de certa forma, esclarecidas no meio acadêmico,
ao mesmo tempo têm muito ainda que avançar enquanto referencial para as
ações e políticas públicas de desenvolvimento rural, tanto no âmbito educa-
tivo quanto no de assistência técnica (Balem; Silveira [nesta obra]).
Romper com o padrão formativo da modernização, o qual determina
um lugar de atraso para o conhecimento e demandas dos agricultores e seus
modos de reprodução social, implica sairmos da zona de conforto. Para tanto
esta mudança de referencial formativo deverá, em grande medida, se capila-
rizar nas redes públicas de Ensino Médio e Superior, refletindo na formação
de profissionais compromissados com um rural múltiplo e em constante reS-
significação por seus atores (Guimarães; Osório Filho; Teixeira [nesta obra]).

1
Wanderlei, M. N. B.; Favareto, A. A singularidade do rural brasileiro: as implicações
para as tipologias territoriais e a elaboração de políticas públicas. In: Miranda, C.; Silva,
H. Concepções da ruralidade contemporânea: as singularidades brasileiras. Brasília, DF:
IICA, 2013. V. 21. (Série Desenvolvimento Rural Sustentável).
2
Delgado, N. G. Et al. Concepções de ruralidade e políticas públicas na América Latina e
Europa: análise comparativa de países selecionados. In: Miranda, C.; Silva, H. Concepções
da ruralidade contemporânea: as singularidades brasileiras. Brasília, DF: IICA, 2013, p.
149-412. V. 21. (Série Desenvolvimento Rural Sustentável).
3
Wanderley, M. N. B. O mundo rural como um espaço de vida: reflexões sobre a propriedade
da terra, agricultura familiar e ruralidade. Porto Alegre, RS: Editora da UFRGS, 2009.
Epílogo 395

Deve-se ainda considerar as contribuições da “Educação do Campo”


como proposta política e pedagógica para a formação profissional, a qual se
origina no seio dos movimentos sociais que atribuem ao rural um protago-
nismo na criação de novos referenciais para o desenvolvimento rural e a
mudança social (Guedes; Silveira; Flores [nesta obra]).
No rural do século 21 é necessário enfrentarmos a questão ambiental, a
partir da referência do território para o planejamento das cidades (espaço rural
e urbano), numa perspectiva interacionista, não meramente excludente (no
passado o rural era o não urbano). Há que se colocar no mesmo patamar de
relevância social a preservação ambiental e a produção alimentar, visto que,
a partir da perspectiva da soberania alimentar, estas questões não são exclu-
dentes, mas sim complementares (Guedes; Picos; Tommasino [nesta obra]).
É fundamental incorporarmos a noção de soberania alimentar como
estratégia para a construção da autonomia política dos países e dos atores
sociais que compartilham os territórios, os quais, sistematicamente, têm
sofrido impactos do sistema econômico capitalista que organiza o sistema agro-
alimentar mundial, tornando o alimento commodities e os agricultores meros
produtores de mercadorias (Balem; Silveira [nesta obra]; Guedes; Picos; Tom-
masino [nesta obra]5; Silva; Deon [nesta obra]). O resultado é uma lógica de
erosão cultural alimentar que promove a perda de cultura, de saber-fazer, de
receitas, de hábitos e de identidade dos rurais (Balem; Silveira [nesta obra]).
Reconectar agricultores e consumidores implica a construção de um
sistema agroalimentar alternativo, a partir de um regime alimentar enrai-
zado, conectado e entrelaçado, assentado em circuitos curtos, em que os
agricultores familiares são os protagonistas, bem como as demais categoriais
sociais que encontramos no rural múltiplo (Balem; Silveira [nesta obra];
Balem; Silva; Silveira [nesta obra]; Silva; Deon [nesta obra]).
Para atender a noção de soberania alimentar no rural do século 21,
contudo, é necessário romper com as estruturas agrárias enraizadas, que confor-
mam o sistema agroalimentar atual (Mckay; Nehring, 2013, p. 5).4 Para estes

Mckay, Ben; Nehring, Ryan.The “State” of Food Sovereignty in Latin America: Political
4

Projects and Alternative Pathways in Venezuela, Ecuador and Bolivia. Food Sovereignty: a
Critical Dialogue. International Conference Yale University. September 14-15, 2013. Disponível em:
<http://www.yale.edu/agrarianstudies/foodsovereignty/pprs/57_McKay_Nehring_2013.pdf>.
396 Sílvia Aparecida Zimmermann – Gisele Martins Guimarães – Tatiana Aparecida Balem – Paulo Roberto Cardoso da Silveira

autores, é necessário desmantelar as estruturas de poder dominante, de ocupação


dos recursos naturais, mas também enfrentar os discursos e mantras da moder-
nização: é preciso alimentar o mundo, ganhos de eficiência, alta produtividade,
argumentos sempre utilizados para sustentar caminhos para o desenvolvimento
rural, supostamente capazes de, superar a pobreza via métodos tradicionais.
Neste sentido, a reforma agrária torna-se uma necessidade, pois sig-
nifica instituir uma estrutura agrária e produtiva que garanta às populações
locais o controle e o acesso à terra e aos meios de produção, dois princípios
da soberania alimentar. A conquista do acesso à terra, e também à água,
somam-se ao fortalecimento de sistemas de produção menos exigentes em
insumos externos, com ênfase para a produção familiar e para os mercados
locais (Balem; Silveira [nesta obra]). E, substancialmente, da agroecologia
enquanto uma ciência que orienta as práticas produtivas em sua diversidade
e coletividade, superando as técnicas homogeneizadoras do processo de
modernização, as quais ignoram sistematicamente agricultores enquanto
componentes dos agroecossistemas. Implica reconhecer a agricultura para
além do processo produtivo, mas também como um processo cultural que
se constrói ao longo do tempo (Balem; Silveira [nesta obra]).
Diante de tamanhos desafios, parece-nos fundamental ressaltar a
necessidade de estruturação de novas institucionalidades, assentadas no
controle social, de forma a incorporar com maior propriedade as caracterís-
ticas do rural múltiplo e heterogêneo.
As novas institucionalidades são necessárias para garantir que a participa-
ção social possa balizar políticas públicas inovadoras que incluam a diversidade
do rural no planejamento territorial, para que se possa garantir o bem-estar dos
atores sociais que habitam o espaço rural, por meio da inclusão no espectro das
políticas públicas, para garantir uma assistência técnica realizada sob um marco
referencial territorial, sensível às demandas do rural pluriativo, para assegurar
que o estímulo aos sistemas agroalimentares locais e seus protagonistas possam
superar os limites impostos pelo sistema alimentar industrial de caráter global.
Ao final, é necessário reconhecer que existe um longo caminho de con-
quistas a serem trilhadas para garantirmos um novo lugar ao rural do século 21, o
qual exige mudanças em nossos referenciais, marco-jurídicos, políticas públicas
e institucionalidades herdadas do século passado. Esta é a luta a ser empreendi-
da por todos aqueles que acreditam em uma sociedade mais plural e equitativa.
SOBRE OS AUTORES
Aline Weber Sulzbacher
Graduada em Geografia (UFSM), mestre em Extensão Rural
(UFSM), especialista em Agricultura Familiar Camponesa e Educação do
Campo (UFSM). Doutora em Geografia (FCT/Unesp). Professora-adjunta
da UFVJM – Campus JK, Diamantina, MG. sulzba@gmail.com

Ana Cecília Guedes


Engenheira agrônoma (UFSM). Mestre em Extensão Rural (UFSM).
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Agroecossistemas.
aninhaguedes86@hotmail.com

Andréa Miranda Teixeira


Bacharel em Química de Alimentos (UFPel). Mestre em Ciência
e Tecnologia Agroindustrial (UFPel). Doutora em Ciência e Tecnologia
Agroindustrial (UFPel). Professora-assistente da Uergs.
andreateixeira.qa@gmail.com

Benjamin Dias Osorio Filho


Engenheiro agrônomo (UFSM). Mestre em Ciência do Solo
(UFSM). Doutor em Ciência do Solo (UFRGS). Professor-adjunto da Uergs.
benjamin-filho@uergs.edu.br

Cátia Grisa
Engenheira agrônoma (UFPel). Mestre em Desenvolvimento Rural
(UFRGS). Doutora em Ciências Sociais (UFRRJ). Pós-Doutora no Progra-
ma de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (UFRGS). Professora-
-adjunta da UFRGS. catiagrisa@yahoo.com.br

Emiliano Guedes
Formado em Ciências Veterinárias (Udelar Uruguai). Mestrando em
Educação e Extensão Rural (Udelar Uruguai). Assessor em Promoção e
Gestão do Desenvolvimento Territorial (Ministério de Ganadería, Agricul-
tura y Pesca, Uruguai). emilianoguedes@gmail.com
398

Ezequiel Redin
Tecnólogo em Agropecuária: Sistemas de Produção (Uergs). Bacharel
em Administração (Ulbra). Licenciatura Plena para a Educação Profissional
(UFSM). Especialista em Gestão Pública Municipal (UFSM). Especialis-
ta em Tecnologias de Informação e Comunicação Aplicadas à Educação
(UFSM). Mestre e Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Exten-
são Rural (UFSM). ezequielredin@gmail.com

Félix Antonio Fúster Rebellato


Engenheiro agrônomo (Udelar-Uruguai). Mestre em Ciências Agrá-
rias, opção Ciências Sociais (Udelar-Uruguai). Doutorando em Ciências
Sociais Agrárias. Docente integrante do Grupo Disciplinar de Extensão
Rural (Udelar-Uruguai). fuster@fagro.edu.uy

Fernanda Elisa de Oliveira Venturini


Graduada em Tecnologia em Agroindústria (Uergs). Mestre em
Extensão Rural (UFSM). Licenciatura Plena para a Educação Profissional
(UFSM). nanda.agroindustria@gmail.com

Gabriel Picos
Licenciado em Psicologia (Udelar-Uruguai). Mestre em Ciências
Agrárias opção Ciências Sociais (Udelar-Uruguai). Professor-adjunto do
Serviço Central de Extensão. gpicos.uy@gmail.com

Gisele Martins Guimarães (Org.)


Zootecnista (UFSM). Mestre em Extensão Rural (UFSM). Doutora
em Desenvolvimento Rural (UFRGS). Professora-adjunta da UFSM.
giseleguima@yahoo.com.br

Gustavo Pinto da Silva


Zootecnista (UFSM). Mestre em Extensão Rural (UFSM). Dou-
torando em Extensão Rural (UFSM). Professor do Colégio Politécnico
(UFSM). gustavo.pinto@politecnico.ufsm.br

Humberto Tommasino
Formado em Medicina e Tecnologia Veterinária (Udelar-Uruguai).
Mestre em Extensão Rural (UFSM). Doutor em Desenvolvimento e Meio
Ambiente (UFPR). Professor-adjunto Faculdade de Veterinária (Udelar-
-Uruguai). htommasino@gmail.com
Sobre os Autores 399

Ivaldo Gehlen
Bacharel em Ciências Sociais (PUC-RS). Especialista em Educação
de Adultos e Desenvolvimento Rural Integral (Centro Regional de Educação
de Adultos, México). Mestre em Sociologia (UFRGS). Doutor em Sociologia
(Université de Paris X). Professor Associado I da UFRGS. Ivaldo@ufrgs.br

Jairo Alfredo Genz Bolter


Graduado em Desenvolvimento Rural e Gestão Agroindustrial
(Uergs). Mestre em Desenvolvimento (Unijuí). Doutor em Desenvolvimen-
to Rural (UFRGS). Professor-adjunto da UFRGS. jairobolter@gmail.com

Janaína Balk Brandão


Engenheira agrônoma (UFSM). Mestre e doutora em Extensão Rural
(UFSM). Professora-adjunta da Unipampa-Itaqui.
janainabalkbrandao@hotmail.com

Jaqueline Malmann Hass


Graduada em Desenvolvimento Rural e Gestão Agroindustrial
(Uergs). Licenciatura Plena para a Educação Profissional (UFSM). Mestre
e doutora em Extensão Rural (UFSM). Professora-adjunta da UFRGS.
haasjaqueline@gmail.com

José Marcos Froehlich


Engenheiro agrônomo (UFSM). Mestre em Sociologia (UFRGS).
Doutor em Ciências Sociais (UFRRJ). Pós-doutor em Antropologia
Social (Universidad de Sevilla, Espanha). Professor-associado da UFSM.
jmarcos.froehlich@gmail.com

Karina Yoshie Martins Kato


Graduada em Ciências Econômicas (UFRJ) e em Administração e
Marketing (Faculdade da Cidade-RJ). Mestre e doutora em Ciências Sociais
em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (UFRRJ). Pós-doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégia e Desen-
volvimento (UFRJ). Professora-adjunta da UFRJ. anirakato@yahoo.com

Mariana Trotta Dallalana Quintans


Graduada em Ciências Econômicas (UFRJ) e em Administração e
Marketing (Faculdade da Cidade-RJ). Mestre e doutora em Ciências Sociais
em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (UFRRJ). Pós-doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégia e Desen-
volvimento (UFRJ). maritrott@yahoo.com.br
400

Pablo Ariel Areosa


Engenheiro agrônomo. Mestrando em Ciências Agrárias opção Ciên-
cias Sociais (Udelar-Uruguai). Docente do grupo disciplinário de Extensão
Rural (Udelar-Uruguai). areosa.pablo@gmail.com

Paulo Roberto Cardosos da Silveira (Org.)


Zootecnista (UFSM). Mestre em Extensão Rural (UFSM). Doutor
pelo Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas (UFSC). Professor-
-adjunto da UFSM. prcs1064@yahoo.com.br

Paulo Roberto Cecconi Deon


Graduado em Administração de Empresas (Universidade Católica de
Pelotas). Engenheiro agrônomo (UFPel). Mestre em Agronegócios (UFRGS).
Doutorando em Extensão Rural (UFSM). Professor do Instituto Federal Far-
roupilha Campus São Vicente do Sul. paulo.deon@iffarroupilha.edu.br

Pedro de Hegedus
Graduado em Agronomia (Udelar-Uruguai). Mestre e doutor em
Extensão Agrícola (Iowa State University of Science and Technology).
Professor agregado da Udelar-Uruguai. Assessor técnico da Direção Geral
do Ministerio de Ganadería Agricultura Y Pesca. phegedus@adinet.com.uy

Silvia Aparecida Zimmermann (Org.)


Engenheira agrônoma (UFSM). Mestre e doutora em Ciências
Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade (UFRJ). Pós-doutora
pelo Observatório de Políticas Públicas para Agricultura (UFRRJ). Profes-
sora-adjunta da Unila. silvia.zimmermann@unila.edu.br

Tatiana Aparecida Balem (Org.)


Engenheira agrônoma (UFSM). Mestrado em Extensão Rural
(UFSM). Doutoranda em Extensão Rural (UFSM). Professora do Instituto
Federal Farroupilha Campus Júlio de Castilhos. tatianabalem@yahoo.com.br

Vilson Flores dos Santos


Licenciado em Estudos Sociais (Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Santiago). Mestre e doutor em Extensão Rural (UFSM).
vilsonflores@yahoo.com.br

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