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Mistura e mudança
entre homens e mulheres, e que só aparece como figura neste sentido, ainda
que seja, de todo modo, invisível. A ação paterna necessita, contudo, de um
continente feminino para se realizar. O substantivo djeoromitxi para útero,
djiri tekä, pode ser traduzido como “a caixa do bebê”: djiri, substantivo que
designa os bebês até mais ou menos seis meses de idade, sem distinção por
sexo, e tekä (“caixa”), designativo de todo tipo de recipiente: cestos para
o armazenamento de alimentos, cochos e potes para o armazenamento da
bebida fermentada feita de mandioca, garrafas etc. Por sua vez, kä, em sua
forma nominal, designa a casca das árvores e dos frutos, qualquer tipo de
pele e, ainda, a roupa dos Brancos. Creio que sua tradução mais aproximada
para o português seria “invólucro”.
O útero feminino, a caixa do bebê, torna-se recipiente para a substância
masculina: a mulher recebe o sangue/sêmen do homem, nela inserido por
meio da atividade sexual repetida. Se essa relação conteúdo/continente não
for exercida pelo pai e pela mãe da criança, respectivamente, entram em
cena sérios riscos à saúde e ao acabamento (completude) do corpo do bebê,
que só poderão ser observados no momento de seu nascimento – tema, aliás,
bastante recorrente nas etnografias amazônicas.9 O ato feminino de conter
e transformar a substância masculina descreve uma ação tão significativa
(mas não necessariamente substantiva) quanto exercer a função conteúdo,
reservada aos homens durante a gestação. Aliás, durante a gestação, a
mãe precisa observar certos resguardos: não se assustar, não comer alguns
alimentos etc.
Tudo isso pode influenciar na formação da futura aparência do bebê,
mas é o inverso do que é concebido como desejável. Uma mulher que se
assusta com um barulho no mato e olha rapidamente será posteriormente
responsabilizada pelos problemas de visão que seu filho virá a ter. Dos
exemplos que obtive do produto visível posterior à ação feminina durante a
gestação, objetificado na aparência dos filhos, todos eles referiam-se a “resul-
tados” indesejados, calcados em eventos específicos. Ao contrário, em tom
de satisfação, sempre ouvi dizer, de homens e mulheres, que as crianças se
parecem com o pai, porque o “sangue do homem é forte”. A tradução indica
a questão: o substantivo para “sangue” (käi) pode ser traduzido, justamente,
como “pele líquida”, pois é formada por kä, “pele, invólucro” (supra cit.)
adicionada a -i, um classificador nominal para líquido (Castro 2012:61).10
O que é ressaltado durante a gravidez é o trabalho de construção/
constituição dos filhos, objetificado no sangue/esperma que aparece como o
correlato da potência cinegética do marido/pai. É porque ele alimenta a mãe
da criança durante a gestação com carne de caça/peixe, e a insemina em
relações sexuais repetidas, que a criança poderá nascer saudável. Durante a
526 “PEQUENO MANUAL PARA SE CASAR E NÃO MORRER”: O PARENTESCO DJEOROMITXI
fiem do potencial predatório dos espíritos Donos das carnes de caça (Ibzia)
que ingeriram. O fornecimento de leite materno é paulatinamente substituído
pela cerveja fermentada (hibzi, literalmente “nossa água”). Aliás, uma das
cenas mais recorrentes são mães dando de mamar aos seus bebês com uma
cuia de chicha nas mãos. Estas duas substâncias (leite e chicha) introduzem
uma continuidade entre mães e filhos, objetificada no discurso masculino
como sangue do pai da mãe, tal como o sêmen introduz uma continuidade
de sangue entre pais e filhos. Sendo a chicha uma espécie de gozo feminino,
qualquer um que a derramar em si mesmo, sempre por acidente, será alvo
de deboches demasiadamente ofensivos por estar “gozado”.11
Em relação ao processo de constituição da pessoa djeoromitxi que
aqui descrevo, e observando a suplementação da constituição da pessoa a
partir do sangue provindo de seu avô materno, é preciso então distinguir
as “inversões” relativas às substâncias aqui abordadas. Na formação de
uma nova pessoa, temos: a) uma função masculina de conteúdo invisível
na gestação, que se torna aparência externa e visível no pós-parto; b) uma
função continente feminina visível na gestação que se converte em con-
teúdo invisível no pós-parto, por meio da amamentação e do oferecimento
de bebida fermentada, quando então uma continuidade aparece entre Ego
(f/m) e seus parentes maternos (o patrigrupo/subgrupo de sua mãe). Assim,
para a patrifiliação dos casos atuais de “mistura”, de mães e pais de povos
diferentes, a transformação proporcionada pela linguagem das substâncias
e envolvida na fabricação da pessoa é analógica: [Função cdo (homem) :
Função cte (mulher) : : Função cdo (mulher) : Função cte (homem)].
Como se casar
Do wirá que não faz muita parte do parente… de parente já de sangue, por
causa disso, porque o pai das crianças já não pertence muito àquela família,
como é que se diz? A família de que realmente descende. Não tem mais família
sanguínea mesmo, que tem diferença já no sangue. Esse daí que pode ser wirá
da gente. Não pode ser da descendência daquela pessoa, não. A tia às vezes
casa com uma pessoa diferente, que não seja da família sanguínea que fala,
esse pode ser wirá, e daí pode casar, senão não pode casar.
cruzados dos pais (FMBCh; FFZCh; MFZCh; MMBCh). Tendo por base
o fato de que a categoria wirá codifica os cônjuges preferenciais, pode-se
dizer que esta categoria “afiniza” retrospectivamente as posições consan-
guíneas na geração de Ego e nas superiores: os primos cruzados ou os avós
“tornam-se” sogros/as.14
Entre pessoas de sexo oposto, a relação wirá é marcada por uma espécie
de “vergonha” dos possíveis cônjuges ainda crianças. Contudo, entre pes-
soas de mesmo sexo, mas principalmente entre homens, as relações wirá se
manifestam como uma “amizade informal” – através da ajuda mútua e da
extrema pilhéria – desde a infância até a velhice. Sugeri em outra ocasião
(Soares-Pinto 2014) que esse tipo de vínculo entre pessoas de mesmo sexo
pode recair na categorização dos “terceiros incluídos”, figuras da afinidade
potencial (Viveiros de Castro 2002a, mais adiante), pois escapariam à dua-
lidade consanguinidade/afinidade. Em primeiro lugar porque as atitudes
entre homens assim ligados seriam uma hipérbole da ajuda e do respeito que
marcam os consanguíneos. Hipérbole, no entanto, que é apresentada por
meio de piadas que revelam e encenam a animosidade que marca a relação
entre afins. Assim, se diz dos wirá que “parecem que não são parentes”.
Em segundo lugar, porque os wirá de mesmo sexo desempenham em várias
ocasiões as atividades de ajuda mútua típicas entre cônjuges, indo juntos à
roça do outro, um membro do par exercendo as funções femininas quando
a esposa do outro está ausente (carregando macaxeira, descascando e colo-
cando para cozinhar, por exemplo). Nessas ocasiões, a relação (wirá) de
mesmo sexo aparece como um limite inferior daquela (wirá) de sexo oposto.
Quanto ao casamento, o que se dá entre primos de primeira geração,
dizem-me, produz filhos monstruosos: corpos meio humanos, meio animais.
Tudo leva a crer que é preciso uma complementação feminina de no mínimo
uma geração para que a distância (a diferença) necessária possa se instaurar
na produção de parentes ou humanos.
“PEQUENO MANUAL PARA SE CASAR E NÃO MORRER”: O PARENTESCO DJEOROMITXI 531
FMBD MMBD
EGO EGO
EGO EGO
MBSD FZDD
***
não tomará dessa primeira chicha produzida em um novo pilão, pois ele cairá
em estado panema. Este ressecamento das funções produtivas para ambos
sugere existir uma relação antagônica entre consumo imediato e diferido. É
preciso evitar o primeiro, até que sejam capazes de conduzir o segundo, isto
é, produzir para o consumo de outros que, por isso, tornam-se aparentados.
O processo adequado de produção de pessoas está sujeito à duração. Caso
contrário, seus termos estão sujeitos à reversão da relação caça/caçador.
No caso da chicha lava-mãos, os homens adultos devem se abster do
consumo para se manterem como caçadores; no caso da primeira caça aba-
tida por um menino, para prevalecer como caçador, ele deve motivar sua avó
(que pelo cálculo wirá pode ser também uma “sogra”) como consumidora,
não podendo ele ocupar ambas as posições simultaneamente (de produtor
e consumidor). Um jovem menino entregará o produto de suas caçadas
posteriores para a irmã solteira cozinhar, até que os dois se tornem pessoas
casadas e tenham destinos residenciais diferentes. Essa relação de troca
entre irmãos,23 mediada pela caça, está como que transfigurada nos termos
da primeira caçada, dado que seu produto parece então apresentar uma
“função irmã” (Taylor 2001), pois é por meio da circulação de caça (e não
de seu consumo imediato) que um menino pode se exibir posteriormente
como caçador, isto é, marido/ genro.
Notas
6 Para uma análise da “mistura” como descrição do campo social atual, ver
Soares-Pinto (2012, 2014). A etnografia de Gow (1991) é inspiradora no que se refere
também à troca conjugal de caça por cerveja.
9 Ver, por exemplo, a etnografia de Peter Gow (1991) sobre os Piro da Amazônia
peruana, e de Vilaça (2002) sobre os Wari’.
13 Mas isso não indica que a mudança de sexo entre consanguíneos da gera-
ção de Ego e a geração imediatamente descendente não seja significativa. Homens
e mulheres se referirão aos seus filhos com termos distintos: as mulheres contam
“PEQUENO MANUAL PARA SE CASAR E NÃO MORRER”: O PARENTESCO DJEOROMITXI 543
com somente um termo tanto para se referirem ao seu filho como à sua filha: Tä (Ch;
ZCh; HBCh; MZDCh; FBDCh). Os termos para Ego masculino variam de acordo
com o sexo de Alter: Itxi (D; BD; MBD, FBSD; MZSD), “filha”, e Ukü (S; BS; MBS;
FBSS; MZSS), “filho”.
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Resumo Abstract
O objetivo deste artigo é proporcionar This article provides an understanding of
um entendimento da participação das the role of substances in the processes of
substâncias no processo de parentesco kinship as experienced by the Djeoromitxi
experimentado pelos Djeoromitxi (povo (a hunting, fishing and fermented drink-
caçador, pescador e produtor de bebida consuming people from southwest
fermentada, habitantes do sudoeste Amazonia). It focuses on the effects of
amazônico). A investigação focaliza os substances on the constitution of persons
efeitos de substâncias na constituição and their connection to the model of
de pessoas e sua conexão com o marriage alliance, group membership
modelo de aliança de casamento, com o and, conversely, to elaborations of incest
pertencimento grupal e, inversamente, as metaphorized in the unwanted effects
com as elaborações sobre o incesto, of such substances. I elucidate how the
metaforizado nos efeitos indesejados fabrication of people and metamorphosis
dessas substâncias. A contribuição que inscribe themselves in the realm of
busco trazer é o modo como fabricação kinship and propose that this encounter
de pessoas e metamorfose se encontram should be read by way of opposite-sex
no registro do parentesco; proponho relations, especially in conjugality.
que esse encontro é lido de maneira Ke y w o r d s S u b s t a n c e ; K i n s h i p ;
privilegiada por meio de relações de sexo Djeoromitxi; Amazon.
oposto, em especial da conjugalidade.
Palavras-chave: Substância; Parentesco;
Djeoromitxi; Amazônia.
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