A N I C E ES TEV ES A FONSO
Doutora em Geografia pela UFRJ
Professora do Depto. de Geografia da FFP-UERJ
an icea fons o@gmai l .com
RESUMO: ESTE ARTIGO CONTRIBUI PARA A DISCUSSÃO SOBRE COMO A EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA DEVE INCLUIR OS ELEMENTOS FÍSICO-NATURAIS
NAS ANÁLISES ESPACIAIS. SÃO APRESENTADAS ALGUMAS CONCEPÇÕES EM TORNO DO CONCEITO DE NATUREZA A FIM DE SITUAR OS DISCURSOS
DOCENTES EM TORNO DO TEMA, BEM COMO JUSTIFICATIVAS PARA QUE O ENSINO DA GEOGRAFIA FÍSICA VENHA A CONVERGIR COM A EDUCAÇÃO
AMBIENTAL E PARA A PREVENÇÃO DE DESASTRES NATURAIS. A PROPOSTA DE TRABALHOS DE CAMPO AUTÔNOMOS É APRESENTADA COMO
RECURSO PEDAGÓGICO PARA LEVANTAMENTO DE INFORMAÇÕES E APLICAÇÃO DE CONHECIMENTOS RELACIONADOS À GEOGRAFIA FÍSICA NOS
LOCAIS PRÓXIMOS AOS COTIDIANAMENTE PERCORRIDOS PELOS DISCENTES.
PALAVRAS-CHAVE: ENSINO DE GEOGRAFIA FÍSICA; EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA E AMBIENTAL; PREVENÇÃO DE RISCOS NATURAIS
ABSTRACT: THIS ARTICLE CONTRIBUTES ON THE DISCUSSION ABOUT HOW GEOGRAPHICAL EDUCATION SHOULD INCLUDE PHYSICAL AND NATURAL
ELEMENTS IN SPATIAL ANALYSIS. SOME IDEAS ON THE CONCEPT OF NATURE ARE PRESENTED IN ORDER TO SITUATE TEACHERS’ SPEECHES AROUND
THE THEME, AS WELL AS WHY PHYSICAL GEOGRAPHY CLASSES SHOULD CONVERGE WITH ENVIRONMENTAL EDUCATION AND PREVENTION OF NATURAL
DISASTERS. A AUTONOMOUS FIELD WORK IS PRESENTED AS AN EDUCATIONAL RESOURCE FOR GATHERING INFORMATION AND APPLYING KNOWLEDGE
RELATED TO PHYSICAL GEOGRAPHY IN PLACES NEAR TO THE STUDENTS’ DAILY ROUTES.
KEYWORDS: TEACHING OF PHYSICAL GEOGRAPHY; GEOGRAPHICAL AND ENVIRONMENTAL EDUCATION; PREVENTION AGAINST OF NATURAL HAZARDS.
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trução cultural”. Refletir sobre isso é relevante para Natureza, concebendo-a como fonte de recursos
a Geografia escolar, já que tais concepções se para atender interesses humanos (Natureza como
refletem no modo como os elementos da Natureza objeto); e os que consideram a Natureza como algo
são tratados na educação geográfica. sublime, buscando interação radical e mesmo espi-
Ao longo da maior parte da história da ritual com seus elementos (Natureza como sujeito).
humanidade, a luta pela sobrevivência determinou
uma relação de temor e dependência das socie- NATUREZA COMO OBJETO, COMO RECURSO
dades em relação à Natureza. A concepção de
mundo natural “adverso” foi povoando imaginários A visão de Natureza como objeto resulta do
característicos: os “perigos do mar”, os “animais entendimento que seus atributos constituem-se
selvagens”, a “fúria das tempestades” etc fazem como recurso, mercadorias, passíveis de serem
parte de muitos capítulos da saga humana e seus avaliadas como um valor ou bem, tendo em vista as
mitos. O alcance dos impactos das civilizações possibilidades de usá-los em função dos interesses
sobre os espaços naturais cresceu na medida em humanos, podendo ser compreendidos, domados
que o nível tecnológico e científico das sociedades e aproveitados como objetos. Tal é a concepção
evoluiu. Desde o século XVI, a aceleração das trans- de autores que – por vezes até sem se dar conta
formações econômicas e demográficas alteraram disso – usam a expressão “recursos naturais” como
as relações entre sociedades e Natureza. A sinônimos de “elementos da Natureza”. Dentro
expansão colonial e mercantil alterou a distribuição desta concepção, contudo, pode-se distinguir pelo
de biomas e a organização das sociedades nas menos três tendências distintas de concepções de
regiões conquistadas, devastando ecossistemas, Natureza como recurso, submetida à ação humana.
culturas e povos. As revoluções industriais, desde Uma primeira abordagem prevaleceu até o
o século XVIII criaram novos modos de produção, século XVII na Europa Ocidental, associada à racio-
intensificando a retirada de recursos da Natureza e nalidade iluminista, onde a Natureza “selvagem e
a exploração do trabalho. No século XX, o fordismo ameaçadora” deveria ser domada pela civilização,
e o pós-fordismo consolidaram o consumo em cultura e técnica características da modernidade
massa, gerando repercussões tremendas devido na época: a Natureza devia ser conhecida para
à cultura do desperdício. Os avanços científicos ser melhor aproveitada. Esta perspectiva evoluiu
e tecnológicos foram incluindo mecanismos cada para uma ética utilitarista, raiz da concepção de
vez mais poderosos de alteração da Natureza Natureza enquanto recurso: o que não é humano
e de degradação de condições ambientais. As ou social, existe para que humanos e sociedades
consequências da degradação e modificação dos vivam, consumam e prosperem. Venturi (2006)
sistemas climáticos, hidrológicos, geomorfoló- sustenta argumentos que explicitam a concepção
gicos e ecossistêmicos para diferentes segmentos de Natureza enquanto recurso:
da sociedade está na raiz de grande parte das
reações contra o modelo devastador e impactante Recurso natural pode ser definido como
que se consagrou nos últimos séculos. O século qualquer elemento ou aspecto da Natureza
XXI se iniciou, portanto, num embate entre tais que esteja em demanda, seja passível de uso
modelos produtivos ultra predatórios e modelos ou esteja sendo usado pelo Homem como
que valorizam a sustentabilidade ambiental. forma de satisfação de suas necessidades
As concepções de Natureza explicitadas físicas e culturais. (...). Se, por um lado, os
a seguir são fruto de interpretações distintas de recursos naturais ocorrem e distribuem-se no
tais processos. Carvalho (2001) apresenta dife- estrato geográfico segundo uma combinação
rentes paradigmas de visões da Natureza, agru- de processos naturais, por outro a sua
pando-os em dois tipos de racionalidades que apropriação ocorre segundo valores sociais.
se contrapõem: a dos que procuram controlar a (VENTURI, 2006, p. 15-16).
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meio ambiente, bélico e cerceador de direitos civis se compreenda a dinâmica de alguns elementos
(PORTO-GONÇALVES, 2006; Scotto et al. 2007). específicos e como os mesmos são influenciados
O caráter libertário da contracultura gerou movi- e influenciam as sociedades. Nesse sentido, tem
mentos em prol do pacifismo, do feminismo, da havido um significativo crescimento de trabalhos
subjetividade e do ecologismo, propostas radicais sobre a relevância do ensino de conteúdos relacio-
quanto a mudanças de estilo de vida e padrões de nados aos elementos e processos físico-naturais
desenvolvimento. Uma das vertentes mais radicais na Geografia escolar e de como tais conteúdos são
do movimento ecológico – a Deep Ecology ou abordados no Ensino Básico. Essa é uma preocu-
Ecologia Profunda – critica o ecologismo centrado pação minha nas disciplinas em que venho traba-
na perspectiva humana e defende a igualdade entre lhando nos cursos de licenciatura em Geografia
todas as formas de vida (Carvalho, 2001). Nessa do DGEO/FFP/UERJ e no de ensino a Distância
concepção, as necessidades humanas não estão do CEDERJ/UERJ. Trata-se de um esforço rela-
acima das necessidades de outras formas de vida. cionado à explicitação do modo como o conheci-
A Ecologia Profunda defende, ainda, a proteção mento sobre a dinâmica da Natureza pode contri-
ao solo, ar, águas e rochas, reconhecendo esses buir para disseminar mecanismos de interação
elementos como fontes essenciais de energia do mais harmônica e segura com os processos e
planeta, entidades que existiam antes e existirão elementos físico-naturais do espaço, ampliando a
além da existência e dos objetivos humanos. conscientização ambiental (AFONSO, 2015).
Os ecologismos romântico, contracultural e Silva (2004) apresenta uma análise sobre a
profundo criticam os valores das sociedades urba- concepção e a forma de abordagem do conceito
no-industriais modernas, questionando o modelo de Natureza em livros didáticos de Geografia do
de progresso “que desconecta homem-natureza, ensino básico, afirmando que até a década de
mente-corpo e indivíduo-sociedade” (Carvalho, 1970, os conteúdos relacionados aos compo-
2001). Essa crítica alcançou a esfera pública, nentes físico-naturais do espaço eram frequen-
consolidando pressões políticas nas reivindica- temente tratados com forte caráter descritivo e
ções por tornar a Natureza sujeito de direitos. As enumerativo. Ao longo da década de 1980, com a
noções de Ecologia Política e de Justiça Ambiental consolidação da perspectiva crítica em Geografia,
também derivam dessas concepções. Acselrad tornou-se comum apresentar os conteúdos de
(2010) argumenta que o movimento de justiça Geografia Física num contexto onde a Natureza
ambiental, por exemplo, buscou pautar a desigual- era concebida como recurso para os processos
dade social como eixo central de reivindicações produtivos, subordinados, portanto, às ações
ambientais, o que é muito diferente da simples (e intenções) das sociedades humanas, sendo
adoção do discurso ambiental desarticulado do compreendida como uma “segunda Natureza” e
contexto social, econômico e político em que a não uma Natureza em si.
realidade se insere. A partir de meados dos anos 1990, a
temática relacionada às dinâmicas físico-naturais
A NATUREZA NO ENSINO DE GEOGRAFIA passou a ser enquadrada sob o enfoque ambiental.
As preocupações e reivindicações ambientalistas
Os Parâmetros Curriculares Nacionais fizeram-se cada vez mais divulgadas pela mídia de
(BRASIL, 1998) enfatizam que “professores e massas, o que influenciou bastante a escolha de
alunos deverão procurar entender que Sociedade e temas (conteúdos) por parte dos autores de livros
Natureza constituem a base material ou física sobre didáticos. O estudo da dinâmica da atmosfera, das
a qual o espaço geográfico é construído”, propondo águas, dos solos, recursos minerais, oceanos e
assim uma abordagem conjunta de temas rela- formações climatobotânicas colocou-se de modo
cionados à Sociedade e à Natureza na Geografia mais contundente nos livros de Geografia da
escolar. Essa interação necessita, no entanto, que Educação Básica, com viés de discutir a degra-
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dação da Natureza como resultado do processo e valores em relação à Natureza, mas para isso
produtivo e de consumo. A educação geográfica é importante compreender que os impactos
passou a dar ênfase na temática da dinâmica da ambientais e os riscos associados a eventos
“Natureza transformada” e suas relações com as naturais extremos são também questões sociais.
sociedades, o que acabou por estimular algum As interações entre Sociedade e Natureza são
nível de conscientização ambiental. No entanto, a pautadas parcialmente pelo conhecimento cientí-
abordagem ambiental em geral simplifica a análise fico, mas também por outros conjuntos de valores
da dinâmica dos elementos da Natureza, o que e influências tão ou mais decisivos, tais como as
prejudica o entendimento das interações entre pressões econômicas, os valores culturais, sociais,
esses elementos e a ação humana. Conhecer éticos e ideológicos e as questões políticas. Tais
superficialmente os processos físico-naturais do questões devem permear o tratamento dos temas
espaço geográfico pode contribuir para o compor- de Geografia Física nas escolas básicas.
tamento inadequado da população no que se refere A inclusão da Educação Ambiental e a
à ocupação da superfície terrestre, uso e gerencia- ampliação da difusão de medidas preventivas
mento das águas, rochas, formas de relevo, solos contra desastres naturais levaram à criação de
e biomas. um dispositivo jurídico prevendo tais temas na
A crescente divulgação das perdas Educação brasileira. A Lei Federal 9.394/1996 de
humanas e materiais provocadas por eventos Diretrizes e Bases da Educação Nacional2, em seu
naturais extremos pode ter efeito sobre a produção capítulo II, artigo 26, parágrafo 7o dispõe que: “§
de materiais didáticos e paradidáticos. Eventos 7o Os currículos do ensino fundamental e médio
como os tsunamis na Ásia (Indonésia em 2005, devem incluir os princípios da proteção e defesa
Japão em 2011), o furacão Katrina (sul dos EUA, civil e a educação ambiental de forma integrada
2005), a erupção do vulcão Eyjafjallajökull (Islândia, aos conteúdos obrigatórios.”
2010), as nevascas paralisando partes do Canadá Partindo do pressuposto que a referida
e dos EUA (2014 e 2015) e, no Brasil, as enchentes disposição jurídica sobre o Ensino Básico é
e deslizamentos provocados pelas chuvas no leste adequada, justa e necessária, cabe refletir sobre
de Santa Catarina (2008), nas regiões Metropo- o caráter deste tipo de diretriz educacional, bem
litana (2010, 2016) e Serrana (2011) do Rio de como propor mecanismos que venham a convergir
Janeiro, a estiagem no Sudeste e Nordeste do país com o seu cumprimento. As leis complementares
em 2015. entre outros, podem dar impulso à busca sobre a educação ambiental (lei federal 9.795/1999
por informações mais precisas sobre a dinâmica da – sobre a educação ambiental e que institui a
Natureza. A mitigação das perdas provocadas por Política Nacional de Educação Ambiental) e sobre
eventos naturais extremos exige que se conheça a inclusão nos currículos escolares de noções de
bem os processos naturais a fim de maximizar os vulnerabilidade e riscos provocados por eventos
benefícios, minimizar os impactos e/ou reduzir naturais extremos (Lei 12.608/2012 – do Sistema
os riscos de uma interação inadequada entre Nacional de Defesa e Proteção Civil contra
Sociedade e Natureza. Quando essas precauções Desastres Naturais) são, portanto, bases impor-
não são tomadas – seja por desconhecimento da tantes para justificar que o ensino dos conteúdos
dinâmica dos elementos físico-naturais, seja por relacionados à dinâmica físico-natural do espaço
falta de recursos econômicos ou por negligência geográfico seja adequadamente realizado.
política –, as sociedades ficam mais vulneráveis à A aplicação de conhecimentos relativos
força de eventos naturais extremos. Tais questões à dinâmica da Natureza – regimes meteoroló-
explicam as crescentes demandas sociais e gicos, dinâmica de tempestades, regimes fluviais,
políticas em relação à necessidade de ampliar os processos erosivos e deposicionais em ambientes
conhecimentos sobre a dinâmica da Natureza. continentais e costeiros, processos eólicos, tecto-
É fundamental construir novas atitudes nismo, vulcanismo, abalos sísmicos etc – na vida
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cotidiana têm profunda relação com oportunidades (...) que deve-se ensinar a Geografia
e/ou restrições que podem influenciar a vida de Física a partir do conceito de lugar como
alunos e professores. Tal compreensão pode ser espaço próximo, espaço vivido e como
um estímulo à adoção de atitudes e hábitos ambien- espaço de expressão das relações
talmente desejáveis e mais seguros, convergindo, horizontais (relações da comunidade com
portanto, com a Política Nacional de Educação seu meio) e espaço de relações verticais
Ambiental e com o Sistema Nacional de Defesa (relações sociais mais amplas determinando
e Proteção Civil contra Desastres Naturais. A em parte a especificidade dos lugares).
observação e análise dos processos físico-naturais (Suertegaray et al., 2000)
possibilitam a prevenção de riscos de desastres
naturais, contribuindo para evitar perdas humanas Nas aulas sobre os temas relacionados à
e materiais, estimulando ações sociais mais cons- dinâmica da Natureza pode-se buscar conexões
cientes e fortalecendo posturas mais críticas em com elementos próximos à realidade dos educandos
relação ao processo de expansão urbana (AFONSO a fim de que eles confrontem teoria e realidade,
et al., 2012; AFONSO, 2012). A análise sistêmica num processo de produção e aplicação de conhe-
de paisagens pode ser utilizada na detecção de cimento. O levantamento e estudo de problemas
situações de vulnerabilidade e risco, permitindo socioambientais locais favorecem a produção de
a identificação de situações onde a dinâmica da conhecimentos articulados, singulares e originais.
natureza pode não ser controlada, estar instável Ao partir do lugar (espaço conhecido e vivido pelos
ou degradada. Ao nível da prática docente em alunos e professores) como espaço privilegiado
Geografia, tenho procurado desenvolver procedi- para a educação geográfica, surgem novas possi-
mentos e práticas pedagógicas com vistas a sensi- bilidades para a concepção de currículo escolar,
bilizar os alunos para a importância do ensino de com base na articulação de experiências locais e
Geografia Física de modo integrado aos demais conteúdos escolares. “(…) o LUGAR se configura,
subcampos geográficos. O viés ambiental e aquele ao mesmo tempo, como objeto de estudo, de
voltado para os riscos naturais têm se mostrado problematização e investigação escolar, bem como
eficazes no sentido de integrar conhecimentos de síntese, espaço promotor e possibilitador da
para a análise geográfica do espaço, valorizando produção de novos saberes e novas posturas”
os conhecimentos específicos da Geografia Física. (SANTOS, 2011, p.29).
Os estudos das características ambientais
SENSIBILIZANDO DISCENTES PARA AS RELAÇÕES (envolvendo aspectos naturais e sociais do espaço)
SOCIEDADE E NATUREZA nas proximidades das localidades de ação profis-
sional dos docentes em Geografia devem prever a
Acredito que o ensino da Geografia deve diversidade espacial. As particularidades e especi-
conter em si a reflexão constante sobre o ambiente ficidades locais em geral têm relação com temas
vivido, prevendo a construção da cidadania. Assim, curriculares mais abrangentes, o que permite a
este trabalho busca contribuir para o ensino da contextualização das situações em relações a
Geografia, para o entendimento mais crítico do quadros teóricos gerais. Para efeito de exempli-
espaço, das sociedades e do ambiente, reconhe- ficação, observar a ocupação das encostas, a
cendo e compreendendo o papel dos elementos poluição atmosférica e/ou das águas ou áreas de
e da dinâmica da Natureza nas análises geográ- risco nas áreas próximas às escolas, permite inter-
ficas. Cabe destacar que nos níveis mais básicos pretar situações específicas a partir de quadros
do ensino, os professores de Geografia devem teóricos mais gerais, estimulando a capacidade
buscar a compreensão do ambiente dos alunos – crítica, argumentativa e a possibilidade de ação
“do lugar”. Suertegaray e colaboradores propõem ... social dos educandos e educadores (ARMOND,
2009).
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Conhecer a dinâmica do espaço físico nas levantamento de situações diversas para fins de
áreas frequentadas cotidianamente pelos alunos comparação, devendo nesse caso ser precedida
deve ser, portanto, uma prioridade na Geografia de uma detalhada orientação quanto aos parâme-
escolar. A análise mais aprofundada dos processos tros a serem analisados por grupos diferentes de
físico-naturais poderia levar ao desenvolvimento de alunos a fim de posteriormente comparar os resul-
posturas mais cautelosas em relação à ocupação tados obtidos. Os trabalhos de campo autônomos
(de encostas, planícies de inundação, áreas podem ser sugeridos para alunos de diversos níveis
costeiras etc) e à interação com os elementos da de escolaridade, sendo óbvio que dependendo da
Natureza (chuvas, movimentos de massa, enxur- idade, local a ser percorrido e maturidade cognitiva
radas, enchentes, estiagens, vendavais, ressacas, dos alunos há que se ter cuidados especiais que
relâmpagos etc) tanto em áreas urbanas como resguardem sua segurança e bem-estar.
rurais, especialmente em áreas onde a descaracte- De modo geral, os trabalhos de campo
rização do meio físico leva a um “desaparecimento” autônomos estão associados às seguintes ativi-
dos elementos da Natureza: redes de drenagem dades:
subterrâneas, retilinizadas e canalizadas (CUNHA,
a. levantamento de informações bibliográ-
2008; VIEIRA & CUNHA, 2001), solos impermea-
ficas, análise e debate de temas relacio-
bilizados, encostas recobertas por edificações etc.
nados à dinâmica de elementos físico-na-
Os trabalhos de campo (também designados
turais (encostas, drenagem urbana, litorais,
como estudos de meio ou excursões escolares)
padrões de relevo e de ocupação do solo
constituem prática pedagógica importante da
etc) e sobre conceitos fundamentais em
educação geográfica uma vez que possibilitam a
Geografia Física (como estabilidade, equi-
observação direta, in loco, de certos fenômenos,
líbrio, ajuste, análise sistêmica e resiliência);
aguçando, portanto, a percepção espacial dos
alunos (CAVALCANTI, 2005; PONTUSCHKA, et b. escolha de área para levantamento de
al., 2007; SOUZA, 2011). Tal atividade possibilita situações de interesse geológico ou
operações cognitivas complexas (como analogias, geomorfológico conforme interesse dos
inferências, associações, deduções, correlações alunos, em geral em municípios da Região
espaço-temporais etc), favoráveis à aprendizagem Metropolitana do Rio de Janeiro (e, eventu-
dos alunos e ao próprio raciocínio geográfico. almente de outras regiões do estado, espe-
Compiani & Carneiro (1993) tecem considera- cialmente Região Serrana, Costa Verde e
ções sobre diferentes tipos de trabalho de campo Região dos Lagos), em locais próximos às
segundo sua finalidade didática. Scortegagna, & suas áreas de estudo ou moradia a fim de
Negrão (2005) propõem os trabalhos de campo estabelecer o estudo na escala do local,
autônomos, cujo objetivo é estimular a autonomia do espaço vivido (supostamente melhor
investigativa e analítica aos discentes, devendo conhecido);
ser feitos sem a presença do professor, preferen-
c. levantamento e análise de bases carto-
cialmente em locais conhecidos e/ou próximos de
gráficas – imagens satélites obtidas pelo
onde os alunos moram ou estudam. Aos profes-
software gratuito Google EarthTM, por
sores, cabe orientá-los na investigação geográ-
exemplo – localizando nelas os pontos mais
fica a fim de que possam aprender a construir o
críticos no que se refere a riscos geomor-
conhecimento através de observações diretas e
fológicos e identificando fatores naturais e
experiências práticas. É importante sugerir fontes
antrópicos associados ao risco específico
bibliográficas e cartográficas, roteiros de obser-
local;
vação, guias de entrevistas, procedimentos de
registro e mensuração, dependendo do caso. d. estabelecimento do roteiro prévio, com
Esse tipo de atividade pode ser sugerida para o identificação de transporte, logradouros
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de referência, ruas e vias de acesso, bem produção das áreas percorridas. “Novos olhares”
como previsão de recursos materiais para surgiram em diversos casos, contribuindo, para
realização do mesmo; mudanças de perspectivas e de paradigmas
atitudinais e comportamentais dos próprios licen-
e. ida às áreas selecionadas, identificação,
ciandos. É comum haver observações semelhantes
avaliação e mapeamento das situações de
em várias das áreas estudadas, o que evidencia
maior interesse e/ou mais críticas, registro
o caráter particular (comum a diversos bairros e
fotográfico ou em vídeo, entrevistas com
municípios) de problemas específicos (casos indi-
a população local a fim de avaliar sua
viduais) em relação a situações gerais (associadas
relação com os elementos físico-naturais
aos processos físico-ambientais dos elementos da
(drenagem, encostas, solos, vegetação etc,
Natureza). E aí que o conceito de escala se concre-
levantamento dos padrões de ocupação e
tiza para muitos desses alunos, não no sentido
de infraestrutura;
meramente cartográfico ou técnico, mas como
f. organização das observações de campo e ferramenta analítica da recorrência dos processos
preparação de sínteses para apresentação espaciais.
de seminários de grupo, com adequação As experiências realizadas na licenciatura
das informações para Ensino Básico ou do DGEO/FFP/UERJ (presencial) e no CEDERJ/
Superior. UERJ (ensino a distância) tiveram o intuito de
articular conteúdos teóricos mais diretamente
No que concerne à sensibilização e apren- relacionados a formas e processos geomorfoló-
dizagem relativas à dinâmica dos elementos físi- gicos – conceitos teóricos, métodos de investi-
co-ambientais, tenho estimulado a realização de gação e de análise. A experiência prática adquirida
trabalhos de campo autônomos entre turmas de em pesquisas e trabalhos de campo autônomos
licenciandos (DGEO/FFP/UERJ e CEDERJ/UERJ). e levantamentos sobre áreas urbanizadas vulne-
As atividades buscam ampliar a percepção dos ráveis a desastres naturais vem sensibilizando os
próprios licenciandos em relação à dinâmica de futuros professores a efetivamente inserir e articular
elementos físico-naturais em áreas urbanizadas a dinâmica de Natureza às questões sociais,
bem como ampliar sua percepção em relação à econômicas e políticas no ensino da Geografia
noção de risco natural, o que pode ser feito até escolar. Na avaliação geral dos licenciandos, os
mesmo em roteiros cotidianos, como o percurso trabalhos contribuíram para sensibilizá-los para as
entre a residência e o local de estudo ou trabalho complexas relações entre elementos da Natureza,
dos alunos. Os relatos das observações devem gestão do espaço urbano e responsabilidade
ser posteriormente apresentados e os resultados socioambiental. O conhecimento dos mecanismos
debatidos, buscando a integração dos conteúdos responsáveis pela dinâmica dos elementos físico-
a temas da Geografia escolar, com ênfase na -naturais permite uma análise mais crítica quanto
Educação Ambiental e na prevenção de riscos aos processos de ocupação desordenada e, em
naturais. geral, uma postura mais cautelosa em relação aos
As tarefas descritas acima não envolvem processos dos elementos da Natureza.
aptidões, recursos ou habilidades excessivamente
complexas ou grandes despesas para sua reali- CONSIDERAÇÕES FINAIS
zação. Mesmo assim, diversos trabalhos realizados
nos últimos anos foram capazes de estimular A educação geográfica deve incluir adequa-
novos olhares sobre espaços conhecidos e coti- damente a temática relacionada à dinâmica dos
dianamente percorridos, substituindo um olhar elementos da Natureza nas análises espaciais.
naturalizado e não crítico por uma compreensão As bases teóricas, conceituais e metodológicas
ampliada dos fatores e processos envolvidos na relacionadas à Geografia Física contribuem para
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em torno do conceito de Natureza contribui para 2 O texto completo da lei federal 9.394/1996 que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional está disponível em www.
compreender suas interações com a Sociedade.
planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9394.htm
Conhecer os elementos e processos da dinâmica da
Natureza contribui, ainda, para o desenvolvimento
cognitivo dos discentes, ampliando sua capaci-
dade de compreender e analisar os processos
espaciais, bem como estimula sua curiosidade
e amplia suas possibilidades e perspectivas de
inserção na realidade.
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