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Ficha Catalográfica elaborada por Morena Porto CRB 14/1516

Rebeca - Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual / Sociedade Brasileira de


Estudos de Cinema e Audiovisual – Socine. – Vol. 5, no. 2 (Jul. /Dez. 2016) -

ISSN: 2316-9230

1. Comunicação 2. Cinema 3. Documentário 4. Cinema brasileiro 5. Cinema africano 6.


Audiovisual

A Rebeca - revista brasileira de estudos de cinema e audiovisual,


editada pela Socine, publica artigos, entrevistas, resenhas e trabalhos criativos
inéditos de doutores e doutorandos nas áreas de cinema e audiovisual.

A Rebeca é uma revista acadêmica com periodicidade semestral

Site
http://rebeca.socine.org.br

E-mail
rebeca@socine.org.br

Período
Julho | Dezembro de 2016

Projeto gráfico
Pedro Neto e Débora Rossetto sobre modelo de Paula Paschoalick

Secretaria
Débora Rossetto

Revisão
Juliene Marques (português) e Maria Isabel de Castro Lima (espanhol)

ISSN
2316-9230

SOCINE
Diretoria
Cezar Migliorin (UFF) – Presidente
Alessandra Soares Brandão (UFSC) – Vice-Presidente
Suzana Reck Miranda (UFSCar) – Tesoureira
Roberta Veiga (UFMG) – Secretária Acadêmica

Conselho Deliberativo
Andréa França Martins (PUC-Rio)
Cristian da Silva Borges (USP)
Denize Correa Araujo (UTP)
Esther Hamburger (USP)
Fábio Raddi Uchôa (UTP)
Gabriela Machado Ramos de Almeida (ULBRA)
Gelson Santana Penha (UAM)
Gilberto Alexandre Sobrinho (UNICAMP)
José Gatti (UFSC)
Luiz Antônio Vadico (UAM)
Luiz Augusto Rezende (UFRJ)
Osmar Gonçalvez (UFC)
Patrícia Rebello da Silva (UERJ)
Pedro Maciel Guimarães Junior (UNICAMP)
Rafael de Luna Freire (UFF)
Isaac Pipano (UFF) - discente
Sancler Ebert (UFSCar) - discente

Conselho Fiscal
Claudia Cardoso Mesquita (UFMG)
Maurício Reinaldo Gonçalves (SENAC)
Ramayana Lira de Sousa (UNISUL)

Comitê Cientíico
Afrânio Catani (USP)
Beatriz Furtado (UFC)
Bernadette Lyra (UAM)
Consuelo Lins (UFRJ)
João Guilherme Barone (PUC-RS)
Tunico Amâncio (UFF)

Secretária
Débora Rossetto

REBECA

Editora-Chefe
Alessandra Soares Brandão

Secretária Executiva
Débora Rossetto

Conselho Editorial
Afrânio Mendes Catani
Ana Isabel Soares
Bernadette Lyra
Catherine L. Benamou
Cecilia Sayad
Randal Johnson
Rosana Soares

Conselho Consultivo
Anna McCarthy
Arthur Autram F. de Sá Neto
Carlos Roberto de Souza
Consuelo Lins
Ella Shohat
Fernão Pessoa Ramos
Ismail Xavier
Lauro Zavala
Lúcia Nagib
María De La Cruz Castro Ricalde
Oliver Fahle
Robert Burgoyne
Robert Stam
Stephanie Dennison
Susana de Sousa Dias
Tamara Falicov

Sumário
10 Editorial

Apresentação do Dossiê

14 As africanidades e suas asperezas


Amaranta Cesar e Lúcia Ramos Monteiro

Dossiê – Africanidades

30 Cosmopoéticas da descolonização e do comum: inversão do olhar, retorno às


origens e formas de relação com a terra nos cinemas africanos
Marcelo R. S. Ribeiro
56 Guiné-Bissau: do cinema de Estado ao cinema fora do Estado
Paulo Cunha e Catarina Laranjeiro
79 Cinema de Moçambique no pós-independência: uma trajetória
José de Sousa Miguel Lopes
109 Análise do documentário A Batalha de Adwa de Haile Gerima entre memória
coletiva e símbolos nacionais etíopes
Marina Annie Berthet
129 Cindir a cena, partilhar o cinema: sobre Bamako, de Abderrahmane Sissako
Roberta Oliveira Veiga
152 “Eu não quero ter um mundo de uma cor só”: trajetória, autoria e estilo nos filmes
do cineasta Flora Gomes
Jusciele Conceição Almeida de Oliveira
181 Sobre a colonialidade do pensamento em imagens e a reinvenção da negritude no
Fespaco: maior festival de cinema africano
Maíra Zenun de Oliveira

Temáticas Livres

214 Filme-desvio: do planejamento às contradições


Tatiana Hora Alves de Lima
237 “Tercer Cine Cordobés”: Formas de la representación del otro
Ximena Triquell
255 La dimensión fractal del teatro en el cine argentino contemporáneo: formas que
se asemejan en diferentes escalas
Carolina Soria
280 Da Portela para a Mangueira: um passeio pela mediação nos documentários O
mistério do samba e O samba que mora em mim
Guilherme Carréra Campos Leal

Entrevista

304 “Precisamos vestirmo-nos com a luz negra”: entrevista com Florentino Flora
Gomes
Jusciele Conceição Almeida de Oliveira

Resenhas e Traduções

321 A mobilidade enraizada: contradições do cinema africano


Dudley Andrew, traduzido por Moema Franca
339 Cinema africano: perturbando a ordem (cinemática mundial)
Kenneth W. Harrow, traduzido por Lúcia Ramos Monteiro
368 Fluxo: para a compreensão da programação televisiva
Resenha de “Televisão: tecnologia e forma cultural”, de Raymond Williams
Gilberto Alexandre Sobrinho

Fora de Quadro

377 Antigas salas de cinema de Moçambique: um breve panorama de vestígios do


passado e condições atuais
Chico Carneiro

Contents
10 Editorial

Special Section Presentation

14 Scratchy Africanities
Amaranta Cesar e Lúcia Ramos Monteiro

Special Section – Africanities

30 Cosmopoetics of decolonization, cosmopoetics of the common: inversion of the


gaze, return to origins and forms of relation to the land in african cinemas
Marcelo R. S. Ribeiro
56 Guinea-Bissau: from the state supported cinema to the cinema outside of the
state
Paulo Cunha and Catarina Laranjeiro
79 Mozambique film post-independence: a history
José de Sousa Miguel Lopes
109 Analysis of the documentary The Battle of Adwa, held by Haile Gerima: between
collective memory and national ethiopian symbols
Marina Annie Berthet and Carlos Reyna
129 Splitting the scene, distributing the cinema: about Bamako, by Abderrahmane
Sissako
Roberta Oliveira Veiga
152 "I do not want to have a world of one color": trajectory, authorship and style in the
films of the filmmaker Flora Gomes
Jusciele Conceição Almeida de Oliveira
181 About the coloniality of the thought in images and the reinvention of the negritude
in the FESPACO: the major African festival cinema
Maíra Zenun de Oliveira

General articles

214 Détournement-movie: from planning to contradictions


Tatiana Hora Alves de Lima
237 “Third Cinema from Córdoba”: Ways of representing otherness
Ximena Triquell
255 The fractal dimension of theater in contemporary Argentine cinema: Forms that
resemble in different scales
Carolina Soria
280 From Portela to Mangueira: a film analysis on mediation in documentaries O
mistério do samba and O samba que mora em mim
Guilherme Carréra Campos Leal

Interview

304 “We need to dress ourselves with the black light”: interview with Florentino Flora
Gomes
Jusciele Conceição Almeida de Oliveira

Reviews and translations

321 Rooted mobility: contradictions in african cinema


Dudley Andrew, translated by Moema Franca
339 African cinema: troubling the (cinematic world) order
Kenneth W. Harrow, translated by Lúcia Ramos Monteiro
368 Flow: understanding television programming
Review of “Televisão: tecnologia e forma cultural”, by Raymond Williams
Gilberto Alexandre Sobrinho

Out of frame

377 Old movie theatres in Mozambique: traces of the past and present conditions
Chico Carneiro

Editorial

Com a publicação de sua décima edição (jul./dez de 2016), a Rebeca -


Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual - completa cinco anos
de contribuições para a divulgação, em livre acesso, de pesquisas em cinema e
audiovisual realizadas no Brasil e em âmbito internacional. O número 10, que
comemora esse ciclo maior, também encerra um primeiro ano em que a revista
opera no sistema Open Journal System (OJS), e plataforma SEER, adequando-se
a um formato de editoração condizente com outros periódicos acadêmicos de
referência, além de estar em consonância com critérios técnicos sugeridos pela
Capes e que são fundamentais para o processo de indexação da revista. Nesse
sentido, adotamos, com a infraestrutura da agência de registro internacional
CrossRef, o DOI (Digital Object Identifier), sistema de identificação necessário para
a indexação, que assegura a propriedade intelectual de cada artigo publicado no
formato digital da plataforma, e promove maior segurança e facilidade na
circulação dos conteúdos para fins de citação. Com isso, passamos a compor a
base de dados do sistema Latindex e demos início ao processo, com outras

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fontes e repositórios, tais como MLA, Redalyc e Diadorim. O ano de 2016 também
fica marcado por uma nova política editorial para a Rebeca, mobilizando novos
editores para a seção Dossiê Temático a cada número publicado, de acordo com
sua disponibilidade e afinidade de trabalho com a temática sugerida. Do mesmo
modo, buscamos uma maior sintonia entre as diversas seções da revista, de
maneira que o tema do dossiê também norteasse as contribuições em forma de
Tradução e Entrevista, sem necessariamente abrirmos mão de outras
colaborações não vinculadas à temática. A Rebeca 9, por exemplo, teve o dossiê
O som no audiovisual editado por Fernando Moraes (UFF) e Rodrigo Carreiro
(UFPE), em forte articulação com a tradução de texto inédito da pesquisadora
Nessa Johnston (Universidade de Edge Hill, Inglaterra) sobre o som no
mumblecore, bem como uma importante entrevista com Claudia Gorbman
(Universidade de Tacoma, EUA), a primeira concedida a um periódico brasileiro e
de valiosa relação com o tema do dossiê, o que muito contribuiu para a

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construção de um número consistente da Rebeca no debate sobre os aspectos


teóricos e estéticos do som no audiovisual. Na edição que encerra 2016, o Dossiê
Temático Africanidades foi organizado por Amaranta César (UFRB) e Lúcia
Ramos Monteiro (ECA/USP), que abraçaram a delicada tarefa de assumir essa
colaboração de temática tão relevante também como um gesto de homenagem
póstuma à trajetória acadêmica de Mahomed Bamba (1967-2015), colega de
profissão docente (UFBA), membro da SOCINE, e pesquisador de cinemas
africanos. A apresentação do dossiê temático - por Amaranta César e Lúcia
Monteiro - antecede os artigos elencados para a seção. Aos editores deste
periódico, agradecemos imensamente pela cessão dos direitos para a publicação
do texto em português. À temática do dossiê, alinha-se a Entrevista com o
cineasta guineense Florentino Flora Gomes, realizada especialmente para esta
edição por Jusciele Conceição de Oliveira, pesquisadora brasileira dos cinemas
africanos na Universidade do Algarve, em Portugal. Outras importantes
contribuições que se articulam com a temática do dossiê são as excelentes
traduções de textos de Dudley Andrew e Kenneth W. Arrow, realizadas por

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Moema Franca e Lúcia Monteiro, respectivamente. De uma maneira geral, que
será mais detalhada pelas organizadoras na apresentação do dossiê, podemos
dizer que o artigo de Andrew busca, a partir de um conjunto de filmes africanos de
contextos distintos, mapear um modo de acessar uma ‘identidade africana’, ao
mesmo tempo que reconhece as forças contraditórias da "mobilidade enraizada”
das produções audiovisuais do continente, enquanto Arrow coloca a problemática
dos cinemas africanos no cerne do debate sobre os cinemas mundiais, com seu
"Cinema africano: perturbando a ordem (cinemática mundial)”. Ainda em
Traduções e Resenhas, Gilberto Sobrinho contribui com o texto “Fluxo: para a
compreensão da programação televisiva”, em que resenha a recente publicação
no Brasil da obra clássica de Raymond Williams traduzida como Televisão: a
precursora da era digital. Na seção Temáticas Livres, Tatiana Hora de Lima
oferece uma perspectiva política do filme Brasília, contradição de uma cidade nova
(1964), de Joaquim Pedro de Andrade, a partir do conceito de 'filme-desvio', que

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estabelece no cotejo com o curta-metragem Brasília, planejamento urbano (1964),


de Fernando Coni Campos. Para além de uma relação intertextual de citação, a
autora percebe um jogo dialético entre as imagens dos filmes, oferencendo uma
análise que reorganiza os modos de olhar e pensar a força histórica da cidade,
assumindo o passado como devir. Em “Tercer Cine Cordobés”: formas de la
representación del otro”, Ximena Triquell continua em perspectiva política,
recuperando o conceito de ‘Tercer Cine’, desenvolvido por Fernando Solanas e
Octavio Getino em meados do século XX, para pensar a produção audiovisual de
Córdoba na contemporaneidade. Uma outra contribuição sobre o audiovisual
latino-americano é "La dimensión fractal del teatro en el cine argentino
contemporáneo: formas que se asemejan en diferentes escalas”, escrito por

Carolina Soria. O artigo parte de uma discussão sobre o chamado “teatro de


desintegração”, traçando uma relação entre o texto dramático e a forma
audiovisual contemporânea do cinema argentino, que a autora identifica pelo
aspecto 'fractal' de sua organização, analisando mais detidamente o filme Viola
(2012), de Matias Piñeiro. No artigo que fecha esta seção, “Da Portela para a

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Mangueira: um passeio pela mediação nos documentários O mistério do samba e
O samba que mora em mim”, Guilherme Carréra Campos Leal discorre sobre o
samba no documentário brasileiro. Com foco nos dois filmes que compõem o
título de seu artigo, o autor procura investigar a relação entre quem filma e quem é
filmado, mapeando as fricções temporais da mediação, os elos entre passado e
presente que reverberam, com a música e o cinema, no jogo de filmar e ser
filmado. Finalizando esse número, a seção Fora de Quadro apresenta uma breve
documentação fotográfica sobre o estado atual de antigas salas de cinema de
Moçambique, sob o olhar do realizador e fotógrafo Chico Carneiro, que nos
mostra a degradação e o abandono desses cinemas. O registro de Carneiro
captura as fachadas dos prédios antigos já desativados, dando-nos um panorama
da situação atual das salas, ao mesmo tempo que sua câmera encontra novas
configurações de salas e modos alternativos de exibição que vão se
estabelecendo no país. O número 10 da Rebeca, portanto, fecha o ano de 2016

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com o desafio de abordar a temática - ou seria a problemática? - das


africanidades, mapeando os movimentos estéticos dos cinemas africanos e das
diásporas africanas, das heranças e políticas que mobilizam suas
(re)configurações na contemporaneidade. Assim, essa edição se faz também
como um gesto de reconhecimento e homenagem ao saudoso colega Mahomed
Bamba, um dos grandes responsáveis pela difusão e pesquisa dessas
cinematografias no Brasil, que permanece vivo em seu legado e em nossa
memória. A Amaranta Cesar e Lúcia Monteiro, que abraçaram essa missão com
tamanho vigor e dedicação, um agradecimento carregado de admiração. A Chico
Carneiro, por compartilhar seu olhar vindo de Moçambique, ao conjunto de
autoras e autores que colaboraram com os textos inéditos, traduções, resenha e
imagens que compõem essa edição, bem como a Débora Rossetto e ao corpo de
pareceristas que foi mobilizado para viabilizar essa publicação, um largo e sincero
agradecimento.
Uma ótima leitura a todas e todos!

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Alessandra Soares Brandão

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As africanidades e suas asperezas

Amaranta Cesar 1
Lúcia Ramos Monteiro 2

1
Amaranta Cesar é professora adjunta de Cinema e Audiovisual da Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). É doutora em Cinema e Audiovisual pela
Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3 (2008) e realizou estágio pós-doutoral na
New York University. Foi curadora da Mostra 50 Anos de Cinema da África
Francófona (Ano da França no Brasil, 2009). Idealizou e coordena o Cachoeiradoc

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- Festival de Documentários de Cachoeira (BA). Tem publicado artigos e capítulos
de livros sobre cinemas africanos e das diásporas, cinema documental, cinema e
diferenças culturais.
e-mail: amaranta.cesar@gmail.com
2
Lúcia Ramos Monteiro realiza pesquisa de pós-doutorado junto à Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) a respeito dos
“Problemas contemporâneos para o conceito de cinema nacional”, com
financiamento da Fapesp. Ela é doutora em estudos cinematográficos pela
Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3 e pela USP (2014), com uma tese sobre
“A iminência da catástrofe no cinema”. Trabalhou como professora-visitante na
Universidad de las Artes, em Guaiaquil, Equador, tendo dado aulas também na
Paris 3 e na USP. Foi curadora da mostra África(s). Cinema e Revolução (Caixa
Belas Artes, 2016).
e-mail: luciarmonteiro@gmail.com

14

É possível enxergar contornos definidos naquilo que, no campo dos estudos


de cinema, chamamos de “cinema africano”? A expressão designaria, em caso
afirmativo, a reunião dos filmes realizados em África ou um conjunto de filmes
feitos por africanos, dentro e fora dos limites do continente africano? A que
público se destina esse “cinema africano”? Qual seria sua relação com os corpus
e os conceitos encobertos pela etiqueta “cinema mundial”? Como pensar, a partir
de um leque abrangente de filmes africanos, a ideia de “africanidade(s)”, de
identidade(s) africana(s) ou de identidade(s) cinematográfica(s) africana(s)?
Impossível tentar responder a qualquer uma dessas interrogações sem aceitar o
enfrentamento com um emaranhado de ambivalências e contradições.
O lugar que as africanidades ocupam no campo brasileiro das pesquisas e
estudos em cinema é ainda difuso e espraia-se entre membros de uma pequena
comunidade de pesquisadores, críticos e estudiosos de filiações e disciplinas
diversas3. Em boa medida negligenciados pela história do cinema e praticamente
ausentes das grades disciplinares dos cursos universitários, os filmes africanos
constituem ainda objeto raro, corpus de difícil acesso no Brasil, apesar de
4

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esforços recentes para a sua difusão . Distantes de possuírem uma

3
Merecem destaque, dentre as publicações brasileiras que são referência na área, os volumes
organizados por Alessandra Meleiro (2007), por Mahomed Bamba e Alessandra Meleiro (2012), e por
Carolin Overhoff Ferreira (2014).
4
Uma série de mostras e programações culturais têm surgido no Brasil em torno dos cinemas
africanos. O evento mais constante dedicado à cinematografia do continente e de suas diásporas é,
provavelmente, o Encontro de Cinema Negro, Brasil, África, e Caribe Zózimo Bulbul, que completa dez
anos de existência em 2017. Idealizado pelo ator e realizador negro brasileiro Zózimo Bulbul, o
encontro, que incorporou seu nome após seu falecimento em 2013, tem dinamizado o intercâmbio
entre cineastas africanos, diaspóricos e afro-brasileiros e enfrentado o que parece se configurar como
uma negligência crítica aos seus cinemas. Nesse sentido, é difícil não pensar na ausência da própria
obra de Zózimo nas compilações clássicas da história do cinema brasileiro. Se Soleil ô (1970), o
manifesto vanguardista e anticolonial de Med Hondo, ainda não encontrou lugar na história do cinema
mundial compatível com a envergadura de sua invenção estética e discurso político, o mesmo se pode
dizer de Alma no olho (1975), curta-metragem de Zózimo Bulbul, no que diz respeito ao cinema do
Brasil.

15

institucionalidade própria e de se estabelecerem como um domínio de limites


claros, é na fluidez de suas fronteiras que os cinemas de Áfricas e de suas
diásporas nos desafiam.
Os questionamentos acima são suscitados, sob distintas modalidades, por
cada um dos textos do presente dossiê, que se constitui como uma homenagem
ao estudioso dos cinemas africanos Mahomed Bamba (1967-2015): sete ensaios
inéditos, que foram submetidos à avaliação cega por pareceristas gabaritados,
mais um texto de Dudley Andrew publicado pela primeira vez em português, um
ensaio escrito especialmente para a ocasião por Kenneth W. Harrow, além de uma
entrevista com Flora Gomes, realizada por Jusciele de Oliveira.
Nascido na Costa do Marfim, Mahomed Bamba fixou-se por assim dizer no
Brasil. Foi professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da
Bahia (UFBA), onde também atuava como pesquisador do programa de Pós-
Graduação em Comunicação e Culturas Contemporâneas. Com graduação em
Letras pela Universidade Nacional de Abidjan, na Costa do Marfim, ele realizou
mestrado em Linguística Geral e Semiótica na Universidade de São Paulo (USP,

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1997), e doutorado em Cinema e Estética do Audiovisual, também na USP (2002).
Em seu artigo “In the name of 'cinema action' and Third World: The intervention of
foreign film-makers in Mozambican cinema in the 1970s and 1980s”, ele afirma: “O
desafio da liberdade não tem fronteira nem nacionalidade” (BAMBA, 2012, p. 173).
Deslocada do contexto original e retida agora no espaço de sua ausência e pela
narrativa de sua trajetória, essa afirmação parece nos dizer também do modo
como desafiar as fronteiras consistiu para Bamba um princípio de vida, gesto
fundamental de liberdade.
Nômade, homem do mundo, sujeito entre-lugares, como se autodefinia, ao
enfrentar os dilemas entre a afirmação política da identidade original e os devires
do desterro, bem como a vontade de superar o persistente binarismo entre
tradição e modernidade que ocupa parte considerável do pensamento sobre os
cinemas e as artes africanas de um modo geral, Bamba defendeu que “a
modernidade do cineasta africano, como a dos intelectuais negros das diásporas

16

e no ocidente, começa exatamente pela sua capacidade de ser ao mesmo tempo


cineasta africano e cineasta do mundo”5. Tal posição limiar requer não apenas, em
suas palavras, “um jogo de dupla-consciência” mas ainda “um equilibrismo entre
expectativas divergentes entre os públicos africanos e do mundo” (BAMBA, 2009,
p.184). Nesse sentido, a notável contribuição de Mahomed Bamba para os
estudos dos cinemas africanos no Brasil diz respeito não apenas aos seus
esforços em constituir a cinematografia do continente e de suas diásporas como
objeto de investigação e análise mas também à sua disposição em tensionar, a
partir de um entre-lugar assumido como posto privilegiado de pensamento, os
modos de interação entre os filmes africanos, os pesquisadores e os públicos.
Sua crítica ao que chamou de “culturalismo automático” (BAMBA, 2009), que
considerava vigorar na análise de tais filmes, traduzia a sua intenção aguda de
postular a emergência de múltiplas grades de leitura que permitissem a
proliferação dos sentidos das obras, não obstante o reconhecimento de que estas
estão invariavelmente ancoradas em seus contextos histórico-culturais: “todas as
gerações de cineastas africanos apresentam em suas obras uma diversidade

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temática e estética e seus trabalhos são reveladores de uma descontinuidade nas
respostas frente aos desafios políticos e sociais ao longo da história da África”
(BAMBA, 2007, p.95). É, finalmente, na sua dedicação em expandir os quadros de
recepção e crítica, em provocar os horizontes de expectativa dos públicos e em
interrogar os desenhos curatoriais das mostras e festivais que sua mirada e
contribuição para os cinemas africanos conecta-se às suas pesquisas no campo
dos estudos de recepção, para o qual dedicou-se também de modo notável e
atuante6.

5
Em sua análise dos filmes de Férid Boughedir, é possível encontrar essa aliança de forças
contraditórias na caracterização das personagens femininas de Halfaouine e Un été à la Goulette, em
que “há, sem dúvida, imagem de uma mulher culturalmente marcada de determinada pela tradição
árabe-muçulmana” e, ao mesmo tempo, “o espectador se depara também com as imagens de uma
mulher que é simultaneamente oriental, mediterrânea, ocidental e, em definitivo, universal” (BAMBA,
2012, p. 287).
6
Cf., a esse respeito, BAMBA, 2013a, 2013b, 2011.

17

*
Concentremo-nos sobre a questão da identidade no cinema: somos capazes
de enxergar traços de uma identidade continental comum, ou ela se conjugaria
sobretudo em termos nacionais e regionais, movendo-se também historicamente?
Se adotamos como parâmetro a idade das nações africanas independentes, de
fato as cinematografias africanas inserem-se entre as mais jovens do mundo. Mas
como estabelecer o(s) marco(s) de início? É mesmo o lançamento, em 1962, de
Borrom Sarret (O Carroceiro), curta-metragem do senegalês Ousmane Sembène?
Para além de toda a filmografia realizada em África durante o período colonial, por
encomenda de autoridades coloniais, e que recentemente começa a atrair a
atenção da academia (BLOOM, 2008; PIÇARRA, 2015; ANTONIO e PIÇARRA,
2013), e do olhar sobre os africanos enquanto objeto da curiosidade etnográfica,
que Sembène critica em diálogo com Jean Rouch (ROUCH e SEMBÈNE, 1965),
como encarar os filmes de ficção ou os registros documentais realizados por
estrangeiros de diferentes nacionalidades em momentos de estreita colaboração
com movimentos independentistas internacionalmente articulados, como o MPLA

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de Angola, o PAIGC da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, e a Frelimo de
Moçambique?7 Ainda com relação à fundação do que seria “o cinema africano”,
devemos levar em conta a realização, em 1955, de Afrique sur Seine, de Jacques
Mélo Kane, Mamadou Sarr e Paulin Soumanou Vieyra, curta-metragem de
produção francesa, rodado em Paris por três jovens africanos que propõem uma
inversão da mirada etnográfica, colocando os europeus como objetos do olhar
africano?

7
Com relação à filmagem em apoio aos movimentos independentistas ou de registro das zonas
libertadas, é preciso citar a filmografia de Sarah Maldoror, que realiza, ao longo da década de 1960,
filmes de ficção no âmbito dos movimentos anti-coloniais da Guiné-Bissau e de Angola. Há ainda
importantes filmagens por parte de Dragutin Popovic, Margaret Dickinson, Robert Van Lierop ou do
grupo Cinéthique junto aos guerrilheiros moçambicanos (abordados por José de Sousa em seu texto
no presente dossiê; cf. também ARENAS, 2017, e GRAY, 2016); e nos registros de José Massip, John
Sheppard e Piero Nelli nas áreas libertadas da Guiné-Bissau (a que Cunha e Laranjeiro fazem
referência, em artigo publicado no presente dossiê).

18

Em lugar de fixar limites e definições identitárias, talvez seja mais proveitoso


pensar em termos de conquistas sucessivas, ou de etapas na afirmação de
identidades que são na realidade múltiplas e movediças. Se nos inspirarmos no
pensamento do cineasta Flora Gomes, da Guiné-Bissau, expresso na delicada
entrevista à pesquisadora Jusciele de Oliveira, podemos dizer que o cinema
africano ainda não existe – sua criação dependeria de equipamentos e suportes
de gravação feitos em África por e para africanos, que levem em conta, por
exemplo, a cor da pele negra. No mesmo ano daquele que é visto como o mais
importante marco inaugural dos cinemas africanos, ou seja, o lançamento de
Borrom Sarret de Sembène, Jean Rouch, então o mais profícuo dos cineastas
“não-africanos” dedicados a filmar em África8, e que segundo Sembène filmava os
africanos “como insetos”, reconhece os limites das produções coloniais, do ponto
de vista exógeno, acenando para a necessidade da fundação de uma perspectiva
cinematográfica propriamente africana: “o que quer que façamos, nós não
seremos nunca africanos e os filmes que realizaremos serão sempre filmes
africanos realizados por estrangeiros” (ROUCH e SEMBÈNE, 1965).

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Com efeito, o cinema africano nasce marcado pelo engajamento na
reconquista e na descolonização tanto das nações recém-libertas quanto das
imagens da África, estas últimas entendidas como essenciais para a consolidação
das primeiras. Nesse sentido, num primeiro momento, a reescritura da História
colonial, bem como a superação da imagem de alteridade do Ocidente moderno e
a defesa da autorrepresentação constituem-se como programas essenciais para
as cinematografias africanas, amplamente disseminados nos cinemas das
diásporas, incluindo o cinema negro brasileiro. Hoje, no contexto de novos flancos
de disputas, qual seria a contemporaneidade de tais perspectivas estéticas e
políticas?
Nota-se, portanto, desde a década de 1950 um esforço para inverter o olhar
etnográfico, de modo que homens e mulheres africanas se tornem sujeitos – e não

8
Cf., a esse respeito, BAMBA, 2009 a.

19

mais objetos – do cinema. Tal busca inicial pela representatividade das


identidades africanas no cinema permanece atual, conjugando-se de maneiras
distintas nos textos aqui reunidos – em entrevista a Jusciele Oliveira, Flora Gomes
expressa a necessidade do ver-se nas imagens audiovisuais, necessidade só
raramente atendida no contexto da Guiné-Bissau, em que predomina uma
televisão que difunde produtos audiovisuais vindos do exterior – e se complexifica
em torno da ideia de “descolonização das mentes”, formulada pelo queniano
Ngugi wa Thiong’o (1986), romancista e teórico dos estudos pós-coloniais que é
referência fundamental para os trabalhos que podem ser lidos a seguir.
De fato, a perspectiva pós-colonial perpassa todo o dossiê “Africanidades”,
evidenciando o ambivalente papel do hífen – curiosamente chamado, em francês,
de “traço de união” –, que se interpõe entre o prefixo “pós” e o substantivo
“colonial”, a um só tempo unindo-os e separando-os. Assim, se por um lado a
mirada pós-colonial marca as rupturas com o colonialismo – presentes na
filmografia ligada às independências –, por outro lado ela também sinaliza que há
permanências e, nesse sentido, dependência de vestígios que subsistem de

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relações coloniais oficialmente extintas. Roy Armes situa as origens dessa
ambivalência no imediato pós-independência: apesar da emancipação política,
não se alteram as fronteiras coloniais, estabelecidas em acordos europeus nos
anos 1880 e 1990; novas elites ocupam postos antes exercidos pelo colonizador
na política, na burocracia, na educação, etc.; as línguas dos colonizadores
continuam em uso nos órgãos administrativos dos jovens países, assim como
mantêm-se as capitais e a rede de infra-estrutura implantadas pela metrópole e
características do “centralismo autocrático” próprio ao Estado colonial.

“As contradições básicas da situação pós-colonial – independência política em uma


estrutura social colonial, uma cultura administrativa bilíngue, a coexistência entre os
adornos de um Estado moderno (uma cadeira nas Nações Unidas, bandeira e hino
nacionais, companhia aérea nacional etc.) e uma vida que, para a maioria da
população, não mudava desde o século XIX, no mínimo – formam o contexto de
qualquer aspecto da cultura pós-colonial, incluindo o cinema. Como parte da
pequena mas crescente elite de cidadãos relativamente instruídos e com boa

20

mobilidade social, os cineastas africanos (...) estão totalmente envolvidos – em sua


vida e sua obra – com as ambiguidades desse processo. De fato, com sua cultura
bilíngue, seus títulos universitários (frequentemente de pós-graduação ou doutorado)
e sua formação técnica no exterior, eles estão entre os membros mais brilhantes
dessa elite” (ARMES, 2012).

Em seu artigo, que busca uma identidade comum ao cinema africano e aborda
os esforços para o reconhecimento de tal identidade, Dudley Andrew cria uma
constelação, reunindo filmes de Ousmane Sembène, Souleymane Cissé, Med
Hondo, Flora Gomes e Djibril Diop Mambéty, num arco temporal que vai de 1969
(Mandat) até 1996 (Waati), para falar da identidade africana assentada sobre uma
aliança de forças de direções opostas: a raiz do baobá e o vento do Sahel, o
desejo de fixar-se e a vocação nômade. “Os cineastas africanos podem preferir a
imagem do nômade, mas muitos parecem destinados a viver como migrantes,
indo de festival em festival, de universidade em universidade, para apresentar sua
obra”, afirma. Mas como enraizar-se e afirmar a própria perspectiva quando ainda
são patentes a dependência de economias estrangeiras para financiar a realização
e a necessidade do aval de festivais para garantir alguma chance de distribuição?

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É preciso interrogar as modalidades de recepção e as economias dos cinemas
africanos. Esse questionamento, motor de trabalhos anteriores Kenneth W.
Harrow (2013), está presente de maneira subjacente em seu texto que integra este
dossiê, “Cinema africano: perturbando a ordem (cinemática mundial)”. Nele, o
autor joga luz sobre as asperezas que as experiências audiovisuais africanas
trazem para a organização dos estudos cinematográficos e em particular para os
estudos do cinema mundial. Ele se interessa em especial pelo papel de filmes
feitos em vídeo, em mini-indústrias e estruturas mais ou menos caseiras que, a
exemplo de Nollywood, acabam criando maneiras de financiamento próprias,
independentes de ajudas externas, e conseguindo estabelecer canais criativos
que garantem sua visibilidade junto a públicos locais. Essa seria a etapa mais
atual do cinema africano, mas seus objetos ainda se constituem como problemas
para os estudiosos do cinema, que não sabem como incluí-los em suas antologias
e seus cursos – o que leva Harrow, provocativamente, a enxergá-los como lixo,

21

como resíduos. Como analisar esteticamente filmes feitos de maneira quase


amadorística, que não circulam pelos canais conhecidos e são ignorados pela
crítica? O que significa a ausência do cinema de Nollywood nas antologias do
cinema mundial e mesmo do cinema africano? Como definir qual cinema africano
é legítimo ou pode ser legitimado pela crítica e pela academia? É por essa seara
que Harrow nos enreda, num artigo que abala alguns dos mais estabelecidos
alicerces nos estudos dos cinemas africanos, dentre os quais aqueles construídos
por Manthia Diawara (1992; 2010) e por Dudley Andrew (2004).
O cenário atual que Harrow descreve configura-se, de certo modo, como uma
nova atualização do objetivo de “filmar o povo e devolver a imagem ao povo”,
notório na fundação do cinema moçambicano, tema trabalhado por José de
Sousa Miguel Lopes. Em seu texto, “Cinema de Moçambique no Pós-
Independência: uma trajetória”, o autor estabelece um panorama amplo, reunindo
diferentes gerações de cineastas, estrangeiros, moçambicanos e de identidades
híbridas, que participaram da criação do cinema nacional a partir de 1975. A
expressão do desejo de “filmar o povo e devolver a imagem ao povo” encontra

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eco em alguns dos termos usados por Godard em seu projeto de audiovisual
jamais implantado no país, e na ideia de “inverter a direção do olhar”. De acordo
com a abordagem de José de Sousa M. Lopes, tal ambição é preponderante no
cinema moçambicano dos anos que se seguem à independência, “um cinema de
clara ação militante”, mas se modula com o tempo, levando a um momento atual
de “despartidarização desse cinema, sem que perdesse um comprometimento
com as causas sociais e com o sentido crítico a elas ligado”.
No artigo “Guiné-Bissau: do cinema de Estado ao cinema fora do Estado”,
Paulo Cunha e Catarina Laranjeiro experimentam um caminho metodológico
interessante: eles incluem em sua cronologia do cinema bissau-guineense tanto
filmes que antecedem a própria independência do país, em 1973, quanto o
cinema mais atual, informal, que circula em pen-drives em mercados populares do
país. Como se sabe, o cinema da Guiné-Bissau, em suas origens, distingue-se
pela particularidade de, ao invés de inaugurar-se com filmes pós-independência

22

feitos por cineastas estrangeiros (como é o caso, por exemplo, em Moçambique),


contar com cineastas bissau-guineenses formados em Cuba e no Senegal por
iniciativa de Amílcar Cabral.

“Apesar do elevado número de realizadores ‘caça-revoluções’ que estiveram na


Guiné-Bissau nesse período histórico, Amílcar Cabral considerava que faltava a
capacidade de os guineenses produzirem as suas próprias imagens e assim,
simbolicamente, garantir a independência do gesto e do olhar e a possibilidade da
construção de uma memória fílmica realizada pelos próprios guineenses” (CUNHA &
LARANJEIRO, 2017).

Se, depois de crises sucessivas, a produção atual da Guiné-Bissau ainda


depende de auspícios externos, sobretudo portugueses, novos cineastas vêm
despontando, interrogando as fronteiras entre o cinema amador e o profissional:

“No caso concreto da Guiné-Bissau, um território onde a cultura cinematográfica


mais canônica é praticamente inexistente (nem os filmes do próprio Flora Gomes são
conhecidos pela generalidade da população), os jovens autodidatas inscrevem-se
numa cultura visual muito pautada pela estética e narrativa da televisão, dos vídeos
musicais e dos videojogos, conteúdos bem mais acessíveis à generalidade da

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população. Produzidos fora de qualquer forma institucionalizada, esses filmes são
geralmente falados em dialetos autóctones e refletem questões atuais e muito
pertinentes para as comunidades locais, o que lhes confere um forte cunho
identitário.” (CUNHA & LARANJEIRO, 2017).

Seja na Nigéria, na Guiné-Bissau, em Gana ou em outros países africanos,


essas cinematografias emergentes, apoiadas na tecnologia do home-vídeo e na
difusão por pen-drive ou internet vêm se constituindo como uma nova resposta a
“uma reivindicação do direito de olhar, de narrar e de imaginar o mundo”, luta
iniciada por Afrique sur Seine, filme trabalhado por Marcelo R. S. Ribeiro no artigo
“Cosmopoéticas da descolonização e do comum: inversão do olhar, retorno às
origens e formas de relação com a terra nos cinemas africanos”.

“Contra a visualidade associada à autoridade do olhar colonial e aos usos


pedagógicos do cinema dela decorrentes, contra a interdição francesa que impedia
africanos de filmarem em territórios coloniais, contra o humanismo racista que define
o universalismo a que a França aspira como metrópole, Afrique sur Seine reivindica o

23

direito de olhar as paisagens de Paris a partir de alguma memória da africanidade –


que se inscreve, na estética do filme, sob a forma de um contraponto musical
associado ao passado e à experiência subjetiva que antecede a migração em direção
à Europa – e de uma busca da africanidade presente na contemporaneidade do
espaço metropolitano – a África no Sena, isto é, a comunidade difusa que surge dos
movimentos migratórios, que nasce no exílio e que encontra sua terra possível,
embora temporária, na condição comum de desterro” (RIBEIRO, 2017).

Em sua busca por estabelecer um quadro conceitual para uma história das
formas de imaginação da descolonização e das relações com a terra nos cinemas
africanos, Marcelo Ribeiro desenha uma sorte de cartografia da invenção de um
olhar. E é na análise de A vida sobre a terra (2000), filme de Adberrahmane
Sissako, que se desvela, mais uma vez neste dossiê, uma dupla articulação
fundamental: o que se inventa é “um olhar sobre si que é, igualmente, um olhar
sobre o mundo” e “um olhar a partir da África que é, ao mesmo tempo, um olhar a
partir do mundo” (RIBEIRO, 2017).
Esta dupla inscrição e perspectiva está no cerne da invenção formal e da
imaginação política de Bamako (2006), outro filme de Abderrahmane Sissako,

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analisado por Roberta Veiga no artigo “Cindir a cena, partilhar o cinema: sobre
Bamako, de Abderrahmane Sissako”. Através de seu “tribunal imaginário”, que
põe lado a lado, em disputa judicial, os cidadãos do Mali e as grandes
corporações financeiras mundiais, concedendo aos sujeitos africanos “o tempo da
imagem e do verbo”, Sissako “permite ao cinema escrever a história a contrapelo”
e “reinventar a política”, nas palavras da autora. A força do dispositivo posto em
ação pelo filme, segundo ela, reside na sua “dupla face”: ao pretender “expor a
sutura” termina por “expor também a fratura”, ou seja, “um dano fundamental, que
ao recolocar a distância constituinte da relação entre mundos, não pretende
solucioná-la, mas fazer participar da cena, tomar a palavra e exibir corpos e
tradições de sujeitos esquecidos e apagados” (VEIGA, 2017).
Construir a própria cena para fazer conviver entre si as imagens dos cinemas
de Áfricas e das diásporas, enfrentando a dependência econômica do olhar
internacional e interrogando a perspectiva crítica universalista – heranças da

24

empresa e do pensamento colonial –, é a missão assumida pelo FESPACO, o


maior festival de cinema africano, realizado bienalmente em Ouagadougou,
Burkina Faso, analisado neste dossiê por Maíra Zenun de Oliveira, a partir das
contribuições conceituais da teoria decolonial. Em “Sobre a colonialidade do
pensamento em imagens e a reinvenção da negritude no Fespaco: maior festival
de cinema africano”, a autora defende que o Fespaco é “festival-ritual” que se
afirma enquanto espaço de confrontação do imaginário eurocêntrico sobre a
África, que persiste como um “perverso e sólido legado afetivo e sensorial” do
sistema colonial.
Escrito por Jusciele Oliviera, o artigo que conclui este dossiê, “‘Eu não quero
ter um mundo de uma cor só’: trajetória, autoria e estilo nos filmes do cineasta
Flora Gomes”, concentra-se no percurso e nas características de estilo marcantes
no cinema de Flora Gomes, um dos quatro jovens escolhidos por Amílcar Cabral
para estudar cinema em Cuba e voltar à Guiné-Bissau a tempo de filmar sua
independência. Com base em uma discussão teórica sobre autoria no cinema, em
declarações do próprio cineasta e em breves análises dos filmes do cineasta,

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Oliveira identifica alguns elementos característicos do cinema de Gomes,
elementos que parecem reeditar a tensão entre a raiz do baobá e os ventos do
Sahel de que nos falava o texto de Dudley Andrew. Por um lado, há a afirmação
reiterada do pertencimento ao país-natal, seja na diegese, pontuada por
elementos históricos e personagens emblemáticos (a figura de Amílcar Cabral é
recorrente), seja na sonoridade dos diálogos, quase sempre falados em kriol
guineense, idioma escolhido também para os títulos (a exceção é seu filme mais
recente, Republica di mininus, falado em inglês). Por outro lado, há a experiência
da viagem, outra constante de sua filmografia, traduzida visualmente em planos-
sequência arrebatadores. A aliança que Flora Gomes faz entre panafricanismo e
afirmação da guineendade, assim como a vocação universal de algumas de suas
fábulas só fazem tornar esse jogo de forças ainda mais complexo. “Os filmes do
realizador guineense contam histórias locais com desdobramentos globais”,
afirma Oliveira, ao relembrar alguns dos temas eleitos por Gomes: trânsitos,

25

música, mulher, criança, guerra, migração, tradição, modernidade, coletividade,


ecologia...
Diante de tamanha riqueza de interesses e características, parece mesmo
impossível a afirmação de uma identidade monolítica e fixa para um cinema
africano no singular. Impossível, ainda, é realizar hoje uma reunião de reflexões a
respeito dos cinemas africanos que não leve em conta aquilo que para Harrow são
suas “asperezas”, de algum modo presentes também sob a forma textual. As
páginas a seguir constituem-se como convites reiterados para um mergulho em
diferentes modalidades da articulação entre africanidades e cinema. Se sobram
pontos de interrogação nessa jornada – e é bom que seja assim –, acreditamos
que os trabalhos aqui reunidos contribuirão para não deixar dúvidas com relação
à vastidão e à potência desse campo de estudos. Que novas pesquisas venham
estreitar as relações entre os estudos cinematográficos brasileiros e as
africanidades, colocando seus resíduos para dentro de campo.

Referências Bibliográficas

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28

Dossiê – Africanidades

Cosmopoéticas da descolonização e do comum:


inversão do olhar, retorno às origens e formas de relação com a
terra nos cinemas africanos1

Marcelo R. S. Ribeiro 2

1
Uma versão inicial deste texto, disponível em
<https://www.incinerrante.com/textos/cinemas-africanos-cosmopoeticas-
descolonizacao-comum>, serviu de base para minha participação na mesa de
abertura do Seminário Olhares sobre o Cinema de África e da Afrodiáspora, que
ocorreu nos dias 29 e 30 de setembro de 2015, na Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro. Agradeço à organização do evento, especialmente às
professoras Janaína Oliveira e Regiane Augusto de Mattos, pelo generoso convite
e pela rica oportunidade de apresentar algumas de minhas ideias e de conversar
sobre cinemas africanos. Agradeço também às duas pessoas que comentaram

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anonimamente o texto, no processo de avaliação para publicação nesta edição da
Rebeca, por suas críticas e sugestões, que busquei incorporar nesta última revisão
do artigo.
2
Marcelo R. S. Ribeiro desenvolve pesquisa de pós-doutorado em Letras e
Linguística na Universidade Federal de Goiás, onde concluiu o doutorado em Arte
e Cultura Visual em maio de 2016, com pesquisa sobre cinema e direitos humanos.
É mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina
(2008) e bacharel em Ciências Sociais com Habilitação em Antropologia pela
Universidade de Brasília (2005). É fundador, autor e editor do incinerrante –
https://www.incinerrante.com – e cofundador, autor e editor (com Juliana Costa)
do a quem interessar possa – http://www.aquem.in. Atua ainda como crítico de
cinema. É também professor de ensino superior, programador de cinema e
curador de mostras e festivais.
e-mail: marcelo@incinerrante.com

30

Resumo

Com base na hipótese de que a emergência histórica dos cinemas africanos e sua
contemporaneidade são indissociáveis de uma reivindicação do direito de olhar, de narrar e de
imaginar o mundo, este artigo busca estabelecer um quadro conceitual para uma história das formas
de imaginação do comum nos cinemas africanos. Nessa história ainda a escrever, que pertence ao
programa de pesquisa mais amplo de criação de um atlas de cosmopoéticas, é preciso reconhecer o
sentido inaugural do gesto de inversão do olhar colonial, no contexto da emergência dos cinemas
africanos entre as décadas de 1950 e 1960, e do retorno inventivo às origens, que torna possível a
participação do cinema nos processos históricos que caracterizam a condição pós-colonial, nas
décadas seguintes (consolidação de Estados nacionais, aspirações pan-africanistas, Négritude,
internacionalismo revolucionário, cosmopolíticas do capital e dos direitos humanos, afropolitismo etc.).
Dessa forma, é possível reconhecer a tarefa estética e política da descolonização como horizonte
cosmopoético inaugural dos cinemas africanos, entre a inversão do olhar colonial e o retorno inventivo
às origens, nos filmes Afrique sur Seine (Mamadou Sarr, Paulin Vieyra, 1955), Soleil Ô (Med Hondo,
1967) e Touki Bouki (Djibril Diop Mambéty, 1973). Em filmes mais recentes, como La vie sur terre
(Abderrahmane Sissako, 1998), Terra sonâmbula (Teresa Prata, 2007) e Pumzi (Wanuri Kahiu, 2009),
torna-se evidente uma tendência de deslocamento da cosmopoética da descolonização à
cosmopoética do comum, associada ao tema da relação com a terra, em sua polissemia: terra pátria,
terra natal, desterro, exílio, terra devastada.

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Palavras-chave: Cinemas africanos; Descolonização; Comum; Cosmopoéticas.

Abstract

Working on the hypothesis that the historical emergence of African cinemas and their
contemporaneity are inseparable from a claim of the right to look, to narrate and to imagine the world,
this article seeks to establish a conceptual framework for the formulation of a history of the forms of
imagination of the common in African cinemas. In this history yet to be written, which belongs to the
broader research program of creating an atlas of cosmopoetics, one must acknowledge the inaugural
meaning of the gesture of inverting the colonial gaze, on the one hand, in the context of the emergence
of African cinemas between the 1950s and the 1960s, and of the inventive return to origins, on the
other hand, which makes possible the participation of film in the diversity of historical processes which
characterize the postcolonial condition, in the following decades (consolidation of national states, pan-
Africanist aspirations, Négritude, revolutionary internationalism, the cosmopolitics of capitalism and
human rights, afropolitanism etc.). In this way, it is possible to recognize the aesthetic and political task
of decolonization as African cinemas’ inaugural cosmopoetic horizon, between the inversion of the
colonial gaze and the inventive return to origins, in the films Afrique sur Seine (Mamadou Sarr, Paulin
Vieyra, 1955), Soleil Ô (Med Hondo, 1967) and Touki Bouki (Djibril Diop Mambéty, 1973). In more recent

31

films, such as La vie sur terre (Abderrahmane Sissako, 1998), Terra sonâmbula (Teresa Prata, 2007) and
Pumzi (Wanuri Kahiu, 2009), it becomes evident that there is a trend towards the displacement of the
cosmopoetics of decolonization by a cosmopoetics of the common, which is linked to the theme of the
relation to the land, in its polysemy: fatherland, homeland, expatriation, exile, waste land.

Keywords: African cinemas; Decolonization; Common; Cosmopoetics.

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Introdução

Gostaria de começar com uma afirmação que condensa o itinerário a seguir: a


emergência histórica dos cinemas africanos e sua contemporaneidade são
indissociáveis de uma reivindicação do direito de olhar (MIRZOEFF, 2011), de
narrar (BHABHA, 2003) e de imaginar o mundo. Essa afirmação deve ser
entendida, em primeiro lugar, como uma hipótese, no sentido metodológico
convencional: uma ideia que se deve verificar ou refutar por meio de pesquisa. Ao
mesmo tempo, e aqui a experiência da hipótese transborda seu sentido
metodológico convencional em direção a uma espécie de deriva esperançosa, da
qual seria preciso explorar sua consistência de sonho comum, de sonho
partilhado (BLOCH, 2005), essa afirmação é uma aposta, um salto, talvez uma
queda, cuja vertigem desejo tanto experimentar quanto compartilhar.
Para testar essa hipótese, proponho, inicialmente, um breve percurso histórico,
que não é muito mais do que o esboço de um itinerário, num mapa ainda por fazer
da diversidade de sentidos estéticos e políticos que caracteriza os cinemas
africanos. O projeto desse mapa pertence, de fato, a um programa mais amplo de

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pesquisa, cujo horizonte é a criação de um atlas de cosmopoéticas (RIBEIRO,
2016). As cosmopoéticas – que podem ser definidas como formas de invenção
(poiesis) do mundo como mundo comum (cosmos), em diferentes contextos
históricos e culturais, assim como nos espaçamentos que os atravessam e os
transbordam – são indissociáveis das cosmopolíticas – isto é, conjuntos de
discursos e de práticas associados à configuração e ao recorte do mundo
(cosmos) como comunidade política (polis) – com que se articulam de modo
disjuntivo, sem correspondência necessária ou garantida a priori.
Em uma formulação influente, Dudley Andrew (2004; 2013) propôs um atlas do
cinema mundial, que se desdobra em diferentes tipos de mapas. O programa de
pesquisa de elaboração de um atlas de cosmopoéticas depende, em parte, de um
deslocamento da proposta de Andrew a partir de uma exploração da
multiplicidade de possibilidades da forma atlas para o que Georges Didi-
Huberman (2011) denomina, em diálogo com o pensamento visual de Aby

33

Warburg (2010), “conhecimento pela imaginação”. Nesse sentido, será preciso


diferenciar as cosmopoéticas da descolonização que fundam os cinemas
africanos e as cosmopoéticas do comum a que aspiram em sua disseminação
histórica, por meio da identificação analítica de três temas – a inversão do olhar, o
retorno inventivo às origens e a relação com a terra – e de algumas de suas
formas estéticas.

A inversão do sentido do olhar e a dupla articulação da condição pós-


colonial dos cinemas africanos

Quando Mamadou Sarr e Paulin Vieyra filmam Afrique sur Seine, em 1955, o
gesto fundamental da reivindicação do direito de olhar, de narrar e de imaginar o
mundo a partir de alguma africanidade aparece sob a forma de uma inversão. De
modo significativo, a experiência da diáspora é tanto uma das condições de
possibilidade do filme quanto uma perspectiva que sua trama constrói diante de
Paris, da luta pela independência e do mundo por vir. Impossibilitados de filmar no
território colonial, ainda dominado pelos franceses (que proibiam que africanos
filmassem nas colônias), Vieyra, Sarr e os estudantes do Institut des Hautes

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Études Cinématographiques1 buscam a África no famoso rio Sena e, ao mesmo
tempo, revelam um olhar sobre Paris. Nessa busca e nesse olhar, observa-se um
dos gestos fundamentais dos cinemas africanos: a inversão do sentido do olhar
que define a experiência colonial, assim como o racismo que a atravessa – “Olhe
o preto!”, “olhe, um preto!”, “mamãe, o preto vai me comer!”, como na cena
paradigmática discutida por Frantz Fanon (2008, p. 106-107), em Pele negra,
máscaras brancas. É, ao mesmo tempo, uma inversão do olhar racista, uma
inversão do olhar colonizador e uma inversão do olhar etnográfico, em suas
diferentes características, que conferem a Afrique sur Seine sua força de
fundação, apesar do deslocamento diaspórico que o separa da terra africana.
Visto sobre o pano de fundo dos usos pedagógicos a que os europeus

1
Trata-se da atual Fondation européenne des métiers de l'image et du son (FEMIS).

34

destinaram o cinema no espaço das colônias, conforme a pretensão humanista


civilizatória que alimenta a violência do colonialismo, assim como dos usos
etnográficos que, embora eventualmente críticos, participam da estrutura da
colonialidade, Afrique sur Seine perturba tanto a hierarquia do olhar que opõe o
sujeito ocidental e o objeto africano quanto a economia simbólica que converte a
África numa reserva de imaginário do Ocidente. A primeira perturbação, que abala
a hierarquia do olhar expressa por meio de termos como civilizados e primitivos,
entre outros, está associada a uma das tendências cruciais de todos os cinemas
africanos, mesmo quando permanece subterrânea ou denegada: a
descolonização, que deve ser compreendida também como o que Ngũgĩ wa
Thiong’o (1986; 2007) denomina “descolonização da mente” e que pode ser
definida, segundo Achille Mbembe, no livro Sortir de la grande nuit (2013), como
uma “experiência de emergência e de insurreição”2. Na segunda perturbação, que
abala a economia das imagens na qual o africano e o negro tornam-se parte de
uma espécie de vazio sedutor que multiplica as fantasias, é preciso reconhecer
uma tendência suplementar à descolonização, mas irredutível a ela: a imaginação
do comum – definida como processo histórico e cultural de fabricação de imagens

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e de formas sensíveis associadas a diferentes enquadramentos de comunidade.
A tendência de imaginação do comum desdobra, nos cinemas africanos, um
movimento que se inicia nos enquadramentos móveis de identidade e de
pertencimento associados à descolonização (etnia, raça, nação, classe etc.) e que
se encaminha à reinvenção do comum tanto como uma condição banal, qualquer,
distante da contundência da luta política descolonial, quanto como uma condição
partilhada, em última instância, pela humanidade. Na passagem da tendência da
descolonização para a tendência da imaginação do comum, estão em jogo o
transbordamento do engajamento do cinema na luta anticolonial e a exploração
de suas possibilidades e limites no processo de invenção daquilo em que pode
consistir a comunidade descolonizada (MBEMBE, 2013, sobretudo capítulo 6), isto

2
No original: “expérience d'émergence et de soulèvement”. (Todas as traduções são do autor, salvo
indicação em contrário, e estão acompanhadas da reprodução do trecho traduzido, na língua original.)

35

é, as comunidades nacionais emergentes dos processos de independência e,


mais amplamente, a comunidade que resta e a comunidade que vem da
experiência dos “condenados da Terra” (FANON, 2005).
Tanto na cosmopoética da descolonização que inquieta os cinemas africanos
quanto nas cosmopoéticas do comum que se projetam a partir de suas narrativas
e de suas imagens, é possível reconhecer a reivindicação do que Nicholas
Mirzoeff (2011, p. XV) denomina “direito de olhar”, em oposição à “visualidade”
como “um meio [medium] para a transmissão e a disseminação da autoridade e
um meio [means] para a mediação daqueles que estão sujeitos a tal autoridade”3.
Contra a visualidade associada à autoridade do olhar colonial e aos usos
pedagógicos do cinema dela decorrentes, contra a interdição francesa que
impedia africanos de filmarem em territórios coloniais, contra o humanismo racista
que define o universalismo a que a França aspira como metrópole, Afrique sur
Seine reivindica o direito de olhar as paisagens de Paris a partir de alguma
memória da africanidade – que se inscreve, na estética do filme, sob a forma de
um contraponto musical associado ao passado e à experiência subjetiva que
antecede a migração em direção à Europa – e de uma busca da africanidade

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presente na contemporaneidade do espaço metropolitano – a África no Sena, isto
é, a comunidade difusa que surge dos movimentos migratórios, que nasce no
exílio e que encontra sua terra possível, embora temporária, na condição comum
de desterro.
A cosmopoética da descolonização que está associada à emergência dos
cinemas africanos deve ser compreendida como parte de uma busca de
independência e de autonomia que antecede e condiciona qualquer possibilidade
de imaginação do comum e que está baseada na reivindicação do direito de olhar.
Sua primeira figura é a inversão do olhar colonial. Ao mesmo tempo, nenhuma
descolonização é possível sem que sejam elaboradas formas de imaginação do
comum, que suplementam a inversão do olhar colonial com o deslocamento das

3
No original: “right to look”, “visuality”, “a medium for the transmission and dissemination of authority,
and a means for the mediation of those subject to that authority”.

36

coordenadas que organizam sua economia simbólica. À cosmopoética da


descolonização, que implica um movimento de destruição da autoridade colonial,
acrescenta-se uma série de formas de cosmopoéticas do comum, que implicam
movimentos diversos em direção a uma condição partilhada que será definida, em
primeiro lugar, como uma negação radical do colonialismo e como um projeto de
perturbação da colonialidade. Em suma, a autonomia do direito de olhar depende
da interrupção das modalidades coloniais de visualidade e da construção da
condição pós-colonial como uma condição aberta a diferentes formas de
imaginação do comum.
Efetivamente, os cinemas africanos constituem “uma atividade e uma
experiência pós-colonial”, como argumenta Roy Armes (2006, p. 3; 2007, p. 143),
tanto no sentido de herdarem as estruturas do colonialismo (o pós-colonial como
persistência da colonialidade, ali onde se encerraram as formas políticas
governamentais de colonialismo) quanto no sentido de dependerem, em seu
impulso originário, do transbordamento do colonialismo (o pós-colonial como o
que vem depois do colonialismo e, portanto, a partir da descolonização). A
inversão do olhar depende, fundamentalmente, do ato de assumir as relações e as

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estruturas herdadas do colonialismo como recursos contra seus efeitos e sua
persistência: a infraestrutura de produção de filmes pedagógicos que passa ao
controle dos Estados independentes e as relações com o espaço metropolitano
que se prolongam após a independência (viagens de estudo, busca de
financiamento, laboratórios para finalização etc.), por exemplo, tornam-se parte do
que torna possível a existência dos cinemas africanos e de seu horizonte de
transbordamento do colonialismo4. Enquadramento estrutural e transbordamento
projetivo, portanto: eis a dupla articulação da condição pós-colonial dos cinemas

4
A esse respeito, é interessante consultar o estudo de Manthia Diawara (1992, p. 9), que identifica a
“dependência tecnológica e estética do cinema africano em relação ao Ocidente” (no original: “the
technological and aesthetic dependence of the African cinema on the West”) como um de seus
problemas mais difusos e complexos, ao mesmo tempo em que reconhece a ambivalência de uma
situação em que a instalação parcial de infraestrutura de produção cinematográfica em territórios
coloniais é também, em alguma medida, o que tornará possível o esforço de descolonização.

37

africanos.

O retorno inventivo às origens e o afropolitismo pós-colonial

Há outra forma de reivindicação do direito de olhar, de narrar e de imaginar o


mundo que emerge da relação entre os cinemas africanos e a tarefa da
descolonização, cujo sentido é o de um anseio de retorno a alguma condição
africana originária, que se revela, paradoxalmente, um movimento inventivo. Aqui,
a descolonização se prolonga como um projeto dos Estados e das sociedades
civis africanas, e o cinema aparece como um dos aparelhos de recriação das
coletividades conforme enquadramentos nacionais – em suas diversas formas de
apropriação e de invenção de símbolos de identidade – e transnacionais – nas
formas da identificação racial diaspórica de movimentos como a Négritude, das
diversas modalidades de pan-africanismo, do internacionalismo revolucionário, do
cosmopolitismo dos direitos humanos ou do que Achille Mbembe (2013, cap. 6)
define como afropolitismo.
Enquanto a inversão do olhar pertence ao momento propriamente anticolonial
da descolonização e inscreve o cinema, em primeiro lugar, na luta pela

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independência política, o retorno às origens é, frequentemente, parte do processo
de invenção dessas origens, isto é, de invenção das tradições dos Estados pós-
coloniais e das sociedades que governam, inscrevendo o cinema em projetos
políticos nacionais e transnacionais5. É o que está em jogo tanto na retomada de

5
O conceito de “invenção das tradições” remonta ao conhecido livro organizado por Eric Hobsbawm e
Terence Ranger (1997), no qual as possibilidades analíticas suscitadas por seu aparente paradoxo são
exploradas em diferentes contextos históricos. Na introdução ao volume, Hobsbawm (1997, p. 9)
escreve: “Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por
regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica visam inculcar certos
valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma
continuidade em relação ao passado”. Em diálogo com a diferenciação entre tradição e costume que
Hobsbawm propõe, o capítulo de Ranger (1997, p. 219-269) discute, especificamente, as formas de
invenção da tradição e do costume que informam a história colonial e as reivindicações anticoloniais e
descoloniais. Ranger (1997, p. 268) identifica “dois legados ambíguos da invenção colonial das

38

referenciais mitológico-religiosos e histórico-culturais africanos – o reencontro


com tradições como os griôs 6 , a reencenação de narrativas tradicionais etc. –
quanto na aspiração à construção de uma nova mitologia e de uma nova
perspectiva sobre a história por meio do cinema – a tentativa de conferir um
sentido político ao cinema como griô 7 , a produção de filmes com objetivos

tradições”: “o corpo de tradições inventadas importadas da Europa” e a “cultura africana ‘tradicional’,


representada por toda a estrutura da ‘tradição’ reificada, inventada pelos administradores,
missionários, ‘tradicionalistas progressistas’, anciãos e antropólogos coloniais”. Minha referência ao
conceito de “invenção das tradições” no contexto de uma discussão sobre cinema deve ser
compreendida como um reconhecimento da necessidade de abordar as possibilidades e os limites
desse conceito em relação às formas especificamente cinematográficas de relação com tradições e
costumes, assim como, mais amplamente, com as origens imaginadas das diversas formas de
africanidades.
6
O termo “griô” traduz o vocábulo francês griot, usado com frequência para designar a figura do
contador de histórias, do narrador que resguarda a memória coletiva de um grupo. No verbete “Griot”
da Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, de Nei Lopes (2011), lê-se: “Termo do vocabulário
franco-africano, criado na época colonial para designar o narrador, cantor, cronista e genealogista que,

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pela tradição oral, transmite a história de personagens e famílias importantes das quais, em geral, está
a serviço. Presente sobretudo na África ocidental, notadamente onde se desenvolveram os faustosos
impérios medievais africanos (Gana, Mali, Songai etc.), recebe denominações variadas: dyéli ou diali,
entre os bambaras e mandingas; guésséré, entre os saracolês; wambabé, entre os peulés; aouloubé,
entre os tucolores; e guéwel (do árabe qawal), entre os uolofes”.
7
Em uma entrevista com o diretor Ousmane Sembène, publicada no Correio da Unesco (1990), o
cineasta senegalês reivindica, tanto como escritor quanto como cineasta, a identificação com a figura
do griô, que define como “uma antiga tradição africana” (SEMBÈNE, 1990, p. 7). Quando interroga as
relações entre a tradição oral, de que faz parte a figura do griô, e a estética dos cinemas africanos,
Nwachukwu Frank Ukadike (1994, p. 203) reconhece “o efeito […] da narrativa oral como uma força
para ‘africanizar’ a linguagem do cinema” (no original: “the […] effect of oral narrative as a force for
‘Africanizing’ film language”). Especificamente, Ukadike (1990, p. 203) considera “intervenções e
digressões que ajudam a mudar pontos de vista no tempo e no espaço; ilustrações dramáticas
compostas por múltiplas vozes narrativas, por exemplo, a história-dentro-de-uma-história;
transgressões por meio de flashback e flash-forward; e a música como estrutura narrativa” (no original:
“interventions and digressions that help to shift points of view in time and space; dramatic illustrations
carved out of multiple narrative voices, for example, the story-within-a-story; transgressions by means of
flashback and flash-forward; and music as narrative structure”).

39

ideológicos nacionalistas, racialistas, pan-africanistas e/ou revolucionários, a


busca de formas cosmopolitas de imaginação do comum por meio do cinema etc.
Quando Med Hondo filma Soleil Ô (1967), parte da contundência dos planos
em que interroga as heranças do colonialismo missionário e assimilacionista8, bem
como a situação dos africanos na Europa, decorre da inversão do olhar, como em
Afrique sur Seine. Ao mesmo tempo, a narrativa diaspórica do filme envolve a
encenação de um retorno traumático às origens – ou, mais exatamente, a uma
fantasmagoria das origens que assume duas formas básicas: o peso da recusa da
identificação do negro com a humanidade e a sua destinação ao cumprimento do
papel de selvagem. À primeira forma corresponde um comentário contundente do
protagonista do filme, num diálogo com um amigo parisiense branco, cuja
encenação quebra a quarta parede por meio de um olhar direto para a câmera:

Parece que, para os brancos, há três tipos de seres vivos: há a espécie humana, a
espécie animal e, então, há os negros. Em todo caso, o que é certo é que, a seus
olhos, nós nunca somos realmente homens9.

À segunda forma, corresponde a aparição do tema do sexo inter-racial na

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narrativa (e a correspondente demanda hipersexual que pesa sobre a figura do
negro ao se relacionar com as fantasias brancas), assim como o desfecho
perturbador reservado a seu protagonista, que passa pela relação com paisagens
de natureza e sucede um intenso monólogo em voz over:

8
O assimilacionismo que caracteriza o colonialismo francês está associado ao horizonte cosmopolítico
do humanismo europeu e a suas relações com o cristianismo missionário, que buscam neutralizar a
alteridade africana, por meio de políticas de integração e de conversão que aspiram a uma espécie
paradoxal de inclusão do africano como excluído, conforme um jogo duplo ou um duplo vínculo em
que a relação entre a civilização e seus outros é, ao mesmo tempo, de assimilação generalizada e de
rejeição sistemática.
9
Tradução do autor a partir do áudio original do filme, conforme a seguinte transcrição: “Il paraît que,
pour les blancs, il y a trois sortes d’êtres vivants : il y a l’espèce humaine, l’espèce animale, et puis il y
a les nègres. En tout cas, ce qu’il y a de sûr, c’est que, à leurs yeux, nous ne sommes jamais tout à fait
des hommes”.

40

Vocês são cúmplices de todos os crimes da Terra. Permitem a perpetuação da


escravidão, dos assassinatos, do genocídio. Escolhem suas vítimas e seus carrascos
segundo a cor de suas peles, conforme aceitem ou recusem suas políticas. E, com a
alma serena, vocês dormem tranquilos. Um agradável sentimento de boa consciência
lhes envolve. Vocês se tornam brancos bons, negros bons. Todos
compassivos. Todos bons cristãos. Mas vocês sabem que todo contato é
interesse. Todo diálogo é mercadoria. Toda ajuda é investimento. Todo tempo é
relação com o futuro. Toda verdade é comprável. O homem morre em seus olhos
abertos, aniquilado, ridicularizado, rejeitado. África, África, África, África…10

Tanto Afrique sur Seine quanto Soleil Ô deslocam a pretensão universalista que
o discurso colonial atribui à experiência histórica europeia e que fundamenta o
projeto humanista. Se há uma cosmopoética, isto é, uma forma de invenção
estética do mundo comum, em toda cosmopolítica, isto é, em toda forma de
constituição jurídico-política do mundo comum, a tarefa da descolonização a que
os cinemas africanos estão associados opera um movimento duplo: por um lado,
a revelação dos limites da aspiração europeia ao universalismo, por meio da
exploração das singularidades que escapam de seu enquadramento; por outro, a
reinscrição da aspiração ao universalismo a partir do deslocamento de seus

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termos com base em alguma forma de africanidade.
À descolonização como tarefa interminável, que se inicia com a inversão do
olhar colonial, sucede o problema da comunidade descolonizada, que aparece,
em Soleil Ô e em outros filmes, sob a forma paradoxal do retorno inventivo às
origens. Nesse sentido, se a inversão do olhar é a primeira figura da cosmopoética

10
Tradução do autor a partir do áudio original do filme, conforme a seguinte transcrição: “Vous êtes
complices de tous les crimes de la Terre. Vous laissez se perpétuez l’esclavage, les assassinats, le
génocide. Vous choisissez vos victimes et vos bourreaux selon la couleur de leurs peaux, selon qu’ils
acceptent ou refusent vos politiques. Et, l’âme sereine, vous dormez tranquilles. Un agréable sentiment
de bonne conscience vous enveloppe. Vous devenez de bons blancs, de bons noirs. Tous
compatissants. Tous bons chrétiens. Alors que vous savez que tout contact est intérêt. Tout dialogue
est marchandise. Toute aide est investissement. Tout temps est rapport au futur. Toute vérité est
monnayable. L’homme crève dans vos yeux ouverts, annihilé, bafoué, rejeté. Afrique, Afrique, Afrique,
Afrique…”.

41

da descolonização que funda os cinemas africanos, em sua busca pela autonomia


do direito de olhar contra a visualidade colonial, o retorno inventivo às origens
pode ser reconhecido como a primeira figura das cosmopoéticas do comum que
constituem o horizonte projetivo em relação ao qual toda cinematografia africana
precisa definir seus termos, suas iconografias e suas narrativas. Dessa forma, a
construção da comunidade descolonizada depende da reivindicação do que Homi
K. Bhabha (2003, p. 34) define como “direito de narrar”: “um ato de comunicação
por meio do qual a recontagem de temas, histórias e registros é parte de um
processo que revela a transformação da agência humana” 11 . Assim como,
segundo Mirzoeff (2011, p. 4), o direito de olhar “não é um direito para
declarações de direitos humanos, ou para advocacia”12, para Bhabha (2003, p.
34), o direito de narrar

[...] não é meramente uma questão de direito e de procedimento; é também uma


questão de forma estética e ética. A liberdade de expressão é um direito individual; o
direito de narrar, se me permitem a licença poética, é um direito enunciativo, em vez
de um direito expressivo – o direito dialógico, comunal ou grupal de interpelar e ser
interpelado [to address and be addressed], de significar e ser interpretado, de falar e

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ser ouvido […]13.

Enquanto o direito de olhar se opõe à visualidade colonial, o direito de narrar


se opõe ao que Edward Said (1995, p. 13) denomina “poder de narrar”, isto é, ao
poder “de impedir que se formem e surjam outras narrativas, [que] é muito
importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais
conexões entre ambos”. Se a cosmopoética da descolonização que funda a
emergência dos cinemas africanos aparece como uma reivindicação do direito de

11
No original: “right to narrate”; “an act of communication through which the recounting of themes,
histories and records is part of a process that reveals the transformation of human agency”.
12
No original: “is not a right for declarations of human rights, or for advocacy”.
13
No original: “is not merely a legal, procedural matter; it is also a matter of aesthetic and ethical form.
Freedom of expression is an individual right; the right to narrate, if you will permit me poetic licence, is
an enunciative right rather than an expressive right – the dialogic, communal or group right to address
and be addressed, to signify and be interpreted, to speak and be heard […]”.

42

olhar, como mostra o exemplo de Afrique sur Seine, o desdobramento da tarefa


interminável da descolonização na busca de cosmopoéticas do comum depende
da articulação daquela reivindicação do direito de olhar com o exercício do direito
de narrar, que assume formas diversas conforme o enquadramento que delimita
seus horizontes. De fato, um dos problemas das nações emergentes no período
posterior às independências políticas africanas é o processo histórico de escrita
de narrativas nacionais, e o cinema participa desse processo, em alguns
contextos, como um dos aparelhos privilegiados de recriação das coletividades.
Ao mesmo tempo, o aparelho cinematográfico inscreve as narrativas nacionais
que ajuda a escrever em processos que as ultrapassam, seja no âmbito da
construção de projetos pan-africanistas, seja em relação a diversas modalidades
de espaçamentos transnacionais, como o internacionalismo revolucionário, o
cosmopolitismo dos direitos humanos ou o afropolitismo.
Se, de acordo com Mbembe (2013, cap. 6), o afropolitismo deve ser
diferenciado do “nacionalismo anticolonial” e do internacionalismo revolucionário
manifesto em diversas “releituras do marxismo”, entendidos como “paradigmas
político-intelectuais” que têm predominado no “discurso africano”14, o termo não

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deve ser entendido como sinônimo ou derivação do pan-africanismo. De fato, é
possível reconhecer, em Afrique sur Seine, em Soleil Ô e em outros filmes,
algumas características que Mbembe (2013, cap. 6) atribui ao afropolitismo e
descreve em referência à literatura (citando, especificamente, obras de Ahmadou
Kourouma, de Yambo Ouologuem e de Sany Labou Tansi) e, secundariamente, à
religião, à música, à dança e ao teatro (sem menções mais específicas).
Efetivamente, nos filmes, as características do afropolitismo aparecem deslocadas
tanto por condições específicas da estética cinematográfica quanto pelos temas
abordados.
Em um primeiro momento pós-colonial de articulação do afropolitismo, que se
diferencia do movimento da Négritude de Léopold Sédar Senghor e de Aimé

14
No original: “afropolitanisme”; “nationalisme anticolonial”; “relectures du marxisme”; “paradigmes
politico-intellectuels”; “discours africain”.

43

Césaire, a sensibilidade afropolita ou afropolítica de Kourouma, Ouologuem e


Tansi, entre outros escritores, “relativiza o fetichismo das origens mostrando que
toda origem é bastarda; que ela repousa sobre um monte de imundícies”,
“reinterroga o estatuto do que se poderia denominar a ‘realidade’” e se desdobra
numa “estética da transgressão”. (MBEMBE, 2013, cap. 6) 15 . Nos cinemas
africanos, Afrique sur Seine representa uma espécie de versão cinematográfica
das inquietações que definem o movimento da Négritude, uma vez que aborda a
experiência paradigmática da busca da africanidade na diáspora e no desterro
metropolitano. No filme de Sarr e Vieyra, a busca da África no Sena corresponde,
esteticamente, ao recurso ao contraponto musical como memória de uma origem
perdida que reclama, ao mesmo tempo, a escrita de si e do mundo como parte de
um processo de luto, a partir da perspectiva da Négritude:

O discurso da Négritude pretendia ser um discurso sobre a diferença, um discurso


da comunidade como diferença. A diferença era concebida como o meio de
recuperar a comunidade, na medida em que se considerava que esta tinha sido o
objeto de uma perda. Era preciso, pois, convocá-la ou reconvocá-la, chamá-la
novamente à vida, por meio do luto de um passado convertido em significante da

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verdade do sujeito, em última instância. Desse ponto de vista, tratava-se de um
discurso das lamentações (MBEMBE, 2013, cap. 6)16.

Em Afrique sur Seine, assim como no discurso da Négritude, a africanidade


está irremediavelmente perdida. Entretanto, ao contrário do que ocorre no
contexto do movimento literário, em que a africanidade perdida é objeto de uma
elaboração simbólica associada à recuperação de signos de identidade que

15
No original: “relativise le fétichisme des origines en montrant que toute origine est bâtarde; qu’elle
repose sur un tas d’immondices”; “réinterroge le statut de ce que l’on pourrait appeler la ‘réalité’”;
“esthétique de la transgression”.
16
No original: “Le discours de la Négritude se voulait un discours sur la différence, un discours de la
communauté comme différence. La différence était conçue comme le moyen de recouvrer la
communauté, dans la mesure où l’on estimait que celle-ci avait fait l’objet d’une perte. Il fallait donc la
convoquer ou la reconvoquer, la rappeler à la vie, par le biais du deuil d’un passé érigé en signifiant en
dernière instance de la vérité du sujet. De ce point de vue, il s’agissait d’un discours des lamentations”.

44

reenviam a um passado étnico distante do colonialismo e de seus efeitos, o filme


de Sarr e Vieyra inscreve o sentido da perda em imagens da realidade
contemporânea, nas quais é possível reconhecer evidências que transbordam a
elaboração simbólica em torno da africanidade. São evidências da colonialidade
que persiste, em meio à luta anticolonial e à emergência da condição pós-colonial,
insinuando a abertura de um espaço de questionamento sobre as origens, a
realidade e sua representação análogo àquele que Mbembe (2013, cap. 6)
reconhece no afropolitismo, a partir de Ouologuem:

[A]o princípio da perda e do luto se substitui aquele do excesso e da desmedida. A


comunidade é por definição o lugar da desmedida, da despesa e do desperdício. Sua
função é a de produzir resíduos. Ela vem ao mundo e se estrutura a partir da
produção de dejetos e da gestão do que ela devora. Passa-se a uma escritura do
que sobra ou ainda do excedente. A realidade (quer se trate da raça, do passado, da
tradição ou, ainda melhor, do poder) não aparece apenas como o que existe e é
passível de representação, de figuração. Ela é igualmente o que recobre, envolve e
excede o existente17.

Efetivamente, se Afrique sur Seine insinua a abertura desse espaço afropolítico,

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Soleil Ô evidencia tanto um desdobramento quanto um deslocamento parcial de
suas coordenadas, uma vez que aborda tanto a diáspora e o desterro quanto o
retorno e a descoberta de um excesso no lugar em que se supunha ser possível
encontrar as origens perdidas. Nesse sentido, o retorno inventivo às origens
constitui a figura temática paradoxal do excesso, do excedente, da sobra e do
resto que permanecem irredutíveis à lacuna que deveriam apenas preencher: o
protagonista do filme de Hondo retorna às origens, simbolicamente, ao se ver

17
No original: “[A]u principe de la perte et du deuil se substitue celui de l’excès et de la démesure. La
communauté est par définition le lieu de la démesure, de la dépense et du gaspillage. Sa fonction est
de produire des déchets. Elle vient au monde et se structure à partir de la production des rebuts et de
la gestion de ce qu’elle dévore. L’on passe à une écriture du surplus ou encore de l’excédent. La réalité
(qu’il s’agisse de la race, du passé, de la tradition ou mieux encore du pouvoir) n’apparaît pas
seulement comme ce qui existe et est passible de représentation, de figuration. Elle est également ce
qui recouvre, enveloppe et excède l’existant”.

45

excluído da comunidade humana e reenviado à condição de selvagem. Inventar as


origens equivale a exceder sua lacuna com um suplemento não originário, que
inscreve na realidade filmada o excesso esteticamente transgressivo da
encenação de performances e da montagem em descontinuidade, nas quais as
possibilidades de transformação da realidade documentada pelo filme a partir da
agência do sujeito são perturbadas e interrompidas. A agência do protagonista de
Soleil Ô – que busca participar da comunidade da humanidade na metrópole, seja
por meio da busca de trabalho, seja por meio de relacionamentos – encontra um
limite incontornável – sua exclusão da humanidade e sua identificação à
selvageria. A tarefa da descolonização permanece por fazer, embora já tenha sido
iniciada pela inversão do olhar colonial, enquanto a imaginação do comum se
projeta no futuro, irredutível a qualquer desejo ou injunção de retorno às origens e
necessariamente atravessada pela potência cosmopoética da invenção de algo
que ainda não tem nome.

A relação com a terra como problema cosmopoético e o afropolitismo


mundial

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Com Touki Bouki (1973), de Djibril Diop Mambéty, o paradoxo do retorno
inventivo às origens assume uma forma ainda mais radical e irônica, por meio da
referência à mitologia (a “jornada da hiena”, como explicita o título do filme em
inglês) e à atividade do pastoreio. O itinerário do pastor Mory, que dirige uma
motocicleta adornada com chifres de touro, e da estudante universitária Anta em
busca de dinheiro para ir a Paris envolve o encontro com figuras mais ou menos
alegóricas – a feiticeira, o policial, o rico homossexual etc. – bem como a
encenação de fantasias de poder bastante perturbadoras, como o desfile de Mory
como se fosse um presidente e, mais adiante, de Mory e Anta como se fossem
autoridades: o presidente e a primeira dama, talvez, de uma nação sem país, uma
coletividade sem nome de que o filme oferece um irônico e melancólico vislumbre.
O desfecho de Touki Bouki lança Mory e Anta em direções opostas. Ele desiste
da viagem a Paris antes de embarcar e corre de volta para sua terra. Ela continua

46

em direção ao sonho que ambos idealizavam e que a conduzirá à vida em outras


partes da Terra – e habitar a Terra depende, nesse sentido, de recusar uma
relação unívoca com a terra, de reivindicar a condição equívoca e derivativa do
desterro. O filme de Mambéty conduz o retorno inventivo às origens que o
atravessa a uma espécie de abertura paradoxal, como se afirmasse, ao mesmo
tempo, em relação à África, a necessidade de retornar e a necessidade de partir.
Essa abertura paradoxal assume uma forma ainda mais interessante porque não
corresponde às expectativas convencionais de papéis de gênero: é a mulher
quem parte, quem recusa as raízes, quem se abre para a condição de desterro; é
o homem quem retorna, quem permanece, quem não se afasta de sua terra. No
horizonte desse movimento, está em questão a duplicidade (frequentemente
renegada ou dissimulada) de toda relação com a terra que se habita: por um lado,
o pertencimento; por outro, a deriva.
É da duplicidade ambivalente da relação de pertencimento e de deriva com a
terra que decorre parte da contundência dos cinemas africanos, nos quais será
sempre preciso reconhecer as marcas da diáspora. Três filmes mais recentes
revelam a diversidade de sentidos que essa relação com a terra assume, e um

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olhar sobre eles sugere que a reivindicação do direito de olhar, de narrar e de
imaginar o mundo que constitui o gesto fundamental dos cinemas africanos não
deve ser reduzida a uma política da identidade (cultural, nacional, de gênero
etc.) nem a uma política da representação (a luta em torno dos estereótipos, a
busca da imagem positiva etc.). Esses três filmes pertencem, ademais, a três
áreas geopolíticas distintas, mas são atravessados pela mesma busca de
cosmopoéticas do comum: La vie sur terre (1998), de Abderrahmane Sissako (área
francófona), Terra sonâmbula (2007), de Teresa Prata (área lusófona), e
Pumzi (2009), de Wanuri Kahiu (área anglófona)18.

18
A divisão da África em áreas geopolíticas associadas às línguas que os Estados nacionais do
continente herdaram dos colonizadores europeus não deve ser compreendida de modo estanque e
absoluto, embora ofereça um quadro interpretativo recorrente nos estudos sobre cinemas africanos e
sobre a história recente do continente.

47

La vie sur terre é um filme de regresso, como argumenta Amaranta César


(2012, p. 200), que “se constrói, plano após plano, sobre a crença no
deslocamento como produtor de imagens e falas”. O deslocamento que constitui
o filme complementa o movimento diaspórico que inaugura os cinemas africanos
(em Afrique sur Seine, por exemplo) com um movimento de retorno interrogativo
(mas de forma alguma assertivo). Sua articulação do tema da relação com a terra
passa por um interesse nos problemas da comunicação e da incomunicabilidade:
a carta endereçada ao pai, que abre o filme; os trechos do Cahier d'un retour au
pays natal e do Discours sur le colonialisme, de Aimé Césaire, que a voz do
próprio Sissako lê; as emissões de rádio, ora vindas da França, ora da estação
local; o escritório dos correios de Sokolo, em cujo centro está um telefone que
nem sempre funciona.
O retorno de Sissako à terra em que ainda vive seu pai, a aldeia de Sokolo, no
Mali, opera como parte de um dispositivo que envolve, igualmente, o tema da
virada do milênio, decorrente da inserção de La vie sur terre no projeto 2000 vu
par… (“2000 visto por…”), realizado pelo canal Arte da televisão francesa.
Retornar às origens para observar o tempo que vem: eis o gesto que inaugura o

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movimento de deslocamento de La vie sur terre. No início do filme, vemos Sissako
atravessando os corredores de uma loja abarrotada dos mais diversos produtos;
depois, veremos o diretor em meio às paisagens de Sokolo e à interrogação de
sua relação com a terra pátria, que é uma interrogação de si mesmo, como sujeito
que é interpelado a representar alguma africanidade entre os dez realizadores
convidados para o projeto 2000 vu par… e como sujeito que se constitui, ao
mesmo tempo, a partir de um distanciamento em relação à África:

[...] se num sentido reivindica-se a proximidade, em outro sentido as coisas parecem


misteriosas, indecifráveis por esse olhar que se demora demasiadamente atento às
minúcias e insignificâncias do cotidiano, inscrevendo-as numa duração que torna
estranho o familiar. O resultado disso é tanto uma opacidade – Sissako recusa o
posto de tradutor da África, não há tradução possível –, quanto um gesto de
distanciamento, que termina por enfatizar o próprio olhar: a terra, assim, torna-se
paisagem […]. (CÉSAR, 2012, p. 201).

48

Entre as paisagens europeias e as paisagens africanas, La vie sur terre introduz


um plano dos galhos de um baobá projetando-se em direção ao céu:

No lugar da imagem antológica das grandes raízes que se estendem pelo chão, onde
homens sentam-se para conversar e contar histórias, Sissako nos dá a imagem do
tronco seco, nu, desse grande baobá cujas extremidades formam um emaranhado
de galhos que se projetam para o céu. Há aqui um significativo movimento de
inversão que se anuncia. O que Sissako parece propor não é um retorno às raízes, ou
à identidade original: trata-se de afirmar uma transformação do lugar de enunciação.
As histórias e palavras ancoradas nesse solo vão se emaranhando em uma grande
trama e projetam-se para fora do quadro. É nesse sentido que ele afirma sua posição
intermediária. Sissako parece querer deixar claro que ele fala da África, a partir da
perspectiva africana, para o mundo. (CÉSAR, 2012, p. 203).

A imagem dos galhos do baobá remonta à iconografia cinematográfica, literária


e mitológica do tronco do baobá, deslocando o sentido de enraizamento que
tende a ser associado à árvore a partir da revelação da densa deriva de seu
labirinto de galhos. As raízes, que podem ser compreendidas como uma metáfora
do pertencimento e da relação com as origens, permanecem fora de campo,
enquanto os galhos são visíveis em sua imobilidade instável e em sua fragilidade

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inquieta, como uma metáfora da deriva e da potência cosmopoética da invenção
de um olhar sobre si que é, igualmente, um olhar sobre o mundo – e de um olhar a
partir da África que é, ao mesmo tempo, um olhar a partir do mundo. O
pertencimento e a deriva como formas de relação com a terra dependem,
efetivamente, da comunicação, de suas possibilidades e de seus limites, que La
vie sur terre explora como parte de um interesse mais amplo de Sissako no tema
da incomunicabilidade, com base no que se pode denominar cosmopoética da
fragilidade (RIBEIRO, 2012).
É, talvez, de uma das formas mais radicais de incomunicabilidade que parte
Terra sonâmbula, que assume o risco poético da reivindicação do direito de olhar,
de narrar e de imaginar o mundo a partir da experiência e da memória da guerra
civil em Moçambique. Como adaptação do livro homônimo de Mia Couto, o filme
de Teresa Prata apresenta a realidade moçambicana por meio de uma alegoria
fantasiosa em dois tempos: o menino Muidinga e o velho Tuahir caminham em

49

busca do mar, enquanto Muidinga lê o diário que encontrou junto a um cadáver na


beira da estrada. A narrativa do filme intercala a caminhada dos dois
protagonistas com a apresentação de episódios narrados no diário. Entre os dois
tempos da alegoria, os dois encontram uma série de personagens que
representam os efeitos e as heranças da guerra, até que o filme articula um
sentido de esperança em meio à devastação. O trauma da guerra civil é abordado
por meio dos delírios que compõem a alegoria poética de Terra sonâmbula, e se o
sono e o sonho da razão produzem monstros, o sono e o sonho da terra
produzem figuras do mundo comum que se perde, interminavelmente, na
incomunicabilidade radical da guerra e de suas heranças.
Se La vie sur terre representa a cosmopoética da fragilidade que se desdobra
no cinema de Sissako por meio da exploração de uma relação com a memória da
terra, que é tanto a memória da infância, do pai e da aldeia quanto a memória da
violência colonial, de Césaire e da luta contra o colonialismo, Terra sonâmbula
introduz uma forma de cosmopoética do comum que transborda a tarefa política
da descolonização a partir da elaboração de uma relação imaginativa com a terra.
A reivindicação do direito de olhar e de narrar a experiência histórica

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moçambicana está atravessada por uma exploração do direito de imaginar a terra,
isto é, tanto de sonhar sua coesão a partir do reconhecimento de um
pertencimento a uma história nacional comum, quanto de fantasiar sua abertura a
partir da exploração de uma deriva que converte a herança da guerra em recurso
de imaginação do comum. Uma cosmopoética da fantasia, talvez, na qual as
raízes foram destruídas e todo pertencimento permanece duvidoso (não há terra à
qual retornar), ao mesmo tempo em que os galhos não se projetam sobre o céu e
toda deriva depende de alguma medida da fuga (é preciso fantasiar outra terra ali
onde não há mais terra).
Quando Wanuri Kahiu filma Pumzi (2009), a terra não é nem o lugar do
pertencimento perdido a que se pode regressar e que se deve interrogar, como
em La vie sur terre, nem o lugar da devastação, de que não é possível escapar
senão pela fantasia, como em Terra sonâmbula. A ficção científica de Kahiu
inscreve o tema da relação com a terra no contexto de um tema cada vez mais

50

frequente em nossos tempos: o fim do mundo (DANOWSKI; VIVEIROS DE


CASTRO, 2014). Em Pumzi, vemos o que sobrevive do planeta depois de uma
Terceira Guerra Mundial, a guerra da água. O mundo comum está reduzido a um
conjunto de protocolos estritos e a um controle rigoroso do corpo de cada
indivíduo, de sua fisiologia e de seus sonhos, que são contidos por drogas.
A busca de uma faísca de vida que possa desencadear a renovação da
paisagem desértica em que se converteu o planeta dá à figura de Asha, a
protagonista, seu sentido dramático, seus objetivos narrativos e sua singularidade,
num contexto diegético em que tudo parece funcionar maquinalmente, sem
questionamento, sem indecisão, sem dúvida, em suma, sem vida. Algo da
esperança melancólica que define o desfecho do filme – em que Asha morre para
se converter em uma árvore no meio do deserto – parece anunciar que,
atualmente, toda forma de imaginação do comum deve passar pelo
reconhecimento da implicação de cada um de nós e de cada um dos fios que
compõem nossa época num mundo comum em desaparição.
De fato, La vie sur terre, Terra sonâmbula e Pumzi podem ser associados ao
que Mbembe (2013, cap. 6) define como um segundo momento do afropolitismo,

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uma espécie de afropolitismo mundial, que “corresponde à entrada da África
numa nova era de dispersão e de circulação” 19
. Nesse contexto, um
descentramento da africanidade torna possível que os filmes transbordem a
cosmopoética da descolonização, articulando suas diversas formas de
cosmopoéticas do comum em relação a caminhos que se abrem a partir e além
da africanidade, no espaço e no tempo da mundanidade (em oposição às
definições de identidade e de diferença que recortam o mundo comum em esferas
incomensuráveis) e da mundialidade (em oposição à globalização como projeto
dominante associado aos fluxos do capital).

Essa nova era se caracteriza pela intensificação das migrações e pela implantação
de novas diásporas africanas no mundo. Com a emergência dessas novas diásporas,
a África não constitui mais um centro em si. De agora em diante, ela é feita de polos

19
No original: “correspond à l’entrée de l’Afrique dans un nouvel âge de dispersion et de circulation”.

51

entre os quais há constantemente passagem, circulação e abertura de caminhos


[frayage]. […] [A] questão não é mais saber de que essência é a perda: é saber como
constituir novas formas do real – formas flutuantes e móveis. Não se trata mais de
retornar a todo custo à cena primordial ou de refazer no presente os gestos
passados. Se ele desapareceu, o passado não está, entretanto, fora de campo. Ele
ainda está aqui, sob a forma de uma imagem mental. Rasuram-se, apagam-se,
substituem-se, eliminam-se, recriam-se as formas e os conteúdos. Procede-se por
falsos raccords, discordâncias, substituições e montagens – condição para atingir
uma força estética nova. (MBEMBE, 2013, cap. 6)20.

Se, como escreve Mbembe (2013, cap. 6) em seguida, “[a] África ela mesma é,
de agora em diante imaginada como um imenso intervalo, uma inesgotável citação
passível de diversas formas de combinação e composição”21, é preciso pensar
suas relações com o mundo num sentido novo, conforme um reconhecimento de
sua radical contemporaneidade, tal como evidenciam La vie sur terre, Terra
sonâmbula e Pumzi. De fato, ali onde La vie sur terre canta, com a força da escrita
poética de Aimé Césaire e a fragilidade da imagem dos galhos do baobá, a
humanidade comum que é preciso construir cotidianamente, contra o racismo; ali
onde Terra sonâmbula enaltece, contra a realidade da guerra e com a fantasia da

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escrita poética de Mia Couto, as possibilidades do sonho e o sentido utópico que
pode resguardar alguma redenção em meio a tempos sombrios; ali onde
Pumzi assinala a necessidade suplementar de interrogar a humanidade e o sonho

20
No original: “Ce nouvel âge se caractérise par l’intensification des migrations et l’implantation de
nouvelles diasporas africaines dans le monde. Avec l’émergence de ces nouvelles diasporas, l’Afrique
ne constitue plus un centre en soi. Elle est désormais faite de pôles entre lesquels il y a constamment
passage, circulation et frayage. […] [L]a question n’est plus de savoir de quelle essence est la perte :
elle est de savoir comment constituer de nouvelles formes du réel – des formes flottantes et mobiles. Il
ne s’agit plus de retourner à tout prix à la scène première ou de refaire dans le présent les gestes
passés. S’il a disparu, le passé n’est cependant pas hors champ. Il est encore là, sous la forme d’une
image mentale. On rature, on gomme, on remplace, on efface, on recrée les formes et les contenus. On
procède par de faux raccords, des discordances, des substitutions et des montages – condition pour
atteindre une force esthétique neuve”.
21
No original: “L’Afrique elle-même est désormais imaginée comme un immense intervalle, une
inépuisable citation passible de maintes formes de combinaison et composition”.

52

em sua relação com o mundo que nos resta, em suma, os cinemas africanos
entrelaçam a cosmopoética da descolonização que os funda, que corresponde ao
afropolitismo pós-colonial, com as cosmopoéticas do comum que seus filmes
buscam interminavelmente, associadas ao afropolitismo mundial.

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54

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partir de edição alemã de Martin Warnke, com a colaboração de Claudia Brink.
Tradução para o espanhol de Joaquín Chamorro Mielke. Madrid: Ediciones Akal,
2010.

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Submetido em 27 de agosto de 2016 | Aceito em 8 de dezembro de 2016

55

Guiné-Bissau:
do cinema de Estado ao cinema fora do Estado

Paulo Cunha1, Catarina Laranjeiro 2

1
Paulo Cunha é doutor em Estudos Contemporâneos pela Universidade de
Coimbra. Leciona Cinema na Universidade da Beira Interior e na Escola Superior

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de Tecnologia de Abrantes. É pesquisador integrado do CEIS20 – Centro de
Estudos Interdisciplinares do Séc. XX da Universidade de Coimbra e da Rede
Proprietas. É membro fundador e dirigente da AIM – Associação de Investigadores
da Imagem em Movimento. Tem publicado diversos textos sobre cinema
português, cineclubismo e cinema de amadores, políticas públicas e modos de
produção.
e-mail: pmfcunha@ubi.pt
2
Catarina Laranjeiro é doutoranda em Pós-Colonialismo e Cidadania Global no
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. O seu projeto de
doutoramento foca o Cinema e Cosmopolítica como instrumentos para pensar a
memória da Luta de Libertação na Guine-Bissau. Realizou o filme Pabia di Aos
(2013). Desde 2010, tem colaborado em diferentes projetos que cruzam cinema,
arte e antropologia).
e-mail: catarina.laranjeiro@gmail.com

56

Resumo

O objetivo deste artigo é, olhando para o passado da Guiné-Bissau nas últimas cinco décadas,
refletir sobre o papel do cinema na construção da sociedade, da nação e do Estado da Guiné-Bissau.
Pretende-se fazer um ponto de situação em relação ao projeto inicial de Amílcar Cabral, líder histórico
da luta de libertação, que tomava o cinema enquanto meio para a descolonização do gesto e para a
emancipação do olhar. Neste percurso, começamos por reconhecer a importância e a influência de
movimentos emancipatórios no cinema mundial, como o Terceiro Cinema ou o Nuevo Cine latino-
americano, no processo de luta revolucionária dos guineenses contra o colonizador e, posteriormente,
no consequente processo de construção de uma identidade ou cultura nacional. Num segundo
momento, tentamos relacionar os planos de Amílcar Cabral para a consolidação de uma
cinematografia nacional (Cinema de Estado) com o atual cenário cinematográfico no território em que
não se vislumbra qualquer política pública para o setor (Cinema fora do Estado).

Palavras-chave: Guiné-Bissau; Descolonização; Políticas Públicas; Amílcar


Cabral.

Abstract

We propose to reflect on the civil society, the nation and the State in Guinea-Bissau, through a

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panoramic analysis of the cinema of Guinea-Bissau over the last five decades. Taking into account
Amílcar Cabral´s Cabral initial project, we pay special attention to the production of cinema in Guinea-
Bissau in the context of post-colonial African cinema.

Keywords: Guinea-Bissau; Decolonization; Public Policies; Amílcar Cabral.

57

Introdução

A Guiné-Bissau é um pequeno país na costa ocidental africana, antiga colônia


portuguesa. Entre 1960 e 1980, foi uma arena de intensas transformações sociais
e políticas, com uma longa luta de guerrilha pela independência e a consequente
construção de um Estado-nação. Durante mais de uma década (1963-74), o
território foi palco de uma violenta guerra que opôs Portugal, enquanto
colonizador, ao PAIGC, partido político e movimento militar anticolonial que
reivindicava a independência politica da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Os
guerrilheiros 1 dessa luta eram tidos como inspiração e modelos de ação de
libertação de seus povos por via da luta de classes e da descolonização. (ROQUE,
2014, p. 1). No contexto da Guerra Fria, parte dos atores e movimentos locais e
internacionais tomavam essa guerra como uma luta justa, com objetivos legítimos
e animada por uma agenda de transformação social, econômica e política. Foi
também o lugar certo para “realizadores de utopias” e palco para propaganda
ideológica de inspiração socialista, em que o cinema foi um grande protagonista.
A Guiné-Bissau independente seria, nas palavras de Amílcar Cabral, o histórico

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líder do movimento de libertação, uma “nação africana forjada na luta” (CABRAL,
1974) contra o colonialismo português. Atribuindo à luta de libertação a fundação
do Estado-nação, a formação do Partido Africano para a Independência da Guiné
e de Cabo Verde (PAIGC) é considerada o acontecimento mais marcante da
história política da Guiné-Bissau. Sendo um partido de vanguarda, representava e
confundia-se com o Estado-nação em construção.
O cinema foi utilizado por esse partido/movimento com o propósito de produzir
um sentido ideológico para a sua História. Pretendia-se, assim, que a nação
guineense fosse projetada no imaginário coletivo através de processos de
representações sociais presentes no discurso fílmico. Ciente das suas

1
Os combatentes do PAIGC eram designados por “guerrilheiros” porque praticavam a Guerrilha, um
tipo de guerra não convencional na qual a principal estratégia era a ocultação e extrema mobilidade
dos combatentes, incluindo também civis armados. Só a título de exemplo, essa foi também a mesma
estratégia adotada em Cuba pelo grupo de Fidel Castro e Che Guevara.

58

potencialidades, Amílcar Cabral decretou o cinema como um meio revolucionário,


considerando-o fundamental para a descolonização do gesto e do olhar e para a
construção da memória da luta.
O objetivo deste artigo é, através de uma análise panorâmica do cinema da
Guiné-Bissau nas últimas cinco décadas, refletir sobre o papel do cinema na
construção da sociedade, da nação e do Estado da Guiné-Bissau. Pretende-se
fazer um ponto de situação em relação ao projeto inicial de Cabral que tomava o
cinema enquanto meio para a descolonização do gesto (enquanto movimento
expressivo ou produtor de ideias) e para a emancipação do olhar (enquanto
movimento libertador da recepção de ideias). Procuramos ainda dar particular
atenção à produção de cinema na Guiné-Bissau no contexto do cinema africano
pós-colonial.

1. Cinema e Revolução

No contexto das lutas de libertação, diferentes estadistas compreenderam que


o cinema constituía uma ferramenta poderosa na construção da memória
identitária das nações que lutavam pela sua autonomia, tendo-se tornado num

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componente essencial nas lutas que marcaram o fim do colonialismo. (CUNHA,
2013, p. 33). Tal pensamento cinematográfico inscreve-se no que seria designado
de movimento do Terceiro Cinema, cujo objetivo era promover uma reflexão crítica
sobre as desigualdades sociais e políticas e ativar uma consciência revolucionária
global através do cinema. (SOLANAS; GETINO, 2016).
Historicamente ignorado pela visão eurocêntrica da historiografia canônica do
cinema, é nos anos 50 que uma consciência ideológica em torno do combate ao
colonialismo também passa a incluir o cinema, visto então como poderoso veículo
de intervenção política e social. Agrupando as cinematografias de países
colonizados, neocolonizados ou descolonizados (considerados “atrasados” e
“subdesenvolvidos” pelas nações colonizadoras), esses cinemas caracterizavam-
se, sobretudo, por estruturas produtivas “formadas e deformadas pelo sistema
colonial”. (STAM, 2006, p. 112).

59

Os autores do Terceiro Cinema, muito influenciados pelo neorrealismo italiano,


reclamavam um cinema baseado em orçamentos reduzidos, recorrendo a
recursos técnicos simples (iluminação natural, película 16 mm, etc.), técnicas de
improvisação e atores não profissionais. A desconstrução das narrativas coloniais
e a subversão da tradição cinematográfica ocidental eram o objetivo a atingir.
Destaca-se que esse encontro começou no momento da descolonização e
continuou no pós-independência, quando muitos dos novos Estados africanos
tomaram o cinema como uma forma de expressão política de sua soberania no
plano simbólico.
O cinema africano desenvolveu-se no contexto de lutas entre o colonizador e o
colonizado e os seus legados na era pós-colonial, acreditando-se que o sucesso
da ação anticolonialista só pode ser completado quando se restitui ao colonizado
o seu olhar, a sua história e a sua memória. Acreditava-se que, através da
apropriação de ferramentas cinematográficas, poderia afirmar-se a
“autenticidade” africana e transformar o homem e a mulher africana em autores e
sujeitos em vez de meros objetos de observação etnográfica. O cinema africano
emergiu por uma vontade de realismo social, de educação moral e política e de

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reabilitação cultural, numa altura em que estava tudo por fazer no sentido de
recusar o exotismo e a alienação colonial. (DIAWARA, 2011, p. 89-90). Apesar
desse otimismo, é necessário ter presentes dois problemas que se colocaram (e
ainda hoje continuam a colocar-se) aos realizadores africanos: a maioria formou-
se em escolas de cinema na Europa, assim como o modo de financiamento. Esse
fato não facilita a criação de uma identidade estética africana e impõe dinâmicas
coloniais/neocoloniais na produção de cinema. (Ibid., p. 93).
Nesse contexto, ganhou particular significado a polémica, em agosto de 1965,
nas páginas da revista France Nouvelle (nº 1033), entre o cineasta senegalês
Ousmane Sembène e o cineasta francês Jean Rouch. Apesar de confessar que
gostou de Moi, un noir (1958, Rouch) e reconhecer que esse filme é um dos raros
exemplos de “filmes de valor feitos sobre África”, Sembène acusa a generalidade
de produção cinematográfica europeia sobre África de “fixar uma realidade sem
ver a evolução” e de olhar para os africanos como quem olha para “insetos”.

60

Sembène é, justamente, considerado o “pai” do cinema africano porque ajudou


a construir o cinema africano pós-colonial, concebido e produzido por africanos
negros que reclamavam um olhar autônomo e distante das convencionais
representações do continente africano feitas por realizadores brancos, europeus
ou colonos nascidos em África. Sembène proporá uma espécie de uma “dupla
contra-etnografia”, em que pretende esboçar um retrato de Si e um retrato do
Outro. (JONASSAINT, 2010, p. 245). Seus primeiros filmes, nomeadamente Borom
Sarret (1963) e La Noire de... (1966), retratam precisamente os cotidianos das
populações pobres que são exploradas pelo sistema colonial, com claras
preocupações sociais e ideológicas.
Em suma, os teóricos e cineastas do Terceiro Cinema recusavam liminarmente
“as representações caricaturais de sua história e cultura” (STAM, 2006, p. 114)
produzidas pelo cinema europeu e, sobretudo, norte-americano, como acontecia
com os estereótipos cinematográficos mais populares de África (King Kong ou
Tarzan) ou da América Latina (Carmen Miranda). No contexto de vários
acontecimentos políticos significativos, como a revolução cubana (1959) ou a
independência da Argélia (1962), a ideologia cinematográfica terceiro-mundista

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consolidou-se em torno de alguns textos cruciais, como “Estética da Fome”
(1965, de Glauber Rocha) ou “Hacia un Tercer Cine. Apuntes y Experiencias para
el desarrollo de un cine de liberación en el Tercer Mundo” (1969, de Fernando
Solanas e Octavio Getino). Nesse último manifesto, Solanas e Getino
“denunciaram o colonialismo cultural que normalizava a dependência latino-
americana”, que operava através de uma “ideologia neocolonial” que se
manifestava também através da linguagem cinematográfica que resultava na
“adopção das formas ideológicas inerentes à estética dominante”. (Ibid., p. 116).
Para esses teóricos e cineastas argentinos, o caminho do Terceiro Cinema seria
obrigatoriamente o do cinema revolucionário:

[...] in an alienated world, culture-obviously, is a deformed and deforming product. To


overcome this it is necessary to have a culture of and for the revolution [...] In this
case of the cinema [...] its transformation from mere entertainment into an active

61

means of delineation becomes imperative [...]. The camera then becomes a gun, and
the cinema must be a guerrilla cinema. (SOLANAS; GETINO, 2016).

Como sublinham Roncallo e Arias-Herrera (2013, p. 93), a palavra “revolução”


surge nos principais textos e manifestos cinematográficos produzidos na América
Latina nos anos 60, mas também nos discursos e intervenções de vários
cineastas, desde Fernando Birri e Jorge Sanjinés até Miguel Littín e Patrício
Guzmán, entre dezenas de outros. Diferentemente de outros movimentos
europeus (como o Oberhausen Manifesto, 1962), em que se discutiam políticas
públicas de regulação da indústria cinematográfica, para os movimentos terceiro-
mundistas a questão não era meramente cinematográfica, mas essencialmente
um “problema social”, afirmando a necessidade de pensar o cinema como um
“instrumento social” que não se poderia separar das grandes questões políticas
desse tempo. (Ibid., p. 96).
É, portanto, natural que o Nuevo Cine latino-americano seja hoje visto
essencialmente como um exemplo de cinema político, que recusava o modelo de
produção capitalista de Hollywood e a sua influência cultural sob as pequenas
cinematografias. Para os cineastas do Terceiro Cinema, a chave para um cinema

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revolucionário seria a capacidade de criar uma analogia estrutural entre realidade,
filme e pensamento: “Em suma, a realidade social – miséria, subdesenvolvimento,
fome – definida pelas contradições internas, isto é, a realidade dialéctica, precisa
de uma dialética fílmica que produza no povo a consciência profunda da sua
condição”. (Ibid., p. 102).
O pensamento cinematográfico terceiro-mundista apresentava claras
referências à obra de Frantz Fanon, filósofo e psiquiatra francês nascido na ilha da
Martinica que desenvolveu diversos estudos sobre a psicopatologia da
colonização. Fanon ficaria marcado pelo discurso proferido em 1958, no All-
African Peoples Congress de Acra, quando advogou uma surpreendente e
polêmica tese acerca da necessidade do uso da violência como condição para
combater o racismo, o sexismo, o colonialismo e o neocolonialismo. (RABAKA,
2009, p. 167-168).
A realização, em janeiro de 1966, em Havana, da V Conferência de

62

Solidariedade aos Povos da África, Ásia e América Latina, mais conhecida como a
Conferência Tricontinental, seria fundamental para a emancipação do cinema na
Guiné-Bissau. Organizada em Cuba, para celebrar o sucesso da revolução
socialista e anti-imperialista cubana, a Tricontinental consagrou os seus trabalhos
para promover a luta pela libertação nacional, a consolidação das independências
e soberanias nacionais, e o direito à autodeterminação dos povos colonizados. O
jovem líder africano Amílcar Cabral foi uma das figuras de destaque entre os
inúmeros participantes, em que figuravam o chileno Salvador Allende e o
venezuelano Pedro Medina Silva, e, seguramente, acompanhou os trabalhos de
uma das principais resoluções, dedicada a combater “a penetração cultural e
ideológica do imperialismo norte-americano na América Latina”. (OLAS, 1967, p.
48-50). Para além de denunciar o “domínio imperialista” da cultura de massas que
“deforma a verdade e trata de introduzir falsos valores políticos, morais e
estéticos” ou que “impõe esquemas de informação, gostos e modos de vida que
não correspondem de alguma forma aos nossos países”, a resolução exortava
que “o dever de todo o revolucionário é fazer a revolução”. (OLAS, loc. cit.).
O exemplo revolucionário cubano também se manifestava através do cinema, e

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a criação do Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográfica (ICAIC, 1959)
pretendia, precisamente, dotar os cineastas cubanos das condições necessárias
para a prática artística e vanguardista da cultura cubana e latino-americana. Foi
através do ICAIC que o cinema se tornou um agente fundamental na Revolução
cubana. (CHANAN, 2004, p. 3).
As relações entre os dois países foram estreitando-se, e, depois de uma fase
inicial em que as preocupações de Cuba se focaram, sobretudo, no espaço latino-
americano, o governo de Fidel Castro dedicou crescente atenção a vários
movimentos de libertação africana, com particular destaque para a luta de
libertação liderada por Amílcar Cabral, na Guiné-Bissau. (MALITSKY, 2013, p.
200).

63

2. Cinema e Nação

O uso do cinema pela propaganda tornou-se hegemônico quando ele coincidiu


precisamente com uma forte projeção que algumas nações fizeram de si através
do discurso fílmico. A Guiné-Bissau não foi exceção. Por esse motivo, o cinema
foi utilizado pelo movimento de libertação, o Partido Africano para a
Independência da Guiné e Cabo-Verde (PAIGC), com o propósito de contribuir
ideologicamente para a sua causa política e militar. Pretendia-se, assim, que a
nação guineense fosse projetada no imaginário coletivo através de processos de
representações sociais que o cinema tradicionalmente convoca.
Nesse sentido, diferentes jornalistas e cineastas estrangeiros decidiram
engajar-se na luta de libertação da Guiné-Bissau, nomeadamente através da
produção de imagens capazes de fornecer evidências para a legitimação da luta
armada no contexto da descolonização. Um dos mais notáveis cineastas que
acompanhou de perto todo o processo de luta e descolonização na Guiné-Bissau
foi Lennart Malmer, realizador sueco que mais tarde se tornaria uma referência
para a futura geração de realizadores guineenses:

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Bem, os filmes que fizemos na Guiné-Bissau, a documentar as actividades sociais ou
do Estado, tudo isto foi criado para ‒ nas áreas libertadas, as escolas, os hospitais,
toda a organização e tudo, tudo era necessário para documentar e mostrar, porque
no início, claro, muitas vozes críticas diziam que era falso, que eles eram apenas
terroristas (MALMER 2015 apud LARANJEIRO 2015)

Tendo em conta as circunstâncias históricas, na Guiné-Bissau como em outros


países africanos, é importante ter presente que o Estado precedeu a nação. Para
defender e consolidar a ideia de que a Guiné-Bissau era um Estado ocupado por
forças estrangeiras foi essencial criar uma estrutura de Estado nas áreas
libertadas, razão pela qual Cabral defendia que as características fundamentais
para a libertação eram:

Prática da democracia, da crítica e da autocrítica; a responsabilidade crescente das


populações pela administração das suas próprias vidas; a criação de escolas e de

64

serviços de saúde; a formação de quadros originários das classes camponesa e


trabalhadora. (CABRAL, 1974, p. 23).

Argumentava, assim, que os combatentes não eram militares, mas sim


“militantes armados”, considerando que o recurso às armas era apenas um
momento circunstancial e que o mais importante era o desenvolvimento integral
do país. Dessa forma, e a partir de 1969, quando o controle militar estava
assegurado em grande parte do território, o PAIGC concentrou grande parte dos
seus esforços na criação de uma nova ordem social, capaz de testemunhar a nova
nação que se estava a criar. Naturalmente, o cinema guineense nasceu com o
intuito de criar uma memória documental – “um país sem documentários é como
um país sem memória” (Patrício Guzmán) – capaz de suportar uma ideia de
identidade nacional e, consequentemente, de Estado-nação, como reconheceu o
realizador italiano Vittorio De Seta (2008, p. 6) sobre o seu trabalho na Guiné-
Bissau: “Era necessário criar documentos sobre aquele momento único na
história: o nascimento de uma nação”.
Os primeiros filmes que davam uma perspectiva diferente da colonial
portuguesa chegaram pela câmara de diversos cineastas estrangeiros: Madina-

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Boé (Cuba, 1968), de José Massip, filmado nas áreas libertadas da Guiné-Bissau,
durante a guerra de libertação de Portugal, segue as atividades do Exército
Popular para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde, documentando a
educação política dos combatentes, as técnicas de guerrilha e o treino físico,
incluindo ainda uma entrevista rara com Amílcar Cabral; A Group of Terrorists
Attacked… (Reino Unido, 1968), de John Sheppard, acompanha o realizador
durante várias semanas nas zonas libertadas pelo PAIGC na Guiné-Bissau,
procurando dar a ver a organização da vida nas regiões libertadas e explicar o
início da luta e a formação das tropas independentistas, e mostrando uma
importante entrevista com Amílcar Cabral; Labanta Negro! (Itália, 1966), de Piero
Nelli, pretende ser um testemunho da guerra de libertação da Guiné-Bissau, a
partir das áreas já libertadas, onde a guerra e a atividade militar convivem com a
criação das estruturas de uma sociedade civil que se organiza nas florestas,
aldeias e savanas, incluindo ainda imagens de um comício do PAIGC, no qual

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intervém Luís Cabral sobre a luta de libertação; No Pincha! (França, 1970), de


Tobias Engel, René Lefort e Gilbert Igel, foi decisivo para dar a conhecer ao
mundo e às instâncias diplomáticas a realidade no terreno, documentando a
sociedade organizada e participativa pelo PAIGC, com as suas instituições e
instrumentos de cidadania. (CUNHA, no prelo).
Hoje, essas imagens permitem-nos compreender a importância de divulgar a
luta e dar visibilidade às ações desenvolvidas nas zonas libertadas. Para além de
testemunhar a guerra, atestam que estavam a ser construídas nessas áreas
estruturas capazes de suportar um Estado-nação, ao nível da educação, da
saúde, da economia, da justiça e da administração. (ALMADA, 2012). Nesse
sentido, esses filmes legitimavam as reivindicações do PAIGC e veiculavam a
mensagem de que tinha conquistado parte do território, que estava a criar uma
sociedade civil nas áreas libertadas e que se desenvolvia uma ação militar eficaz
contra Portugal. (CUNHA, no prelo).
Mas, apesar do elevado número de realizadores “caça-revoluções” que
estiveram na Guiné-Bissau nesse período histórico, Amílcar Cabral considerava
que faltava a capacidade dos guineenses produzirem as suas próprias imagens e

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assim, simbolicamente, garantir a independência do gesto e do olhar e a
possibilidade da construção de uma memória fílmica realizada pelos próprios
guineenses. O histórico líder independentista “apercebeu-se desde cedo da
importância das imagens e da sua capacidade persuasiva na divulgação de
discursos e doutrinas”, assim como a capacidade das imagens “descolonizadas”
em mobilizar os guineenses na luta pela independência e em oferecer ao “povo
português” uma versão da história e do conflito armado na África que “fosse
diferente da vinculada pelo aparelho propagandístico do olhar colonial” do Estado
Novo. (CUNHA, 2013, p. 46-47).
Assim, entre 1967 e 1972, por iniciativa direta do líder histórico do PAIGC,
quatro jovens guineenses – José Cobumba Bolama, Josefina Crato, Flora Gomes
e Sana Na N'Hada – receberam formação em cinema em Cuba, no ICAIC:

66

Eu costumo dizer que o cinema feito por nós, guineenses, começou quando nós
começámos a filmar. Quando nós chegámos de Cuba, nós: a Josefina Crato, o José
Bolama, o Flora e eu. Nós chegamos a Conacri a 7 de janeiro de 1972. Havia guerra.
Nós tínhamos saído da guerra, ido a Cuba e voltámos para a guerra. (N’HADA 2015
apud LARANJEIRO, 2015b).

Em Cuba, o cineasta Santiago Álvarez foi mesmo uma das referências


fundamentais na formação desses quatro jovens guineenses. Um dos três
fundadores do ICAIC, Álvarez foi seguramente a principal figura do cinema cubano
revolucionário, sendo responsável pelo Noticiero ICAIC Latinamericano, o
cinejornal semanal criado por Álvarez em 1960 que pretendia mostrar ao mundo a
verdade sobre Cuba, a América Latina e as lutas revolucionárias do Terceiro
Mundo (Vietnã, Laos, Camboja, Angola, Moçambique, entre outros).
Regressados de Cuba, cabia a esses quatro jovens documentar a luta armada,
quer na componente política, quer no teatro de guerra, encontrando-se baseados
no Senegal, a filmar atividades políticas e diplomáticas. Segundo Sana Na
N’Hada, “não usávamos a película toda, fazíamos render um pouco para depois ir
para o mato (guerra) filmar a vida no mato”. Para filmar a luta constituíram-se duas

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equipes:

O Amílcar Cabral dizia para filmarmos a vida nas zonas libertadas, mas a guerra era
complicada. Ele decidiu que dois de nós íamos para o Norte e dois de nos íamos
para o Sul. Quem era do Norte ficou no Norte, quem era do Sul foi para o Sul. Fiquei
na frente Norte, para filmar a vida da população e a guerra. Mas os militares não
gostavam que nós estivéssemos lá [...]. (N’HADA 2015 apud LARANJEIRO, 2015b).

Além disso, esses jovens guineenses também integravam equipes estrangeiras


de cinema que pretendiam rodar imagens da guerrilha do PAIGC, nomeadamente
as filmagens da dupla sueca Lennart Malmer e Ingela Romare da proclamação da
independência em Boé (setembro de 1973) que mais tarde integrariam os filmes
Poetry of Anger (Suécia, 1978/79) e En Nations Födelse (Suécia, 1973). Essa dupla
sueca de cineastas seria mesmo fundamental para a luta do PAIGC.
Documentando grande parte do processo de descolonização, foi uma das
referências para essa geração de realizadores guineenses.

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No entanto, apesar do enorme esforço em documentar o processo de luta e


construção da independência durante o conflito armado, o cinema não serviu
como meio de propaganda interna do PAIGC, uma vez que a Guiné-Bissau não
dispunha de laboratórios de revelação de película cinematográfica e toda as
imagens seguiam para diversos países aliados, o que levou ao extravio de muito
material:

[...] aquilo que filmávamos ninguém revelava, mandavam para Conacri e nunca mais
sabíamos daquilo; [...] material que filmamos nos primeiros três meses foi tudo
enviado para a Argélia. Algumas coisas que o Flora filmou no Sul, por coincidência,
foram levadas pelo Lennart Malmer, que estava por lá nessa altura, e que devem
estar no Arquivo de Cinema da Guiné-Bissau. (N’HADA 2015 apud LARANJEIRO,
2015b).

No pós-independência, a missão desses jovens não se alterou


significativamente. Amílcar Cabral morrera assassinado em janeiro de 1973, mas o
seu projeto de emancipação cinematográfica continuaria. Logo após a
independência, o Conselho Nacional de Cultura, sob a tutela do angolano Mário
Pinto de Andrade, criou no país vários departamentos culturais, encarregados de

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promover a investigação científica, a literatura, as artes plásticas, a música, a
dança, o teatro e o cinema.
Em abril de 1978, um Governo liderado por Luís Cabral, irmão do histórico líder
independentista, e no qual integrava o intelectual angolano Mário Pinto de
Andrade como secretário de Estado da Cultura, criaria o Instituto Nacional de
Cinema [INC] (Decreto n.º 10/78 de 30 de março). Segundo o texto legislativo, o
poder político reconhecia o cinema como “o meio mais eficaz de difusão
ideológica massiva”; “meio de ação – instrumento e método de que todos os
países determinados a consolidar a sua independência devem apropriar-se”;
veículo de “promoção cultural do povo guineense”; resposta “às necessidades
fundamentais da educação, da comunicação e desenvolvimento sociocultural das
massas populares”. (CUNHA, no prelo).
Nesses primeiros anos de independência, a Guiné-Bissau estabeleceu relações
de colaboração cultural com os aliados mais naturais desde os tempos da luta

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pela libertação, como Cuba, União Soviética e RDA. O jovem cinema guineense
também manteve uma relação próxima com França, sobretudo justificada por
relações pessoais de alguns intelectuais e dirigentes guineenses, nomeadamente
Mário Pinto de Andrade.
Em 1979, o cineasta Sana Na N’Hada assumia a direção do INC. Mas, por
razões diversas, a atividade do INC seria quase nula. Devido à falta de
financiamento no país, esse departamento passou a estar praticamente
dependente das campanhas de promoção cultural das Embaixadas. Para além da
aposta na produção, uma das importantes medidas de N’Hada foi visitar vários
países aliados – Cuba, União Soviética, Argélia, China e Suécia – de forma a
conseguir recuperar uma parte residual das imagens rodadas no período de luta
pela independência, tão importantes para o esforço de construção da unidade
nacional.
O Regresso de Cabral é o único filme produzido pelo INC que está terminado.
Quando Sana Na N’Hada foi contemplado com uma bolsa sueca para realizar um
filme, decidiu documentar as cerimônias fúnebres em honra de Amílcar Cabral na
cidade de Bissau durante a transladação do corpo de Conacri, onde tinha sido

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assassinado a 20 de janeiro de 1973. A importância (e também manipulação)
política da morte de determinadas figuras públicas é evidenciada pela
repercussão midiática das imagens dos seus rituais fúnebres. Amílcar Cabral foi
assassinado 15 meses antes da revolução portuguesa que determinaria o fim da
guerra e 8 meses antes da Proclamação unilateral do Estado da Guiné-Bissau.
“Morre o Guevara de África” foi o título do Financial Times no dia seguinte. Foi
uma figura incontornável do movimento pan-africanista, sendo considerado um
dos maiores pensadores do socialismo africano e da revolução anticolonial.
(YOUNG, 2001). Até hoje está por esclarecer quem mandou matar Amílcar Cabral,
sendo que as suspeitas recaem quer sobre o governo português, quer sobre o
governo da República da Guiné-Conacri e também sobre uma facção dissidente
do PAIGC. Após a independência, esse mesmo homem tornou-se uma figura
redentora, tendo existido um enorme investimento simbólico para sacralizar
Cabral. O filme O Regresso de Cabral é assim o regresso do líder da luta de

69

libertação através do discurso fílmico. Cabral surge como uma figura messiânica
na qual reside toda a força política e anímica da construção do novo país
soberano e independente. A ideia de um líder carismático que reunia o consenso
da população foi essencial para a afirmação e legitimação da luta de libertação no
contexto internacional. Tendo o líder sido assassinado, havia que garantir a
perpetuação da sua influência através do ritual fúnebre, que por sua vez foi
perpetuado através do discurso fílmico.
O espólio de material fílmico do INC foi recentemente digitalizado pelo Arsenal
– Institute for film and videoart de Berlim no âmbito do projeto coletivo Luta Ca
Caba Inda sob a orientação de Filipa César. Foram assim tornados visíveis os
fragmentos fílmicos que retratam os primeiros passos políticos na Guiné-Bissau,
como nação independente: as visitas do Presidente Luís Cabral a todo o País, as
comemorações do X aniversário do PAIGC, a nacionalização do banco e a
impressão de escudos guineenses, a primeira conferência das mulheres
organizada em Bissau, a visita oficial do Presidente de Moçambique Samora
Machel, entre outros. Estávamos na última metade da década de 70, ainda se
respirava o romantismo de uma luta que em tudo se aproximava do ideal de

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guerra justa e vivia-se um período de lua-de-mel entre a Guiné-Bissau e a
comunidade internacional. Esses enxertos fílmicos mostram-nos a Guiné entrando
no caminho para o progresso, isto é, para uma sociedade moderna, como é
notório nas filmagens realizadas a tratores e outras máquinas agrícolas em plena
atividade. Livre do colonialismo, a Guiné-Bissau era uma nação soberana, com a
sua própria moeda, mais justa e igualitária, movendo-se pela emancipação das
mulheres, construindo escolas e postos de saúde para a população.
Juntamente com os outros fragmentos de filme produzidos na Guiné-Bissau
entre 1972 e 1980, O Regresso de Cabral permite depreender que o cinema fez
parte de uma estratégia para tornar o “povo” consciente da luta, das ideias
revolucionárias e ao mesmo tempo criar visualmente uma nova identidade
nacional. Tomou-se o cinema como um instrumento capaz de criar uma memória
coletiva e de documentar a história da nova Guiné independente.
Apesar da estreia do longa-metragem de Flora Gomes, que com Mortu Nega

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(1987) iniciaria um promissor e reconhecido percurso internacional, o final dos


anos 80 ficaria marcado pela suspensão da atividade do INC, originado pela falta
de recursos humanos, técnicos e financeiros, mas, sobretudo, de uma política
cultural por parte das autoridades guineense. Sana Na N’Hada demite-se da
direção do INC e o organismo estagnou, assim como a produção cinematográfica
guineense.

3. O estado do Cinema

Entretanto, depois uma década e meia de inatividade, o INC foi reativado em


setembro de 2003. A partir de 2004, na sequência da nomeação do ator Carlos
Vaz para a direção do INC e da realização do 1º Encontro Nacional de Cinema,
houve uma significativa tentativa de revitalizar o organismo público, dotando-o de
um regulamento próprio e de uma lei orgânica que nunca tinha sido instituída.
Promovendo uma integração do audiovisual, reconhecendo a sua crescente
importância no contexto nacional, o INC foi reformulado e passou a designar-se
INCA – Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual.
Em 2006, a criação da ACINEGUI – Associação de Cineastas Guineenses,

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potenciada pelo INCA, também refletiu a necessidade de reorganização dos
cineastas guineenses. Atualmente, a ACINEGUI reúne cerca de 20 membros, com
idades compreendidas entre os 18 e os 50 anos, entre os quais estão Domingos
Sanca, Rui Manuel Costa, Adulai Djamanca, Waldir Araújo, Geraldo Manuel de
Pina e Suleimane Biai.
Fruto de novas estratégias políticas promotoras da lusofonia, os apoios
portugueses à produção de cinema na Guiné-Bissau intensificam-se na segunda
metade da primeira década do século XXI. Outros apoios internacionais também
têm permitido a Flora Gomes prosseguir a sua carreira cinematográfica com
alguma regularidade, afirmando-se como a principal figura do cinema guineense e
uma das mais reconhecidas de todo o continente africano.
Entretanto, despontam na Guiné-Bissau alguns jovens, com formação
especializada obtida fora do país, que se afiguram como promessas futuras que

71

poderão marcar uma nova geração no cinema guineense, tais como Vanessa
Fernandes (realizadora de Taama Taama ani N´Fa Douwa, 2011, e Si Destinu,
2015) ou Filipe Henriques (realizador de O Espinho da Rosa, 2014).
Para além das formas mais convencionais, nos últimos anos tem-se verificado
um surto de produção cinematográfica e audiovisual proveniente de núcleos
amadores e semiprofissionais que tem aumentado exponencialmente. Trata-se de
produções de baixíssimo orçamento, com técnicos e atores amadores ou não
profissionais, com recurso a meios técnicos mais acessíveis aos potenciais
realizadores ou meros curiosos. Não é fácil mapear esse tipo de produções
porque têm uma circulação local (predominantemente em formato DVD). Mais
recentemente, e graças ao recente recurso à internet, é possível identificar alguns
produtores mais bem-sucedidos através de algumas redes sociais.
À semelhança do que tem acontecido em outros países africanos, como no
caso do fenômeno ugandês de Wakaliwood, o modelo de produção DIY (do it
yourself) de baixo orçamento de Nollywood se popularizou nas últimas décadas,
graças aos formatos de home video (primeiro o VHS e depois o DVD). Além das
questões técnicas e financeiras, Françoise Balogun (2007, p. 197) sublinha que

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este fenômeno nigeriano também foi potenciado por uma “enorme necessidade
de imagens que refletissem a identidade nacional”. Ao contrário da África
francófona, onde a indústria de cinema foi muito subsidiada pelo Ministério da
Cooperação francês, o cinema nigeriano desenvolveu-se de forma totalmente
independente, abordando temas com maior interesse para as comunidades locais.
No caso concreto da Guiné-Bissau, um território onde a cultura
cinematográfica mais canônica é praticamente inexistente (nem os filmes do
próprio Flora Gomes são conhecidos pela generalidade da população), os jovens
autodidatas inscrevem-se numa cultura visual muito pautada pela estética e
narrativa da televisão, dos vídeos musicais e dos videojogos, conteúdos bem mais
acessíveis à generalidade da população. Produzidos fora de qualquer forma
institucionalizada, esses filmes são geralmente falados em dialetos autóctones e
refletem questões atuais e muito pertinentes para as comunidades locais, o que
lhes confere um forte cunho identitário.

72

Dessa produção amadora ou semiprofissional, há em destaque alguns casos


curiosos que conquistaram relativa notoriedade: a televisão comunitária de Klélé,
um dos bairros de Bissau, produziu o documentário Tapioca, fonte de nutrição e
apoio na economia familiar (2013), um filme premiado num festival eslovaco;
baseado na antologia poética homônima de Mussá Baldé, o filme Clara di Sabura
(2011), produzido por Grapo Audiovisual, foi realizado por José Lopes e contou
com a colaboração do realizador Suleimane Biai; a Televisão da Guiné-Bissau
(TGB) e o Grupo Teatral Catho Modja produziram Cussas di Nô Terra (2013),
realizado pelo realizador profissional Domingos Sanca; a produtora Candé
Produções, em parceria com a Associação Laamten – Valorização e divulgação da
Língua e Cultura Fula, tem produzido diversos filmes falados em língua fula, que
se destinam aos falantes de Fula em toda a extensão da África ocidental, desde o
Senegal até Camarões, ao sul, e o Sudão, a leste, mas que também eram
distribuídos na Europa, concretamente em Portugal, Espanha e Reino Unido,
através de uma rede informal de guineenses na diáspora. (CUNHA, no prelo).
Mas o caso mais singular é seguramente A Lei da Tabanca, realizado em 2015
por Bigna Tona Ndiba, um fotógrafo amador residente em Bissau, e interpretado

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por não atores ou atores amadores. Realizado sem orçamento e sem apoios de
caráter institucional, esse filme é, hoje, bastante popular em toda a Guiné-Bissau.
O filme realiza uma crítica à forma como a autoridade policial atua nas tabancas e
revela o quão distante o Estado central está do cotidiano da maioria da
população. A obra passa-se numa tabanca fictícia chamada Balanta. Destaca-se
que, enquanto sociedade, os Balantas encontram-se completamente desprovidos
de estratificações sociais, razão pela qual eram considerados “o grupo dos sem
Estado”. (CARDOSO, 1990, p. 11). Assim, como não têm chefes, os chamados
régulos, é por consenso coletivo que se tomam todas as decisões. Nesse filme,
um grupo de adolescentes intervém sobre um casal, visto que o homem não
trabalha, em crioulo nega labur e maltrata sua mulher que tinha de trabalhar pelos
dois. É assim que o grupo de adolescentes, caracterizados visualmente como
Balantas – untados de lama, com malila (pulseiras e colares) e barcafons
(pequenos sacos de uso a tiracolo) –, decide castigar com punições físicas esse

73

homem. O homem, por sua vez, resolve ir à polícia apresentar queixa.


Posteriormente, vemos a polícia indo à tabanca, na qual se apresenta como sendo
o Estado. Um dos jovens exclama: “vocês são do Estado? Mas o Estado é em
Bissau!”. A ausência do Estado vai sendo manifestada ao longo de todo o filme.
Depois de os jovens serem detidos, quando estão sendo interrogados sobre a
sua idade respondem números como “dez mais quinze”, “quinhentos e dezasseis
anos” ou “não sei, sei apenas que nasci no tempo do mango”. As respostas
revelam uma diferente temporalidade pela qual essa sociedade se rege e são
consideradas pela polícia como um desacato à autoridade. Por fim, um final feliz,
em que o homem volta a trabalhar, faz as pazes com a mulher e todos são
libertados.
Esse filme foi realizado com jovens do Bairro Militar, em Bissau, e filmado na
zona do Biombo. A câmara utilizada pertencia a um dos atores do filme e nesse
momento estava penhorada, tendo o realizador de levantar a penhora. Segundo o
realizador, o filme foi gravado em seis horas, tendo tido ensaios durante dois dias.
Nas suas palavras:

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[...] organizei como uma corrida de estafeta [...] fui buscar o homem no porto, tenho
deixado os jovens em casa para me esperarem, os cacres já estavam a ser
cozinhados; depois pus a mulher no poço e depois de homem ter bebido dois copos
de vinho, cortei e fui buscar a mulher ao poço para filmar a cena em que discutiam;
saí logo acompanhado da mulher para onde se encontravam os jovens e os polícias
já estavam na esquadra à espera; logo fui buscar os jovens até onde prenderam o
homem e lhe raparam o cabelo; por fim, acompanhei o homem à esquadra. (NDIBA
2016 apud LARANJEIRO, 2016).

Esse filme pode ser comprado no popular mercado do Bandim ou nas ruas de
Bissau ou das principais cidades guineenses, onde muitos jovens vendem filmes e
músicas em DVDs ou pendrives gravados de forma artesanal. Entre os filmes mais
vendidos nessas circunstâncias encontram-se os “filmes de guerra”, sobretudo de
produção norte-americana, “filmes de amor indianos” e os filmes amadores feitos
na Guiné como A Lei da Tabanca. Essa é a forma mais frequente de distribuição
de filmes em Bissau e um pouco por toda a Guiné-Bissau. Apesar de muitos dos

74

filmes estarem disponíveis gratuitamente no YouTube, o acesso limitado à internet


torna esse tipo de comércio informal muito generalizado nas cidades guineenses.
A apropriação da tecnologia da imagem, que num primeiro momento foi
monopolizada pelos estados africanos recém-independentes, deu lugar à sua
disseminação democrática pelas populações, mesmo em estados periféricos ou
em vias de desenvolvimento, que lhe permite criar os seus conteúdos cinemáticos
próprios que tanto podem valer como “produtos culturais” ou como meros “bens
de consumo”. Mas, se esta democratização no aceso à tecnologia permitiu o
surgimento de um espaço alternativo de produção, que seguramente “resulta de
uma problemática de afirmação cultural e de identidade”, também significou a
falência do fenômeno cinematográfico convencional, desde a produção até à
exibição em sala. (BAMBA, 2007, p. 17-19).
Tal como a produção, o setor da exibição também se tornou progressivamente
informal e não profissional. Apesar de não existir nenhuma sala de cinema
comercial licenciada em todo o território guineense, além de algumas salas com
programação cinematográfica não comercial pontual, como alguns centros
culturais, estima-se que existam, só na cidade de Bissau (cerca de 350 mil

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habitantes), cerca de 150 salões de cinema, com lotação entre os 50-80 lugares.
Esses espaços informais destinados à exibição de filmes através de DVD em ecrã
de televisão exibem, sobretudo, títulos norte-americanos e produções locais.
Mesmo sem as condições formais necessárias, esse circuito de salões mantém o
setor de distribuição bastante ativo e consolidado, promovendo uma cultura
cinematográfica muito particular. (CUNHA, no prelo).
Recentemente, Fernando Leonardo Cardoso, o atual diretor do INCA (sucessor
do INC), reconheceu que o órgão que tutela não reúne os recursos técnicos,
humanos ou financeiros necessários para assegurar uma fiscalização ao parque
exibidor guineense e que apenas alguns salões se encontram licenciados por
iniciativa própria (CARDOSO 2016 apud CUNHA; OLIVEIRA, 2016). Depois de
perdida a capacidade de produzir ou apoiar a produção de cinema, o Estado
acabou também por perder a capacidade de regulação do setor de distribuição e
de exibição cinematográfica na Guiné-Bissau, sendo hoje um mero observador de

75

um fenómeno que se iniciou fortemente estatizado, mas que se foi reconfigurando


ao longo das últimas décadas.

Algumas conclusões

Sem meios financeiros e técnicos para ter uma produção profissional própria, o
cinema profissional na Guiné-Bissau é praticamente inexistente e só sobrevive
devido a algumas coproduções que são rodadas em território guineense ou a
apoio financeiro estrangeiro concedido a realizadores guineenses. De uma forma
ou outra, a coprodução é hoje um mecanismo vital, não só para a sobrevivência
do cinema guineense, mas também para a recuperação da memória visual do
país.
Os casos de Flora Gomes e Sana Na N’Hada são paradigmáticos do percurso
do cinema guineense desde o seu nascimento: todos os longas-metragens
realizados pelas duas principais referências internacionais do cinema guineense,
aqueles que foram formados para produzir o olhar pós-colonial guineense, só se
concretizaram com o apoio financeiro maioritariamente estrangeiro. Nas últimas
duas décadas, Portugal tem sido mesmo o principal financiador do cinema

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guineense. Perante a falta de apoios financeiros internos, o cinema da Guiné-
Bissau, como de outros países da mesma dimensão e na mesma situação
político-social, o apoio externo torna-se fundamental.
A situação atual, em que o cinema sobrevive numa lógica informal e alternativa
em relação aos meios mais convencionais, tem vindo a reconfigurar toda a
experiência cinematográfica na Guiné-Bissau. Praticamente cinquenta anos
depois de quatro jovens guineenses terem rumado a Cuba para aprender a fazer
cinema com o próprio olhar, o cinema na Guiné-Bissau vê nascer um novo modo
de produção, muito influenciado pelas práticas produtivas de países africanos
com iguais limitações e condicionalismos técnicos e financeiros, que tem evoluído
numa lógica de autodidatismo e empreendedorismo. Ainda que reconfigurado
num contexto radicalmente diferente, fora de qualquer política cultural estatal, o
sonho de emancipação de um olhar cinematográfico na Guiné-Bissau como

76

Amílcar Cabral um dia o desejou parece continuar vivo.

Referências

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Submetido em 23 de agosto de 2016 | Aceito em 24 de novembro de 2016

78

Cinema de Moçambique no pós-independência:


uma trajetória

José de Sousa Miguel Lopes1

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1
José de Sousa Miguel Lopes tem mestrado em Educação pela Universidade
Federal de Minas Gerais, doutorado em História e Filosofia da Educação pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutorado pela Universidade
de Lisboa. Atualmente é professor na Universidade do Estado de Minas Gerais.
Publicou em 2004 sua tese de doutorado, “Cultura acústica e letramento em
Moçambique: em busca de fundamentos antropológicos para uma educação
intercultural”. Seus últimos livros são “Educação e Culturas Africanas e Afro-
Brasileiras: cruzando oceanos” (2010), “Trocando olhares: Educação e cultura na
contemporaneidade” (2012) “Poesia e etnicização nos livros didáticos de
Português: um estudo comparativo Moçambique Brasil” (2014).
e-mail: miguel-lopes@uol.com.br

79

Resumo

Inicialmente, e a partir de uma metodologia apoiada na pesquisa bibliográfica, abordaremos um


momento importante na cinematografia moçambicana que foi a criação do Instituto Nacional de
Cinema (INC) e suas motivações. Em seguida, e em decorrência desta criação, analisaremos como o
governo moçambicano procurou atrair talentos de várias nacionalidades para poderem ajudar a
colocar em prática uma cinematografia moçambicana. Está em marcha a busca de um novo cinema
para, em alguma medida, descolonizar as mentes. Esta cinematografia terá seu ponto forte na
produção de documentários que tiveram o nome de Kuxa Kanema (literalmente “o nascimento do
cinema”), filmes cujo objetivo era “registrar a imagem do povo e devolvê-la ao povo”. Salientaremos a
criação da Associação Moçambicana de Cineastas, a AMOCINE, cujo objetivo é o de revitalizar a
produção cinematográfica no país. Analisaremos também a criação do festival internacional de
documentários “Dockanema”, um dos momentos mais significativos da arte cinematográfica nacional.
Finalmente, abordaremos alguns dos problemas com que se defronta a Sétima Arte em Moçambique e
algumas sugestões que poderão, em alguma medida, contribuir para romper com alguns
constrangimentos com que ela se depara.

Palavras-chave: Cinema de Moçambique; Pós-independência; Pós-


colonialismo.

Abstract

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Initially, and from a methodology supported in the literature, we discuss an important moment in
the Mozambican cinematography which was the creation of the National Film Institute (INC) and their
motivations. Then, and as a result of this creation, we will analyze how the Mozambican government
sought to attract talent from several countries in order to help put in place a Mozambican
cinematography. Is underway to search for a new cinema, to some extent, decolonize the minds. This
cinema will have its strength in the production of documentaries that had the name of Kuxa Kanema
(literally "the birth of cinema"), films whose aim was to "register the image of the people and return it to
the people." We will point out the creation of the Mozambican Association of Filmmakers, the
AMOCINE, whose goal is to revitalize film production in the country. We will also consider the creation
of the international festival of documentaries "Dockanema" one of the most significant moments of
cinematic art in the country. Finally, we discuss some of the problems facing the Seventh Art in
Mozambique and some suggestions that may, to some extent, help to break some constraints it faces.

Keywords: Mozambique Film; Post-independence; Postcolonialism.

80

O cinema, por sua natureza artística e industrial, é um desafio para as nações


periféricas que, após a colonização política e cultural, esforçam-se para ganhar
outra batalha: a da apropriação da tecnologia da imagem. Com efeito, o tema da
descolonização da mente é importante porque o cinema em Moçambique, e na
África em geral, tem-se desenvolvido no contexto de intensas lutas entre
colonizador e colonizado e seus legados na era pós-colonial. Estas lutas, e suas
consequências, afetaram Moçambique e as diferentes etnias em todos os níveis:
econômico, político, cultural e psicológico, na sua própria autoimagem e na
imagem da comunidade. Assim, a questão do cinema moçambicano não se
resume às relações de riqueza e poder, mas também da psique. A descolonização
do espaço mental deve seguir pari e passu com a do espaço econômico e político.
Um breve panorama do cinema moçambicano no universo dos cinemas
periféricos mostra, como teremos ocasião de observar neste texto, que o país
está longe de ganhar essa batalha.
Quando encontramos a expressão cinema moçambicano, é possível que toda
sintaxe pareça ser insuficiente para desfazer o hiato que se abre entre as duas
palavras. No imaginário que consumimos com mais frequência com o nome de

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cinema, a África, e particularmente Moçambique, tem permanecido um objeto
exótico, isto é, que transborda o enquadramento do olhar, inscrevendo-se sob o
signo da alteridade desde o surgimento do cinematógrafo. Tudo se passa como
se o cinema fosse irredutivelmente estrangeiro à África, a toda africanidade, que
se encontra assim reduzida à condição de objeto do olhar: a África das belezas
naturais, a África da desolação das guerras civis, a África das crises humanitárias,
a África da pobreza espetacularizada.
No entanto, ao contrário do que o imaginário dominante sugere, alguma África
(e Moçambique é um bom exemplo), alguma africanidade pôde assumir a posição
de sujeito do olhar cinematográfico desde pelo menos o final da década de 1960,
no contexto da luta pela independência e dos movimentos de descolonização. Se
a expressão cinema moçambicano pode causar estranhamento, é porque
enquanto a independência política formal pode ser datada, inscrevendo seu
marco no calendário oficial da história, a “descolonização da mente” permanece

81

ainda por fazer e constitui uma tarefa política – e poética – crucial de nossos
tempos.
Na expressão cinema moçambicano, não está em jogo apenas a constatação
da existência de filmes feitos em Moçambique a partir de uma perspectiva
africana, mas também a criação de uma possibilidade imaginativa que vai além do
que está dado. Com a condição de que seja compreendida de forma plural, a
expressão permanece irredutível à sua dimensão constativa (a constatação da
existência), abrindo um espaço de significação que se pode chamar de
performativo (a criação de um possível, como uma promessa). Dizendo de
maneira diferente, o cinema moçambicano existe (como um corpus) apenas na
medida em que se faz possível para além do existente e recria o mundo.
Mahomed Bamba (2007, p. 84) lembra que a crítica ocidental “elaborou e
projetou suas próprias representações imaginárias sobre as produções africanas”,
o que consequentemente estimula o desenvolvimento de um olhar
preconceituoso, ao mesmo tempo em que rejeita as novidades oferecidas pelos
cineastas africanos. Os filmes africanos e, no caso em análise, os filmes
moçambicanos apenas ganham um olhar diferenciado, “só começam a ser

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apreciados essencialmente como são, isto é, como imagens decorrentes de outra
cultura (e não de uma cultura imaginada e pré-fabricada pelo ocidente), quando
emerge um novo público que não compartilha das categorias da crítica
eurocêntrica”. (BAMBA, 2007, p. 85).
Moçambique destaca-se na história do cinema africano pós-colonial por
apresentar uma “infraestrutura de cinema nacional desvinculada do circuito
cinematográfico comercial global e ao serviço da nação marxista que emergiu
após o colonialismo português”. (ARENAS, 2012, p. 75). Sua nova concepção de
cinema visou outro público alvo, não mais a burguesia colonial estrangeira; fazia-
se cinema agora para o povo moçambicano, em sua maioria, constituído por
camponeses analfabetos (na época da independência a taxa de analfabetismo era
de 95%). Houve então uma preocupação por parte dos cineastas de adequar a
linguagem cinematográfica para esse público.

82

A criação do Instituto Nacional de Cinema

Importa realçar, de imediato, que até muito recentemente pensava-se que


antes das suas independências, os povos africanos não teriam acedido à fruição
da Sétima Arte e que, se isso acontecera, tal acesso merecera o crivo especial da
administração colonial. Contudo, a partir dos anos cinquenta, os “indígenas” e os
indianos de Moçambique têm as suas próprias salas com uma programação de
filmes asiáticos e europeus “especiais”, como os westerns e karaté, muitas vezes
desprezada ou ignorada pelos intelectuais. Mas como explicar a popularidade
destas produções que, aparentemente, não podem ser comparadas com as do
neorrealismo italiano, por exemplo? Uma das afirmações recorrentes é a de que
antes da Independência não “havia uma produção cinematográfica local
significativa”. A indicação “significativa” refere-se, de facto, a uma produção ao
“serviço” do povo moçambicano, dado não se considerarem os filmes comerciais
feitos no âmbito colonial. Parece-nos uma visão restritiva. É necessário considerar
também estas imagens e os curtas-metragens dos cineclubes 1 , por exemplo,
como componentes integrais da cultura cinematográfica de Moçambique2.

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1
O autor foi membro do Cine-Clube de Lourenço Marques nos finais da década de 60 do século
passado no Moçambique colonial. Todo o sábado ao fim da tarde ocorriam as sessões do Cine-Clube.
Foi assim possível entrar em contato com a cinematografia de Eisenstein, Welles, Bergman, Fellini,
Antonioni, Bertolucci, Visconti, Truffaut, Godard, Resnais, Ford e de tantos outros clássicos. Antes de
cada sessão era distribuído um pequeno folheto com uma sinopse, biografia e filmografia do diretor e
algumas breves críticas do filme que iria ser projetado. No final da sessão, três membros do Cine-clube
com amplos conhecimentos da arte cinematográfica (Eugênio Lisboa, engenheiro, escritor e crítico
literário, Adrião Rodrigues, advogado, e Nogueira da Costa, historiador), subiam ao palco e orientavam
a discussão do filme acabado de assistir. O debate durava cerca de uma hora. Deve salientar-se que,
nessa época, Moçambique ainda não dispunha de televisão. Existiam oito ou nove salas de cinema na
capital, mas a esmagadora maioria dos filmes era de vertente hollywoodiana.
2
Importa destacar que o conceito de “cultura cinematográfica” é mais amplo do que a história da
produção nacional de filmes. Implica uma infinidade de aspectos que se entrelaçam e exprimem a
complexidade da sociedade: da economia (produção, distribuição, exibição, importação, exportação,
publicidade, turismo, moda, etc.), da tecnologia (película, digitalização, vídeo, câmaras, estúdios de
montagem, projetores, sistemas de sons, lentes, etc.), da política nacional e internacional (propaganda,

83

Importa referir que já durante a Guerra Colonial, um importante número de


filmes sobre a luta pela independência foi produzido por estrangeiros tais como,
por exemplo, “Venceremos!” (1966), de Dragutin Popovic; “Behind the Lines”
(1971), de Margaret Dickinson; “A Luta Continua” (1972), de Robert Van Lierop, ou
“Étudier, produire, combattre” (1973), realizado pelo Grupo Cinéthique.
Com a independência do país, as salas de cinema são nacionalizadas. Os
meios de produção, assim como o pessoal mais especializado, vêm das antigas
empresas privadas, agora também nacionalizadas.
Samora Machel, (primeiro presidente após a independência) consciente da
poderosa influência do cinema na unificação e estruturação do regime socialista,
teve como primeira ação a nível cultural a criação, em 1975, do Instituto Nacional
do Cinema (INC).
Os acordos económicos com os países do campo socialista vão permitir a
compra de novo material e de películas. Durante a primeira década de
independência, o INC produzia, essencialmente, documentários educativos e (ou)
militantes. O cinema devia passar a mensagem da unidade nacional e ajudar a
divulgar e promover os grandes projetos do país: as aldeias comunais,

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assembleias populares e, de uma forma mais geral, a construção de uma
sociedade à altura do homem novo. Mas muito cedo Moçambique viu-se
confrontado com as agressões violentas cometidas pela Rodésia, descontente
com o apoio dado por Samora Machel aos movimentes independentistas.
Também a África do Sul acusa Moçambique de dar guarida ao ANC (African

censura, resistência-contracultura, identidade, modernidade, emancipação, liberalização, impostos,


subvenções, etc.), da população (colonizadores portugueses, assimilados, africanos, indianos,
mulheres, crianças, técnicos, etc.), da legislação (censura, regulamentos de segurança, proteção das
crianças, etc.), até do espaço urbano (salas de cinema, arquitetura, etc.). Os elementos evidentes que
fazem parte da cultura cinematográfica são também as imagens (o que se vê na tela), histórias, sons,
cores, línguas, músicas, estrelatos, técnicos, produtoras, realizadores, publicações, críticas, debates,
etc. A cultura cinematográfica abarca todas aquelas dimensões e, nesse particular, Moçambique não é
exceção.

84

National Congress) e começa a promover uma guerra civil que vai consumir o país
durante 16 anos.
Entre 1976 e 1991, o INC produziu treze longas-metragens, 119 curtas-
metragens e 395 reportagens televisivas batizadas com o nome de Kuxa Kanema
(“Nascimento do Cinema”).
Apesar da guerra que aumentava de intensidade dia a dia, Moçambique, com o
seu projeto de país, e o INC, com o seu projeto de cinema, vão atrair muitos
técnicos cooperantes e cineastas estrangeiros. É feito um grande esforço de
formação de novo pessoal com a ajuda destes cooperantes vindos, sobretudo,
dos países de Leste: Cuba, Canadá, Brasil, Inglaterra e França.

A atração de talentos da Sétima Arte oriundos de vários países

Foi em um contexto histórico marcado pelo anticolonialismo de fraternidade


intercultural que alguns cineastas e homens de teatro que atuavam em vários
países se implicaram nos esforços para a criação do cinema moçambicano.
Tratava-se de colocar em pauta o que refere Meleiro (2007, p. 30): “O sucesso da
iniciativa anticolonialista só é completado quando restitui ao colonizado sua

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memória”. Ainda segundo Meleiro (2011):

Os primeiros filmes contra o colonialismo português em Moçambique foram feitos


por realizadores estrangeiros a convite da FRELIMO, transformando o país em um
laboratório de experiências para Ruy Guerra (moçambicano há muito radicado no
Brasil), Jean Rouch, Jean-Luc Godard, Murilo Salles, José Celso Martinez Corrêa,
Santiago Alvarez, e muitos outros cineastas, atraídos a Maputo para filmar com o
apoio do governo. Suas passagens deixaram marcas não apenas em Moçambique,
mas também em terras lusófonas e demais territórios africanos. Ou seja, não apenas
no cinema mainstream, mas também nos cinemas periféricos assistimos a um
fenômeno de “transferência cultural”. E quando esta migração de um cineasta
estrangeiro para um país da África é motivada política e ideologicamente, não há
dúvida de que ela é acompanhada de uma implicação pessoal com a prática cultural
e o cinema em gestação no país em questão.

Jean Rouch orientou um workshop de Super 8mm na Universidade de Maputo


em 1978.

85

Jean-Luc Godard assinou um contrato de dois anos para implementar a


produção em vídeo no país, bem como para idealizar a televisão nacional. Godard
e a sua empresa, Sonimage, apresentam a Moçambique a proposta de utilização
de um novo suporte, muito mais económico: o vídeo. A ideia de Godard era
realizar uma série de 5 filmes chamados “Naissance (de l’image) d’une Nation”
[“Nascimento (da imagem) de uma Nação”] e, ao mesmo tempo, fazer um estudo
para a criação da nova televisão moçambicana. Godard via em Moçambique – um
país em que 95% da população nunca tinha visto uma imagem audiovisual – o
terreno ideal para a criação de uma televisão godardiana. “Uma só imagem”, “o
povo”, “a imagem desse povo”, escreve Godard no seu relatório. Mas as questões
que Godard queria levantar não eram apropriadas ao momento político que se
vivia. O seu projeto é recusado pelo governo.
O caso mais emblemático desse engajamento transnacional é o de Ruy
Guerra 3 . A própria confusão que paira sobre a nacionalidade desta importante
figura do Cinema Novo brasileiro constitui um traço distintivo da sua trajetória

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3
Ruy Guerra nasceu em Lourenço Marques, hoje Maputo, Moçambique, então colônia portuguesa, em
1931. Ainda adolescente já publicava críticas de cinema, contos e crônicas e fazia filmes em 8mm. Era
ativista político, participando de movimentos antirracistas e pró-independência antes de deixar seu
país, aos 19 anos. De 1952 a 1954 estudou arte cinematográfica em Paris, no IDHEC (Instituto de Altos
Estudos Cinematográficos), e começou a trabalhar na França, como assistente de câmera e assistente
de direção. Mais conhecido como diretor, Ruy Guerra também atua como montador, diretor de
fotografia, produtor e ator. É praxe sua ser roteirista ou corroteirista dos filmes que dirige. Tendo
filmado em muitos países, é geralmente associado ao cinema brasileiro, como um dos pioneiros do
Cinema Novo dos anos 60. Radicado no Brasil em 1958, aos 27 anos, vem com o filme "SOS
Noronha", de George Rouquier, de 1957. Em 1961 rodou seu primeiro filme não documentário, "Os
Cafajestes", e se destaca em todo o Brasil. Seu filme seguinte, "Os Fuzis", é considerado um dos
clássicos da estética da fome associada ao Cinema Novo. No final dos anos 70, com a independência
de Moçambique, retorna à sua terra natal para participar da criação do Instituto Nacional de Cinema
moçambicano. Dirige e escreve peças teatrais e colabora como letrista junto a grandes nomes da
MPB. Entre 94 e 98 assinou uma crônica semanal no jornal O Estado de São Paulo e atualmente é
diretor do Curso Superior de Cinema na Universidade Gama Filho, onde leciona sobre linguagem
cinematográfica. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/personalidades/personalidade-
204/biografia/>. Acessado em: 10 de julho de 2013.

86

como cineasta de todas as causas. Ruy Guerra é o típico sujeito cidadão do


mundo; sua vida e atividade de cineasta e crítico se estendem e se dividem entre
três países (Moçambique, Portugal, Brasil). Quando ele deixa o Brasil e ruma de
volta a Moçambique naqueles anos 70, é com o objetivo de ajudar a reorganizar o
cinema móvel.
Conforme o próprio Guerra (apud ALBINO, 2011):

[...] o que me parecia mais importante era criar as estruturas de distribuição do


cinema (que sofrem até hoje porque elas são dominadas pelo sistema de distribuição
americano que impede que os filmes produzidos por nós cheguem ao público). Mas
também e, acima de tudo, a formação de quadros técnicos na área cinematográfica.

É por essa razão que em finais dos anos 70 e princípios dos 80, por iniciativa
própria, Guerra mobilizou uma série de cineastas progressistas, grandes
profissionais e com elevada capacidade técnica, que se disponibilizaram a vir a
Moçambique para dar cursos na área do cinema. Isto faz com que parte
significante da velha geração dos cineastas moçambicanos se identifique como
produto desta ação. (ALBINO, 2011).
Guerra passa então a dirigir as atividades do Instituto Nacional de Cinema

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(INC) em 1978.

Pelos temas de seus filmes, pode-se notar que Ruy Guerra tem como preocupação
falar do presente pós-colonial e do futuro a partir de testemunhos extraídos do
período da luta anti-colonial de Moçambique. Este duplo compromisso com a
memória do passado colonial e as utopias do presente é nítido no trabalho de muitos
cineastas africanos depois das independências. Seus filmes são militantes na medida
em que a memória é seletiva e estrategicamente revisitada. Se há, portanto, uma
forma de engajamento político nessa ação de Ruy Guerra no cinema moçambicano,
isso se deve ao seu trabalho como cineasta e como responsável pela direção do
INC. O fruto desta colaboração é a inauguração de “uma nova poética e uma
temática específica ao cinema moçambicano”. O resultado desse trabalho acabou
suscitando a simpatia e o entusiasmo militante de outros cineastas africanos e do
mundo. (MELEIRO, 2011).

Curiosamente, apesar das dificuldades – típicas da época, não somente da


área cinematográfica, mas da construção do novo Estado – a edificação e

87

incremento do ramo da sétima arte não se ressentiu de tais obstáculos.

Na época trabalhar para o cinema moçambicano era algo fácil, mas ao mesmo
tempo difícil e complicado. Complicado porque, “estávamos a iniciar. O Instituto
Nacional do Cinema (INAC) estava a começar. E não havia nada”. Ora, “quando não
se tem nada as coisas são ao mesmo tempo facilitadas e complicadas”. Facilitadas,
“porque você não é obrigado a lutar contra nenhuma estrutura estabelecida que
eventualmente seja errada” [...] Havia um aspecto que fazia toda a diferença: uma
fortíssima vontade política de criar um cinema moçambicano. (GUERRA apud
ALBINO, 2011).

Guerra realizou o filme Mueda, memória e massacre 4 que é uma referência no


cinema moçambicano. O realizador justifica a razão da sua nostalgia em relação à
época.

Essa simples fase determina tudo, porque sem “vontade política” não há cinema que
se construa ou que sobreviva em nenhum país. O cinema, pelas suas características
económicas, técnicas e pelo fato de ser a arte do século XX/XXI, explora uma técnica
que envolve todos os processos de produção das demais expressões artísticas
(Idem).

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4
Mueda: Memória e Massacre – Moçambique, 1981, Realização e argumento: Ruy Guerra. Imagem:
Ruy Guerra, Fernando Silva. 75ʹ 35 mm, original com legendas. O filme é uma recriação histórica dos
acontecimentos de Mueda, onde em 16 de junho de 1960, soldados portugueses abriram fogo sobre
uma manifestação, acabando por matar centenas de pessoas. O massacre é considerado como um
dos fatores que despoletaram a luta anticolonial em Moçambique. Desde 1968, ou seja, ainda durante
a guerra da independência (1964-1974), este acontecimento foi popularizado em várias encenações
teatrais. A recriação histórica de Ruy Guerra foi uma das primeiras a serem feitas depois da
independência e foi filmada no próprio local original do massacre. O pano de fundo não é tanto a
brutalidade da força colonial, mas sim a ignorância e o ridículo das pessoas que a constituíam. Mueda,
Memória e Massacre resultou de uma colaboração com o então recém-criado Instituto Nacional de
Cinema de Moçambique e foi apresentado como sendo o “primeiro filme de Moçambique
independente”. Ruy Guerra tinha plena consciência de que a encenação e recriação destes
acontecimentos era parte integrante do processo coletivo de reflexão sobre a história, e abordou o
projeto de forma documental. Através da sua forma ambivalente, o filme acaba por mostrar também as
diferentes expectativas que na época recaíam sobre o cinema da descolonização. Disponível em:
<http://www.berlinda.org/pt/filmes/mueda-memoria-e-massacre/>.

88

E isso é oneroso. Guerra afirma ainda que “Quando em 1975 cheguei a


Moçambique e, por isso eu fiquei, me interessei em participar do processo da
criação do cinema Moçambicano, foi porque encontrei uma compreensão do que
era o cinema, da importância que possui”. (GUERRA apud ALBINO, 2011). Por
isso, “digo com a maior sinceridade e simplicidade que não voltei mais porque
senti que, em Moçambique, desapareceu essa vontade política em relação ao
cinema. E mais: por uma questão afetiva que se viu desalentada pelo assassinato
do Presidente Samora Machel”. (Idem).

Então, é preciso que os governos tenham consciência da importância do que é a


imagem de um país. Do contrário, sozinho o cinema não irá avançar porque envolve
técnicas, aparelhagens, divisas, mecanismos de distribuição e exibição, de
publicidade, de festivais que são fundamentais para a troca de informações nas
áreas técnicas. É nos festivais onde se combinam estratégias, as formas de
produção cinematográfica, entre os realizadores. (Idem).

E é preciso deixar claro que, aqui, não se trata de estratégias submersíveis –


como os governadores, muito tem interpretado, como se os realizadores e
cineastas tivessem tal poder – mas trata-se de estratégias de informação para

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desenvolver o cinema. (Idem).

O cinema representa a memória de um povo. A memória, por sua vez, é uma coisa
viva. As imagens do cinema que existem sobre o passado são coisas que podem ser
revividas – quando falei da criança que se descobre no espelho – referia-me a uma
imagem real, mas ao mesmo tempo metafórico. De qualquer modo, a imagem
cinematográfica é fundamental, para a formação de um eu nacional. De um grupo de
indivíduos que se reconhecem como tendo algo forte de comum entre si e, que
pertença a todos eles. (GUERRA apud ALBINO, 2011).

Outro brasileiro, José Celso Martinez Corrêa, homem de teatro mais do que de
cinema, teve uma passagem pelo cinema moçambicano. Foi uma experiência
esporádica, curta, mas intensa. Ele e sua equipe chegaram a Moçambique com a
ideia de criar um circuito cinematográfico revolucionário. Esse projeto se inscrevia
na mais pura tradição do cinema de ação ou cinema de intervenção. Depois do
Brasil, Moçambique se prestava como terra de experimentação dessa estética

89

política.
De todos os cineastas estrangeiros que passaram pelo cinema moçambicano,
Licínio Azevedo 5 foi aquele que se tornou o mais moçambicano e o mais
visceralmente ligado culturalmente com este país da África, tanto que é citado
hoje como um dos grandes nomes do cinema moçambicano e africano.
Se Ruy Guerra costuma ser apresentado como o mais brasileiro do cinema
moçambicano, Licínio Azevedo é incontestavelmente o mais moçambicano e
africano dos cineastas brasileiros. A aventura africana de Licínio começa e se
limita a Moçambique, quando vai realizar o filme de ação Crossing the River, uma
coprodução com a Tanzânia.
As motivações da ida deste jornalista gaúcho a Maputo transbordam o estrito
quadro da investigação jornalística e se transforma numa prática do cinema
militante. Suas obras fílmicas exploram até hoje a temática das duas guerras
(Guerra de Descolonização e Guerra Civil Moçambicana) que marcaram a história
recente de Moçambique. Seus documentários mais atuais abordam, no estilo do

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5
Licínio Azevedo é cineasta, produtor e escritor gaúcho radicado em Moçambique em 1975. Fez
formação superior na área de jornalismo e durante muitos anos, antes de vir a Moçambique, foi
repórter no Brasil. Em Porto Alegre e São Paulo, trabalhou em jornais que faziam oposição à ditadura
militar na época. Como jornalista, seguiu uma carreira que lhe possibilitou percorrer toda a América
Latina, onde reportou as greves dos mineiros. Participou nas experiências cinematográficas de Ruy
Guerra e de Jean-Luc Godard, no INC (Instituto Nacional de Cinema de Moçambique). Além disso,
orientou um programa de televisão seminal denominado Canal Zero, no Instituto de Comunicação
Social de Moçambique. Em 1999, Azevedo recebeu um prêmio da FUNDAC (Fundo para o
Desenvolvimento da Arte e Comunicação) pelo conjunto de sua obra. Atualmente, trabalha como
realizador independente e é cofundador da Ebano Multimedia, a mais importante produtora de cinema
de Moçambique. As suas múltiplas produções foram premiadas em todo o mundo. Filmografia
principal: A Colheita do Diabo (1988), Marracuene (1990), Adeus RDA (1992), A Árvore dos
Antepassados (1994), A Guerra da Água (1996), Tchuma Tchato (1997), Massassane (1998), A Última
Prostituta (1999), Histórias Comunitárias (2000), A Ponte (2001), Eclipse (2002), Desobediência (2002),
Mãos de Barro (2003), Acampamento de Desminagem (2005), O Grande Bazar (2006), Hóspedes da
Noite (2007), A Ilha dos Espíritos (2010), Virgem Margarida (2012), sua primeira longa-metragem de
ficção.

90

cinema direto, o tema da guerra civil pelo viés dos estragos e as consequências
que causou.
Predomina em sua obra uma preocupação estética com um tipo de cinema
mais engajado socialmente do que ideologicamente. Esta mudança pode
significar uma forma de desencantamento pós-colonial do cineasta e o fim das
grandes utopias nacionalistas que acompanharam os primeiros anos da
independência moçambicana. Mas indica, por outro lado, certo pragmatismo e
lucidez na forma como Licínio passou a administrar sua carreira, a partir dos anos
90, em Moçambique.

Os limites na busca de um novo cinema para descolonizar as mentes

Importa colocar a seguinte questão: a queda do colonialismo em Moçambique


e, na África em geral, como forma de governo e como lógica de dominação
política, cultural e racial, deixou lugar a certa impressão de liberdade. Resta
esclarecer, apesar de tudo, que tipo de libertação se produziu realmente nas
pegadas da descolonização e que direção esta liberação poderia tomar hoje em
dia. O mundo colonial foi pensado como um mundo dividido em dois, que

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funcionava segundo uma dialética de exclusão recíproca das identidades nele
simetricamente colocadas. O mundo pós-colonial define-se pelo desaparecimento
dessa dialética. Ele não está mais dividido em dois, mas mostra-se, antes, em
termos de diferenças, de misturas, de hibridismo e de ambivalência. A linha de
demarcação parece ter-se tornado mais fluida, mais leve ou, melhor dizendo,
fracionada e multiplicada. Podemos perguntar-nos, apesar de tudo, em que
medida o desaparecimento da dialética colonial e a passagem à situação de
hibridez pós-colonialista marca um movimento de liberação e em que medida esta
passagem desemboca em uma forma não dialética de dominação e controle, não
menos severa ou estável que aquela que veio substituir.
Esta lógica não dialética de controle, que em certo sentido substituiu o sistema
dialético do colonialismo, assenta num outro tipo de relação entre o poder e as
fronteiras. O fato colonial funciona de acordo com uma divisão binária central e a

91

dialética do seu governo organiza-se sobre esta fronteira fixa. Esta nova lógica, ao
contrário, não coloca a divisão binária; suas fronteiras são sempre indefinidas,
flexíveis e em expansão. Apresenta-se, à primeira vista, como integradora e, em
seguida, impõe lógicas de diferenciação e de controle em seu espaço liso e
aberto. Esta lógica tem certamente raízes antigas, mas podemos pensar, também,
que se trata igualmente da lógica de poder mais difundida hoje em dia, em
particular depois do fim da guerra fria. Mas será que o caráter aberto da
hibridação suprime as diferenças entre os estratos culturais que se cruzam,
produzindo um pluralismo generalizado, ou será antes que ele apenas engendra
novas segmentações?
Com base nestes pressupostos e no que ao cinema diz respeito, é observável
uma mudança de postura em quase todos os cineastas que participaram dos
primeiros esforços de criação do cinema moçambicano, denotando o fim de uma
era marcada pelas utopias do engajamento ideológico. Com o incêndio que
destruiu, em 1987, aquilo que tinha sobrado do INC, é como se toda a memória
da década prodigiosa do cinema moçambicano também tivesse se volatilizado. A
principal explicação a este desencantamento dos cineastas poderá residir na

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própria situação pós-independência, mal administrada politicamente em
Moçambique e em outras partes da África. Situação pós-colonial em que o cinema
se tornou o primo pobre das políticas culturais. Se no pós-independência
ocorreram inegáveis avanços na área social, sobretudo no campo da educação e
da saúde, é justo destacar as conquistas alcançadas na condição da mulher. Com
efeito, a maior conquista feminina foi a participação em órgãos onde decisões são
tomadas, em todos os níveis. Se, por um lado, a presença feminina em cargos de
liderança do governo em Moçambique é uma das maiores do mundo, por outro,
as mulheres ainda sofrem com uma estrutura social repressiva, na qual a liberdade
de escolha e o direito à educação são garantidos prioritariamente aos rapazes.
Enquanto no Brasil a presença de mulheres no parlamento não passa de 10%, a
Assembleia da República moçambicana possui um total de 40% de
representatividade feminina. Nos ministérios, cerca de um terço entre ministros e
vice-ministros são dirigidos por mulheres. Inspirados pela linha de pensamento

92

socialista instaurada no pós-independência, as lideranças moçambicanas


pregavam a igualdade entre todos, sem discriminação quanto à idade, cor, etnia,
religião e sexo. Nesse contexto, por exemplo, as mulheres possuíam sua própria
organização dentro da Frelimo (Frente de Libertação Moçambicana), a chamada
OMM (Organização da Mulher Moçambicana). Quarenta anos depois da conquista
da independência, a representatividade das mulheres na política ainda pode ser
fortemente observada. Parte disso se deve ao cunho histórico do envolvimento
feminino nas mobilizações populares, mas políticas internas muito contribuíram,
como o estabelecimento de cotas para mulheres dentro de partidos como meio de
garantir uma percentagem mínima presente desse grupo. Essa medida foi uma
das formas encontradas para combater o forte machismo presente na sociedade
moçambicana. Neste combate que se faz presente até hoje, constata-se que o
cinema tem uma palavra a dizer.
E como o cinema moçambicano tem contribuído para essa descolonização das
mentes que no período colonial relegava a mulher para um papel de quase
escrava? E quais as contradições com que ainda se defronta a libertação da
mulher? Por exemplo, em seu último filme, Virgem Margarida (2012), Licínio

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Azevedo debruça-se sobre um país internamente desconhecido, com mulheres do
sul, norte, urbanas, rurais que, nesse convívio, se vão transformando em
“mulheres de uma só nação”. O filme reflete sobre a libertação da mulher. É quase
inexistente o confronto com a história recente do país, como se houvesse uma
sacralização do período pós-independência que não permite mexer nas suas
ambiguidades.
O documentário Na Dobra da Capulana (2014), de Camilo de Sousa e Isabel
Noronha, apresenta-nos uma viagem ao “reino” encantado da capulana6. Revela
ao espetador um universo tipicamente feminino através de situações e narrativas
de um grupo de mulheres que, tal como todas as mulheres moçambicanas, usam
a capulana para diversos fins e lhe atribuem diversas significações. Ao longo de

6
Capulana é o nome que se dá, em Moçambique, a um pano que, tradicionalmente, é usado pelas
mulheres para cingir o corpo, substituindo, às vezes, a saia, podendo ainda cobrir o tronco e a cabeça.

93

30 minutos, o documentário pretende descobrir o sentido de ser mulher em


diferentes épocas, ligadas entre si pelos traços, cores, padrões, desenhos, dizeres
e nomes de cada capulana, na dobra da qual se esconde uma história única,
singular, como um inventar da existência. Como nos lembra Fanon (2008, p. 189),
“Não sou prisioneiro da História. Não devo procurar nela o sentido do meu
destino. Devo me lembrar, a todo instante, que o verdadeiro salto consiste em
introduzir a invenção na existência”.

A descolonização jamais passa despercebida porque atinge o ser, modifica


fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de
inessencialidade em atores privilegiados, colhidos de modo quase grandioso pela
roda-viva da história. Introduz no ser um ritmo próprio, transmitido por homens
novos, uma nova linguagem, uma nova humanidade. A descolonização é, na
verdade, criação de homens novos. Mas esta criação não recebe sua legitimidade de
nenhum poder sobrenatural; a 'coisa' colonizada se faz no processo mesmo pelo
qual se liberta. (FANON, 1979, 26-27).

É nesta linha que se posiciona Stuart Hall quando interroga “por que o pós-
colonial é também um tempo de diferença? Que tipo de diferença é essa e quais

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as suas implicações para a política e para a formação dos sujeitos na
modernidade tardia?” (HALL, 2011, p. 95). Como dar voz a um povo a quem a
máquina colonial impediu de apresentar sua própria subjetividade?
Em 1985 Spivak publica o artigo “Pode o subalterno falar?” no qual lança a
discussão sobre os intelectuais que falam ou representam o ser colonizado, o
subalterno. Segundo a autora, nessa representação o ser colonizado é visto como
um corpo homogêneo que não possui voz ativa, ou seja, não fala por si mesmo,
mas sim através dos intelectuais que constroem a identidade desse “Outro”
subalterno e colonizado. Somente o fato da Europa através de seus intelectuais
caracterizarem o sujeito colonizado como o “Outro”, aquele que está às margens
do europeu, já constitui uma violência clara nesse modelo de representação. Tal
como diz Spivak (2010, p. 47): “O mais claro exemplo disponível de tal violência
epistêmica é o projeto remotamente orquestrado, vasto e heterogêneo de se
constituir o sujeito colonial como Outro. Esse projeto é também a obliteração

94

assimétrica do rastro desse Outro em sua precária subjetividade”.


É nesta trama de construção de novas subjetividades que novos cineastas
procuram afirmar a moçambicanidade através da sétima arte. Para além dos
citados Ruy Guerra e Licínio Azevedo, não podem deixar de ser ressaltados mais
alguns nomes de realizadores que têm dado rosto ao cinema moçambicano:
Camilo de Sousa7, Isabel Noronha8, Sol de Carvalho9, Pedro Pimenta10, Orlando

7
Camilo de Sousa nasceu em Lourenço Marques a 29 de Maio de 1953, onde fez os estudos
secundários. Sobrinho da poetisa Noémia de Sousa, aprendeu em casa a construir uma consciência
política e na rua que a cidade se demarcava consoante a cor da pele e a posição social. Guerrilheiro na
luta pela Independência de Moçambique, militante da FRELIMO, marcou-o profundamente o que veio
depois da guerra e que o leva a abandonar o partido. Em 1968, começou a interessar-se pela
fotografia, trabalhando nas Artes Gráficas e, posteriormente, como repórter fotográfico e redactor do
diário “O Jornal” publicado na então cidade de Lourenço Marques. Em 1972 refugiou-se na Bélgica,
onde obteve o estatuto de refugiado político junto às Nações Unidas (UNHCR). Em 1973 partiu para a
Tanzânia e juntou-se à Frente de Libertação de Moçambique, participando na luta pela Independência
de Moçambique. Depois da proclamação da Independência Nacional em 1975, trabalhou em diversos
projectos de carácter social e de comunicação na Província de Cabo Delgado, criando a primeira rede

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moçambicana de correspondentes populares de informação e levando o cinema móvel a todos os
distritos e localidades desta província. Em 1980, ingressou no Instituto Nacional de Cinema, onde
trabalhou até 1991 como realizador, editor, director de produção, produtor e, finalmente, Director Geral
de Produção. Em 1992, com outros profissionais de cinema e comunicação, criou a primeira
cooperativa independente de comunicação e produção de imagem, a Coopimagem. Em 2001,
associou-se à Ébano Multimédia, onde tem vindo a desenvolver a actividade de Produtor e Realizador.
Com o projeto de cinema móvel – que cobre todo o território moçambicano – e o jornal de atualidades
Kuxakanema, com o trabalho no Instituto Nacional de Cinema (onde encontra Jean-Luc Godard, Jean
Rouch e nasce toda a geração dos que vão fazer cinema em Moçambique), e mais tarde com a Ébano,
a produtora onde continua a praticar o seu “cinema de resistência”. Camilo de Sousa reencontrou no
cinema o caminho da luta por uma sociedade mais justa. É membro fundador e vice-presidente da
Associação Moçambicana de Cineastas, criada em 2003. Ele conta com uma participação em
centenas de produções cinematográficas, como produtor, director, realizador, primeiro assistente. Nas
produções cinematográficas que marcaram Moçambique, Camilo de Sousa tem a sua participação,
onde, a título de exemplo, se pode citar a sua presença no filme “O Tempo dos Leopardos”, uma
longa-metragem de ficção coproduzida por Moçambique e a Jugoslávia. A sua marca está igualmente
presente no filme “O Vento Sopra do Norte”, um longa-metragem de ficção do cineasta José Cardoso.
A “Noite de Abraços” é um evento cultural que visa criar um espaço para a interacção directa e

95

informal entre personalidades da cultura moçambicana e os seus admiradores, constituindo uma


oportunidade para os fazedores culturais trocarem impressões com os seus colegas e admiradores,
partilhando caminhos que levem ao desenvolvimento cultural. Principais filmes realizados: “Um dia às
7.30 horas” 16mm p/b Moçambique – Melhor Documentário Moçambicano, 1983; “Não Mataram o
Sonho de Patrício”, documentário, 16 mm p/b, Moçambique – Prémio do Centre International des
Filmes pour les Enfants e la Jeunesse (Paris), “Ondas Comunitárias”, documentário, Betacam SP,
Moçambique – Adquirido pelo CFI (França) foi difundido por toda África e em alguns países europeus
em português, inglês e francês através da TV5; “Junod”, documentário, Betacam SP, Moçambique –
Prémio FUNDAC Kuxa-Kanema para o melhor filme moçambicano 2006. Disponível em: <
http://gm54.wordpress.com/tag/camilo-de-sousa/>. Acessado em: 10 de julho de 2013.
8
Isabel Noronha foi uma das primeiras mulheres moçambicanas a dedicar-se à realização
cinematográfica. Tendo nascido em 1964 em Maputo, ingressou em 1984 no Instituto Nacional de
Cinema. Foi membro fundador da primeira cooperativa independente de Vídeo (“Coopimagem”) e da
Associação Moçambicana de Cineastas. É licenciada em Psicologia Clínica e Aconselhamento pelo
Instituto Superior Politécnico Universitário (ISPU), onde lecciona as disciplinas de Psicanálise,
Psicologia Social, Orientação Vocacional, Psicologia das Emoções, Psicologia da Personalidade,
Psicologia da Comunicação. É Mestre em Saúde Mental e Clínica Social pela Universidade de Léon,

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em Espanha. Em 2003, organizou a mostra Mozambicam Cinema, integrada por filmes produzidos
após a independência daquele país. Dirigiu inúmeros documentários, dentre eles, Manjacaze (1987),
Hosi Katekisa Moçambique (1988), Genesis em azul (1989), Cuidados pré-natais (1991), Assim na
cidade (1992), As mães da terra (1993), Abc das eleições (1994), Cena lusófona (1995). Destacam-se
ainda os documentários “Assim na cidade”, “Sonhos guardados” e “Ngwenya, o crocodilo” (melhor
documentário de África, Ásia e América Latina pelo Festival de Milão) todos eles abordando temáticas
ligadas à construção social e identitária da sociedade moçambicana. Em 2008 iniciou uma série de
filmes sobre temáticas sociais: “Trilogia das Novas Famílias” (Prémio Kuxa-Kanema, melhor filme
moçambicano de 2007). Desde 2008 que se vem dedicando, junto com Vivian Altman (realizadora de
animação) à pesquisa de uma linha fílmica mista entre documentário e animação que permita tratar
estas temáticas sem expôr a identidade dos personagens. Nesta linha destacam-se os filmes “Mãe dos
Netos,” (2008), “Salani” (2010) e “Meninos de Parte Nenhuma” (2011). Em 2010, realizou também
“Maciene, para além do sonho”, um documentário sobre um projecto comunitário de produção de
artesanato com base em recursos naturais. Em 2011, correalizou com Vivian Altman (Brasil), Firouzeh
Khosrovani (Irã) e Irene Cardona (Espanha), “Espelho Meu”, um documentário/animação, sobre a
autoimagem de mulheres de diferentes culturas, nos quatro continentes (primeiro prémio no festival
Documenta Madrid 2011 e Mujerdoc 2012). Disponível em: <http://www.linkedin.com/pub/isabel-
noronha/55/275/245>. Acessado em: 10 de julho de 2013.

96

Mesquita Lima11, Chico Carneiro12.

9
Sol de Carvalho nasceu em 1953 em Moçambique, cresceu em Inhambane, ausentando-se para
estudar cinema em Portugal nos anos quentes de 1972 a 1974. Logo que se dá o 25 de Abril, e tendo
já abraçado a actividade política contra o regime de Oliveira Salazar, regressa ao país natal para se
juntar ao projecto independentista da Frelimo. Destacado como chefe do Serviço Nacional da Rádio
Moçambique, aí permanece até ser transferido para a revista Tempo em 1979, integrando a profícua
equipa de Mia Couto e Albino Magaia. Participa no projecto de concepção do Kuxa Kanema,
incompatibiliza-se com o Ministério e regressa a Tempo. Em 84, faz como 3º assistente, o primeiro
longa-metragem moçambicano coproduzido por Moçambique e a Jugoslávia ao que se seguem 56
edições do Kuxakanema. É em 1986 que regressa exclusivamente ao objecto de estudo, abraçando
definitivamente a carreira cinematográfica. Sol de Carvalho foi sócio fundador da produtora Ébano
(juntamente com Pedro Pimenta e Licínio Azevedo), da qual se desligou posteriormente para montar a
Promarte. As suas obras são conhecidas pelo cunho social, dedicando-se a temas como VIH/sida e
violência doméstica, entre outros. Adepto dos processos participativos, tem um gosto particular pelas
projecções junto das comunidades onde roda parte dos seus filmes (PEREIRA, 2011). Realizou mais de
20 filmes de que salientamos O Jardim do Outro Homem, A Janela, O Búzio, As Teias da Aranha, Não é
preciso empurrar (ficção), Bazaruto onde o céu tem mais cor, Ilha de Moçambique encontro de
culturas, Muhapiti Alima (ficção), Máscaras austrais, Empregadas domésticas, A herança da viúva

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(ficção), Quando mar bate na rocha, Contos tradicionais, Turismo destruidor, O mundo dos corais,
Translocação, Pregos na cabeça, Apoiando beneficiários, Mocodoene uma opção de desenvolvimento
comunitário, Garras e dentes, Caminhos da paz, Impunidades criminosas. Disponível em:
<http://www.buala.org/pt/cara-a-cara/a-funcao-provocadora-do-artista-entrevista-a-sol-de-carvalho>.
Acessado em: 10 de julho de 2013.
10
Pedro Pimenta é cineasta e produtor. Começou sua carreira no Instituto Nacional de Cinema de
Moçambique em 1977. Desde então, produziu inúmeros curtas de ficção, documentários e longas-
metragens. Em 1997, produziu o filme “Fools”, primeiro longa-metragem rodado por um sul africano
negro (Ramadam Suleman) e, no mesmo ano, “Africa Dreaming”, crônica da África em seis atos, tendo
como tema comum o amor. Entre 1997 e 2003, foi Conselheiro Técnico da UNESCO no Zimbabwe Film
and Video Training Project for Southern Africa, em Harare. É um dos fundadores do AVEA – Audio
Visual Entrepreneurs of Africa. Também é membro correspondente estrangeiro da “Association du
Cinéma du Réel”, encontro internacional do cinema documentário. É fundador e diretor do Dockanema
– Festival Internacional do Filme Documentário em Moçambique. Disponível em:
<http://www.iniciativacultural.org.br/2012/05/mostra-africa-hoje/>. Acessado em: 10 de julho de 2013.
11
Orlando Mesquita Lima é editor, realizador e compositor cinematográfico de mais de 300 filmes
como; “A Guerra da Água”, “Hóspedes da Noite”, “O Grande Bazar”, “A Bola”, “Eclipse”, ”Rodas da

97

Rua”, “A Tempestade”, “Destorcido”, “Beat iT!”, “Marrabentando, “O Último Voo do Flamingo””. Editor
de ”Os Comprometidos”, uma série de 80 programas de televisão, de Rui Guerra, um dos maiores
cineastas contemporâneos do Brasil. Membro fundador da Coopimagem, empresa mista de produção
gráfica e cinematográfica, tendo trabalhado como criativo na concepção, maquetização de livros,
outdoors, folhetos e editor cinematográfico. Membro fundador da IRIS Imaginações, empresa
vocacionada para a produção de filmes e desenvolvimento de materiais de comunicação que visam
desenvolver habilidades para a vida. Diretor de atores e editor da primeira telenovela moçambicana,
“Não é preciso empurrar”. Concepção, edição, desenho e animação da primeira série de desenhos
animados em Moçambique, “Musculinho”, uma caricatura de um moçambicano que todos os dias tem
que inventar uma maneira de “desenrrascar a vida”. Compositor criativo gráfico, para aberturas e finais
de filmes incluindo cartazes de promoção. Compositor musical e efeitos especiais para trilhas sonoras
de diversos filmes. Concepção do programa de rádio: MozZzKITO!, um programa em direto, interativo
e de entretenimento sobre prevenção da malária. Editor criativo de jogos, programas e manuais que
integram o “Pacote Básico Habilidades para a Vida”, destinado a escolas primárias moçambicanas,
abrangendo 8.000 escolas, 40.000 professores e 2.000.000 de alunos. Diretor do NoTMoC, primeiro
jornal electrónico em Moçambique. Diretor criativo de um pacote de materiais para o combate à cólera,
malária e HIV/SIDA, no âmbito da emergência, concebidos para o UNICEF, nomeadamente folhetos e
spots de rádio. Disponível em: < https://sites.google.com/site/orlandomesquitalima/Home/versos-
musica>. Acessado em: 10 de julho de 2013.

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12
Chico Carneiro nasceu em 1951 em Castanhal (Pará-Brasil). Autodidata e filho de um exibidor
cinematográfico, trabalhou na indústria de cinema brasileira participando como assistente de câmara e
de som nos seguintes filmes de longa-metragem: Iracema - uma transa amazônica (Bodanzky-Senna);
Gitirana (Bodanzky-Senna); Os Mucker (Bodanzky-Gauer); Pixote (Hector Babenco); ABC da greve
(Leon Hirzsman). Em 1983 migra para Moçambique, trabalhando como diretor de fotografia e realizador
dos filmes documentários da empresa Kanemo, Produção e Comunicação. Destacam-se os filmes:
Fronteiras De Sangue – documentário de longa-metragem, sobre a gênese da reação armada ao
governo da Frelimo (16mm, cor) e Karingana wa Karingana, filme sobre o poeta José Craveirinha.
Direção de Fotografia e Câmera (16mm. P&b). De 1993 até hoje é sócio-fundador da PROMARTE,
empresa produtora de filmes, onde exerce as funções de Fotógrafo, Operador de câmera e realizador.
Como realizador fez, entre outros, os seguintes filmes: ABC do Ambiente (série para TV 12 docs X 30
mins); Defeso; Saltando à Corda; À Porta da Minha Casa; A água Conhece o Seu Caminho; Reservas –
Um Lugar Para Não Viver; Queimadas Descontroladas; O Carvão Nosso de Cada Dia; IRAPISMU –
Passos Para o Maneio Florestal Comunitário; In Comunicação; Lorena (premio de melhor vídeo de
ficção na Jornada Internacional de Cinema de Salvador – 2005); Muitos Ninguém; Salinas Zacarias. A
partir de 2001 voltou a filmar no Brasil, na Amazônia, onde já realizou os seguintes filmes: Os
Promesseiros (2001); Casa do Gilson, Nossa Casa (2003); Seu Didico – Paraense Velho Macho! (2006);

98

O Kuxa Kanema e os filmes de ficção

A luta pela independência e democratização do país fez um grupo de jovens


realizadores e técnicos se mobilizarem para produzir documentários sobre o que
estava a acontecer. Foi o nascimento do cinema num país que acabava de se ver
independente. Os jovens tinham incentivo do governo para produzirem tais
documentários, que eram exibidos nas salas recém-nacionalizadas e receberam o
nome de Kuxa Kanema (literalmente “o nascimento do cinema”), filmes cujo
objetivo era “registrar a imagem do povo e devolvê-la ao povo”. Esses filmes
foram divulgados em salas de cinema móveis visando atingir toda a população.
A URSS oferece uma série de viaturas para a rede de cinema móvel que
começa a projetar em todo o país a mais popular produção do INC. Kuxa Kanema
era um jornal cinematográfico de 10 minutos que tinha como objetivo de “filmar a
imagem do povo e devolvê-la ao povo”. Apareciam muitas vezes imagens e
discursos de Samora Machel que pelo seu poder de expressão fascinava a
população. O sucesso de Kuxa Kanema foi tal que ainda hoje se utiliza esta
expressão para designar qualquer imagem em movimento.

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Os documentários rodavam nas salas de cinema independentes, e nas salas
de cinema móvel sendo divulgados por toda a população. Era a primeira vez que
as pessoas tinham a possibilidade de ver a sua própria imagem refletida na tela.
Por isso, os filmes tinham um grande acolhimento popular13.

Balsa Boieira (2008); Promesseiros de Joelhos (2008 – em edição); Nos Caminhos do Rei Salomão
(2009 – em edição). Disponível em: <http://www.blogdaluzia.com/2010/04/quem-e-chico-carneiro-
cineasta-e.html>.
13
Deve chamar-se a atenção que é mais fácil alcançar as audiências africanas com um filme do que
com um livro, dado que o letramento em África é muito baixo. “Em alguns países essa taxa não
ultrapassa os 15% (caso do Níger e Burkina Faso), noutros é de 30% a 35% e são poucos os países
africanos que atingem ou ultrapassam os 60%” (RAPAZOTE, 2013). Nessas condições, portanto, a
linguagem cinematográfica serve também para educar as pessoas, é uma forma de falar com elas, pois
se for apresentado um documentário a uma audiência facilmente se consegue colocar o público a
discutir um assunto. A verdade é que as pessoas interessam-se pelo cinema e pelo documentário

99

O cinema era, pois, em Moçambique, um elemento de formação e educação,


até porque não havia televisão na época. A diferença é que só se fazia um
determinado tipo de filmes – algo dirigido. Contudo, estes filmes são
insubstituíveis e mostram os primeiros onze anos desde o tempo colonial até ao
pós-independência.
Com o crescer da violência e o alastrar da guerra civil, o INC luta com todo o
género de problemas técnicos. Falta de energia, falta de película e assistência
técnica. Mesmo assim, em 1983, o INC lança-se num projeto de filmes de ficção.
Só vão ser produzidos dois filmes: o primeiro, O Tempo dos Leopardos, uma
coprodução com a Jugoslávia, é um filme épico sobre os atos gloriosos da
FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) durante o tempo colonial. O
segundo, O Vento Sopra do Norte, é um filme totalmente produzido em
Moçambique. Os dois filmes são bastante maniqueístas, com histórias simples de
“pretos e brancos”. Ambos são grandes sucessos comerciais.
Em 1986 Moçambique é considerado o país mais pobre do mundo. Nas
cidades as salas de cinema foram destruídas e o Cinema Móvel deixou de
projetar, pois já não se podia sair das cidades em segurança. Samora Machel

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morre em outubro de 1986 e o novo poder não tem interesse em manter o INC. O
meio que o irá substituir – a televisão – já tinha começado as suas emissões
experimentais em Maputo. O INC deixa de produzir.
Em 1991 um fogo destrói o edifício do Instituto. Até essa data tinham sido
produzidos cerca de 120 filmes. Sobraram apenas os filmes que se encontravam
arquivados (cerca de 25 mil latas) com imagens desde o tempo colonial ao pós-
independência, matrizes de um cinema e de um país. Estes filmes insubstituíveis
representam o único testemunho dos 11 primeiros anos de independência, os
anos da revolução socialista. Em 2003 a portuguesa Margarida Cardoso realizou

quando, de alguma forma, percebem que podem ver as suas vidas retratadas na tela e, quando assim
é, um cineasta consegue chegar a um público africano mais numeroso.

100

um documentário sobre a trajetória do Kuxa Kanema 14 . São 52 minutos de


imagens que, se já servem como testemunho dos anos iniciais da então república
socialista moçambicana, igualmente mostram o poder do cinema de perpetuar as
memórias de uma nação que muito teria a esquecer, mas que agora quer também
ter recordações das quais se orgulhar.

A criação da Associação Moçambicana de Cineastas

Em 2003 foi criada a Associação Moçambicana de Cineastas, a AMOCINE,


cujo objetivo era revitalizar a produção cinematográfica no país, e que, com o
financiamento da Cooperação Francesa, criou um fundo de apoio ao cinema
moçambicano.
As produções passaram a ser em vídeo sobrevivendo essencialmente dos
financiamentos de organizações não governamentais com interesses em diversas
áreas em Moçambique. A produção moçambicana fica marcada por uma forte
predominância do documentário, adquire uma larga experiência nesse campo
com mais de 400 títulos produzidos até 1992 e com o mérito de ter construído
uma verdadeira identidade, fator seguido logo de perto pelas primeiras obras de

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ficção.

Há, em média, uma longa-metragem, dois ou três documentários e uma série de


“docudramas” produzidos por ano [...] Os filmes não são distribuídos no circuito
nacional porque não há salas de cinema. As televisões nacionais não passam as
obras. Outro aspecto grotesco é que as poucas salas que existem no país estão mais
ao serviço do cinema americano, de filmes comerciais, em detrimento dos
moçambicanos. (ALBINO, 2013).

Apesar da falta de qualquer incentivo ao cinema moçambicano, várias obras


cinematográficas dos cineastas nacionais foram diversas vezes premiadas dentro
e fora do país.

14
KUXA KANEMA: O Nascimento do Cinema. Documentário de Margarida Cardoso, Filmes do Tejo,
uma coprodução RTP (Rádio Televisão Portuguesa) – ARTE France – RTBF Televisão Belga, 52
minutos, cor, 2003).

101

Apesar dos seus esforços, continua a não haver nenhuma estrutura de


distribuição de filmes e por isso os trabalhos cinematográficos estão arquivados,
sendo expostos ao público através da televisão, sem contrapartida financeira.
A AMOCINE conta com o apoio da experiência técnica e profissional dos seus
membros e direção para a gestão e canalização de um pequeno fundo.
As produções dos cineastas moçambicanos contam, quase que
exclusivamente, com o apoio financeiro de organizações não governamentais.
As produções adquiriram o formato de vídeo e uma forte predominância no
género de documentário, sendo produzidos acima de quatrocentos títulos nesta
área até à década dos anos 90. Isto fez com que o cinema Moçambicano
desenvolvesse a sua própria identidade especializando-se no género docudrama,
embora também fosse produzindo alguns filmes de ficção.

O “Dockanema”

Um dos momentos mais significativos da arte cinematográfica em


Moçambique ocorre anualmente com o festival internacional de documentários
“Dockanema” que Maputo tem vindo a acolher desde 2006, em que durante dez

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dias se projectam mais de uma centena de filmes, não só moçambicanos, mas
também brasileiros e europeus. O festival decorre, em simultâneo, em várias salas
da capital moçambicana: Teatro Avenida, Teatro Scala, Centro Cultural Brasil-
Moçambique, Cine-Teatro Gilberto-Mendes e anfiteatro da Faculdade de Letras
da Universidade Eduardo Mondlane.
O público tem a oportunidade de assistir a documentários que, mais do que
descrever as realidades do mundo contemporâneo, abrem lugar a que essas
vivências encontrem, por esses dias em Maputo, espaço e tempo para serem
questionadas e perspectivadas com olhos no futuro.
Para os cineastas moçambicanos, os seis anos de Dockanema revestem-se de
grande importância. Isabel Noronha, uma das mais importantes e ativas cineastas
do país, acredita que:

102

[...] o Dockanema inaugurou uma era na qual nós, cineastas moçambicanos,


começámos a poder mostrar os nossos filmes a um público mais alargado, e
também a ter a possibilidade de vermos os filmes uns dos outros e aqueles que se
fazem noutros locais. Tudo isto é muito importante em termos de reflexão daquilo
que nós próprios fazemos. (NORONHA apud PIEDADE, 2010).

O Dockanema é uma tentativa de criar um espaço onde, no confronto com os


trabalhos feitos entre cineastas nacionais e internacionais, e com convidados que
vêm de outras experiências e parâmetros, haja ao fim de algum tempo, um
verdadeiro impacto na reflexão do debate, na crítica construtiva e, sobretudo, na
inventariação de soluções positivas.

Creio que gradualmente há uma alteração de atitude. As pessoas deram-se conta de


que apesar de todas as dificuldades que temos neste país, é possível fazerem-se
coisas com determinado padrão de qualidade. A mediocridade não pode ser
traduzida e explicada só e apenas pela ausência de recursos. É possível fazer melhor
com o pouco que temos. (PIMENTA apud PIEDADE, 2010).

Considerações finais

Os contextos específicos da resistência anticolonial, dos movimentos de

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libertação e da independência, levaram a uma maior inscrição de imagens na
história de Moçambique. Durante alguns anos, do início de 1970 até ao início de
1980, rapidamente Moçambique transformou-se num lugar chave no mapa
mundial do cinema experimental e revolucionário. A complexidade e intensidade
de que nos dá conta da génese do cinema moçambicano explica em grande
medida o seu registo e referencialidade à escala global. Como vimos, a seguir à
Independência em 1975, o slogan “filmar o povo e devolver a imagem ao povo”
conduziu uma parte significativa da sua produção para um cinema de clara ação
militante. Contudo, nas últimas duas décadas novos rumos foram encetados,
possibilitando certa “despartidarização” desse cinema, sem que perdesse um
comprometimento com as causas sociais e com o sentido crítico a elas ligado.
No entanto, os problemas que o cinema moçambicano enfrenta são
gigantescos. Atualmente, Moçambique vive uma situação bastante dramática no

103

seu sector de difusão audiovisual e carece de uma reestruturação da indústria e


do mercado de cinema local. Além de uma presença maciça e quase indissolúvel
da pirataria, o país, que já teve cerca de 120 salas de cinema operando
simultaneamente, hoje tem apenas a empresa portuguesa Lusomundo, que
controla três salas: duas em Maputo e uma na Beira, tem em cartaz só filmes
americanos, e os exibidores indianos, que detêm dez salas, programam
exclusivamente produções indianas.
Não existe, portanto, nenhuma opção de sala de cinema com conteúdo variado
e independente, como filmes africanos, europeus ou de outros continentes. A
ausência de filmes moçambicanos nas salas de cinema “normais” é uma
preocupante realidade. Filmes que não chegam até seu público primário e,
consequentemente, não geram renda dentro de seu mercado.
Sem o hábito reiterado de assistir a filmes, agravado pelo fato de todas as
salas de cinema terem sido “vendidas” às igrejas, sem políticas específicas para o
sector, neste momento, Moçambique é o país com menos condições para o
desenvolvimento da sétima arte. Os filmes moçambicanos são projetados no
Centro Cultural Franco-Moçambicano, mas com audiência confinada a uma elite.

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Num cenário em que a produção cinematográfica é feita sem nenhuma
legislação, nenhuma boa vontade – mesmo que seja política – pode-se afirmar
que uma vez bem orientada, podia gerar riquezas para Moçambique e estimular o
desenvolvimento da economia nacional. A falta de legislação operacional é, pois,
um dos grandes entraves para a evolução do setor.
Seria importante também que o empresariado nacional investisse no cinema,
sem o qual o setor terá muitas dificuldades em evoluir. A sétima arte
moçambicana não é sustentável, porque a maior parte da sua produção é feita por
encomenda.
Pensamos, no entanto, que o mais importante para o futuro do cinema em
Moçambique passaria pela revitalização do INAC, Instituto Nacional de Áudio
Visual de Cinema, antigo INC. Desse esforço, cujos primeiros passos já se
iniciaram, resulta que hoje, o arquivo de filmes que escapou ao incêndio do
Instituto Nacional de Cinema está a ser inventariado pela Cinemateca, com apoio

104

da Cooperação Portuguesa e da Unesco para se delinear uma estratégia para a


sua recuperação.
O Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Arte e Cultura (FUNDAC) e o
Instituto Nacional do Audiovisual e Cinema (INAC) deveriam ter concursos anuais
que promovessem a produção nacional, onde os artistas, incluindo os cineastas,
poderiam submeter os seus projetos de forma cíclica e organizada.
Nessa revitalização não devem ignorar-se as potencialidades do cinema digital,
mais concretamente, a necessidade de se realizarem estudos de viabilidade para
a implantação de uma Rede de Cinemas Digitais em Moçambique, a partir de
algumas premissas básicas:
1. O projeto do governo para a implantação de uma rede de fibra ótica,
levando internet de banda larga para todo o país e possibilitando assim
a operação do cinema digital, que consiste no envio de filmes
digitalizados para os cinemas conectados à rede.
2. A necessidade de se estimular a indústria e o mercado de cinema no
país, adequando-o ao contexto audiovisual em que grande parte dos
países de todos os continentes se encontra hoje.

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3. Os esforços do programa ACP Films para o desenvolvimento e
estruturação da indústria de cinema e audiovisual nos países de ACP
(África, Caribe e Pacífico).
O estudo de viabilidade fez-se necessário a partir do momento em que surgiu
um panorama favorável para a instalação de salas digitais, ou seja, a conclusão
em 2011 da implantação de uma rede de fibra ótica em todas as capitais distritais,
levando internet de banda larga para todo o país e possibilitando, assim, a
operacionalização do cinema digital, que poderá viabilizar de maneira mais
simples e menos custosa o envio de filmes – digitalizados – para os cinemas
conectados à rede.
Atingir o público de baixa renda que não tem acesso aos cinemas comerciais;
difundir a produção de conteúdos regionais; valorizar a exibição de filmes
moçambicanos e incentivar a difusão de filmes procedentes de outras origens que
não são comumente aceitos pelo circuito comercial são metas apontadas pelo

105

estudo de viabilidade que podem se tornar realidade através da criação de


políticas públicas de incentivo ao cinema digital pelo governo moçambicano.
Por último, não podemos deixar de chamar a atenção para o fato de que
quando se fala que o cinema é mais colonizador do que o colonialismo, nada mais
se quer significar que a batalha das imagens é a mais feroz, a mais implacável e, o
que é pior, é contínua. Se vivemos em uma situação em que a imagem do mundo
é ela própria colonizada, então fica difícil percebermos a nós mesmos a não ser
que lutemos para descolonizar essa imagem. Descolonização da mente é tanto
um pré-requisito para um cinema moçambicano bem-sucedido como também a
temática de um cinema moçambicano sério. Mesmo que este Estado pós-colonial
se veja como independente, ele ainda sofre de todas as cicatrizes coloniais em
sua psique coletiva. A arte cinematográfica tem, assim, o dever de desmascarar
essa descolonização parcial.
Como vimos, o cinema moçambicano está muito longe de constituir uma
indústria; mesmo assim, determinações de ordem econômica não deixam de
incidir sobre seus rumos. Juntamente com o valor social e político dos filmes,
estes fatores “extracinematográficos” precisam ser estudados e entendidos.

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Escravidão, colonialismo, neocolonialismo, racismo fizeram-se presentes ao longo
da história da sociedade moçambicana e não se pode nunca ser seduzido pelos
financiadores que incentivam a agir como se a única realidade do país fosse a de
seus anciãos sentados sob um imbondeiro, exsudando sabedoria, ou de
elementos sobrenaturais da vida moçambicana.
De todas as cinematografias da periferia do sistema capitalista, o cinema
moçambicano e o cinema africano em geral é aquele que continua à procura de
seu próprio público. Minha esperança é que, à medida que os cineastas
superarem os problemas de tecnologia e recursos, não sejam tentados a perder
sua conexão vital com as raízes essenciais da sociedade moçambicana. Pelo que
têm feito, na esmagadora maioria dos casos, essa esperança é, cada vez mais,
uma certeza.

106

Referências

ALBINO, Inocêncio. “Está-se a ‘castrar’ o cinema moçambicano!” In: Jornal A


Verdade, 11 de abril de 2013. Disponível em:
<http://www.verdade.co.mz/cultura/36174-esta-se-a-castrar-o-cinema-
mocambicano>. Acessado em: 10 de julho de 2013.

ALBINO, Inocêncio. “Cinema moçambicano órfão de vontade política!” In: Jornal A


Verdade, 29 de setembro de 2011. Disponível em:
<http://www.verdade.co.mz/cultura/22434-cinema-mocambicano-orfao-de-
vontade-politica>. Acessado em: 10 de julho de 2013.

ARENAS, Fernando. “Retratos de Moçambique pós-Guerra Civil: a filmografia de


Licínio de Azevedo.” In: BAMBA, Mahomed; MELEIRO, Alessandra (orgs.). Filmes
da África e da diáspora: objetos de discursos. Salvador: EDUFBA, 2012. p. 75-98.

BAMBA, Mahomed. “O papel dos festivais na recepção e divulgação dos cinemas


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mercado: África. São Paulo: Escrituras, 2007. p. 79-104.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.


Disponível em: <http://www.unegro.org.br/arquivos/arquivo_5043.pdf>. Acessado
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FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

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HALL, Stuart. Da Diáspora. Identidades e Mediações culturais. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2011.

MARTINEZ, José Celso Corrêa et al. Cinemação. São Paulo: Cine Olho Revista de
Cinema, 1980.

MELEIRO, Alessandra. “Terceira Metade: Transnacionalização de talentos e


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Disponível em: <http://www.buala.org/pt/afroscreen/terceira-metade-
transnacionalizacao-de-talentos-e-tecnologias-no-cinema-mocambicano>.
Acessado em: 10 de julho de 2013.

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Carvalho”. In: Buala: Cultura contemporânea africana, 28 de janeiro de 2011.

107

Disponível em: <http://www.buala.org/pt/cara-a-cara/a-funcao-provocadora-do-


artista-entrevista-a-sol-de-carvalho>. Acessado em: 10 de julho de 2013.

PIEDADE, Joana Simões. “Dockanema: O documentário como acto de resistência


e guardião da memória”. In: Buala: Cultura contemporânea africana. Disponível
em: <http://www.buala.org/pt/vou-la-visitar/dockanema-o-documentario-como-
acto-de-resistencia-e-guardiao-da-memoria>. Acessado em: 10 de julho de 2013.

RAPAZOTE, João G. Entrevista com Manthia Diawara. Disponível em:


<http://www.buala.org/pt/afroscreen/entrevista-com-manthia-
diawara?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3A
+buala-pt+%28BUALA+%7C+Cultura+Contempor%C3%A2nea+Africana%29>.
Acessado em: 10 de julho de 2013.

SPIVAK, Chakravorty Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora


UFMG, 2010.

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Submetido em 8 de abril de 2016 | Aceito em 19 de dezembro de 2016

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Análise do documentário A Batalha de Adwa, de Haile Gerima:


entre memória coletiva e símbolos nacionais etíopes

Marina Annie Berthet1


Carlos Reyna2

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1
Marina Berthet é professora do depto de história da Universidade Federal
Fluminense (UFF) e Professora colaboradora da pós graduação em História.
Membro do Laboratório de Antropologia visual e Documentário. Trabalha com
temáticas diversas ligadas à História da África. O cinema de África se tornou uma
área de interesse desde de 2010.
e-mail: marinaannie@gmail.com
2
Carlos Reyna é professor do depto de artes da Universidade de Juiz de Fora
(UFJF). Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGCSO)
e do Instituto de Artes e Design (IAD). É coordenador do Laboratório de
Antropologia Visual e Documentário (LAVIDOC). Trabalha na área de Cinema e
Antropologia, com ênfase em Antropologia Visual, Antropologia do Cinema,
Documentário e Análise Fílmica.
e-mail: creynna@gmail.com

109

Resumo

O documentário A Batalha de Adwa, realizado pelo cineasta Haile Gerima, permite o acesso a um
fato da história etíope até então pouco conhecido pelo público brasileiro. Através de seu
documentário, o cineasta etíope faz uma releitura desse fato histórico, propondo-se a retraçar seus
aspectos marcantes e a entendê-los por meio de análise de fontes inovadoras, como entrevistas,
canções e material iconográfico. Como qualquer obra fílmica, essa é repleta de representações e
subjetividades que constituem os elementos necessários para a reconstituição de uma voz etíope
sobre a história da batalha.

Palavras-chave: Adwa; Batalha; Cinema; Representações; Haile Gerima.

Abstract

The documentary The Battle of Adwa held by the filmmaker Haile Gerima allows us to have access
to a fact of Ethiopian history until recently unknown by the Brazilian public. In this documentary, the
Ethiopian filmmaker reexamines this historical fact proposing to retrace its remarkable aspects and to
understand them through the analysis of innovative sources such as interviews, songs and
iconographic material. Like any other film, this documentary is full of representations and subjectivities
that constitute the principal elements for the reconstitution of an Ethiopian voice about the history of

V OL . 5, N. 2 • REBECA 10 | J UL HO - D EZEM BRO 2016


the Battle of Adwa.

Keywords: Adwa; Battle; Cinema; Representations; Haile Gerima.

110

“Você queria conhecer a história então porque não veio mais cedo? (...) Para
aprender a história deveria ter chegado mais cedo”.

(GERIMA, 1999: voz em off no documentário A Batalha de Adwa)

Introdução

É com essa pergunta (e resposta) que uma voz over nos interpela logo no início
da película, nos deixando descobrir, em imagem de pano de fundo, as colinas de
Adwa, lugar dos combates. “Para conhecer a história, é preciso chegar cedo...”. A
forma como a voz misteriosa se dirige a nós poderia ser interpretada como uma
crítica (e uma autocrítica) sobre o nosso desinteresse em relação a certos
aspectos da história da África, nossa “demora” em valorizar as diversas narrativas
históricas africanas. Haile Gerima (n. 1946), diretor do documentário, explicou ao
Washington Post que o documentário sobre Adwa1 “é um documentário da alma e
do coração, um antídoto explícito aos registros eurocêntricos daqueles tempos -
ou à falta desses registros.” 2 Gerima - apesar de ter sempre ouvido falar da
Batalha de Adwa na sua infância - decidiu se aproximar das vozes etíopes que

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cantam e contam a batalha depois de se formar como cineasta em Chicago
(Goodman School drama) e no decorrer de sua permanência nos Estados Unidos.
Sua experiência como um cineasta migrante parece ter sido fundamental para sua

1
A batalha de Adwa ocorreu em março de 1896, num momento em que os italianos queriam
concretizar seu projeto de colonização em África. O ataque italiano se transformou numa derrota em
poucos dias e do lado etíope o imperador Menelik II e a Imperatriz Tait se tornaram heróis da
resistência e vitória etíope. Os imperadores chegaram a estar presentes no campo de batalha e outros
dignatários políticos etíopes colaboraram com soldados e munições para garantir a vitória. Quando
houve a comemoração do centenário, em 1996, essa vitória etíope contra o invasor passou a ser
chamada de vitória Africana. Maiores informações estão em interessantes publicações; Richard
Pankhurst (1987); Metaferia Getachew e Paulos Milkias (2005) e Raymond Jonas (2011).
2
“Adwa overcomes all the obstacles”. Entrevista realizada por Desson Howe. Novembro de 1999.
https://www.washingtonpost.com/archive/lifestyle/1999/11/19/adwa-overcomes-all-
obstacles/611e77ec-60d1-4cd8-ac37-6ead6580db96/?utm_term=.31c3304c00b0

111

formação. Pesquisadores (como o historiador Droll Jibe3) que trabalham sobre a


história do conflito que ocorreu em Adwa entre os etíopes e italianos afirmam que
a Batalha de Adwa não é tão conhecida do grande público porque os etíopes
venceram os “italianos modernos” e não as legiões romanas!
Desde o início do documentário, nos deparamos com a narrativa pessoal do
cineasta ao tentar retraçar uma história popular da batalha. Sua pesquisa e busca
passam pela valorização da história oral, através das entrevistas realizadas com
os mais velhos encontrados na estrada, do envolvimento das gerações mais
novas que conhecem esse episódio e se manifestam principalmente através de
canções, hino e apresentação de símbolos nacionais constitutivos de uma
identidade etíope (uso da bandeira, músicas, pinturas, visitas ao museu,
conhecimentos dos fatos históricos, etc..), dos lugares e espaços onde ocorreram
os combates. O conjunto desses elementos é considerado como receptáculo das
memórias e um legado da história passado para as novas gerações. Mas é com
uma outra narrativa que o cineasta nos guia através do túnel do tempo e nos
oferece um acesso à memória da batalha:

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“Há muito tempo, um dragão brutal apareceu em uma vila, aterrorizando a
população. O animal passou a semear o terror e a cobrar altos impostos. Como
todos sabem, sempre existe um bravo guerreiro que surge de situações caóticas e
essa vila possuía um deles. Ele reuniu toda a população apavorada, ordenou que
todos cortassem e juntassem lenha e pediu a construção de uma cerca ao redor da
caverna do dragão. Exigiu ainda que fosse construído um corredor como única porta
de saída e, por fim, o guerreiro mandou atear fogo na cerca. O corajoso homem,
armado de uma lança do alto de seu cavalo, esperou o temido animal na saída. O
notório dragão despertou bruscamente, envolto em chamas e, desesperado, correu
para a única saída; deparou-se com o guerreiro que o esperava; saltou para devorar

3
Citado por Stephen H. Webb na resenha do livro The Battle of Adwa: an African victory and its
aftermath. Disponível em:
http://www.booksandculture.com/articles/webexclusives/2011/november/battleadwa.html

112

o seu adversário que imediatamente apontou sua lança que entrou pela sua boca e
perfurou sua garganta. O animal morreu instantaneamente”4.

Na narrativa acima mencionada, que relação existe entre esse dragão, St.
Ghiorgis (nome de São Jorge na Etiópia), e a Batalha de Adwa? Uma primeira
resposta reside na dimensão religiosa e sagrada inerente à história da batalha e da
Etiópia, já que St. Ghiorgis foi a proteção divina que acompanhou e protegeu os
etíopes durante o conflito, garantindo assim a segurança de suas populações e
das terras contra o inimigo europeu. St. Ghiorgis aparece em muitas pinturas que
narram a batalha 5 . Podemos observar na maioria dos quadros a presença de
símbolos consagrados (como a bandeira, as cores verde, amarela e vermelha e St.
Ghiorgis, que se tornou ícone da batalha e um personagem central deste fato
histórico). Essa dimensão é também destacada pelo cineasta e os membros do
clérigo etíope entrevistados, que ressaltam a proteção de St. Ghiorgis no
momento do conflito. Ter do seu lado a participação desse santo reforça a
grandeza da nação – escolhida por Deus6 - então em construção.
Várias pinturas7 são apresentadas no documentário de Haile Gerima nas quais,
podemos ver St. Ghiorghis montado no seu cavalo branco, indo enfrentar o

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inimigo italiano. St Ghiorgis - assim como dignitários políticos etíopes - se dirige
para o lado direito, o lado dos inimigos. Entendemos, assim, que o objetivo do
cineasta foi valorizar essas representações locais, propondo uma narrativa
artística da história local.

O documentário: apresentação e apontamentos teóricos

O fato de um diretor etíope traduzir em imagens um episódio crucial da história

4
Voz off ouvida no documentário.
5
Exemplo disponível em: https://theafricacollective.files.wordpress.com/2014/06/adwa-loc.jpg
6
Se referindo a um discurso de Menelik II em que o governante apresenta a Etiópia como a nação
escolhida por Deus.
7
As pinturas são parecidas com a que consta no link da nota de roda pé 6. Por não ter obtidos os
direitos autorais da imagem, não foi possível inserir nenhuma pintura no presente artigo.

113

do seu país vinculada à história colonial do continente africano foi o que atraiu
nossa atenção. Nosso interesse em entender o discurso e as representações de
Haile Gerima, sua mensagem em relação a esse fato histórico, o uso de fontes
orais e visuais ao longo do filme, o trabalho sobre a questão da memória e
símbolos nacionais são outras razões que explicam a escolha desse
documentário.
O artigo visa, então, entender quais são as representações que Haile Gerima
tem da batalha e como as histórias recolhidas por ele participam da sua visão da
identidade nacional. Para coletar tais histórias, o diretor se baseia nas memórias
dos mais velhos, tendo como fio condutor uma memória coletiva que compartilha
diversos símbolos nacionais. Ao abordar o tema emblemático de uma vitória
africana sobre o poder colonial - ligado à história nacional e criação do estado
etíope – procuramos encontrar o olhar e a versão do cineasta como etíope e
também como profissional, com suas escolhas técnicas e estéticas (lugares de
memória, iconografia e entrevistas), seu discurso. Por fim, procuramos entender
como o documentário aqui analisado nos ajuda a repensar a Batalha de Adwa,
sua historicidade na relação entre realidade e representação.

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O filme é construído em torno das proezas do imperador Menelik II (1844-1913)
e seu papel como herói é facilmente reconhecido pelo espectador; seu
protagonismo serve de conexão dramática do filme. A ligação afetiva do
espectador com o herói, também valorizado pelo próprio cineasta e pelos
entrevistados, de fato estimula sua atenção e permite que o filme conserve sua
unidade e sua linearidade.
O documentário A Batalha de Adwa foi produzido pela Negod Gwad, produtora
independente de filmes criada por Haile Gerima. O cineasta justifica a criação
dessa produtora por ter visto muitas portas se fecharem. No entanto, contou com
a co-produção da ZDF/ARTE, dando assim importância ao diálogo estabelecido
com os europeus. Vale salientar que o financiamento dos filmes africanos8 é uma

8
O que é um filme africano? É uma das perguntas mais recorrentes em relação aos filmes produzidos
por cineastas do continente africano. A definição de Sarah Maldoror talvez uma das mais pertinentes.

114

questão política crucial que interfere até na maneira de filmar dos cineastas que
perdem poder na escolha das imagens. A questão financeira, para muitos
cineastas africanos, é ainda o maior obstáculo para que a produção de filmes
africanos aumente de maneira significativa. Logo após as independências (a
maioria em 1960), alguns cineastas africanos vão se apossar do cinema e produzir
suas próprias imagens e filmes. Por mais que o cinema tenha sido enxergado
como uma invenção ocidental, o poder das imagens e das representações chama
a atenção da primeira geração de cineastas africanos, simbolizada pelo trabalho
de Sembène Ousmane (1923-2007).
Gerima, por sua vez, garante sua liberdade na escolha das imagens e critica o
caráter autoritário do sistema hollywoodiano, insistindo na importância da
independência para fazer um filme do roteiro até a sua distribuição. Isso nos
permite entender quanto os dados sobre contexto e condições de montagem e
produção de um filme são relevantes na análise do filme como documento
histórico. O cineasta também montou a Mypheduh Films, sua própria distribuidora
e é membro da L.A Rebellion (final dos anos 60), movimento conhecido também
como Los Angeles School of Black Filmmakers.

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O cinema de Haile Gerima é, portanto, um cinema engajado - politicamente
falando, e este reivindica o direito de poder criar suas próprias representações
dos africanos e dos africanos americanos. Assim, através do cinema e da
fotografia, os próprios africanos passaram a sugerir outras representações de si,
histórias e narrativas alternativas à histórias e imagens criadas pelos outros –
principalmente europeus - sobre a África e os africanos. A trajetória pessoal de
Gerima na migração permite entender como o pan-africanismo e os movimentos

A cineasta considera que os filmes africanos só poderão ser chamados assim quando forem feitos
para um público africano. (Entrevista realizada com Sarah Maldoror, Paris, 2016). Sobre essa temática,
vale aprofundar a questão a partir dos artigos organizados por Alessandra Meleiro em Cinema no
mundo. África: Indústria, política e Mercado (2007). A cineasta considera que os filmes africanos só
poderão ser chamados assim quando serão feitos para um público africano. (Entrevista realizada com
Sarah Maldoror, Paris, 2016). Sobre essa temática, vale aprofundar a questão a partir dos artigos
organizados por Alessandra Meleiro em Cinema no mundo. África: Indústria, política e Mercado (2007).

115

negros de resistência - que existiam na época em que ele se mudou para os EUA
- foram cruciais nas suas escolhas. Gerima cresceu valorizando a história dos
“outros” - americana e europeia - e não a sua, sendo influenciado por uma visão
dos mais velhos, a tradição, a classe, o feudalismo como inimigos da Etiópia.
Durante a realização do filme, ele lembra que perguntava ao seu pai se os etíopes
haviam realmente vencido os europeus ou se isso era um mito. “A luta africana
americana me ressuscitou” afirma o professor etíope em entrevista, assumindo
sua militância pan-africanista construída nessa experiência migratória e
trabalhando na produção de imagens feitas por africanos para um público negro.
O cineasta afirma ainda pertencer não só à Etiópia mas também à América negra9.
A escolha do gênero documentário - o cineasta explica que se trata ao mesmo
tempo de um documentário e drama histórico - parece representar uma
possibilidade de pesquisar, construir uma narrativa própria e ao mesmo tempo
usar as fontes existentes recorrendo ao ofício de historiador para essa atividade.
Podemos nos perguntar aqui se o cineasta etíope considerou que o documentário
o auxiliaria com maior eficiência do que uma ficção. Ao situar o filme entre o
documentário e o drama histórico, o cineasta parece procurar uma forma de

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melhor absorver o imaginário social local. Assim, se o documentário pode tratar
aparentemente a realidade social com maior propriedade do que a ficção, o
imaginário social e local, a nosso ver, é melhor apreendido na ficção.
Nessa discussão, vale citar Lagny (2009, p. 101) que considera que nenhum
filme - qualquer que seja o seu gênero - é feito pelo realizador para ser um
documento histórico e, portanto, avalia que o documentário não é mais “eficiente”
do que a ficção para reconstruir a história. Um exemplo de “trecho de ficção ou
drama histórico” são as sequências criadas por Gerima para representar o auge
do fervor da batalha. Essas são vinculadas ao imaginário criado pelo etíope para
reinventar os combates. No filme, podemos ouvir gritos dos soldados, o barulho
dos canhões e uma voz imitando as explosões e tiros dos fuzis. Ao mesmo tempo,
vemos desfilar uma sequência de desenhos e fotografias pintadas (de jornais

9
Agradeço ao revisor do artigo pela referência indicada. Cf. MARCORELLES (1984).

116

europeus) e pinturas. O documentário auxilia Gerima na sua reconstrução do


passado, procurando representá-lo e ao mesmo tempo refletir sobre as
consequências do fato histórico em relação à constituição da nação etíope. Além
disso, Haile vai em busca de diferentes pontos de vista mas que convergem e
compartilham os mesmos símbolos, as mesmas referências. O cineasta resgata
uma história oficial e tradicional, quase propagandista, sobre a batalha, mas nos
faz descobrir novas vozes. Não há necessariamente uma linha cronológica no
desenrolar do filme mas a sensação criada pelo cineasta é de uma volta
progressiva ao passado partindo do resultado da batalha até as causas que
provocaram o conflito.
Tal um garimpeiro, o cineasta vai recolhendo testemunhas ao longo do
caminho e procura desvendar a memória coletiva sobre os acontecimentos. Ele
apresenta uma versão parcial da batalha de maneira deliberada, resgatando um
mito, os heróis, glorificando certos personagens como os imperadores Taitu e
Menelik II. Estando em plena terra etíope, no lugar da batalha, Gerima redescobre
o passado e o reconstrói, baseando-se nas lembranças dos outros. O diretor
enuncia então um discurso sobre o mundo histórico (NICHOLS, 2005, p. 135) a

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partir de dois modos de produção. Cabe destacar que Bill Nichols nos oferece
uma classificação de seis tipos de modalidades ou modos de produção resultados
da combinação entre o estilo de filmagem e a prática material. Isto é: poético,
expositivo, participativo, “observativo, reflexivo e performático”. Os modos
expositivo e participativo são os dois modos de produção de documentários que
se aplicam de maneira mais apropriada à nossa análise (NICHOLS, 1991; 2005, p.
143). O modo expositivo - como tipo de documentário - “dirige-se ao espectador
diretamente, com legendas ou vozes que propõem uma perspectiva, expõem um
argumento ou recontam a história” (NICHOLS, 2005, p. 142). Enquanto o modo
participativo (interativo) mostra o envolvimento do cineasta com seu tema. No
documentário analisado, Gerima deixa de ser um simples observador para
assumir o papel de ator social capaz de interferir na cena; ele aparece na tela e
traz seu depoimento e seu olhar sobre a batalha. “Podemos ver e ouvir o cineasta
agir e reagir imediatamente (...). Surgem as possibilidades de servir de mentor,

117

crítico, interrogador, colaborador ou provocador” (NICHOLS, 2005, p. 155).


Assim como o historiador reconstrói os fatos, Haile Gerima se baseia em fontes
orais (músicas, canções e entrevistas), visuais (arquivos de jornais, imagens
fotográficas, pinturas, desenhos) e escritas (textos e entrevistas com historiadores
que escreveram sobre a batalha). Esse repertório audiovisual é associado à
história e aos personagens nela envolvidos. O documentário é ritmado pela
narrativa e voz de Haile Gerima, com uma câmera panorâmica, pelas andanças na
estrada e pela música. Os arranjos de música tradicional foram realizados por
Mulatu Astatke. A escolha desse famoso músico etíope se explica pelo
reconhecimento do seu talento no país e na diáspora. Várias músicas tradicionais
foram escolhidas como elementos constitutivos da memória coletiva etíope sobre
a batalha: cantos do guerreiro e soldado rumo à batalha, hino nacional cantado
pelas crianças encontradas no caminho. No documentário, a música não é apenas
um recurso, mas sim um diálogo com a própria história. Assim, não temos
somente a voz do narrador a explicar as sequências das imagens, mas a
montagem se vale também de odes e cânticos, cantos guerreiros para enaltecer
seus personagens e os fatos históricos. O guerreiro que canta seus feitos ao

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imperador é, de fato, um dos guias do filme e o diretor insiste sobre essa tradição
guerreira etíope. As narrativas e as músicas são vistas por Gerima como diferentes
formas folclóricas de se relembrar os acontecimentos e as canções propõem uma
melodia que traz “a precisão necessária à transmissão”. As imagens ilustram,
esclarecem, evocam o que é dito, o que é cantado. Ambos, áudio e imagem, com
certa autoridade explicam, didaticamente, a origem e os desdobramentos dos
eventos históricos e a necessidade de sua atualização na memória nacional.
Nas entrevistas, a língua matriz é o amárico, com legendas em inglês.
Observamos uma combinação de closes, primeiros planos e planos médios, o que
nos revela uma proximidade e interação constante com os entrevistados. Por isso,
os discursos parecem ser mais autênticos e a própria narrativa consegue maior
fluência. É uma fórmula eficaz para este documentário. A montagem é dinâmica.
As falas não muito longas são apresentadas por imagens daquilo que está sendo
dito. Isso torna o filme agradável, prendendo a atenção do espectador e, sem

118

afastar-se do personagem, nos permite o conhecimento de subjetividades, dando


mais densidade ao filme. Haile Gerima pretende também resgatar “a memória de
Adwa” ao entrevistar pessoas que ele encontra. Não se sabe exatamente como o
cineasta escolheu seus entrevistados, mas todos falam e constroem uma única
voz e narrativa sobre a batalha. Gerima pergunta: “Do que você se lembra? O que
seu pai lhe contou?”. Constata-se uma recorrência de elementos, lembranças
entre as diversas falas criando um efeito de “homogeneidade”. Tem-se a
sensação de que existe uma memória coletiva convergente. Ao mesmo tempo,
como essa memória é vinculada a uma narrativa, uma versão dos fatos acaba se
tornando excludente e as outras narrativas são silenciadas. Quais são, por
exemplo, as versões das populações do sudeste da Etiópia sobre a batalha? A
visão dos eritreus? Como explica Maria Isabel João (2003, p.28): “A memória é
coletiva e etnocêntrica e tende, por conseguinte, a registrar os acontecimentos
que lhe dizem diretamente respeito e a ignorar os outros”.
O processo de bricolagem da memória a posteriori nos apresenta uma
construção racional e religiosa dos fatos. Além disso, a homenagem constante a
Menelik II é um dos símbolos nacionais recorrente do documentário. Além da voz

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over e/ou diálogos dos entrevistados, outro fio condutor nos documentários é a
montagem. No caso do Adwa, a montagem como articulação espaço-temporal
(DE FRANCE, 1998, p.18; NICHOLS, 2005, p. 156; RAMOS, 2012, p.12) - permite
mostrar ao espectador caminhos para o entendimento da batalha. Assim, o filme
inicia-se com panorâmicas sobre as montanhas do vale do Adwa. A voz over narra
o mito, apresentam-se os personagens, os depoimentos que relembram os fatos
históricos, recria-se dramaticamente a batalha final e a imagem do imperador
Menelik II aproxima-se da imagem de São Jorge, apresentados anteriormente. Por
último, outra vez, panorâmicas sobre as montanhas do vale do Adwa, o princípio e
o fim ou o futuro se encontram apenas em um lugar, o lugar da memória entre as
colinas de Adwa. Esse princípio e fim parecem se repetir quando Gerima se
aproxima de duas crianças que visitam o museu de Addis Abeba. Um é cego e
aparenta os 11 anos enquanto um outro, que tem aproximadamente 9 anos, o
acompanha e explica as pinturas que ele vê. Mais para o final do documentário,

119

uma cantora cega entrega sua voz para homenagear os que combateram na
batalha. Essas duas “testemunhas” cegas são etíopes – que fazem parte de duas
gerações diferentes – e, mesmo não tendo acesso às pinturas dos artistas
etíopes, participam, à sua maneira, de uma leitura sobre a batalha.

As memórias da Batalha de Adwa

Gerima explica que faz filmes para exorcizar o passado, encontrar sua voz,
contar histórias. Para o diretor, as histórias fazem parte da alma e começam na
infância. Foi assim que, quando era criança, seu pai e sua avó contaram a batalha
para ele. Sua avó o teria influenciado porque ela era uma contadora de histórias.
“Adwa constituía um tipo de pano de fundo da minha realidade (...). Procurei
apenas desenterrar uma memória e a essência de Adwa no tecido da sociedade
etíope, mas não queria uma pessoa afirmando fatos”.10
A memória é ao mesmo tempo social e espelho de aspectos da realidade.
Todo o processo de recriação, reconstrução e transmissão “daquilo que
aconteceu” é dinâmico. Móses Finley (1983, p. 32) afirma que “a memória coletiva
é o resultado da transmissão a um grande número de indivíduos das lembranças

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de um só homem ou de vários homens, muitas vezes repetidas” (1981:32). Se as
ideias de transmissão e repetição nos parecem pertinentes para entender o
processo de construção das memórias, a definição do autor mencionado é
incompleta. Na ideia de repetição, se perde a noção de reinterpretação dos fatos
ao transmitir a lembrança. A noção de fenômeno construído – social e
individualmente - enfatizada por Michael Pollack (1992, p. 48) é também
relevante. Por sua vez, Susan Sontag (2003, p. 94) discorda com a ideia de
memória coletiva:

“Não existe, no sentindo estrito da palavra, memória coletiva. Essa noção pertence à
mesma família falaciosa que a da culpabilidade coletiva. O que existe é a instrução
coletiva. Toda memória é individual e não pode ser reproduzida, ela morre com cada

10
Notas esparsas de diversas entrevistas do Haile Gerima. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=p4ZmNclDqFw>. Acesso em: jul. 2016.

120

indivíduo. O que chamamos de memória coletiva não é o trabalho da lembrança, mas


uma estipulação: é isso que conta, é assim que a história aconteceu e as imagens
estão aí para inscrever a história nas nossas cabeças. As ideologias criam arquivos
visuais que possuem valor de exemplo, imagens representativas que condensam os
significados em uso e induzem os pensamentos, os sentimentos, previsíveis”.

É nesse sentindo que apontamos para as imagens apresentadas como


captadores de ideologia e das mensagens do diretor. Ao concordar com Sontag,
consideramos que as falas apresentadas no documentário são uma reconstrução,
interpretação e aceitação de uma memória que foi transmitida e também
bricolada, impregnada de ideologia e símbolos relevantes para a construção da
história da nação. Além da presença de St. Ghiorgis na batalha, outros símbolos
são constitutivos da “instrução coletiva”: a dimensão religiosa inerente ao
acontecimento, o protagonismo das mulheres na guerra e simbolizada pela
presença da Imperatriz Taitu no campo de batalha, a união de todas as
dissidências para combater um inimigo comum – uma das mensagens é a de que
existiu no momento da batalha uma união entre diversas gerações, diversas
populações, cristãos e muçulmanos - a espiritualidade e força de Menelik II, sua

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bondade com os soldados italianos capturados, os canhões, a bandeira etíope, as
canções, as crianças cantando o hino nacional e o museu repleto de
representações da Batalha de Adwa.
Os símbolos mencionados são representados por imagens que os retratem e
dependem de uma seleção feita a partir de um conjunto de lembranças de
memórias individuais (HALBWACHS, 1990, p.45). Haile Gerima precisa percorrer o
caminho que leva a Adwa, como forma de passar por lugares que levam a se
lembrar do passado e que é tão importante nos relatos. O diretor nos leva, no
início do filme, a lugares topográficos da memória (NORA, 1984; POLLACK, 1992;
HALBWACHS, 1990): a montanha de Adwa no início e no fim da película, o museu
onde duas crianças circulam, a estrada e alguns lugares chaves como o lugar
onde Menelik II dormiu antes de ir para a batalha. Em seguida, somos levados
para iniciar a viagem através das paisagens constitutivas da batalha, lugares,
pessoas encontradas no caminho nos guiam até o fim, até o campo de batalha,

121

quando na segunda parte do documentário assistimos à comemoração do


centenário da batalha em Addis Abeba, capital do país. Em certa parte do
documentário, Gerima se desloca até a Itália para incluir - na sua versão contada
dos fatos - lugares distantes da realidade etíope, mas que foram essenciais na sua
história. O cineasta afirma: “Senti que devia fazer da maneira que estava sendo
lembrado. Da canção ao canto, a lembrança: fazer as montanhas e as estradas
falarem. Tinha necessidade em parar onde podia encontrar pessoas mais
velhas”11. A presença de igrejas no caminho entre a capital Addis Ababa e Adwa
sugere etapas, momentos de recolhimento para os etíopes, antes da batalha, mas
principalmente para Menelik II e a imperatriz Taitu.
Entre rememorações e dinâmicas históricas, podemos nos perguntar quais
foram as funções sociais dessa memória coletada na reconstituição do passado
da batalha. Uma função é a coesão social, sem dúvida nenhuma, onde as
contradições são caladas, contribuindo assim para unir os próprios etíopes na
consolidação da identidade de uma Nação. A Batalha de Adwa constitui
visivelmente uma história revisitada e baseada em diversas operações memoriais.
O dever da lembrança e da recordação, a memória - no seu processo de

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reconstrução - é, portanto, permeada de uma releitura constante da história dos
fatos, da ideologia.

A comemoração dos 100 anos da batalha

Isabel, João (2003, p. 80) declara que “A comemoração exige uma distância
pacificadora das emoções, das tensões, dos conflitos que a memória da guerra
suscita em nós” afirma Isabel João (JOÃO, 2003:80). E se existem discordâncias,
elas foram omitidas para dar lugar ao brilho da comemoração. A segunda parte do
documentário consiste na filmagem da celebração realizada por ocasião dos 100
anos da batalha na capital etíope. No decorrer das comemorações, diversos
líderes políticos africanos estavam presentes e a filmagem nos leva a refletir sobre

11
Fala do cineasta que aparece no documentário durante a viagem para a Itália.

122

os mecanismos complexos utilizados para reconstruir o passado da batalha. Os


símbolos nacionais são representados, as formas comemorativas mais
comumente europeias foram incorporadas às celebrações (relevância do museu,
selos, o “V” da vitória, construção de edifício e monumentos em homenagem aos
soldados, páginas de sites internet, etc...).
Raymond Jonas (2011, p.10) apresenta a batalha como um “acontecimento
histórico global” que marcou a história dos contatos entre europeus e africanos.
No entanto, é apenas ao longo dos anos de celebração que a Batalha de Adwa vai
se tornar ícone da história da Etiópia, símbolo da união do povo etíope, elemento
primordial da identidade etíope. Mais ainda: com o passar do tempo, a Batalha de
Adwa passa a ser vista como uma batalha africana, e não mais etíope, ou seja,
nela ecoam diferentes movimentos políticos (tais como os pan-africanistas e os
rastafaris). Em suma, a Batalha de Adwa tornou-se gradativamente, ao longo dos
últimos 116 anos, um monumento e um documento se parafrasearmos Alessandro
Triulz12. O pesquisador enfatiza que:

“Apresentar a Batalha de Adwa (de maneira insistente) como uma vitória africana

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tornou-se comum na historiografia dominante. As diferentes interpretações contêm
elementos de verdade, mas se as consagramos como verdades historiográficas,
essas se tornam então embaraçosas para o historiador que precisa de documentos,
e não de monumentos, como instrumentos de análise. Para muitos historiadores,
tanto na Itália como na Etiópia, o simbolismo de vitória/derrota de Adwa se
transformou em ícone, monumento historiográfico, inatacável e inamovível. O
centenário de Adwa nos permite reconsiderar os eventos históricos de um passado
compartilhado com documentos críticos e representações tendenciosas que refletem
sua própria cultura e tempo. Este artigo tenta desconstruir o monumento
historiográfico de Adwa na sociedade italiana a fim de transmitir tal um evento
pesadamente codificado ao exame crítico de historiadores futuros em Itália e na
Etiópia”.13

12
Triulzi, Alessandro. Adwa: From monument to document. Disponível em:
http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/1353294032000074106?journalCode=cmit20.
13
Today's insistence on Adwa as an African victory appears to be the dominant historiographical
representation. The different interpretations all contain elements of truth, yet all, if frozen into

123

Com a comemoração do centenário da batalha em 1996, novos autores


interpretam e reinterpretam a história. Henze (2000, p.19) afirma que a batalha
“marcou o início do declínio europeu como centro do mundo político”. Por sua
vez, o historiador etíope Bahru Zewde (1991, p. 2) aponta a questão racial ao
enfatizar a vitória de negros sobre brancos. Segundo o autor, foi essa dimensão
racial “que deu a Adwa seu significado especial”.
Os discursos proferidos por governantes, militantes, homens políticos de
partidos nacionais e estrangeiros, e acadêmicos parecem constantemente
convergir para representar a batalha com as características mencionadas acima:
solidariedade, unidade, essência religiosa, aspectos diplomáticos e estratégicos.
A Batalha de Adwa passou a ter uma identidade mais continental, por assim
dizer, durante uma conferência em novembro de 1958 sobre “o papel da Etiópia
na evolução da África” que apresentou a vitória face aos italianos durante a
Batalha de Adwa como a primeira vitória africana sobre um exército europeu.
Outro momento chave da cena internacional, que vai pesar nesta africanização da
batalha, é o papel político que a Etiópia procura preencher nesta época. A
conferência de Bandung, os movimentos do pan-arabismo e do pan-africanismo,

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a crítica - principalmente por parte do Egito - da relação entre Etiópia e Eritreia,
que tinha se tornado uma colônia italiana, e a necessidade para a Etiópia em
reconquistar seu espaço africano (já que começara a se dissociar do Oriente
Médio) explicam a aproximação da Etiópia com o resto do continente africano. A
ideia da união etíope durante a batalha e da “memória da batalha da Adwa” vem
sendo resgatada como exemplo de fortalecimento da nação. Mesfin Wolde

historiographical truths, become embarrassing to the historian who needs documents, rather than
monuments, as tools of analysis. To many historians both in Italy and Ethiopia, Adwa's respective
symbolism of victory/defeat has been transformed into an icon, an historiographical monument,
unassailable and immovable. The centenary of Adwa allows us to reconsider historical events of a
shared past as critical documents and biased representations reflecting their own culture and time. This
article attempts to deconstruct the historiographical monument of Adwa in Italian society so as to
transmit such a heavily coded event to the critical examination of future historians in both Italy and
Ethiopia.

124

Miriam, durante uma celebração do centenário da Batalha de Adwa em março


1996, considerava que o espírito de Adwa falta hoje entre os etíopes para resolver
assuntos internos ligados à união.

Notas conclusivas

Com nossa leitura do documentário de Haile Gerima, não procuramos


estabelecer “a verdade histórica”, mas estamos simplesmente mergulhados na
reconstrução de uma memória identitária em torno da batalha. O cineasta garante
um equilíbrio harmonioso de linearização e de simplificação narrativa para nos
apresentar os personagens e os diferentes momentos da batalha. Quando a
montagem não é suficiente, as entrevistas, os comentários, as imagens e os
textos unificam o documentário como um todo.
Podemos resumir que os argumentos utilizados em discursos sobre a batalha,
e também pelo diretor do documentário, foram construídos em função do diálogo
político da Etiópia com o resto do continente africano e no âmbito da ideologia do
movimento pan-africanista. O peso ideológico é grande e auxilia na reconstrução
permanente e dinâmica deste fato histórico. Ao longo de seus processos

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históricos internos, a Etiópia, os discursos e as representações sobre a batalha
vão ser constantemente reelaborados. Ícone da história da Etiópia, símbolo da
união e da solidariedade do povo etíope, batalha africana, e não mais apenas
etíope, marco político da construção do estado moderno etíope. Temos na tela as
impressões digitais de uma realidade passada, inscrita no presente da vida do
realizador, que recorreu a diversos recursos formais para construir sua narrativa
histórica. O fenômeno da batalha se torna mais autêntico na sua capacidade em
tocar ou reavivar o imaginário do espectador.

Ficha técnica do documentário:

Diretor: Haile Gerima


Produção: Mypheduh Films, Negod Gwad, ZDF/ARTE
Distribuidora: Mypheduh Films

125

Produção, direção e edição: Haile Gerima


Filmagem: Augustin Cubano
Assistência de edição: Ambessa Jir Berhe
Arranjos de música tradicional: Mulatu Astatke
Som: Albert Bailey e Skip SoRelle
Gênero: documentário e drama
Ano: 1999
Duração: 97 minutos
Vídeo (cor).

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Submetido em 29 de agosto de 2016 | Aceito em 28 de novembro de 2016

128

Cindir a cena, partilhar o cinema:


sobre Bamako, de Abderrahmane Sissako

Roberta Veiga1

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1
Roberta Veiga é doutora em Comunicação Social pela FAFICH-UFMG;
Professora adjunta do Dep. de Comunicação e do PPGCOM na mesma instituição;
Editora da Revista Devires: Cinema e Humanidades; Pesquisadora do grupo
Poéticas da Experiência (UFMG); Secretária acadêmica da SOCINE e integrante do
comitê consultivo do forumdoc.bh (Festival de Cinema Documentário e Etnográfico
de Belo Horizonte).
e-mail: roveigadevolta@gmail.com

129

Resumo

No filme Bamako (2006), o diretor mauritano Abderrahmane Sissako coloca lado a lado, num
tribunal imaginário, o povo africano (expropriado de suas formas de vida) e as grandes corporações
financeiras mundiais. Assim, permite ao cinema escrever a história a contrapelo. No terreno das ficções
cinematográficas, atravessada pelo real, impregnada pelo pó da terra e por rostos negros, num mundo
dividido e injusto, onde só os donos do capital têm voz, reescrever a história é conceder ao outro o
tempo da imagem e do verbo. É, portanto, reinventar a política.

Palavras-chave: Cinema africano; Dispositivo; Dissenso; Partilha do sensível.

Abstract

The film Bamako (2006), by the Mauritanian director Abderrahmane Sissako, places the African
people, dispossessed of their ways of life, and the world's major financial corporations, side by side in
an imaginary court that enables the film to rewrite history against the grain. In a cinematographic fiction
that is crossed by the real and impregnated by dust from the ground and the black people who lives in
a divided and unjust world, where only the capital owners have a voice, rewriting history is to give to the
other the time of image and of the word. This, thus, amounts to reinventing politics altogether.

Keywords: African cinema; Device; Dissensus; Distribution of the sensible.

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130

Prólogo

Imagine um tribunal instalado no quintal de uma casa comunitária, reconstruída


após vários anos, no município de Bento Rodrigues (Mariana-MG), em que a
Samarco é levada a julgamento pelo povo do lugarejo e de municípios vizinhos
que, em novembro de 2015, foram atingidos pela queda da barragem da
mineradora que destruiu casas, soterrou pessoas e animais, poluiu toda uma
bacia hidrográfica e matou suas riquezas. Imagine que, nessa audiência, as
testemunhas são os velhos e os filhos crescidos desses velhos, os ex-moradores
dos lugarejos atingidos por esse gigantesco desastre socioambiental. Um tribunal
em que de um lado estão os expropriados (os explorados, o povo) e do outro, os
representantes da Empresa Samarco; Vale do Rio Doce; BPH e o Governo de
Minas Gerais. De um lado, aqueles sujeitos comuns, interioranos, trabalhadores
do campo e pobres que perderam sua porção de terra, sua casa, seu sustento,
seu vínculo com a natureza e seus laços comunitários – aqueles que perderam
sua forma de vida, sua história, e que há anos lutam para reconstruir algo. De
outro lado, o grande negócio, o empresariado, o cartel de mineradoras, o capital,

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junto com o Estado que aceitou os desmandos, a exploração da terra e dos
homens, enfim, o poder instituído. Nesse caso, seria dado ao povo de Mariana,
Bento Rodrigues, Barra Longa, e adjacências, bem como a grande parte das
comunidades ribeirinhas que vivem ao longo do Rio Doce do qual tiram seu
sustento, o ensejo de se fazer ouvir e de, no embate público e jurídico com
inimigo, clamar por justiça, escovando, como diria Walter Benjamin (1994, p. 225),
“a história a contrapelo”.

***

Em Bamako (2006), do diretor africano nascido na Mauritânia


Abderrahmane Sissako, assistimos à concretização pelo cinema de uma
possibilidade similar a essa que projetamos para Bento Rodrigues. No terreno da
ficção, atravessado pelo real, impregnado pelos corpos e rostos dos sujeitos

131

comuns, pelo pó da terra e a miséria vivida, Sissako coloca lado a lado num
tribunal de júri por ele arquitetado um povo negro, africano, expropriado de suas
riquezas, de sua vida, e os donos do capital, as grandes corporações financeiras
mundiais. Num quintal de chão batido de um espaço comunitário, na cidade
africana de Bamako, capital do Mali, é constituída uma corte cuja finalidade é
julgar a responsabilidade do Banco Mundial e do FMI na propagação e
manutenção do profundo estado de pobreza de países africanos. Em Bamako,
Sissako cria um espaço não só discursivo e/ou performativo, mas também
sensível, pela materialidade da imagem, a uma comunidade malinesa para que, no
embate público e jurídico com um sistema de exploração de recursos e mão de
obra, o cinema possa figurar o povo. No terreno fértil da imaginação ou das
invenções cinematográficas, num mundo dividido e injusto (o da pequena e
precária cidade de Bento Rodrigues e de Bamako) onde só os donos do capital
têm voz e aparência, enquanto os excluídos do mapa geopolítico-capitalístico
vivem a miséria e a injustiça, expropriados de sua terra e seu trabalho, apartados
e apagados historicamente, reescrever a história1 é conceder ao outro que está à
margem o tempo da imagem e do verbo, portanto, o tempo da invenção política.

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[...] a força do dispositivo de Bamako consiste na sua capacidade de forçar os
limites da realidade, de alargar o campo do possível, através da invenção de um
lugar (ou não-lugar) que é um lugar de fala, contra um silenciamento sistemático. A
operação que dá lugar a uma narrativa utópica, no caso deste filme, deve-se a uma
composição espacial cuja finalidade é a restituição de um lugar de enunciação.
(CESAR, 2013, p. 584).

Propomos adentrar esse mundo-tribunal de Bamako, esse “(não) lugar” que,


segundo Amaranta Cesar (2013), uma vez inventado pelo presente do cinema,

1
A reescrita da história a contrapelo é para Benjamin escutar os vencidos. Segundo Lowy, como um
teórico do materialismo histórico, a tarefa de Benjamin era a de “‘quebrar’, de fazer explodir, de
destruir o fio conformista da continuidade histórica e cultural. O materialista histórico deve, portanto,
desconfiar dos pretensos ‘tesouros culturais’. Para ele, estes não são mais do que restos mortais
provocados pelos vencedores na procissão triunfal, despojos que tem por função confirmar, ilustrar e
validar a superioridade dos poderosos”. (LOWY, 2011, p. 20).

132

inventa também o futuro em um povo por vir. Em que medida a cena


cinematográfica, em sua dimensão ficcional e realista, cria possibilidades de, nos
termos de Rancière (1996), recontar as parcelas humanas e as diferenças
engendradas, instituindo, portanto, uma partilha do sensível que alcança a política
no seu cerne?

Para Rancière, a partilha do sensível própria à política é sempre dissensual na


medida em que ela contrapõe, pelo menos, dois mundos: aquele da polis, a cena
democrática no interior da qual uns contam e outros não, e aquele mundo em vias de
se constituir a partir da subjetivação dos sem-parcela, sujeitos políticos com os quais
ainda não se contava. Por esse motivo, a política não é nunca o lugar da pura
afirmação, mas da negatividade. Ao consenso da ordem policial se opõe o dissenso
nascido do pressuposto da igualdade. (BRASIL, 2004, p. 29).

A partir daí, é possível estar mais próximo da intricada relação entre a política
como potência e as potências do cinema. Através de Bamako, desejamos visar o
cinema como um trabalho histórico que, por conceder duração à experiência da
palavra e da visibilidade diferida (não só no tribunal, mas nos portrays e
micronarrativas que irrompem ao longo do filme), é capaz de criar um dispositivo

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que – ao equiparar ficcionalmente os poderes, ao emular e simular um tribunal
desmistificador da igualdade de direitos, ao colocar em cena uma luta entre o
capital internacional e o povo africano – expõe aquilo que Rancière chamará de
dano, ou seja, a perda ou o prejuízo do povo 2 que é invisível em relação aos
poderes opressores do capital.

2
“Mas inversamente ‘povo’ é o nome, a forma de subjetivação, desse dano imemorial e sempre atual
pelo qual a ordem social se simboliza rejeitando a maioria dos seres falantes para a noite do silêncio ou
o barulho animal das vozes que exprimem satisfação ou sofrimento. Isso porque, antes das dívidas
que colocam as pessoas de nada na dependência dos oligarcas, há a distribuição simbólica dos
corpos, que as divide em duas categorias: aqueles a quem se vê e a quem não se vê, os de quem há
um logos — uma palavra memorial, uma contagem a manter —, e aqueles acerca dos quais não há
Logos, os que falam realmente e aqueles cuja voz, para exprimir prazer e dor, apenas imita a voz
articulada”. (RANCIÈRE, 1996, p. 36).

133

A política é primeiramente o conflito em torno da existência de uma cena comum, em


torno da existência e qualidade daqueles que estão ali presentes. [...] As partes não
preexistem ao conflito, que elas nomeiam e no qual são contadas como partes. A
“discussão” do dano não é uma troca — sequer violenta — entre parceiros
constituídos. Ela diz respeito à própria situação de palavra e a seus atores. Não há
política porque os homens, pelo privilégio da palavra, põem seus interesses em
comum. Existe política porque aqueles que não têm direito de ser contados como
seres falantes conseguem ser contados, e instituem uma comunidade pelo fato de
colocarem em comum o dano que nada mais é que o próprio enfrentamento, a
contradição de dois mundos alojados num só: o mundo em que estão e aquele em
que não estão, o mundo onde há algo “entre” eles e aqueles que não os conhecem
como seres falantes e contáveis e o mundo onde não há nada. (RANCIÈRE, 1996, p.
40).

A fim de perseguir esse desejo de reivindicação do cinema como atuação


histórica e política, e a da história e da política como invenção, o caminho de
análise fílmica se articula em três tomos. Esses tomos, completamente
entrelaçados, vão operar como uma engenharia reversa no sentido de decompor o
mecanismo do filme, tendo como fim o argumento exposto. O primeiro tomo, “o
dispositivo”, compreende a maquinaria do filme (como os elementos fílmicos

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funcionam juntos) e a maquinação (como o aparato cinematográfico opera para
criar a cena primordial, a cena do tribunal: a cena-corte 3 ). No segundo tomo,
buscamos pensar de que maneira essa cena-corte se funda na política como
inerente à impossibilidade da igualdade entre as partes envolvidas. Não se trata
aqui da cisão entre as partes do conflito própria à querela de um tribunal de júri,
mas ao dissenso (RANCIÈRE, 1996)4 instituído no ato cinematográfico que, ao por
em cena uma fratura antropológica, reconta os invisíveis e reconfigura seus

3
Uso aqui um jogo de palavras, a cena-corte, que designa a corte, sinônimo de tribunal, e também o
ato de cortar, separar, cindir, que é constituinte da forma política em jogo no filme.
4 “[...] com Rancière, a política é justamente o que se contrapõe à ordem policial, na medida em que
exige um novo ordenamento, uma nova cena a partir dos dissensos que ela instaura. Se a polícia é a
ordem que determina a função e o posicionamento dos sujeitos em determinado espaço sensível, a
política é o que exige a reconfiguração do espaço para que ali novos posicionamentos, novas funções
e outros sujeitos políticos possam existir”. (BRASIL, 2004, p. 5).

134

lugares de forma a oferecer no filme uma partilha do sensível. Tal diferença se faz
ver no próprio dispositivo cinematográfico, na inteireza e complexidade da cena-
corte: tanto nos atos de fala das testemunhas e seus embates quanto nos
deslocamentos, desvios, atravessamentos e desdobramentos que a encenação
do tribunal sofre pelos portrays e micronarrativas, que fazem oscilar ficção e
realidade. Finalmente, no terceiro tomo, buscamos compreender o cinema como
lugar de invenção histórica e política que, em sua dimensão estética, partindo da
cisão imposta pelo status quo geopolítico, apresenta um “mundo em vias de se
constituir a partir da subjetivação dos sem-parcela, sujeitos políticos com os quais
ainda não se contava” (BRASIL, 2004, p. 29), apresenta um povo por vir.

Dispositivo quintal

Um quintal, um espaço cênico, um tribunal, uma corte: eis a cena primordial, o


núcleo duro (narrativo, temporal, espacial), a base do mecanismo cinematográfico
de Bamako. Na definição de Dubois (2004), o dispositivo está na relação entre a
maquinação e a maquinaria do filme. A maquinação, “a máquina de pensamento
cinema”, como diria Dubois (2004, p. 44), faz-se ver no protocolo que engendra a

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cena primordial, a força centrípeta do filme, com suas estratégias e elementos
cênicos, mobiliza e operacionaliza uma maquinaria que é justamente a dinâmica
que faz o filme funcionar. Em Bamako, a maquinação é a construção da cena-
corte, a instalação, por meio de todo aparato cinematográfico, de um tribunal do
júri no quintal de uma casa “comunitária” na cidadezinha africana. A maquinaria –
a dimensão “físico-perceptiva”, “geradora de afetos” (DUBOIS, loc. cit.) – é a
composição e a dinâmica dos personagens, suas palavras, corpos e vozes, que
dão forma ao conflito em jogo, constituindo a cena-corte, ora acirrando sua
dimensão ficcional, ora acirrando o realismo, ora atravessando ambos.
No cinema, o tribunal é a cena dentro da cena, o teatro dentro do cinema, ou
seja, um dispositivo que se dobra sobre outro. Se o tribunal já é por si um
dispositivo jurídico social – por seus protocolos e convenções (sua maquinação)
que engendram uma dinâmica específica de vozes, papeis e performances (sua

135

maquinaria), com suas forças constritoras a constituírem um campo vetorial


específico –, o cinema, ao instaurar a cena da cena, também o é. Na cena
cinematográfica, a instalação do palco e da audiência do tribunal é duplicada pela
parafernália técnica, a tela e a espectatorialidade cinematográfica, e é desdobrada
em perspectivas, enquadramentos, angulações e temporalidades, através das
quais se constituem possíveis relações com a história e uma multiplicidade de
afetos. De um palco e de uma audiência na tela, para outra audiência, a
cinematográfica, dá-se a instauração de um coletivo por outro, de uma divisão por
outra. O dispositivo corte-cinematográfico é, portanto, uma complexificação do
teatro do tribunal do júri, que, a cada filme, ao reinstaurar o coletivo, reinstaura
também o conflito que moveu o julgamento, recolocando a divisão das partes
conflitantes, e constituindo a espectatorialidade cinematográfica.
Em Bamako, essa instauração do coletivo pelo conflito e pela divisão em partes
é ainda mais potente e intrincada. O tribunal ocorre num quintal de terra batida de
uma moradia popular que não suspende seu cotidiano para que o mesmo
aconteça. No espaço onde se dá a cena-corte, vivem, convivem e transitam
outros moradores da cidade. A escolha desse quintal não é aleatória, mas é o

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lugar no qual o pai do diretor, Abderrahmane Sissako, passou grande parte de sua
infância quando saiu da Mauritânia para o Mali. Ali, ele ficava com seus amigos,
primos, parentes distantes e inúmeras crianças, e ali seu pai falava dos problemas
da África. É como se em Bamako, de 2006, a autobiografia na obra de Sissako,
uma história do retorno à casa, já presente em seu filme de 1998, La vie sur terre,
apontasse sutilmente para o desejo de dar lugar de modo ainda mais radical a
uma heterobiografia: abordagem tributária dos contos africanos e ressurgente
num chamado Terceiro Cinema cujo individual dá lugar ao coletivo, e a
singularidade faz o comum.

Na origem de Bamako está o regresso ao pátio da casa do pai do realizador, na


capital do Mali: o filme é incitado por um retorno não apenas ao lugar material de
reunião familiar, mas ao espaço de fala onde o realizador iniciou-se nos debates
políticos. É esse movimento de regresso ao interior do círculo familiar, ao universo
íntimo, invisível e ordinário de uma casa popular africana que constitui o “salto

136

espacial” desse filme. Trata-se de uma reconexão com a terra original que, em certo
sentido, diz respeito a uma operação de intensa territorialidade. (CESAR, 2013, p.
582).

Porém, como diz Amaranta Cesar, essa territorialidade do quintal se abre, na


cena ficcional de Bamako, a uma “extraterritorialidade espacial” na qual, num
mundo possível, ocorrerá o entrecruzamento do local – a experiência real do lar
africano na cidade malinesa – e do global – a invenção de um tribunal em que o
poder transnacional é convocado.
Além disso, como já apontado, o quintal, como grande figuração de um
coletivo em embate, extrapola e implode os limites de um tribunal de júri em suas
versões correntes, pois é atravessado e atravessa outras cenas, mais
escorregadias e espalhadas, que instituem a vida ordinária do povo africano que
perambula por aqueles arredores. Nesse quintal, a corte se faz cena-corte em sua
disputa de espaço com o que seria uma tinturaria, uma lavanderia, um pátio para
casamento e velório, um terreno onde brincam crianças e bebês, uma moradia
precária. Ali vivem vários personagens: o casal, Mèle e Chaka, com a filha Ina, um
homem doente, uma bela mulher com seu filho, uma menina e outro bebê, enfim,

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vidas ficionalizadas em micronarrativas. Os personagens vêm e vão, param,
ganham visibilidade em gestos singulares e juntos compõe a cena primordial do
tribunal do júri em sua complexidade.
É nesse espaço cênico cinematográfico mapeado e pulverizado que Sissako
maquina seu jogo de simulação, um acontecimento ficcional, quase surreal: os
cidadãos de Mali levam o Banco Nacional, o FMI e seus aliados locais e
estrangeiros a julgamento. Porém, no tribunal fictício, as testemunhas são não
atores (encontrados principalmente em associações) que representam a si
mesmas, suas próprias funções e trajetórias. Também, os personagens dos
advogados africanos e não-africanos são de fato advogados, e a solicitação do
diretor foi que assumissem seus papéis naquele jogo e improvisassem a partir de
seus textos, de forma que cada fala não fosse repetida nem cortada, mas
proferida como se na experiência própria de uma tribuna, no misto de protocolo,
performance e acontecimento que é peculiar a encenação jurídica. O aparato

137

técnico é composto por duas câmeras digitais fixas posicionadas em diferentes


lugares do espaço – uma direcionada aos juízes e outra às testemunhas – e uma
terceira solta pela plateia e adjacências (o espaço de fora dos muros do quintal).
O julgamento das instituições financeiras internacionais se constitui no filme,
até certo ponto, “protocolarmente”, de forma que é possível tomar pé das
matérias e dos argumentos, através das intervenções das testemunhas africanas,
da promotoria e da defesa. A representação da parte civil é composta pela
senegalesa Aïssata Tall Sall e pelo francês William Bourdon, e a representação do
capital estrangeiro está nas mãos de Mamadou Savadogo, natural do país
africano, Burquina Faso; Mamadou Konaté, que ironicamente é malinês, e do
francês Roland Rappaport. Acompanhando o transcorrer dos discursos e o
embate entre testemunhas e advogados, é possível ao espectador tomar
consciência da extensão e da profundidade do conflito existente entre as partes e
que ali se instaura. Todavia, é a cena-corte em sua complexidade, para além da
enunciação no contexto do júri, que faz transmutar essa cisão numa outra, própria
à experiência sensível do filme que apresenta a fratura antropológica e a
reconfigura.

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No epicentro dessa cena, é possível captar algumas linhas de força das
enunciações se aproximando de problemas bem estruturais, mas é impossível
conhecer a fundo os processos e consequências da intervenção do Banco
Mundial que se mistura à história colonial da África. Essa impossibilidade é dada
pela complexidade do processo histórico e geopolítico, que vai desde
procedimentos técnicos de intervenção estrutural no país até a visibilidade
mediática que as entidades alcançam, passando pelo povo e suas demandas
mais básicas. Além disso, o modo de funcionamento desse dispositivo-cena-
corte-cinematográfica dificulta ao espectador de primeira audiência se ater
integralmente aos discursos e debates que são atravessados ou barrados por
outras camadas de sentido: performáticas, diegéticas ou plásticas.
Propositalmente, o foco do filme naquele que toma a palavra é entrecortado ou
desviado em função da presença constante dos moradores daquela habitação
que passam de um lado para o outro, pelos acontecimentos diários, os ofícios e

138

as histórias que ali têm lugar ou dali se avizinham, e, até mesmo, pela atenção à
audiência de dentro do julgamento que muitas vezes é destacada em close-ups
esteticamente primorosos. Nesses closes – em que muitas vezes o rosto é visto
ocupando uma parte do quadro enquanto a outra é tomada pelos panos que,
dependurados, multiplicam-se pelo quintal – os olhares atentos, ora curiosos ou
esperançosos, ora incrédulos ou incólumes, figuram o povo africano em sua
indumentária típica (os turbantes, os véus de pano, as estampas coloridas) e em
sua expressão. São esses closes e as cenas da vida ordinária que descentram a
cena-corte ao durarem e irromperem como experiência do povo, reafirmando um
realismo cinematográfico que denuncia, por contraponto, o artificialismo do
julgamento, ou seja, a possibilidade que, de fato, um conflito jurídico-político de
proporções geopolíticas globais tenha lugar naquele espaço precário, povoado
por homens, mulheres, crianças, animais, pó e milhares de mosquitos. Trata-se de
um descentramento da cena-corte que a afirma em sua dimensão surreal: a
presença do magistrado num quintal, que abriga o cenário e o teatro armado para
a magna corte, com toda sua pompa e circunstância, com o peso histórico e
político que tal feito teria. Além disso, toda a encenação jurídica que vemos é,

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muitas vezes, ignorada por aqueles que ali vivem e passam distraidamente como
que desconsiderando a dimensão cerimoniosa e cerimonial do ritual e a
racionalidade do litígio.
Ali, onde a ordem do discurso e o protocolo do julgamento são mantidos, é
possível identificar, através das posições, as linhas de força que cindem as partes
do conflito e que justificam a demanda da comunidade de Bamako e, por
extensão, de uma sociedade africana. As questões nucleares trazidas pelas
testemunhas, que reincidem na fala da promotoria, referem-se em seu cerne à
política perversa de estruturação econômica do Banco Mundial e seus cúmplices,
como o FMI, o G8 e OMC (Organização Mundial do Comércio), que levaram o Mali
a um processo de pauperização. É a dívida externa que fez escoar todos os
recursos investidos no país, enquanto os serviços básicos foram sendo
abandonados; é a forma desastrosa como os recursos financeiros são injetados
no país de forma a agilizar as reformas estruturais que beneficiam o norte; é a

139

privatização desenfreada que retirou o Mali das mãos dos africanos, que
perderam autonomia e sustentabilidade; e o modo como tudo isso culmina num
neocolonialismo, em função do qual o povo africano se mantém aprisionado na
pobreza sem meios próprios para o desenvolvimento, pertencendo a um sistema
sem dele se beneficiar. Sem poder usufruir dos bens que produz, sem poder de
venda e de consumo, a participação do Mali (assim como de muitos outros países
da África que estão entre os mais pobres do mundo) no sistema é como o de uma
colônia que mendiga os bens produzidos aqui e fora, participando de forma
marginal e espúria de um capitalismo que a exclui. Não por acaso, é recorrente no
discurso das testemunhas a necessidade imperiosa de conscientizar a população
malinesa de sua posição no intuito de romper um sistema viciado. Em seu
testemunho, a escritora Aminata Dramane Traoré, ex-Ministra da Cultura do Mali,
afirma:

Tudo hoje pode ser vendido e comprado. A lição do ocidente é pague ou morra [...].
A África precisa se recompor. Embarcamos com o Ocidente num ideal de sociedade
que não podemos atingir. Nós não teríamos que vender nossos serviços públicos.
Teríamos podido desenvolver um sistema de controle de gestão, exercer a pressão

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necessária quando fosse necessário, denunciar os que enriquecessem [...]. O modo
como nos apropriamos dos nossos bens é uma questão política.

Em seu depoimento, Aminata deixa claro o quanto a relação com os


financiadores mundiais é governada pela mentira, pela hipocrisia, pelo cinismo, e
o quanto tudo é feito de forma a esconder deliberadamente dos africanos a
natureza predadora do sistema. “A principal característica da África não é sua
pobreza, ela é vítima de sua riqueza”, afirma a personagem, revelando que o
centro do processo de pauperização africana tem nome: Bush.
Uma montagem de sequências é paradigmática dessa cisão fundante da
condição africana: ser engolido pelo sistema sem dele participar. O advogado de
defesa, senhor de idade, branco e europeu, Monsieur Rappaport, está comprando
óculos escuros de um ambulante africano que transita pelo quintal quando
experimenta um par que o vendedor recomenda por ser da marca italiana Gucci,
e, ainda, assegura um bom preço para o estrangeiro. Ao que o M. Rappaport

140

responde: “vocês sempre dizem isso”, enquanto procura a marca Gucci nos
óculos e resmunga que ela não está ali. Posteriormente, vemos o europeu de beca
preta de longas mangas a suar e exibir os óculos escuros em meio ao calor
intenso e ao pó da terra que sobe durante a sessão no tribunal de Bamako.
Ironicamente, ao inquirir a Aminata, M. Rappaport insiste em afirmar que, através
da globalização, vivemos num mundo irremediavelmente aberto. Ao que a
testemunha responde: “nós não vivemos num mundo aberto Monsieur Rappaport
[...]. O mundo é certamente aberto para os brancos, mas não para os negros”.
Cada uma a sua maneira, as testemunhas demonstram em seus argumentos
que o neocolonialismo, imposto pela dívida externa, pela privatização desenfreada
e pela presença das multinacionais, é uma forma de colonização do próprio
imaginário dos africanos, que já não se sentem capazes de promover o
desenvolvimento do país por meios próprios. Deflagra-se uma espécie de
colonização moral do povo. De certo modo, M. Rappaport se apoia nesse
argumento da incapacidade para desqualificar a fala da escritora, que, segundo
ele, arroga-se de ser especialista, mas não é capaz de ser precisa, objetiva, e nem
de oferecer propostas para o desenvolvimento do país. Ao dizer que Aminata só

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tem sentimentos a oferecer e não soluções, o advogado explicita ainda por outra
via o fosso que separa o mundo africano do mundo capitalista. A ex-Ministra da
Cultura vai cindir novamente a cena na diferença, ao devolver ao francês,
representante do Banco Mundial, sua ignorância em relação a um país que ele não
vive diretamente, por não ter, assim como ela, os pés fincados naquela realidade.
O sentimento retorna encarnado no corpo que experimenta e evoca a distância
insuperável entre o branco europeu e o povo negro.
O professor Georges Keita, em seu testemunho, também encampa a luta
contra o neoliberalismo, regime que gera um processo ininterrupto de desvio dos
recursos recebidos que não servem à economia nacional, mas à manutenção da
solvência em relação aos credores que cobram bem mais que o orçamento geral
da população. Ele argumenta que o quadro de intervenção criado pelo Banco
Mundial só serve para abafar o fogo que continuará sempre latente, o fogo da
indigência imposta, do colonialismo terrível, de uma exploração que nem sequer

141

tem nome.

Somos nós que damos tudo para América do Norte. E ainda na violação do
imaginário da pequena consciência que me resta e que eu posso chamar de eu, eles
vem me dizer que o negro é preguiçoso que ele não pode se desenvolver de forma
independente. (depoimento de Keita).

Na sequência, enquanto a câmera do outro lado do muro da corte-quintal nos


mostra um marido africano de terno assistindo a uma mulher fechar o vestido
branco pomposo de sua noiva, ainda ouvimos a voz da testemunha em off
concordar com Aminata acerca da colonização do espírito do povo do Mali: “Mas
este negro que vocês estão esmagando até a morte por meio de um mecanismo
econômico e financeiro... foi o que assegurou o seu desenvolvimento” .
A cisão entre história e capital continua no litígio do tribunal armado. Enquanto
o advogado de defesa africano, como que ignorando todo o processo de
dependência colonial, busca isentar as instituições financeiras internacionais as
quais representa, culpabilizando o país africano por não saber usar os
investimentos dos bancos mundiais, Keita representa a voz da memória histórica.
O professor lembra, em seu testemunho, que os estados, na tentativa de saírem

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dos cem ou mais anos de colonização, ao buscarem reunir condições para o
desenvolvimento, foram barrados pelos ditames internacionais das instituições
que regulam todas as relações mundiais. Recorda um país produtor de ouro do
qual a colonização tudo roubou e que, por isso, sobrevive hoje no
antidesenvolvimento, marcado pela subnutrição, o analfabetismo, o desemprego
crônico e a promiscuidade que é a falta de moradia. “Só conhecemos a
infelicidade”, exclama o professor citando o poeta da negritude, originário da
Martinica, Aimé Césaire. Segundo Keita, trata-se de uma sociedade anulada:
“mesmo em nosso imaginário nós já somos violados. Não nos tomam apenas
nosso trabalho, nossos recursos, mas nossa consciência”. A questão que fica
dessa cisão histórica entre povo e política é a de como nesse cenário, no qual os
valores sociais estão degenerados e o fluxo de informação é de mão única, seria
possível a autossustentação de uma sociedade?

142

No encerramento do julgamento, ouvimos as falas entusiásticas dos


representantes das partes em conflito. M. Rappaport se coloca como vítima
alegando a dificuldade de defender a parte acusada num tribunal no qual a
sociedade civil é o demandante. Interpela dramática e ironicamente o juiz e a
audiência sobre a crença de que as grandes corporações financeiras
internacionais possam de fato querer uma taxa de mortalidade infantil cada vez
maior ou uma expectativa de vida cada vez menor. Segundo o advogado, mesmo
que as instituições fossem egoístas não teriam esse objetivo. E desenvolve seu
argumento desviando todo o complexo problema do neocolonialismo para a
questão da corrupção, comum e persistente nos vários países subdesenvolvidos
da África, que, segundo ele, equivaleria à pobreza e ao terrorismo.
O último discurso, o da promotora africana, enfatiza ainda mais a violência
impagável e ilegítima da dívida e revela o alto número de mortes por cólera no
país após a privatização dos hospitais, anunciando ironicamente outras formas de
privatização: das águas, das lendas, dos contos e da tradição africana. Por fim,
ela lembra a missão primeira do Banco Mundial e seus cúmplices, a de colocar o
homem como finalidade de toda a ação humana, sugerindo esperar, contra o

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capital, uma humanidade por vir.

Cena cindida

Mas a cena-corte em Bamako, além de partir da cisão entre as partes do


conflito, que uma vez encenada dá a ver o dissenso recompondo lugares de fala,
é novamente cindida pelos atos e tarefas diárias, por pequenos conflitos da
micropolítica das narrativas e por irrupções testemunhais, que surgem de dentro
de sua própria dinâmica. São performances de testemunhas que desafiam as
regras de conduta do tribunal, irrompendo com outro tempo, outro espírito, a
solenidade e a normatividade jurídica. Elas insuflam o teatro armado de uma
estética das formas de vida na qual os afetos e as tradições operam, para além do
dissenso constituinte entre a parte demandante e as instituições financeiras
internacionais, uma fratura entre sensibilidade e racionalidade: o velho Zegué

143

Bamba que fala em seu próprio idioma antes da sua vez, pois não pode guardar
as palavras que “vêm do coração” e é interrompido pelo juiz; o professor com seu
testemunho mudo; a mulher que agride o advogado negro que nada sabe da vida
do emigrante que passou fome no deserto; e novamente Bamba que, como diz
César, retorna para retomar a palavra que lhe fora tirada:

Ele entoa um canto em sénoufo que, sem tradução, ressoa no pátio/tribunal como
uma mensagem ancestral, intraduzível mas (ou justamente por isso) compreendida
por todos. Anunciado e negado, este depoimento afirma a dimensão política da
cultura local e da tradição, sempre ameaçada de desaparecer mas que, como
vagalume, resiste em lampejos fulgurantes (DIDI-HUBERMAN, 2011). Através de
Zegué Bamba, talvez o personagem mais vigoroso do filme, Abderrahmane Sissako
demonstra, finalmente, que o essencial é reconhecer a potência política da fala
enquanto um ato. (CESAR, 2013, p. 587).

Se o dispositivo em mais de uma camada expõe o “dano” (RANCIÈRE, 1996) –


no dissenso entre o povo africano e os poderes que regulam o capital mundial –, a
cena-corte é dividida e ressingnificada sem cessar. Vemos bem mais do que as
partes depoentes, há um alargamento espaço-temporal do dispositivo pela

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potência, ao mesmo tempo da ficcionalização e do realismo, cinematográfica que
se dá em três níveis: o primeiro é o dia a dia no quintal que invade o tribunal, ou
seja, dentro da cena-corte, mas ao mesmo tempo fora dela, vemos naquele
espaço compartilhado, o trabalho das mulheres que tingem enormes tecidos,
lavadeiras que penduram as roupas nos varais e mexem nos baldes, crianças que
brincam e por ali circulam, mães que as embalam. Uma segunda camada narrativa
que alarga o dispositivo é o entorno do tribunal, que está fora da cena-corte, mas
ao mesmo tempo bem próximo a ela, o espaço adjacente a casa, fora dos muros
que a limitam, mas colado a ela. Atrás desses muros que circunscrevem o quintal,
pessoas reunidas ouvem por um autofalante ali instalado os depoimentos
proferidos durante o julgamento, comentam sobre ele, conversam sobre outras
coisas, transitam, bebem, voltam a escutar. E, por fim, totalmente fora da cena-
corte, mas ligadas a ela de forma tênue ou mais explicita, estão as cenas em
outros espaços: o da memória – como a cena-lembrança de Madou Keita, que fala

144

de sua peregrinação forçada pelo deserto; o filme de western-spagethi, Death in


Timbuktu, no qual aparecem Danny Glover, Elia Suleiman e o próprio Sissako; a
igreja comandada por um pastor americano que Chaka frequenta; e a boate onde
Mèle canta e dança com clientes para ganhar a vida. São outros espaços e os
arredores, cenas filmadas em 16mm, que apesar de descentrar a cena-corte a
constituem em sua força e complexidade.
A ampliação e a reconfiguração do núcleo duro do dispositivo quintal dispõem
distintas camadas narrativas e performáticas que carregam temporalidades,
espaços, olhares outros, e, assim, complexificam a cena-corte, criando fissuras,
ambiguidades, desdobramentos, fraturando a racionalidade imperiosa do tribunal,
esfera pública na qual os argumentos e suas validades estão à prova.
Os testemunhos, as vozes, e gestos, que falam do país, de seu destino, dos
motivos da pobreza, que evocam signos das grandes entidades financeiras
mundiais, que trazem provas e argumentos contra as disparidades da
globalização, são atravessados por dias comuns. Por vezes eles se contaminam,
por vezes os fazem sobrar como resto. Do lado da contaminação, a efluência do
cotidiano mais concreto na cena do tribunal faz com que outro ritmo, outro tom de

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voz, a palavra ordinária encarnada no presente da experiência, ecoem pelos
arredores do quintal daquela casa que se multiplica e se espalha temporalmente.
São pessoas em suas atividades diárias, e micronarrativas que perpassam sutil e
precariamente, como vetores ficcionalizantes, os argumentos racionais e
grandiloquentes que tentam explicar os motivos da paulatina e arraigada
pauperização da África, da insolência do Banco Mundial, da perversão dos
programas de estruturação econômica e da dívida externa impagável e
impensável. Quando os dias comuns sobram como restos, é a força indicial e
realista dos portrays – mulheres trabalhando, o homem doente que descansa em
seu leito, a beleza de Mèle, a tristeza de Chaka, a criança a cuidar do bebê, a mãe
que assiste a tudo com o filho no colo – que enfatizam o tribunal como um teatro,
uma encenação, que jamais se sustentaria sobre aquelas bases, que jamais
aconteceria naquele mundo que também, jamais, transformar-se-ia no universo da
racionalidade da palavra. Aqueles que restam isolados da cena-corte encarnam,

145

no corpo e no rosto, um povo sem lugar, um povo já apartado daquela história,


um povo para quem não é a cena do júri que está cindida, mas a própria vida: a
cisão como marca no corpo e nos gestos.
Se na cena-corte na qual o embate da razão, empenhado na oralidade e nos
discursos, esbarra nos portrays ou é atravessado pelos afazeres ordinários, fora
dela, nos arredores, não é mais a visibilidade do orador, a performance da
testemunha, que está em jogo, mas o testemunho do testemunho: os olhares e a
escuta, a encenação do ver e do ouvir, daqueles que, cabisbaixos, colados ao
muro do quintal, próximos aos autofalantes, pouco se movem, estão quietos a
esperar, a entristecer-se ou apenas inexpressivos, quando simplesmente
desfazem a fiação que liga o autofalante para nada ouvirem.
Cotidiano e arredores, tarefas e olhares, fundem-se na cena e em seu entorno.
Vemos os olhares dos juízes, mas também da audiência, vemos os que falam e os
que ouvem, os gestos e as expressões pouco reativas ou incólumes, dentro e fora
da cena-corte. Vemos os aparatos (microfones, autofalantes, câmeras) enquanto
ouvimos discursos expressivos – a fome, a mortalidade infantil, a ruína da saúde e
da educação – que as cenas ordinárias parecem ora reverberar, ora ricochetear.

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Aos poucos, percebemos que as palavras eloquentemente performadas pelos
representantes daquele povo sem voz barram os corpos em suas vidas ordinárias,
e não produzem outras possibilidades narrativas para além daquele aqui e agora.
Resta a criança que perambula e pega um documento qualquer, o bebê que toma
banho ali ao lado numa banheira de plástico, os movimentos das mulheres que
tingem panos em meio à poeira vermelha da terra, que estendem tecidos e
enxáguam bacias. Por outro lado, essas mesmas palavras reverberam na
expressão incrédula de Chaka, o marido desempregado, na doença da filha Ina,
no choro de Mèle, no sonho desalentador de Samba Diakité, ou, simplesmente,
nas (in)expressões, atitudes, comentários dos que ouvem e assistem a narrativas
já constituídas do outro lado do muro. O conflito que tem lugar naquele tribunal se
torna ainda mais inverossímil, não só pela desmesura dos mundos que são
apresentados (o da eloquência e o do pó da terra, o do capital e o da pobreza, o
do mundo globalizado e do mundo africano em seu subdesenvolvimento), mas

146

quando assistimos ao pacto inconsciente daquela comunidade com o mesmo


mundo que a exclui nos risos das crianças ao assistirem ao filme de Western, em
que um cowboy negro mata uma professora africana, no grupo da igreja que
atende aos comandos do pastor americano, ou no ambulante negro que vende
Gucci. Trata-se de uma inversão incessante entre ficção e real produzida pelo
dispositivo. Os portrays cotidianos parecem ricochetear o sonho utópico que o
julgamento acalenta, recobrindo com uma realidade mais concreta a ficção que o
dispositivo instaura: a de permitir o acesso do país à ração diária que lhe é de
direito, à parte na riqueza que produz. Já as pequenas histórias transversais, e as
interações atrás do muro, parecem conceder uma realidade incontornável ao
aparato jurídico-cinematográfico, como representa bem o pesadelo de Samba –
no qual ele se põe a tirar sempre, de um saco de cabeças dos mandatários do
país, a cabeça do mesmo político – ou o suicídio de Chaka, o marido
desempregado, ao final. Enquanto isso, a espectatorialidade do filme de Western
parece zombar do motivo do julgamento, expondo ao mesmo tempo quão
distante e quão próxima aquela comunidade está do mundo do outro.
Tal como o espectador de cinema do qual nos fala Jean-Louis Comolli (2008),

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os habitantes de Bamako, daquela casa-quintal-corte, acreditam no que ouvem e
veem, porém, também duvidam e, nesse lugar, sofrem. São espectadores do
teatro das injustiças, acreditam na testemunha que diz que a dívida é uma
desmesura do poder dos agentes financiadores e duvidam do partilhamento de
um mundo global, da inclusão no capitalismo. Seus rostos e atos exprimem essa
hesitação, os de fora ligam e desligam o autofalante, querem e não querem ouvir.
É esse lugar hesitante que nos une a eles, faz-nos coletivo, pois acreditamos nos
demandantes que expõem sua sobrevivência de sofrimento naquele tribunal,
acreditamos pelos atos de fala de que a justiça está sendo feita ali, mas, ao
mesmo tempo, duvidamos de sua existência, justamente ali, na ficção dessa
igualdade de condições que o julgamento exigiria, na igualdade de condições do
mundo global. Mas é nesse momento que o filme se faz político, na cena em que
outro mundo se faz dois: um já cindido pela ordem do capital e outro que se
institui na potência de um povo por vir, que a ficção permite ao conceder-lhe

147

carne e voz. A espectatorialidade do povo de Bamako em relação ao tribunal, e


em relação ao mundo, fratura a cena porque instaura a dúvida, a não crença. Os
retratos cotidianos barram a cena, pois instauram outra performance, fora da
ordem do discurso, dos protocolos da tribuna, em que os gestos ordinários não
fazem avançar nenhuma certeza racional, nenhuma medida contra pobreza,
nenhuma retórica convincente, mas formas de vida que emergem no trabalho, na
falta, num quintal de chão batido. É lá na periferia do julgamento e não nele, no
mais concreto dia a dia, que o povo aparece mais nuamente. Em contraste com
as forças da racionalidade, ele permanece existindo em sua vida precária.
Nesse sentido, se o julgamento é um ato político que mostra as diferenças
através da macro-história descascada e desmistificada em cena, é pelos cantos,
nas margens da cena-corte, que a potência política explode: na figuração dos
rostos, no gesto ordinário, no movimento repetido de um povo que, excluído do
debate público, encarna na tela essa exclusão. Portanto, é essa vida ordinária que
se imiscui entre as grandes questões políticas e financeiras; que faz titubear a
crença naquela cena-corte e duvidar do que parece um espetáculo surreal em sua
ambição e em sua abstração racional: os rumos e movimentos geopolíticos do

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capitalismo tardio.

Cinema partilha

Ao operar nessa dubiedade, no entre o crer e o duvidar, a ficção e a realidade,


o impossível e o possível, esse cinema africano abre mão do consenso e se faz
político ao revelar o dissenso que nasce justamente com o princípio da igualdade.
Vemos então que Sissako monta o dispositivo e, ao mesmo tempo, o deflagra, dá
a ver sua ficção, sua impossibilidade constituinte e, através dele, a realidade de
um povo que resiste e por isso ainda pode. Parece que em Bamako o jogo
estético e, portanto, político do cinema interpela a hegemonia econômica e
discursiva das grandes corporações ao abrir espaço para que a partilha (a divisão)
desigual se faça partilha (compartilhamento) no terreno do sensível. (RANCIÈRE,
2005). Não porque o tribunal coloca duas partes em conflito, não pela dialética

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jurídica tradicional, na qual pares opostos devem chegar a um termo médio, mas
por uma fratura antropológica sempre aberta e sempre tamponada que se dá a ver
no gesto estético do cinema. É porque o dispositivo, em sua dupla face, expõe um
dano fundamental, que ao recolocar a distância constituinte da relação entre
mundos, não pretende solucioná-la, mas fazer participar da cena, tomar a palavra
e exibir corpos e tradições de sujeitos esquecidos e apagados. Essa fratura, em
sua natureza antropológica, remete à impossibilidade da igualdade entre todos,
própria à diferença das culturas, das sociedades, das tradições, enfim, das formas
de vida que não atribuem o mesmo sentido, portanto os mesmos valores e
crenças, às mesmas coisas. Portanto, em Bamako, a fratura surge não apenas
onde a língua ou os costumes são outros, mas onde a globalização com seus
poderes internacionais tentou igualar os mundos, desconhecendo as diferenças
que os separam, ao mesmo tempo em que os cindiu por outra via, aquela que
coloca de um lado a fome e de outro o capital. Segundo Tejumola Olaniyan,
professor africano da universidade de Winsconsin, essa diferença se situa entre
ration and rationality (ração – porção, partilha – e racionalidade). Ração e
racionalidade são mundos incomensuráveis, um é fome, o pedaço de um mundo

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comum que qualquer um tem direito, o outro é uma organização racional, legal,
capitalística dessa porção. Para Olaniyan, a fome e a ganância podem vir do
mesmo lugar, de um lugar primitivo, mas não há racionalidade que as façam
equivaler. De um lado o concreto, a força bruta, a morte das crianças subnutridas,
e do outro a especulação financeira, o capital abstrato; de um lado o povo e de
outro o espetáculo.
O cinema de Sissako habita essa fratura, numa mise-en-abyme de cisões
intransponíveis. Nessa medida, ele se coloca um passo à frente do acontecimento
que cria, inventando, como diz Amaranta Cesar, um futuro, justamente pela
possibilidade da cena cindida apontar “um outro mundo”, ou um povo por vir do
cinema. Mesmo que a cena do tribunal se empenhe em igualar em eloquência
negros e brancos, africanos e não africanos, o FMI e a sociedade do quintal de
Bamako, por meio do exercício da racionalidade numa arena pública, a ficção se
explicita e vaza nas fissuras, na cena sempre cindida, por aquilo que resta de mais

149

concreto, que sobra, na voz do velho ancião negro que quebra o protocolo e
afirma a tradição ali. Sem expor misérias em melodramas, a simples mistura da
vida e da corte é suficiente para fazer o espectador duvidar, deflagrar a
impossibilidade de que a fome se vá nos atos de fala, a impossibilidade de que
algo tão primitivo seja erradicado na lei, que, nas palavras de Olaniyan, nada
destrói apenas conserva. O dispositivo é forte e potente porque guarda seu
reverso, expõe a fratura fingindo expor a sutura. No filme, não vemos só a cena-
corte, a vemos duplamente: o povo de Bamako vê o tribunal, e nós o vemos
vendo e ouvindo, e esse olhares também dizem. Vemos a duração de cenas
anódinas, as performances finais dos que advogam contra as injustiças, o choro
de Mèle, o velório de Chaka, a porta do quintal entre aberta, tudo, sobre a mesma
ambiência empoeirada, cenas feitas de terra, de pó, de barro. A vida, o julgamento
e a morte estão ali igualmente em tons de ocre, marrom, bege alaranjado, bege
sujo, bege pobre. Mas ainda assim, vemos mais, vemos mundos diferentes,
tempos diferentes, vemos o povo.

Referências

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BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia, técnica, arte e política. São Paulo:
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BRASIL, André. Modulação/Montagem: ensaio sobre biopolítica e experiência


estética. Rio de Janeiro: UFRJ/CFCH/ECO, 2004.

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Bamako, de Abderrahmane Sissako”. Revista Contemporânea: Comunicação e
Cultura, v. 11, n. 3, set./dez. 2013, 581-590.

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

LÖWY, Michel. “‘A contrapelo’. A concepção dialética da cultura nas teses de


Walter Benjamin (1940)”. Lutas Sociais, São Paulo, n. 25/26, 2º sem. de 2010 e 1º
sem. de 2011, 20-28.

150

OLANIYAN, Tejumola. “Of Rations and Rationalities: The World Bank, African
Hunger, and Abderrahmane Sissako's Bamako”. The Global South, Indiana Uni.
Press, v. 2, n. 2, 2008.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: Ed. 34,
2005.

RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Ed. 34,


1996.

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Submetido em 17 de setembro de 2016 | Aceito em 16 de novembro de 2016

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“Eu não quero ter um mundo de uma cor só”:


trajetória, autoria e estilo nos filmes do cineasta Flora Gomes

Jusciele Conceição Almeida de Oliveira1

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1
Jusciele Conceição Almeida de Oliveira é Doutoranda do Centro de Investigação
em Artes e Comunicação da Universidade do Algarve-CIAC/Ualg, em
Faro/Portugal. Bolsista do Programa Doutorado Pleno no Exterior da CAPES, proc.
nº 0654/14-0.
e-mail: jusciele@gmail.com

152

Resumo

O trabalho parte de uma revisão teórica do conceito de autor e da “ideia de autoria”, tal como foi
transposta pelas instâncias da teoria acadêmica, crítica cultural, artística e cinematográfica, por alguns
estudiosos no campo das artes e dos cinemas africanos, para, em seguida, examinar os modos como
ela é assumida, negociada, e afirmada e/ou refutada nos filmes do bissau-guineense Flora Gomes,
ressaltando seu estilo e algumas marcas autorais iniciais. Informa-se também que o presente texto faz
parte do projeto de doutorado, que se encontra em fase de escrita da tese.

Palavras-chave: Trajetória; Autoria; Estilo; Flora Gomes.

Abstract

This essay starts off with a theoretical review of the notions of “author” and “authorship” as
reflected by academic theory and cultural, artistic and film criticism by scholars of African arts and
cinema. The notions of “author” and “authorship” are used in order to examine the ways in which they
are assumed, negotiated and affirmed and/or refuted in the films by Bissau-Guinean Flora Gomes,
highlighting his style and some of the early authorship traits. This essay is part of a doctoral dissertation
currently in progress.

Keywords: Trajectory; Authorship; Style; Flora Gomes.

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153

“Isso é muito importante, o que eu digo, eu não quero ter um mundo de uma cor só.
Eu gosto muito do arco-íris, a diversidade das cores. Eu acho que é isso que faz o
mundo cada vez mais bonito. Então, nos filmes que eu faço, eu tenho um objetivo a
atingir: encontrar um espaço, sem querer matar o outro que lá está” Flora Gomes (in:
OLIVEIRA; ZENUN, 2016: 325).

O excerto acima é uma das muitas marcas do cineasta bissau-guineense Flora


Gomes, o qual demonstra muitos aspectos da visão de mundo e até mesmo da
escolha técnica deste realizador, que nos seus discursos, entrevistas e nos
diálogos das suas personagens, apresenta-nos seus traços autorais, estilo e
opiniões, no sentido simbólico, histórico, filosófico, cultural ou político, através
não só da sua fala, mas também dos seus filmes em si.
Assim, algumas reflexões, afirmações e questionamentos apresentados no
presente texto surgiram após a realização de entrevistas com o cineasta Flora
Gomes, desde maio de 2015, em Lisboa/PT e em Bissau/GB, especialmente, a
interlocução sucedida em coautoria com Maíra Zenun (Revista Cerrados, 2016),
como também em conversas realizadas com colaboradores, apreciadores e
espectadores, que participaram da realização dos filmes deste cineasta e que

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convivem ou conviveram com Flora Gomes. Estes momentos foram concretizados
na pesquisa de campo realizada em 2016 na Guiné-Bissau, país de residência e
nascimento do roteirista e diretor Flora Gomes, igualmente pela investigação de
doutorado, realizado desde 2014 em Portugal, através da qual já se edificou uma
fortuna crítica e teórica sobre autor, autoria, estilo, cinemas africanos e Flora
Gomes. Nesse sentido, serão apresentadas algumas discussões sobre autor e
autoria nas artes e no cinema, destacando as idiossincrasias da trajetória do
cineasta Flora Gomes nos seus cinco longas-metragens de ficção.

Trajetória: da antiga Guiné Portuguesa para o Mundo

Em dezembro de 2014, em Bissau, organizou-se uma homenagem, conforme o


público bissau-guineense e minha opinião, ao maior cineasta da Guiné-Bissau:
Flora Gomes, com oficinas e conversas com o cineasta e pessoas envolvidas no
processo de criação audiovisual. Em março de 2015, realizou-se o lançamento do

154

livro Flora Gomes: o cineasta visionário, com textos críticos e biográficos sobre a
vida e os filmes de Gomes. Na obra, há destaque para o filme Nha fala (2002),
visto que dos quatros artigos publicados três são dedicados à comédia musical,
bem como para a história de vida do realizador, com entrevistas e textos
biográficos, do qual destacam-se dois. Em primeiro lugar, “África que ri e sonha: a
Guiné-Bissau de Flora Gomes” dos professores de Estudos africanos, lusófonos e
francófonos da Universidade de Michigan/ Estados Unidos, Fernando Arenas e
Frieda Ekotto, que relaciona as temáticas dos filmes com a vivência do realizador,
demonstrando como a vida e obra estão entrelaçados. Já o texto do professor de
história e estudos africanos do Rhode Island College dos Estados Unidos, Peter
Karibe Mendy, “Florentino ‘Flora’ Gomes: contexto, desafios e sucessos de um
ativista cinemático”, faz uma relação entre a vida biográfica de Gomes e os
momentos políticos e sociais do mundo, da África e da Guiné-Bissau. Assim, trarei
à cena alguns fatos biográficos e temáticos do cineasta Flora Gomes, segundo as
informações dos dois textos destacados, e, quando possível, cruzando
informações também com o texto de Filomena Embalo, “O cinema da Guiné-
Bissau”, também disponível no citado livro.

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O cineasta Flora Gomes nasceu no dia 31 de dezembro de 1949, em Cadique,
na antiga Guiné Portuguesa, sob o jugo colonial português e estudou cinema em
Cuba, no Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográfica (1967-1972), e no
Senegal (1972-1974), sob orientação de um dos mestres do cinema africano,
Paulin Soumanou-Vieyra. Trabalhou como repórter para o Ministério da
Informação por três anos (1975-1977), o que deve tê-lo influenciado em sua
produção cinematográfica, principalmente, relacionada com o fator histórico e a
guerra de independência e/ou luta de libertação da Guiné-Bissau, presentes no
filme Mortu Nega (Morte negada, 1987) e no documentário As duas faces da
guerra (2007), que assina em coautoria com a realizadora portuguesa Diana
Andringa, no qual narram-se as histórias da guerra de independência da Guiné
contra o colonialismo português (1963-1974), e a luta dos portugueses contra o
regime ditatorial (1926-1974) vivido em Portugal.
Ao contextualizar o ano do nascimento de Gomes, mesmo quase nascendo

155

numa nova década, especificamente no último dia desta, Peter Mendy destaca,
como marcos do ano de 1949, a criação da Organização do Tratado do Atlântico
Norte – OTAN, a proclamação da República Popular da China e a
institucionalização do sistema racista do Apartheid, na África do Sul. Ressalta
também que foi a década do início do conflito entre Estados unidos e a União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS); e igualmente começou o processo de
descolonização na Ásia, demonstrando como o menino “Flora encontrou um
mundo dicotomizado entre colonizador e colonizado; civilizado e gentio, definido
pela dinâmica da dominação e da resistência” (MENDY, 2015: 111).
Por outro lado, salienta que é no ano de 1949 que Kwame Nkrumah funda a
Convenção do Partido Popular (CPP), através da qual em 6 de março de 1957
Gana conseguirá sua independência. É o ano também da conscientização de Fidel
Castro sobre a situação de seu país. A Cuba revolucionária teve um papel de
destaque na libertação da Guiné Portuguesa, com a entrega de “equipamentos
militar e apoio às iniciativas político-diplomáticas, mas também a oferta de
oportunidades de educação e formação aos bissau-guineenses” (MENDY, 2015:
113), como Florentino Gomes, que em 1967, com 17 anos de idade, parte para o

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Instituto Cubano de Arte e Industria Cinematográfico (ICAIC)1, para ser orientado
pelo documentarista cubano Santiago Álvarez Román.
Salienta ainda que em 1949 Amílcar Cabral encontrava-se em Lisboa
preparando-se acadêmica e politicamente, por meio do curso de engenharia
agronômica e por meio das conversas na Casa do Império, na qual se reuniam
estudantes africanos, para futuramente colaborar com a libertação do povo
guineense e cabo-verdiano do colonialismo português. Fora também, através do

1
“O ICAIC foi criado apenas 83 dias após a Revolução, pela Lei 169, de 24 de março de 1959. Alfredo
Guevara dirigiu o Instituto até 1982 e depois de um mandado exercido pelo cineasta Julio García
Espinosa, desse ano até 1991, voltou a dirigi-lo entre 1992 e 2000. A prioridade que o novo governo
deu à criação de um instituto de cinema, era explicada com o argumento de que a sétima arte era um
veículo ímpar de propaganda ideológica ‘da Revolução’ porque divulgava didaticamente, para as
massas, as novas ideias e tinha um eficaz – e universal – poder transformador” (VILLAÇA, 2010:44).

156

projeto educacional “Escola Piloto”, em Conacri (já independente), idealizado por


Cabral, que Florentino Gomes concluíra o ensino secundário (1965-1967). Assim,
a questão educacional e de letramento estará sempre nos filmes de Gomes, como
uma possiblidade de mudança, o que, segundo o cineasta, foi inspirado por
Amílcar Cabral e na ideia da “Educação de libertação” do brasileiro Paulo Freire,
sempre na busca por uma educação com consciência crítica, que liberte o sujeito,
e, parafraseando Cabral, para que possamos pensar com as nossas cabeças e
andar com os nossos pés. E seguindo os preceitos do seu mestre, “O povo da
Guiné Portuguesa liderado pelo PAIGC tornar-se-ia o primeiro durante a
descolonização da África a derrotar militarmente um poder colonial determinado e
bem armado. Flora Gomes é filho da luta armada de libertação na Guiné
Portuguesa” (MENDY, 2015: 112).
Com o ideal da luta de libertação latente, em 1972, retorna de Cuba e segue
para o Senegal, onde permanecerá até 1974. Mesmo sem ter segurado em armas
em Bissau, Flora Gomes é reconhecido social e culturalmente como antigo
combatente, já que usou outras formas de armas e de luta. Transformou em
material fílmico a história e a cultura de seu país de nascimento, do seu continente

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e de todos que passaram e continuam passando pela sua vida, uma vez que “A
sua filmografia constitui um arquivo de imagens do povo guineense enquanto ator
da sua própria história” (ARENAS; EKOTTO, 2015: 16).
O próprio Gomes assume o papel de narrar a sua versão da história,
apresentando-nos a versão relatada pelos bissau-guineenses e africanos: “Nós
não somos detentores de todas as verdades, mas também não queremos que nos
contem a história de uma forma que não seja verdade. Se não contarmos a nossa
história, virá uma pessoa de fora contá-la à sua maneira” (VILELA, 2006: 106).
Flora Gomes iniciou a sua carreira cinematográfica ao lado de Sana Na
N’Hada, co-realizando com este dois curtas-metragens: O regresso de Cabral
(1976), Anos no oça luta (1976). Realizou ainda o média-metragem A reconstrução
(1977) com Sérgio Pina e N’Trudu. Seus longas-metragens de ficção são: Mortu
nega (Morte negada, 1988), Udju azul di Yonta (Olhos azuis de Yonta, 1992), Po di
sangui (Pau de sangue, 1996), Nha fala (Minha fala, 2002) e Republica di mininus

157

(República de meninos, 2012).


O filme Mortu nega que na tradução para o português pode ser entendido
“Morte negada” ou “E a morte o negou”, é o primeiro longa-metragem de ficção
do cineasta bissau-guineense Flora Gomes, que por sua vez é também o primeiro
da Guiné-Bissau – seu lançamento realizou-se em 1988. Este narra a trajetória de
luta e de vida de Diminga (Bia Gomes), que perderá seus filhos na guerra, como
camarada de luta de seu marido Sako (Tuno Eugênio Almada), já que carrega
munição e vai em busca do seu companheiro no mato, na “Fronteira sul da dita
Guiné Portuguesa com a República da Guiné-Conakry, em Janeiro de 1973”, de
acordo com as informações de contextualização do roteirista/diretor Flora Gomes.
Diminga irá passar grande parte do filme em companhia da mindjer-garandi
(mulher-grande, idosa) Lebeth (M’Male Nhassé), que participa da luta, pois sua
tabanka (aldeia) foi destruída pelos militares a serviço do colonialismo português.
No écran, contemplar-se-ão muitas crianças, jovens, mulheres e homens
carregando armamento, ajudando na libertação, demonstrando que foi uma luta,
que triunfou pela coletividade, com a participação não só dos militares bissau-
guineenses e aliados, mas de todo o povo, visto que no filme Mortu nega o

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protagonista é o povo guineense. Os heróis são eles, os resistentes, os que
viveram a luta contra o colonialismo português e vivem a luta do dia-a-dia contra o
neocolonialismo e os problemas políticos do pós-independência.
O filme Udju azul di Yonta conta a trajetória da jovem e bela Yonta,
secretamente apaixonada por Vicente, um homem mais velho, amigo dos seus
pais e antigo herói da luta pela independência do país. Enquanto isso, Zé, um
jovem do porto, manda uma carta apaixonada e anônima para Yonta, retratando
um triangulo amoroso, no qual não se é amado. A questão central da trama é a
carta, na qual consta um poema, copiada por Zé de um livro, possivelmente
europeu, no qual destacam-se as características físicas de uma mulher branca,
com olhos azuis e também fatores climáticos, que não condizem com os do
cenário apresentado. Neste filme, Gomes destaca os problemas do momento pós-
colonial vividos, após a recente independência.
A película Po di sangui, que significa árvore de sangue, encena-se na tabanka

158

Amanhã lundju (Amanhã longe), na qual quando nasce uma criança uma árvore
deve-se ser plantada, visto que o espírito dessa criança estará ligado a este pau
por toda a sua vida. Ao dar à luz aos gêmeos Hami e Du (Ramiro Naka) sua mãe
planta duas árvores. Hami, que fica na tabanka, começa a derrubar as árvores
para fazer carvão e por isso morre, entretanto o Pau de sangue que morre é o de
Du, que partiu. Encena-se o retorno de Du para a realização do ritual fúnebre do
seu irmão Hami, como também destacar-se-á a preocupação de Gomes com as
questões ambientais.
O filme Nha fala narra a história da protagonista Vita, uma jovem guineense que
ganha bolsa de estudos, na França, a qual carrega uma tradição familiar, que
proíbe que as mulheres de sua família cantem; caso seja descumprida, as
mulheres de sua família poderão morrer. Todavia, em Paris, Vita conhece Pierre,
um jovem e talentoso músico por quem se apaixona. Esse amor a faz cantar. Mas,
temendo que a mãe descubra que quebrou a tradição e a promessa, Vita decide
voltar a casa… para morrer! Com a ajuda de Pierre e Yano, Vita encena a sua
própria morte e o seu posterior renascimento.
Seu último longa-metragem, Republica di mininus é uma coprodução da

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Guiné-Bissau, França, Portugal, Bélgica e Alemanha, gravado em Moçambique,
com a participação do afro-americano Danny Glover, único adulto no enredo. O
filme conta a história de um país africano (ou não), onde as crianças são
responsáveis por tudo que acontece no local, inclusive organização política,
saúde, educação, e essa República torna-se um país estável e próspero. Mas há
ali um problema: as crianças não crescem. O filme foi selecionado para o Festival
do Rio, em 2011 e recebeu distinção no Festival Internacional de Angola, em 2012.
Com a sua obra cinematográfica, Flora Gomes tornou-se o realizador de
referência da cinematografia guineense, conquistando a estima e o
reconhecimento internacionais, por isso em 1996 foi condecorado com o grau de
Chevalier des Arts et des Lettres da França, e, em 1994, com a Medalha de Mérito
da Cultura da Tunísia. Em 1994 foi Membro do Júri do Festival de Cartago e em
2000 integrou a manifestação “6 Cineastas africanos”, organizada pelo Ministério
dos Negócios Estrangeiros francês, no quadro do Festival de Cannes. Nesse

159

mesmo ano, participou da Conferência sobre a Globalização, Regionalização,


Cultura e Identidade nos Pequenos Países, organizada pela Universidade de Tufts
(EUA). Diante deste panorama biográfico e fílmico, percebe-se o trânsito deste
cineasta no mundo atual, pois assim como o movimento da câmera percorre as
várias cenas e nos leva para onde o diretor deseja, Flora Gomes desloca-se de
Bissau, local de residência, para diversos continentes e países, seja para
participar de eventos ou para conseguir financiamentos ou ainda o deslocamento
para gravar suas películas.
Atualmente, Flora Gomes está à procura de parcerias, a fim de realizar um filme
“focado na história da batalha sobre o corpo da mulher. Estou à procura de um
roteirista. Porque o filme vai dar muito o que falar, já que falará de poder”
(OLIVEIRA; ZENUN, 2016: 329), bem como sua busca por fazer um documentário
sobre Amílcar Cabral, pois, segundo o cineasta, a Guiné-Bissau é um país com
muita história para contar em diversas formas, uma vez que Gomes pensa “que a
cultura africana tem uma maneira de contar histórias que é muito bonita e no
cinema podemos também fazê-lo. Vamos tentar dar mais cor, mais vida” (VILELA,
2006: 104).

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Autor e autoria nos cinemas africanos

A discussão sobre o autor e autoria nas artes e principalmente na literatura é


de longa data, normalmente relacionada com quem assina a obra. Ao longo da
história da teoria da literatura, surgiram várias teses, inclusive a “da morte do
autor”, apresentada por Barthes, em 1968, no texto “A morte do autor”, um ano
após Foucault pronunciar uma conferência intitulada “O que é um autor?”, depois
em livro, que parece preocupar-se com a individualidade do sujeito, “que
seleciona e escolhe aquilo que nas marcas deixadas por alguém, constituem sua
obra” (JOST, 2009: 12).
Barthes, no texto citado, define o autor como um sujeito criado pela sociedade
e uma pessoa humana comum, que pode reproduzir o momento e a sua época:

160

O autor é um personagem moderno, produto, sem dúvida, da nossa sociedade, na


medida em que, ao sair da Idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo
francês, e a fé pessoal de Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo, ou como
se diz mais nobremente, da ‘pessoa humana’ (2004: 61).

Segundo Compagnon, a morte do autor traz como consequências a polissemia


do texto, a promoção do leitor, e uma liberdade de comentário até então
desconhecida, mas não é o leitor como substituto do autor. E esclarece que
mesmo com a emergência do leitor “há sempre um autor” (2006: 52). Ainda para
Compagnon, no texto existe uma intencionalidade do autor, que permanece nos
estudos literários e termina o texto informando que nenhum método que se
escolha para análise de uma obra será suficiente para o esgotamento do texto:

Nem palavras sobre a página nem as intenções do autor possuem a chave da


significação de uma obra e nenhuma interpretação satisfatória jamais se limitou à
procura do sentido de umas ou de outras. Ainda uma vez, trata-se de sair desta falsa
alternativa: o texto ou o autor. Por conseguinte, nenhum método exclusivo é
suficiente (2006: 96).

A atribuição do termo autor no cinema é um pouco mais complexa do que na

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literatura ou na pintura, já que o filme é uma obra coletiva, composta por uma
equipe. Com relação aos direitos, inicialmente, por muito tempo considerou-se o
autor no cinema o roteirista; depois que os direitos do autor, normalmente, são da
empresa de produção, personalizados na figura de um produtor, o qual seria o
responsável pela questão econômica, e, neste caso, o diretor e o roteirista teriam
direitos morais e simbólicos. Com a consolidação do cineasta como autor, houve
o reconhecimento deste “com importantes consequências simbólicas
(reconhecimento dos realizados nos festivais, retrospectivas pessoais, etc.) e
econômicas (direitos de autor)” (AUMONT; MARIE, 2011: 309).
Por essa perspectiva múltipla, pensa François Jost, por conta das artes
diversificadas presentes no cinema, o autor no cinema possui várias atribuições
que carregam suas marcas individuais, enquanto autor, e coletivamente, dos
outros, como interprete, adaptador, da junção, na composição do produto, da arte
final: o filme. “Prefiro, pessoalmente, pensar que se a autoridade passa de mão

161

em mão, ou de uma figura à outra, é porque a obra cinematográfica mescla


intimamente a autografia e a alografia, concebidas não como realidades
constitutivas, mas como os usos que se faz delas” (2009:30).
A ideia de autoria no cinema, que surge pelas mãos dos críticos, e mais tarde
pelos cineastas da Nouvelle Vague francesa, implicava uma forma diferente de se
olhar para os filmes, reconhecendo nestes, apesar da estrutura industrial de
produção e de distribuição, uma obra de arte. Ao mesmo tempo, conduziu o
diretor ao papel central na equipe de produção de um filme, cuja obra seria
facilmente reconhecível por traços estilísticos que funcionavam como uma
assinatura das suas realizações. Mais tarde, o próprio François Truffaut, que
cunhou o termo politique des auteurs, reconhece um certo excesso nas
proposições inicias publicadas nos Cahiers du Cinéma, sobretudo no que dizia
respeito ao cinema produzido em Hollywood, mas assume que esta postura foi
fundamental para a criação de uma cinematografia de vanguarda, como a da
Nouvelle Vague, e tantas outras que brotaram em vários países no pós-II Guerra
Mundial.
De acordo com a politique des auteurs, entende-se um cineasta como autor

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quando este e sua obra possuem, pelo menos, duas características: a evidência
do diretor nos processos de produção e criação da película; e uma temática
pessoal, um estilo reconhecível, por conta das escolhas dos conteúdos
selecionados. Acrescenta-se a este último item a visão de Jean-Claude Bernardet,
no livro O autor no cinema (1994), de que há na obra do cineasta-autor uma
expressão marcadamente pessoal. Portanto, a teoria autoral parte da ideia de que
a marca estilística do cineasta é sua assinatura, que revela muito da sua
personalidade.
François Truffaut, no texto “Uma certa tendência do cinema francês”, critica
alguns cineastas por não serem cinematográficos e sim literários e acaba por
definir o verdadeiro autor de um filme “como aquele que traz algo genuinamente
pessoal ao tema, em vez de apenas fazer uma reprodução de bom gosto, precisa,
mas sem vida, do material original” (BUSCOMBE, 2005: 282). Inicialmente, os
cineastas ditos autorais estavam relacionados com os diretores franceses,

162

entretanto percebeu-se a necessidade de dar mais espaço ao cinema norte-


americano, em função da sua grande produção, ideia embasada por André Bazin
(1953), no texto crítico “A glória de um covarde”, onde afirma que o cineasta
Alfred Hitchcock é um autor.
Por este ângulo, o reconhecimento mediático, acadêmico e crítico do cineasta,
como também as premiações recebidas em Festivais de cinema, fazem com que
o cineasta e autor ganhe prestígio nos âmbitos sociais e suas marcas autorais e
estilo sejam identificados e ressaltados. E o seu prestígio e consagração junto aos
meios do cinema.
O assunto ainda é latente e ponto de discussão em debates acadêmicos e
publicações não só no cinema, mas nas artes visuais, especialmente nas novas
mídias e na contemporaneidade, emergem os estudos sobre autor e autoria nos
cinemas africanos. “A questão da autoria se encontra longe de ter perdido o
fôlego no debate acadêmico, pois tem suscitado um grande número de reflexões
que tem resultado em trabalhos acadêmicos que tentam compreender o lugar do
autor no cinema e na televisão como também nas novas mídias” (SERAFIM, 2009:
09).

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Em função da abertura e expansão da teoria do autor, Manthia Diawara
escreve o texto crítico “FESPACO: o cinema africano em Ouagadougou”, sobre o
Festival Panafricano do Cinema e da Televisão de Ouagadougou – FESPACO,
realizado em Burkina Faso, no ano de 2009, que homenageou o cineasta
Ousmane Sembène (1923-2007), o qual ele considera um cineasta autoral e
elenca as características dos temas e suas marcas mais recorrentes na sua obra
cinematográfica:

No cinema de Sembène o grupo é mais importante do que o indivíduo. É também um


cinema de distanciação, uma vez que o realizador não quer que o espectador se
identifique com as novas elites africanas que nada fazem para elevar a consciência
das massas. Finalmente, é um cinema do bem e do mal, em que a câmera é virada
contra as forças coloniais e neocoloniais em África. Numa palavra, as contribuições-
chave de Sembène para o mundo do cinema residem no valor que conferiu à imagem
africana e no facto de lhe ter dado uma voz, por oposição a Hollywood e aos
cinemas coloniais que negavam aos africanos uma linguagem própria e um lugar na

163

história moderna. Enquanto realizador progressista, acreditava que a mudança


deveria provir das mãos do grupo que anteriormente fora desprovido de rosto e de
voz nos filmes ocidentais e antropológicos (2011: 22-23).

Para Boughedir, os cinemas africanos refletem mudanças culturais e sociais


que vêm ocorrendo nas nações africanas como consequência de reviravoltas
políticas e econômicas, que afligem constantemente o continente (2007: 37). Isso
quer dizer que os cinemas africanos mostram em suas cenas os temas,
problemas, questões e reflexões do momento atual de cada país do continente
africano, como também a mudança de postura dos investidores, que passaram a
investir em cinema produzido por africanos.
A questão central dos temas do cinema africano parece ser o que Thiong’o
chama de “descolonizar a imagem” construída pelo espectador e, por vezes,
também por quem produz os filmes, pois as imagens que os filmes e os
espectadores desejam aparentam ser distanciadas, quando não distorcidas da
representatividade das sociedades, das culturas e dos filmes produzidos e
realizados por africanos comprometidos com temáticas africanas, podendo ou
não envolver dispositivos de produção exclusivamente africanos (THIONG’O,

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2007: 29-30).
A reflexão provocada por Thiong’o acerca da “imagem do mundo [...], ela
própria colonizada” leva-nos a pensar, também como latino-americanos e
brasileiros, sobre as imagens que são reproduzidas e construídas para o
continente africano, tanto uma imagem idealizada do continente, em função da
diáspora dos milhões de africanos escravizados, quanto uma imagem arraigada
de preconceito de um continente-irmão-bastardo, que precisa ser ajudado ou
explorado, sob as máscaras de novas formas de colonialismo e/ou
neocolonialismo.
Ao longo da sua carreira cinematográfica, Ousmane Sembène lutou contra a
imagem africana baseada no preconceito eurocêntrico, no qual os africanos eram
representados como infantis, primitivos, sem cultura ou civilização. Essa imagem
estereotipada persegue e estigmatiza o cineasta africano, que nasce, estuda,
reside não necessariamente nos mesmos locais, tendo como obrigação agradar

164

os produtores e públicos europeus, mas também sentindo o dever de que seu


filme seja representativo do público africano.
Neste sentido, demonstrar-se-á como o cineasta Florentino (Flora) Gomes,
apesar das condições de produção da sua cinematografia múltiplas,
transnacionais e transcontinentais, possui uma obra que pode ser considerada
“autoral”, já que Gomes assina os roteiros de suas obras, participa diretamente na
preparação das personagens e a sua marca estilística está presente nos seus
longas metragens de ficção Mortu Nega, Olhos azuis de Yonta, Po di Sangui, Nha
fala e Republica di mininus. Faz-se necessário destacar também a ideia de autoria
pensada por Pierre Bourdieu, no livro As regras da arte (1996), a qual estaria
relacionada com a construção de percursos histórico e social dos agentes
idealizadores do produto, portanto, justifica-se marcar o lugar de fala do autor e
seu percurso biográfico, neste caso, do realizador e roteirista Flora Gomes, que
diante de uma produção padronizada, surge com originalidade ao reunir em uma
película as possíveis marcas autorais, que identificariam seu estilo, não só pela
sua originalidade, “mas sim pela consideração de sua trajetória em relação a um
contexto de relações socialmente postas” (COELHO, 2014: 160). Flora Gomes

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com seu estilo visual, temático, sonoro e seu ritmo, marca a sua personalidade
artística autoral, através de um estilo que lhe é próprio, construído histórica,
cultural e socialmente “uma opção metodológica interessante para enfrentar o
problema dos múltiplos agentes envolvidos na produção cinematográfica”
(COELHO, 2014: 160).

Estilo: fortuna crítica sobre o autor Flora Gomes

A fortuna crítica sobre os filmes de Flora Gomes está espalhada por muitos
países. Entre eles destacam-se Brasil, Guiné-Bissau, Estados Unidos, Alemanha,
Inglaterra, Portugal. Em pesquisas realizadas em acervos físicos e virtuais,
percebe-se que, dos países africanos de língua oficial portuguesa, Flora Gomes é
um dos grandes cineastas de destaque, com muitos trabalhos acadêmicos
publicados sobre seus filmes, com entrevistas publicadas em português do Brasil

165

e de Portugal, em Crioulo, Francês e Inglês espalhadas pelos países citados.


Assim, realizar-se-á uma breve redação sobre o estilo do autor Flora Gomes,
consoante acadêmicos, críticos, jornalistas e o próprio realizador, dado que o
estilo é a liberdade do artista, de um grupo ou de um tipo de discurso, uma forma
de expressão. Não há normas impostas, talvez implícitas e construídas pela
formação cultural, política, educacional, social e econômica. “É também o
conjunto das características singulares de uma obra de arte” (AUMONT; MARIE,
2011: 145). O estilo pode ser coletivo, em um sentido mais global, quando torna-
se instrumento de classificação e generalização; e o pessoal, do indivíduo, que
por conta da sua peculiaridade, especificidade e inovação cria um sistema próprio
de identificação da sua arte. Neste texto, o estilo de Gomes será pensado de
forma particular e restrita à análise de seus filmes, e não em comparação com
outros cineastas, estilos ou épocas.
Ao ler a fortuna crítica encontrada sobre Flora Gomes, conforme referências no
final do texto, percebe-se uma especial atenção ao filme Nha fala, que foi inclusive
objeto de pesquisa de dissertação de mestrado por esta autora, defendida em
2013, evidenciando como o leitor (especialista ou não) fornecerá a ideia de valor

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da arte, o qual será um dos elementos transformadores do cinema em autoral.
No livro Filmes da África e da Diáspora: objetos de discursos, de organização
de Mahomed Bamba e Alessandra Meleiro, publicado em 2012, reunindo textos
de pesquisadores e professores da área dos cinemas africanos, há dois textos2,
sobre o cineasta Flora Gomes, o que demonstra um conhecimento e
reconhecimento da obra do cineasta em análise.
No texto “Utopia, distopia e realismo no cinema de Flora Gomes”, de Denise
Costa, destaca-se a preocupação da autora em relacionar os filmes do realizador
com o seu país de nascimento e as realidades locais, destacando a veia
documentarista de Gomes, nos filmes Mortu nega e Olhos azuis de Yonta, talvez
por conta da sua formação na escola cubana, conhecida por formar grandes

2
O texto “O filme Nha fala: musical guineense de múltiplos trânsitos” de autoria de Jusciele Oliveira e
Fátima Ribeiro, desdobrou-se na pesquisa de mestrado. E o texto supracitado de Denise Costa.

166

documentaristas:

Se Flora Gomes inicia seu trabalho com o cinema documentário, creio, no entanto,
que separar sua filmografia entre cinema documentário e cinema ficcional não é a
melhor maneira de pensá-lo. De fato há com Mortu Nega (1987), seu primeiro longa,
e com Olhos Azuis de Yonta (1992) algo de novo em seu cinema. Mas não uma
ruptura (COSTA, 2012: 226).

Ainda de acordo com Denise Costa, no filme Olhos azuis de Yonta, o “cineasta
recorre a uma ironia que confunde os mais desavisados” (2012: 227), entretanto o
caráter irônico aparece em todos os filmes de Gomes, fazendo parte do seu estilo.
Para Costa, referindo-se aos filmes de 1987 e 1991, são “sempre perpassados por
pitadas de distopias contemporaneamente construídas que revelam o cinema
nada ingênuo do cineasta” (2012: 232).
O investigador uruguaio residente nos Estados Unidos Fernando Arenas, no
capítulo “África lusófona nas telas: depois da utopia e antes do fim da esperança”,
do livro África lusófona: além da independência, expõe o levantamento de
produções de filmes produzidos no continente africano, com especial destaque
para os países africanos de língua oficial portuguesa, ao mesmo tempo

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destacando alguns trabalhos de realizadores portugueses (Pedro Costa e
Fernando Vendrell), por conta das coproduções entre Brasil, Cabo Verde,
Portugal, pelas rodagens em território africano e pela própria temática. O
pesquisador dá particular destaque ao cineasta bissau-guineense Flora Gomes,
sujeito dessa escrita, destacando-o como os cineastas africanos são
considerados “peritos da memória” (Valentin Mudimbe) e “griots modernos”
(Manthia Diawara).

“Ambos rótulos descrevem adequadamente Flora Gomes, que tenta equilibrar seu
compromisso com as culturas nativas de seu país e manter uma visão crítica dos
eventos atuais, assim como das tendências introduzidas pela globalização e seus
impactos, não apenas na sociedade guineense, mas também nas sociedades
africanas de forma geral” (ARENAS, 2017: 22).

Nesta lógica de destacar a cultura do seu país e do seu continente, Augusto


Vilela, apresentando a obra de Gomes, para uma entrevista em 2006, afirma que,

167

nela, “o que mais impressiona (...) é a capacidade de traduzir a genuinidade da


cultura africana numa linguagem universalista que não deixa ninguém indiferente”
(VILELA, 2006: 100). Mas também pode ser “eclético nas suas abordagens
estéticas e ambivalentes face à narrativa realista e a posicionamentos ideológicos
marxistas” (ARENAS; EKOTTO, 2015: 13).
Gomes diz que aprendeu a fazer filme fazendo filmes (OLIVEIRA; ZENUN,
2016). E cada escolha de como filmar trará à tona vantagens e desvantagens, que
são, muitas vezes, resolvidas pela tradição do fazer cinematográfico, as quais o
artista herdará através da prática ao longo de sua jornada cinematográfica,
construindo seu padrão, suas marcas, seus discursos e contra-discursos e seu
estilo. O estilo de Flora Gomes comunica-se com delicadeza, expondo a situação
local e global sem declarações partidárias; evitando métodos fáceis de
interpretação da realidade; com diálogos irônicos, levando o espectador a refletir
e pensar com sua própria cabeça. Gomes carrega o encargo da sabedoria de um
griot e a necessidade de apresentar, nos seus filmes, o seu discurso da memória e
da história da Guiné-Bissau e da África, contra o esquecimento do passado
recente, que vive o mundo, em busca de um mundo múltiplo, colorido, como o

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arco-íris, regado a utopia e ousadia, para ir além do que as mentes e os corpos
ainda colonizados pressupõem, propondo que ousemos ir além das expectativas
criadas para os jovens, quando a morte é a nossa única certeza (Nha fala). Como
“griot da memória”, o cineasta surge como “intermediário que dialoga com os
ancestrais, que liga os mundos” (CÓ, 2009: 106). Não só os mundos dos vivos e
dos mortos, mas os mundos do Norte e do Sul, dos Nós e dos Outros, do erudito
e do popular. Narrando histórias que referenciam sua vida, sua arte, sua cultura,
seu país, como ele mesmo destaca:

Amílcar Cabral é um ponto de referência, assim como todos os guineenses, os


velhos, as mulheres, e sobretudo as crianças com o seu olhar e o seu sorriso quando
brincam – é tudo isto que me liga ao meu país. [...] a Guiné Bissau continuará a ser
sempre a minha referência: o meio, a nossa língua que eu amo tanto – o crioulo, a
nossa dança, a nossa falta de meios. São estes os pontos de referência que me
enriquecem continuamente e que me permitem evoluir, crescer” (FINA, 1995: 46).

168

Marcas autorais na trajetória do cineasta Flora Gomes

Os filmes do realizador guineense contam histórias locais com


desdobramentos globais, já que falam de trânsitos, de música, de mulher, de
crianças, de guerra, de neocolonialismo, de cosmogonia, de vida, de morte, de
amor, de nascimento, de migração, de tradição, de modernidade, de coletividade,
de política; tratam de problemas socioeconômicos, relacionados com o
ecossistema (desmatamento, seca, água). Os seus filmes utilizam como cenário o
espaço natural, ao ar livre: no meio do mato, na guerra, na cidade, no bairro, no
deserto, na tabanka, na rua, na praia, seja na África ou na Europa; com um
discurso irônico, crítico e metafórico, através de diálogos sem muito confronto,
entre as personagens, contudo carregados de simbologias, o que permitem uma
liberdade maior na exploração do texto discursivo, interpretativo e reflexivo. A
seguir, serão exploradas neste texto as marcas discursivas presentes nos cinco
filmes de ficção de Flora Gomes.
Nos filmes de Gomes há trânsitos físicos e culturais em que se destacam as
viagens e caminhadas das personagens, que significam sempre, no contexto da

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sua obra, deslocamento, passagem, movimento e encontro. Interessa
sobremaneira considerar a declaração do cineasta de que em todos os seus
filmes há alguém que viaja, onde as personagens estão a todo instante envoltas
em trânsitos, que passam grande parte dos filmes andando sozinhas ou
acompanhadas, o que é observado em quase todos os seus filmes; como também
o trânsito entre a vida-morte-vida (rituais funerários/ Nha fala; rituais e viagens
iniciáticas/ Po di sangui); e a relação entre tradição e modernidade (Mortu Nega,
Olhos azuis de Yonta, Po di sangui, Nha fala e Republica di mininus).
Outra presença constante, de maneira mais ou menos direta, na obra do
realizador, é o seu país de nascimento. A Guiné-Bissau, país africano de língua
oficial portuguesa, cuja língua mais falada é o crioulo guineense e/ou língua
guineense (SCANTAMBULO, 1999), por mais de 80% da população. A língua
crioula guineense, hoje em dia, é uma língua autônoma, tanto do ponto de vista
gramatical quanto lexical, meio de comunicação entre os falantes de origens

169

culturais mais diversas, desde os tempos coloniais, ganhando dimensões


nacionais ao longo da luta de libertação que é utilizada no cinema pelo cineasta
Flora Gomes desde o início da sua filmografia, especificamente, nos filmes Mortu
Nega, Olhs azuis de Yonta, Po di sangui, Nha fala, As duas faces da guerra3. No
seu último longa-metragem, Republica di mininus, a língua oficial é o inglês, uma
possível exigência do mercado, contudo, segundo Gomes, esta foi uma escolha,
para que o ator Denny Glover não fosse dublado.
A cidade de Bissau é representada e “personificada” no filme Olhos azuis de
Yonta, que se inicia com a canção “Bissau kila muda”, juntamente com a risada de
crianças, através de um travelling, como se estivéssemos dentro de um carro e
fôssemos responsáveis pelo movimento da câmera. O cineasta nos faz passear
pela avenida Osvaldo Vieira, a principal da cidade, que liga o aeroporto ao centro.
A música em Língua guineense vai nos contando a história desta vila, deste povo,
que deseja mudar, ao mesmo tempo que a câmera nos mostra as pessoas, os
carros, o movimento, os sons, o trânsito, o mercado de Bandim, demonstrando
que o cinema e a cidade são um “[...] composto de fragmentos, de pedaços de
realidade ou melhor ainda, de recortes da realidade, que mudam conforme a luz

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ou a angulação” (TAVARES, 2010: 103).
Uma personagem histórica, política e cultural da África e da Guiné-Bissau que
aparece nos filmes é Amílcar Cabral, com o qual Flora Gomes relacionou-se
pessoalmente, conforme já destacado anteriormente em sua trajetória. O filme
Nha fala é dedicado a ele – “Pensando em Amílcar Cabral, pai da independência
da Guiné-Bissau e ilhas de Cabo Verde, assassinado em 1973” –, sendo que este
pai não presenciou a independência do seu país. Amílcar Cabral estará presente
no filme, não só na dedicatória, mas no desenrolar da história e no pensamento de
muitos personagens, através de uma estátua que atravessa espaço e tempo. No
filme Olhos azuis de Yonta, Amílcar Cabral é caracterizado pela criança
Amilcarzinho, irmão de Yonta, representatividade do futuro do seu país. Em Mortu

3
No filme Nha fala, há também o francês como idioma, quando a personagem mora em Paris. E o
documentário As duas faces da guerra tem como idioma também o português de Portugal.

170

nega é anunciada a morte de Amílcar Cabral, pois o filme encena-se no momento


da guerra contra o colonialismo português, em 1973. Já em Po di sangui
representa-se o modelo social e cultural da vivência coletiva pensado por Amílcar
Cabral relacionado principalmente com a cultura local das tabankas, bem como o
ideal político, cultural e social de Cabral está muito presente nas falas e discursos
das crianças, como também do menino-soldado Mão de Ferro, no filme Republica
di mininus e também na representação dos seus óculos, encontrado pela jovem
Nuta, que permitem vislumbrar o futuro, que defendem um discurso de uma
coletividade ou como Cabral denominava “Unidade africana”: “Somos pela
unidade africana, à escala regional ou continental, enquanto meio necessário à
construção do progresso dos povos africanos, e para garantir a sua segurança e a
continuidade deste progresso” (CABRAL, 1974: 16)
Neste sentido, cabe ressaltar que há uma prevalência, nas películas de Flora
Gomes, da coletividade que se sobrepõe ao individual, o que acaba por
relacionar-se com o discurso de Amílcar Cabral e um certo “pan-africanismo
local”, já que prevalece a ideia de que existe uma “guinendade”, um conjunto de
características que identificam o povo guineense, bem como uma tentativa de pôr

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fim aos conflitos étnicos locais, que, em certa medida, foram criados no período
colonial, como forma de desarmonizar os guineenses entre si (separar para
dominar). Situação veemente combatida por Amílcar Cabral e transmitida na obra
do cineasta:

Muito recentemente, além da repressão policial e armada, a administração colonial


utilizou tácticas não violentas – dádivas, subordinações, convites dos ‘chefes
tradicionais’ a Portugal, concessão de bolsas de estudo, emissão radiofónica
especial para os ‘indígenas’, criação de dissidências e de querelas entre os
diferentes grupos étnicos – a fim de conquistar uma parte da população e de ‘dividir
para reinar’ (CABRAL, 1974: 19).

Na Guiné-Bissau, apesar de as mulheres serem responsáveis por grande parte


da economia agrícola do país, que corresponde a 52% da população, a sua
participação na política, na educação, na cultura e nas tomadas de decisão, no
entanto, ainda é reduzida (SEMEDO, 2007). Cabe destacar que as mulheres

171

também não são reconhecidas historicamente, pois muitas participaram das lutas
de independência e ganharam prestígio e fama pela sua bravura; contudo
continuam esquecidas nos livros, como Titina (Ernestina) Silá que “é considerada
uma heroína da luta nacionalista e uma mártir da guerra colonial, durante a qual
morreu, no campo de batalha, lutando contra o exército português” dez dias
depois do assassinato de Cabral, também assassinada numa emboscada
(BORGES, 2007: 79).
O silenciamento, em geral, da mulher africana e da bissau-guineense em
particular, faz com que o cineasta ressalte a mulher nos seus filmes, restaurando-
lhes a voz. No filme Mortu nega a personagem Diminga é, literalmente, uma
guerreira, que ajuda os companheiros de luta a carregar armamento para outros
sítios, na guerra colonial, sendo responsável pela plantação e pelas tarefas
domésticas; Yonta (Olhos azuis de Yonta) é o símbolo da beleza africana, que
trabalha e luta pelos seus ideais no dia-a-dia; as várias mulheres que movimentam
a tabanka Amanha Lundju (Po di sangui), especialmente a mãe dos gêmeos (Homi
e Du), que resolve não cumprir a tradição e sacrificar uma criança; Vita (Nha fala)
ganha uma bolsa de estudos para estudar na França, trabalha fora de casa como

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cantora e ganha muito dinheiro, fugindo do papel/lugar tradicionalmente atribuído
à mulher no país, e, finalmente, a jovem Nuta (Republica di mininus) que também
foge dos padrões, pois é médica e tem o poder de ver o futuro, através dos óculos
que herda de Dubem (Danny Glover). Gomes, assim, foge do lugar-comum de
mulher bissau-guineense e africana, como única, apresentando-nos uma
pluralidade de mulheres, que fogem do afro-pessimismo projetado sobre o
continente, numa tentativa constante de descolonizar as mentes dos seus
espectadores, esperando sempre que “tentem fazer um esforço para
compreender o outro [...] Ah, é um filme ‘africano’, é muito complicado, muito
diferente” (FINA, 1995: 44).
A música e a dança são de fundamental importância nas culturas africanas,
porque é uma forma de celebrar, festejar, comemorar: “A dança e a música
acompanham todas as celebrações do povo africano, sejam elas públicas ou
privadas, e com uma diversidade tão numerosa quanto os povos que forma a

172

geografia humana do vasto continente” (RIESCO, 2012: 105). Normalmente, os


filmes possuem sons, diálogos e falas característicos da trilha sonora, expressão
relacionada com todos os sons produzidos no filme ou na produção audiovisual.
Contudo, na contemporaneidade a trilha está especialmente vinculada às músicas
dos filmes, compostas exclusivamente para o filme ou não.
A trilha sonora é uma marca e grande preocupação do cineasta Flora Gomes,
porque de acordo com crítico brasileiro Ismail Xavier, a trilha sonora, assim como
outros aspectos estéticos, tem um enorme efeito no espectador sendo capaz de
provocar emoções como a alegria, a tristeza e o medo (2008). A trilha do filme
Olhos azuis de Yonta foi gravada por Adriano Atchutchi e outros membros do
grupo original guineense Super Mama Djombo. A trilha do musical Nha fala,
composto de oito músicas originais, é assinada pelo músico e saxofonista
camaronês Manu Dibango. No seu último longa, Republica di mininus, no qual “a
música é uma personagem, [e] serve para ilustrar o filme” (GOMES, 2013), quem
assina a trilha sonora é o músico senegalês Youssou N’ Dour. Nesta perspectiva,
afirma Beatriz Leal Riesco, no texto “A caminho de um amadurecimento na
utilização da música no cinema africano: Sembene, Sissako e Sené Absa”, que a

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musicalidade tem um papel subversivo, que se utiliza também para combater
estereótipos, que são aceitos. Por isso “[a] partir da música, conhecer a realidade
africana há tanto silenciada se apresenta como uma tarefa fundamental porque
reveladora” (2012, p. 109).
David Murphy e Patrick Williams, no livro Postcolonial african cinema: ten
directors, elegem como um elemento primordial na obra de Gomes o “retorno à
origem” (2007: 136). Os dois autores assinalam o foco, que relaciona tradição e
modernidade em sintonia com os ideais de Amílcar Cabral, elencando autores que
criticam positivamente o retorno às origens como um movimento totalmente
positivo, como forma de mudar a visão de selvageria que é construída e divulgada
sobre a África, ao lado de críticas negativas sobre o cinema de origem dos
cineastas, que deixam de lado os problemas contemporâneos do continente
(2007: 138-139), idealizando uma África primordial berço da humanidade, mítica,
tradicional e distante. Evitando “cair na tentação condescendente da exceção ou

173

da tradição imutável que deve ser respeitada e vista como uma peça de museu,
inerte” (TAVARES, 2013: 469).
Murphy e Williams concluem que, para Gomes “modernidade e tradição são
inseparáveis 4 ” (2007: 141) e esta relação estará presente principalmente nos
filmes Mortu nega, Po di sangui e Nha fala, sendo que neste último destacam-se
elementos das relações entre tradição e modernidade na África do século XXI. Por
sua vez, dentro dessa perspectiva de relação entre modernidade e tradições (no
plural para marcar a diversidade cultural da Guiné-Bissau, bem como do
continente africano), Flora Gomes parece acreditar que a África tem duas faces:
uma virada para o passado, a outra para o futuro, incialmente mostradas em
contraponto e, no entanto, tornadas inseparáveis e passíveis de contemporização,
nos sentidos de conjugação e simultaneidade. A África é um continente
constantemente dividido entre peso das origens e a força do desejos, entre a
colonização e a independência, entre as tradições e a modernidade, como se as
personagens procurassem a conciliação e compatibilização dos dois lados com
elementos das duas partes, ressaltando-se que a leitura não é de contraposição
(tradição versus modernidade), mas sim de conciliação e em alguns momentos de

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“negociação” de uma modernidade africana, como pode-se perceber no ritual de
pedido de chuva, realizado pela personagem Diminga (Mortu nega); ou no pedido
de casamento tradicional, realizado pelos mais velhos das famílias, no qual um
jovem manifesta-se acrescentando a cabaça com os presentes um preservativo,
demonstrando a preocupação com a AIDS/SIDA, como também realiza-se o
casamento tradicional e o casamento no civil (Olhos azuis de Yonta); ou como o
nascimento dos irmãos gêmeos Homi e Du (Po di sangui), no qual um deles
deveria ter sido sacrificado, entretanto a mãe divide o nome destinado a um filho
em dois, transmutando com a tradição a vida de seu filho; ou a realização do ritual
fúnebre de Vita, para satisfazer a tradição familiar, que ela descumprira ao cantar
(Nha fala); ou ainda a passagem simbólica do óculos do Homi-garandi (idoso)

4
“For Gomes, modernity and tradition are inseparable” (2007, p. 141). Todas as traduções do texto
foram realizadas pela autora.

174

Dubem para a jovem Nuta, representando a convivência e negociabilidade da


tradição na contemporaneidade africana (Republica di mininus).
Nos filmes de Gomes, há também uma preocupação em apontar a forma de
pensar, ver e sentir o mundo dos guineenses e africanos, como na união entre os
vivos, os mortos e os por nascer, que faz parte da cosmovisão destas pessoas,
pensada como aquilo que cada pessoa é pelo que defende e vive, o que permeia
sua vida em circularidade e sem dualidades ou dicotomias, diferentemente da
cosmovisão ocidental cristã e cartesiana prevalente, que separa as coisas e os
mundos em categorias antinômicas. Tal imaginário cultural tem firme ancoragem
na tradição oral, pilar de culturas africanas e negras, em termos de construção,
destacada por Hampaté Bâ (2010), enquanto “tradição viva”. A diferença para
com a razão ocidental cindida e contraposta ressalta os sentidos da continuidade
e da contiguidade de elementos, dimensões e momentos.
Continuidade que nos é apresentada pelo cineasta através das crianças,
juntamente com suas risadas, presença constante nos filmes do realizador, que
normalmente são exibidas no écran brincando e felizes, ou indo para a escola,
demonstrando que a educação formal seria a possiblidade de mudança da própria

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situação da criança e do futuro, já que estas representariam o futuro do país, da
nação, do mundo. A partir da perspectiva das crianças o cineasta permite-se
fantasiar a realidade e inventar o mundo, como nas falas de Amilcarzinho (Olhos
azuis de Yonta). As crianças são tão usuais na obra do cineasta, que culmina com
o filme representado quase que exclusivamente por crianças, como Republica di
mininus.
O cineasta Flora Gomes, através de sua filmografia diversa, a qual é objeto de
inspiração, admiração e pesquisa, que possibilita assim continuidade a
descobertas acadêmica, cinematográfica e cultural sobre a Guiné-Bissau e o
continente africano, que por meio de seus finais metafóricos e utópicos, que
possibilitam múltiplas leituras e interpretações, pois, segundo o próprio autor,
apresentando-nos outra marca autoral, “[...] nos meus filmes nunca haverá a
palavra FIM, porque nos meus filmes não têm fim, continuam... a viver, a lutar”
(1995:49).

175

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Publicada em 16 mai 2013, por Roni Nunes. Disponível em:
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V OL . 5, N. 2 • REBECA 10 | J UL HO - D EZEM BRO 2016

Submetido em 28 de agosto de 2016 | Aceito em 17 de janeiro de 2016

180

Sobre a colonialidade do pensamento em imagens e a


reinvenção da negritude no Fespaco:
maior festival de cinema africano

Maíra Zenun de Oliveira 1

V OL . 5, N. 2 • REBECA 10 | J UL HO - D EZEM BRO 2016


1
Maíra Zenun de Oliveira é Bacharel em Ciências Sociais pela UFRJ. Em 2007,
concluiu o Mestrado em Sociologia pela UnB, com a dissertação “Os intelectuais
na terra de Vera Cruz: cinema, identidade e modernidade”. Em 2014, ingressou no
Doutorado em Sociologia pela UFG e, desde então, desenvolve pesquisa sobre o
cinema negro africano no FESPACO (Festival Pan-Africano de Cinema e Televisão
de Ouagadougou). Em 2015, realizou estágio sanduíche (PDSE/CAPES), na
Universidade Nova de Lisboa (UNL). Entre 2010 e 2015, participou como
investigadora e produtora de imagens do TRANSE/UnB – Núcleo Transdisciplinar
de Estudos sobre a Performance. E desde 2014, colabora com o FICINE – Fórum
Itinerante de Cinema Negro.
e-mail: mairazenun@yahoo.com.br

181

Resumo

Desde 1973, acontece em Burkina Faso, África Ocidental, o Festival Pan-Africano de Cinema e
Televisão de Ouagadougou (FESPACO). Trata-se do maior e mais antigo evento audiovisual que ocorre
em África, incluindo a exposição, premiação e discussão de filmes produzidos em todo o continente
africano e seus territórios diaspóricos. Tal evento-ritual foi concebido por líderes burkinabés da
revolução anticolonial dos anos 1960, que perceberam no cinema uma forma de luta e libertação. A
manutenção de um festival tão grande se justifica, segundo organizadores do FESPACO, em função da
enorme necessidade que os países africanos sentem de desconstrução das imagens e memórias
produzidas pelo sistema-mundo colonial capitalista sobre a África e suas populações. Imaginário
perpetrado diante do perverso e sólido legado afetivo e sensorial criado pelo sistema colonial.
Portanto, neste artigo, apresento a discussão que venho desenvolvendo desde 2014, como projeto de
pesquisa de doutorado em Sociologia do Cinema, na qual investigo o papel do FESPACO no processo
de fortalecimento de um cinema africano que se propõe a descolonizar representações e discursos
produzidos sobre o continente.

Palavras-chave: Cinema Negro; Teoria Decolonial; Autorrepresentação; Pan-


Africanismo.

Abstract

V OL . 5, N. 2 • REBECA 10 | J UL HO - D EZEM BRO 2016


Since 1973, takes place in Burkina Faso, West Africa, the Pan-African Film and Television Festival
of Ouagadougou (FESPACO). It is the largest and oldest audiovisual event in Africa, including the
exhibition, awards and discussion of films produced throughout the African continent and its diasporic
territories. It is a ritual event conceived by Burkinabé leaders of the anti colonial revolution of the 1960s,
who perceived in the cinema like a form of struggle and liberation. The maintenance of a festival with all
this expansion is justified, according to organizers of FESPACO, due to the enormous need that the
African countries feel of deconstruction the images and memories produced by the colonial-capitalist
world system, on Africa and its populations. Imaginary perpetrated by the perverse and solid emotional
and sensorial legacy created by the colonial system. Therefore, in this article, I present the discussion
that I have been developing since 2014, as a PhD research project in Sociology of Cinema, in which I
investigate the role of FESPACO in the process of strengthening an African cinema that proposes to
decolonize representations and discourses produced about the continent.

Keywords: Black Cinema; Decolonial Theory; Self-representation; Pan-


Africanism.

182

Introdução

No Brasil, em sua grande maioria, as representações que aparecem no cinema


sobre a população negra, quando existem, ainda são depreciativas, pejorativas.
Narrativas imagéticas que, infelizmente, tendem a resumir qualquer traço de
negritude a um conjunto de estereótipos de subordinação e inferioridade
(DAMASCENO, 2008). Sobre o porquê dessa questão, é possível elencar uma lista
de fatores – técnicos, discursivos, fotográficos, de direção, representação e
propaganda, que em muito contribuem para que assim ocorra. Contudo, ouso
iniciar a discussão chamando a atenção para um único ponto que, a meu ver, e
endossada por uma extensa bibliografia, é o que melhor explica esse inventário de
problemas na construção e/ou ausência de representações imagéticas sobre
negritude no Brasil.
Eu me refiro ao Racismo, sistemático e recorrente. Que afeta desde o pensar
até a produção, realização, distribuição e consumo de qualquer imagem/discurso.
Afinal, como procuro justificar ao longo desta escrita, é na lógica euro ocidental de
superioridade, referenciada na cultura da colonialidade, que está o motivo de
perpetuação de uma série de apagamentos e subalternidades – moral, subjetiva,
estética, intelectual – ligadas à questão racial. Todas elas atribuídas às imagens e
às histórias contadas pela própria indústria do cinema euro ocidental sobre as
populações que foram colonizadas. Povos que, desde o início do processo
colonial, foram entendidos como sociedades culturalmente inferiores, por não
serem brancas e civilizadas.
Ocorre que, no decorrer dos últimos quinhentos anos, grandes contingentes
populacionais africanos foram violentamente obrigados a migrar de suas casas,
para lugares como o Brasil. Esse fenômeno teve início juntamente com a
instauração do maior sistema europeu de exploração humana, conhecido como
escravidão colonial (MBEMBE, 2014). Executada por séculos e em moldes de
barbaridade nunca antes vivenciados pela humanidade, a escravidão foi um tipo
de modo de produção que provocou um estrago desmedido e incontornável ao
continente africano; mas que, ao mesmo tempo, foi extremamente lucrativo –

política e ideologicamente – para o projeto de concepção da Europa Ocidental1.


Em seu Discurso sobre o colonialismo (1977), Aimé Césaire denuncia tal
projeto, como tendo sido a pior e mais desgraçada invenção europeia, baseada na
eliminação, dominação, coisificação e exploração de certa mão de obra. Essas
ideias estão expostas no pensamento de diversos intelectuais dos séculos XVI,
XVII e XVIII, como por exemplo, Lapouge, que disse:

Sob o ponto de vista de selecção, consideraria deplorável o desenvolvimento


numérico muito grande dos elementos amarelos e negros que seriam de eliminação
difícil. Se, todavia, a sociedade futura se organizar numa base dualista, com uma
classe dolico-loira dirigente e uma classe de raça inferior confinada à mais grosseira
mão-de-obra, é possível que este último papel incuba aos elementos amarelos e
negros. Neste caso, aliás, não seria um embaraço, mas uma vantagem para os
dolico-loiros... É preciso não esquecer que (a escravatura) nada tem de mais anormal
que a domesticação do cavalo ou do boi (apud CÉSAIRE, 1977, p. 34).

No intuito de explicar porque o racismo não cessa, autores da Teoria


Decolonial sugerem que isso está ligado à perpetuação de muitas das estruturas
coloniais políticas e econômicas, no atual modelo capitalista globalizado. De
maneira que não seja possível se dar conta destas continuidades: entranhadas
nas práticas e nas relações de trabalho e produção atuais. A ponto de, mesmo
com o fim do tráfico escravista, o fluxo intercontinental de pessoas para atender
determinados mercados e parques industriais não ter desacelerado. Pelo
contrário, atingiu níveis globais e transformou-se em um importante, e muitas
vezes trágico, fenômeno social experimentado pelas sociedades contemporâneas.
Por conta desse impacto, tão profundo, a repercussão das dinâmicas
provocadas por tantas migrações forçadas volta e meia tem sido tema entre os
filmes exibidos e premiados pelo FESPACO – Festival Pan-Africano de Cinema e

1
Quando no texto, refiro-me à Europa, estou indiretamente fazendo alusão a essa Europa do projeto
político e ideológico ocidental, que atribui a si uma legitimidade assegurada na tradição inventada
sobre o pensamento branco. E que tem nos Estados Unidos sua principal alegoria, instituída na
definição do ser pelo ter, no apelo ao consumo e enraizamento das ideologias liberal e individualista
(CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEl, 2007).

Televisão de Ouagadougou. Maior festa africana dedicada ao audiovisual africano


e afrodiaspórico2, que acontece ininterruptamente há mais de quarenta anos em
Ouagadougou, capital de Burkina Faso. Evento-ritual que surge no pós lutas
anticoloniais, concebido por burkinabés que perceberam no cinema uma forma de
luta e libertação. Cabe ressaltar que o FESPACO foi publicamente elaborado a
partir de premissas da ideologia pan-africanista, no intuito de criar um espaço
próprio para o cinema negro3 africano, que fosse capaz de abarcar e potencializar
a produção de novas narrativas e representações imagéticas sobre e para as
culturas negras africanas.
De qualquer modo, os filmes africanos, feitos por pessoas africanas, são obras
de arte que nascem da necessidade que esses povos sentiram de construir
representações sobre si e sobre o mundo, após a nefasta experiência do sistema
colonial. Arte e discurso que encontram no FESPACO um eixo importante de
fortalecimento e renovação para a própria imagem do corpo negro e suas
histórias. Diante disso, para este artigo, apresento uma breve discussão sobre o
papel do cinema na luta contra a colonialidade do saber, a fim de problematizar
qual teria sido o discurso por trás da criação do FESPACO, sobre o papel que o
festival teria na manutenção/valorização de um cinema negro africano.

O papel do cinema na luta por (auto)representação

Em Lisboa, Portugal, 2015 foi um ano interessante para quem esteve vivendo
na cidade e estuda questões relacionadas ao cinema e à África, como eu4. A data

2
São territórios diaspóricos do continente africano todas as regiões territoriais afetadas com a
chegada da população africana escravizada pelo sistema colonial.
3
Sobre cinema negro, há dois documentos brasileiros importantes: o Manifesto de Recife e o Dogma
da Feijoada. O cineasta guineense Flora Gomes, em entrevista concedida sobre a universalidade de
sua poesia fílmica, garante que nunca olhou para a sua cor como fator limitador. Pelo contrário, a
negritude de sua natureza africana, ajuda-lhe muito a compor. (OLIVEIRA; ZENUN, 2016).
4
Durante 2015, estive em estágio doutoral sanduíche no exterior, alocada em Lisboa, Portugal. Nesse
tempo, estive vinculada ao Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), da Faculdade de

marcou a passagem dos quarenta anos desde o fim das lutas por independência,
nos países africanos colonizados pela ex-metrópole. Respectivamente: Angola,
Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Esses, aliás,
foram os últimos países em África a romper com o regime de dominação colonial,
tamanha foi a máquina militar administrativa e ideológica do sistema colonial
português.
Tal marco histórico, não por acaso, ocorreu juntamente com o florescer de um
cenário interessante na cidade de Lisboa, e que teve a questão dos quarenta anos
como pano de fundo. Durante 2015, os debates sobre as independências, em
muito, coincidiram com um enorme interesse dos movimentos sociais africanos e
afrodescendentes por temas relacionados à colonialidade, enquanto modus
operandi ocidental. Foi também um ano premiado por diferentes eventos
acadêmicos e diversas produções e apresentações artísticas voltadas para
questões ligadas à afrodescendência e ao continente negro.
Afinal, como bem salientou certa vez António Costa, atual primeiro ministro
português, a África é um desafio enorme e prioritário para Lisboa, devido à grande
presença africana na cidade – responsável pelas maiores comunidades imigrantes
na capital do país. Na apresentação do livro Cinema Africano: novas formas
estéticas e políticas, António Costa diz que Lisboa tem sido um importante lugar
de cruzamento entre Europa e África, servindo de ponte intercultural e de diálogo.
Uma presença invisibilizada, mas que precisa ser revista, segundo o primeiro
ministro (DIAWARA; DIAKHATÉ, 2011).
Diante desse panorama, não se pode negar o protagonismo desempenhado
pelo cinema na agenda dos quarenta anos na ex-metrópole. Houve espaço para
mostras, discussões e debates organizados para e por artistas e ativistas
africanos e afrodescendentes. Pessoas que, direta ou indiretamente, estavam
interessadas em como o cinema tem se relacionado com os processos de
(re)construção das identidades culturais africanas e afrodescendentes. Tanto

Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, sob orientação da professora doutora
Catarina Alves Costa.

dentro do continente, quanto em territórios diaspóricos, como Brasil e Portugal.


De fato, falar sobre essa produção audiovisual é referir-se a um dos maiores
mercados de filmes do mundo, que já há muito cumpre um importante papel, de
descolonizar mentes em África. (GABRIEL, 2000).
E por que o cinema seria algo tão importante nesse processo? Qual a sua
relevância? Suas especificidades? Trata-se, na verdade, de um conjunto de
atributos, que transformam uma técnica, a da reprodutibilidade de 24 fotogramas
por segundo, em arte e consumo. Isto porque, há no cinema algo mágico, que
surpreende e capta a atenção de quem o assiste, devido a essa capacidade,
mecânica, de induzir/reproduzir sensações, movimentos, afetos. Sem contar o
fato de que se trata de uma indústria (a do cinema mainstream) que pode ser
comparada ao PIB total de alguns países, tamanha a sua capacidade de produção
coletiva (MELEIRO, 2007). Funcionando, portanto, como um tipo de arte a ser
comprada, adquirida, em atividades que envolvem o mercado de imagens e de
discursos.
Vale pontuar que, diante da riqueza de possibilidades e poder de difusão, em
muito o cinema foi bastante utilizado pelos regimes coloniais para “educar” e
“civilizar” os nativos, aos moldes europeus (OLIVEIRA, 2016). Trata-se de um tipo
de tecnologia, aliás, que somente recebeu apoio e credibilidade, diga-se de
passagem, em função da sua capacidade científica de criar representação e
produzir memória (BENJAMIN, 2012). Por conta disso, até meados da década de
1960, os filmes feitos sobre o continente traziam apenas representações que
apresentavam a negritude de suas identidades como sendo algo selvagem,
atrasado e sem história (DAMASCENO, 2008). Como herança desse sistema, a
memória cinematográfica mais disponibilizada no mercado mundial sobre África e
suas populações negras, até o final do século XX, foi aquela produzida por
profissionais que não eram nascidos ou criados sob as premissas das culturas
africanas.
Uma desvantagem considerável, se atentamos para a questão da legitimidade
das histórias e memórias, quando da falta de autorrepresentações para a
construção dos imaginários sociais. Não é de se estranhar, portanto, o enorme

impacto da lógica euro centrada de interpretação sobre o corpo negro, nas formas
de representação imagética produzidas e consumidas no Brasil, por exemplo. Eu
me refiro aos grandes meios de comunicação, que vendem corpos negros
perfurados em seus telejornais e novelas, para mais de 2,5 milhões de domicílios
espalhados por todo o país, diariamente5. Afinal, trata-se de uma sociedade cuja
história está diretamente atrelada/afetada pela escravidão colonial – fator que
impõe toda uma especificidade a essa população tão marcada pela mentalidade
colonial. E que, no audiovisual, resulta na recorrente (re)produção, pela indústria
cultural, de narrativas altamente racializadas e inferiorizantes sobre a população
negra.
Já os filmes produzidos em África, pelos africanos, desenvolveram-se a partir
de um cenário semelhante, porém distinto, como pretendo demonstrar ao longo
do texto. Isso porque as elites (e os cinemas) em África e nas diásporas, embora
próximas e cúmplices no processo histórico da escravidão colonial e de
manutenção dos privilégios da branquitude, possuem algumas diferenças de
consolidação 6. O tráfico atlântico produziu muitas violências e fissuras na vivência
e humanização das populações negras, mas talvez uma das mais profundas seja
aquela causada no sentimento de pertença e parentesco entre as filhas e filhos do
continente, em oposição às filhas e aos filhos da diáspora. O que criou, para as
populações desterradas, outros vínculos, outros modos de se relacionar com a
negritude.
Portanto, enquanto técnica, desenvolvida pela cultura euro ocidental, o cinema
tem sido usado para várias possibilidades – econômicas, sociais e políticas. Entre
elas, como instrumento de educação e/ou fonte de entretenimento popular.

5
Dados do IBOPE 2009, sobre o alcance da televisão, entre as famílias brasileiras. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/850692-ibope-mostra-que-volume-de-espectadores-da-tv-
aberta-nao-encolheu.shtml>. Acesso em: 13 out. 2016.
6
Sobre o processo de industrialização da cinematografia brasileira, nos anos 1950, desenvolvi a
pesquisa de mestrado a respeito da Cia. de Cinema Vera Cruz, em que tratei de relacionar em uma
mesma discussão cinema, identidade e modernidade. (ZENUN, 2007).

Intencionalmente disposta a refletir, representar e afetar as sociedades (RAMOS,


2005). Nesse sentido, o FESPACO, ao menos em nome e teoria, sempre foi um
projeto assumidamente político, tendo por base de organização o arquétipo
ideológico que sustenta o Pan-africanismo.
Sobre essa corrente de pensamento, ela surge como um sentimento de
solidariedade entre indivíduos negros deportados para as Américas, no quadro do
tráfico transatlântico. Entretanto, apesar de ter nascido na diáspora, o seu
conceito político – enquanto noção de unidade dos povos africanos em relação a
um projeto comum –, existe em África desde o período dos reinos e impérios
saelo-sudaneses. (M’BOKOLO, 2011). E, segundo literatura inaugural do Pan-
africanismo, pensar a África a partir de uma unidade política não tem por objetivo
anular as identidades de cada grupo étnico. Ao contrário, fortalece todos,
inclusive aqueles descendentes violentamente espalhados pelo mundo a partir da
escravidão, para que houvesse o desenvolvimento cultural, científico e econômico
da Europa.
Em termos de estratégia e filosofia política, em uma perspectiva também
decolonial, o Pan-africanismo (essencialmente) busca fortalecer uma ideologia
própria para o continente africano conforme a trajetória histórica das populações
negras. Na intenção de, enfim, conquistar uma libertação alternativa. O que, para
o cinema, reverbera no FESPACO – evento-ritual voltado exclusivamente para a
produção interna e afrodiaspórica. Demonstrando, afinal, o papel do cinema na
luta africana por autorrepresentação. Fato é que, desde a sua inauguração, o
FESPACO proclama ser um festival pan-africanista de cinema, na função de servir
de palco para as diferentes filmografias produzidas no continente, cada qual
sendo tratada como uma economia política endógena distinta. Mesmo que
estejam todas elas reunidas sob o signo aglutinador de um cinema continental,
negro, africano.
Segundo Nei Lopes (2004), foi em 1945, no congresso de Manchester (EUA)
organizado por Du Bois, que o Pan-africanismo se transformou em movimento
social. A partir desse momento, houve também uma ressignificação da ideia de
negritude, de ordem afirmativa. Afinal, a categoria já existia, era preciso apenas

reinventar a sua concepção. E da mesma forma que a Europa inventou uma África
na Conferência de Berlim 7 , o Pan-africanismo assume como principal objetivo
fomentar a ideia de que ter o corpo negro significa pertencer a um único povo, de
origem africana. Portanto, o Pan-africanismo surge na intenção de romper com o
esquema de dominação mental do colonialismo – que somente atribui glórias aos
povos europeus –, a fim de descolonizar o pensamento das populações afetadas
pela escravidão, dentro e fora do continente.
Diante disso, faz parte do exercício decolonial conhecer as histórias que
contam sobre o trânsito das populações negras, dentro e fora do continente, sob
a ótica dessas populações. Pois, mesmo tendo em vista que as noções negro e
branco foram inventadas, fabricadas, não se trata de negar a identidade negra.
Porque ela já está posta e enraizada. A questão é questionar tudo o que lhe é
atribuído. Para tanto, no caso do Pan-africanismo, foram desenvolvidas uma série
de ações no intuito de fomentar uma nova consciência a respeito da raça negra8,
dentro e fora da África. Entre elas, o FESPACO, que abriu um espaço que antes
não existia, de divulgação e fomento, para imagens totalmente diferentes
daquelas tão difundidas pela perspectiva de uma educação articulada à
colonialidade.

7
A Conferência de Berlim aconteceu entre novembro de 1884 e fevereiro de 1885 e teve a participação
da Grã-Bretanha, França, Espanha, Portugal, Itália, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Estados Unidos,
Suécia, Áustria-Hungria e Império Otomano (antiga Alemanha). Com o objetivo estabelecer as regras
de ocupação da África pelas potências coloniais. O que resultou em uma divisão territorial absurda,
que não respeitou nenhum critério histórico ou étnico entre as populações do continente africano.
(MAGNOLI, 2008).
8
Sobre a categoria RAÇA, ao levar em conta o desenvolvimento do campo sociológico sobre as
relações étnico-raciais, entendo que esse conceito deve ser trabalhado a partir da noção de que se
trata de uma expressão meramente linguística. Expressão esta que ainda serve para designar
diferenças de ordem fenotípica e culturais; posto que, em termos biológicos, os humanos seriam um
produto do ambiente cultural, sendo esse o fator gerador da diversidade humana, mais do que a
questão genética.

A decolonialidade do saber e o cinema

Descolonizar o pensamento, o saber sobre as coisas, para enfim descolonizar-


se do poder das coisas sobre a humanidade e a vida, trata-se de uma estratégia
árdua de luta e sobrevivência. Árdua, porém possível. Digo assim, pois esse é um
tipo de interesse epistêmico que não pode ser chamado de totalmente novo,
mesmo que tenham decorridos tão poucos anos desde o fim do colonialismo
formal. Questionar os prejuízos humanos provocados pelo tipo de exploração
promovida pela Europa durante o colonialismo é algo que já se faz há muito
tempo. Eu me refiro a toda uma gama de pensamentos voltada para a crítica e a
ruptura com os paradigmas europeus de racionalidade e conhecimento. E que, de
acordo com Walter Mignolo (2007), data do século XVI. Um tipo de reação
imediata, eu diria. Segundo o autor,

[…] o pensamento decolonial emergiu com a própria fundação da


modernidade/colonialidade, como sua contrapartida. E isso ocorreu nas Américas,
no pensamento indígena e no pensamento afro caribenho; logo continuou pela Ásia e
África, sem relação com o pensamento decolonial nas Américas, mas sim como
contrapartida da reorganização da modernidade/colonialidade do império britânico e
o colonialismo francês. Um terceiro momento ocorreu com a intersecção dos
movimentos de descolonização na Ásia e África, concorrentes com a guerra fria e a
liderança ascendente dos Estados Unidos. Desde o fim da Guerra Fria entre os
Estados Unidos e União Soviética, o pensamento decolonial começa a traçar a sua
própria genealogia. (MIGNOLO, 2007, p. 27).

Ocorre que, graças à própria eficácia da colonialidade do saber, desde a sua


origem, o pensamento decolonial vem sendo metodicamente invisibilizado e
reprimido. Posto que, qualquer legitimação de um outro-diferente deslocava
radicalmente da lógica moderna de organização social e do imaginário dominante
que definia apenas a exploração colonial como correta e normal. E foi sobre esse
outro, não branco – acusado de ser sem escrita, sem história, sem ciência, sem
memória e moral –, que se abateu o mito da civilidade europeia (CÉSAIRE, 1977).
Cabendo apenas às populações brancas, determinadas por elas mesmas, em atos
de autorrepresentação, o lugar de sociedades superiores e desenvolvidas,

localizadas no topo da pirâmide evolutiva. Hábeis empreendedores, diriam alguns.


Contudo, é evidente que esse projeto tão repressor e megalomaníaco não poderia
existir sem que houvesse reações.
A história do Ocidente não é, portanto, uma história de dominações e
passividades, apesar de o sistema-mundo capitalista colonial (CASTRO-GÓMEZ;
GROSFOGUEL, 2007) ter como principal estratégia a violência e o controle social
do indivíduo. Pelo contrário, houve desde a integração de subalternizados ao
projeto até a rejeição completa e o enfrentamento – político, econômico e
intelectual – desse modelo. Ocorre que, o pensamento decolonial, transgressor,
tem surgido sempre nos espaços de fronteira (física e imaginária) do sistema-
mundo. Cenários marcados pelas contradições econômicas e políticas geradas
das desigualdades sociais impostas pelo colonialismo e mantidas no capitalismo.
De fato, tem sido um exercício epistêmico pouco simples traduzir a eficácia de um
sistema tão bem engendrado, quase invisível, e balizado na hierarquização racial
das culturas. E também em uma prática política menos simples ainda, que tem
sido historicamente perseguida e censurada.
Quando pulo direto para o pensamento social do século XX, período em que o
capitalismo deu inúmeras provas de incompetência e desgaste, é impressionante
a quantidade de autores convencidos de que é preciso romper com a
colonialidade do colonialismo, que se mantém até os dias de hoje, como veremos
mais a diante. Muitos pensadores, como Aimé Césaire, Frantz Fanon e Paulo
Freire, desenvolveram importantes trabalhos sobre a necessidade de se desfazer
do vínculo com a modernidade do saber e passaram a questionar muitas das
“verdades” produzidas e representadas no bojo do pensamento das ex-
metrópoles.
Entretanto, foi especialmente a partir das décadas de 1960/70 que, não por
acaso, tais referências proliferaram. Esse foi um momento decisivo para o
continente africano e territórios diaspóricos, por conta das lutas de libertação
colonial. Nesse período, surgem a Teologia da Libertação, a Teoria da
Dependência e os Estudos Culturais. Autores como Stuart Hall e Raymond
Williams foram fundamentais para a compreensão da cultura enquanto

instrumento de dominação. Foi também nessa época que muitos pesquisadores


desenvolveram os Estudos Pós-Coloniais e os Estudos Subalternos, entre eles
Homi Bhabha, Edward Said e Gayatri Spivak. Trabalhos indispensáveis, diga-se
de passagem, para a consolidação posterior de uma teoria nomeadamente
Decolonial. Essa sim, responsável por um importante giro epistêmico, que floresce
na América Latina e se expande, tendo em vista a conjuntura das relações de
poder – entre centros e periferias –, no final de século XX, início de século XXI.
As ideias que circundam o conceito de decolonialidade, portanto, estão muito
presentes no pensamento negro contemporâneo. Autoras e autores, como W. E.
B. Du Bois, Oliver Cox, Cedric Robinson, Eric Williams, Angela Davis, Zora Neale
Hurston e bell hooks, estão escrevendo em articulação com novas propostas de
imagens e representações sobre as populações negras. E é interessante como
pensamentos decoloniais têm, obviamente, respingado no campo do cinema
negro africano, como se vê nas telas dos filmes. Cabe mencionar que Ousmane
Sembène (1923-2007), considerado o pai do cinema africano, chegou a ler muitos
desses autores (BARLET, 2000). E também por isso, defendia o imperativo de
romper com o que o cinema euro ocidental produzia sobre a África e suas
negritudes. Inclusive, no âmbito da etnografia cinematográfica francesa9.
Desse modo, é importante perceber porque esse não é um tipo de pensamento
recente. Tampouco, trata-se de um caminho analítico orientado por um conjunto
único de categorias. Afinal, há sempre muita coisa em disputa. Entretanto, como
não pretendo resolver a questão daquilo que há sobre os termos e as estratégias
que compõem esse quadro analítico, faço aqui uma breve explanação a partir da
minha própria escolha teórico-metodológica. Que em muito tem a ver com a
maneira como percebo a relação entre os conceitos de modernidade,
colonialismo, colonialidade, ruptura e cinema. E também de que forma eu
entendo como tudo isso afeta tanto a produção de cinema em África, quanto a
questão da representação das populações negras pelo mundo.

9
Sobre, consultar artigo em que Ousmane Sembène conversa com Jean Rouch, que pode ser
consultado em: <http://cine-africa.blogspot.pt/2011/01/um-confronto-historico-entre-jean-rouch.html>.

Ouso argumentar, ainda, que todas as minhas escolhas aqui apresentadas


estão orientadas a partir do meu lugar de fala (epistêmico e social)10. Na tentativa
mesmo de absorver, na prática, a teoria que abraço. Ou seja, procuro pesquisar
sendo guiada pela lógica de que o que verdadeiramente importa diz respeito
sobre “desde quando” e “a partir de onde” se elabora cada tipo de pensamento,
em oposição à fórmula eurocêntrica de pensar, bastante preocupada em sempre
reafirmar que o importante é “aquilo que” e “sobre o que” se constrói verdades,
ciências, artes, valores e condutas. A saber, eu me refiro à questão da geopolítica
do conhecimento. (MALDONADO-TORRES, 2007).
Portanto, qual a relação entre a Teoria Decolonial e o FESPACO? Qual a
relação entre um tipo de pensamento, historicamente transgressor, e um tipo de
fomento para o cinema, relativamente novo e revolucionário? Vejamos. O
FESPACO é o maior evento do mundo voltado exclusivamente para filmes
produzidos no continente africano e em seus territórios diaspóricos – com ênfase
no Brasil e Caribe (OLIVEIRA, 2016). Contudo, nem o fato de ser ele o mais antigo
e importante festival afro desse porte, que reúne produtores, pesquisadores e
curiosos de vários lugares do mundo, torna a sua investigação menos complicada.
Faltam dados, referências e acesso aos filmes premiados. Faltam visibilidade,
reconhecimento internacional, financiamento e estabilidade estrutural e política.
Arrisco dizer, fundamentada na Teoria Decolonial, que essas dificuldades se
devem, nomeadamente, à questão sobre como o lugar de fala e o poder atribuído
às narrativas não brancas, decoloniais, ainda são bastante negligenciados. Tudo
isso, por influência das velhas hierarquias coloniais, ancoradas às formas de

10
Sou mulher negra, latino-americana, alocada no Departamento de Sociologia da Universidade
Federal de Goiás e inserida em ampla comunidade interessada em discutir de que maneira é feita a
representação das populações negras no cinema. Em 2015, mudei para Lisboa, para cumprir o estágio
de doutorado no exterior, com o projeto sobre a decolonialidade nas identidades negras no cinema
africano apresentado no FESPACO. Fui para Lisboa, para ser orientada por uma doutora em
antropologia visual, conhecedora de cinema africano, Catarina Alves Costa. E também pela facilidade
geográfica e financeira, de se ter mais opções de ir para o continente africano de Portugal, do que do
Brasil.

dominação patrimonial, subalternização das culturas, poder de gênero,


escravização baseada em conceitos raciais, etc. E seria exatamente por essas
mesmas razões que um cinema feito em África, por africanas e africanos, sobre
africanas e africanos, não interessa ao mercado de bens e consumo, organizado
dentro da lógica econômica euro ocidental.
Nesse sentido, há um diferencial em relação aos estudos decoloniais, que
pode ser fundamental no pensar a produção de filmes sobre os fenômenos atuais
relacionados ao racismo, às imigrações e aos movimentos internos
protagonizados por africanas, africanos e seus descendentes. Ele está no fato de
como essa corrente se dispõe a romper com a fábula da universalidade do
conhecimento, que o colonialismo insiste em reconhecer. Ignorando a existência
de outras formas, de outras versões sobre as histórias das sociedades. Afinal,
qualquer descrição será sempre apenas uma das versões sobre os fatos. E
tendem a ser diferentes as descrições feitas por quem viu e viveu, ou por quem
apenas ouviu falar. Além disso, a história contada pelos vencidos é sempre
diferente da história contada pelos vencedores.
Quem melhor pode contar sobre os efeitos do racismo e da dominação
cultural, por exemplo, com mais conhecimento de causa e pertença, senão
aqueles diretamente afetados por isso? Alguém pode desenvolver um roteiro
sobre o que é ser apartada de sua terra, trancafiada em um navio, feita de
escrava. Mas, “desde quando” e “a partir de onde” a história é contada, implica
incisivamente no tipo, no formato e nos detalhes da história contada.
De qualquer maneira, o presente trabalho é sobre o papel decolonial do cinema
em África. Tipo de produção artística que está intimamente relacionada às lutas
anticoloniais e, por conseguinte, ao pensamento decolonial. Dito isso, o principal
problema a ser identificado diz respeito em como a Europa, e as imagens de
mundo por ela produzidas, tornaram-se o centro do mundo. Isso tem a ver com
algo que o cineasta e escritor queniano Ngugi Wa Thiong'o (2012) explica em
texto recente, sobre a necessidade de descolonização da mente enquanto pré-
requisito para a prática criativa do cinema africano.
E mais, sobre como a Europa procurou, na base da canetada e do ferro,

apagar outras memórias ao criar uma história única e linear – de desenvolvimento


e evolução gradual – para todas as demais sociedades, a partir da sua própria
lógica de cultura e humanidade. Conquistando, assim, o direito incontestável a
(auto)representação. Ou seja, o direito de falar sobre si e sobre o resto do mundo,
sem nenhum constrangimento, e a partir do seu próprio ponto de vista.
Com o colonialismo, a Europa inventou um modelo de vida que acabou por
inventar a ela própria. Sem romantismo e inocência. Pelo contrário, trata-se de um
modelo extremamente engenhoso, audacioso. Estado, exército, propriedade
privada, família, classificação racial, estratificação social, superioridade cultural e
dominação religiosa. E para sustentar as instituições daquele novo modelo
arquitetado, a Europa precisou investir no projeto de dominação de outros
territórios. Américas, África e Ásia, em menor escala, logo se tornaram continentes
submetidos a tal organização europeia. Na época, a principal forma de
convencimento foi o uso da violência para implementar os valores ocidentais
cristãos – física e simbólica. Ou seja, crucifixo, catequese, porrada e pólvora,
como primeiro movimento de diálogo, para obrigar as populações a se
submeterem a uma liga específica de países. (CÉSAIRE, 1977).
Esse processo deu início, entre tantas outras, a duas questões que quero
chamar a atenção, tendo como referência a produção textual de alguns dos
teóricos do Projeto Modernidade/Colonialidade, responsáveis pelo Giro Decolonial
(CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007). Primeiramente, foi a partir do
colonialismo que nasceu a modernidade, e foi a partir da modernidade que nasceu
o colonialismo. Logo, modernizar uma sociedade, significa necessariamente
colonizá-la, civilizá-la. Em segundo lugar, a modernidade surgiu tendo como
padrão de poder, para se saber ser humano, a cultura praticada pelas elites
brancas coloniais. Ou seja, no respaldo da cultura da colonialidade, fundamentada
na racialização do capital. E também na forma como “o trabalho, o conhecimento,
a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado
capitalista mundial e da ideia de raça”. (MALDONADO-TORRES, 2007).

Fonte: Fotografia tirada no evento de abertura do FESPACO de 2015, pela própria autora do texto.

A modernidade europeia, portanto, constitui esse grande projeto que implica


em complexas relações de dependência, tanto políticas quanto econômicas, e
que tem a ver, especialmente, com a criação de um modelo comportamental
hegemônico. Sob a implementação de um sistema de dominação – cultural,
material e espiritual –, dentro e fora da Europa, cada vez mais tecnológico. No
caso do colonialismo, em si, ele corresponde à aplicação dessa estrutura de
opressão, em outros países e territórios não europeus, exercida em grande escala,
com a finalidade de lucro e dominação cultural. Já a colonialidade, no caso,
significa o argumento criado para dar sustentabilidade ao colonialismo. Ela é,
portanto, a própria lógica de organização da vida colonial moderna, pós-moderna,
pós-colonial. Que nunca foi rompida. Enfim. Funciona para que prevaleçam as
antigas formas coloniais de saber e de poder. Inclusive, em relação ao que pode
ou não ser humano, por exemplo.
Nesse sentido, o mais perverso está na forma como, a partir da modernidade,
a colonialidade afetou as estruturas de pensamento. Pois é sabido que, ancorada
no trabalho de importantes pensadores e artistas do Iluminismo11, foi a cultura da
colonialidade que inventou a ideia de um outro não branco menos dotado de tudo,
inclusive de humanidade. Justamente porque, na lógica dessa Europa inventada,

11
No que tange a formulação de pensamentos elaborados sobre todos esses outros, não europeus,
não se pode esquecer que os ilustres fundadores da modernidade europeia – escritores, pensadores e
artistas como Diderot, Voltaire, Molière, Velásquez, Manet, Kant e Hegel – são bastante responsáveis
por essa perpetuação. E nunca denunciaram a escravidão transatlântica.

todos os outros, com seus corpos/vidas/relações diferentes, não se encaixam.


Não cabem no modelo capitalista de organização social. E é por isso que o
pensamento decolonial insiste tanto na necessidade de uma virada
epistemológica radical nos atuais modelos de se fazer política e de se produzir
conhecimento.
A solução, apontada pelos decoloniais, está na ruptura brusca, na negação
completa do modelo de cultura universalizado pelo ocidente europeu. Um sistema
aparentemente aberto e democrático; contudo, profundamente totalitário,
particular, preconceituoso, absoluto e restrito. Inclusive, no que tange a linguagem
do cinema, mecanismo super eficaz em proliferar imagens, preconceitos e
preceitos. Aliás, trata-se daquela que é considerada a sétima das artes, a mais
ampla e moderna forma de narrativa artística inventada pela cultura ocidental,
para divulgar ideologias e práticas da própria cultura ocidental (AUMONT; MARIE,
2013). Esse motivo faz com que o cinema seja tomado aqui como sendo um
campo de produção de conhecimento bastante significativo e relevante, enquanto
objeto de estudo para as Ciências Sociais e Humanas. Além disso, poder contar
com a capacidade de difusão e reprodução dos filmes, faz do cinema a
ferramenta ideal para a construção e desconstrução de muitos imaginários.

A decolonialidade do saber no projeto do FESPACO

Tive a oportunidade de participar, em 2015, da 24a edição do FESPACO, que


ocorreu entre os dias 27 de fevereiro e 9 de março. De acordo com dados
divulgados pela organização do evento, publicados em reportagem de Siegfried
Forster do jornal Les Voix du Monde (rfI), 720 filmes se inscreveram no festival
daquele ano – curtas, médias e longas-metragens. Desses, foram selecionadas
134 obras do continente e diásporas. Incluindo os dezenove longas-metragens de
ficção que concorreram ao Prix Étalon de Yennenga12 – produções de dezesseis

12
Foram eles: Avant le printemps, de Ahmed Atef (Egito); C'est eux les chiens, de Hicham Lasri
(Marrocos); Cellule 512, de Missa Hebié (Burkina Faso); Des étoiles, de Dyana Gaye (Senegal); Entre le
marteau et l'enclume, de Amog Lemra (Congo); Lalla Fadhma N'Soumer, de Belkacem Hadjadj

países (África e diásporas), com diferentes temas, múltiplas identidades, novas


narrativas poéticas, autorrepresentações e muitas imagens de resistência. Cinema
negro, sem dúvida.
Essa foi a primeira versão do FESPACO após a derrubada de Blaise
Compaoré, que presidia o país desde 1987 – ano, aliás, em que Thomas Sankara,
então presidente do país, foi assassinado pelo próprio Compaoré, que na época
era o seu coronel e braço direito. A 24a edição aconteceu, portanto, sob os efeitos
da desarmada Revolta Popular de Outubro, como ficou conhecido o episódio de
deposição do ditador. A proximidade temporal com o levante afetou diretamente
esse FESPACO, que em muito serviu de homenagem póstuma ao antigo
presidente; algo que antes não pôde ser realizado.
Pela primeira vez, nesse mesmo ano, houve o prêmio Thomas Sankara,
dedicado a celebrar, nos filmes, a criatividade e a esperança pan-africanista,
encarnadas na figura do ex-comandante da nação. Ademais, foram exibidos
outros dois filmes em honra aos mortos de 1987, que antes da deposição de
Blaise não tinham sido autorizados pelo governo de participar do festival
(SANOGO, 2015): o curta-metragem burkinabé Twaaga (2013), sobre o dia da
morte de Sankara, de Cédric Ido; e o documentário Capitain Thomas Sankara
(2012), produção suíça de Christophe Cupelin 13 . Na sessão do documentário,
particularmente, houve muita reação do público. Gritos de honra, conclamação
para a resistência ao neocolonialismo e muitos aplausos. Quando as luzes da sala

(Argélia); Fièvres, de Hicham Ayouch (Marrocos); Four Corners, de Ian Gabriel (África do Sul); Haïti
Bride, de Robert Yao Ramesar (Trinidad e Tobago); J'ai 50 ans, de Djamel Azzizi (Argélia); L'œil du
cyclone, de Sékou Traoré (Burkina Faso); Morbayassa, de Cheik Camara (Guiné Bissau); O Espinho da
Rosa, de Filipe Henriques (Guiné Bissau); Price of love, de Hermon Hailay (Etiópia); Printemps tunisien,
de Raja Amari (Tunísia); Rapt à Bamako, de Cheik Omar Sissoko (Mali); Render to Cesar, de Desmonde
Ovbiagele Onyekachi Ejim (Nigéria); Run, de Philippe Lacôte (Costa do Marfim); Timbuktu, de
Abderrahmane Sissako (Mauritânia).
13
Os principais prêmios do FESPACO, para ficção e documentário, exigem realização
africana/afrodescendente. Outras categorias, não competitivas, permitem a participação de
realizadores de outras nacionalidades.

se acenderam, havia um jovem burkinabé ao meu lado, debulhando-se em


lágrimas, mão para o alto, cerrada em punho. Conversamos, e o rapaz me contou
que fazia parte do movimento popular Le Balai Citoyen 14 , que organizou a
derrubada do antigo ditador, em 2014.
Tais acontecimentos, portanto, só reforçam o que Stanislas Bemile Meda
(2006), autor da tese Le film Africain face à la compétition, diz sobre o FESPACO
ser o mais antigo e influente festival de cinema que acontece em África, voltado
exclusivamente para filmes produzidos por africanas e africanos, sobre africanas e
africanos, e suas diásporas. Essa característica, de unidade e agregação, o
transporta para o nível máximo de um evento estandarte: duplamente ritualizado e
importante, diante de um cenário mundial demasiado escasso para os filmes
negros. Afinal, é durante o FESPACO que ocorre, em dois atos, a exibição e a
premiação das obras eleitas por um conselho panrepresentativo, como símbolos
da identidade cultural africana. Nesses quase cinquenta anos de cerimônia, o
cinema tem sido o principal elemento econômico e cultural que distingue Burkina
Faso no cenário mundial (OLIVEIRA, 2016).
Criado a partir da iniciativa de cinéfilos, cineastas e líderes revolucionários
africanos envolvidos com a luta por independência colonial, o projeto do
FESPACO representa por si só um importante desprendimento da colonialidade.
Falo de um festival pan-africanista que, desde a sua origem, serve de palco para
diferentes cinematografias africanas, cada qual sendo (re)tratada como uma
economia política endógena distinta. Mesmo que estejam todas elas reunidas sob
o signo aglutinador de um cinema continental africano.
E mais que isso, é um festival bienal, que nunca sofreu uma única interrupção,
e sempre aconteceu na mesma cidade, Ouagadougou, desde a sua inauguração.
Logo, trata-se do maior, mais antigo e regular evento-ritual de cinema da África
pós-colonial (MELEIRO, 2007). Festa que inclui a exibição, premiação, promoção e
discussão de filmes produzidos em todo o continente africano e seus territórios

14
Sobre o Le Balai Citoyen, consultar: <http://www.lebalaicitoyen.com>.

diaspóricos, por produtoras e pesquisadoras(es) de vários lugares do mundo. Eu


estive lá e pude conferir. Trata-se de um projeto que, até hoje, busca difundir a
doutrina pan-africanista, prestigiando a autorrepresentação social das culturas
negras africanas como um todo. É possível dizer que a consagração do festival se
dá, em grande parte, pela histórica iniciativa de quebrar a dependência exógena,
seja ela ideológica ou econômica, no que se refere à produção e exibição de
cinema em África (MELEIRO, 2007).
Alguns detalhes importantes sobre o FESPACO merecem destaque. Foi criado
em 1969, como evento anual e nacional; em 1973 se tornou continental, bienal; e
em 1989 abriu para os filmes produzidos na diáspora15. E sobre essa questão,
neste mesmo ano de 1989, foi criada a categoria Paul Robeson, aberta em disputa
para filmes feitos fora do continente, como fruto dos esforços do cineasta da
Mauritânia, Haile Gerima, que há muito tempo encontrava-se radicado nos
Estados Unidos (OLIVEIRA, 2016). Mas, em 2015, a categoria é extinta e os filmes
feitos na diáspora também passam a competir em esferas do festival onde antes
era exclusivo para realizadoras e realizadores africanos. Inclusive para o Étalon.
E mais. Também em afinidade com a discussão sobre a necessidade de
democratização do fazer cinematográfico, pela primeira vez, em 2015, cineastas
puderam apresentar seus trabalhos em formato digital. Ambos os fatores
demonstram que, apesar dos inúmeros percalços, o FESPACO procura estar
inteirado às discussões que afetam a produção cinematográfica do continente.
Reforçando a identidade agregadora registrada na soma dos filmes que compõe a
história do cinema negro africano.
Desde a inauguração do festival, 22 filmes já foram agraciados com o Prix
Étalon de Yennenga – principal troféu do FESPACO, dedicado aos filmes de
ficção, que melhor simbolizam e representam as diversas identidades culturais
africanas, segundo a própria organização do evento. É na 3ª edição, ocorrida em
março de 1972, que surge a primeira premiação com o troféu Étalon de Yennenga

15
Dados consultados no sítio do FESPACO, que está disponível em: <https://www.fespaco.bf/fr/>.

– literalmente, Garanhão de Yennenga, o mito de fundação de Burkina Faso. Ouvi


dizer, lá em Ouagadougou durante o FESPACO, que Yennenga era uma princesa
guerreira, muito hábil na montaria. Proibida por seu pai de casar, que por sua vez
não queria perder a sua melhor combatente, Yennenga foge do reino de Dagomba
e encontra pelo caminho o guerreiro Rialé, por quem se apaixona perdidamente.
Desse amor, nasce Ouedraogo, primeiro rei da etnia Mossi – uma das principais
do país.
De acordo com declaração oficial da FEPACI 16 (Federação Pan-Africana de
Cineastas, fundada em 1970, cujo secretario geral é o realizador Cheik Omar
Sissoko, do Mali), essa condecoração do Étalon de Yennenga, sobretudo

[...] é o símbolo da consagração suprema da melhor obra cinematográfica da


seleção oficial. O prêmio está materializado por uma guerreira, lança na mão,
montada em um cavalo empinado. Este troféu deriva seu significado do mito
fundador do império dos Mossi, maioria étnica em Burkina Faso. Para além do
prêmio, o Étalon de Yennenga simboliza a identidade cultural africana, que através
de suas criações os cineastas devem contribuir e ajudar a manter bem viva
(FEPASCO, 2014).

Os filmes eleitos, portanto, recebem uma espécie de medalha de honra, que


distingue a obra e a transforma em um standard de referência identitária. O
emblema dessa premiação, em vários sentidos, de alguma forma se explica pela
dificuldade que a África, de um modo geral, teve para reassumir o direito de se
autorrepresentar. Na tentativa de retomar a sua soberania e autodeterminação, o
Prix Étalon de Yennenga funciona como uma afirmação das especificidades
culturais africanas. De acordo com Mbembe (2001), esse sentimento foi o que
gerou um profundo investimento na ideia de raça e uma radicalização da
diferença, especialmente nos discursos e nas práticas dos movimentos culturais
africanos a partir de meados da década de 1960. Quando, não por acaso, cinema
e pan-africanismo se encontram e se misturam, oficialmente, na realização do
FESPACO.

16
Link para acessar o sítio oficial do FESPACI: <http://www.fepacisecretariat.org>.

Em artigo publicado recentemente pela Revista Odeere, sobre o FESPACO, a


historiadora Janaína Oliveira (2016) sugere o conceito de cinema continente, para
pensar o tipo de produção abarcada pelo festival. Segundo a pesquisadora, o
“Fespaco é um festival que se integra plenamente na evolução do continente”
(OLIVEIRA, 2016, p. 52) e que surge, portanto, com uma missão, que aos poucos
vai se solidificando, de disseminar os filmes africanos, promover a consolidação
de uma rede e estimular o debate sobre representatividade. Tendo também como
objetivo contribuir para a formação de plateia e, como consequência, estimular o
desenvolvimento de outras narrativas cinematográficas, enquanto novas formas
de conhecimento e aprendizado (OLIVEIRA, 2016).
Janaína Oliveira, que esteve presente em Ouagadougou nas últimas três
edições do FESPACO (2011, 2013, 2015) e participou de todos os fóruns de
debate promovidos em parceria com o CODESRIA (Conselho para o
Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África) durante tais
edições, chama a atenção para como a grande luta desse cinema passa
necessariamente pela discussão sobre “a conexão entre os processos criativos e
questões de ordem política, não só política de audiovisual, mas as políticas
nacionais e transnacionais” (OLIVEIRA, 2016, p. 53).
Segundo a historiadora, a efervescência que houve nas décadas de 1960 e
1970 de apoio ao cinema já não existe mais. São poucos os países que ainda
mantêm iniciativas estatais nesse sentido. E cita os casos do Egito, Marrocos e
África do Sul, por se destacarem enquanto episódios mais sólidos. Em mim, a
observação direta e o caso vivido em campo, sobre a dificuldade de lidar com as
aparentes afinidades, reforçou a noção de que a batalha do cinema negro por
autorrepresentação não se restringe apenas à luta pela aparição de mais pessoas
negras no ecrã das salas de cinema. Para engrossar o coro, será Ngugi Wa
Thiong'o que irá dizer, reforçando o papel político do cinema na história de lutas
contra a dominação colonial/capitalista, que

O cinema africano não pode se dar ao luxo de usar a tecnologia para escapar ao
domínio do pessoal, isolado de sua interação com o público. As experiências
pessoais devem também ser vistas no contexto histórico em que se desenvolvem.

Escravidão, colonialismo, neocolonialismo, racismo e ditaduras são partes


inseparáveis da realidade africana e não podemos nunca ser seduzidos pelos nossos
financiadores a agirmos como se a única realidade na África fosse a de nossos
anciãos sentados sob um baobá exsudando sabedoria, ou de elementos
sobrenaturais da vida africana. (THIONG'O, 2012, p. 29).

Ou seja, é preciso pensar em como e de onde são contadas as histórias, para


melhor percebê-las. E esses seriam importantes fatores de legitimação dos
imaginários criados sobre a África, segundo Thiong'o. Por isso, a questão da
diáspora, não por acaso, é tema muito recorrente no cinema premiado com o
Étalon, ao longo das últimas 24a edições do FESPACO. Tal persistência, em muito,
tem a ver com os próprios processos internos pelos quais já passou quem vive, ou
viveu, ou nasceu de quem lá já viveu (e assim sucessivamente).
Acontece que a maioria dos filmes premiados, assertivamente, vem
estabelecendo elos entre as culturas negras, espalhadas pelo mundo
contemporâneo. Obras que falam a partir da experiência de quem fez parte
desses grandes e irreversíveis movimentos de deslocamento populacional,
oriundos fora ou mesmo dentro do continente africano, a partir do sistema
colonial17. Uma leitura atenta sobre os 22 filmes premiados até hoje, revelou, por
exemplo, que desse total, dezoito longas-metragens abordam questões entre a
África, a Europa e o colonialismo, em relação ao que surge com o abalo causado
pelas diásporas.
Entre os filmes que giram em torno dos fluxos incessantes provocados pela
colonialidade, que produziu as diásporas africanas na contemporaneidade, são
eles: Pièces d'identités (1999), do congolês Mwezé Ngangura; Heremakono (2002),
de Abderrahmane Sissako; os senegalêses Tey (2013), dirigido por Alain Gomis, e

17 Desde a escravidão colonial, outras formas de migração também afetaram o continente negro. Goli
Guerreiro (2010) identifica três movimentos da diáspora africana: o primeiro, trânsito, pela via do tráfico
escravista. Indiscutivelmente, a pior ocorrência de migração forçada da história da humanidade. O
segundo acontece (ainda) das periferias para os centros urbanos, em função das péssimas condições
sociais e econômicas herdadas do colonialismo pelos Estados africanos. O terceiro está se realizando
agora, nesse exato momento, através das redes técnico-eletrônicas, que surgiram com a globalização.

Des étoiles (2013) de Dyana Gaye; e, por último, Fièvres (2015), do franco-
marroquino Hicham Ayouch.
Entre essas dezoito histórias de ficção vitoriosas do Étalon, sobre África e
Europa, oito delas tratam diretamente sobre os trânsitos vivenciados pelas
populações negras por conta do colonialismo, no período pós-colonial. Seis
enfocando situações dentro do continente, e duas sendo narradas a partir de um
olhar de fora da Europa, para dentro da própria, como o que acontece em Afrique-
Sur-Seine (Paulin Soumanou Vieyra, 1955), por exemplo. Em relação às lutas
anticoloniais, do total de 22 filmes, quatro são os que se referem ao tema
abertamente, tratando de cutucar os espólios dessas guerras. Difícil não notar
como é recorrente, portanto, a questão da crise desencadeada pelo encontro – na
maioria das vezes tenso, desastroso e desgastante – entre a África, negra, e a
cultura euro ocidental, branca.
E é interessante como, de maneira geral, todos os filmes laureados com o
Étalon trazem alguma discussão sobre situações/relações de conflito. Seja dentro
do continente, com histórias internas e particulares a sujeitos africanos (quatro),
ou em disputa com o de fora, sobre valores africanos em oposição a valores
europeus (dezesseis); seja fora do continente, na Europa, no confronto e desgaste
que surge no período pós-colonial, entre valores europeus, de fora, e valores
africanos, guardados dentro dos sujeitos africanos e afrodescendentes,
submetidos à realidade dos valores europeus, em função das diásporas negras
(dois).
Nesse sentido, filmes como os de Ousmane Sembène consagraram o tema do
encontro, pouco saudável, entre os espaços do colonialismo e os das populações
(ex)colonizadas. E rendeu uma extensa e plural filmografia erguida na necessidade
que muitas diretoras e diretores africanos sentem, até hoje, de produzir imagens
capazes de romper com os preconceitos raciais definidos pelo colonialismo.
Reconhecer a necessidade de elaborar novas imagens de negritude é um dos
efeitos de reconhecer que a branquitude é exatamente a insistência na falsa ideia
de que todos são iguais, e que, por isso, todos têm acesso aos mesmos direitos.
Ser igual significa corresponder a um pacote restrito e irreal, posto que uma das

principais características da humanidade é a sua diversidade. O FESPACO, no


caso, é prova disso. De que, ao se libertar da violência cognitiva provocada pela
sombra da invisibilidade, é possível manifestar a sua própria alteridade.
Portanto, no FESPACO, o ideal pan-africano de solidariedade e consciência de
uma origem comum, se traduz no desejo de criar estratégias de sustentação,
incentivo e partilha de uma estrutura que alcance a todos os africanos, africanas e
afrodescendentes ligados ao cinema. Um projeto grande, que envolve diferentes e
amplos aspectos da produção, distribuição e exibição de filmes. Mas que, nos
últimos quarenta anos, desgastou em muitos sentidos. Por exemplo, o fato de o
projeto de nacionalizar as salas de cinema em Burkina Faso, sede do FESPACO,
que fazia parte da ideia inicial de transformar o cinema (produção, distribuição e
consumo) em uma grande potência para a economia do país, ter sido posto em
segundo plano na gestão do ditador Blaise Compaoré, responsável pala
privatização das salas de cinema, em meados de 1990.
De qualquer forma,

[...] todos os elementos que compõem sua história, têm servido a cineastas,
curadores, pesquisadores e estudiosos da temática tanto como um termômetro de
tendências cinematográficas quanto de direcionamento das políticas de cultura
presentes nos caminhos do cinema do continente. Além disto, sua história se
conecta diretamente com os acontecimentos e debates no âmbito das políticas do
continente, como por exemplo da consolidação e crise do movimento pan-africanista
e dos dilemas observáveis nos processos de estabelecimento das nações após as
independências. (OLIVEIRA, 2016, p. 52).

De fato, o projeto do FESPACO propõe a resolução de questões cruciais para


a própria existência e manutenção do cinema feito em África. Contudo, algumas
dessas reivindicações continuam na pauta de cineastas africanas, africanos e
afrodiaspóricos, até hoje, tendo em vista tanto a expansão das conquistas quanto
as dificuldades de se atingir tantos critérios. Ngugi Wa Thiong'o (2012), por
exemplo, ainda insiste na necessidade de se descolonizar as imagens produzidas
pelo cinema sobre África, sem deixar de ressaltar o quão difícil é pensar o fazer
cinematográfico apartado de uma discussão sobre “a tecnologia, a

disponibilidade, seu uso, seu significado”. (THIONG'O, 2012, p. 28). Resolver a


parte técnica é o primeiro passo. Depois, conseguir produzir imagens diferentes
daquelas de quem chega como um intruso, observando o outro. Algo que, para o
cineasta e escritor queniano, também é um desafio que se apresenta para o
próprio campo cinematográfico africano atual.
Afinal, como bem disse Ousmane Sembène (ZENUN, 2016), o ato de
observar/narrar o continente e as histórias sobre as populações negras, como
quem se debruça em um formigueiro, é coisa de etnógrafo francês. Método que já
foi (e ainda é) muito utilizado para retratar a África. E algo que Sembène entendia
como sendo um tanto perigoso, por alimentar através de imagens distanciadas (e
desfocadas), o imaginário de que aquele outro-inseto deve ser entendido como
culturalmente distante e incomum, facilmente manipulável e destroçável.
Nesse sentido, à medida que os africanos foram se apropriando do fazer
cinematográfico – uma invenção ocidental –, foram surgindo também novas
representações sobre a África, a partir de imagens próprias, com narrativas
outras. Novos modelos, referendados através de legitimas autorrepresentações.
Em oposição aos mais de cem anos de um cinema euro americano, assentado na
estereotipação e no preconceito contra culturas negras, de origem africana. Isso
porque mesmo antes das lutas anticoloniais, o cinema já cumpria um papel
político importante no processo da colonização. E isso foi muito bem percebido
pelos movimentos de libertação que eclodiram nos anos 1960.

Conclusão

Descolonizar-se das formas eurocêntricas, admitir outras, reagir a outras.


Descolonizar do modelo único de história, para, enfim, descolonizar a própria
história e as imagens sobre ela. Sem ter que, para isso, abrir mão da técnica de
fazer filmes e filmar pessoas. Mesmo que o cinema tenha sido “inventado” pelos
europeus. Ou seja, apropriar-se da técnica. Mas não abdicar, jamais, do exercício
de fazer as escolhas necessárias para a elaboração de linguagens e
representações próprias.

Diante desse cenário, pude observar que o FESPACO se configura como


sendo um evento-ritual, demarcadamente cerimonioso, que surge e se perpetua
em consonância com alguns dos movimentos de luta anticolonial. Nesse sentido,
a pura trajetória desse evento já lhe garante, no campo das cinematografias
africanas, um importante lugar de referência na luta pelo fortalecimento das
identidades culturais do continente. E o mais importante, em menos de cinquenta
anos, os filmes apresentados no festival já conseguiram contar vários momentos
da história do continente, sob a perspectiva da população africana e sob a lente
dos donos da terra. Ou seja, há nesse processo sinais de que descolonizar o
saber passa, invariavelmente, pela necessidade de descolonizar as imagens sobre
a África.
A despeito de qualquer dificuldade, é pelo FESPACO que se reúnem, em
Ouagadougou, pessoas de vários cantos do mundo para falar de cinema, arte,
negritude, diáspora, africanidades, descolonização, continuidade, memória,
poética, imagem e sociedade. Eu estive lá, por conta da minha pesquisa de
doutorado, e vi de perto aquela grande e bonita festa. E foi incrível como assistir
as sessões do cinema que estava sendo exibido durante o FESPACO, levou-me a
prestar mais atenção nas ruas de Ouagadougou – abarrotada da rotina das
pessoas que vivem a cidade. Cidade-cinema.

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Submetido em 30 de agosto de 2016 | Aceito em 28 de novembro de 2016



Temáticas Livres

Filme-desvio:
do planejamento às contradições

Tatiana Hora1

V OL . 5, N. 2 • REBECA 10 | J UL HO - D EZEM BRO 2016

1
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade
Federal de Minas Gerais.
e-mail: tati_hora@hotmail.com

214

Resumo

Partindo da noção de desvio, desenvolvido como método filosófico por Guy Debord no livro A
sociedade do espetáculo e como técnica situacionista para a crítica da linguagem do espetáculo no
ensaio Métodos e técnicas de desvio (escrito por Debord junto com Gil Wolman), propomos pensar o
filme Brasília, contradições de uma cidade nova (1967), de Joaquim Pedro de Andrade, como um filme-
desvio em relação ao curta-metragem Brasília, planejamento urbano (1964), de Fernando Coni
Campos. O desvio, enquanto contrário de uma citação, segue na contramão da verdade oficial e
destrói os sentidos propostos pela história dos vencedores. Em seu sentido mais profundo, o desvio
incorpora a dialética na forma e convoca o passado como devir. Assim, confrontamos as diferentes
imbricações entre tempo cinematográfico e tempo histórico apresentadas pelos filmes em questão,
tendo em vista que em Brasília, planejamento urbano a nova capital tem origens míticas e é erguida
acima da história, segundo os princípios da utopia modernista, enquanto em Brasília, contradições de
uma cidade nova, que traz vários planos e princípios formais semelhantes aos do filme oficial para
desviá-los, a cidade é re-historicizada a partir de uma crítica ao presente.

Palavras-chave: Desvio; Devir; Tempo histórico; Utopia modernista.

Abstract

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Based on the notion of détournement, developed as a philosophical method by Guy Debord in the
book The society of the spectacle, and as a situationist technique for the critique of the language of
spectacle in the essay Methods of Détournement (co-written by Debord and Gil Wolman), we propose
to think about the movie Brasília, contradições de uma cidade nova (1967), by Joaquim Pedro de
Andrade, as a détournement-movie regarding the short film Brasília, planejamento urbano (1964), by
Fernando Coni Campos. The détournement, as opposed to a quotation, goes against the official truth
and destroys the meanings proposed by the story of the winners. In its deepest sense, the
détournement incorporates the dialectic in the form and calls the past as a becoming. Thus, we
confront the different overlappings between cinematic time and historical time presented in the films at
issue, taking into account that in Brasília, planejamento urbano the new capital is raised above the story
according to the principles of modernist utopia and has mythical origins, whereas in Brasília,
contradições de uma cidade nova, which brings various plans and formal principles very similar to the
official movie and diverts them, the city is re-historicized as of a critique of the present.

Keywords: Détournement; Becoming; Historical time; Modernist utopia.

215

1. Desviar para retomar a história

Em 1964, ano em que João Goulart foi deposto e no qual o general Castelo
Branco assumiu a presidência através do Golpe Militar, foi lançado o curta-
metragem Brasília, planejamento urbano, de Fernando Coni Campos. O filme é um
documentário expositivo1 que mostra imagens da nova capital guiadas por uma
narração over baseada num relatório elaborado por Lúcio Costa, o urbanista, que,
junto com o arquiteto Oscar Niemeyer, formulou o planejamento urbano da
cidade. Numa entrevista concedida ao periódico O Pasquim, o cineasta baiano
conta que este foi seu primeiro filme, realizado após ter trabalhado no escritório
de Lúcio Costa, e que sua realização teria partido da intenção do Instituto
Nacional de Cinema de fazer um filme sobre a capital, pois “sempre que se falava
em Brasília, falava-se em arquitetura”. (CAMPOS, 1974).2
Brasília, planejamento urbano é marcado pela influência das sinfonias urbanas3
das primeiras décadas do século XX, e as imagens são acompanhadas pela
música especialmente realizada para a inauguração da capital: Brasília, sinfonia da
alvorada, composta por Antônio Carlos Jobim e escrita por Vinícius de Moraes

V OL . 5, N. 2 • REBECA 10 | J UL HO - D EZEM BRO 2016


1
Segundo Bill Nichols (2005), o modo expositivo é caracterizado pelo predomínio da “voz de Deus”,
assim chamada por ser onisciente e descorporalizada, falando diretamente ao espectador e
apresentando imagens meramente ilustrativas, numa montagem encadeada segundo as evidências a
serem mostradas para embasar a lógica argumentativa.
2
Apesar de o início de sua trajetória ser marcado por esse primeiro filme oficial bastante “quadrado”, o
cineasta dirigiria mais tarde uma obra como Viagem ao fim do mundo (1968), lançado em pleno ano do
AI-5, durante a intensificação da repressão no governo Costa e Silva; trata-se de um longa alegórico e
ensaístico, com reflexões acerca dos regimes autoritários ao redor do mundo a partir da montagem de
imagens de arquivo. No entanto, a obra foi injustiçada pela crítica cinematográfica, como afirmou Jean-
Claude Bernardet (2011), que atribui o esquecimento do filme ao seu teor religioso, num tempo em que
a crítica e os cineastas estavam contaminados pela visão da religião como “ópio do povo”.
3
As sinfonias urbanas foram um gênero profícuo nos anos 20 do século passado, com filmes como O
homem com a câmera (1929), de DzigaVertov, Chuva (1929), de Joris Ivens, Berlim, sinfonia da
metrópole (1927), de Walter Ruttman, entre outros. Caracterizados pelo virtuosismo plástico e pelo
lirismo das imagens que transmitiam a experiência urbana acelerada nas grandes cidades, esses filmes
apresentam uma montagem fragmentária de planos da metrópole sob o ritmo de sinfonias.

216

(dividida nas partes O planalto deserto, O homem, A chegada dos candangos, O


trabalho e a construção e Coral). O curta apresenta imagens aéreas do eixo
monumental4, como também diversos travellings e panorâmicas que percorrem as
largas avenidas do eixo rodoviário, formando quadros geométricos nos quais as
linhas paralelas e diagonais ganham destaque, geralmente com um ou dois
pontos de fuga que oferecem profundidade de campo em um espaço equilibrado
no qual o movimento é uma invariante. Segundo Deleuze (1983), nos quadros
geométricos, os limites do quadro são matemáticos e fixam as condições de
movimento dos corpos. Nesse filme, o espaço de Brasília, tal como concebida
pelos arquitetos, impõe-se sobre o modo de vida de seus habitantes.
Três anos depois, durante o governo do general Costa e Silva, Joaquim Pedro
de Andrade exibe furtivamente Brasília, contradições de uma cidade nova em uma
sessão não anunciada no Festival de Brasília. Como relatou Jean-Claude
Bernardet, que escreveu o roteiro junto com o diretor, “no dia seguinte, Joaquim
Pedro foi procurado por alguém que o informou de que seria preferível não
apresentar o filme à censura, pois não obteria o certificado e poderia haver
consequências mais graves”. (BERNARDET, 2001). O diretor depositou então uma

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cópia na Cinemateca do Museu de Arte do Rio de Janeiro. O curta-metragem
havia sido financiado pela fabricante de máquinas de datilografar Olivetti e
encomendado de acordo com a total liberdade do diretor, mas foi rejeitado pela
empresa e também por Niemeyer, por apontar a irrealidade da utopia modernista
ao ser colocada em prática em um contexto subdesenvolvido. O filme trazia
comentários sobre as demissões em massa da Universidade de Brasília (UnB)

4
O desenho de Brasília tem o formato de um avião, e os componentes da concepção urbanística da
capital, segundo Lúcio Costa (2012), seriam: o eixo monumental, constituído pela Praça dos Três
Poderes, a estrutura da plataforma rodoviária e a Esplanada dos Ministérios, levaria, segundo ele, o
nome de monumental não pela ostentação, mas pela consciência de seus significados; o eixo
rodoviário-residencial, onde o tráfego de veículos se separa do tráfego de pedestres; e as
superquadras seriam as unidades de vizinhança, com parques, lojas de bairro, etc. As superquadras
foram imaginadas por Lúcio Costa como resistência à massificação: ele acreditava que a morada do
homem comum haveria de ser o monumento do seu tempo.

217

durante a ditadura militar e refletia, a partir das promessas não cumpridas da


utopia do modernismo arquitetônico, sobre o fracasso do cinema moderno ao não
alcançar as massas em prol das mudanças sociais. No curta, o Plano Piloto está
para os moradores das cidades-satélites assim como o cinema novo está para os
espectadores das classes menos abastadas.
O filme se inicia com planos muito semelhantes àqueles de Brasília,
planejamento urbano: a narração de Ferreira Gullar, com descrições precisas
sobre o Plano Piloto, acompanha travellings e panorâmicas atravessando as
avenidas do eixo rodoviário e as superquadras de Brasília, enquanto toca a
música melancólica de Erik Satie. No entanto, ele progressivamente se afasta de
uma montagem que apresenta plenas correspondências entre o planejamento
arquitetônico e a realidade da capital, para mostrar, em sua segunda parte,
imagens em câmera na mão numa feira e pelas ruas de uma cidade-satélite pobre
e desorganizada, onde moram operários que construíram a capital e que nela
trabalham.
No presente artigo, buscamos analisar como essa obra de Joaquim Pedro de
Andrade compõe um filme-desvio, partindo do conceito que Guy Debord

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apresenta no livro A sociedade do espetáculo e também no pequeno ensaio
situacionista escrito com Gil Wolman, Métodos de desvio. O desvio propõe o
emprego das imagens do espetáculo contra o espetáculo: diferente da citação,
que respeita o original e sua autoria, no desvio o choque entre diferentes mundos
sensíveis ressignifica o original, e uma frase, uma foto, um filme inteiro podem ser
desviados. (DEBORD; WOLMAN, 1956).
Tendo como cerne ligações com a linguagem e a com a história, o desvio é o
método filosófico e também cinematográfico de Guy Debord. Para o autor, o
espetáculo é antidialógico e elaborado pela linguagem oficial da separação
generalizada, promovendo a inatividade de multidões isoladas de espectadores
diante de imagens que fetichizam as mercadorias: “a linguagem do espetáculo é
constituída por signos da produção reinante, que são ao mesmo tempo o princípio
e a finalidade última da produção”. (DEBORD, 2003, p.10). Debord defende uma
arte que propõe a destruição da própria arte e exprime negativamente uma

218

linguagem comum que precisa ser recuperada: “essa arte é forçosamente de


vanguarda, e não é. A sua vanguarda é o seu desaparecimento”. (DEBORD, 2003,
p.122).
Ao ir de encontro à linguagem do espetáculo, o desvio destrói os sentidos
falsificados pela verdade oficial e coloca em cena o devir histórico. O desvio
apresenta um diálogo com a noção de devir de Kierkegaard (2008), para quem o
passado não é o que necessariamente aconteceu, nem pode ser conhecido em
sua totalidade. O passado tampouco é a necessidade que determinou que a
possibilidade se tornasse realidade por meio de relações de causa e
consequência incontornáveis. Diferente disso, o passado deveio através da
mudança em liberdade; antes de ser realidade, havia múltiplas possibilidades, ou
seja, o passado é aberto e ambíguo. Debord concebe o desvio como a
atualização histórica do passado e a crítica do presente, tendo em vista as
possibilidades excluídas. Para tanto, o desvio apresenta a contradição incrustada
em sua própria forma, indo de encontro aos sentidos unívocos da história oficial.
Em nossa hipótese, Joaquim Pedro de Andrade realiza um filme-desvio na
contramão da verdade do filme oficial de Coni Campos, que exalta o planejamento

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urbano de uma cidade erguida acima da história, para se dirigir rumo às
contradições de uma cidade nova.

2. Desvio e utopia modernista

Guy Debord foi fundador do movimento situacionista, que teve participação


essencial no maio de 68 na França. Os situacionistas contestavam o monopólio
das cidades exercido pelo planejamento urbano a serviço do capitalismo.
Segundo Jacques (2003), um dos lemas situacionistas, formulado por Raoul
Vaneigem, era “a arquitetura existe realmente tanto quanto a Coca-cola”. A crítica
situacionista combatia o espetáculo, que teria transformado a cidade no cenário
do capitalismo através da gentrificação e da especulação imobiliária. Para Guy
Debord (2003, p.110), “todas as forças técnicas da economia capitalista devem
ser compreendidas como agentes de separação; o urbanismo é o equipamento de

219

sua base geral, que prepara o solo que convém ao seu desenvolvimento, a própria
técnica da separação”. Em outras palavras, o planejamento urbano configura a
cidade segundo a afirmação do poder de classe e da pulverização dos
trabalhadores nas periferias afastadas do centro.
De acordo com Jacques (2003), entre as técnicas de apropriação dos espaços
defendidas pelos situacionistas estão à deriva, a construção de situações e a
psicogeografia. A psicogeografia era o método de estudo dos efeitos da geografia
sobre o comportamento dos indivíduos, e a sua prática correspondente era a
deriva, que consistia na passagem rápida por variados ambientes, uma
apropriação do espaço urbano através do “andar sem rumo”. Já a construção de
situações envolve a criação de iniciativas que convocam a participação ativa dos
habitantes da cidade, num movimento que buscava trazê-los de volta para a vida
cotidiana.
Guy Debord elabora um cinema que usa vários princípios situacionistas, a
exemplo de Sobre a passagem de algumas pessoas através de uma unidade de
tempo bastante curto (1959), em que, como sugere o título, alguns personagens
colocam em prática a deriva e a psicogeografia. Em filmes como A sociedade do

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espetáculo (1973) e Crítica da separação (1961), ele usou uma ampla variedade de
imagens de arquivo, incluindo filmes hollywoodianos, filmes de propaganda
soviéticos, planos de revistas em quadrinhos, fotos de revistas de moda e
publicidade.
O situacionismo era contra a utopia modernista difundida pelos Congressos
Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM), que influenciaram a elaboração do
planejamento urbano de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, participantes dos CIAM.
Costa e Niemeyer se inspiraram nos princípios da Carta de Atenas, de Le
Corbusier, que definia a cidade como um organismo a ser regulado, separado em
quatro funções: tráfego, lazer, moradia e trabalho. A Carta de Atenas inspirou
diversos projetos arquitetônicos de reconstrução de cidades europeias
devastadas no Pós-Guerra.
No Brasil, a arquitetura moderna uniu-se ao governo desenvolvimentista de
Juscelino Kubitschek, que tinha em Brasília a meta-síntese do Plano de Metas que

220

iria fazer o país progredir “50 anos em 5”, durante sua administração (de 1956 a
1961). Segundo James Holston (1993), JK defendia que Brasília promoveria a
integração nacional e seria o centro propulsor do desenvolvimento em todo o país.
A cidade terminou por convergir expectativas de personalidades das mais
diversas orientações políticas.

[...] Brasília foi planejada por um liberal de centro-esquerda, seus prédios foram
desenhados por um comunista, sua construção foi feita por um regime
desenvolvimentista, e a cidade consolidou-se sob uma ditadura burocrático-
autoritária, cada qual reivindicando uma afinidade eletiva com a cidade. (HOLSTON,
1993, p.46).

Para Holston (1993), Brasília representava um paradigma de modernidade, com


ênfase na noção de que governos nacionais poderiam mudar a sociedade através
do imaginário que projeta outro futuro. No entanto, a teleologia descarnava o
presente e colocava em jogo os paradoxos da construção desse futuro, tendo em
vista as condições brasileiras de profundas desigualdades.
Um filme como Brasília, planejamento urbano é perpassado pelo tempo
histórico em que prevalece o futuro da promessa e o passado mítico. Já o filme-

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desvio Brasília, contradições de uma cidade nova articula tempo histórico e tempo
cinematográfico numa crítica ao presente, focalizando as relações que ele
estabelece com o passado e o futuro como devir.
O desvio combate os sentidos propostos pela publicidade e pela verdade
oficial para recuperar a ação dos sujeitos no espaço e na história. Ele seria a
crítica histórica que parte da contradição na forma e no conteúdo, e sua
linguagem “não é a negação do estilo, mas o estilo da negação”. (DEBORD, 2003,
p.130). Debord afirma que o desvio é a linguagem da verdade que coloca em
evidência o próprio traço. Ao contrário da citação, ele inverteria antigas relações
entre conceitos com o fim de subverter conclusões passadas; assim, “acerca-se
estreitamente da frase de um autor, serve-se das suas expressões, suprime uma
ideia falsa, substitui-a pela ideia justa”. (DEBORD, 2003, p. 132).
Segundo Debord (2003, p.132), “o desvio é a linguagem fluida da anti-
ideologia”, alcançando uma violência contra a ordem existente e uma correção

221

histórica. Se “o espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se toma


imagem” (DEBORD, 2003, p.20), e essas imagens substituem a própria realidade,
o que resta então, para o cinema, é usar as imagens contra as imagens. Para
Debord (2003), é necessária a destruição crítica da linguagem do espetáculo,
representação ilusória do não vivido, para enfim buscar uma arte que expresse de
forma negativa uma linguagem comum a ser restaurada.
Em A sociedade do espetáculo, Debord afirma que a história sempre existiu,
mas não sob a forma da história enquanto disciplina, pois a apropriação do tempo
se inicia a partir da sociedade de classes. Os proprietários do tempo detêm o
conhecimento, e “a história sobrevém, pois, perante os homens como um fator
estranho, como aquilo que eles não quiseram e do qual se julgavam abrigados”.
(DEBORD, 2003, p.87). Eles construíram uma memória impessoal vinculada ao
poder administrativo, pois “os escritos são o pensamento do Estado; os arquivos,
a sua memória”. (NOVALIS apud DEBORD, 2003, p.89). Para Debord, aqueles que
detêm a propriedade privada da história, a mais valia temporal (o nosso tempo
seria dominado pelo trabalho, e o tempo da história, pelas grandes narrativas),
inventam a história sob a proteção do mito e ao modo da ilusão.

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E é contra esses mitos e essas ilusões que atua o desvio. No “antifilme” Crítica
da separação, o narrador afirma, sobre a decupagem de um fotograma de um
filme histórico hollywoodiano, que “as aventuras que nos apresentam fazem parte
da massa de lendas transmitidas pelo cinema ou outras formas, são parte de toda
a farsa espetacular da história”.
No presente artigo, não nos voltamos para a apropriação desviante das
imagens de arquivo, empreendida no cinema de Guy Debord ou em obras como
Um dia na vida (2011), de Eduardo Coutinho, segundo a análise de Anita Leandro
(2012) 5 . Nossa proposta é discutir o filme-desvio enquanto mise-en-scène que

5
Nesse filme, Eduardo Coutinho montou, numa obra de uma hora e meia de duração, um total de 19
horas de imagens e sons registrados no dia 1° de outubro de 2009 e transmitidas pelos canais TV
Brasil, SBT, Globo, Bandeirantes, Record e MTV. O filme não apresenta créditos e as exibições
aconteciam furtivamente, de forma quase secreta, para não haver problemas com os direitos das

222

promove uma referência indireta. Buscamos investigar como Brasília, contradições


de uma cidade nova realiza o estilo da negação ao elaborar o contrário de uma
citação e, assim, desviar o discurso da utopia modernista, por meio da
assimilação dialética dos procedimentos formais de Brasília, planejamento urbano.

3. Filme oficial e cidade atemporal

Brasília, planejamento urbano se inicia com imagens aéreas do cerrado, em


planos progressivamente mais próximos da mata, enquanto o narrador afirma:
“Plantada no deserto, Brasília não é a decorrência de um plano regional, mas a
causa dele. A sua fundação é o que dará ensejo ao desenvolvimento planejado da
região. Trata-se da tradição de um gesto ainda desbravador, nos moldes da
tradição colonial”.
Nessas imagens, o cerrado surge como ícone da natureza virgem, espaço sem
passado onde se constrói uma nova cidade sobre o nada: a voz masculina tem
uma presença de porta-voz de um discurso onipotente, um verbo capaz de criar o
mundo tal como Deus ao dizer “faça-se a luz”. A música Brasília, sinfonia da
alvorada começa a tocar e ecoa a vitória de uma força criadora. A narração

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prossegue sobre as imagens da mata e o desenho de uma cruz e afirma: “nasceu
do gesto primário de quem assume um lugar e dele toma posse: dois eixos
cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”. Produz-se assim
uma associação entre o ícone cristão e o próprio traçado do planejamento urbano.
Segundo Michel Chion, um dos poderes atribuídos ao som é o poder gerador: “[...]
desde Yaveh, que proferiu o mundo, até o mito de Anfión, que construiu as
muralhas de Tebas tocando flauta e lira, religiões e lendas têm difundido que a voz

imagens detidos pelas emissoras. Segundo Anita Leandro (2012), o gesto fundamental do filme é a
alteração do dispositivo de exibição da televisão para a sala de projeção: “colocada à prova da tela
grande do cinema e da duração obrigatória de uma hora e meia de projeção, diante de um espectador,
a princípio, atento, a imagem da televisão passa a produzir um estranhamento: o horror, agora,
perturba, suscitando no espectador a análise do discurso que o produz e a avaliação de seus efeitos”.
(LEANDRO, 2012, p.20).

223

é o que faz surgir, inaugura, instaura ou fecunda, e o som musical tem uma força
criadora”. (CHION, 1999, p.171, tradução nossa).
Nessa introdução, o tempo cinematográfico articula o paradoxo de um tempo
histórico atemporal, vinculando imediatamente, de forma metafórica, à construção
de Brasília, no centro do país, ao “descobrimento” do Brasil, termo que apaga a
história dos que viviam na terra e ignora todo o violento processo colonizador.
Essas imagens que constroem a retórica de uma origem mítica de Brasília
remetem ao que Marilena Chauí (2001) afirma sobre o mito fundador (presente
inclusive no verde da bandeira nacional que se refere às matas). Segundo a
autora, ele embute a crença de que o Brasil é uma unidade, apesar de todas as
diferenças, e um dom de Deus e da natureza. Os mitos fundadores são soluções
imaginárias para conflitos e tensões, assentadas no passado concebido como
origem, um passado perene. No mito fundador, há um instante originário que
atribui significados ao presente; tal fundação é atemporal, situando-se para fora
da história. Segundo Chauí (2001, p.6), “um mito fundador é aquele que não cessa
de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e
ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a

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repetição de si mesmo”.
Brasília, planejamento urbano apresenta um travelling do ponto de vista de um
carro atravessando um túnel no eixo rodoviário, seguido por uma montagem
fragmentária de fotografias de placas de trânsito, semáforo, carros e pessoas nas
ruas, acompanhadas por ruídos de buzinas e trânsito que transmitem a sensação
de um caos urbano. Após a montagem de fotografias, o filme volta a mostrar
travellings pelo eixo rodoviário, enquanto o narrador elogia o tráfego de Brasília,
onde há áreas exclusivas para a circulação dos automóveis e os pedestres têm o
uso livre do chão. A montagem de fotografias, assim, serve para comparar a
realidade de metrópoles caóticas com a minuciosa organização da nova capital.
O filme traz imagens aéreas enquanto a voz over apresenta didaticamente o
eixo monumental através de uma plena correspondência entre imagens e
palavras: “Praça dos Três poderes, Esplanada dos Ministérios, este é o eixo
monumental, nele localizou-se a parte administrativa da nova capital”. Esses

224

enquadramentos dão a ver a cidade como uma maquete disposta ao olhar de um


observador onisciente e onividente “desencarnado” na voz do narrador. Nisso
reside o pacto entre a forma fílmica e o discurso utópico e urbanístico, que cria a
cidade como sujeito anônimo e abstrato submetido a um olhar totalizante e ao
controle. Nas palavras de Michel de Certeau (1998, p. 170), “ser apenas este
ponto que vê, eis a ficção do saber”.
Na sequência de apresentação do eixo monumental, há certa ambiguidade,
pois apesar de realizar um filme oficial em pleno ano do Golpe Militar, o cineasta
Fernando Coni Campos inscreveu no curta-metragem fagulhas de resistência e
crítica ao avanço do autoritarismo. O narrador expõe o conjunto de edifícios
destinado aos poderes fundamentais, enquanto mostra planos efêmeros dos
edifícios da Praça dos Três Poderes (que teria a forma de um triângulo eqüilátero,
segundo a voz que narra); nessas imagens, a sucessão dos enquadramentos
metaforiza a forma do triângulo equilátero (plano frontal que valoriza a altura do
Congresso Nacional, seguido de planos diagonais do Palácio da Justiça e do
Palácio do Governo, como se fossem os vértices da base do triângulo). Um
desses planos mostra um soldado sozinho ao longe e em frente a uma semiesfera

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do Congresso, seguido pela imagem de um soldado em primeiro plano olhando
para pessoas subindo na semiesfera, enquanto toca o trecho O planalto deserto,
da música Brasília, sinfonia da metrópole. A presença marcante do soldado diante
do povo nos remete a uma contestação, de forma muito sutil, daquilo que previa a
estrutura arquitetônica da Praça dos Três Poderes (em que o Congresso ganha
proeminência acima do governo no espaço), e traz também referências ao dia do
Golpe, quando tanques de guerra foram posicionados na Esplanada dos
Ministérios para destituir Jango, eleito pelo povo.
No percurso pelas superquadras, a câmera atravessa as ruas com um
movimento em que, primeiro, a câmera faz um travelling para frente, depois uma
panorâmica para trás, seguida de um travelling para trás. O narrador explica,
enquanto surgem imagens de prédios largos e área verde:

225

Superquadra é um quadrilátero de 240 por 240 metros, rodeado por uma área
arborizada de 20 metros de largura. Dentro das superquadras, os blocos residenciais
podem dispor-se da maneira mais variada, obedecendo, porém, a dois princípios
gerais: gabarito máximo de seis pavimentos, mais piloti e separação do tráfego de
pedestres.

O filme apresenta planos de crianças brincando num parque e também de um


carro fazendo uma curva, e, em seguida, um pedestre adentra o quadro
caminhando pela rua; em ambos os casos, a câmera faz uma panorâmica para
acompanhar o movimento do automóvel e do pedestre, transmitindo, por meio da
harmonia entre o movimento dos corpos e o da câmera, a plenitude de um tráfego
tranquilo por onde pessoas circulam livremente e carros estão livres de
engarrafamentos. Essas imagens são exemplares como contraponto elaborado
pela montagem, efetuando uma comparação entre o trânsito caótico das grandes
cidades brasileiras e a perfeição do tráfego brasiliense. As superquadras são
apresentadas pelo narrador e por esses enquadramentos como se o espaço e o
modo de vida dos habitantes se adequassem plenamente aos cálculos e objetivos
idealizados pelo planejamento urbano, e como se um novo mundo pudesse ser

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criado por uma arquitetura que transforma o espaço para além do tempo, pois o
único tempo existente é o futuro já presente.
O filme mostra planos de pessoas tomando banho de piscina e na beira do
Lago Paranoá, criado artificialmente para melhorar a umidade do ar. Os últimos
planos do filme são um travelling do ponto de vista do Lago Paranoá, seguido por
um plano frontal do Palácio da Alvorada, enquanto a voz afirma: “Assim, Brasília
foi concebida não como simples organismo capaz de satisfazer sem esforço as
funções vitais próprias de uma cidade moderna qualquer. Não apenas como
urbes, mas como civitas, possuidora dos atributos inerentes a uma capital”. A
natureza virgem do cerrado a ser desbravado, que aparecia nos planos iniciais, dá
lugar a uma natureza criada pelo ser humano através da beleza de piscinas e de
um lago artificial, em uma sequência final que celebra a capacidade do ser
humano de transformar o meio em que vive. No último plano, o Palácio da
Alvorada surge como símbolo de uma harmonia entre a residência onde habitam

226

representantes dos poderes instituídos e as residências dos habitantes da cidade,


entre a morada do presidente e o lar das pessoas comuns que vivem na capital.

4. Filme-desvio

Brasília, contradições de uma cidade nova começa com uma montagem de


fotografias ao som da música Invocação em defesa da pátria, da Orquestra
Nacional de Radiodifusão. As fotografias surgem na seguinte sequência: mapa do
Brasil com Brasília ao centro, com linhas que a ligam a todas as partes do país;
Congresso Nacional, muro, estrutura de uma construção, crianças brincando num
parque, Palácio da Alvorada, operários em uma construção, imagem em plongée
do povo, e, por fim, uma fotografia mostra um soldado em primeiro plano olhando
para pessoas subindo numa semiesfera do Congresso Nacional ao fundo do
quadro. Essa última fotografia é muito semelhante ao plano do soldado diante do
povo no Congresso que integra a sequência analisada anteriormente, presente no
filme Brasília, planejamento urbano. De saída, o filme de Joaquim Pedro de
Andrade recupera a imagem de Brasília, planejamento urbano que, naquele filme,
era apenas uma centelha de crítica ao autoritarismo em meio a um filme oficial

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marcado pela exaltação da utopia modernista. Brasília, contradições de uma
cidade nova começa assim: poderia ser um filme oficial que saúda o
desenvolvimentismo e o nacionalismo, mas não é. Como veremos adiante, a
sequência inicial do filme traz muitas semelhanças com o curta de Coni Campos,
criando um “falso filme oficial” que rompe o pacto com o espectador no decorrer
da obra.
Após a montagem de fotografias, Brasília, contradições de uma cidade nova
apresenta imagens a partir de um carro atravessando túneis no eixo rodoviário,
enquanto a voz over de Ferreira Gullar descreve a configuração da capital, e
informa: “a estrutura de Brasília é formada por dois grandes eixos que se cruzam
em ângulo reto: o eixo rodoviário e o eixo monumental. O traçado da cidade usa
os princípios da técnica rodoviária que foram aplicados à técnica urbanística”. O
filme mostra imagens aéreas do eixo rodoviário, então a câmera faz uma

227

panorâmica em um plano dos carros em movimento nas ruas circulares e retas, e


se inicia a música Trois Gymnopedies, de Erik Satie, enquanto o narrador informa
sobre a separação entre tráfego de pedestres e de veículos. O filme prossegue
com travelling lateral para frente seguido de panorâmica para trás diante dos
edifícios de uma superquadra, onde há uma área verde com crianças brincando.
Os princípios formais são muito semelhantes aos de Brasília, planejamento
urbano: enquadramentos, movimentos de câmera, espaços e “ação” (crianças no
parque) se assemelham. Outra similaridade é o narrador descorporalizado que
tudo sabe e tudo vê, e descreve minuciosamente a estrutura do Plano Piloto ao
som de música clássica (mesmo que aqui distinta, aportando uma ambiguidade
entre melancolia e ostentação ao ser confrontada com as imagens da cidade). Os
planos apresentam um espaço geométrico e um saber totalizante que se impõem
sobre os corpos dos habitantes.
No entanto, a narração rompe o pacto estabelecido inicialmente e cristaliza a
sua forma de “falso filme oficial”. Numa sequência que mostra imagens da piscina
de um clube repleto de pessoas e também planos de uma igreja na qual uma
missa está sendo celebrada, o narrador afirma que, no estágio atual da cidade,

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poucas unidades estão completas, e complementa: “Em Brasília, é frequente o
conflito entre arquitetura e ornamentação, entre a concepção do arquiteto e o
gosto do morador”. A voz over é interrompida por uma voz pertencente ao mundo
histórico, trata-se da voz do padre celebrando a missa, numa fala rápida e
abrupta: “para a distribuição dessas mortes”. Em outra sequência, o filme mostra
um cemitério pobre de túmulos de chão batido, onde acontece um enterro de um
caixão num buraco aberto por dois operários, seguido pelo cortejo de quatro
mulheres de luto, enquanto o narrador relata:

Longe desse bulício estão os cemitérios situados dos dois lados do eixo rodoviário.
Essa localização evita os cortejos através da travessia do centro urbano. Terão chão
de grama e serão convenientemente arborizados, com sepulturas rasas e lápides
singelas, à maneira inglesa. Tudo desprovido de qualquer ostentação.

Além de romper com o discurso utópico e urbanístico do início do filme ao

228

atentar para o conflito entre “a concepção do arquiteto e o gosto do morador”, a


interrupção da narração com a misteriosa frase do padre acerca dos mortos,
como também a ironia da voz over ao falar de um cemitério precário como sendo
feito “à maneira inglesa”, elaboram uma crítica de forma ambígua, em tempos de
censura, ao modernismo arquitetônico que ergueu uma cidade à custa das mortes
de muitos candangos que trabalhavam em condições de exploração. Essa
mudança no teor da narração é o que promove o desvio dos planos com
explicações didáticas sobre a estrutura do Plano Piloto e muito similares àqueles
de Brasília, planejamento urbano, e, desse modo, o desvio restitui a morte, o
passado esquecido e os conflitos ao plano.
Numa sequência bastante ousada para um filme realizado em plena ditadura
militar, Brasília, contradições de uma cidade nova apresenta imagens do interior
do Palácio da Alvorada, enquanto o narrador afirma: “apesar de seu desenho novo
e original, segue o mesmo princípio arquitetônico de uma casa grande brasileira,
com varanda em volta e capela lateral. Desde sua inauguração, teve vários
moradores”. Em seguida, o curta mostra fotografias e notícias de jornal
envolvendo os presidentes da república de até então ao som de uma música com

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ruídos de pássaros: foto de Juscelino Kubitschek, imagem de JK ao lado de Jânio
Quadros (a manchete informa que JK se preparava para a transmissão do seu
cargo para Jânio); foto de Jânio ao lado de Che Guevara em um jornal, e a notícia
informa que “o período de Jânio começou sob maciça aprovação e terminou com
uma lacônica mensagem de renúncia no Congresso”; zoom numa imagem de
João Goulart rodeado por militares; foto de militares em posição de continência
para Castelo Branco, que olha para a lente; imagem de jornal com o ditador Costa
e Silva.
Essa sequência de fotografias perfaz uma síntese de todo o processo de
decadência do projeto desenvolvimentista de JK que culminou, após as saídas de
Jânio e Jango, na vitória do autoritarismo através da ditadura militar. Em outra
sequência, o filme segue para entrevistas nas cidades-satélites, iniciando-se com
imagens do ponto de vista de um carro atravessando uma rua cercada de
pequenas casas e também imagens aéreas da cidade, enquanto o narrador relata:

229

“nascidas espontaneamente ou traçadas em amplas áreas desertas em torno da


capital, se desenvolvem horizontalmente segundo um esquema urbanístico
ultrapassado, em tudo oposto ao plano de Brasília”. Diferente de Brasília,
planejamento urbano, em que havia harmonia entre as áreas residenciais do Plano
Piloto e a residência do presidente da República, em Brasília, contradições de uma
cidade nova, A separação entre Palácio da Alvorada e cidades-satélites é
nitidamente uma separação entre casa grande e senzala.
Brasília, contradições de uma cidade nova traz ainda imagens em câmera na
mão de uma feira, e o narrador afirma: “vindos de várias regiões brasileiras,
principalmente do Nordeste, esses homens trouxeram consigo os hábitos e a
cultura de seu lugar de origem”. A câmera perscruta a feira onde se vendem
carne, verduras, frutas, artigos eletrônicos, e diversos personagens olham para a
objetiva. Nessa sequência, o filme passa dos quadros geométricos e do modelo
expositivo para os quadros físicos e dinâmicos 6 . O filme vai dos travellings
delicados para os movimentos de câmera na mão e o corpo a corpo junto com os
habitantes da cidade, numa alternância entre o documentário em que o sujeito
parece apartado do mundo que ele descreve, para o jogo com a circunstância da

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tomada ao modo do cinema verdade. No meio de uma sequência de entrevistas
com vários moradores da cidade-satélite que relatam suas precárias condições de
vida, aparecem imagens de trabalhadores construindo casas, e um
enquadramento mostra um grande volume de residências pobres amontoadas
desordenadamente, em que fica evidente a operação do filme de partir da falsa
conformidade do Plano Piloto para o crescimento desorganizado das cidades-
satélites, fazendo um movimento inverso ao de Brasília, planejamento urbano, que
partia das outras cidades brasileiras como caóticas para chegar à harmonia de
Brasília.

6
Na definição de Deleuze (1983), os quadros físicos são enquadramentos em que os limites seguem
até onde a potência do corpo exige, e são dinâmicos, posto que formados por uma construção
dinâmica em ação, pois dependem da cena, dos personagens e dos objetos que o preenchem.

230

5. O passado como devir

Brasília, planejamento urbano apresenta imagens da rodoviária da capital, com


planos do estacionamento, lanchonetes e de pessoas descendo escadas rolantes,
e o narrador informa que “o cruzamento do eixo monumental, de cota inferior,
com o eixo rodoviário, impôs a criação de uma grande plataforma, que funciona
como coração da cidade”. A sequência que apresenta a rodoviária termina com o
plano de um ônibus atravessando um longo trecho em frente ao eixo monumental,
de onde se vê a Praça dos Três Poderes ao fundo, enquanto o narrador afirma: “o
sistema de mão única obriga os ônibus a uma volta num ou noutro sentido, o que
permite ao viajante uma última vista do eixo monumental antes de entrar no eixo
rodoviário”.
Brasília, contradições de uma cidade nova também traz imagens da rodoviária.
A sequência começa com a câmera acompanhando um homem vestindo um
chapéu de couro que desce uma escada rolante, e a voz declara: “para a maioria
dos seus habitantes, Brasília é uma cidade como as outras. Dois terços dos que
trabalham em Brasília, incluindo os operários que a construíram, moram fora dos

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limites do planalto”. O filme mostra vários planos de grandes vilas na rodoviária,
em que os personagens olham diretamente para a câmera, ao som da música
Viramundo, na voz de Maria Bethânia. A sequência termina com o plano do ônibus
percorrendo a avenida em frente ao eixo monumental, num plano muito
semelhante àquele de Brasília, planejamento urbano, então vemos a Catedral, a
Esplanada dos Ministérios e o Congresso Nacional ao fundo do quadro, e Maria
Bethânia canta versos como “ser virado pelo mundo, que virou com certidão,
ainda viro este mundo, em festa, trabalho e pão”. A operação de desvio do filme
de Joaquim Pedro de Andrade transforma o espaço da rodoviária num lugar de
ligação na exclusão (entre Plano Piloto e cidades-satélites, entre Brasília e o
Nordeste), e a força das expressões dos personagens mirando a câmera dá a ver
a emergência de possibilidades de mudança no devir histórico.
Não por acaso, Brasília, contradições de uma cidade nova termina com
imagens da Praça dos Três Poderes, e o narrador afirma que “é preciso mudar

231

esta realidade, para que no rosto do povo se descubra o quanto uma cidade pode
ser bela”, seguindo-se imagens dos operários numa obra em construção. Como
afirma Agamben (1996, p.74), “[...] e o rosto é o único lugar da comunidade, a
única cidade possível”, pois o rosto é a revelação da própria linguagem, é o
sujeito exposto que é unicamente abertura e comunicabilidade, encontrando-se aí
o sentido político do rosto, pois “a exposição é o lugar da política”. (AGAMBEN,
1996, p.74). Para Agamben (1996), a desidentificação das qualidades do sujeito no
rosto visto como um fora devém pura comunicabilidade. Assim, nesse filme-
desvio, a crítica da linguagem espetacular e da verdade oficial se dá de modo
concomitante a uma busca por uma linguagem e uma comunicação a ser
recuperada em prol da transformação do mundo. A obra na qual os operários
trabalham e a obra de arte são aproximadas metaforicamente, e o filme mostra
que é necessário construir outro mundo não a partir dos intelectuais, como
propunha a utopia modernista e também o cinema novo, mas sim do próprio
povo. Em Brasília, contradições de uma cidade nova, o rosto é o tópus da utopia,
é a manifestação do devir.
Como afirma Aquino (2006) acerca da aproximação entre o desvio de Debord e

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o devir segundo Kierkegaard, Debord almejava a constituição de um comum
através da linguagem que decorre da construção e destruição de sentidos sem
cessar num devir histórico.
Segundo Kierkegaard (2008), o passado não pode ser refeito, mas nem por
isso ele é necessário: ele não é mais necessário nem mesmo do que o possível.
Necessidade é a unidade entre possibilidade e realidade, o que implica uma
distinção do ser, mas não da essência (o que diferencia possibilidade e realidade
é que a primeira é não-ser e a segunda é o ser). É preciso lembrar que o passado
deveio através da mudança em liberdade. O passado não se torna necessário por
causa de uma concepção, e “toda concepção do passado que pretende tê-lo
compreendido a fundo ao construí-lo, não faz senão ludibriar-se profundamente”.
(KIERKEGAARD, 2008 p.114). Além disso, o passado não é mais necessário do
que o futuro, o que implica dizer também que o futuro pertence à liberdade. Para
Kierkegaard (2008, p.126), o histórico não é o passado, mas “consiste em que ele

232

veio a ser (para o contemporâneo), consiste em que ele foi um presente por ter
vindo a ser (para o póstero)”. O fato histórico mantém-se em aberto, pois “aquele
fato é tão pouco necessário enquanto futuro como enquanto passado”.
(KIERKEGAARD, 2008 p.127).
Segundo Kierkegaard (2008), o fato histórico se mantém em aberto ao ser
retomado pelas determinações dialéticas do devir. É nesse sentido que Debord
propõe uma crítica histórica ancorada no presente e que recontextualiza a crítica
passada para cristalizar as contradições.

Em outras palavras, o détournement permite encontrar na mentira das palavras,


frases e textos oficializados momentos de verdade que, contudo, só se manifestam
quando desarranjados e recontextualizados com base no conhecimento crítico do
presente. O que aqui se manifesta na fluidez e no caráter histórico dessa linguagem
desviada é a distância e o recolhimento presentes de uma crítica social que persiste
precisamente porque se modificou. Nessa persistência modificada, ela busca
manter-se no devir, mantendo-se também as possibilidades não-realizadas.
(AQUINO, 2006 p.180).

Brasília, contradições de uma cidade nova se apropria de princípios formais e

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imagens de Brasília, planejamento urbano para confrontar a verdade do filme
oficial, que tecia o tempo histórico através do paradoxo de uma temporalidade
atemporal. O filme de Joaquim Pedro recontextualiza as imagens em cotejo com
as dinâmicas do presente, em que o presente é tensionado em suas relações com
o passado e o futuro, através de uma abertura para as possibilidades excluídas e
para o passado e o futuro como devir. Numa cartela de A sociedade do
espetáculo consta: “O mundo já foi filmado, resta agora ser transformado”, e é
essa a síntese da operação crítica de Brasília, contradições de uma cidade nova
enquanto filme-desvio.
Brasília já foi filmada, restaria transformar o modo de filmá-la. Transformar no
sentido de uma apropriação desviante elaborada em Brasília, contradições de uma
cidade nova do estilo empregado em Brasília, planejamento urbano. O estilo da
negação desenvolvido por Joaquim Pedro de Andrade conduz da exaltação do
planejamento às contradições da utopia no contexto do subdesenvolvimento

233

através de uma forma que vai dos enquadramentos geométricos diante de


monumentos à câmera na mão no corpo a corpo com o povo, da voz onisciente e
onividente à narração irônica, criando outros espaços, outras utopias e restituindo
o devir nas imagens e sons.

Referências

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Trad. Murilo Duarte Costa. Bollati Boringhieri: Torino, 1996. p. 74-80.

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<http://jcbernardet.blog.uol.com.br/arch2011-06-19_2011-06-25.html>. Acesso
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originalmente publicada em O Pasquim em 12 de novembro de 1974. Disponível
em: <http://www.contracampo.com.br/51/entrevistaconi.htm>. Acesso em: 10 abr.
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V OL . 5, N. 2 • REBECA 10 | J UL HO - D EZEM BRO 2016

Submetido em 10 de maio de 2016 | Aceito em 29 de novembro de 2016

235

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“Tercer Cine Cordobés”:


formas de la representación del otro1

Ximena Triquell2

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1
El presente texto expone resultados parciales de la investigación desarrollada en
conjunto con el Mgr. Santiago Ruiz en el marco del proyecto “Imágenes en
conflicto: Construcciones audiovisuales de la conflictividad social en la Argentina
contemporánea”, radicado en el Centro de Investigaciones de la Facultad de
Filosofía y Humanidades de la Universidad de Córdoba, Argentina.
2
Licenciada y Profesora en Letras por la Universidad Nacional de Córdoba,
Argentina. Magister y Doctora (PhD) en Teoría Crítica por la Universidad de
Nottingham, Inglaterra. Profesora Titular de Cine y Narrativa y Prof. Adjunta de
Semiótica en la Universidad Nacional de Córdoba, Argentina.
Investigadora de CONICET.
e-mail: xtriquell@gmail.com

237

Resumo

Este artigo recupera a tipologia proposta por Fernando Solanas e Octavio Getino, no final da
década dos anos sessenta, que define as categorias de Primeiro, Segundo e Terceiro Cinema. O
trabalho analisa a relevância destes conceitos e os recupera para abordar o chamado Novo Cinema
Cordobes, especificamente sobre o que faz com a representação dos setores populares. Para tanto,
são considerados os filmes De caravana (Ruiz, 2011), Yatasto (Paralluelo, 2012) e Guachos de la calle
(Schmucler, 2015).

Palavras-chave: Terceiro cinema; De caravana; Yatasto; Guachos de la calle.

Abstract

This paper recovers the typology proposed by Fernando Solanas and Octavio Getino at the end of
the sixties where they define the categories of First, Second, and Third Cinema. It reviews the relevance
of these concepts and recovers them to approach the so-called Nuevo Cine Cordobés (New Cinema
from Córdoba), paying particular attention to the representation of popular classes. In order to do this,
we consider the films: De Caravana (Ruiz, 2011), Yatasto (Paralluelo, 2012) y Guachos de la calle
(Schmucler, 2015).

Keywords: Third Cinema; De caravana; Yatasto; Guachos de la calle.

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Resumen

El presente artículo recupera la tipología propuesta por Fernando Solanas y Octavio Getino a
finales de la década del sesenta que define las categorías de Primer, Segundo y Tercer Cine. El trabajo
revisa la actualidad de estos conceptos y los recupera para abordar el llamado Nuevo Cine Cordobés,
específicamente en lo que hace a la representación de los sectores populares. Para ello se consideran
las películas De Caravana (Ruiz, 2011), Yatasto (Paralluelo, 2012) y Guachos de la calle (Schmucler,
2015).

Palabras clave: Tercer Cine; De caravana; Yatasto; Guachos de la calle.

238

Primer, Segundo y Tercer Cine

A finales de la década del 60, Fernando Solanas y Octavio Getino propusieron


una tipología de films con la cual describir la producción cinematográfica del
momento. Esta estaba compuesta por las categorías de Primer, Segundo y Tercer
Cine, las que referían respectivamente a los films comerciales, asociados a la
industria Hollywoodense –el Primer cine–, el cine de autor, que en Argentina se
asoció a lo que se conoce como la generación del 60 o los cineclubistas –el
Segundo cine– y, finalmente, el cine militante o Tercer cine, en el cual se
enmarcaba la producción del colectivo Cine Liberación, del cual formaban parte
Solanas y Getino junto a Gerardo Vallejo.
En diversos documentos, Solanas y Getino definen la tipología propuesta. En
“Hacia un Tercer Cine” lo hacen en estos términos:

Si en los inicios de la historia -o prehistoria- del cine, podía hablarse de un cine


alemán, de un cine italiano, de un cine sueco, etc. netamente diferenciados y
respondiendo a características culturales nacionales, hoy tales diferencias, al límite,

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no existen. Las fronteras se esfumaron paralelamente a la expansión del imperialismo
yanqui y al modelo de cine que aquél, dueño de la industria y de los mercados
impondría: el cine americano. [...] Al lado de esta industria y de sus estructuras,
nacen las instituciones del cine: los grandes festivales, las escuelas oficiales y,
colateralmente, las revistas y críticos que la justifican y contemplan. Estamos ante el
andamiaje del primer cine, del cine dominante, aquel que desde la metrópolis se
proyecta sobre los países dependientes y encuentra en estos sus obsecuentes
continuadores. [...] se proyecta sobre los países dependientes y encuentra en estos
sus obsecuentes continuadores. [...]

La primera alternativa del primer cine nace en nuestro país con el llamado “Cine de
Autor”, “Cine expresión” o “Nuevo Cine”. Este segundo cine significa un evidente
progreso en tanto reivindicación de la libertad del autor para expresarse de manera
no estandarizada, en tanto apertura o intento de descolonización cultural. Promueve
no sólo una nueva actitud, sino que aporta un conjunto de obras que en su momento
constituyeron la vanguardia del cine argentino, realizadas por: Del Carril, Torre
Nilsson, Ayala, Feldman, Murúa, Kohon, Khun y Fernando Birri que con Tiré Dié,

239

inaugura el documentalismo testimonial argentino. (SOLANAS y GETINO, 1973: 64 –


67)

Profundizando las diferencias de su propia producción con el Segundo Cine,


en otro documento aclaran:

En el Nuevo Cine Argentino confluían desde su origen, tanto las búsquedas de un


cine-comunicación (Escuela documental de Santa Fe, Fernando Birri, algunos
cortometrajistas) como las aspiraciones de otros (Torre Nilsson, Antín, etc.) que no
iban más allá de un cine expresión ¿Qué es lo que unía a unos y a otros? ¿La
“contestación al viejo cine, al Primer Cine, al cine “a la americana”? ¿La coincidencia
momentánea entre unos, a quienes importaba comunicar y otros a quienes sólo les
preocupaba apropiarse del cine de autor europeo para convertirse en sus
obsecuentes imitadores? Con un poco de benevolencia podría quizás englobarse
esta doble tentativa que alguien se equivocó en bautizar de “movimiento” bajo el
rótulo de Segundo Cine. (SOLANAS y GETINO, 1973: 39)

Finalmente, frente a estas dos formas de hacer cine, Solanas y Getino


proponen un Tercer Cine:

El hombre del Tercer Cine, ya sea desde un cine-guerrilla o un cine-acto, con la

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infinidad de categorías que contienen (cine-carta, cine-poema, cine-ensayo, cine-
panfleto, cine-informe, etc.) opone, ante todo, al cine-industria, un cine artesanal; al
cine de individuos, un cine de masas; al cine de autor, un cine de grupos operativos;
al cine de desinformación, un cine de información; al cine de evasión, un cine que
rescate la verdad; a un cine pasivo, un cine de agresión; a un cine institucionalizado,
un cine de guerrillas; a un cine espectáculo, un cine acto, un cine acción; a un cine
de destrucción, un cine simultáneamente de destrucción y de construcción; a un cine
hecho para el hombre viejo, para ellos, un cine a la medida del hombre nuevo: la
posibilidad que somos cada uno de nosotros. (SOLANAS y GETINO, 1973: 87-88)

Como se percibe en esta cita, Primer, Segundo y Tercer cine constituyen


categorías estético-políticas que involucran tanto la forma cinematográfica como
las condiciones de producción, distribución y exhibición: la producción colectiva
(en este caso, a través del Grupo Cine Liberación), el establecimiento de circuitos
alternativos de exhibición en escuelas, centros barriales, sindicatos, entre otras
condiciones, dan cuenta de la necesidad de realizar no sólo nuevos films, sino de
efectivamente crear un “nuevo cine”.

240

El Tercer cine debe ser, según sus forjadores, un cine de abordaje directo de la
realidad, de allí la preferencia por el registro documental –incluso en los films
ficcionales– ya que se trata de contraponer a las mentiras y las falsedades
impuestas por el colonialismo, una imagen verdadera que devele la realidad que
se pretende ocultar:

¿Qué es un cine de imágenes documentales, de hechos-testimonios, o de


abordamiento directo de la realidad sino un cine de dato y de prueba irrefutables?
Una imagen verídica es en sí misma -a ojos del pueblo- un fragmento de la realidad
que se ilumina. La imagen documental, el dato que no se discute, es decir, la prueba,
alcanza una importancia total frente a las “pruebas” del adversario. (SOLANAS y
GETINO, 1973: 162)

Solanas insiste sobre esta idea:

Testimonio y reflexión sobre la realidad porque la realidad estaba censurada.


Vivíamos en un mundo de ficciones, entre lo aparente y lo real. Lo que circulaba era
la ficción, las imágenes y la información sobre el país eran falsas. Por eso es que La
hora de los hornos comienza con una serie de frases escritas sobre negro, y una de
ellas es de Scalabrini y dice: “Son falsas las perspectiva y la historia que nos

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cuentan...”, entre otras cosas. Esta es un poco la idea de la película, que sale a
revelar, a correrle el velo a la realidad. Y lo documental es testimonio, es una prueba
irrefutable. (FERREIRA, 1995: 298)

De igual modo, este nuevo cine implica nuevas condiciones y lugares para los
espectadores. Frente al Primer cine, que presupone un espectador al que hay que
seducir, entretener o sorprender a través de la historia, la puesta en escena o los
efectos especiales; y frente al Segundo, que postula un espectador reflexivo
capaz de entender las problemáticas psicológicas o sociológicas planteadas con
una mirada atenta pero distante; se trata ahora de convocar a un espectador que
no sólo reflexione sobre la realidad que se le expone, sino que además participe
del film, dando continuidad a las propuestas de este bajo la forma de una praxis al
concluir la proyección. En función de este hacer, el “cine-acto”, forma propia del
Tercer cine, implica pausas en su proyección para dar lugar al debate y la
discusión política, rompiendo así con la noción de espectáculo.

241

El volante que acompañaba la presentación de La hora de los hornos hace


explícita esta modificación en el lugar propuesto al espectador:

Compañeros y amigos: Esta parte de La hora de los hornos no está concebida como
cine-espectáculo. El filme se niega como tal, se abre ante los participantes, y se
asume como acto. El filme será desarrollado y completado por los participantes,
únicos protagonistas de la historia que el film recoge y testimonia; lo que importa no
es la imagen fílmica, es el acto vivo que se abre en cada proyección.

La posibilidad de una comunicación profunda entre los compañeros que son


protagonistas de la lucha de liberación; aquéllos que están sobre la pantalla y en la
sala al mismo tiempo. El espacio del acto se transforma así en un espacio donde el
hombre profundizará su propia liberación; extrae conclusiones de su lucha pasada y
presente; adquiere conciencia de su real situación; discute sobre los caminos más
eficaces para la liberación. En cada proyección el filme provocará resultados nuevos,
porque sus protagonistas y el lugar y el momento de la proyección no serán nunca
los mismos. El filme es un instrumento para convocar el acto. A los organizadores de
estos actos para la liberación, los autores recomiendan recurrir a todos aquellos
elementos que refuercen el acto, que reactualicen los datos y testimonios
proporcionados por el filme y que proporcionen todos los medios posibles y
necesarios para facilitar la comunicación entre los participantes, sean aquellos

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música, poesía, un cuadro, un reportaje, una canción o un fraternal vaso de vino.
(SOLANAS y GETINO, 1973: 42-43)

El film deja así de ser una obra cerrada y acabada, y se abre como acto a la
experiencia de los espectadores, los que son interpelados también desde el lugar
de protagonistas, tanto del film, como de la historia que este documenta.

El Cine del Tercer Mundo

Michael Chanan, en su artículo titulado “Revisitando el Tercer Cine”, señala de


qué manera las categorías propuestas por Solanas se extendieron a todo el
continente y formaron la base de las discusiones que nutrieron, no sólo al
movimiento continental que se conoció como Nuevo Cine Latinomericano, sino
también a las discusiones en torno a los cines periféricos en todo el mundo:

“Hacia un Tercer cine”, pulsó una cuerda en toda América Latina e incluso más allá y
rápidamente fue traducido y publicado en pequeñas revistas dedicadas al cine y la

242

política cultural en varios idiomas y continentes. Junto con los escritos de Julio
García Espinosa en Cuba, Glauber Rocha en Brasil y algunos más, se convirtió en
uno de los textos definitorios del movimiento conocido como el Nuevo Cine
Latinoamericano que se desarrolló en los años 60s y 70s. (CHANAN, 2014: 16)

La transnacionalización de la propuesta de Solanas y Getino, implicó


igualmente una ampliación de las categorías propuestas:

El Primer cine es industrial y comercial –es el cine de los estudios y los productores–
Bollywood tanto como Hollywood (y hoy en día el Nollywood de Nigeria). El Segundo
cine es el cine del director, cómodo como en su casa en Europa (donde el director
más que el productor tiene el derecho al corte final) pero también en todos aquellos
casos en los cuales se logra introducir la producción independiente; es individualista,
psicológico, pequeño burgués y por lo general políticamente reformista. El Tercer
cine pertenece en su quintaescencia a las luchas colectivas. En su forma
paradigmática, la del cine militante, es el colectivo anónimo trabajando
clandestinamente, al modo en que Solanas y Getino hicieron La hora de los hornos, el
film que originó el manifiesto (y que forzó, casi de manera inevitable, a sus autores al
exilio). (CHANAN, 2014: 16 – 17)

En su misma designación la categoría "Tercer cine" resultaba fácilmente

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asimilable a la de "Tercer Mundo" y de este modo pasó de constituir una
descripción del campo cinematográfico argentino a configurarse como una
categoría descriptiva para el cine mundial.

El Tercer cine, en la teoría y en la práctica, implicó una redefinición del espacio


cinematográfico: un mapeo virtual del mundo del cine, claramente moldeado en la
Teoría de los tres mundos que guió los movimientos no alineados en los 60s, pero no
isomorfo con esta, ya que no están mapeadas una directamente sobre la otra. Los
tres mundos propuestos por los chinos en la Conferencia de Bandung en 1955
correspondían a la nueva configuración geopolítica que siguió a la Segunda Guerra
Mundial, en la cual el mundo estaba dividido entre países capitalistas (Primer
Mundo), países socialistas (Segundo mundo), y el resto –los países de Asia, África y
Latinoamérica, ya sea en el proceso de liberarse del colonialismo o ya postcoloniales,
como la mayoría de los países latinoamericanos, pero estancados en el
subdesarrollo. (CHANAN, 2014: 17)

El Tercer cine se configura entonces como el cine del Tercer Mundo, países en

243

los cuáles el colonialismo ha impuesto condiciones de explotación y miseria que


requieren primero denunciarse para luego revertirse. No obstante, tratándose,
como dijimos, de una categoría estético-política, su aparición no se limita a estos
países. De hecho, como recuerda una vez más Chanan, los propios Solanas y
Getino citan ejemplos de experiencias de Tercer cine en América del Norte,
Europa y Japón.

El Tercer Cine hoy

En el texto citado, Chanan propone que las condiciones actuales en relación al


abaratamiento de los costos de producción por medio del video primero y del
digital después y las facilidades de distribución gracias a las redes sociales e
Internet permite pensar una continuidad del Tercer cine.

Mucho se ha escrito sobre el efecto democratizador del video, el cual sirvió


rápidamente a la continuidad del Cine militante en el modelo del Tercer cine, aún
(quizás especialmente) bajo las circunstancias más hostiles como en Chile durante la
dictadura de Pinochet. A finales de los años 80, nuevos desarrollos como la aparición
del video indígena en Brasil –cortos en una variedad de estilos y géneros hechos por

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las comunidades indígenas para intercambiar entre ellas– sugieren que a pesar de la
disrupción tecnológica, el Tercer cine no estaba muriendo, sino al contrario, se
estaba transformando, rearmando, mostrando nuevos signos de vida, incluso antes
de la introducción del video digital, la edición por computadora y la internet.
(CHANAN, 2014: 25)

Chanan asocia este nuevo Tercer Cine principalmente al videoactivismo, pero


también allí podría ubicarse la enorme producción audiovisual que se realiza
actualmente desde distintos lugares: colectivos sociales, escuelas, prisiones,
hospitales neuropsiquiátricos, comunidades de pueblos originarios, cooperativas,
universidades, entre otros, aun cuando no tenga la voluntad explícita de denuncia
que caracterizaba al Tercer Cine de los sesentas.
Sin embargo, en la teorización de Chanan, la aparición del digital y
específicamente las posibilidades de distribución desterritorializada a través de la
web, hacen que las categorías anteriores requieran revisarse:

244

Si estas corrientes de actividad se han convertido en un diluvio a partir del


surgimiento del digital, este es obviamente un escenario en el cual la caracterización
anterior del espacio cinematográfico no puede permanecer igual. El elemento
abrumador es que la convergencia digital multiplica la producción y difusión de lo
audiovisual mediante la creación de enormes nuevos espacios virtuales de
intercambio cultural, incluyendo un gigantesco mercado comercial para descargar y
una zona pública paralela de libre difusión a través del compartir y de las redes
sociales, incluyendo redes punto a punto donde gran parte del contenido disponible
es pirateado. (CHANAN, 2014: 26)

Ante esta realidad, Chanan se pregunta si acaso:

¿No significa todo esto que el Tercer cine se ha disuelto y es ahora poco más que
una referencia histórica irónica y emblemática en el repertorio del postmodernismo y
la hibridación? ¿Puede todavía existir algo así como el Tercer cine en este escenario
ultramoderno? Y sin embargo, ¿acaso el Primer y el Segundo cine han dejado de
existir? (CHANAN, 2014: 26)

A lo que responde que, más allá de la terminología, lo que importa es "la


persistencia de una poética libre y radical que desafía la lógica perversa del poder
globalizado". Esto es sin dudas cierto para el cine mundial. No obstante, si

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recuperamos la categorización propuesta por Solanas ya no como marco para
pensar el cine global, sino como descripción del campo cinematográfico
argentino, esta sigue siendo de utilidad para observar la relación de las películas
producidas con proyectos que conjugan, como dijimos arriba, la dimensión
estética con la política.
En realidad, en este contexto, podría pensarse que las nuevas condiciones de
producción permiten no sólo recuperar las categorías propuestas por Solanas y
Getino en los ’60, sino incluso profundizar sus diferencias: el Primer cine ha
aumentado las posibilidades de efectos e intervenciones sobre la imagen
analógica, con una complejización cada vez mayor de los recursos utilizados; el
Segundo cine ha visto ampliadas sus posibilidades autorales al permitir reducir los
equipos de producción a una sola persona que puede efectivamente asumir el rol
de director-autor; finalmente, el Tercer cine ha visto multiplicadas sus formas de
producción, con equipos cada vez más accesibles tanto para el registro de audio

245

como de imagen, nuevas formas de circulación a través de las redes sociales y


nuevos mecanismos de producción y financiamiento, como el crowdfunding.

De Caravana, Yatasto, Guachos de la calle

En el marco del llamado Nuevo Cine Cordobés la categorización propuesta por


Solanas y Getino resulta útil para comenzar a mapear las producciones y los
proyectos cinematográficos que estas asumen. En este caso en particular nos
centraremos en tres films que buscan representar a los sectores populares de
nuestra ciudad. Se trata de De Caravana (Ruiz, 2011), Yatasto (Paralluelo, 2012) y
Guachos de la calle (Schmucler, 2015).
De estos tres, el primero y probablemente el más conocido sea De Caravana.
Este film fue financiado con los subsidios del INCAA otorgados en 2010 para tres
films de esta provincia: De caravana, como dijimos, Hipólito (Ciampanga, 2011) y
El invierno de los raros (Guerrero, 2011). Muchos críticos reconocen en este
financiamiento el inicio de lo que se conoce como Nuevo Cine Cordobés.
En este caso se trata de un film narrativo, dentro de los códigos de la comedia.
La trama desarrolla el encuentro entre un fotógrafo de clase media alta con una

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chica perteneciente a los sectores populares, a partir del cual se desencadenarán
una serie de peripecias que lo involucrarán en el mundo del delito.
De caravana obtuvo numerosos premios, entre ellos el premio del público en el
Festival Internacional de Mar del Plata, premio que no obtenía una película
argentina desde hacía muchos años. Y lo obtuvo justificadamente. La película es
fresca y divertida y describe espacios y situaciones propiamente cordobeses que
acercan al público a la realidad representada. Como afirma su director:

Hay varias escenas que son muy cordobesas y ahí se tensionan los límites. Sabía que
eran las que me iban a criticar, pero también son las que más le gustan al público
cordobés. Siempre me doy una vuelta por los cines para ver si ponen los afiches y
los banners, y me gusta ver las reacciones de la gente. Hay muchos momentos que
la gente festeja y hasta aplaude. Me parece que hay una identificación grande con lo

246

cordobés, por la razón de que no hay mucho cine cordobés. Esta es la primera
3
película que muestra algo muy contemporáneo de Córdoba.

Además de la fluidez de la trama, la película está muy cuidada en sus aspectos


técnicos. Hay acá un proyecto cinematográfico que no se pretende, o al menos no
abiertamente, político. Si toca representar a los sectores populares es solo como
exigencia de la trama: “chica pobre se enamora de chico rico”, pero no hay un
interés particular por esta representación. De allí que podamos asimilar a este film
al Primer cine, aunque con las consideraciones propias sobre lo que implica
producir cine desde el interior del país. Así, si bien las condiciones de producción
requirieron de estrategias asociativas (como la fundación del sello Córdoba
Produce Cine para distribuir los tres films financiados por el INCAA), sí puede
diferenciarse de producciones colectivas. Lo mismo sucede en las condiciones de
recepción, ligadas principalmente a la proyección en salas comerciales.
De caravana es una película muy cuidada, que da cuenta de que también
desde Córdoba se puede hacer cine con la misma calidad y dentro de los mismos
códigos que en otros lugares. Por el contrario, la segunda película que
consideramos, Yatasto, dirigida por el cineasta catalán radicado en Córdoba,

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Hermes Paralluelo Fernández, se propone otros objetivos.
En este caso se trata de un film que presenta fragmentos de la vida cotidiana
de un grupo de chicos habitantes del barrio Villa Urquiza de Córdoba. Los 98
minutos en los que se extiende no presentan una historia, sino que muestran un
registro cercano al documental: frente a cámara no hay actores, se mueven ante
ella los habitantes del barrio, quienes tampoco recrean en sus acciones y en sus
diálogos un guión preexistente, sino que simplemente desarrollan sus quehaceres
cotidianos, “viven” frente al ojo de la cámara. Lo que se muestra en la pantalla se
acerca a los registros caseros de extractos de la vida cotidiana de una familia,
donde nadie actúa, ni profesionalmente ni de manera amateur. De este modo, la

3
ANONIMO: "El buen momento del cine cordobés. Entrevista a Rosendo Ruiz y Rodrigo Guerrero" en
revista Alfilo, nro 32, julio-agosto 2011. Disponible en
http://www.ffyh.unc.edu.ar/alfilo/anteriores/32/sin-fronteras.html

247

película niega tanto el film de ficción como el film documental, ya que no hay ni
una trama ficcional que sostenga el primero, ni una intencionalidad argumentativa,
como se esperaría en el segundo.
En su artículo publicado en Diorama, Eva Cáceres4 relata que tanto el director
Paralluelo como el equipo de producción de “El Calefón” convivieron
prácticamente un año con los habitantes de Villa Urquiza hasta lograr la confianza
necesaria para llevar a cabo la propuesta del film. El resultado es notable: los
vecinos, devenidos actores de su propia historia, parecen ignorar la presencia de
una cámara “intrusa”, un objeto extraño a sus vidas de todos los días. Tanto en el
espacio del barrio como en las escenas desde arriba del carro pareciera no haber
nada ni nadie frente a ellos, solamente el paisaje que se despliega alrededor y en
el que buscan y negocian los elementos que les permiten sobrevivir.
En su registro cuasi etnográfico se percibe un interés que podríamos llamar
político, expresado en una voluntad de devolver a los niños retratados –situados
en los márgenes de una sociedad que no parece brindarles la protección que
necesitan– un lugar de mirada, de subjetividad, como sólo se puede hacer a través
del cine (los ejemplos sobran: Los 400 golpes, Crónica de un niño solo, por citar

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solo algunos títulos). Pero la misma organización estructural de la “trama”, que no
es, como dijimos, ni estrictamente narrativa ni argumental, impide reconocer a los
sujetos retratados: sabemos sus nombres –Pata, Bebo, Ricardito–, y podemos
reconstruir ciertas relaciones familiares (la hermana de Ricardito es Dámaris; la
“mama Chini” es la abuela), pero no se alcanzan a definir con claridad lazos de
continuidad a lo largo de la película como para ubicar a los personajes no en la
historia del film (que no es tal), sino en su historia misma de vida. Al esquivar las
estrategias de identificación –sin duda exageradas– del Primer cine, el film nos
impide igualmente acercarnos a los personajes: los vemos, sí, pero de lejos, con
un sentimiento de ajenidad que excluye toda empatía. Incluso la estrategia de
colocar la cámara sobre el carro, para acercar al espectador a la mirada de los

4
COZZA, Alejandro (comp): Diorama. Ensayos sobre cine contemporáneo de Córdoba. Córdoba,
Caballo Negro Editora, 2013.

248

niños, no alcanza para superar esta distancia.


En la mayor parte del film, la cámara intenta borrar toda marca de subjetividad
–toda marca del enunciador, podríamos decir–. El ojo de la cámara simplemente
está ahí, registrando. No obstante, su presencia no deja de percibirse en las
opciones estéticas, especialmente las decisiones tomadas en el rubro “fotografía”
(a cargo de Ezequiel Salinas y de Hermes Paralluelo Fernández). El cuidado puesto
en la iluminación de cada una de las escenas, ya sean las que se desarrollan en el
interior de los hogares, ya sean las realizadas en la calle (que van desde la
penumbra de los amaneceres hasta el refulgente sol de mediodía), constituye una
fuerte marca del enunciador que resulta en contradicción con la intencionalidad de
iluminar “un fragmento de la realidad”, como proponía Solanas.
Así, si bien el film posee características que lo acercan al Tercer cine –
fundamentalmente la voluntad de retratar y recuperar un lugar de representación
para la mirada y la palabra de los vecinos de Villa Urquiza– expone igualmente un
importante lugar de decisión autoral, que se vuelve evidente no a través de una
historia o del desarrollo de una trama argumentativa, sino por medio de las
decisiones estéticas respecto de cómo mostrar el mundo que se registra. Los

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integrantes de la productora “El calefón” son muy conscientes de esta elección:

Ante todo, nos interesa hacer cine de autor, nos interesa que haya una mirada
personal en cada film. Y eso trasciende un poco a los géneros que los contienen,
muchas veces un poco difusos también. Lo principal es que haya una búsqueda, una
intención de profundizar en lo formal y lo estético que usamos para decir algo. (Lucía
Torres, en Martín Iparraguirre, 2015)

Esta relación de los realizadores con el contenido se replica en relación al


espectador:

Desde que empezamos creo que la palabra que más surge como signo de nuestro
trabajo es “discusión”. Discutimos para hacer nuestras películas, las ponemos en
tensión, y creo que pretendemos que nuestras películas hagan lo mismo con su
espectador. Que no se establezca un vinculo dócil y adocenado, sino que le
interpelen. (Ezequiel Salinas en Martín Iparraguirre, 2015)

Tanto en su abordaje estético, como en la intencionalidad manifiesta por sus

249

realizadores, Yatasto puede ser asociado al Segundo Cine. En este coinciden


también sus condiciones de circulación y recepción, particularmente en el circuito
de festivales donde ha ganado numerosos premios, entre estos “Mejor Película
Argentina 2011 de la Competencia Internacional” de la 13° Edición del prestigioso
BAFICI, el Premio Especial del Jurado y Premio de la Juventud en el Festival de
Nueva Caledonia, Oceanía 2011, el Premio FIPRESCI de la Viennale 2011 y una
mención especial por opera prima en la Competencia Internacional 22°
FIDMarseille.
Cabe subrayar que no se trata de cuestionar las opciones realizadas por el
equipo de producción sino de analizarlas en el marco de las categorías
propuestas. Es cierto que también La hora de los hornos encontró su
consagración en un festival internacional pero este hecho contradice más bien el
lugar que se postulaba para el Tercer cine y por ello Solanas insistía en su
necesidad dadas las condiciones políticas de Argentina al momento del estreno.
A diferencia de los dos films anteriores, Guachos de la calle, Memorias del
desarraigo (Schmucler, 2015) no cuenta, al menos no todavía, con premios en
festivales. Es cierto que esto puede deberse a su reciente fecha de estreno pero

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también es necesario considerar el hecho de que este film está destinado a
circuitos y mecanismos de consagración diferentes.
Se trata de un documental en el que se narra, a partir de testimonios, la vida de
los integrantes del grupo Rimando Entreversos, un grupo de rap conformado por
chicos y chicas de barrios marginales de Córdoba. Son ellos quienes cuentan a
cámara sus historias, sus sueños, alegrías y dolores, intercalados con las
canciones del grupo. En estas reivindican su origen a la vez que denuncian la
discriminación de la que son objeto por parte de la sociedad y la persecución por
parte de la policía. Asumen así un lugar de enunciación propio –en sus canciones–
que el film pareciera simplemente mostrar. No obstante en cuanto avanzamos en
el visionado, descubrimos la participación de los chicos en el armado del film: en
escenas que parecen improvisadas frente a la cámara como si se tratara de un
registro casero; en algunas tomas que registran la realidad, en su aparición como
camarógrafos en los créditos finales. En paralelo una voz en off, que asociamos al

250

director, irrumpe de vez en cuando para contextualizar histórica e


ideológicamente, las historias de desarraigo que han desplazado a estos chicos y
chicas, como a sus familias, y a otras antes que a ellas, hacia los márgenes de la
sociedad.
El film se acerca así, tanto en su producción, como circulación y recepción a
los postulados del Tercer cine. A esto se agrega el financiamiento colectivo a
través del sistema que se conoce como crowdfunding y su exhibición en circuitos
alternativos enmarcada en eventos musicales y políticos. En el recurso a estas
estrategias, Schmucler es consciente de las diferencias de su cine en relación al
cine hegemónico, que nosotros hemos identificado como Primer cine:

Es estúpido que nosotros los cineastas que no trabajamos con Brad Pitt
pretendamos disputarle espacio porque Bruce Willis, Schwarzenegger, Brad Pitt
hacen una cosa […] que no es lo mismo que hacemos nosotros. Entonces pretender
competir con ellos en los mismos espacios realmente es una tarea ingenua te diría,
tonta, infantil. Esto que estamos haciendo ahora me descubre eso. Es la película
llevada donde está la gente, en los centros vecinales, las escuelas, en este caso, los
CPCs, cualquier espacio […] Hoy con cualquier proyector, con un pequeño equipo
de sonido ya tenés una proyección cinematográfica. Entonces no hace falta tener

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toda esa parafernalia, toda esa boludez y la cantidad de guita, millones, que implica
poder hacer una promoción para poder competir inútilmente con otra cosa, que yo
no discuto. No es que esté en contra del cine comercial, lo que digo es que nosotros
tenemos que establecer otros mecanismos, otras estrategias porque realmente
nunca nos va bien con eso.5

Más allá de estas estrategias de producción, también en cuanto al contenido


se reconoce la filiación de este film con los postulados del Tercer cine: la opción
por el documental buscando la posibilidad de representar “la realidad directa”, la
narración al servicio de la argumentación, la búsqueda de autenticidad e
inmediatez, el rechazo del film como espectáculo.
Este último punto articula el texto del film con su recepción ya que por un lado,

5
Entrevista a Sergio Schmucler en el programa “Voces del día”, de Radio La Ranchada, disponible en
http://laranchada.com.ar/voces-guachos-de-la-calle-la-pelicula-de-rimando-entreversos/

251

ni este se pretende un mero espectáculo a ser consumido desde la butaca de


cine, ni las proyecciones se proponen de este modo. A modo de ejemplo, en su
estreno en Ciudad Universitaria, en el mismo momento en que finalizó la
proyección del film, ingresaron a la sala grupos de estudiantes y de militantes con
tambores y otros instrumentos de percusión que venían de participar en la marcha
“Ni una menos”. A estos se sumaron casi en simultáneo los integrantes de la
banda con sus canciones, superando así toda distancia entre realidad y
representación. La continuidad entre el film y la realidad se repite, según su
director, en todas las presentaciones del film en la que los chicos participan:

La verdad es que me conmueve mucho lo que pasa siempre, cada vez que pasamos
la película, porque además de lo que pretende ser una reflexión y una crítica al
modelo de sociedad que construimos que es tan terrible en relación a ciertos
sectores que quedan siempre afuera, dejados de lado, excluidos, es muy interesante
lo que pasa cada vez que pasa la película y que están los chicos porque se vuelve
una vinculación, una comunicación tan directa con el público, que entonces la
película es solamente una herramienta más, lo importante es lo que pasa en el
vínculo entre los chicos de Rimando y el público y eso se ha vuelto realmente una
bomba, una bomba nuclear te diría, porque manifiesta la potencialidad y la

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posibilidad de hacer una tarea artística, poética y política que la verdad yo en toda mi
6
vida de cineasta nunca había disfrutado, nunca había vivido.

Esta potencialidad de continuidad entre la pantalla y la vida lleva al director a


postular que se trata de un “cine vivo”:

Esto es cine vivo. Yo en mi infancia iba al cine Cervantes en Córdoba y veía las de
cowboys y era un cine vivo también porque cuando empezaban los locos a tirar tiro
nosotros silbábamos, aplaudíamos y después ya no, después el cine se murió […]
con esta película y con este evento del que participan los chicos, se volvió a un cine
7
vivo pero esta vez de nuestra realidad.

Una placa final señala una vez más la continuidad entre el film y la realidad, al
enumerar la cantidad de veces que los chicos fueron detenidos o arrestados en el

6
Ibidem.
7
Ibidem.

252

transcurso del rodaje del film.

A modo de conclusión

La clasificación propuesta por Solanas y Getino a fines de los ’60 se enmarca


en un contexto signado por la movilización social y política y el espíritu
revolucionario. La Revolución Cubana y sus consecuencias –y posteriormente la
muerte del Che Guevara–, los movimientos de liberación africanos así como las
revueltas que culminaron en el Mayo Francés, marcaron una época fuertemente
politizada y asignaron dentro de esta un rol para el cine. En este contexto, los
planteos sobre el Tercer cine tomaban la forma no de un análisis sobre las
maneras de hacer cine, sino de un mandato ético dirigido a aquellos directores
que asumían una posición comprometida con los procesos políticos y sociales de
su tiempo.
No obstante, la categorización propuesta por Solanas excede ese contexto y
puede, como hemos demostrado en lo desarrollado arriba, ayudarnos a pensar
otros y nuevos problemas. Separados del mandato ético, la división entre Primero,
Segundo y Tercer Cine debe ser considerada en términos generales como la

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posibilidad de mapear un campo, en nuestro caso el Nuevo Cine Cordobés, más
que como marcos restrictivos para la lectura o interpretación de los films
particulares, los que, evidentemente, superan tal categorización. Es allí donde
radica su vigencia.

Bibliografia

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In: Screen, Volumen 26, Número 3-4, Mayo/Agosto 1985.

COZZA, Alejandro (Org.). Diorama. Ensayos sobre cine contemporáneo de


Córdoba. Córdoba, Caballo Negro Editora, 2013.

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FERREIRA, Fernando. Luz, cámara, memoria: una historia social del Cine
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253

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en https://lamiradaencendida.wordpress.com/. 2015. Acesso em 21/08/2015.

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social en Argentina (1896-1969), Nueva Librería, Buenos Aires, 2009.

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SOLANAS, Fernando. La mirada: Reflexiones sobre cine y cultura, Punto Sur,


Buenos Aires, 1989.

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Submetido em 24 de agosto de 2015 | Aceito em 20 de setembro de 2016

254

La dimensión fractal del teatro


en el cine argentino contemporáneo:
formas que se asemejan en diferentes escalas

Carolina Soria1

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1
Doctora en Historia y Teoría de las Artes (Universidad de Buenos Aires) y
profesora en la Cátedra de Historia del Cine Universal en la misma institución. Ha
publicado artículos sobre cine, teatro y televisión en revistas nacionales e
internacionales y participado en numerosos congresos. Actualmente está
realizando sus estudios posdoctorales (CONICET) sobre las nuevas narrativas
seriadas emitidas por la Televisión Pública argentina.
e-mail: soriacarolina@gmail.com

255

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar o texto dramático Fractal. Una especulación científica (2000) -
trabalho de criação coletiva escrito e dirigido por Rafael Spregelburd - no contexto de produção do
teatro dos anos noventa no cinema argentino contemporâneo, considerando-o como uma articulação
entre as duas formas de arte. Por um lado, porque condensa muito dos procedimentos utilizados no
teatro da década de noventa que entranham uma determinada concepção de prática cênica, do
processo de construção e da relação entre teatro e realidade que caracterizam especificamente o
chamado teatro de desintegração (PELLETTIERI, 2000; RODRÍGUEZ, 2000). Tais procedimentos são a
alienação e a preocupação com a linguagem, a desintegração da concepção tradicional do
personagem, a interação, não defender uma tese realista e empregar elementos absurdos. Por outro
lado, porque acreditamos que é um precedente chave do cinema que chamamos pós-dramático pela
repetição, em outra escala, das operações narrativas e estruturais, o status dos personagens e a
construção interativa ou efeito borboleta das cenas, elementos a serem discutidos no filme Viola (2012,
Matías Piñeiro).

Palavras-chave: Cinema e Teatro; Produtividade; Personagem; Narração.

Abstract

The aim of this article is to analyze the dramatic text Fractal. Una especulación científica (2000) —a

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collective creative work carried out under the direction of Rafael Spregelburd— in the context of the
productiveness of the Argentine theater of the nineties in contemporary cinema, considering the work
as hinge between the two art forms. On the one hand, because it condenses many of the procedures
used in the so-called theater of disintegration (PELLETTIERI, 2000; RODRÍGUEZ, 2000) which involves
a certain conception of the practice stage, the construction process and the link between theater and
reality. Such procedures are alienation and concern for the language, the disintegration of the
traditional conception of the character, iteration, not defend a realistic thesis and the use of absurdist
elements. On the other hand, because we believe it is a key precedent of what we decide to call
postdramatic or situational cinema, by the repetition, on another scale, of narrative and structural
operations, the status of the characters and the iterative construction or butterfly effect of the scenes,
focusing on the film Viola (2012, Matías Piñeiro).

Keywords: Cinema and Theater; Productiveness; Characters; Narration.

256

Resumen

En este artículo proponemos analizar el texto dramático Fractal. Una especulación científica (2000)
—obra de creación colectiva llevada a cabo bajo la dramaturgia y dirección de Rafael Spregelburd— en
el contexto de la productividad del teatro de los noventa en el cine argentino contemporáneo, en tanto
la consideramos una obra bisagra entre las dos manifestaciones artísticas. Por un lado, porque
condensa gran parte de los procedimientos empleados en el teatro de los noventa que entrañan una
determinada concepción de la práctica escénica, del proceso de construcción y del vínculo entre el
teatro y la realidad que caracterizan específicamente al denominado teatro de la desintegración
(PELLETTIERI, 2000; RODRÍGUEZ, 2000). Tales procedimientos son el enajenamiento y la
preocupación por el lenguaje, la desintegración de la concepción tradicional del personaje, la iteración,
no defender una tesis realista y emplear elementos absurdistas. Por otro lado, porque creemos que
constituye un precedente clave del cine que denominamos de situación o cine posdramático, por la
repetición, en otra escala, de las operaciones narrativas y estructurales, el estatuto de los personajes y
la construcción iterativa o efecto mariposa de las escenas, elementos que analizaremos en el film Viola
(2012, Matías Piñeiro).

Palabras clave: Cine y Teatro; Productividad; Personajes; Narración.

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Ante la variedad de rasgos diversos de nuestra cultura contemporánea,


muchas veces complejos e indescifrables, retomamos los postulados de Omar
Calabrese (1989) sobre la era neobarroca a través de los cuales define el gusto de
la época contemporánea o el “aire del tiempo” (CALABRESE, 1989: 12), gusto
que, no necesariamente, es el dominante. Según el semiólogo italiano, el
neobarroco 1 impregna muchos fenómenos culturales en todos los campos del
saber, haciéndolos familiares entre sí, al tiempo que los diferencia de formas
culturales pasadas. De esa manera, Calabrese manifiesta que se permite “asociar
ciertas teorías científicas de hoy (catástrofes, fractales, estructuras disipadoras,
teorías del caos), hasta de consumo cultural” (CALABRESE, 1989: 12). De esta cita
se desprende la posibilidad de identificar, en la cultura contemporánea, estéticas
irregulares con procesos de comunicación anómalos y dimensiones fractales. La
asociación que efectúa el semiólogo resulta nodal en este trabajo porque
podemos observar que las textualidades que analizamos, tanto dramáticas como
fílmicas, están atravesadas por aquello que caracteriza a la era neobarroca, y lo
expresan en su cualidad formal, como la exploración de dimensiones fractales, las
conexiones improbables, la edificación de estructuras complejas y caóticas, la

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preocupación por los detalles y las técnicas repetitivas. Calabrese define un objeto
fractal como “cualquier cosa cuya forma sea extremadamente irregular,
extremadamente interrumpida o accidentada, cualquiera que sea la escala en que
la examinamos” (CALABRESE, 1989: 136), y agrega que usualmente esta forma se
debe al azar, motivo por el cual resultan imprevisibles, indescifrables e
incalculables. Ahora bien, la pregunta o el primer inconveniente metodológico que
se nos presenta es ¿de qué manera podemos analizar lo imprevisible y lo
indescifrable? Si postulamos que las textualidades que proponemos examinar se
nos presentan de manera irregular y caótica y difícil de asir, ¿es posible, antes de

1
La hipótesis general de Calabrese es que gran parte de los fenómenos culturales de nuestro tiempo
están marcados por una «forma» interna específica que puede evocar el barroco (CALABRESE, 1989:
31). Si bien La era neobarroca es un trabajo publicado en 1989, consideramos que sus planteos tienen
plena vigencia para analizar las producciones artísticas más actuales.

258

comenzar, vislumbrar el método que nos permita establecer cierto orden dentro
del caos? En efecto, el panorama no es decisivamente negativo. Podemos, frente
a un sistema cultural dominado por el azar, la irregularidad y el caos, elaborar
descripciones e interpretaciones partiendo de los detalles que conforman cada
texto dramático y cada texto fílmico, a partir del reconocimiento de
microestructuras y procedimientos que se repiten en diferentes escalas a la
manera de los fractales.
Para tal fin analizaremos, en una primera instancia, el texto dramático Fractal.
Una especulación científica —obra de creación colectiva llevada a cabo bajo la
dirección de Rafael Spregelburd— en el marco de una de las formas de expresión
en las que encauzó el teatro en la década del noventa y que se denominó teatro
de la desintegración (PELLETTIERI, 2000; RODRÍGUEZ, 2000, 1999). La
consideramos una obra emblemática del diálogo entre dicho teatro y el cine
argentino contemporáneo por aglutinar, principalmente, los procedimientos
empleados en la práctica escénica —extrañamiento, indagación del lenguaje,
desintegración de la concepción tradicional del personaje, iteración, ausencia de
tesis realista, elementos absurdistas— y articular un proyecto creador similar. En

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una segunda instancia, la postulamos precursora del cine que denominamos de
situación o cine posdramático por la repetición, en otra escala, de las operaciones
narrativas y estructurales que examinaremos, en esta oportunidad, en el film Viola
(2012, Matías Piñeiro).

Fractal. Una especulación científica

Esta obra fue estrenada en octubre del 2000 en la Sala Batato Barea del Centro
Cultural Ricardo Rojas, Universidad de Buenos Aires. La descripción del proceso
de construcción que efectúan los actores en el Prólogo II del texto dramático
sintetiza, de manera precisa y eficaz, aquello que postulamos que sucede tanto en
el teatro como en el cine: “una catarata de situaciones que, algunas de manera
arbitraria y otras deliberada, se fueron uniendo con un hilo ahora invisible”
(SPREGELBURD, 2001: 12).

259

La poética de Spregelburd forma parte del teatro de la desintegración y entre


sus características destacamos la indagación sobre el lenguaje, la construcción
lúdica del mismo y la determinación de desligarlo de su referente real, quitándole
la función comunicativa y fática y privilegiando por encima de todo la función
metalingüistica. Derivado de esto y tal como señala Julia Elena Sagaseta, “la
secuencialidad narrativa y el estatuto del personaje estallan y se replantea el
concepto de estructura dramática” (SAGASETA, 2000: 208). El estilo escritural del
dramaturgo y director y los procedimientos empleados son explicitados por él
mismo en el Apéndice del texto Fractal. Ellos son la huida del símbolo, la
imaginación técnica, la multiplicación de sentido, el atentado lingüístico (ligado al
atentado al paradigma causa-efecto), la fuga del lenguaje, la desolemnización del
objeto, el procedimiento reflactafórico y el procedimiento de la producción
burguesa. Los mismos funcionan a la manera de la teoría del caos desde la cual el
autor parte para hablar de la naturaleza fractal de la creación: “la identidad de las
partes no es tan importante en sí misma, sólo refleja la totalidad a otra escala”
(SPREGELBURD, 2005: 31), y sobre la que volveremos más adelante.
Si nos adentramos en el texto dramático Fractal. Una especulación científica, lo

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primero que advertimos es que se trata de una obra colectiva construida sobre el
escenario, en la que los actores están integrados y participan activa y
creativamente en la edificación de la puesta en escena. El texto al que accedemos
como lectores es considerado por sus artífices como un “residuo escénico” y
poco legible como literatura (SPREGELBURD, 2001: 9). En el primer prólogo de la
obra, Spregelburd expresa la posibilidad de hacer teatro con todos los elementos,
y menciona aquellos que se utilizaron en la construcción de esta obra en
particular: libros de ciencia, autobiografías mentirosas, una caja de diapositivas de
Sierra Grande y una revista paraguaya. A su vez, explicita el procedimiento
actoral, “la actuación no es representación segunda de una idea literaria; la
actuación es operar sobre la situación” (SPREGELBURD, 2001: 8). En el segundo
prólogo escrito por los actores, estos dan cuenta del proceso de trabajo en el
montaje de la obra y lo que significa para ellos ser actores y producir sentido en el
teatro.

260

El texto se divide en dos partes, un “acá” y un “allá”, señalando, a primera


vista, una imprecisión absoluta en cuanto a la determinación de lugar. Sin
embargo, la vaguedad espacial marcada por estas locuciones adverbiales se
esclarece por los indicativos de lugar (una casa de familia, un monoambiente, una
segunda casa) e índices de realidad otorgados por las didascalias y los discursos
de los personajes: en el primer acto que se titula “Acá” se mencionan lugares
como el Cajero Banelco, la Radio 100, el Scrabel y calles que indican que las
acciones se desarrollan en la ciudad de Buenos Aires, como la mención a Rivera
Indarte, Gorriti, Ministro Carranza o Rivadavia; en el segundo acto, “Allá”, la
didascalia indica que la escena transcurre en la recepción de un hotel en el centro
de Asunción y el discurso verbal de Maricarmen lo confirma “Ahora me ves así,
varada acá en Paraguay” (SPREGELBURD, 2001: 96). Desde cada una de las dos
ciudades se remite a la otra ciudad como si se tratara de un lugar lejano y exótico
a la vez que atractivo.
En el interior del primer segmento se suceden, a modo de escenas o cuadros,
diferentes situaciones: la grabación de un video con un mensaje casero para
enviar a Asunción (Paraguay), el juego con la tabla Ouija, una feria americana,

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entre otras. Cada episodio funciona como totalidad, independiente de las demás,
pero con la particularidad de que un detalle de cada una—a la manera de un
fractal—es retomado más adelante, ya sea a través de un objeto (como el video
grabado en el primer episodio titulado “Home Video” o la voz del aire
acondicionado) o por alguno de los personajes.
Una de las tantas particularidades a resaltar en esta obra es que en el
programa de mano entregado en el estreno se adjuntaba un glosario (incluido en
la edición del texto dramático y a continuación de la ficha técnica) con algunas
claves que aluden a la teoría del caos y a algunos de sus científicos diseminadas a
lo largo del texto: Iteración, Efecto Mariposa, Solitón, Tsunami, Benoit Mandelbrot,
Giuseppe Peano, Ñuk, El choque de Brandsen. De todas ellas, nos centraremos
especialmente en el concepto de iteración, definido como “realimentación que
implica la continua reabsorción de lo que ocurrió antes” (SPREGELBURD, 2001:
20) y en el concepto de efecto mariposa, descripto como “un proceso de

261

amplificación donde el producto de una etapa se transforma en alimento de otra”


(SPREGELBURD, 2001: 20). Estas nociones nos remiten, por un lado, a aquello
que postula Karina Mauro (2013) respecto a la puesta en ritmo de la temporalidad
posdramática, consistente en la repetición de comportamientos no reveladores en
sí mismos que, a través de su reiteración constante o acelerada, resulta en una
división determinada de la escena. Y por otro, a las escenas en “loop” que
caracterizan, como veremos, al cine posdramático. Por lo tanto ambas nociones
apuntan a la permeabilidad dentro de una escena de un detalle de lo que ocurrió
en escenas anteriores, no precisamente en términos de causalidad sino de una
manera deliberada e imprevisible.
Asimismo, hay que destacar el recurso de la simultaneidad de las dos primeras
escenas del primer acto, paralelismo que recién es percibido en la segunda
escena titulada “Ouija” y que la podemos considerar como el fuera del cuadro de
la escena inicial. Cuando la Madre está terminando con los preparativos para
iniciar la grabación del video que quiere enviar a Paraguay (junto a los traductores
que están a su lado), le grita a su hija dirigiéndose hacia un supuesto espacio
contiguo: “¡Jime, no hagan ruido que vamos a grabar para Coco!”

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(SPREGELBURD 2001: 28). Y en la escena siguiente, mientras Mariana,
Constanza, Juan Carlos, Jimena 2, María Fernanda y Meche están sentadas
alrededor de una mesa jugando al juego de la copa, se escucha como voz en off a
la madre de Jimena 2 que grita la misma orden. En estas dos escenas iniciales y
en relación con el personaje de Jimena, a la vez que se instaura y señala el
desdoblamiento del personaje, se produce una superposición temporal de las
escenas que se desarrollan de forma sucesiva. Este procedimiento de
superposición temporal veremos que se repite, de manera idéntica, en Viola.
Una nueva concepción del texto y la comunicación forman parte de esta
dramaturgia posmoderna, materializándose de manera notable en esta obra. El
texto considerado como “residuo escénico” presenta un lenguaje autorreferencial,
en fuga y con múltiples sentidos. Los diálogos de los personajes se caracterizan
por la conversación banal y por aludir —atraídos por objetos triviales como una
diapositiva en la que se ven “tornillos dispuestos primorosamente sobre un fondo

262

de terciopelo rojo” (SPREGELBURD, 2001: 48) — a los preceptos de la teoría del


caos, como lo hace Maricarmen: “Mirá la totalidad y mirá las partes, qué lindo”
(SPREGELBURD, 2001: 48). Y es que la teoría del caos, cuya representación
geométrica es el fractal—objeto de estructura básica, fragmentada o irregular que
se repite en diferentes escalas—, atraviesa la obra spregelburdiana y traspasa a la
modalidad del cine argentino contemporáneo que nos ocupa. Esta teoría incluso
es explicitada por Maricarmen al visualizar una diapositiva con un triple
fotomontaje de un atardecer, al que denomina “los fractales de Julia”. Maricarmen
intenta con dificultad explicar la naturaleza de las dimensiones fractales hasta
concluir:

Son formas que se asemejan pero a diferentes escalas…es decir, todo sistema se
nos presenta como un lío, pero crea dentro suyo estructuras autosemejantes...¡en
todo! Por ejemplo, nosotros tenemos también una parte fractal…Representamos el
mundo como una miga (SPREGELBURD, 2001: 49).

Coincidimos con Martín Rodríguez (2000) al señalar que el teatro de la


desintegración asoma en nuestro campo teatral “como la continuidad estético-
ideológica del absurdo—poética de la cual incorporan lo abstracto del lenguaje

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escénico y la crisis del personaje como ente psicológico—” (RODRÍGUEZ, 2000:
463-464). Fue Martin Essling (1966) quien introdujo la noción de Teatro del
absurdo y describió sus procedimientos, especialmente a través del estudio de la
obra de Samuel Beckett, intertexto que atraviesa de manera directa e indirecta
nuestro corpus de estudio. Essling argumenta que las obras de Beckett carecen
de trama, no poseen un desarrollo lineal, nos ofrecen “la intuición del autor sobre
la condición humana” a través de un método polifónico y “se presentan al público
por medio de una estructura de proposiciones e imágenes que se compenetran
unas con otras, y que han de ser aprehendidas en su totalidad” (ESSLING, 1966:
33). De esta descripción vislumbramos algunas de las características de los
fractales —por ejemplo la de autosimilitud— que mencionamos en la introducción
y que provienen de la teoría del caos que domina las textualidades que
analizamos. Esslin, para determinar la estructura básica de la poética de Beckett,

263

al analizar Esperando a Godot, señala que la obra explora una situación estática
en la que los personajes no hacen más que esperar a Godot. En cada acto
Vladimir y Estragón intentan suicidarse sin lograrlo por diferentes motivos,
vacilaciones que “sirven para recalcar la esencial similitud de la situación, «plus ça
change, plus c’est la même chose»” (ESSLING, 1966: 34). Esta frase denomina
justamente la autosemejanza del sistema caótico y es expresada verbalmente por
el personaje de Maricarmen en la obra Fractal. Una especulación científica:
“Cuando más cambian las cosas, más se parecen” (SPREGELBURD, 2001: 48). Es
por ello que también percibimos una dimensión intertextual de nuestro corpus, el
cual revisita tanto el arte del pasado como también los preceptos de las ciencias,
configurando de esa forma una escritura fragmentaria. En ella, el fragmento se
convierte en un material “«desarqueologizado»: conserva la forma fractal debida a
la ocasión, pero no se reconduce a su hipotético entero, sino que se mantiene en
su forma ya autónoma” (CALABRESE, 1989: 102).
Como señala Anne Ubersfeld, “el discurso teatral, aún el más subjetivo, es un
conglomerado de otros discursos tomados de la cultura de la sociedad o, más
frecuentemente, de la capa social en que evoluciona el personaje” (UBERSFELD,

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1989: 196). Esa yuxtaposición de enunciados de diversa procedencia la
observamos en los diálogos de los personajes, quienes retoman muchas veces los
preceptos de disciplinas como la física y las matemáticas, la historia del arte, la
teoría de la relatividad y la teoría del caos. Asimismo insistimos en el uso
autorreflexivo del lenguaje que se intensifica con el evidenciamiento sistemático
del artificio, en tanto se ponen en escena los problemas de procedimiento a la vez
que se interpela al espectador (por ejemplo en la escena 3 titulada “Feria
Americana”, Maricarmen mira a público y efectúa un largo relato sobre un
accidente que presenció en Brandsen y sobre a su pasado).
En la última escena del primer acto —titulada “Ciego”— la alteración del
lenguaje y su función tradicional de comunicación domina toda la escena a través
de un diálogo completamente enmarañado entre Jimena 1, Jimena 2, Robert, la
Madre y Juan Carlos. Los personajes no se entienden y no escuchan lo que se
dicen, creando un clima de completa confusión que colinda con lo absurdo y en el

264

cual conviven los tappers, celulares Nokia, el kerosen y un anillo de cock. En el


cierre de este primer acto, Juan Carlos bajo los efectos de un conjuro y mientras
enciende el fuego tras rociar todo con kerosen, invoca: “¡Mandelbrot2!”, dando por
concluido los segmentos aunados bajo el nombre de “Acá”.
Lo irracional, ya plenamente instalado en los engranajes de la obra y en el
interior de cada escena, materializado por ejemplo en el aire acondicionado que
habla, termina por descollar cuando, en la única escena que conforma el segundo
acto titulada “Hotel Pontevedra”, la tenista recién llegada al hotel solicita un mapa
de la ciudad para “hacer amigos, conocer comidas de la región. Ver si hay
cataratas. Alguna disco. Ruinas” (SPREGELBURD, 2001: 102). La solicitud es
atendida por Maricarmen, quien le ofrece un mapa de Segovia porque “Es lo
mismo. (…) Los conceptos de centro y delimitación son idénticos en todo el
mundo. El centro es el centro” (SPREGELBURD, 2001: 103). Esta escena se
conecta con la inicial del primer acto, en tanto Marina recibe el video grabado y
editado por la Madre al comienzo de la obra, video dirigido a Coco O (personaje
completamente ausente dentro de la trama) y que funciona como puente entre los
dos actos. Una peculiaridad que observamos aquí es la construcción de un

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diálogo que emplea una forma de recursividad o puesta en abismo en el sentido
de que cada pregunta que efectúa un personaje es respondida por otra que hace
alusión al contenido de la primera:

Marina (respecto del video proveniente de Buenos Aires): ¿por qué me habrá llegado
a mí?

Leonor: Marina, ¿no se te ocurrió preguntarte por qué te habrá llegado a vos?

Marina: Pero, ¿de qué época será?

Leonor: Marina, ¿no se te ocurrió pensar de qué época será? (SPREGELBURD, 2001:
105).

2
Benoît Mandelbrot fue un matemático e inventor de la geometría fractal: “Llegué a comprender que la
autosimilitud, lejos de ser una propiedad tibia y poco interesante, era un poderoso medio para generar
formas” (SPREGELBURD, 2001: 21).

265

Y así sucesivamente. Como si de una conversación de sordos se tratara, el


diálogo resulta fallido e inútil y no produce un acuerdo o transformación sino que
gira sobre sí mismo permanentemente a la manera de un rombo, pasando por
diferentes estadios igualmente frustrados. Al respecto, en una entrevista, el
dramaturgo señala: “el teatro no es una herramienta de comunicación. Es una
herramienta de contagio, de locura, de transmisión de impresiones, pero no de
comunicación en el sentido estricto” (en PAGÉS, 2001). La palabra, en lugar de
revelar características de los personajes, estados de ánimos o aquello que no se
puede ver, vela todo tipo de información y se ramifica hacia diferentes lugares
constantemente. A la manera de un cadáver exquisito, de cada palabra o imagen
sugerida por uno de los personajes se desprenden muchas más. Luego del
diálogo recién citado, uno de los personajes (Clelia) se pregunta cómo se medirán
las épocas, a lo que las demás responden impulsiva e irracionalmente diferentes
cifras. Inmediatamente después, Leonor comparte una “curiosidad”, que es que el
cuerpo renueva sus células cada tres años y a pesar de eso uno sigue llamándose
así mismo “yo”, cuando en realidad no es la misma persona que antes. Se trata,
muchas veces, de reflexiones estériles que confunden a los mismos personajes.

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De la “curiosidad” recién expuesta, Erica responde: “Entonces yo no me digo más
‘Erica’… ¿Me digo ‘yo’, o al revés? ¿Puedo hablar de mí?” (SPREGELBURD, 2001:
106).
Como señala Jorge Dubatti en el Apéndice II de la obra

En Fractal es más importante lo no-dicho que lo dicho, la historia no visible de la


composición del espectáculo, que la narrativa visible y audible de los
acontecimientos (…) Fractal no busca la comunicación ni de sus procesos ni de sus
contenidos, sencillamente se muestra al público sin el afán de la transmisión de un
mensaje (DUBATTI, 2001: 143-144).

Con respecto a la construcción de los personajes, en una entrevista realizada


por Alicia Aisemberg (1997) a Spregelburd, y ante la pregunta acerca de si sus
personajes se definen por su discurso, el dramaturgo responde afirmativamente y
agrega que también están determinados por el mecanismo que los contiene.
Spregelburd sostiene que, a diferencia de la identidad fija de la noción habitual de

266

personaje, sus personajes tienen una identidad mutante y eso los vuelve más
realistas. “Lo que pasa a primer plano es lo que dicen por encima de lo que son.
Uno no puede decir que edad o qué profesión tienen. No están presos de un
comportamiento tipificable” (AISEMBERG, 1997: 95-96). Por ejemplo en el caso
de Fractal, la madre confiesa que a veces no reconoce a su “cambiante” hija
Jimena, que a veces aparece como Jimena 1 y otras como Jimena 2 dentro de
una misma escena, dos “Jimenas” diferentes que son interpretadas por dos
actrices (Laura Paredes y Valeria Correa). Si bien el reemplazo de una Jimena por
otra es percibida por su madre en la primera escena haciendo evidente el
procedimiento, en la siguiente escena la didascalia señala que luego de que el
personaje de Jimena 2 se levanta y sale: “Cuando reingresa con los fósforos, ya
no es Jimena 2 sino Jimena 1, que será interpretada por otra actriz. Nadie parece
notar la evidente sustitución, y de hecho cabe aclarar que el parecido entre las
dos es un misterio” (SPREGELBURD, 2001: 34). La escisión del personaje llega
aquí a su manifestación más extrema, a la vez que se complementa con su
cualidad enigmática y su comportamiento incomprensible.
En relación con el trabajo del actor, el dramaturgo manifiesta que en sus obras

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los actores no componen un personaje, sino que justamente el recurso que
emplean es la no composición, buscando de esa manera mostrar su “capacidad
imaginativa”, para ello “el actor debe entrenarse para ser un imaginador global del
fenómeno teatral, y no un mero representador de piezas” (en PERALES, 1999). Es
en la tensión entre varias situaciones de caracterización cuando surge la visión
personal de los actores. Esta participación activa y creativa por parte de los
actores la vimos explicitada más arriba, en el Prólogo II del texto dramático que
ellos mismos escriben y firman. Allí, justamente, manifiestan que su objetivo como
actores es ser productores de sentido, escribir con sus cuerpos y ser autores.
Asimismo, aducen que el texto impreso de la obra es producto de la prueba y el
error sobre el escenario:

No son textos representados por nosotros, sino que son el producto del descarte, el
reciclaje y el accidente que tiene lugar en el ensayo. Entendemos que cada vez más

267

es ése el trabajo que concierne al actor, y no otro (…). Y la actuación no es


representación” (SPREGELBURD, 2001: 13).

Así como Perla Zayas de Lima (2000) señalara que antes de los noventa el
teatro conformaba un “conjunto de signos autorreferenciales en una exhibición
que excluía todo proceso de significación” (ZAYAS DE LIMA, 2000: 116), en esta
nueva dramaturgia encontramos, de manera inversa, un mismo conjunto de signos
que plantean múltiples sentidos. Como sostiene Spregelburd en el Apéndice de
Fractal…, “Cada obra de arte inventa su lenguaje y propone sus significados, pero
fundamentalmente señala a sus sentidos” (SPREGELBURD, 2001: 116).
Por su parte, Lola Proaño-Gómez (2007) al referirse a las obras más crípticas
del teatro latinoamericano expresa que para lograr

una lectura más o menos comprensible, tenemos que dejar de lado la totalidad del
significado y poner atención a los detalles. Estos, a su vez, al final nos darán alguna
visión que, si bien no es totalizadora, al menos hacen posible entender un cierto
sentido que está por debajo de la escena, permitiéndonos establecer alguna
conexión entre el contenido manifiesto de la escena o el rompecabezas y su posible
significado (PROAÑO-GÓMEZ, 2007: 30).

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Como podemos inferir, hay también una dimensión fractal en el nivel
interpretativo que reside en la búsqueda del sentido del texto dramático a partir de
los detalles, los cuales al entrar en relación unos con otros, pueden ofrecer una
comprensión o interpretación general de la obra. Nos encontramos en definitiva
ante estructuras fragmentarias o episódicas en las que los acontecimientos
dramáticos se organizan de un modo no lineal y disruptivo, alterando la práctica
tradicional y realista de la ordenación causa-consecuencia. Es decir que no hay un
ordenamiento lógico y causal de los episodios sino que por el contrario estos se
disponen de un modo en apariencia arbitrario. Como señala Zygmunt Bauman
(2005), “en nuestros modernos tiempos líquidos, el mundo que nos rodea está
rebanado en fragmentos de escasa coordinación y nuestras vidas individuales
están cortadas en una sucesión de episodios mal trabados entre sí” (BAUMAN,
2005: 34). Cada escena se percibe como una totalidad independiente de las
demás y autosuficiente, en el sentido de que no precisa, para su comprensión, de

268

la escena que la precede y de la que le sucede. Es por ello que la noción de fractal
ilustra adecuadamente este tipo de estructura fragmentaria en la que cada una de
las partes, fragmentada e irregular, se repite en diferentes escalas. Este texto
dramático que analizamos, más allá de que se construye como una sumatoria de
situaciones discontinuas, en su totalidad edifica un universo poético que
proporciona la visión de mundo del autor y su modo de concebir la escena. Si bien
es preciso diseccionar cada una de sus partes con el fin de analizar sus elementos
y procedimientos constitutivos, la recursividad y la apertura semántica que
propone se logran en su visión de conjunto, como totalidad.

Hacia un Cine Posdramático

Los films de Matías Piñeiro (El hombre robado, 2007; Todos mienten, 2009;
Rosalinda, 2011; Viola, 2012 y La princesa de Francia, 2014), forman parte de un
cuerpo textual fílmico más amplio3 que denominamos cine posdramático. Varios
de los recursos empleados por el realizador coinciden con aquellos que definen la
naturaleza de las manifestaciones y prácticas teatrales pensadas bajo el nombre

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de teatro posdramático en términos de Hans-Thies Lehmann (2010). Entre ellos se
encuentran principalmente la desjerarquización de los procedimientos
cinematográficos que configuraron por décadas un sistema narrativo clásico,
circunscrito a la articulación de una trama desarrollada de un modo lineal y en
función de una estructura argumental organizada en las fases correspondiente de
introducción—desarrollo—desenlace. El énfasis en la historia deja de ocupar un
lugar primordial y por esa misma razón se desestabiliza la estructura argumental
clásica para reemplazarla por una estructura fragmentaria y arbitraria, que no
responde a una lógica causal, sino que por el contrario, describe una simple

3
Pueden incluirse dentro de lo que denominamos cine posdramático películas tales como Sábado
(2001, Juan Villegas), Todo juntos (2002, Federico León), Extraño (2003) y Cuatro mujeres descalzas
(2004, de Santiago Loza), A propósito de Buenos Aires (2006, AA.VV), Incómodos (2008, Esteban
Menis), Luego (2008, Carola Gliksberg), Castro (2009, Alejo Moguillansky), Ocio (2010, Alejandro
Lingenti y Juan Villegas) y Vidrios (2013, Ignacio Bollini y Federico Luis Tachella).

269

sucesión de secuencias de acontecimientos muchas veces inconexas o sino,


enlazadas de un modo endeble y aleatorio. La disrupción narrativa que caracteriza
a este conjunto textual fílmico promueve una lectura no lineal e irracional y exige
del espectador una participación activa en la recepción de la obra, en tanto es él
quien debe ordenar e interpretar aquello que se le ofrece de un modo caótico y
fortuito.
Así como el teatro posdramático pone el énfasis en los procedimientos a partir
de la indagación de los recursos escénicos, el cine posdramático también se
somete a la exploración permanente de las posibilidades expresivas y escriturales
del lenguaje cinematográfico, apelando a una libertad formal impensable dentro un
sistema narrativo clásico. El acento en las marcas enunciativas y por ende la
exaltación del artificio constructivo aquí también es un distintivo recurrente, y se
logra a partir del empleo repetido de extensos planos secuencias y la consiguiente
importancia otorgada al montaje interior dentro del cuadro. También el estatismo
de la cámara, sesgado por la movilidad y el fraccionamiento, opera de
contrapunto y otorga, en la impronta teatral que examinamos, un dinamismo
propio de naturaleza cinematográfica.

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En este cine que postulamos posdramático tampoco hay motivaciones
racionales que expliquen un devenir en el comportamiento de los personajes y de
la trama, sino que no hay presentación de los protagonistas, que aparecen en
cualquier momento del film sin ningún tipo de justificación y los vínculos entre
ellos si no son difusos, son inexistentes. En relación con la temporalidad se puede
identificar, al igual que en el teatro, la puesta en ritmo o “escenas en loop”
consistentes en la repetición sucesiva de una acción o diálogo con mínimas
variaciones, las cuales producen un efecto de acumulación a la vez que de
diversificación. Tomamos la acepción de ritmo que emplea Calabrese para definir
a la estética neobarroca como “la forma temporal en la que todos los miembros
repetidos varían en uno o más de sus atributos” (CALABRESE, 1989: 49). Por
último, los espacios también se presentan discontinuos y la mayor parte de las
veces, irreconocibles, constituyendo por su sola puesta en cuadro enclaves de la
mirada, en tanto predominan los espacios vacíos —desprovistos de personajes y

270

por lo tanto, de toda acción— que materializan el paso del tiempo.


Además de los procedimientos teatrales que observamos replicados tanto en
Rosalinda como Viola4, queremos precisar que estos films de Piñeiro constituyen
uno de los tantos vínculos existentes en la última década entre el teatro y el cine
argentinos. Nos referimos a aquellas películas que utilizan textos dramáticos
clásicos como punto de partida o como articuladores del universo que plantean
sin que sean por ello trasposiciones en el sentido tradicional del término, sino que
forman parte de lo que José Luis Sánchez Noriega (2000) denomina adaptaciones
libres. Ambas realizaciones de Piñeiro están inspiradas en las obras de
Shakespeare Como gustéis y Noche de reyes respectivamente. Se trata, en los
dos casos, de la exploración de la relación dialógica entre el teatro y el cine, esta
vez utilizando el universo teatral y sus autores como tema y disparador narrativo.
Dentro de la tipología que efectúa Pérez Bowie (2010) sobre la teatralidad en la
pantalla, estamos frente a manifestaciones que oscilan entre la “teatralidad como
especularidad simple”—por la inserción de fragmentos de representación con
función simbólica— y la “teatralidad como especularidad compleja”, en el sentido
de que asistimos a los ensayos y al proceso de gestación de la obra dramática

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cuyo tema tiene escasa o nula incidencia en el desarrollo del film que le sirve de
marco. La especularidad, según el teórico, no tendría que ver con la introducción
de un fragmento de una representación teatral en un momento puntual de la
ficción que la engloba, o ficción “marco”, sino que “se integra en el desarrollo
argumental constituyendo uno de sus núcleos temáticos” (PÉREZ BOWIE, 2010:
52).

Viola

Proponemos entonces adentrarnos en Viola para observar el modo en que se


materializan las características expuestas y comunes a ambas manifestaciones
artísticas. El tema principal de este film de Piñeiro es el amor y el desamor en las

4
Los dos films forman parte, junto a La princesa de Francia (2014, Matías Piñeiro) de la “trilogía
shakespereana” del director.

271

relaciones de pareja en el espacio de los ensayos teatrales, ámbito dentro del cual
el realizador indaga sobre los roles femeninos en las comedias de Shakespeare.
Los cuerpos y los rostros de las actrices Sabrina (Elisa Carricajo) y Cecilia
(Agustina Muñoz) se muestran, en toda su dimensión y desde todos los ángulos
posibles, como cuerpos deseantes. El deseo atraviesa el film e impregna cada uno
de los numerosos primeros planos que lo conforman. Retóricamente, el film está
anclado en una Buenos Aires contemporánea y la amplitud de sus calles
registradas en planos generales son el contrapunto de la intimidad y de los
espacios interiores en los que se desenvuelven y accionan los personajes en la
mayoría de las escenas.

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Elisa Carricajo y Agustina Muñoz en Viola, Matías Piñeiro

La narración avanza y se alterna entre dos vectores principales: el de las


actrices, que ensayan incansablemente por un lado, y el de Viola por otro, quien
entrega personalmente en su bicicleta CDs y DVDs con música y películas
pirateadas por su novio. Las primeras habitan en la quietud del espacio interior,
dentro del cual y paradójicamente, el deseo y la voracidad de los personajes al
ensayar y repetir sus textos teatrales fluyen y se despliegan en toda su dimensión.

272

Viola, en cambio, habita el espacio exterior, circula de un lugar a otro, y pese a su


movimiento constante y en contraste con el resto de los personajes femeninos, es
un personaje que se caracteriza por la quietud, el vacío y la falta de deseo.

María Villar en Viola, de Matías Piñeiro

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La escena inicial inaugura el mecanismo de repetición que regirá el film, en
donde vemos a Sabrina, en picado primero y en un sutil contrapicado después,
que termina una relación amorosa por teléfono y ordena a su interlocutor a repetir
la frase “Sabrina no me quiere” una y otra vez. A continuación asistimos a una
función teatral en donde la vemos, junto a Cecilia, representar textos de la obra
Noche de Reyes de William Shakespeare a partir de insistentes primeros planos. A
medida que avanza la narración, el ensayo del texto que articulaba la función
invade todas las escenas entre Sabrina y Cecilia, deviniendo, por un lado, el
componente central del intercambio verbal entre las actrices y por otro, el pretexto
que legitima la figura de la repetición que caracteriza en gran parte las
realizaciones del director. En una escena, las actrices están tan absortas en la
tarea de repetir una y otra vez los mismos textos, que ignoran el teléfono y el
timbre que suenan insistentemente, impidiendo el ingreso del exterior en esa

273

intimidad que comparten. Sobre la técnica repetitiva que señalamos proveniente


del teatro el realizador manifiesta:

La escena del ensayo en loop fue el inicio de la película. (…) me planteé encontrar las
variaciones en la repetición. No es una mera acumulación. Me preguntaba cómo
podemos ir más allá del texto y ver lo que hay entre las palabras a partir de esta
traducción (en BREGA, s/f).

Es decir que en el recurso de la repetición, más allá de que se produzcan


mínimas variaciones, subyace algo que trasciende la aparente o inmediata
impresión de automatización y que coincide con las exploraciones dramatúrgicas
tanto de Spregelburd como de Federico León, de poder vislumbrar aquello que las
palabras no pueden nombrar. Es en dicha automatización, producto de la
repetición, en donde adquiere pregnancia el proceso de construcción y la
artificialidad de las obras —tanto dramáticas como fílmicas—, la cual nos interpela
para atribuirle un sentido.
Es a través de Viola que recorremos los diferentes barrios porteños (Paternal,
Villa Crespo y Caballito) y algunos de sus monumentos emblemáticos como el Cid
Campeador. El cambio de punto de vista o focalización entre las dos líneas

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narrativas del film, al igual que ocurría en Fractal, se construye a partir de la
superposición o repetición temporal entre ambas, dado que primero vemos una
escena desde el interior y luego desde el exterior. Por ejemplo, Sabrina habla por
teléfono e indica la dirección del lugar en donde se encuentra para recibir un
pedido y luego ensaya con Cecilia una y otra vez un mismo texto, ignorando el
timbre que suena. La escena siguiente se sitúa en el exterior junto a Viola, a quien
vemos primero realizar sucesivas entregas y desplazarse en diferentes
direcciones, llamar por teléfono a Sabrina para pedir la dirección de la sala teatral
y luego llegar a destino, tocar el timbre y golpear la puerta sin recibir inicialmente
una respuesta. Cuando finalmente le abren y los personajes convergen en el
mismo plano, se efectúa un sugerente y atractivo desbalance entre el campo
visual y el auditivo: Sabrina no tiene la plata para pagar tantas películas que
encargó Agustín y le sugiere a Viola que vaya directamente a entregárselas a él.

274

Mientras llegan a un acuerdo, los personajes quedan en la profundidad del plano


fuera de foco mientras Cecilia, en primer plano, riega unas plantas.

Agustina Muñoz en Viola, Matías Piñeiro

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Podemos inferir en esta composición del plano un desbalance también entre el
diálogo “mundano” y el artístico: mientras escuchamos con total nitidez la
conversación trivial y operativa de la entrega de películas, la imagen relega a los
personajes al fondo del cuadro; en cambio, los diálogos teatrales que las actrices
repetían antes de la irrupción de Viola eran subrayados enfáticamente con
insistentes primeros planos visuales.
Al llegar Viola a su último destino, se vuelve a cruzar con Cecilia, quien la invita
a esperar en su auto, mientras esperan que Agustín llegue a su casa. La escena
que tiene lugar a continuación es un sueño que tiene Viola tras quedarse dormida,
el cual, al carecer de marcas convencionales que lo identifiquen como tal, puede
pasar desapercibido. Piñeiro manifiesta5 que es en ese momento del sueño (“lugar

5
Entrevista realizada al director por Sergio Wolf en el programa Nuevo Cine Argentino el Canal de la
Ciudad. Disponible en: https://www.youtube.com/watch?v=WfxhNfSXnvA

275

que no debería ser del todo confiable”) donde se plantean soluciones a la trama y
Viola cuestiona su personalidad y su proceder ante la vida y ante sus relaciones. El
sueño se construye mediante un extenso plano secuencia cerrado sobre el rostro
de Viola, quien dirige su mirada hacia el fuera de campo en donde están situadas,
y representadas mediante voces en off, sus interlocutoras (Cecilia y Ruth). Y es en
dicha conversación donde se termina de configurar el personaje que da nombre al
film, y en donde percibimos una referencia simbólica a la nueva disposición
actoral y a las características de los personajes del cine posdramático: “sos
bastante pasiva y sin embargo te pasa de todo. No hace falta que hagas mucho
porque las cosas se hacen por vos”. Asimismo y en relación con la pasividad y el
automatismo, los personajes reflexionan sobre las acciones cotidianas
mecanizadas, las cuales dicen “que son lo mismo que no hacer nada”.

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María Villar en Viola, Matías Piñeiro

Luego de este sueño y en la escena final, Viola se encuentra en la casa de su


novio y —a través de su voz en off y de un primer plano de su rostro— hace
mención del sueño que tuvo y relata su futuro inmediato en el que finalmente, y
más allá de su pasividad, “todo terminó cambiando”.

276

Por último queremos señalar también el cruce e intercambio permanente de los


teatristas en ambas formas culturales, y mencionar que algunas de las actrices de
Fractal…, como Elisa Carricajo y Laura Paredes, forman parte de la mayoría de los
elencos del cine argentino de la segunda mitad de la década del dos mil,
especialmente en los films de Matías Piñeiro y Alejo Moguillansky. En el caso
particular de los films de Piñeiro, hay una continuidad tanto temática como
estilística a lo largo de sus obras que trasciende la elección permanente de las
mismas actrices. Es evidente el vínculo que sus películas mantienen entre sí, así
como también con la historia, la literatura, el teatro y el cine, un diálogo que lejos
de presentarse como una relación intertextual se muestra a partir de la exploración
lúdica de la materia prima de cada campo cultural: textos históricos
autobiográficos (Todos mienten), textos dramáticos del teatro isabelino (Rosalinda,
Viola y La princesa de Francia), la literatura argentina y la composición de
imágenes que remiten a la historia del cine universal (Rosalinda, El hombre
robado).
Para concluir, retomamos el principio de la complejidad que postula Calabrese
para referirse a la indecibilidad de los fenómenos culturales, circunstancia que se

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haya en consonancia con descubrimientos científicos y teorías filosóficas que
hacia la década del ochenta —a partir de la “serie desorden-azar-caos-
irregularidad-indefinido” (CALABRESE, 1989: 134) —repercutieron mediante una
transformación radical en la ciencia y en la ciencia de la cultura. De esta forma, los
resultados adquiridos en disciplinas científicas, según el semiólogo, modificaron la
percepción de los fractales, los cuales alcanzaron los umbrales de la estética y de
los medios de comunicación, asentándose de manera decisiva en los textos
dramáticos y fílmicos analizados.

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Submetido em 8 de dezembro de 2015 | Aceito em 1 de novembro de 2016

279

Da Portela para a Mangueira:


um passeio pela mediação nos documentários
O mistério do samba e O samba que mora em mim

Guilherme Carréra Campos Leal1

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1
Guilherme Carréra é doutorando em Artes e Mídia na University of Westminster,
em Londres, Reino Unido, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes).
e-mail: guilhermecarrera@gmail.com

280

Resumo

O presente artigo tem como premissa apresentar dados sobre a produção documentária brasileira
focada na temática do samba (a partir da base da Agência Nacional do Cinema, do Portal Filme B e da
Cinemateca Brasileira), a fim de analisar particularmente dois documentários de longa-metragem
interessados na representação desse universo no cinema. O mistério do samba (Carolina Jabor e Lula
Buarque de Hollanda, 2008) e O samba que mora em mim (Georgia Guerra-Peixe, 2012) enfocam
personagens e lugares historicamente associados à discussão: a Velha Guarda da Portela, no subúrbio
de Oswaldo Cruz, e os moradores do Morro da Mangueira, respectivamente. Questões sobre a relação
estabelecida entre quem filma e quem é filmado são o cerne deste artigo, cujo objetivo é pôr luz sobre
o debate que circunda a realização de documentários sobre samba no Brasil.

Palavras-chave: Samba; Documentário; Mercado cinematográfico;


Representação.

Abstract

This article aims to present data on the production of Brazilian documentaries about samba (from
the database of the Agência Nacional do Cinema, Portal Filme B and the Cinemateca Nacional) in order
to discuss two samba long-length documentaries in particular. O mistério do samba (Carolina Jabor

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and Lula Buarque de Hollanda, 2008) and O samba que mora em mim (Georgia Guerra-Peixe, 2012)
deal with characters and places historically associated with this discussion: the Velha Guarda da
Portela, in the suburbs of Oswaldo Cruz, and the residents of Morro da Mangueira, respectively.
Questions about the relationship established between who films and who is filmed are the core of this
article, which aims to shed light on the debate surrounding the documentary production about samba
in Brazil.

Keywords: Samba; Documentary; Cinematic market; Representation.

281

A produção documentária pós-Retomada

Considerando dados da Agência Nacional do Cinema (2014) sobre o


desempenho de filmes brasileiros lançados entre 1995 e 2014, 2013 foi o ano em
que mais documentários chegaram às salas comerciais no país. A comparação é
feita tendo como base os títulos computados desde a Retomada do cinema
brasileiro até o último ano com dados devidamente enumerados. De janeiro a
dezembro daquele ano, 129 produções vieram a público. Desse total, 77 foram
ficções; 50, documentários; e duas, animações. Os números são um marco, pois
aparecem como o cume de uma curva ascendente do gênero. No ano inaugural
da Retomada, por exemplo, 14 filmes foram lançados, sendo 11 deles ficções e
três documentários. Obviamente, o retraimento desses dados tem justificativa: o
país saía do impeachment presidencial que colocou Fernando Collor de Mello fora
do Palácio do Planalto. O então presidente fora o responsável pela extinção da
Embrafilme, entre outros órgãos estatais relacionados ao desenvolvimento da
cultura, por meio do Programa Nacional de Desestatização (PND), logo no início
de seu mandato, em março de 1990. Como consequência, apenas três filmes

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foram comercializados em 1992, representando 0,05% do público daquele ano,
como mostra o portal Filme B (2014). Com o surgimento da Ancine, o mercado
retomou fôlego, também amparado no incentivo à produção por renúncia fiscal via
Lei Rouanet e por editais promovidos, não só pela própria Ancine, como pelos
gigantes Petrobras e BNDES. Criada no governo federal de Fernando Henrique
Cardoso, a Ancine fomenta, regula e fiscaliza a indústria nacional, desde 2001.
No que diz respeito à produção documental, o estudo mostra que demorou
oito anos até a quantidade de lançamentos chegar à casa dos dois dígitos. Em
2002, dez documentários conseguiram preencher as salas de exibição comercial.
Antes disso, o gênero oscilava entre um e oito exemplares. Curiosamente, o ano
de 2003 trouxe uma ambivalência: enquanto o market share do cinema nacional
batia recorde com 22% na participação total, o número de documentários
despencava para quatro, sinalizando a instabilidade do gênero. (PORTAL FILME
B, 2014). A partir de 2004, no entanto, a quantia referente a não ficções nunca

282

ficou abaixo de 15 exemplares, com destaque para os anos de 2007, 2009 e 2011,
com 34, 39 e 42 lançamentos, respectivamente. Dez anos depois da ambivalência,
2013 não só foi o ano com mais documentários lançados (50), como também foi o
ano com mais filmes lançados (129). Em 2014, por sua vez, foram 114
lançamentos, sendo 74 ficções, 36 documentários e quatro animações. (ANCINE,
2014). Essa trajetória numérica nos obriga a procurar pelos documentários que
deram forma à estatística oficial. Mais especificamente, por aqueles que têm o
samba como centro.
A recuperação do cinema documentário produzido no Brasil se beneficiou da
política cinematográfica implementada em meados dos anos 1990, mas também
foi possibilitada pelo investimento direto no gênero. Consuelo Lins e Cláudia
Mesquita (2011) elencam a criação de festivais temáticos, passando pela
ampliação dos editais de fomento, aumento do número de produções
documentais nas TVs aberta e fechada e demanda de interessados em cursos
práticos e teóricos, até o debate acadêmico acerca dos meios e linguagens do
documentário contemporâneo, como alguns dos fatores preponderantes nesse
cenário. Estreita-se também a relação entre produtores e consumidores de

V OL . 5, N. 2 • REBECA 10 | J UL HO - D EZEM BRO 2016


conteúdo, como se a captação e a veiculação de uma imagem não mais fossem
um domínio unilateral. Crescem, portanto, o jornalismo colaborativo, o
investimento em reality shows, o poder da internet. As imagens que passam a
circular no cinema, na televisão e na galeria de arte não apenas ocupam lugares
díspares, mas partem de lugares díspares. Não falamos de um cenário robusto,
sólido, estabelecido, mas plural. Essa pluralidade em muito tem a ver com uma
dissolução de fronteiras, característica da produção contemporânea. O contexto é
mais fluido: nem os realizadores respondem necessariamente a orientações
políticas, nem os filmes se deixam apreender por completo por movimentos
cinematográficos. De onde falam esses realizadores, onde se localizam esses
filmes?

283

60
50
50
42
39
40 34
32 31
30 24 25

20 15 15
8 10
10 3 4 3 4
1 2 2
0
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
Documentários lançados comercialmente no Brasil, segundo a Ancine
(2014)

Gráfico 1 – Compilação de filmes comercializados de 1995 a 2013.


Fonte: Elaborado pelo autor.

Tem samba na Cinemateca

Antes de mais nada, é preciso esclarecer que a seguinte análise de dados tem

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como premissa a base fornecida pela Cinemateca Brasileira (2014), disponível em
endereço eletrônico. O órgão, por sua vez, faz duas considerações prévias: a
base de dados informativa não tem relação direta com um possível acervo
audiovisual (ou seja, a Cinemateca não possui necessariamente cópia física ou
digitalizada dos filmes citados), assim como nem todos os filmes produzidos no
país (seja sobre samba, seja sobre quaisquer outros temas) estão
automaticamente enumerados na referida base. Trata-se, portanto, de um trabalho
em processo. Ainda, é importante ressaltar que obras relevantes ao gênero do
documentário, como Nelson Cavaquinho, dirigida por Leon Hirszman, e Saravah,
de Pierre Barough, ambas lançadas em 1969, ainda não haviam sido adicionadas
à listagem oficial à época da escrita deste artigo. Da mesma forma, por exemplo,
que Samba (2000), focado nos movimentos da dança, e Coração do samba
(2002), preocupado em investigar a bateria da Escola de Samba Mangueira,
ambas as produções de Theresa Jessourun, também não integram o banco de

284

dados atual.
Isso posto, a procura pelo termo “documentário”, no entanto, já disponibiliza a
consulta de expressivos 15.136 títulos. Refinando a busca, acrescentando o termo
“samba”, ficam disponíveis 108 títulos, entre curtas, médias e longas-metragens.
O registro mais antigo data de 1928: O carnaval cantado no Rio, um curta-
metragem filmado em 35 mm, dirigido e produzido por Francisco Serrador. De
fato, trata-se de uma das primeiras imagens do carnaval brasileiro, aquele que
surgia no Rio de Janeiro federal. A sinopse da época já avisava: “Reportagem
completa da última folia no Rio – Os mais interessantes aspectos com cantos de
canções (sic), chulas, lundus e sambas por um grupo de vozes do Flor de
Abacate, do Rio. Clubes, ranchos, bailes e outros detalhes”. (CINEMATECA
BRASILEIRA, 2014). O formato de reportagem audiovisual dialoga com a
propaganda política articulada pelo Brasil República do início do século XX. É o
momento no qual se buscava uma unidade nacional, lapidava-se uma identidade
brasileira, tateando aquilo que era uma incógnita. É ainda o momento em que o
cinema passa a ser visto como meio ideal de propagação dessa incógnita, a ser
revelada aos poucos. E passa também a ser consumido, sobretudo depois da

V OL . 5, N. 2 • REBECA 10 | J UL HO - D EZEM BRO 2016


década de 1930, de maneira mais regular pelos espectadores. A chegada do
cinema sonoro influencia diretamente essa assimilação. Não só no Rio de Janeiro,
mas em outras capitais, as películas passam a ganhar visibilidade, assim como
dão também visibilidade a certos temas. Reportagens sobre carnaval, desfiles e
apresentações não eram raras na tela. (ARAÚJO, 1985). A pesquisadora Márcia
Carvalho (2008), no entanto, lembra-nos de que, nas primeiras décadas daquele
século, já era comum a música ter lugar de destaque em filmes ficcionais
produzidos antes mesmo da chegada do som. Entre 1908 e 1912, por exemplo,
tornou-se comum a exibição de filmes cuja técnica de sonorização era básica:
cantores que se posicionavam atrás da tela interpretavam canções ao vivo para
acompanhar as imagens projetadas. Eram os filmes cantantes que viriam a
popularizar ainda mais o mercado fonográfico brasileiro.
Único representante dos anos 1930, o curta-metragem Deixa a baiana sambar,
produzido pela Sonofilms S. A., não chegou a circular, pelo menos na ocasião de

285

seu lançamento. Na consulta virtual à Cinemateca Brasileira (2014), consta que a


fita foi censurada entre os dias 1º e 15º de setembro de 1939. Também não há
registros de produções realizadas nos anos 1940. A maior parte dos
documentários sobre samba começaria a ser produzida a partir da década de
1950, talvez impulsionada pelo êxito das chanchadas carnavalescas. (VIANY,
1993). Daquela década, há três títulos listados. Dentre eles, dois curtas e o
primeiro longa citado. Samba fantástico é de 1955 e conta a história de um
compositor que quer compor um samba que retrate toda a beleza do Brasil,
enquanto diferentes imagens do país ilustram a tela. Dirigido pelos franceses Jean
Manzon e René Persin, fez a façanha de abocanhar o prêmio de melhor
documentário no Festival de Cannes daquele ano. Na década de 1960, o número
decola de três para onze, incluindo Nossa escola de samba, segmento da
Caravana Farkas sobre a Unidos de Vila Isabel, filmado entre 1964 e 1965 e
lançado em 1968. No calor do Cinema Novo, não só as produções de Thomaz
Farkas assumiriam assuntos populares como diretriz, mas as produções do
movimento como um todo. (RAMOS, 2013).
As referências aos anos 1970 predominam no arquivo: são 35 produções

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catalogadas. A essa altura, a abordagem documental já tem contornos mais
definidos em relação ao samba. Três exemplos nos ajudam a perceber mais
claramente esse delineamento. Memória do carnaval, dirigido por Alice Gonzaga
Assaf, tem um papel importante. Já em 1976, interessa-se por refletir sobre
imagens de arquivo do carnaval carioca. Trechos do clássico da Cinédia A voz do
carnaval (1933), inclusive, são usados como forma de acessar o passado. Em
Conversa de botequim (com João da Baiana), vamos ao encontro de um
personagem. Lançado em 1972, o curta de Luiz Carlos Lacerda abre diálogo com
o sambista não apenas para falar sobre sua contribuição ao samba, mas sobre as
origens do samba em si, já uma preocupação discursiva. Inexplorado na
contemporaneidade, a associação direta entre o gênero e sua origem africana
mereceu a atenção do Centro de Documentação da Funarte, responsável pelo
curta Samba de caboclo (1977). Nesse curta, o interesse parece estar no aspecto
ritualístico da manifestação: investigam-se valores africanos e brasileiros, a partir

286

de um grupo do município fluminense de São João de Meriti.


Filmado na década de 1970, mas apenas lançado em 1982, Partido alto,
dirigido pelo cinemanovista Leon Hirszman, investiga o samba de partido-alto
como aquele tradicional, simples, fácil, embora seu contexto social reserve
embates não tão harmoniosos assim. A escolha pela narração de Paulinho da
Viola, em ascensão no mercado fonográfico à época, em detrimento de Argemiro,
Candeia ou Casquinha, considerados periféricos, diz muito a respeito da
necessidade de mediação para o samba conseguir um lugar ao sol. Vale ainda o
registro de A linguagem de Orson Welles (1988), curta-metragem de Rogério
Sganzerla que reúne três depoimentos sobre a visita ao Brasil do cineasta norte-
americano citado no título, no ano de 1942. O filme, por sua vez, é derivado do
longa-metragem Nem tudo é verdade, lançado em 1986, pelo próprio Sganzerla.
Enquanto o curta é classificado como documentário, o longa traz em si um misto
de ficção e não ficção, que reverberaria na produção contemporânea. Naquela
década, 12 documentários de estirpe similar seriam realizados.
Durante a década da Retomada, esse número se mantém na casa dos 12
exemplares. Em 1992, ano em que apenas três filmes chegaram às salas

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comerciais, o curta Amigo Lupi (1992) ocupa um lugar privilegiado. Além de
reiterar o gosto do documentário musical brasileiro por perfilar figuras ilustres, tal
qual Lupicínio Rodrigues, o filme de Beto Rodrigues é certamente um dos poucos
registros feitos no calor do fechamento da Embrafilme. Em alguma medida, aposta
no resgate da memória oral dos amigos do cantor gaúcho. Em Zweig: a morte em
cena (1995), há um investimento ainda maior no testemunho memorialístico, o
mesmo que se faria notar em mais produções documentárias, dali adiante. O curta
de Sylvio Back mistura depoimentos contemporâneos a imagens dos anos 1940.
O elemento carnavalesco é perpassado por um entrecho doloroso: o suicídio do
escritor austríaco Stefan Zweig e de sua mulher Lotte, logo após o carnaval de
1942.
Chegando ao século XXI, 33 documentários atravessados de algum modo pela
temática do samba ganharam as telas, sendo 31 na primeira década e 2 já
computados na segunda década. A quantidade é similar à da década de 1970,

287

mas a atualização da base de dados on-line não para. Como assinalamos


previamente, a Cinemateca Brasileira (2014) sabe que aquilo que ela disponibiliza
não se trata de um número final, mas de um parcial em vias de ser ampliado
periodicamente 1 . Diante das estatísticas e dos filmes por trás das estatísticas,
podem perceber-se variações do aumento no número da produção documental,
decorrente do desenvolvimento do Cinema Novo nos anos 1960 e 1970, ao
período recessivo dos anos 1990, equilibrado pela volta do incentivo à produção
na segunda metade da década. Se nos inclinarmos sobre a produção
contemporânea, considerando o que vem sendo feito desde os anos 2000,
percebemos um material mais volumoso. Em parte, pelo próprio desenvolvimento
da indústria cinematográfica e pelo incentivo à prática documentária no Brasil,
como destacamos anteriormente, mas em parte também pelo crescente interesse
em localizar o samba, esse elemento que nasce às margens para tornar-se
fundante da identidade brasileira, em relação à sociedade à qual ele pertence.

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1
Nesse sentido, é importante frisar que os dados aqui apresentados referem-se ao mês de dezembro
de 2014 e que novos títulos devem ser acrescidos brevemente.

288

40
35
35 31
30
25
20
15 11 12 12
10
5 3 2
1 1 0
0
1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010

Documentários sobre samba, segundo a Cinemateca Brasileira (2014)

Gráfico 2 – Em dezembro de 2014, a Cinemateca Brasileira ofereceu como resposta 108 títulos, a partir
dos termos “documentário” e “samba”.
Fonte: Elaborado pelo autor.

Sendo os últimos 15 anos responsáveis por cerca de 33 documentários sobre


samba, é interessante frisar que a abordagem ao tema pode ser bastante elástica.

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De modo geral, esses documentários nos parecem ser construídos a partir de três
enfoques distintos, porém não excludentes e possivelmente imbricados: perfis de
sambistas e/ou personagens ligados ao samba, investigações centradas no
gênero em si (sua trajetória histórica, por exemplo) ou ainda argumentos que
trabalham o samba de maneira correlata (como pano de fundo de outra
discussão). Além de terem se destacado no circuito cinematográfico, O mistério
do samba (2008), dirigido por Carolina Jabor e Lula Buarque de Hollanda, e O
samba que mora em mim (2012), dirigido por Georgia Guerra-Peixe, parecem
trabalhar o tema a partir de enfoques díspares (o primeiro centrado em um
personagem; o segundo, no cotidiano do Morro da Mangueira), mas sem restringir
seu poder de ação. Assim, embora O mistério do samba trate da Velha Guarda da
Portela como perfilado, também nos parece interessado em retratar o samba
como a cultura de determinado grupo social. Similarmente, O samba que mora em
mim, ainda que focado em discutir o samba a partir de um recorte geográfico,

289

também se debruça sobre personagens para costurar a narrativa documental que


se propõe a contar. Assim como esses longas-metragens, outros recentemente
lançados abordam o tema por esse viés do personagem e/ou de seu entorno,
como vemos, por exemplo, em Cartola – Música para os olhos (Lírio Ferreira e
Hilton Lacerda, 2007), Onde a coruja dorme (Márcia Derraik e Simplício Neto,
2012) e Paulinho da Viola – Meu tempo é hoje (Izabel Jaguaribe, 2003). À parte
essa justificativa, falar sobre O mistério do samba e O samba que mora em mim é,
na verdade, falar sobre Portela e Mangueira, não apenas as duas mais
importantes escolas de samba do país, como também símbolos de certa ideia de
brasilidade. Abaixo, procuramos levantar apontamentos sobre como esses filmes
enquadram a música na imagem, ou seja, o samba na tela. Mais ainda, como se
dá a relação entre quem filma esse samba e quem é filmado nessa tela.

Os mistérios da Portela

No ano de 1998, a cantora Marisa Monte deu início a uma pesquisa que tinha
como objetivo reunir sambas inéditos da Velha Guarda da Portela em um CD. Para
isso, foi ao encontro dos sambistas, teve acesso a gravações caseiras, descobriu

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letras em pedaços de papel. Essa catalogação, para posterior seleção, tinha como
parâmetro o disco Portela passado de glória (RGE), organizado por Paulinho da
Viola em 1970. O projeto do cantor foi pioneiro ao pôr luz sobre composições que
corriam o risco de serem esquecidas por não fazerem parte de acervo formal
algum. Dessa iniciativa, inclusive, teria surgido um padrão de Velha Guarda, da
formação do coletivo a sua atuação profissional, que viria a ser copiado por outros
grupos de sambistas, veteranos de outras escolas de samba. Tudo azul (EMI), o
CD lapidado por Marisa Monte, chegou às prateleiras em 2000. “Marisa levantou
mais de cem músicas, em grande parte inéditas, que corriam, portanto, o risco de
desaparecer”, explica a jornalista Lena Frias, em texto disponível no site oficial da
cantora. (MARISA MONTE, 2014). Ao todo, 18 músicas foram gravadas. Parte
desse processo foi documentada em vídeo. É a semente de O mistério do samba,
documentário dirigido por Carolina Jabor e Lula Buarque de Hollanda, com

290

produção da Conspiração Filmes, Phonomotor e Natura.


Lançado dez anos depois da pesquisa inicial para Tudo azul, o longa-
metragem de 90 minutos fez sua primeira aparição na disputada seleção oficial do
Festival de Cannes, em 2008. No Brasil, receberia os prêmios de melhor
documentário e melhor montagem (Natara Ney) no Grande Prêmio Vivo do Cinema
Brasileiro, um ano depois. Esse relativo sucesso pode ser justificado pelas
próprias figuras de Marisa Monte e Paulinho da Viola, além de Zeca Pagodinho, os
três presentes em cena. Nos créditos iniciais, entretanto, há um detalhe que
provoca aqueles que defendem o êxito do filme apenas por conta dessas ilustres
presenças: “Velha Guarda da Portela em O mistério do samba”. De antemão, o
filme nos quer cientes: trata-se de um documentário em que a protagonista é a
Velha Guarda da Portela. Não são historiadores, sociólogos, antropólogos. Não
são músicos formados fora do ambiente portelense. Não é a audiência que
consome aquele som. É O mistério do samba que vai até Oswaldo Cruz, subúrbio
da Zona Norte do Rio de Janeiro, berço da Escola de Samba Portela, reduto da
Velha Guarda. Essa oscilação de protagonismo, no entanto, é um primeiro
apontamento sobre o documentário. E é uma oscilação presente também, em

V OL . 5, N. 2 • REBECA 10 | J UL HO - D EZEM BRO 2016


maior ou menor medida, em O samba que mora em mim.
O que esses (e outros filmes) possuem em comum talvez seja uma tensão
(atemporal) inerente ao fato de que a imagem que aparece na tela, seja ela a do
sambista, seja ela a do morador, é menos a imagem deles próprios do que a
imagem que resulta de sua interação com a equipe de imagem. Nas clássicas
palavras de Jean-Claude Bernardet (2003, p. 9), “as imagens cinematográficas do
povo não podem ser consideradas sua expressão, e sim a manifestação da
relação que se estabelece nos filmes entre os cineastas e o povo”. Para além do
que os mecanismos de produção determinam (seja um orçamento curto ou
generoso, seja um equipamento analógico ou digital), o lugar de fala em que se
encontram realizador e povo também determina o filme que se tem na tela.
Invariavelmente, essas posições demarcam lugares distintos. Elas, por sua vez,
não são estanques, e muito menos são estanques os discursos proferidos a partir
dessas posições. Tal qual a verdade do documentário, a verdade de um discurso

291

passa por estratégias, a fim de se impor como uma verdade. Na produção


cinematográfica, o lugar de fala pode ser ainda mais dúbio. Ora, podemos afirmar
que o protagonismo de O mistério do samba cabe à Velha Guarda da Portela, mas
quem é que está lhe apontando a câmera?
Esse poder do realizador tenta ser mascarado na medida em que o mesmo
passa a dar voz ao personagem, como se em uma transição de empoderamento.
No caso desse documentário, especificamente, a estratégia é quase falha.
Enquanto Argemiro, Casemiro, Casquinha, Jair do Cavaquinho e Monarco
recebem o aval para falar, os realizadores não abrem mão dos depoimentos de
Marisa Monte, Paulinho da Viola e Zeca Pagodinho, espécie de atualização dos
mediadores culturais do início do século XX, à época, agentes determinantes à
consolidação do samba para além dos morros cariocas. (VIANNA, 2010). Sendo
assim, podemos afirmar que O mistério do samba está inscrito na lógica do
mercado, aquele que outorga o discurso do entrevistado em prol de um discurso
cinematográfico, no qual esse mesmo entrevistado jamais é soberano na
construção. Ainda nessa seara, o filme se posiciona em uma zona nebulosa no
que diz respeito à representação do indivíduo. Nem se curva ao modelo

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sociológico dos curtas-metragens do início do Cinema Novo, em que um único
entrevistado servia para representar um todo (BERNARDET, 2003), nem investe na
busca pela singularidade do personagem, estratégia maior do cinema
contemporâneo, sobretudo via documentário de Eduardo Coutinho (LINS, 2004).
De certa forma, esse impasse circunda outros filmes desse período histórico. Ao
mesmo tempo em que se nega à generalização, não se lança mão de didatismo e
nem se faz uso de voz over. Há nesses filmes uma tentativa de aproximar os
personagens uns dos outros, todos habitantes de um universo coadunado.
A narração que abre O mistério do samba é um depoimento de Monarco, um
dos integrantes da Velha Guarda da Portela. Seguidamente, as vozes dos outros
sambistas começam a comentar suas ligações com aquele ambiente.
Testemunhos aleatórios que funcionam como cardápio temático do que será
desenvolvido a partir dali. “Antigamente, era muita farra...” é a frase inicial que dá
o tom ao filme. Memorialista, o documentário se vale do que os depoentes

292

lembram, das histórias por trás de uma História oficial. Imagens de Oswaldo Cruz
cobrem esse áudio. São detalhes que sugerem um subúrbio fotogênico: um vaso
de flores, uma fachada de bar, um fusca azul na garagem. É a chegada não só do
espectador, mas também do realizador, àquele endereço. Nesse sentido, um
plano é significativo – e fará parte também da narrativa de O samba que mora em
mim. A estação de trem, a plataforma do trem, os trilhos do trem, o trem
chegando, o trem partindo. É fato que o transporte ferroviário é parte daquele
cenário, de Oswaldo Cruz e de outros subúrbios, mas é sintomático que funcione
como metáfora. Visualmente, é um plano que afirma uma chegada. Mais ainda,
afirma um trajeto empreendido até aquele lugar. Espectadores são transportados
para onde moram os sambistas em questão. E vindos de cenários outros,
distantes dali, realizadores posicionam-se como visitantes. Estão ali, mas não são
dali. Criam, mas mediam.

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Figura 1 – Trens chegando e partindo em O mistério do samba (2008).


Fonte: Captura de tela.

293

Figura 2 – Movimento na estação ferroviária em O samba que mora em mim (2012).


Fonte: Captura de tela.

Não sem motivo, um dos principais eventos comemorativos do Dia Nacional do


Samba tem a estação ferroviária como cenário. Idealizado por Marquinhos de
Oswaldo Cruz no ano de 1996, o Trem do Samba toma como desculpa para

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acontecer o dia 2 de dezembro, data em que Ary Barroso, famoso pela
composição Na baixa do sapateiro, visitou Salvador, capital que testemunhou as
origens do samba, pela primeira vez. Nas últimas duas décadas, o Trem do
Samba vem funcionando como uma homenagem a Oswaldo Cruz, bem como a
outros subúrbios tomados pelo samba, levando passageiros da Central do Brasil,
estação no centro do Rio de Janeiro, à periferia. Ironicamente, a ação, que visa
dar destaque a esses sambistas, acaba servindo à reiteração da distância que há
em relação ao restante da sociedade. (TREM DO SAMBA, 2014). Entre tantos
sambas, Trem das onze, do paulista Adoniran Barbosa, talvez seja o que melhor
explicite o espaço ocupado pelo transporte nas composições. Lançada em 1964,
imortalizada por Demônios da Garoa, a composição coloca o trem no centro da
narrativa. O argumento de que o eu lírico não pode perdê-lo para voltar para casa,
inclusive, desdobra-se em situações semelhantes em letra e melodia de outros
compositores.

294

De trem até a Mangueira

Sobre a distância existente entre esses sambistas e o restante da sociedade, O


samba que mora em mim, produzido pela Bossa Nova Films, tem muito a
contribuir. O filme abre com uma voz de Deus, a voz não diegética que faz às
vezes de narrador. (NICHOLS, 2010). Sendo Deus, nesse caso, a diretora Georgia
Guerra-Peixe. A história do documentário de 72 minutos é explicada nesse
depoimento introdutório, entre o formal e o informal, entre o lido e o falado. As
imagens que o cobrem são as imagens dos trens, indo e vindo. Como acontece
em O mistério do samba, o projeto do filme parte de uma premissa pessoal. Não
há em Guerra-Peixe a ambição musical de Marisa Monte. No entanto, seu filme
nasce de uma inquietação para ir ao encontro da Mangueira, assim como se foi ao
encontro da Portela. Criada em uma família musical, por influência do pai e por
convivência com a mãe e o irmão, a cineasta confessa sua curiosidade pela seara,
sobretudo, do samba-enredo. Ao contrário do pai (“um carnavalesco
apaixonado”), da mãe (“aprendeu a sambar”) e do irmão (“um percussionista
talentoso”), investiu em apurar seu olhar em relação ao gênero, interessada nas

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histórias por trás dos sambas. O roteiro de Guerra-Peixe contou com a
participação de Ticha Godoy, responsável por convencer a cineasta a gravar o off
de abertura. Sua fala só será interrompida por outra voz, esta, porém, diegética.
No alto-falante da plataforma do trem, sempre presente, alguém avisa: “Próxima
estação: Mangueira. Desembarque pelo lado direito”.

Desde que eu era bem pequenininha que eu aprendi que carnaval era muito mais que
folia, muito mais que feriado, muito mais que festa. Eu nasci numa família onde a
música sempre teve um grande valor. E o meu pai escolheu o samba-enredo pra
representar essa musicalidade dentro de casa. Ele nunca foi um percussionista
talentoso, ele nunca foi um mestre de bateria, mas ele sempre foi um carnavalesco
apaixonado. E a gente acompanhava ele nessa paixão pelo samba em todos os
ensaios dos blocos carnavalescos, das escolas de samba que ele frequentava. E
nesse frequentar, nesse estar junto, até pra vê-lo feliz, a gente, cada um do seu jeito,
transformou essa experiência. O meu irmão aprendeu a tocar vários instrumentos. Eu
diria que o meu irmão é um percussionista talentoso. Talvez ele não saiba. A minha
mãe, que era descendente de alemães, assim, calada e tímida, ela aprendeu a

295

sambar. E eu fiquei com o olhar. Eu olhava os sorrisos, eu olhava as baquetas, eu


olhava os dedos machucados, eu olhava os encontros que eles tinham. Aqueles
homens lindos, maravilhosos, sambando com um gingado absurdo. As mulatas, com
aquelas sandálias arrastando pelo aquele chão áspero, e eu ficava imaginando o que
tinha por trás de cada história. Eu ficava imaginando que história tinha por trás de
cada pessoa. E isso sempre foi mais forte pra mim. No fundo, se eu pudesse calar
uma escola de samba, eu ficaria com as histórias. E elas falariam desse samba. Mas
desse samba que mora em mim. (O SAMBA QUE MORA EM MIM, 2012).

A voz de Deus de Guerra-Peixe não é a voz de Deus que o Cinema Novo


precisou desconstruir ao longo dos anos 1960 e 1970. Não é uma voz totalizante,
não é uma voz didática. É humana, na medida em que vai desvelando o íntimo de
quem fala. Imbui o filme de uma subjetividade que foi sendo desenvolvida
paulatinamente no documentário brasileiro, atingindo seu ápice na
contemporaneidade. Ao mesmo tempo, o off gravado pela cineasta demarca o
território do olhar a que ela tanto se refere. O interesse do filme está nas histórias
contadas pelos moradores da Mangueira ou naquilo que o olhar da cineasta
pesquisa, pré-produz, capta, autoriza? No material extra do DVD de O samba que
mora em mim, há um making of disponível. Em entrevista, ela aprofunda uma

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discussão que não desgarra do longa-metragem. Embora seja vendido desde a
abertura como um ímã de indivíduos, de causos singulares, de anedotas pessoais,
nenhum entrevistado é identificado enquanto fala. Timbaca, Cosminho, Lili, Vó
Lucinda, Hevalcy, Mestre Taranta e DJ Glauber são creditados no término da
sessão, quando dos créditos finais. Os personagens, assim como os trens, vão e
vêm. Contam suas histórias, ou as histórias que o filme pede para ouvir. Mas seus
nomes não aparecem na tela. A ideia de coletividade (ninguém tem nome, todos
moram no morro) é reiterada na resposta de Guerra-Peixe: “Eu tenho um
personagem no filme. Que é o Morro da Mangueira”. Para completar, mais
adiante: “As outras pessoas que entraram, elas entraram pra falar um pouco mais,
pra eu poder ter casas, pra eu poder ter o café com uma, o vinho com a outra
[...]”. É curioso o fato de que a mínima participação de uma voz off no
documentário resulte na problematização do indivíduo em oposição ao coletivo.
Como se a voz off ainda carregasse o peso de uma, ainda que também mínima,

296

generalização.
É difícil identificar se outras estratégias fílmicas de O samba que mora em mim
materializam um distanciamento desejado (afinal, não se nega que aquele é o
primeiro ou um dos primeiros contatos da cineasta com o morro) ou uma
aproximação ressabiada. A dúvida aparece muito também por conta do
casamento entre fotografia e trilha sonora, dois pilares na elaboração do
documentário. A câmera de Marcelo Rocha representa outra ambiguidade do
filme. Ainda no making of, Guerra-Peixe comenta sobre a escolha estilística do
uso da steadicam, equipamento cinematográfico que se acopla ao corpo do
operador, estabilizando sobressaltos, garantindo uma sensação de flutuação. De
volta ao filme, essas imagens preenchem boa parte do que é visto no quadro.
Funcionam como respiros visuais, entre um depoimento e outro. É um adentrar o
morro sem buracos, sem topadas. Os planos, muitas vezes longos, passeiam
curiosos. Inclinam-se sobre uma janela, demoram-se em determinadas esquinas.
Mas parecem todos milimetricamente marcados. Por outro lado, a fala de Marcelo
Rocha, de volta ao making of, explica uma vontade de invisibilidade: “Nós da
câmera estamos quase invisível perante aquela cena do cotidiano das pessoas”.

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Esse desejo, no entanto, não corresponde às sequências da steadicam,
aquelas que esteticamente melhor representariam o filme. É titubeante o desejo de
conseguir ser invisível, de conseguir estar como uma “mosca na parede” 2 .
(NICHOLS, 2010). Ou como o inseto que paira sobre as frutas, enquadradas em
primeiro plano, quando o filme atinge os 23 minutos de duração. O revezamento
entre observação (os momentos captados sem intervenções bruscas) e
encenação (o registro dos personagens em suas atividades diárias, como uma
simples caminhada, aqui, dirigida) salta mais aos olhos nos momentos finais do
filme, quando mãe e filha assistem a um desfile da Estação Primeira de Mangueira
pela televisão. O diálogo que segue entre mãe e filha se pretende natural. A mãe
pergunta à filha se ela não vai com o namorado ver o desfile de perto e a jovem

2
No original, “fly-on-the-wall documentary”. Estilo documentário relacionado ao modo observativo,
aquele que não interage com o objeto filmado.

297

responde que não, que não tem namorado, que não vai sair de casa. A cena
parece servir para amarrar a sequência que vem a seguir, e não como um flagra
da intimidade entre as duas. É na comunidade que os moradores assistem à
Mangueira desfilar: até o sol se pôr e o filme chegar ao fim. A trilha sonora que
Dimi Kireeff assina parece estar consciente da corda bamba na qual o
documentário tenta se equilibrar. Musicalmente, O samba que mora em mim é
diverso. Parte do samba, mas passa por outros gêneros musicais, principalmente
o funk. O instrumental composto por Kireeff ignora toda essa informação. Mistura
percussão brasileira e orquestra europeia. Violão e harpa. Adiciona sintetizadores.
“A música é a trilha sonora do olhar de Georgia sobre o morro”, explicou em
entrevista. (SOUZA, 2011). A música é, portanto, o atestado da mediação que o
olhar da cineasta faz entre o samba e o espectador.

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Figura 3 – Steadicam flutua em direção à personagem no filme de Guerra-Peixe.


Fonte: Captura de tela.

298

Figura 4 – Fly-on-the-wall documentary ou câmera que se pretende invisível.


Fonte: Captura de tela.

O samba que mora em mim teve uma pré-produção como se fosse uma ficção,
conta Guerra-Peixe, cuja experiência anterior à realização desse documentário
fora toda em cinema ficcional. Antes das filmagens, a própria cineasta foi a campo

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pesquisar os tipos que queria em seu roteiro. Por consequência, tinha em mente
os planos que queria filmar, já com o aparato da steadicam definido. Sabia que
queria mostrar, por exemplo, as moradoras do morro fazendo as unhas, revela em
dado momento. Assim como revela que aquilo ao que o espectador assiste na tela
é o resultado do que ela mesma estudou sobre o que significa documentário, no
fora de quadro. O making of não é o filme em si, mas funciona como uma
necessária extensão do filme. Sobretudo, pela defesa que a produtora Denise
Gomes faz de uma interação entre documentarista e documentado, interação essa
que o documentário não escancara. É comedido. Já não estamos mais diante da
Velha Guarda da Portela, mas dos moradores do Morro da Mangueira. Nem
mesmo perguntamos a produtora Denise Gomes quem é que está apontando a tal
câmera a esses protagonistas, como fizemos parágrafos atrás referindo-nos a
Jabor e Hollanda. Ainda assim, é a própria quem deixa escapar a informação em
seu depoimento nos extras do DVD: “Ela [Georgia Guerra-Peixe] subiu esse morro

299

de verdade, apontando a câmera para onde ela [grifo nosso] quis”.

Considerações finais

No que se refere ao samba, a questão da mediação faz as vezes de um elo


temporal. Entre as primeiras décadas do século XX e os primeiros anos do século
XXI, é inegável a relação que se estabelece entre os mediadores culturais do
passado e os do presente. Em alguma medida, o encontro de intelectuais
capitaneados por Gilberto Freyre com o lirismo de sambistas como Donga na
década de 1930, um dos principais fatores para o samba ter se alastrado por
outros segmentos da sociedade (SANDRONI, 2001; VIANNA, 2010), parece
reverberar no encontro desses realizadores audiovisuais com seus personagens
e/ou lugares associados ao samba. Para além da música, na verdade, esta
desponta como uma característica própria também do cinema: de um lado, o jogo
entre quem compõe e quem divulga; do outro, o jogo entre quem filma e quem é
filmado.
No caso do documentário, pleno de asserções sobre o mundo histórico
(NICHOLS, 1991; 2010), a linha é ainda mais tênue. Também aqui, o samba

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precisa ser conduzido até chegar ao grande público. É assim com Carolina Jabor
e Lula Buarque de Hollanda em O mistério do samba e é assim com Georgia
Guerra-Peixe em O samba que mora em mim. Embora no primeiro fique bastante
visível uma hierarquia na realização do documentário (afinal, é Marisa Monte a
responsável por nos apresentar a Velha Guarda da Portela, é Paulinho da Viola
quem cunhou o termo “Velha Guarda”, é Zeca Pagodinho quem atesta a
qualidade daquele samba, e assim por diante), talvez seja O samba que mora em
mim aquele que melhor simboliza esse impasse da mediação. Não porque os
entrevistados sugerem alguma apreensão ao serem entrevistados, mas pela
posição de quem os entrevista. Como vimos, discurso reiterado no material extra
disponível em DVD.
De maneira geral, essa relação entre quem filma e quem é filmado ganha
sustentação na recorrência de três estratégias audiovisuais. A primeira delas é a

300

entrevista como dispositivo, sendo utilizada como uma forma de acessar a história
do samba e desses sambistas. Assim como em outros documentários
contemporâneos (de temas, enfoques e abordagens variados), essa estratégia é
recorrente. A segunda é o uso de imagens de arquivo. Um recurso disponível seja
para ilustrar um acontecimento histórico, seja para apresentar os personagens em
alguma situação do passado. Por fim, os números musicais. Presentes em todos
os exemplares dedicados ao samba, as apresentações funcionam como uma
espécie de suspensão da narrativa. A execução de uma música pode sublinhar
algo que vinha sendo dito em entrevista ou pode servir como um respiro na
montagem. Essa tríade é acionada não só nos filmes que compõem este artigo,
como também em outros documentários musicais merecedores de nossa
atenção.

Referências

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<http://oca.ancine.gov.br/>. Acesso em: 30 out. 2014.

ARAÚJO, V. P. A Bela Época do cinema brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva,

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1985.

BERNARDET, J. C. Cineastas e imagens do povo. 1. ed. São Paulo: Companhia


das Letras, 2003.

CARVALHO, M. “A canção popular no cinema brasileiro: os filmes cantantes, as


comédias musicais e as aventuras industriais da Cinédia, Atlântida e Vera Cruz”.
Revista Universitária do Audiovisual, São Carlos, v. 1, n. 1, 2008, 1-8. Disponível
em: <http://www.rua.ufscar.br/a-cancao-popular-no-cinema-brasileiro-os-filmes-
cantantes-as-comedias-musicais-e-as-aventuras-industriais-da-cinedia-atlantida-
e-vera-cruz/>. Acesso em: 13 out. 2014.

CINEMATECA BRASILEIRA. Base de dados. Disponível em:


<http://www.cinemateca.gov.br/cgi-
bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p>. Acesso
em: 5 dez. 2014.

LINS, C. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. 1. ed.


Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

301

LINS, C.; MESQUITA, C. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro


contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

MARISA MONTE. Velha Guarda da Portela - Tudo azul. Disponível em:


<http://www.marisamonte.com.br/pt/musica/producoes/velha-guarda-da-portela-
tudo-azul>. Acesso em: 3 nov. 2014.

NICHOLS, B. Introduction to documentary. 2. ed. Indiana: Indiana University Press,


2010.

NICHOLS, B. Representing reality. 1. ed. Indiana: Indiana University Press, 1991.


PORTAL FILME B. Estatísticas. Disponível em:
<http://www.filmeb.com.br/estatisticas>. Acesso em: 31 out. 2014.

RAMOS, F. P. Mas afinal… o que é mesmo documentário? 2. ed. São Paulo:


Editora Senac São Paulo, 2013.

SANDRONI, C. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro


(1917-1933). 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar; Editora UFRJ, 2001.

SOUZA, C. “Dimi Kireeff assina a trilha sonora de ‘O samba que mora em mim’”.
Revista Músico! – Tribuna do Músico, São Paulo, 2 fev. 2011. Disponível em:
<http://tribunadomusico.blogspot.com.br/2011/02/dimi-kireeff-assina-trilha-
sonora-do.html>. Acesso em: 2 nov. 2014.

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TREM DO SAMBA. Sobre. Disponível em:
<http://www.tremdosamba.com/2014/sobre/>. Acesso em: 30 nov. 2014.

VIANNA, H. O mistério do samba. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar; Editora UFRJ,


2010.

VIANY, A. Introdução ao cinema brasileiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1993.

Submetido em 24 de janeiro de 2016 | Aceito em 26 de julho de 2016

302

Entrevistas

“Precisamos vestirmo-nos com a luz negra”:


entrevista com Florentino Flora Gomes1

Jusciele Conceição Almeida de Oliveira2

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1
Flora Gomes, cineasta bissau-guineense realizador dos filmes de ficção Mortu
nega (Morte negada, 1988); Odjus azul di Yonta (Olhos azuis de Yonta, 1992); Po di
sangui (Pau de sangue, 1996); Nha fala (Minha fala, 2002) e Republica di mininus
(República de meninos, 2012).
2
Doutorado em Curso, pelo Centro de Investigação em Artes e Comunicação da
Universidade do Algarve-CIAC/Ualg, em Faro/Portugal. Bolsista do Programa
Doutorado Pleno no Exterior da CAPES, proc. nº 0654/14-0.
e-mail: jusciele@gmail.com

304

Resumo

Entrevista com cineasta bissau-guineense Flora Gomes, que nasceu em 1949, em Cadique, na
Guiné-Bissau; estudou cinema em Cuba, no Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográfica, e
no Senegal, sob orientação de um dos mestres do cinema africano, Paulino Soumarou-Vieyra. É
realizador dos filmes de ficção Mortu nega (Morte negada, 1988); Odjus azul di Yonta (Olhos azuis de
Yonta, 1992); Po di sangui (Pau de sangue, 1996); Nha fala (Minha fala, 2002) e Republica di mininus
(República de meninos, 2012).

Palavras-chave: Entrevista; Cinemas africanos; Cinema bissau-guineense; Flora


Gomes.

Abstract

An interview with Bissau-Guinean filmmaker Flora Gomes, who was born in Cadique, Guinea-
Bissau in 1949. He studied cinema in Cuba at the Cuban Institute of Arts and Film Industry, and in
Senegal, under the guidance of one of the masters of African cinema, Paulino Soumarou-Vieyra. He is
the director of the fiction films Mortu nega (Death denied, 1988); Odjus azul di Yonta (Blue Eyes of
Yonta, 1992); Po di sangui (Blond tree, 1996); Nha fala (My voice, 2002) and Republica di mininus
(Republic of children, 2012).

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Keywords: Interview; African cinemas; Guinea-Bissau cinema; Flora Gomes.

305

Flora (Florentino) Gomes nasceu em 1949, em Cadique, na Guiné-Bissau, sob


o jugo colonial português, estudou cinema em Cuba, no Instituto Cubano de Artes
e Indústria Cinematográfica, e no Senegal, com orientação de um dos mestres do
cinema africano, Paulino Soumarou-Vieyra. Trabalhou como repórter para o
Ministério da Informação por três anos (1974-1977), o que deve tê-lo influenciado
em sua produção cinematográfica relacionada com o fator histórico e com a
Guerra de Independência da Guiné-Bissau, presentes no filme Mortu nega (Morte
negada, 1988). Odju azul di Yonta (Os olhos azuis de Yonta), o seu segundo longa-
metragem, realizado em 1992, é o primeiro filme de um realizador bissau-
guineense a participar na Seleção Oficial do Festival de Cannes em 1992, na
seção Un Certain Regard. Em 1994 e 1995, Flora Gomes realizou dois curtas-
metragens, respectivamente, A Máscara e A identificação de um país. O seu
terceiro longa-metragem, Po de sangui (Pau de sangue), realizado em 1996,
participou da competição oficial do Festival de Cannes desse mesmo ano, bem
como do Festival de Cartago, no qual recebeu o Tanit de Prata. Em 2001/2002,
realizou o longa-metragem Nha fala (Minha fala), a primeira comédia musical do
cinema africano, o qual também participou de inúmeros festivais e recebeu

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diversos prêmios: Prêmio do Júri de Melhor Filme e Prêmio do Público de Melhor
Filme do Festival “Caminhos do Cinema Português X”, Coimbra, 2003; Primeiro
Prêmio de Comunicação Intercultural do Festival “Vues d’Afrique”, de Montreal,
2003; Prêmio da cidade de Ouagadougou e Prêmio UEMOA, no Festival Fespaco
Ouagadougou, 2003; Grande Prêmio Signis Juri, 2002; e Prêmio d’Amiens
Métropole do Festival de Amiens, 2002, na França; Prêmio “Lanterna Mágica”, no
Festival de Veneza, 2002; Prêmio Città di Roma – Arco-Íris Latino, no Festival de
Veneza, 2002.
Em 2007, Flora Gomes e a jornalista-realizadora portuguesa Diana Andringa
correalizaram As duas faces da guerra, um filme documentário sobre a Guerra
Colonial na Guiné-Bissau e o 25 de abril de 1974 em Portugal. Em 2009,
participou da construção coletiva África vista por... (Afrique vue par...) realizada
por dez cineastas africanos, produzida e apresentada no Festival Pan-Africano de
Argel, na Argélia. Flora Gomes exibiu ali o curta-metragem As pegadas de todos

306

os tempos, que é uma metáfora poética, a qual se refere à inocência infantil, à


alegria de viver, que representa as cores brilhantes da África para fazer chover,
água escassa no continente. Seu último longa-metragem, Republica di mininus (A
república dos meninos, 2012) é uma coprodução Guiné-Bissau, França, Portugal,
Bélgica e Alemanha, gravado em Moçambique, com a participação de Danny
Glover, único adulto. O filme foi selecionado para o Festival do Rio, em 2011 e
recebeu distinção no Festival Internacional de Angola, em 2012. Atualmente,
encontra-se gravando imagens e buscando financiamento para um documentário
sobre Amílcar Cabral.
Nessa acepção, os filmes de Flora Gomes comunicam-nos com delicadeza,
expondo a situação local e global sem declarações partidárias; evitando métodos
fáceis de interpretação da realidade. Gomes carrega o encargo da sabedoria de
um griot, com a necessidade de apresentar, nos seus filmes, o seu discurso da
memória e da história da Guiné-Bissau e da África, numa luta constante e diária
contra o esquecimento do passado recente, em busca de um mundo múltiplo,
colorido, regado à utopia e ousadia, para ir além do que as mentes e os corpos
ainda colonizados pressupõem, propondo que ousemos superar as expectativas

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criadas para os jovens, quando a morte é a nossa única certeza (Nha fala).
Preconizando a superação das dicotomias limitadoras do Norte e do Sul, dos Nós
e dos Outros, do erudito e do popular.

JO: Quando o Florentino transformou-se em Flora Gomes?


FG: Na infância, chamavam-me de muitos nomes. Eu cresci com minha tia que
me chamava “Ioia”. À volta de mim, havia os que me chamavam Flora e os que
me chamavam Florentino. Acho que acabei por aceitar todos esses nomes juntos.
E tudo a base das flores. Os meus acabaram por gostar tanto das flores que elas
me carregaram e ficou Florentino Flora Gomes, mas o mais ressonante é o Flora.
No cinema, acho que foi em Veneza. Naquela sala escura, na qual apresentei toda
a grandeza e orgulho dos guineenses na tela do cinema. Pela forma como fui
aplaudido, foi aí que percebi que meu nome ficou registrado.

307

JO: Por causa do nome, muitas vezes, você é confundindo com uma mulher...
FG: É comum e já me aconteceu uma vez que insistiram que eu era mulher.
Não me lembro do ano. Foi até no Brasil, em São Paulo, por coincidência, havia
um encontro cinematográfico e na recepção do hotel, ao me apresentar, disseram
que tinha um quarto reservado para Dona Flora Gomes, não para o Senhor Flora
Gomes. Depois, resolveu-se. Acho muito interessante esses momentos. Também
em Veneza, quando fui apresentar o Mortu nega (1988), estavam todos à espera
da Dona Flora. Penso que isso tudo faz parte do mistério do cinema.

JO: Em 1967, aos 17 anos de idade, em plena guerra contra o colonialismo


português, você parte para estudar em Cuba. Quais eram suas expectativas?
FG: Eu fui a Cuba estudar, como uma boa parte dos meus colegas. Na minha
cabeça, eu estudaria educação física. Eu gostava muito de correr. O Sana [Sana
Na N’Hada]3 queria fazer medicina. Acabamos por nos juntar para fazer cinema,
mas não era nossa intenção inicial. Juntos, iniciamos nossos estudos e nossas
carreiras, o que nos separou foi quando fomos buscar parceiras para vida, quando
nos casamos (risos). Acabei por me apaixonar por cinema e descobri a grandeza

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da força da imagem, pensando também na particularidade de o meu país ser um
país pequeno, com um número impressionante de analfabetos, que a imagem
poderia ajudar na conscientização do homem guineense.

JO: Então, você não é um cineasta por vocação?


FG: Acho que foi uma curiosidade minha e acabei por ser preso por uma coisa
que eu não conhecia...

3
Cineasta bissau-guineense. Nasceu em Enxalé, Guiné-Bissau, em 1950. Estudou cinema no Instituto
Cubano de Artes e Indústria Cinematográfica, em Cuba e no Instituto de Altos Estudos
Cinematográficos, em Paris. Iniciou a carreira ao lado de Flora Gomes correalizando com ele dois
curtas-metragens: O regresso de Cabral (1976), Anos no oça luta (1976). Realizou também Os dias de
Ancono (1979), Fanado (1984), Xime (1994), Bissau de Isabel (2005).

308

JO: E as expectativas?
FG: Minha expectativa, na verdade, era ver meu país liberto do colonialismo.
Era toda a minha preparação. Tudo era voltado para um dia sermos nós mesmos,
já que o Amílcar Cabral4 tinha uma ideia muito clara do que ele queria para Guiné.
Foi nessa lógica que fomos bebendo: ser guineense, ser africano e ser um homem
do mundo. Como dizia Cabral, sou um simples africano e quero saldar a minha
dívida com meu país e com o mundo. Eu também queria seguir essa pegada, não
para ser como ele, pois isso é impossível, mas fazer algo, para que, se ele
estivesse vivo, sentisse sinceramente que valeu a pena essa luta. Assim, sou um
homem que tem a sorte de ter um instrumento na mão que resiste à história, ao
passado, ao presente e ao futuro. À passagem do tempo. Acho que isso é um
instrumento fundamental para deixar as marcas do nosso passado.

JO: Fale-nos da experiência de estudar com o documentarista Santiago


Alvarez Román, em Cuba, e depois fazer estágio com o cineasta Paulin Soumanou
Vieyra, no Senegal, em 1972.
FG: Santiago era uma pessoa espetacular, fora do normal. Em Cuba, não

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estudávamos numa escola estruturada, tradicional. Foi a relação entre Cabral e
Fidel que fez com que fôssemos estudar em Cuba, como a luta já estava
avançada. Cabral queria que nós, os africanos e guineenses, filmássemos a
independência da Guiné. Para ele, era uma coisa que não podia ser feita por
estrangeiros. Nesse sentido, tínhamos muito apoio no ICAIC. Nós filmávamos
como nunca filmei na minha vida. Fazíamos fotografia, revelávamos. Filmes,
documentários eram projetados e discutíamos a força da imagem. Qualquer
dificuldade que tínhamos, chamávamos os instrutores e eles ensinavam a resolver
os problemas técnicos também, pois os professores sabiam que seríamos
confrontados com problemas, como quando uma máquina tinha um problema
técnico no meio das matas da Guiné, aprendíamos como resolver, quais as

4
Amílcar Cabral (1924-1973), herói da independência das Ilhas de Cabo Verde e da Guiné-Bissau,
assassinado em 20 de janeiro de 1973, na Guiné Conacri.

309

possibilidades para consertar. Como conseguir conservar baterias num país


úmido, com muito calor? Como conservar a película? São coisas que a Guiné-
Bissau nunca poderá pagar a Cuba. Não só no cinema, mas em outras áreas. Boa
parte dos médicos, dos engenheiros agrônomos, técnicos de nível médio foram
formados em Cuba. Tivemos essa sorte. E tive a sorte também de estudar com o
Paulin Vieyra. Quanto me lembro de tudo que fiz e aprendi, pergunto-me se tudo
aconteceu na base da sorte. Ele não era somente apaixonado pelo cinema
africano, mas também pela causa da Guiné. Aquele homem nos ajudou muito.
Ensinava-nos concepção, movimento de câmera. Era um teórico da imagem em
movimento. Depois da independência, tive a experiência de trabalhar com o Chris
Marker, que é um gênio em termos de documentário, com quem tive relações de
conselhos, mesmo para os meus trabalhos até antes dele morrer, há pouco
tempo. Ele foi à Guiné e deu-nos um curso sobre montagem. Isso nos deu muita
segurança no que fazemos.

JO: Você teve muito contato com documentaristas...


FG: Sim. Fazer ficção foi um atrevimento da minha parte. Eu sou uma pessoa

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muito ousada. Como na letra da música “Ousar” do filme Nha fala: “temos que
ousar”. Eu sou muito ousado. Se calhar, é porque vim de um país ainda em
construção constante, que muitas vezes aparece nas notícias como a pior coisa
que há no mundo, por isso sou essa pessoa que ousa, por tentar construir uma
nova imagem do meu país.

JO: Em 1995, numa entrevista, você dizia que a televisão é um perigo cultural.
Ainda pensa assim? Por quê?
FG: Sim. Porque o que é cinema, não é só o ato de filmar. É aquele momento
solene, quando se apagam as luzes e entramos num imaginário. O filme é o
conjunto das cores que o compõem, das vozes, das imagens, das pinturas e tudo,
inclusive o espectador. Em Bissau, como nós do dito “Terceiro Mundo”, na
verdade, nem sei em que mundo está a Guiné-Bissau, pois já são tantos, não
temos uma televisão local. Passamos a ver a televisão dos outros. Chegas à

310

Guiné-Bissau e segues o Brasil pelas telenovelas. Os filmes dos Estados Unidos,


da França. E a nossa parte nessa corrida da cultura não existe. Não estamos
representados. Aí é que está o perigo. Embora saiba que algumas vezes batemos
na janela da televisão para dizer que existimos, mas da maneira como nos
apresentam, como mostram os nossos filmes: como os que não existem, mas
querem ser vistos. Isso é que é grave, já que nossos filmes passam por volta das
22 horas, zero hora, uma hora da madrugada, no momento em que toda gente
dorme. No encontro das civilizações, dos homens, os nossos países aparecem no
momento em que as pessoas dormem e no momento em que os operários estão a
tomar banho para ir trabalhar. Aí está o perigo...

JO: O que pensa da terminologia cinemas africanos para designar os cineastas


desse vasto continente?
FG: Não sei direito, pois até hoje não fabricamos nenhuma película africana, o
próprio material para expor, que vem na lata. Não fabricamos câmeras ainda para
chamar a câmera africana. Talvez seja uma tentativa de nos distanciar das boas
coisas do cinema africano, do que temos, porque nunca ouvi dizer que as

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pessoas dizem cinema europeu. Eu sei que há filme francês, italiano, português,
alemão, belga. Eu penso que ao filme é dado o nome do país pelo estilo. Nos anos
de 1970, o estilo neorrealista italiano, que se falou muito... Se calhar, é porque
fazemos filmes que os críticos ainda não perceberam, que eles deveriam chamar o
filme do Senegal, de realizadores como Ousmane Sembène; filmes do Mali do
realizador Souleymane Cissé. Poderíamos até dizer o filme africano. Não é
importante o carimbo que nos dão. O mais importante é o que nós fazemos, a
mensagem que deixamos passar. A África que queremos pintar diferente da
pintura que eles tinham pintado.

JO: E como é a sua pintura?


FG: A pintura da loucura (risos), por insistir em fazer cinema na Guiné-Bissau.

JO: Já leu críticas negativas sobre seu trabalho?

311

FG: Sim. Sou conhecido por fazer planos-sequência dos quais as pessoas não
gostam muito. Grandes movimentos. As pessoas acham que são longos e eu
gosto disso. Acho que levamos muito tempo para resumir o que queremos fazer e
eu gosto de mexer com o espectador.

JO: Como você se pensa esteticamente, além do plano-sequência, como você


se define?
FG: Uma das coisas em que insisto muito nos meus filmes é o silêncio. O
silêncio. Embora ainda não tenha conseguido fazer um trabalho, em que o silêncio
deixe de ser o silêncio para ser um bomm. Eu sinto essa falta. Nos próximos
trabalhos, vou insistir no silêncio, nos olhares, nos gestos e na trilha sonora, dos
quais eu gosto muito, assim como os décors, que vocês chamam de cenários.
Essa é também minha fraqueza. Tenho que trabalhar muito mais isto. Eu trabalho
com cenário natural. Preciso escolher mais, ver mais, para pensar mais sobre... e
faço isso no silêncio. Preciso estar só no momento em que produzo, ou vendo o
mar, com a música das ondas, o bater das águas nas pedras. Isso ajuda a minha
criatividade. A imponência das grandes árvores. Os poilons da minha terra são

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praticamente espirituais.

JO: Conhece o cinema brasileiro? Tem algum cineasta em especial?


FG: Sim, mas conheço pouco. Eu encontrei-me, quando estava em Cuba, com
Glauber Rocha, que eu tive a sorte de cumprimentar. Lembro-me do filme O leão
de sete cabeças, depois de assisti-lo, perguntei-me se conseguiria fazer algo
assim. É fantástico. Dos novos, gosto do filme das crianças Cidade de Deus. A
força do filme está nos olhares das crianças.

JO: Vamos falar um pouco sobre seus filmes. Seu primeiro longa-metragem,
Mortu nega (1988), é um filme histórico, que retrata o último ano da guerra contra
o colonialismo português. Já o último, República de mininus (2012), narra o drama
das crianças-soldados, espalhadas pelas guerras no mundo. O que mudou (ou
não) no olhar do cineasta Flora Gomes?

312

FG: Acho que as coisas ainda não mudaram. Acho que talvez a minha voz
ainda tenha algumas barreiras. É preciso gritar muito mais forte do que isso. O
Mundo, a África, o continente, sinto que precisa ainda ser visto, ser mais filmado,
precisa falar-se mais nele ou fazer mais do que já se fez. Acho que a África nunca
esteve confrontada com tantos problemas quanto nos últimos anos. Acho que
isso tem a ver com a maneira, a forma como os nossos comandantes estão a gerir
os nossos países, com o modelo de democracia europeu. Estamos a copiar, como
falei no filme Olhos azuis de Yonta, estamos a copiar os modelos ocidentais.
Também não conhecemos outro modelo, mas acho que nós temos que repensar
os nossos modelos. Repensar a maneira de gerir os nossos países. A África está
cada vez mais confrontada com problemas, sobretudo por conta das guerras. É a
guerra do querer, de ser mais, tornar-se mais visível. As guerras não nos levam a
parte nenhuma. É preciso questionar o porquê dessas guerras. São guerras que
não deveriam ter lugar no século XXI. É a guerra do querer ser visível e
esquecemos o essencial que é a nossa cultura, identidade. A nossa identidade
não é estática, mas está sempre em constante mudança, que é a nossa pertença
da nossa cultura, como a nossa língua ou a nossa forma de vestir, a nossa forma

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de cozinhar, de enterrar os mortos. É preciso que paremos também para pensar
nisto: em parar de tirar armas e apontar para outros. No fundo, é preciso diálogo.
É preciso olhar o outro como diferente. Ouvir também. Quem ouve tem sempre
vantagem. Tudo que começa batendo o punho na mesa ou com armas, acaba em
volta de uma mesa. E acredito que isso está a acontecer no mundo. Falta
patriotismo pelo seu país, ao invés de querer sempre mais.

JO: A solução seriam as crianças, como no filme Republica di mininus?


FG: As crianças são mais puras. Não estão ainda contaminadas, não sei até
quando... mas elas são minha esperança, todavia como tudo passa pelo
ambiente, quando este não está em condições puras, sãs, os miúdos também
serão contaminados. Aí está a tragédia da humanidade. Apesar disso ainda
acredito que as crianças são o futuro da humanidade.

313

JO: Você pensa que ficou marcado pelo sucesso do seu primeiro longa-
metragem? Há sempre uma expectativa de encontrá-lo nos seus próximos filmes?
FG: O Mortu nega é um filme que fala de um momento de resistência de um
país, em que o herói é o povo da Guiné. Todo o povo da Guiné. Eu fiquei com a
marca da guerra, muita gente gostaria que eu continuasse a falar da guerra, acha
que não falei o suficiente da guerra. Respondo que a guerra não é só carregar
armas na mão. Nós estamos a fazer uma guerra para construir ou reconstruir a
Guiné. E essa guerra passa por ter uma boa escola, ter eletricidade, ter um bom
hospital. Novamente, é o caso dos Olhos azuis de Yonta, no qual falo dos filhos
desses combatentes, dos nossos filhos. Hoje tenho que falar dos netos. É uma
luta constante e, embora eu não esteja amarrado à luta de libertação, ela me
inspira. Tenho olhos no século XXI e não quero que a Guiné fique fora do jogo
desse século. De sermos africanos, sermos do mundo, ser o que somos, sem
esquecer a nossa pertença.

JO: O que mais te inspira?


FG: O que me inspira, na verdade, é o meio em que nasci. Nasci no fundo da

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mata, no Sul da Guiné. Todos os dias eu ouvia o canto dos pássaros, que ficou
registrado para toda a minha vida, juntamente com todas aquelas paisagens das
savanas, as grandes árvores, os caminhos de terra batida. O cheiro da terra,
sobretudo na época das chuvas. Os miúdos descalços, muitas vezes, com barriga
de balão. As escolas sem janelas e nem portas. O que me inspira são aquelas
escolas em que toda gente vai com um banco na mão carregando, que chega
embaixo de uma árvore, como eu também comecei. Eu faço tipo uma
retrospectiva de onde eu saí... E estou agarrado a todo esse meio-ambiente, a
estes décors, a estas pessoas. O homem a remar que leva os produtos
misturados com as pessoas, os animais, o arroz, as frutas, que são abundantes no
nosso Sul... E, muitas vezes, o que também me inspira são os choros das
mulheres, que saem do hospital quando perdem seus filhos. Aquilo é um discurso
que em nenhuma literatura será encontrada. São tristes e ao mesmo tempo
chamam a solidariedade dos outros, para com essas mulheres, que não têm

314

grandes possibilidades, mas que possuíam a esperança de ter um filho, que um


dia poderia ser alguma coisa... Nessa luta constante das bideiras5, a força motora
da economia informal da Guiné-Bissau, do meu país. Das mulheres que vendem
tecido nas ruas, das meninas que fazem trança na rua, das crianças que, com o
olhar, convidam-te para ajudá-las a ter um futuro. Não há ninguém que não se
comova com esse olhar. Elas carregam as frutas de um lado para outro. Essas
crianças querem ser como você. Querem viajar, querem falar outras línguas, para
poderem ter acesso à sabedoria do mundo, que é a internet. Descobrir a literatura
de outros povos, civilizações, que não seja superior à cultura delas, porque não
existe nenhuma cultura maior do que a outra. É uma questão de percepção e de
abrir o espírito e aceitar as diferenças que há entre as culturas.

JO: Nesse sentido, você não faria um filme sobre o quê?


FG: Isso é interessante. Nunca pensei que nunca faria nenhum filme. Não faria
nenhum filme que ponha em questão a vivência da humanidade. As vivências
entre o branco e o preto, entre o azul e o amarelo. Enfim, eu não faria nenhum
filme mostrando que a cultura do Outro é inferior à minha. Ou que a do Outro se

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sobrepõe à minha. Eu faria um filme em que as culturas, três ou quatro, se
misturassem e dessem uma cor, que eu não sei qual é a cor... a cor Flora.

JO: Como seria a iluminação dessa cor flora?


FG: Uma questão que tenho colocado muito nas minhas conversas é que, na
criação do celular, não tomaram em conta a presença do negro, já que não
saíamos em fotografias. Até que os negros estadunidenses começaram a
aparecer nos filmes e começaram a pensar o negro na imagem. Uma cineasta
cubana, Sara Gómez, dizia que “nós os negros comíamos a luz”. Gosto muito
dessa frase, mas é preciso dizer que nós não só comemos a luz, como também
vestimo-nos com a luz negra. É isso que temos que trabalhar para sermos vistos

5
Vendedoras do mercado e nas ruas da Guiné-Bissau.

315

de outra maneira. Não como o carvão, como fomos pintados na fotografia


colonial, nem banhados de leite. É preciso trabalhar mais as luzes. Claro que não
vamos inventar o que já está inventado. É só a questão dos filtros. Utilizar filtros
de compensação das luzes na nossa pele.

JO: Seus temas são vastos e suas histórias cruzam-se com histórias da Guiné-
Bissau. O que lhe motiva a continuar contando essas histórias?
FG: A Guiné-Bissau é um pequeno país. Uma vez um amigo senegalês me
perguntou quantos somos. Somos quase dois milhões. Isso é um bairro de Lagos,
na Nigéria. Eu não quero que a Guiné-Bissau tenha um bilhão de habitantes,
porque não é pelo tamanho que quero que ela seja lembrada. Quero que seja
lembrada pelos seus feitos, como a luta de libertação, quando declarou
unilateralmente sua independência em 1973. Isso para mostrar que a Guiné-
Bissau tem potencial. E esses cruzamentos nas minhas histórias ocorrem porque
quero ser ouvido. Quero que meu país seja visto, mas quero pertencer não só à
Guiné-Bissau, à África, mas ao mundo global. Isso é fundamental para que as
pessoas questionem de onde é esse filme, que fala que é preciso ousar para

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mudar as coisas? 6 De onde veio esse filme que fala de uma república de
crianças? De onde veio esse filme que fala do meio-ambiente e que nós, na nossa
vida, somos sempre dois: uma árvore e um ser humano?7 De onde vem esse filme,

em que uma criança questiona que: “seu destino está cada dia mais incerto”?8
Isso tudo são questões que surgem, podia ser uma história em Angola, em
Moçambique, no Brasil, em Portugal.

JO: “Entre o Norte e o Sul. Entre o quente e o frio. Nada é tão simples”9. As
coisas ainda continuam assim? Por quê?

6
Referência ao filme Nha fala.
7
Referência ao filme Po di sangui.
8
Referência ao filme Olhos azuis de Yonta.
9
Trecho de uma música do filme Nha fala.

316

FG: Continuam e vão continuar. Desde que haja na nossa mente que o outro é
diferente, que está ao meu lado, mas que somos obrigados a viver juntos. Iguais
na diferença. Essa é a nossa luta no mundo.

JO: Isso não é utópico não?


FG: É, por isso que nós sonhamos. Temos que questionar, podemos até não
estarmos certos, mas temos que sonhar. Triste é o país em que o povo é proibido
de sonhar.

JO: O cinema é a ferramenta do sonho?


FG: Sim. Sim. Nem quero acreditar que eu poderia fazer outra coisa que não
fosse cinema. Essa liberdade de dizer... De incomodar o outro, ao seu lado, com o
que tu pensas. É só no cinema.

JO: Em Bissau, chamam-lhe “Cineasta visionário”. Você concorda com essa


denominação? Por quê?
FG: Não acho que sou visionário. Eu vivo em Bissau, ao lado da minha esposa,

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que me dá muita força e apoio, mesmo com a tentação de estar lá fora. Tenho
resistido. Deve ser porque no Po di sangui previ que sairíamos daquela aldeia, que
chama “Amanhã longe”, migraríamos para um país incerto e acabaríamos por
voltar para reconstruir o nosso país. No Nha fala, mostrei que o pensamento, as
ideias de Cabral incomodavam os que governavam e, na Republica di mininus,
falei dos óculos de Cabral, que são os óculos do futuro, e as crianças precisavam
desses óculos para ver o futuro. Penso que essa é a razão. São somente
vivências, nada do outro mundo. Não sou um visionário. Sou um homem com os
pés na terra e com a cabeça erguida.

JO: E para o futuro? O que esperar de Flora Gomes?


FG: Eu estou a trabalhar em um documentário sobre a vida do homem que me
fez hoje o que sou, que é o Amílcar Cabral. O documentário se dá na perspectiva
de ouvir as pessoas, sobre como era Cabral, para registrar a memória coletiva dos

317

que marcharam com ele na construção do país. Ele começou a sentir que já teria
cumprido com a sua missão, que também sabia que ninguém podia impedir que a
Guiné-Bissau chegasse à independência. Aliás, é o que ele diz no seu último
discurso.

JO: Você acha que o Cabral cumpriu a missão dele?


FG: Eu posso dizer que cumpriu, já que a Guiné se tornou independente, foi
liberta. E não há nada no mundo como uma pessoa liberta. Qualquer que seja o
peso. Nós estamos a pedir outras coisas, mas já não temos Cabral. Entretanto,
ainda falta libertar a mente do homem guineense do medo, do complexo, da
ignorância, do medo porque o outro é mais alto ou é menor, do medo porque o
outro é mais rico. Cabe a nós cumprir essa parte da luta simbólica que o Cabral
não conseguiu cumprir, porque o matamos antes do tempo.

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Submetido em 29 de outubro de 2016 | Aceito em 29 de novembro de 2016

318

Resenhas e Traduções

A mobilidade enraizada:
contradições do cinema africano1

Dudley Andrew 2
Tradução: Moema Franca3

1
Este artigo foi extraído de um ensaio de Dudley Andrew entitulado “The roots of
the Nomadic: Gilles Deleuze and the Cinema of West Africa”, editado por Gregory
Flaxman em The Brain is the screen: Deleuze and the Philosophy of Cinema
(Minneapolis: University of Minesota Press, 2000, p. 228-243).
2
Dudley Andrew é professor de Literatura Comparada e Estudos Cinematográficos
na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Com mestrado sobre Alain Resnais
na Universidade de Columbia (1969) e doutorado sobre André Bazin na
Universidade de Iowa (1972), Andrew é autor de numerosas publicações na área
de estética e teoria do cinema, tendo se especializado na cultura literária,
cinematográfica e filosófica francesa e nos cinemas da Ásia, da Europa e da África,

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articulados em torno da ideia de “World Cinema”. Foram publicados em português
o livro As principais teorias do cinema (Zahar, 1989), além de alguns artigos, dentre
os quais “Cidades fantasmas”, publicado em C. Mello (org.), Realismo
fantasmagórico (Cinusp, 2015), e “Além e abaixo do mapa do cinema mundial”,
presente na coletânea organizada por S. Dennison, World Cinema: as novas
cartografias do cinema mundial (Papirus, 2013).
e-mail: dudley.andrew@yale.edu
3
Moema Franca é doutora em Études du Monde Lusophone, pela Universidade de
Paris 3 – Sorbonne Nouvelle (2016), onde também concluiu o mestrado em
Langues, Lettres, Arts, Societés Contemporaines (2005-2007). Possui mestrado
em Comunicação e Culturas Contemporâneas pela UFBA (2004). É autora de Bem
Aqui, em Lugar Nenhum (7Letras, 2013), livro de contos finalista do Prêmio Jabuti
2014.
e-mail: moema.franca@gmail.com

321

Resumo

Seguindo as pistas abertas por Gilles Deleuze, para quem o cinema da metade
do século XX abriu perspectivas inéditas ligadas às formas de oralidade e
nomadismo, o presente artigo propõe-se a tecer uma análise do cinema do oeste
da África, perseguindo o desenho traçado por um conjunto de filmes em que se
alternam a afirmação de uma identidade original e o movimento de uma
identidade constantemente em reconstrução e trânsito, forças contraditórias que
se expressam pelas figuras do enraziamento - o Baobá - e do nomandismo - os
ventos do Sahel.
Palavras-chave: Nomadismo; Identidade; Cinema da África do Oeste.

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Abstract

According to Gilles Deleuze, mid-20th century has opened unprecedented


perspectives related to oral tradition and nomadic lifestyle. Following Deleuze’s
lead, this article aims to analyze West Africa’s cinema by proposing a path drawn
from a number of movies in which the affirmation of an original identity alternates
with the movement of an ever changing identity: contradictory forces that express
themselves through rooting figures (the Baobab tree) and nomadic figures (the
winds of the Sahel).
Keywords: Nomadism; Identity; West African Cinema.

322

Para os seguidores de Deleuze, o cinema está fadado a começar o seu


segundo século de maneira promissora: alternativas orais e nômades estariam
prontas para contestar a dominância global de Hollywood sobre as telas e mentes.
Sigamos a pista desse cinema alternativo na África, para permitir que essas
metáforas da oralidade e do nomadismo se expandam no lugar que
imediatamente convocam e para testar sua adequação.
O único cineasta africano que Deleuze já mencionou é, na verdade, aquele que
tem sido sistematicamente chamado de “cantor de histórias”, um “griô
cinematográfico”: Ousmane Sembène (DELEUZE, 1985, p. 289). Homem de
envergadura e influência incomparáveis, Sembène começou a identificar (e
recodificar) os agentes, instituições e práticas da África depois que os franceses
foram expulsos. Seus filmes tratam não somente da luta contra os franceses pelo
território, mas de sua usurpação subsequente por uma classe de marionetes
africanos. Por mais de trinta anos, Sembène fez a dramaturgia da luta para
decodificar o espaço africano, para desterritoriarizá-lo de interesses que estão
literalmente entrincheirados. A desterritorialização é o tópico explícito de seu
último filme, Guelwaar (1991), que trata da exumação de um corpo estimado (um

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mártir da causa africana que por acaso é cristão) de um território ainda mais
estimado: um cemitério muçulmano. A sátira de cristãos e muçulmanos discutindo
em lados opostos de um lote de terra que nenhum dos dois pode transpor dá
lugar à discussão mais séria do filme, que diz respeito à dependência africana –
uma discussão tão intensa por parte do protagonista que ele acaba assassinado.
No fim – na poderosa e incisiva cena final – a luta continua em nome de Guelwaar,
enquanto o carro que leva o seu corpo tritura o arroz do Banco Mundial,
espalhado sobre o solo. Recusando-se a serem comprados por um político
neocolonialista, os africanos desprezam o arroz, jogam-no sobre a terra, que, por
mais pobre que seja, pertence-lhes, ou melhor, confunde-se com eles, visando um
futuro que excluirá o Banco Mundial.
Para completar essa defesa do território aberto, Sembène projeta
simultaneamente na tela objetos, pessoas e práticas que tinham se tornado
invisíveis, porque insignificantes, para um público colonialista. Grande parte da

323

comédia em Mandat (1969), por exemplo, decorre do confronto entre a burocracia


neocolonialista e os gestos, hábitos, discursos e valores nativos de um
personagem que nunca antes tinha aparecido no cinema africano. Ao “identificar”
(nomear) práticas e valores africanos e ao oferecer a sabedoria proverbial
(condenar e exaltar), Sembène faz o papel do griô. Negando-se a reconhecer
fronteiras, sua obra reconstitui uma paisagem moral e geográfica que tinha sido
confiscada pelos franceses (e por outros antes deles), um terreno sobre o qual se
reúnem “as-pessoas-que-estão-ausentes” enquanto se fortalecem.
O paternalismo do próprio Sembène, no entanto, pode atenuar essa força que
ele libera. Seus contos alegóricos de estilo didático funcionam como sermões ou
ilustrações de posicões às quais ele chegou através da política, da filosofia e da
literatura. (ANDREW, 1995). De fato, ele chega a denegrir explicitamente o cinema
em relação à literatura, aceitando usá-lo como a melhor ferramenta disponível
para exibir sua visão irresistível da África. Incontestavelmente, sua missão de
tornar visíveis e trazer à discussão social problemas como a poligamia e a
intolerância religiosa inspirou a corrente mais ampla do cinema africano, os muitos
filmes sobre temas urgentes envolvendo as mulheres, a AIDS, a corrupção

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governamental e assim por diante. Por mais poderosos e eficazes que esses
filmes possam ser, eles não apontam, no entanto, o caminho de um cinema
alternativo. Em vez disso, da mesma maneira inaugurada na União Soviética, eles
empregam variantes do cinema didático para ajudar a construir uma sociedade
alternativa.
No entanto, um cinema alternativo surgiu no terreno semeado por Sembène.
De fato, desde 1980, duas gerações de cineastas africanos percorreram essa
paisagem com uma câmera que explora, mais do que exibe. Eles frequentemente
avançam montados no cinema, seguindo-o no esforço de descobrir e conceber
uma nação durante o processo. O Sahel se estende na frente deles como se
jamais houvesse sido mapeado, e eles o atravessam, às vezes seguindo os
contornos mutáveis da areia e dos arbustos, às vezes tomando caminhos
ancestrais, ou às vezes escolhendo seu caminho aleatoriamente. Mas,
invariavelmente, eles encontram um baobá, a grande árvore cuja estatura detém o

324

livre movimento de seus pensamentos e de seu cinema, transformando-os num


passado representado por suas raízes. O cinema africano uniria os impulsos duais
da liberdade e da identidade, representados respectivamente pelo amplo Sahel e
pelo baobá enraizado.
Djeli (1980), de Kramo Lanciné Fadika, inaugura essa segunda fase maior do
cinema africano. A elaborada sequência que precede os créditos projeta a
constelação crucial de elementos que caracterizam essa fase: um griô,
acompanhado de músicos, canta para uma família de bem-nascidos. Ele canta a
lenda de dois irmãos que, depois de perambularem pelo Sahel até quase
morrerem de fome, sentam ao lado de um baobá. Um irmão dá a outro algo para
comer; quando a modesta refeição acaba, o irmão revitalizado se dá conta de que
comeu a carne que o outro cortou do próprio corpo. Essa sequência de
comunhão sob um baobá serve para introduzir não apenas Djeli, mas toda uma
corrente do cinema africano que dominaria a crítica pelos próximos quinze anos.
Apenas dois anos depois de Djeli, The Wind (Finyé, 1982), de Souleymane
Cissé, sacudiu os espíritos ancestrais de uma árvore tão sagrada. Até esse
momento, o trabalho de Cissé tinha sido, quando muito, ainda mais didático do

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que o de Sembène em sua retórica direta, de confronto anticolonialista. Finyé abre
no mesmo estilo, no calor de uma revolta estudantil na Bamako contemporânea,
onde a política ordinária, incluindo a ação revolucionária, resulta num impasse
familiar. Mas, de repente, Cissé sublima esse modo declarativo, substituindo-o
pela sintaxe interrogativa e condicional que assombraria sua obra de arte, Yeelen,
cinco anos mais tarde. Ele embarca nesse modo absolutamente novo em busca
de uma identidade, procurando “uma cultura que se pareça com o meu povo, com
o meu país, o Mali…[onde] a colonização é apenas um acidente de percurso”.
(CISSÉ, 1983, p. 44)1. Esse drama é consagrado ao avô do herói, o último chefe
do seu grupo étnico, que, para salvar seu neto e o futuro do grupo, convoca as

1
Cissé continua: “Mesmo que eu considere o colonialismo, eu não o trato como fundamental na
emergência de certos valores. Ao negligenciarmos nossos próprios valores, nós permanecemos
alienados, controlados pelos valores dos outros”.

325

forças de seus antepassados para subjugar o poder político contemporâneo. No


momento em que todas as opções diretamente políticas foram exauridas, esse
chefe bambara se dirige à “Árvore Cósmica” com gritos que são ecoados por
pássaros invisíveis. Tanto na trilha sonora quanto na imagem, o filme muda para
um plano em que o sagrado pode interferir frente à injustiça. Claro, Sembène tinha
ocasionalmente representado poderes mágicos, especialmente no feitiço e
fetiches de Xala (1974). Mas, nesse filme, isso foi feito satiricamente, para
ridicularizar a impotência de um líder autocrático. Em Finyé, por outro lado, Cissé
filma a árvore de modo ritualístico, ativando o poder da árvore para “propor uma
imagem sensível de uma imagem mental” que abriga um outro tipo de
conhecimento. (LÉLIÈRE, 1999, p. 298). Esse conhecimento não é nem
etnográfico (uma descrição de um rito religioso fascinante e estranho) nem
alegórico (um símbolo para uma noção complexa). Ele vem de outro lugar.
Cissé abre uma porta para esse conhecimento nos prólogos e epílogos
herméticos de seus trabalhos mais maduros. A primeira cena de Finyé é de um
jovem empurrando uma cabaça que flutua sobre a água pura e calma; o menino
reaparece na cena final para oferecer a cabaça a um par de mãos vindo de fora do

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quadro. Cissé gostaria que seu público bebesse dessa fonte sagrada. Antes dos
créditos de Yeelen e Waati, Cissé apresenta ideogramas geométricos, que são
elementos de um sistema de culto obscuro com o objetivo de orientar os
episódios seguintes, dirigindo e sustentando a ação heróica, e representando, em
ambos os casos, uma África em contato com um passado pré-colonial e
preparada para um futuro pós-colonial.
Na famosa conclusão de Yeelen, pai e filho finalmente se confrontam, com
todos os poderes que reuniram. Novamente um garoto pré-adolescente, sem
relação com o enredo do filme, traz uma oferenda – dessa vez, uma pequena
cabra. Um touro poderoso aparece do nada e se aproxima da câmera em slow-
motion; um leão e um elefante se superpõem aos combatentes até que um flash
de luz aniquila a cena. No topo dessa desolação e através das dunas de areia que
cobriram o que restou do passado, corre um garotinho, o filho do herói, nascido
após a sua morte. Ele retira da areia dois ovos de avestruz (DNA, o “corpo-sem-

326

órgãos” perfeito, os espíritos cristalizados do pai incrédulo e do filho honrado). Ele


leva um ovo de volta para a mãe, que põe o manto do pai sobre os ombros do
menino. Sob a batida confiante de um tambor, eles sobem outra duna rumo a
algum futuro 2 . E se trata de terra aberta, areia se movendo sob os pés, que
nenhum colonizador vai reivindicar outra vez. Ela pertence apenas àqueles que lhe
pertencem, aos nômades que, recusando-se a deixá-la, vivem com ela, localizam
suas fontes secretas de energia e as liberam.
Nômade e livre, Yeelen, no entanto, reconta uma fábula claramente tribal, em
que um filho enfrenta e destrói o seu pai para dar lugar, por sua vez, a seu próprio
filho e ao crescimento da árvore genealógica. No seu caminho para os penhascos
de Bandiagara, o núcleo da cultura maliana, o filho é apressado pelo súbito
aparecimento de uma forma de hiena numa árvore enorme, cujo formato fabuloso
abriga os espíritos de seus ancestrais, nessa paisagem de outro modo deserta e
sem identidade. Somente uma rede incalculável de raízes pode sustentar uma
árvore assim. No Sahel, varrido pelo vento harmattan, que sopra a areia através do
presente, as pessoas gravitam em torno de uma árvore assim ou se refugiam na
sua sombra, como se refugiam na história. Ela é feita de memória. Ela é um marco

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vivo da dívida do presente para com o passado. Os nômades podem viver
criativamente em terreno aberto, mas morreriam rapidamente se não atentassem
para as advertências e aceitassem a ajuda do passado. De fato, esse e outros
filmes africanos deveriam alertar aqueles que encontram na versão deleuziana do
nômade uma força completamente livre. O herói de Yeelen é um nômade, mas
não é um individualista rebelde; ao contrário, é um estudante aplicado da terra
que ele serve e à qual pertence num sentido real.
Essas mesmas características apareceram mais cedo em Wend Kuuni, de
Gaston Kaboré. Um filme discreto, feito no mesmo ano que Finyé, 1982, ele
também vai em busca dos valores nativos africanos na era pré-colonial. Com seu
estilo e música fáceis, e com sua narração ocasionalmente em voz-off, Wend

2
Ver o ensaio de Susan McRae sobre este filme em: Research in African Literatures, Fall, 1995. Ver
também meu próprio ensaio e de Philip Gentile em: Iris n. 18 (1995).

327

Kuuni soa como uma performance coletiva de uma lenda de aldeia. O filme
começa com um menino perdido na mata, que recebe o nome de Wend Kuuni,
“Presente de Deus”, daqueles que o encontram lá. Sua errância daí em diante será
espiritual, uma vez que, mudo e amnésico, ele está determinado, sob os cuidados
benevolentes de sua família adotiva, a recuperar o seu passado e a sua fala.
Marie-Magdalene Chirol argumentou que, ao descobrir sua identidade (ou seja,
mãe e pai), Wend Kuuni efetivamente descobre “ma” e “da”, os elementos
fonéticos primários que permitem a articulação da fala 3 . Esse Nachtraglichkeit
ocorre numa noite escura quando ele deixa a aldeia para procurar uma faca que
tinha deixado embaixo de um baobá. Lá, sua memória é reavivada pelo choque de
ver o corpo de um homem da aldeia, que havia se enforcado na árvore depois de
ter sido condenado ao ostracismo. Lembranças de sua própria expulsão de sua
aldeia, em companhia da mãe, agora inundam Wend Kuuni, levando a lembranças
da morte de sua mãe, de doença e de fome, embaixo de outro baobá.
Confrontando o cadáver, Wend Kuuni é liberado de sua ignorância; ele retorna,
capaz de falar com sua nova família e de saudar uma aldeia receptiva, que
esperou pacientemente pela sua recuperação.

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A adoção aqui (e em Waati, de Cissé, filme de 1996) mostra que as relações
sociais transcendem a biologia e que o baobá da África é tão extenso que é capaz
de inter-relacionar galhos e raízes distantes. Ainda assim, identidade e tradição
estão no topo desses valores especificamente africanos, que Cissé acredita que
um cinema nativo deve expressar. Esse é sem dúvida o caso de Keita, cujo título
original, Da Boca à Orelha, anuncia sua conexão com a tradição oral. Um sucesso
no FESPACO de 1995, Keita, assim como Wend Kuuni e Yeelen, conta a história
de uma recuperação através da memória do poder perdido dos ancestrais, mas
dessa vez memória e narração são mais do que o meio para a cura; eles ocupam
o lugar central enquanto a própria cura. Os meninos dos filmes anteriores
perambulavam sozinhos no deserto para procurar seus destinos no passado, mas

3
Ver CHIROL, Marie-Magdalene. “The Missing Narrative in Wend Kuuni”. Research in African Literature
26, n. 3, Fall, 1995, p. 53.

328

o jovem Mabo Keita nunca deixa o corre-corre de Ouagadougou, onde seus pais e
professores o educam num estilo condizente com a nossa época. E mesmo assim
o jovem Mabo, instigado pelo griô Djeliba, embarca em sua própria jornada
transformadora, contra o desejo de seus pais e professores, cujos valores e
linguagem ele começa a questionar. Essa linguagem, Francês e Matemática, é
interrompida por Djeliba quando ele encontra Mabo pela primeira vez, pois o
garoto está lendo em voz alta, no seu livro francês de ciências, que os humanos
descendem dos gorilas. Chocado, Djeliba decide contar a Mabo sobre seus
ancentrais verdadeiros para ajudá-lo a firmar o seu nome e o seu lugar real.
Para interromper esse suave deslizamento da educação familiar para o
modernismo de Estado, o griô planta um objeto vertical no caminho, uma árvore
da memória: ou se deve evitá-la ou devem-se explorar seus galhos e raízes. O
filme seria tal obstáculo para os espectadores, que por um tempo (96 minutos,
nesse caso) são desviados de seus caminhos habituais para um outro plano da
experiência, um plano paralelo da fabulação. A fabulação, construção deliberada
de um mundo, começa no início de Keita, com o canto das origens que
acompanha os créditos. A câmera faz um movimento panorâmico sobre o corpo

V OL . 5, N. 2 • REBECA 10 | J UL HO - D EZEM BRO 2016


de Djeliba dormindo na sua rede, e o plano se fecha sobre o seu rosto. Sua voz
conta o nascimento do mundo a partir do caos enquanto entramos no seu espaço
mental, em que imagens de lava e de larvas se misturam. Quanto tempo dormiu o
griô? Séculos, talvez, pois ele vem de outro tempo, como o caçador contará a
Mabo na sequência final. Agora, porém, Djeliba é acordado por um antigo caçador
e se levanta para intervir no nosso tempo. Sua figura magricela avança através da
paisagem lírica trazendo sua história e sua verdade para uma cidade cheia de
motocicletas e comerciantes. Ele relatará a Mabo a grande epopéia de Soundjata,
o rei que consolidou o império maliano no século XIV, um épico cujo primeiro
incidente tem a participação precisamente do caçador que o acordou. Assim,
viajamos através do filme como sobre uma fita de Möebius, uma vez que o
caçador despertou a memória do griô que canta um conto desse mesmo caçador.
Além disso, séculos antes, o caçador previu para o rei do Mande as ações que o
tornariam o rei lendário cuja dinastia atravessou a história até esse garoto que

329

ouve, fascinado, a lenda de suas origens. O clímax do filme está não na lenda,
uma vez que Djeliba interrompe o seu conto com o exílio de Soundjiata ao invés
do seu triunfo4, mas na vida de Mabo, quando, provocando a ira de seus pais e
professores, ele decide aceitar a busca para fazer reviver sua tradição. Djeliba o
abandona ao lado de um baobá próximo a sua casa (uma árvore na qual ele
sentou enquanto retransmitia aos seus amigos o conhecimento sagrado do griô).
Na cena final, Mabo circula ao redor do seu tronco imenso, prometendo localizar
outros griôs para ajudá-lo a explorar as raízes de seu passado e projetar as
ramificações do futuro de seu povo. Um pássaro sagrado voa em círculos sobre
ele, trasmitindo bons augúrios.
E, de fato, ele explorou essas raízes, pois o garoto (ou melhor, um garoto, Dani
Kouyate) cresceu para fazer exatamente esse filme. O griô, Djeliba, é interpretado
por um verdadeiro griô, seu pai, Sotigui Kouyate, uma voz e um rosto familiares
para aqueles que vivem na África Ocidental. Então o filho “na vida real”, como
costumamos dizer, tendo ouvido os contos de seu pai, foi de fato em busca de
seu passado mais vasto, fazendo doutorado em etnologia em Paris e ganhando
um certificado em cinema para cantar esse conto para uma nova geração, num

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registro visual.
Na própria forma de sua narração, Keita transmite não apenas as palavras de
despedida de Djeliba para Mabo, de que “o presente sempre emerge do
passado”, mas também sua implicação de que o passado é controlado por
aqueles que estão no poder. Pois Djeliba também afirmou, e o filme mostrou
diretamente, que “existem muitos tipos de verdade”, vários “mundos
compossíveis”, para usar o termo que Deleuze toma emprestado de Leibniz. O
griô, um pouco como Deleuze no domínio da filosofia, toma emprestado, retoca, e
re-cita a partir de uma tradição, de forma a fazer surgir algo novo. Ao replicar o

4
Uma pesquisa em audiências nativas depois das sessões do filme em Burkina Faso encontrou
espectadores frustrados e desapontados uma vez que a famosa lenda foi encurtada. “Fespaco 1995
Critique cinematographique”, editado por Traoré Biny, Jean-Claude (datilografado, Bobo-Doulasso, 17
de Fevereiro de 1995), p. 15-24.

330

professor de francês, Djeliba recita um provérbio pertinente ao filme como um


todo: “Você sabe por que, nas histórias, os caçadores sempre matam o leão? É
porque são eles que contam as histórias. Se os leões contassem histórias, eles
ganhariam de vez em quando”. Keita é uma história contada por um leão. O
animal e o vegetal, como o passado, pairam sobre o presente e podem ser
convidados – convocados – através de um certo uso do discurso. Deleuze usa
para esse discurso o termo de “fabulação”, e cada vez mais filmes africanos o
utilizam. O baobá é, portanto, uma árvore “fabulosa” em que se pode transitar
entre mundos5.
A metáfora sedutora do cineasta enquanto griô, explícita em Djeli, Keita, Jom,
Waati, Po di Sangui e Guimba, implícita em Yeelen, Wend Kuuni, Sababu e dúzias
de outros filmes, confere poder a um cinema africano de outro modo
empobrecido, ao neutralizar as demandas, por um lado, de realismo, e por outro,
de espetáculo. Med Hondo proclamou essa hierarquia nos momentos finais de
seu Sarraounia (1985), um épico sobre a figura histórica da guerreira que enfrentou
a colonização logo antes da virada do século. Vitoriosa inicialmente sobre seus
rivais locais, depois resistindo bravamente contra os invasores franceses,

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Sarraounia marcha triunfalmente de volta a seu palácio na liderança de uma
diversidade de povos africanos que ela vai dirigir com uma mão firme ainda que
liberal. Seu magnífico discurso, proclamando uma nova era de fraternidade e
tolerância, pareceria ser a última palavra do filme, mas, na verdade, Med Hondo a
reserva para si mesmo, ou ainda para seu antepassado, o griô do filme, que canta:
“Que importância têm os feitos gloriosos sem o griô para os contar? Quando tudo
virar poeira, somente as palavras do griô restarão”.
Mas o papel do griô como “fabulador” – aquele que faz coexistirem o passado

5
Entre os muitos filmes que exibem árvores fabulosas, deixe-me destacar Mossane, de Safi Faye
(Senegal, 1995) e especialmente Po di Sangui, de Flora Gomes (Guinée-Bissau, 1996). Este último,
narrado por uma mulher griô, é baseado na premissa de que nas aldeias da Guiné Bissau uma árvore é
plantada no nascimento de cada criança. A árvore invariavelmente sobrevive à pessoa para quem ela é
uma metonímia; efetivamente, o espírito da pessoa passa para a árvore na sua morte. O drama gira em
torno da destruição da floresta de tais árvores pela modernização do país.

331

e os mundos possíveis com um presente cuja “realidade” é muito reduzida – deve


ser disciplinado por sua função mais primária enquanto “retransmissor”. É
verdade que o griô tem liberdade para adaptar a sabedoria popular e as tradições
aos interesses do momento, mas ele nunca deve se esquecer do passado, que é,
ao mesmo tempo, uma árvore do conhecimento à qual ele está ligado como por
uma dívida, e uma árvore genealógica à qual ele está ligado pelo acaso do
nascimento. Nesse aspecto, ele tem mais em comum com o historiador devoto
celebrado por Paul Ricoeur do que com o romancista desenfreadamente criativo
de Deleuze6. O griô pode invocar o passado para libertar o seu povo do jugo do
Islã (Ceddo) ou do colonialismo francês (Jom), mas o passado que ele convoca faz
suas próprias exigências e é tão inescapável quanto o destino. O griô reúne seu
grupo embaixo do venerado baobá, onde o reassegura mais uma vez de sua
identidade, tanto coletiva quanto individual (“Você sabe o que o seu nome
significa, Keita?”), face aos exércitos coloniais e aos negócios globais que
dividiriam o território em “coordenadas” abstratas. A árvore pode muito bem
enraizar a cultura no terreno. Fora de sua sombra, entretanto, morre-se da
exposição7.

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Em sua Nomadologia Deleuze escreve não sobre os griôs, mas sobre ferreiros
que seguem veias de minério, liquefazendo o metal numa transformação
alquímica. O minério do griô devem ser as incontestáveis lições do passado, a
sabedoria e as lendas que ele transforma em ferramentas e armas para uso atual.

6
Ricoeur articula a fidelidade do novelista à sua intuição com a fideliade que o historiador exibe em
relação ao passado. (RICOEUR, 1988, p. 177).
7
Olivier Barlet apresenta uma visão diferente da minha nessa discusão extensa sobre o griô
cinematográfico. Ver seu livro Les Cinémas d’Afrique noire: le regard en question (BARLET, 1996). “O
cineasta é um griô moderno.... mas seu discurso é novo. O confronto entre a fala ancestral e os valores
modernos importados força uma nova forma de discurso no qual o homem contemporâneo (pelos
meios de uma mistura de culturas, considerada africana ou não) pode reconhecer a si mesmo. (p. 168-
69). Barlet descarta o “griot engagé”: “Se o cineasta se inspira no modelo do griô, é por o revirar: seu
objetivo não é a coesão do grupo mas sua evolução”. (p. 180). Essa evolução inclui o hibridismo, a
aceitação de certas influências ocidentais, impureza. Enquanto eu enfatizo o griô como aquele que visa
primeiro a coesão do grupo através da sua herança.

332

Ele passa adiante o que poderia ser chamado de tradição familiar, tribal ou racial.
O griô vasculha a amplidão plana do Sahel africano procurando evidências da
história, vestígios de ancestrais e de animais, conhecimento essencial para nutrir a
aldeia, para evitar que ela seja arrastada pelos ventos harmattan da mudança. Um
nômade do espírito, o griô localiza reservatórios de água sagrada, onde o passado
se reúne em poços subterrâneos. Uma linha de cineastas africanos tem buscado
repetidamente a água desses poços, esforçando-se, por muitos anos agora, para
transformar essa terra em algo viável.
O contador de histórias que Walter Benjamin venerava sustenta um ethos
público que desdenha da privacidade do romancista, que, sozinho em seu
escritório, inventa estados psicológicos íntimos de seus personagens.
Determinado em sua criação, o romancista fixa palavras numa página, páginas
num livro, e livros na instituição da biblioteca. O contador de histórias, o griô
africano, em contraste, transmite uma tradição comum. Ele molda contos
tradicionais com sagacidade e esperteza para adaptá-los ao momento de sua
apresentação. Ele nomeia as referências numa genealogia complexa que ele
acessa deslocando-se no tempo, para cima e para baixo do tronco da grande

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árvore. Em Keita, Djeliba vangloria-se diante do instrutor francês por saber o
significado dos nomes de quase todos os animais. Nomear é invocar o poder de
um animal ou um espírito numa árvore. Contar histórias equivale a um grande
gesto de nomeação, um ato altamente político que reanima a comunidade ouvinte.
Não é à toa que tantos cineastas africanos têm reivindicado, talvez
prematuramente, o manto do griô: eles pretendem se dirigirir com imagens vívidas
a uma comunidade local à qual essas imagens fortemente se referem.
E, contudo, cineastas gravam suas histórias indelevelmente em celulóide, e as
enviam como mercadorias num sistema de troca cultural e de entretenimento.
Poucos filmes africanos conseguem impôr-se no sistema de distribuição local, no
qual poderiam falar para os grupos que pretendem desafiar e estimular. Porque a
distribuição é dominada nas cidades por uma única companhia global (Sopacia) e,

333

nas áreas rurais, por empresários libaneses que oferecem principalmente filmes
hindus8. Guelwaar, talvez o filme africano mais discutido da década, esperou anos
para conseguir uma projeção em Dakar, cidade natal de Sembène. Na África, ele
pôde ser visto no FESPACO e foi exibido também em outros festivais, muitos
outros. Sembène o seguiu ao redor do mundo.
Os cineastas africanos podem preferir a imagem do nômade, mas muitos
parecem destinados a viver como migrantes, indo de festival em festival, de
universidade em universidade, para apresentar sua obra. Nessas viagens eles
inventam futuros projetos com outros membros da caravana, ou se associam às
fontes de dinheiro e tecnologia que encontram pelo caminho: uma promessa de
distribuição de uma rede de TV européia, uma subvenção para pós-produção
numa montadora parisiense, uma aliança com um compositor afro-pop conhecido
no coquetel de um festival. Para escapar do naufrágio, enquanto flutuam através
dos obstáculos de uma existência caótica, os cineastas africanos projetam
frequentemente imagens de um passado enraizado, uma árvore ancestral, que
assegura uma identidade que eles podem proclamar com orgulho. Evidentemente,
os griôs e as tradições que eles trasmitem promovem a estabilidade da família,

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ligando a família à terra. Eles transmitem o passado, assim como pais transmitem
genes para seus filhos. Tradição, paternidade e território abrangem o conteúdo e a
forma da oralidade, uma função cultural indispensável para grupos que vivem em
zonas ecológicas frágeis como o Sahel da África Ocidental. Desse modo, Keita
adquire sua autoconfiança (o suficiente para corajosamente desafiar a ciência
ocidental, a história e o cinema), mas o faz refugiando-se na tradição, o que está
aparentemente em desacordo com a concepção expansiva do nômade, defendida
por Deleuze. Keita, e sobretudo Yeelen, proclamam a vitória de uma nova África
sobre a opressão sufocante, mas o fazem através da veneração da lei da linhagem
e da repetição, ao invés da liberdade e dispersão que Deleuze associa ao

8
Alguns cineastas colocaram seus filmes na estrada em seus próprios países, exibindo-os de aldeia
em aldeia por uma ninharia. (BOTTÉON, Christophe. “Cinéma d’Afrique noir ou le talent sans moyens”.
Cinéma, Paris, n. 590, sep. 1997, 15-17).

334

nômade.
Os cineastas africanos podem fazer com que eles mesmos e o seu povo
sintam-se seguros a respeito de suas raízes sem se segurarem a essas raízes?
Essa é a mensagem explícita de Keita, uma vez que Mabo está determinado não
apenas a aprender o conhecimento tradicional reprimido de seu grupo, mas
também a frequentar a escola francesa, talvez para um dia estudar etnologia em
Paris. O futuro da cidade de Mabo, Ouagadougou, vai igualmente precisar
esboçar-se a partir de um passado variado e de línguas variadas. O griô ensina
Mabo a venerar, explorar e invocar a árvore da tradição, particularmente em
épocas de necessidade; presumivelmente, uma vez alimentado e descansado,
uma vez seguro sobre o seu valor, Mabo (sugerindo a África) sairá da sombra da
árvore para a amplidão do Sahel, para negociar o novo, no ato permanente de
tornar-se um povo. Desse modo, a tradição pode ser entendida como uma etapa,
um estado de poder acumulado, no percurso de se tornar uma outra coisa.
Para os cineastas africanos, a negociação acontece nos festivais europeus,
nos quais a “diferença” é premiada. Histórias pré-coloniais e histórias retratando a
vida na aldeia, especialmente quando envolvem práticas animistas, têm sido bem

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recebidas porque são proeminentemente marcadas. Elas também tem sido vistas
com condescendência enquanto filmes “cabaça”, isto é, filmes ternos mas
rudimentares. Alguns especialistas ocidentais exploram, a cada ano, a pequena
safra de filmes, em busca de obras de arte “naïve”, com técnica e sintaxe
cinematográficas originais. A recepção calorosa acordada a Idrissa Ouedraogo,
por exemplo, deriva certamente das cenas e práticas pitorescas da aldeia que ele
retrata sem se justificar; “Pagnol do Sahel” foi como ficou conhecido. Em 1972,
Djibril Diop-Mabety surpreendeu o Ocidente com Touki-Bouki, cujo vigor inventivo
foi favoravelmente comparado a Pierrot le Fou e Easy Rider. Depois de um hiato
de vinte anos, Diop-Mambety, mais uma vez, surpreendeu os críticos com sua
criatividade, ainda que Hyenas tenha sido adaptado de uma peça européia
canônica (The visit, de Friedrich Durrenmatt). Hyenas constituiu uma “descoberta”
porque sua localidade exótica, suas cores e sua teatralidade despudorada
produzem uma alegoria do desespero africano, que se torna ainda mais forte

335

devido à origem suíça da obra. Em suma, a afirmação corajosa da identidade e da


diferença (étnica), tão importante nas obras que agrupei como filmes de griô,
funciona na atmosfera autoral de festivais de cinema, mas enfraquece o potencial
radical da oralidade e do nomadismo.
Esse potencial pode ser melhor encontrado numa variedade mais recente de
imagens surgidas a partir do urbanismo nascente em todo o continente africano.
Em Ouagadougou (Haramuya), em Yaounde (Quartier Mozart) e em Kinshasa
(Macadam Tribu), podem vislumbrar-se comunidades clandestinas formando-se
sob a vida oficial repressiva das cidades em que se instalaram. Religiões,
moralidades, passados e buscas diversos emaranham-se e se misturam
aleatoriamente numa espécie de cinema afro-pop, uma vez que esses filmes
assumem um ritmo e um tom que dão a eles e aos grupos que representam um
impulso poderoso para um futuro em aberto. Em Macadam Tribu, cujo título
refere-se justamente a isso, os personagens sobrevivem enganando autoridades,
fazendo negócios uns com os outros e criando projetos coletivos (notadamente
um teatro), o que começa a dar-lhes um senso de definição e coesão. Entre os
muitos personagens cujas tramas entrecruzam-se em todos os três filmes,

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encontra-se a figura de um griô expondo a sabedoria do passado da aldeia. Mas a
autoridade da tradição que eles representam contribui para a vida da aldeia
urbana em processo de construção, ao invés de dominá-la. Uma economia
informal atende organizações familiares não tradicionais: prazer, dinheiro e
educação de algum modo emergem numa espiral de movimento acelerado pelo
ritmo dos sons e transportes urbanos. Pessoas que não contam – que literalmente
não são contadas pelo Estado – inventam táticas engenhosas para sobreviver e às
vezes prosperar nas ruelas e no labirinto de becos e barracos do gueto. Trazida
com eles do mato ou nascida nesse ambiente caótico, uma pulsação musical
confere personalidade e uma esperança bruta mesmo nas piores situações.
Enquanto Keita e Yeelen permanecem firmes como árvores no Sahel,
alcançando com suas raízes a água pura da tradição, Macadam Tribu, Quartier
Mozart e Harayuma cantam os sons híbridos do afro-pop, deslizando pelas ruas
de cidades em acelerado crescimento, apanhando instrumentos e ritmos novos

336

enquanto passam. O caráter multiforme de seus muitos personagens, sua


necessidade de se adaptar a condições que mudam contantemente para tirar
proveito da menor oportunidade, correspondem ao caráter igualmente multiforme
dos grupos sociais que eles vêm a compreeder. Todos os três filmes celebram a
persistência de um espírito indomável, sendo eles mesmos exemplos de um
grande vigor. Resultado de financiamento e produção “batalhados” ad hoc, cada
um desses filmes se realizou por força de um impulso completamente fabricado
(fabulado). Os filmes afro-pop não podem recair em algum fundamento de
tradição, pois, num ambiente urbano, qualquer forma de “identidade” precisa levar
em conta diferenças de religião, linguagem e moralidade. Mesmo assim, eles
estão confiantes, uma vez que seus personagens forjam soluções engenhosas e
combinações improváveis para sobreviver contra obstáculos econômicos
insuperáveis e injustiça absoluta. Nômades urbanos, traçando desenhos
rizomáticos agora que as raízes que os ligam de volta a suas aldeias foram
cortadas, esses personagens inventam a si mesmos enquanto grupos ou
agrupamentos. A invenção é conduzida por um ritmo exuberante, e seria
impensável interrompê-lo (impensável, pois o movimento é, efetivamente, o que é

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pensado).
Nas sequências finais de Macadam Tribu, uma empresa comunitária
transforma um ringue de boxe em um teatro e prepara a sua primeira produção.
Enquanto os atores ensaiam uma peça no palco sobre uma revolta popular, a TV e
o rádio trazem notícias sobre a queda do ditador do país. A invenção artística e o
imaginário social parecem projetar um futuro político real, que é igualmente ad
hoc, igualmente em processo de construção. Num formidável gesto de ironia,
esse teatro local precisa, para sobreviver economicamente, alternar seu programa
com filmes de Bruce Lee. De fato, a última linha de diálogo do filme cita Bruce
Lee, um herói internacional para os oprimidos e, ao mesmo tempo, um astro da
mídia. E por que não? A pureza nunca foi um objetivo do afro-pop. Muitos sons
são necessários, muitos tempos diferentes, cuja interação, se os músicos forem
suficientemente habilidosos e confiantes, produzirá a partir dessa cacofonia um
ritmo completamente novo, dando um formato provisório a linhas e forças

337

distintos. “Identidade”, nesses três filmes afro-pop, não é outra coisa a não ser
persistência e sobrevivência. A identidade está em movimento nas cidades
africanas; aliás, num lugar assim, identidade é movimento.

Referências

ANDREW, Dudley. “The falaise in the Sahel”. Nouveaux discours du cinéma


africain. Ukadike, F (ed.). In: Iris, Paris/Iowa City, n. 18, spring, 1995, 113-124.

BARLET, Olivier. Les Cinémas d’Afrique noire: le regard en question. Paris:


Harmattan, 1996.

BOTTÉON, Christophe. “Cinéma d’Afrique noir ou le talent sans moyens”. In:


Cinéma, Paris, n. 590, sep. 1997, 15-17.

CHIROL, Marie-Magdalene. “The Missing Narrative in Wend Kuuni”. In: Research


in African Literature 26, n. 3, Fall, 1995, 53.

CISSÉ, Souleymane. In: Magazine Litéraire, Paris, mai, 1983.

DELEUZE, Gilles. L’image-temps. Paris: Minuit, 1985.

LÉLIÈRE, Samuel. Le cinéma paradoxal de Soleymane Cissé. Une approche de

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l’altérité du film africain. Tese (Doutorado), Université Marc Bloch, Strasbourg,
1999.

RICOEUR, Paul. Time and Narrative III. Chicago: University of Chicago Press,
1988.

Submetido em 15 de setembro de 2016 | Aceito em 10 de dezembro de 2016

338

Cinema africano:
perturbando a ordem (cinemática mundial)

Kenneth W. Harrow1
Tradução: Lúcia Ramos Monteiro2

1
Kenneth W. Harrow é professor titular (“distinguished”) do departamento de
Inglês da Michigan State University, nos Estados Unidos. Com mestrado em inglês
(1966) e doutorado (1970) em literatura comparada pela New York University, ele
especializou-se em estudos pós-coloniais e no cinema e na literatura da África e
das diásporas. Dentre seus diversos livros publicados, os mais recentes são
Postcolonial African Cinema: From Political Engagement to Postmodernism (2007)
e Trash! A Study of African Cinema Viewed from Below (2013). Em 2011, ele
recebeu o prêmio de “africanista distinto” (Distinguished Africanist Award) na

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Conferência Anual de Toyina Falola na Universidade do Texas. Como professor e
pesquisador premiado pela Fundação Fulbright, ele esteve em Camarões (1977-
1979) e no Senegal (1982-1983 e 2005-2006).
e-mail: harrow@msu.edu
2
Lúcia Ramos Monteiro realiza pesquisa de pós-doutorado junto à Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) a respeito dos
“Problemas contemporâneos para o conceito de cinema nacional”, com
financiamento da Fapesp. Ela é doutora em estudos cinematográficos pela
Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3 e pela USP, com uma tese sobre “A
iminência da catástrofe no cinema”. Trabalhou como professora-visitante na
Universidad de las Artes, em Guaiaquil, Equador, tendo dado aulas também na
Paris 3 e na USP. Foi curadora da mostra África(s). Cinema e Revolução (Caixa
Belas Artes, 2016).
e-mail: luciarmonteiro@gmail.com

339

Resumo

Kenneth Harrow pensa o conceito de “cinema mundial” – e suas novas formulações, a partir do
“transnacional” e do “global-local” – à luz dos cinemas africanos, tanto os herdeiros do Terceiro
Cinema e dos cinemas de libertação nacional (de Ousmane Sembène a Jean-Marie Téno), quanto os
que adotam uma perspectiva experimental ou vanguardista, como Jean-Pierre Bekolo, Mahamat-Saleh
Haroun e Andy Amadi Okoroafor, incluindo também os cinemas populares, principalmente Nollywood.
Os paradigmas evocados por Krings e Okome (2013) e Diawara (2010) dão ensejo à seguinte questão:
como o leque de práticas fílmicas realizadas atualmente na África, dos filmes sérios e independentes
às mini-indústrias ao estilo de Nollywood, requer a reconceituação de novas noções transnacionais da
globalização (DUROVICOVA & NEWMAN, 2010). Continuando seu trabalho anterior (HARROW, 2012), o
autor enfatiza a necessidade de uma abordagem dos filmes africanos baseada em sistemas de valores
que funcionem “isomorficamente”. Valores normativos devem ser desestabilizados pela introdução de
objetos considerados sem valor pelas escalas tradicionais – no caso, a presença de filmes africanos
desestabiliza os critérios de valor do chamado “cinema mundial”.

Palavras-chave: Cinemas africanos; Cinema Mundial; Lixo; Nollywood.

Abstract

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Kenneth Harrow proposes to situate that new formulation of the world cinema—“transnational” or
“global-local”—, in relationship to those African cinemas that are both continuing in the directions
undertaken with the ascension of Third Cinema and national liberation (from Ousmane Sembène to
Jean-Marie Téno), to the experimental, avant-gardist approaches of Jean-Pierre Bekolo, Mahamat-
Saleh Haroun and Andy Amadi Okoroafor, and the populist cinemas of the video film industries, most
notably Nollywood. The paradigms evoked by Krings and Okome (2013), and by Diawara (2010),
provide an opening to the central question of how the range of filmmaking practices in Africa today,
from serious Independent films to Nollywood style mini-industries, requires a reconceptualization of the
new transnational notions of globalization (DUROVICOVA & NEWMAN, 2010). The article carries further
the work initiated earlier by the author (HARROW, 2012), emphasizing the necessity to formulate a
perspective on African films grounded in systems of value that function “isomorphically.” Normative
values to be destabilized by the introduction of African films to their corpus, will be those underlying
“World Cinema.”

Keywords: African Cinema; World Cinema; Trash; Nollywood.

340

Como o cinema africano perturba a ordem do Cinema Mundial1? A construção


da categoria “Cinema Mundial” tem um custo: ela produz ordem e, ao mesmo
tempo, detrito. O detrito se relaciona à escala de valor que o “Cinema Mundial”
estabelece ao admitir “filmes do mundo” em suas listas, antologias, cursos e
conferências, em sua sensibilidade do que vale a pena ser considerado “filme do
mundo” e não apenas “filme local”.
A oposição entre global e local não é neutra, e a construção da categoria
“Cinema Mundial” tampouco tem sido neutra ou a-hierárquica. Mas, para entender
quais custos estão implicados no uso dessa categoria, precisamos ter uma noção
do que não é “Cinema Mundial” – filmes que não entram no fluxo global, de
acordo com os termos de Appadurai (o que ele chama de etnopaisagens,
mediapaisagens, tecnopaisagens, financiopaisagens e ideopaisagens2), ou seja, o
que não está qualificado para a globalização ou não pode sequer entrar nas listas
de candidatos a ela. Um exemplo são os 1000 ou 1500 filmes produzidos em
Nollywood (Nigéria) a cada ano, numerosos demais para serem analisados, e
desqualificados pelo uso que fazem do melodrama e de instrumentos de

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produção amadorística. A questão do que conta como Cinema Mundial nos obriga
a questionar o que faz com que uma produção seja vista como um filme, e não
como material amador reunido de um jeito barato. Ao mesmo tempo, essa
questão nos leva a interrogar qual é o critério que qualifica o “Cinema Africano”.
As três perguntas – o que é um filme “real”, um filme africano e um filme global
– conduzem à questão central: qual é a relação entre Cinema Africano e Cinema
Mundial, e como tal relação é determinada por uma certa definição do que é um

1
No original, a expressão usada pelo autor é “World Cinema” assim como, mais tarde, ele falará de
“World Music”. Aqui, optamos por deixar a tradução para o português, como “cinema mundial”.
[N.d.T.]
2
APPADURAI, 2004, p. 50. [N.d.T.]

341

filme aceitável, muito mais do que a de um filme global3.


O que um estudo da globalização e do lixo trariam para as noções de cultura
mundial, no período atual dos estudos culturais transnacionais? As questões de
difusão e exibição são centrais para os estudos globais, e em especial para a
categoria Cinema Mundial. Ao introduzir o conceito de lixo, é possível focar na
maneira como padrões globais têm marcado as formas culturais dominantes e,
por extensão, têm marcado também formas consideradas marginais ou estranhas
às normas culturais dominantes. Formas tidas como estranhas são encaradas
como de menor valor e aproximam-se do estatuto de lixo, que Mary Douglas
(1966) define enquanto “matéria fora de ordem” ou matéria sem valor.
O presente estudo irá considerar as ordens do Cinema Mundial como
geradoras de seus próprios lixos, seus próprios materiais estranhos – como
Derrida mostrou em Mal de arquivo (2001) ou Rancière em A partilha do sensível.
Estética e política (2005) –, em que cada ordem, para ser uma ordem, precisa
demarcar suas exclusões. Filmes do sul global são frequentemente incluídos na
categoria do Cinema Mundial, mas isso nem sempre ocorre. O que determina tal
categorização, e que sistemas globais agora a modelam, por meios que não foram

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centrais no passado, antes que a globalização e o capitalismo de commodities
marcassem tão profundamente os fluxos culturais? Quais rupturas das ordens são
efetuadas quando se examina seriamente o “lixo” africano que é normalmente
excluído?
Dudley Andrew, em An Atlas of World Cinema (2004), serpenteia em torno da
definição do termo “cinema mundial”, afirmando que ele inicialmente substituiu a
expressão “filme de arte estrangeiro” quando mobilizado contra Hollywood, nos
anos 1990. “Críticos pós-coloniais às vezes utilizam o termo, num cenário em que
as nações competem por reconhecimento em festivais de cinema”, diz (ANDREW,
2004, p. 9). Ele associa a ascensão do termo ao “encolhimento” dos
departamentos de literaturas nacionais. Andrew argumenta que o termo deveria

3
Estou usando a categoria de Cinema Mundial, frequente em círculos acadêmicos; costuma-se fazer
referência a tais filmes tanto como cinema global ou como cinema mundial.

342

colocar os estudantes em “condições de visionamento não familiares”: “Essa é a


promessa pedagógica de Cinema Mundial, uma maneira de abordar filmes
estrangeiros sistematicamente, transcendendo os caprichos do gosto; usando a
medida do ‘estrangeiro’ no que é uma dimensão global que acaba de ser
reconhecida” (ANDREW, 2004, p. 9). Não é preciso perguntar de quem é a “falta
de familiaridade” em questão: o autor já situou a viagem enquanto ponto de
partida para aqueles que estão acostumados com as abordagens convencionais
das aulas sobre filmes de arte: são seus alunos, nossos alunos, os alunos em
“nossas” salas de aula. A viagem para os portos do desconhecido é vista de uma
perspectiva arquimedesiana, de onde o familiar vê o desconhecido. Para Dudley
Andrew, tal ponto de partida está localizado no Ocidente – ou, como diríamos
agora, no norte global. Viajar não necessariamente implica em uma jornada só de
ida, mas quando nos movemos para locações no estrangeiro em que há cinemas
“locais”, fica claro que o globalmente local é o lugar de uma alteridade que
fornece os pontos de ancoragem da falta de familiaridade. “Hollywood” serve de
contraste para o local, mas, mais precisamente, para os Independentes no
cinema; e as locações “locais” para os Independentes poderiam se situar em

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qualquer lugar, desde que os portos de destino do global estejam sempre em
outro lugar, e especialmente em lugares “remotos”, se não “exóticos”.
Conforme escreve Michael Chanan, a expressão “Cinema Mundial”, do mesmo
modo que “world music”, assimila-se a uma etiqueta de marketing que faz seu
trabalho de seleção com base nas regras da cultura de comoditização global. Para
Chanan, Cinema Mundial “é menos um campo de trabalho do que uma certa
abordagem, uma tentativa de escapar à tendência da academia convencional, que
vai contra o marginal” (CHANAN, 2011, p. 1). Diante do argumento de que a
globalização e a revolução digital eliminaram a divisão entre centro e margem, ele
retorque que “a era da globalização basicamente não mudou o equilíbrio de poder
internacional no campo da produção cultural desde sua configuração do pós-
guerra, quando o globo passou a estar dividido em três mundos”. Ele continua,
provocativo: “o problema com a tentativa de reconceituar o modelo centro-
periferia é que ele continua em operação” (CHANAN, 2011, p. 2). Ele relaciona

343

Hollywood, as majors e sua hegemonia com o superpoder do imperialismo e,


embora sua linguagem soe um tanto fora de moda, o ponto central consiste em
dizer que o capitalismo global neoliberal é mais do que nunca marcado pela
distribuição de poder. Este ponto evidencia-se quando ele argumenta que a
“imagem de-centralizada”, a imagem que desafia as culturas visuais dominantes,
a norma, na esfera pública, é também aquela que caracteriza a noção de Cinema
Mundial sempre que evocada, e isso porque os “centros” da produção cinemática
constituem “uma rede de estúdios pelo mundo, tipicamente localizados em
cidades globais ou perto delas, em diferentes continentes, como Londres ou Hong
Kong, estúdios que pertencem ao mesmo cartel, ou ao cartel rival” (CHANAN,
2011, p. 2). Ele conclui que “é impossível pensar o Cinema Mundial como um
conceito ou categoria sem levar em conta essa perspectiva divisora (Cinema
Mundial x Primeiro Cinema)” (CHANAN, 2011, p. 3).
Nosso objetivo portanto é interrogar se a relação que Chanan vislumbra entre
Cinema Mundial e Hollywood não evocaria, assimetricamente, aquela entre o
Cinema Africano e o Cinema Mundial – uma questão de suma importância à luz da
revolução digital que viu surgir Nollywood e suas diversas reiterações em Gana,

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Camarões, Quênia, Tanzânia e outros lugares. Curiosamente, quando ele retorna à
metáfora geográfica para descrever os filmes não-centrados, usa termos
parecidos com os usados por Andrew, como “distante” e “desconhecido”: “de
tempos em tempos, somos lembrados dessa alteridade por novas ondas
cinemáticas vindas de países previamente além do horizonte, como Irã ou China,
que geram um grande interesse precisamente porque nada iguala a capacidade
do cinema para criar novas geografias imaginárias de lugares longínquos e
desconhecidos” (CHANAN, 2011, p. 3). Claro que isso deixa abertas algumas
questões: “desconhecido” para quem? “Longe” a partir de onde?
Algumas respostas podem ser encontradas em importantes antologias de
estudos do Cinema Mundial. De saída, o volume World Cinema: Critical
Approaches (2001), de John Hill e Pamela Church Gibson, é emblemático de tais
coleções: ele apresenta o estilo “salada” inicial: forte ênfase em filmes europeus,
uma navegação por estudos de caso não-europeus – um deles apresenta as

344

certezas mais banais com relação à África, junto com noções de cinema marginal,
Terceiro Cinema, Cinema de Oposição. Ainda não estamos na era do Cinema
Mundial, mas em seu limiar, antes que o Global tenha deslocado o nacional,
quando as ênfases nos cinemas nacionais europeus, seguidas por cinemas
nacionais não-ocidentais, eram todas enquadradas em termos que replicavam os
cursos de pesquisa em cinema anteriores.
A descrição da Amazon para o Oxford History of World Cinema (NOWELL-
SMITH, 1996) aproxima-se, de maneira não intencional, da auto-paródia: “No
Oxford History of World Cinema, um grupo internacional de historiadores do
cinema traça a história desse persistente médium de entretenimento popular.
Cobrindo todos os aspectos de seu desenvolvimento, estrelas, estúdios e impacto
cultural, o livro celebra e narra mais de 100 anos de diversas conquistas, dos
filmes de faroeste à Nouvelle Vague, da animação à vanguarda, de Hollywood a
Hong Kong”. Isso, o mundo-compêndio, é transportado, como o livro de Hill e
Gibson, com uma grande ênfase no cinema ocidental, de seus primeiros anos até
o presente, com a mesma previsibilidade de conteúdos com que Chanan
descreve as sessões de cinema de grandes redes e franquias, em que as divisões

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são pré-concebidas de acordo com as linhas de marketing.
Dez anos mais tarde, o modelo dos livros acima é reproduzido sob uma
roupagem moderna, em que globalização e transnacionalismo soam como marcos
de contemporaneidade – muito embora a descrição de World on Film (2010), de
Nochimson, lembre os termos usados por Andrew vinte anos antes. Sobre o livro,
Leitch4 escreve o seguinte: “Estudantes, cujo conhecimento de cinema é limitado
aos últimos lançamentos no multiplex local, não podiam desejar um guia melhor
para a estranheza do cinema internacional do que World on Film. Começando
com a devida consideração e respeito pelo entendimento de seus leitores sobre o

4
Trecho da resenha de Thomas Leitch, da Universidade de Delaware, reproduzido no material
promocional do livro de Martha Nochimson e divulgado pela editora Wiley (Cf.
http://www.wiley.com/WileyCDA/WileyTitle/productCd-1444358332.html, último acesso 8 de janeiro de
2017).

345

cinema hollywoodiano, Martha Nochimson os conduz em uma visita guiada


aprofundada, tanto pelos mais importantes movimentos do cinema internacional e
os novos hábitos cinéfilos necessários para apreciar Luis Buñuel e Wong Kar-wai
quanto para lançar um novo olhar sobre Martin Scorsese e Quentin Tarantino”. A
quarta capa reitera as palavras de Chanan, inconscientemente: “Este livro único,
instigante e vivaz, fornece uma introdução abrangente ao cinema internacional, da
era de ouro do cinema europeu aos blockbusters contemporâneos da Índia e da
Ásia, e à emergência da cultura global de cinema no pós-Segunda Guerra
Mundial”.
Teóricos importantes dos cinemas internacionais, Andrew e Chanan têm
marcado as diversas etapas do que se tornou o “Cinema Mundial”. Eles
apresentam os ensaios principais na antologia de Dennison e Lim (2006), cujo
título carrega a marca da abordagem de Andrew: Remapping World Cinema. O
novo mapa exclui todo o cinema africano da coleção, em um provável indício de
como a economia da globalização conduziu o cinema africano a novas baixas na
produção. Visões mais antigas desse “mundo” excluem as rápidas e sujas
produções em vídeo – hoje em dia, filmes digitais – que, em 2006, haviam

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resultado num total de cerca de 1000 filmes por ano feitos na Nigéria,
transformando o formato celuloide da cinematografia africana séria em uma
indústria altamente comercial, dirigida por objetivos financeiros, em que
orçamentos de pequena escala viabilizavam uma ampla empresa local. Mais
sintonizado com noções de produção de cultura local marcadas por influências
transnacionais, World Cinemas, Transnational Perspectives (2010), de Durovicova
e Newman, é bem-sucedido ao evocar um leque de perspectivas que teorizam os
parâmetros dos cinemas globalizados, apoiando-se no que propõe Appadurai
com respeito aos fluxos, trocas transnacionais e imaginários geopolíticos
emoldurados pelo senso de inadequação de abordagens críticas passadas, fim da
linha de modelos nacionais ou industriais que replicavam os modelos do centro-
margem mesmo quando o objetivo era celebrar as noções de diversidade que os
sustentavam. Durovicova introduz seu volume assinalando tal insatisfação:

346

“O impulso para este volume veio da combinação de uma insatisfação pedagógica


com uma questão historiográfica. Dadas as rápidas e penetrantes mudanças nas
economias e tecnologias da imagem em movimento, o cenário contra o qual toda
entidade geopolítica representada agora aparece é da escala do todo – ‘do mundo’.
A estratégia dominante que os professores de Cinema Mundial mais comumente
adotam tem o formato de um conjunto de discretas unidades de cinemas nacionais
organizadas em uma sequência de momentos de pico, ainda que, de vez em quando,
essa estratégia seja empregada ‘sob rasura’, como em reconhecimento dos limites
do paradigma do estado-nação enquanto unidade histórico-fílmica básica. Como
então seria possível promover o imaginário geopolítico da disciplina estudos
cinematográficos para uma perspectiva transnacional, amplamente concebida como
acima do patamar do nacional mas abaixo do patamar do global?” (DUROVICOVA e
NEWMAN, 2010, p. IX)

Minha proposta aqui é enfrentar o desafio de situar essa nova formulação do


mundo – “transnacional” ou “global-local” – apesar da maneira como o atlas de
Andrew o designa, qualquer que seja a geometria de sua estrutura, as qualidades
de seus “fluxos”, em relação àqueles cinemas africanos que ao mesmo tempo
prolongam as direções já tomadas com a ascensão do Terceiro Cinema e a
libertação nacional (como continuidades do cinema engajado, de Sembène 5 a

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Téno 6 ), em relação também às abordagens experimentais e vanguardistas de
Bekolo7, Haroun8 ou Amadi9, e aos cinemas populistas das indústrias do vídeo, de
que Nollywood é o exemplo mais proeminente. Pretendo trabalhar através dos
paradigmas evocados por Krings e Okome em seu mais recente trabalho, Global
Nollywood: The Transnational Dimensions of an African Video Film Industry (2013),
e por Diawara, em seu African Film: New Forms of Aesthetics and Politics (2010),

5
O cineasta senegalês Ousmane Sembène (1923-2007). (N.d.T.)
6
Referência ao cineasta Jean-Marie Téno (1954-), da República de Camarões, autor de uma série de
documentários, relativos sobretudo à história do colonialismo e pós-colonialismo na África. (N.d.T.)
7
O realizador camaronês Jean-Pierre Bekolo (1964-). (N.d.T.)
8
Mahamat-Saleh Haroun (1961-), realizador natural do Chade, estabelecido na França, autor do longa-
metragem premiado no Festival de Veneza Temporada de Seca (Daratt, 2006), entre outros filmes.
(N.d.T.)
9
O cineasta nigeriano Andy Amadi Okoroafor (1966-). (N.d.T.)

347

na medida em que eles fornecem uma abertura à questão central de como, dos
filmes independentes sérios às mini-indústrias ao estilo de Nollywood existentes
por todo o continente, a vasta gama de práticas fílmicas na África de hoje está
gerando um corpus de trabalho que requer a reconceituação das novas noções
transnacionais de globalização que Durovicova enfrenta em sua coleção.
Para tanto, tentarei prolongar o trabalho que iniciei em Trash: African Cinema
from Below (2012), no qual enfatizo a necessidade de formular uma perspectiva
sobre os cinemas africanos baseada em sistemas de valor que funcionam
“isomorficamente”, ou seja, que ecoam os parâmetros da cultura e se relacionam
uns aos outros por meio da incorporação do que, sob determinado ponto de vista,
é julgado sem valor, mas ganha lugares de valor distintos sob perspectivas
diferentes. Isso só pode ser feito pela perturbação dos sistemas de valores
normativos. Neste caso, os valores normativos a serem explorados e em seguida
desestabilizados pela introdução dos filmes africanos em seus corpus serão
aqueles subjacentes à denominação “Cinema Mundial”.
Então, o que é novo no Cinema Africano? O recente estudo de Manthia
Diawara sobre cinema africano, intitulado African Film: New Forms of Aesthetics

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and Politics (2010), coloca-se o desafio de apresentar o “novo” de uma maneira
totalmente diferente de seu primeiro estudo programático, escrito vinte anos atrás,
African Cinema: Politics and Culture (1992), livro que exerceu um impacto
significativo sobre os estudos cinematográficos africanos, do mesmo modo que
Black African Cinema, escrito por Frank dois anos depois. Os dois livros se
propõem a apresentar as grandes linhas do cinema africano e a ilustrar suas
qualidades, explorando uma gama de filmes-chave. Especialmente no último
capítulo do estudo de Diawara, algumas categorias-chave são utilizadas, como
“volta às origens”, “confrontação colonial” e “social-realismo”, categorias essas
que têm sido citadas repetidamente através dos anos e que, de certo modo,
exerceram influência negativa sobre o nível do comentário crítico, ao permitir
leituras redutoras dos filmes. O estudo mais recente de Diawara mostra que seu
trabalho amadureceu – o anterior era, afinal, uma revisão de sua dissertação. Suas
leituras da obra de Sembène e de outros cineastas são fantásticas, sutis,

348

complexas e, acima de tudo, produtivas para pensar o cinema africano em geral.


O que há de novo, portanto, são duas coisas. Primeiramente, os tipos de filmes
que estamos vendo agora: Nollywood, claro, mas três outras categorias (de novo:
categorias) que Diawara lista ao repertoriar os filmes que vemos surgir nos últimos
vinte anos, ou seja, o período que se segue àquele que tem sido chamado, por ele
e por outros, de “cinema oposicional”. Em segundo lugar, novos tipos de
abordagens críticas, como os introduzidos por Jonathan Haynes (2000) em seu
ensaio decisivo sobre Nollywood, em que ele conclama a novos trabalhos sobre
gêneros populares e estudos sociopolíticos. Eu diria que as vozes críticas que têm
passado adiante esse bastão e avançado com esse trabalho da maneira mais
interessante e significativa são as de Moradewun Adejunmobi (2007),
especialmente em seus ensaios sobre Nollywood enquanto cinema transnacional
menor, e Carmela Garritano (2013), cujo trabalho sobre Ghannywood é
importante, não apenas pela cuidadosa historicização e contextualização política
do cinema de Gana, mas sobretudo por sua apreciação das formas como os
filmes em vídeo vêm sendo pensados e recebidos. Em particular, penso que a
combinação dos trabalhos de Adejumobi e Garritano nos leva a perguntar qual

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distinção deve ser feita entre os filmes que buscam conectar-se a plateias por
esferas mais amplas do mercado, mesmo transnacionais, e os filmes que se
dirigem a públicos locais. Em termos concretos, quando Socrate Safo10 faz filmes
em Twi, em locações na vizinhança familiar de Accra e falados em línguas
culturalmente indígenas, ele tenta alcançar uma audiência de nicho, que não
assistiria automaticamente a filmes da Nollywood anglófona, com valores de
produção muito mais altos, com os quais ele não poderia competir. As plateias de
Accra que viram os filmes de Shirley Frimpong-Manso 11 , mais caros que os
habituais, gravados em vídeo rapidamente, menos locais em sua maneira de
dirigir-se ao público, dotados de uma qualidade de pós-produção mais
profissional, os comparam a Hollywood e, de acordo com Garritano, os colocam

10
Cineasta ganês, autor de Lover’s Blues (1993) e Love in America (2004). [N.d.T.]
11
Cineasta ganesa (1977-), autora de Grey Dawn (2015), entre outros. [N.d.T.]

349

na categoria dos “profissionais”, em oposição aos locais, presumivelmente


amadorísticos.
Para Larkin (2008), as imperfeições da produção local geraram um estilo
áspero próprio – eu diria um estilo lixesco 12 –, o que conquistou o gosto das
plateias no cinema de Kannywood13. Na América Latina dos anos 1970, Espinosa
celebrou o anti-profissionalismo hollywoodiano no cinema engajado que ele
chamou de Cinema Imperfeito14, um dos pilares do que ficou mais amplamente
conhecido como Terceiro Cinema, a partir do trabalho de Solanas e Gettino
(1969).
O cinema africano nunca integrou de fato o Terceiro Cinema, que tinha uma
agenda marxista mais programática. Nunca houve um filme africano como La hora
de los hornos (Fernando Solanas e Octavio Gettino, 1968), embora o trabalho mais
didaticamente engajado de Gerima 15 e Hondo 16 possam ser aproximados aos
filmes do Terceiro Cinema. Gerima, em meu ponto de vista, pertencia à escola Los
Angeles17, e não era tão africano em seu importante início de carreira, até que
Harvest: 3,000 Years (Mirt Sost Shi Amit, 1976) aparecesse; Hondo também fazia,
como Gerima, um certo cinema africano da diáspora, novamente até Sarraouina

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(1986).
Nenhum desses dois cineastas recebeu muita atenção de Diawara em seu
último tratamento do cinema africano, o livro African Film: New Forms of
Aesthetics and Politics, provavelmente porque o mais recente trabalho dos

12
Os termos usados pelo autor, no original em inglês, traduzidos aqui para “áspero” e “lixesco”, são
“scratchy” e “trashy” [N.d.T.].
13
Kannywood é o termo usado informalmente para designar a indústria cinematográfica de língua
Hausa, que se situa no norte da Nigéria [N.d.T.].
14
O autor faz referência ao manifesto do cubano Julio Garcia Espinosa, publicado em cópia
mimeografada em 1969 e incluído em antologias de textos do autor (ESPINOSA, 1970). [N.d.T.]
15
O autor se refere ao cineasta etíope Haile Gerima (1946-) [N.d.T.].
16
O autor se refere ao cineasta mauritano Med Hondo (1936-) [N.d.T.]
17
Referência à chamada Los Angeles School of Black Filmmakers, de que faziam parte Charles
Burnett, Larry Clark, Julie Dash, etc. [N.d.T.]

350

veteranos Hondo e Gerima não se alinha a nenhuma das novas tendências. Eles
não podem, por exemplo, ser comparados a Fanta Nacro18, que Diawara também
não menciona, embora se desculpe, em determinado momento, por não examinar
com a devida atenção o trabalho de cineastas africanas mulheres. Seu pedido de
desculpas é impressionante. Ele escreve:

“Como artistas e críticos, poderíamos culpar líderes africanos por corrupção e exigir
democracia e transparência. [Notemos que ele não inclui justiça, o que seria uma
demanda socialista]. Poderíamos culpar líderes europeus por corromper africanos
com seu dinheiro, seu materialismo e suas atitudes paternalistas. Poderíamos até
professar a igualdade de direitos para as mulheres em nossos filmes, livros e
canções. Finalmente, poderíamos defender a nós mesmos, afirmando que atitudes
patriarcais e sexistas, como a corrupção e o nepotismo, não são absolutamente
problemas exclusivos dos africanos, mas existem firmes e fortes na Alemanha, no
resto da Europa, na América, em toda parte. Agora, porém, todas essas respostas
parecem fáceis demais e soam como desculpas.” (DIAWARA, 2010, p. 161).

O mesmo poderia ser dito sobre os filmes, sobre a crítica que o próprio
Diawara escreve e sobre a ideia de que os filmes recebem a crítica que merecem,
e que as sociedades têm os filmes que merecem. Trata-se, novamente, de

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desculpas fáceis demais por não tratar da questão com maior profundidade. Hoje
em dia, no espírito de meu título “bolakaza”, Trash (HARROW, 2013), eu diria que
é preciso evitar as armadilhas e desculpas que enfraquecem ou até trivializam o
trabalho com o cinema africano, tanto da perspectiva que o enxerga “de baixo”,
como coloco no subtítulo de meu livro: “African Cinema From Bellow” [“cinema
africano visto de baixo”]; quanto da perspectiva que se crê localizada em um lugar
africano, perspectiva a que Diawara não tem pudores de chamar de “autêntica”,
ainda que use o termo com aspas desnecessárias uma vez, ao tratar rapidamente
do “calabash cinema”19 – Diawara tem a sensação de que esse gênero foi criado

18
Referência à cineasta de Burkina Fasso Fanta Régina Nacro (1962-). [N.d.T.]
19
A expressão “calabash cinema” (ou, em francês, “films-calebasse”), designa um conjunto de longas-
metragens produzidos sobretudo entre as décadas de 1970 e 1990, em que personagens femininas
eram vistas carregando água em cabaças colocadas sobre suas cabeças, numa imagem que se tornou

351

para servir a interesses e gostos franceses (DIAWARA, 2010, p. 130).


As três ondas cinematográficas identificadas por Diawara são “Os filmes de
arte”, “La Guilde des Cinéastes” 20
e “o Novo Cinema Popular Africano”.
Diferentemente do Realismo Socialista ou da Confrontação Colonial definidos em
termos temáticos e de gênero bem reconhecidos, essas três categorias são
demasiado amorfas, abertas a qualquer gênero ou tema. São caracterizadas como
tal sobretudo em função das condições de produção, recepção e exibição. É
sempre discreta a discussão sobre Nollywood que se segue21.
Os filmes de arte são descritos como, bem, como aquilo que você pensaria
que um filme de arte deveria ser. Filme de autor, mas modulado por sensibilidades
africanas, influenciado por um modo africano de se relacionar com o passado,
tratando de temas africanos importantes, como imigração, no presente. Diawara
enfatiza a “linguagem” nesse estudo, contrastando a linguagem “poética” de
Sissako22 com a linguagem “linear e realista” de Sembène, embora fique a cargo
do leitor entender que quando ele diz “linguagem”, ele se refere à linguagem
cinematográfica. A discussão sobre os planos de Sembène, sua montagem e suas

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clichê do cinema africano e que, mais recentemente, teria sido substituída pelo “kalash cinema”, numa
referência aos fuzis vistos em filmes africanos contemporâneos. Cf. Thomas Sotinel, “Fespaco 2015:
loin des villages, au coeur des conflits”, Le Monde Blogs, 2 de março de 2015, disponível em
http://sotinel.blog.lemonde.fr/2015/03/02/fespaco2015-loin-des-villages-au-coeur-des-conflits/, último
acesso 20 de dezembro de 2016. [N.d.T.]
20
Em francês no original; em português, “a guilda” [N.d.T.]
21
Cada uma das três ondas, a sua maneira, merecem o direito de serem vistas como representações
africanas que não estão afetadas por pressões europeias para vender filmes internacionalmente –
embora sejam vistas predominantemente em uma plataforma global – ou para conformar-se aos
gostos e estilos que marcam o Cinema Mundial, correntemente definidos em termos gerais como
cinema das majors transnacionais não-hollywoodianas. O termo “transnacional” se refere mais
geralmente a gostos e lugares de exibição que acomodam sobretudo filmes do norte global e com
exemplos simbólicos do sul global. Esses exemplos ainda não incluem Nollywood, em que os gostos e
lugares de exibição são africanos ou da diáspora africana, embora atualmente a atenção da crítica seja
mais ampla do que isso.
22
O cineaste Abderrahmane Sissako (1961-), da Mauritânia.

352

escolhas visuais, numa comparação com Sissako, faz parte da melhor crítica do
cinema africano até hoje. Deixa para trás as generalizações excessivamente
didáticas de Teshome Gabriel (2011) sobre o que é africano em um plano
sequência, ou um plano longo, ou a doença da europeização no uso de close-ups.
Às vezes nos pedem que aceitemos a formulação banal segundo a qual um tema
africano é de algum modo mais comunitário que um tema ocidental, uma asserção
baseada mais na crítica sociológica vulgar do que na psicologia do sujeito. Mas,
quando Diawara descreve, por exemplo, os planos de A Vida sobre a Terra (La vie
sur terre, Abderrahmane Sissako, 1998), ele abre as possibilidades de leitura da
gramática de modo a permitir que um artista se agarre a seu desejo de abraçar
uma certa África, cujos ritmos da vida ele ouviu ecoar tempos atrás, no trabalho
de Césaire. Quando Diawara descreve a praça antes da cidade de Sokolo, ele
escreve: “conforme os jumentos entram no quadro e se afastam da câmera,
percebemos que tudo no plano foi coreografado e dirigido para revelar a inscrição
do tempo em um espaço particular” (DIAWARA, 2010, p. 102). Ele continua, para
mostrar, com precisão, como isso ocorre, como “seres humanos e animais são
colocados no mesmo patamar e numa relação de igualdade pela maneira como

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ocupam o espaço, descrita pelo movimento do tempo” (DIAWARA, 2010, p. 102).
Ele prossegue, mostrando com precisão como cada um deles se torna objeto da
mise-en-scène de modo a gerar o “ritmo e a arquitetura do tempo no espaço”,
chamando atenção para a mise-en-scène. Esse ordenamento demarca uma
diferença, dentro do espaço visual, da “realidade caótica fora do quadro”, em
direção a que Sissako gesticula em sua abertura, estabelecendo planos do
supermercado, e no som frenético dos programas de rádio ouvidos em Mali,
anunciando, desde Paris, o Novo Milênio. De acordo com Diawara, todo esse
novo prazer que Sissako nos oferece difere do “realismo Sembèniano” em sua
poetização, mas também em sua maneira autoconsciente de evocar uma
presença africana que é distinta daquilo que Diawara chama de o cinema
“imperfeito” de Sembène.
“Cinema Imperfeito”, termo de Espinosa (1970), pretendia ser uma nova
abordagem da imagem que desencorajaria as plateias de esquecer o ato de

353

assistir a um filme, que ele entendia como sendo a filosofia-mestra de Hollywood.


Espinosa queria aumentar a consciência do povo ao informá-lo, a todo momento,
de que se estava testemunhando uma cena construída, queria que relacionassem
o filme a suas vidas e às realidades da sociedade, levando a reflexões sobre as
causas das desigualdades sociais que estavam vivendo e vendo na tela, e, em
última instância, a discutir suas causas. Sembène difere disso em duas maneiras,
que Diawara não menciona. Em primeiro lugar, Sembène articulava metas mais
pedagógicas ao chamar o cinema de “escola noturna da África”, e imaginava um
cinema que se diferenciasse do cinema dominante, seja o cinema de arte europeu,
seja o hollywoodiano; imaginava um cinema que pudesse conectar-se diretamente
com as vidas reais dos africanos, ainda não representadas. Em segundo lugar, a
prática de Sembène era tão marcadamente performativa, tão distintivamente
Wolof nas ênfases na fala em estilo de discurso, nas linguagens corporais e na
gesticulação, na apresentação de formas físicas, cores, roupas, movimentos
daqueles que vêm do “peuple” 23 , e que eram marcadamente diferentes da
burguesia, que um novo sujeito africano tomava o centro da cena. Essa não era a
preocupação de Espinosa, e sempre foi a de Sembène, caracterizando sua

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maneira de estabelecer uma nova agenda a partir do cinema latino-americano.
Salvo raras exceções, isso não é visto, por exemplo, na maioria dos filmes
cubanos, nem em na Hora de los Hornos e tampouco nas novas ondas do cinema
brasileiro. Trata-se, portanto, apenas parcialmente de um Terceiro Cinema, ou
seja, há uma distinção definitiva do entendimento estrito do Cinema Imperfeito.
A sofisticação e as sutilezas ideológicas do filme de arte constituem uma
diferença pronunciada com relação a esse cinema do passado e especialmente de
seus debates. Neste caso, ele dá a impressão de que os discursos na corte em
Bamako (Abderrahmane Sissako, 2006) são um retrocesso em direção ao período
anterior, embora, na verdade, o tom discursivo não seja particularmente africano
no estilo ou na linguagem, exceto pelo interlúdio da performance do griot. E, como
ele não é legendado nem traduzido diretamente na tela, sendo sumarizado por

23
Em francês no original. Em português, “povo”. [N. d. T.]

354

Madame Fall apenas mais tarde, trata-se de um discurso interno, visando apenas
um círculo fechado de interlocutores africanos que são vistos ouvindo de perto
suas palavras, enquanto os personagens europeus, e por conseguinte o público
implícito do filme de arte, são deixados de fora. Não há um momento comparável
no corpus de Sembène.
A segunda onda não tem uma formulação clara. Exceto para aqueles que
consideram a realização uma arte aprendida dos mestres, o que é La Guilde,
afinal, com os novos aprendizes agora livres para experimentar por conta própria?
Bekolo é o exemplo escolhido, e está claro que, com respeito a isso, Le complot
d’Aristote (Jean-Pierre Bekolo, 1996) funciona muito melhor do que seu mais
recente e mais programático Le Président (2013), ou que a segunda metade de
Les Saignantes (2005), em que a paródia do Ministro, e, por associação, do
governo de Biya, ou, melhor ainda, do legislador autocrático Mbembe, vem
substituir a estupenda história de Mvoundou e seus acólitos, as Saignantes24.
A Guilde parece consistir nas gerações mais jovens, ou mais precisamente na
geração que era a mais jovem na década de 1990, e reúne indistintamente nomes
como Téno e Bekolo, cujos estilos e abordagens não podem ser mais diferentes,

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apesar de seu desejo comum de articular uma nova ideologia da linguagem
cinemática, da chamada política cinemática. O que os une é a clareza no uso da
ironia, especialmente o endereçamento irônico à câmera. No entanto, as
diferenças são significantes: Bekolo frequentemente voltou-se para o jump-cut e
para ritmos de montagem e movimento disjuntivos, influenciados pelo jazz,
enquanto Téno manteve um estilo mais linear, realizando ao mesmo tempo
narrativas com uma voz over de forte assinatura subjetiva, cuja ironia profunda é
baseada não em uma estética pós-moderna mas naquilo que Jameson repudia
enquanto marca do pós-modernismo: um compromisso com valores fundacionais
mais do que a política do pastiche25.

24
Em francês no original; em português, as “sangrantes”.
25
“A existência de um sujeito autônomo era uma parte essencial do artístico enquanto produção
cultural nos tempos modernos, conforme afirma Jameson. Isso permitiu que o artista como sujeito se

355

Téno é tudo menos ansioso com relação a sua subjetividade, a voz over
transmite garantias de valores básicos. Nesse sentido, ele se aproxima mais de
outros cineastas da “Guilde”, como Dani Kouyaté26, e especialmente de figuras
importantes, como Akomfrah27 e o Coletivo Black Audio Film28, com quem Diawara
diz estar em diálogo, ou seus progenitores, como Gerima ou Clyde Taylor29, que
usavam o termo L.A. Rebellion para definir a escola de Los Angeles.
Pouquíssimos cineastas africanos poderiam ser completamente dissociados de
uma forma ou outra de consciência negra, mesmo quando eles explicitamente se
distanciam de uma didática aberta dos termos da revolução. Quando Gerima, em
Teza (2008), questiona as premissas que levaram sua geração a advogar pela
mudança revolucionária sem antecipar a virada autoritária que levou a governos
como o DERG, da Etiópia, ou simplesmente a cínica expropriação dos discursos
da Negritude ou do Black Power por ditadores como Mobuto ou Idi Amin, não
surpreende que a nova geração, tão bem representada em Os olhos azuis de
Yonta, de Flora Gomes30 (Udju Azul di Yonta, 1992), agora passe sermões em seus
predecessores revolucionários, como Vicente, novo beneficiário da mudança

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dirigisse a seu consumidor como sujeito e, assim, afetá-lo. Mas com a perda de intensidade do afeto, a
individualidade única do artista, antes um princípio fundador, foi reduzida na era pós-moderna a uma
forma neutra e objetivante de comunicação. Com a fragmentação da subjetividade (no sentido de um
caminhar em direção a um fim sombrio), deixou de estar claro o papel de artistas e autores pós-
modernos, além de invocar o passado, imitar estilos mortos, uma “paródia vazia” sem profundidade ou
sentidos escondidos, uma paródia a que Jameson chama pastiche” (“Summary: Fredric Jameson /
Postmodernism: Pastiche and Pop History”, The Cultural Reader, 11 de maio de 2011, disponível em
http://culturalstudiesnow.blogspot.com.br/2011/05/summary-fredric-jameson-postomodernism.html,
último acesso 10 de janeiro de 2017).
26
Dani Kouyaté (1961-), realizador de Burkina Faso. [N.d.T.]
27
John Akomfrah (1957-), realizador nascido em Gana. [N.d.T.]
28
Coletivo fundado em 1982 e ativo até 1998, compreendendo inicialmente nomes como Akomfrah,
Lina Gopaul e Claire Joseph.
29
Escritor e acadêmico afro-americano, professor emérito da New York University e colaborador da
Black Film Review.
30
Cineasta da Guiné Bissau, nascido em 1949).

356

revolucionária, por não estar mais em posição de entendê-los, e menos ainda de


falar por eles. Muito embora o título, “olhos azuis”, indique a zombaria que o filme
faz, como uma adaptação irrefletida dos valores europeus de beleza, temas de
troça também nos filmes de Bekolo e Téno. Afinal, não é possível encontrar uma
maneira de se pretender considerar-se africano no mundo sem se posicionar
criticamente com relação ao imaginário ocidental que tem sido marcado por
racismos passados e presentes.
É completamente compreensível, ainda que questionável, que Diawara ao
mesmo tempo zombe de uma posição de Africanidade excessivamente defensiva,
que ele associa talvez injustamente com o continente, enquanto afirma, ao mesmo
tempo, a necessidade de que as vozes africanas permaneçam autênticas. Sobre
os cineastas da Guilda, vistos como amplamente diaspóricos, Diawara escreve
que eles

“têm feito mais ao questionar os estereótipos ocidentais da África do que os


diretores vivendo na África que acreditam que o simples fato de contar histórias
africanas ‘autênticas’ seja suficiente. Realizadores da diáspora africana, como
Germia e Akomfrah, estão fortemente convencidos de que a imagem da África e a de

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sua diáspora estão forçosamente entrelaçadas e que tentar se concentrar sobre uma
sem a outra é como tentar economizar água ao derramá-la” (DIAWARA, 2010, p.
130).

Ele continua: “a imagem deve portanto ser continuamente trabalhada; ela deve
estar imbuída de conotações que resistam a significantes negativos do Africano
na mídia ocidental e também dotada de um imaginário que seja ao mesmo tempo
atemporal e novo”. Essa imagem, conforme ele defende, “recusa a colonização e
as definições absolutistas” (DIAWARA, 2010, p. 130). Isso certamente define o
próprio trabalho de Diawara, que se vê como alguém que acredita na identidade
negra e em seus imperativos, embora não se restrinja a antigas noções
acadêmicas de arte revolucionária e ideologia.
Se a primeira onda é a mais autorista, e a segunda, a mais marcada por
sensibilidades diaspóricas, a terceira via, vagamente denominada “Novo Cinema
Africano Popular”, é ao mesmo tempo a mais amorfa e a mais africana. Depois de

357

elogiar Senghor em sua defesa de uma especificidade africana associada a


qualidades como o ritmo – qualidades que voltam num quadro mais positivo em
termos cinemáticos do que nos termos de afeto, que rebaixam a Negritude a um
essencialismo barato – Diawara olha para filmes como Finyé (Souleymane Cissé,
1982), Le retour d’un aventurier (Moustapha Alassane, 1966) ou Love Brewed in an
African Pot (Kwaw Ansah, 1980), por seu uso de “ingredientes africanos” no
combate aos “gêneros reconhecidos do Ocidente”. Embora eles adotem gêneros
familiares, como o romance ou o melodrama, esses filmes tomam novas formas
populares, estendendo-se a “ingredientes e temperos africanos dentro de gêneros
antigos” (DIAWARA, 2010, pp. 142-3). Neste ponto, estou completamente de
acordo com sua defesa de que essas direções, tão comumente associadas a
Nollywood, também marcam o trabalho de Mansour Wade, Moussa Sene Absa,
Zola Maseko, Zezé Gamboa e outros que empregam as técnicas do melodrama,
narrativas e mise-en-scène associadas a comédias musicais, filmes de ação e
mesmo westerns. (A esse respeito, eu também incluiria a história de Chaka e Mele
em Bamako). Popular é o termo que Diawara usa para distinguir este corpus de
trabalho das duas primeiras ondas, que ele associa mais livremente com o cinema

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de “arte” (DIAWARA, 2010, p. 144). Ele encontra o popular nas “estruturas
narrativas, nos temas e nas expectativas emocionais, emprestadas da cultura
popular africana”. O autor continua: “os filmes se apoiam em crenças religiosas
populares, superstições, folclore e no senso comum da vida cotidiana,
diferentemente das narrativas de tomada de consciência feitas por Sembène ou
das obras metafílmicas e intelectualizadas de Bekolo e Bakupa-Kanyinda 31
(DIAWARA, 2010, p. 144). Aqui Diawara pode estar descrevendo Nollywood de
maneira bastante direta, se não fosse pela distância que esses realizadores
tomam, não em relação às normas do cinema comercial hollywoodiano, mas em
relação ao próprio “cinema africano”, nas formas que ele adota nas duas ondas
mencionadas acima e em seu passado de influência sembèniana.
O popular é medido na relação desse cinema com seu público: conforme

31
O cineasta congolês Balufu Bakupa-Kanyinda (1957-).

358

afirma, tais filmes contribuíram para “constituir o início de fato do cinema africano
para africanos” (DIAWARA, 2010, p. 145). Como esses filmes, ainda não vistos
rapidamente na África, e certamente não em salas de cinema, praticamente
inexistentes, constituem o verdadeiro início de um cinema africano para africanos,
mais do que os vídeos de Gana e Nollywood, é um mistério para mim. Mas a
aspiração, se não a própria satisfação dessa reivindicação, é de grande valia para
definir seus traços essenciais. A “cultura real”, o “povo real” a quem esse cinema
se refere é sobretudo definido em termos nacionais, o que é estranho o suficiente
em uma era de globalização. Assim, ele entende que a linguagem fílmica é
informada por elementos nacionais de dança, linguagem, tradições orais, etc.,
como o Muridismo e o Sabar, formas religiosas e de dança senegalesas. Para o
estudioso cosmopolita e global, essas podem ser consideradas formulações
locais, não nacionais, e a circulação desses cineastas funciona bem – Karmen Gei
(Joseph Gaï Ramaka, 2001) ou O Preço do perdão (Ndeysaan, Mansour Sora
Wade, 2001) estão ligados ao circuito internacional de festivais ou ao circuito
comercial transnacional, é assim que são encontrados em sites dedicados a filmes
africanos. Esses filmes não podem ser definidos simplesmente como um conjunto

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de filmes que visa públicos nacionais, ainda que “as cores da bandeira nacional e
o estilo vestimentar do Baye Fall” estejam conjugados naquilo que Diawara chama
de “novo cinema senegalês” (DIAWARA, 2010, p. 146).
Para que Diawara africanize esse cinema, é necessário levar em conta o
trabalho da formação do sujeito, ou subjetificação, que ele desempenha. Diawara
quer explicá-lo por meio de um retorno à especificidade africana em termos
culturais, estéticos e cinematográficos. Em outras palavras, ele precisa retornar a
um passado largamente construído ao redor de Sembène e, acessoriamente, de
outros, como Rouch e Allasane, e levar em conta as novas gerações. Ele o faz de
maneira brilhante quando trabalha sobre as inovações e qualidades fílmicas de
Sembène, mas apenas margeia o difícil trabalho de explicar a Africanidade e a
subjetividade africana quando evoca sua autenticidade em termos de conteúdos
como música e dança, cores nacionais, dizeres tradicionais, etc. Nesse ponto, ele
não tem mais sucesso que Gabriel (1982) em seus esforços anteriores para aplicar

359

fórmulas, como a defesa de que o plano médio e o plano geral são mais
apropriados para identidades comunitárias do que individualismo e subjetividade,
associados ao ocidente e evocados por meio de close-ups. De toda forma, não é
possível chegar mais perto do nariz de Dieng do que na tomada em que seu
interior é limpo com uma navalha em Mandabi (Ousmane Sembène, 1968).
Diawara retorna a Senghor para uma explicação sobre esse sujeito africano,
retraçando linhagens familiares, mas de novas maneiras, abertas pelo cinema. A
máscara, por exemplo, se torna a imagem impressa sobre o olho com o close-up
do rosto. Senghor se apoia no que se aproximaria de um vitalismo do Padre
Temples, que Diawara transfere para o close-up: “Ele mostra a quantidade de
força vital que o realizador pode investir na tomada para dotá-la dos mesmos
poderes possessivos que a máscara durante a performance de um ritual...”
(DIAWARA, 2010, p. 150). O significado desse plano, originalmente menosprezado
por Gabriel, é que ele é “o lugar de nossa relação com o Outro” (DIAWARA, 2010,
p. 150).
Butler (1997) faz uso da noção hegeliana e nietzschiana do Outro para sua
concepção de assujetissement 32 , formação do sujeito, como vou mostrar em

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instantes. Seu argumento se baseia no fato de que é na negociação de nossa
relação com o Outro que o sujeito está apto a se formar. Embora existam muitas
maneiras de imaginar essa negociação, as formulações filosóficas estão
essencialmente ancoradas na psicologia individual da tomada de consciência de
si e, com as leituras lacanianas, a entrada na linguagem e na ordem simbólica.
Mas Diawara quer uma relação com o Outro que lhe permita apresentar sua
formação do sujeito africano em termos de uma linguagem africana, se não uma
linguagem cinemática africana. Para tanto, ele conjuga o Outro senghoriano como
força espiritual vitalista subjacente à negritude e, em última instância, à
humanidade. Ele então chama o lugar da relação com o Outro de “o lugar da
emergência da força vital do ancestral” (DIAWARA, 2010, p. 150), conectando-a
em seguida à localização culturalmente específica da nação, “à alma da nação” e

32
Em francês no original; em português, poderia ser traduzido por “assujeitamento” [N.d.T.]

360

à integridade espiritual, “sua limpeza moral” (DIAWARA, 2010, p. 150). A batalha


que marca os filmes senegaleses que ele considera na parte dedicada ao cinema
popular, como Karmen Gei e Teranga Blues (Moussa Sene Absa, 2007), revela-se
uma batalha moral envolvendo “protagonistas lutando com a culpa de terem
traído os valores nucleares primitivos que trazem harmonia para o mundo”
(DIAWARA, 2010, p. 150).
A relação com o Outro, em termos africanos, senghorianos, não deve ser
mediada pelo olho, mas pelo que se sente, pelo sentir a presença de “algo como
nós, como a marca do ancestral, como um totem, como uma força vital”, e
portanto não é como um ser alienígena, mas como uma parte do Ser a que
pertencemos: “nós também contemos uma parte do Outro em nós” (DIAWARA,
2010, p. 151), o outro como um ser que “é capaz de aumentar ou diminuir nossa
força vital, de nos conectar com o mundo dos ancestrais” e também, ainda que
possa ter parecido inacreditável para Senghor, “de nos relacionar com o mundo
do filme” (DIAWARA, 2010, p. 151). Diawara quer contrastar essa relação com
aquela, convencionalmente evocada nos estudos pós-coloniais, de uma absoluta
diferença entre colonizador e colonizado, mas, no lugar disso, ele diz que nesse

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Outro, para Senghor, “há uma parte do Outro em nós e uma parte de nós no
Outro; mais como espelhos que refletem e são refletidos” (DIAWARA, 2010, p.
151).
Não é coincidência que essa figura do espelho que reflete o eu e o outro seja
central à noção da formação do sujeito na fase do espelho para Lacan e, mais
importante para nós, encontre sua elaboração no próprio trabalho de Butler (1997)
sobre a formação do sujeito. Senghor permitirá a Diawara que encontre seu sujeito
africano tornado autêntico por reconstituir o Outro como Africano, embora cite o
trabalho de Bakupa-Kanyinda como exemplar em Le Damier (1996), liderando o
caminho para recuperar “uma imagem africana autêntica” como mostrado pela
“desconstrução da iconografia ocidental da África (DIAWARA, 2010, p. 127).
Bekolo e Bakupa-Kanyinda são citados como exemplos daqueles que sentem a
necessidade de responder a convenções ocidentais dependentes de “imagens
primitivistas de sua tradição que são agradáveis para o Ocidente” (DIAWARA,

361

2010, p. 127). A questão central aqui, para todos que trabalham com os atributos
do Novo Cinema Africano, é o que é o Outro de que depende o trabalho de
estabelecer o sujeito africano. Tal questão pode ser encarada da mesma maneira
que a questão da autenticidade.
Por que Diawara abraça o critério da autenticidade, de algo que ele se sente
confortável em chamar de africano, mas não sob uma perspectiva estrábica,
como Ama Ata Aidoo (1979) a chama, ou do ponto de vista do lixo, como Robert
Stam (1998) nomeia um corpus de filmes brasileiros33? Isso se aproxima daquilo
que eu chamo de uma posição “de baixo”, do lixo, como Bataille (1989) ou John
Waters (1988) a veriam. A autenticidade para Diawara não se ancora em um valor
absoluto, mas em uma localização e uma perspectiva centradas em torno da
subjetividade.
Uma resposta para a adoção da autenticidade por Diawara pode ser vista na
noção de subjetividade oferecida por Butler, presente em seu Pshychic Life of
Power (1997). Ela argumenta essencialmente que o sujeito é formado por uma
dupla relação com o Outro, com aquele que impõe palavras ameaçadoras e às
vezes ação sobre crianças pequenas que se sentem inibidas, amedrontadas, se

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não intimidadas34. Butler conjuga essa questão com a noção nietzschiana da má
consciência. A má consciência deriva da relação com o Outro, que é incorporado,
internalizado e, em termos lacanianos, se torna aquele cuja linguagem fala
conforme o sujeito consegue se formar através do uso da linguagem. É a

33
A expressão usada pelo autor, em inglês, é “point of view of garbage”. Stam nota o motivo comum
da “redenção do detrito” em diversos neologismos estéticos latino-americanos criados para designar
movimentos cinematográficos e literários caracterizadas pela hibridez constitutiva e pela multiplicidade
cronotópica. Tal motivo estaria presente, por exemplo, na Estética da Fome de Glauber Rocha, no
Cinema Imperfeito de Julio García Espinosa, na estética do lixo (Rogerio Sganzerla), na Tropicália
(Gilberto Gil), entre outros. Cf. STAM (1998). A crítica ao olhar estrábico, enviesado, com que alguns
africanos olham a Europa aparece já no subtítulo do romance do autor ganês Ama Ata Aidoo,
“Reflections from a Black-Eyed Squint”, publicado pela primeira vez em 1977.
34
A criança cujo temor Freud identificaria como “medo da castração”, ou cujo medo de abuso sexual,
no caso da menina, seria evocado por Klein, em seu modelo da criança que percebe no adulto, no
outro, aquele que frustra e também que gratifica.

362

linguagem que se imita sem entendê-la; a Lei do Pai, a mãe como Outro, cuja voz
é ouvida quando alguém castiga a si mesmo, e contra a qual ele se depara, em
gritos desesperados de frustração, dor, desespero. É a autoridade que se
combate, e que se assume ao se tomar o lugar da figura da opressão. A postura é
dupla: rebelião e ódio pelo mestre; identificação e presunção da autoridade e da
posição do Outro. Ou seja, para ser um sujeito, é preciso presumir a submissão de
alguém, da acepção francesa assujetissement, em que ser um sujet ou sujeito é
algo que vem acompanhado tanto pela submissão quanto pela revolta contra o
Outro.
Em cada um dos movimentos de Diawara para estabelecer uma autenticidade
africana independente do dominador europeu, a questão volta: qual é o Outro
contra quem a autenticidade africana está sendo estabelecida? Por um lado,
parece ser Hollywood, ou o cinema ocidental dominante ou, agora, outra
paisagem cultural transnacional chamada Cinema Mundial35. Mas há um terceiro
Outro: o próprio cinema africano.
Se colocamos o teste de Butler para as três Novas Ondas de Diawara,
podemos ver o ponto em que Diawara se distancia da noção de assujetissement,

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o assujeitar-se para assumir uma posição de sujeito. Se ser autenticamente
africano significa não se sujeitar ao Outro cinemático europeu, ou submeter-se
aos parâmetros críticos localizados no establishment crítico ocidental dominante,
então Diawara rejeita, nos três casos, como “calabash cinema” um simples
“retorno às origens” como condição para a subjetividade africana. Na verdade, ele
atribui tal configuração ao que produtores franceses encontram como imagens
confortáveis de africanos. Diawara indica ainda a cada mudança a necessidade de
conquistar uma independência da “iconografia ocidental da África” (2010, p. 127).

35
O termo que Garritano evoca, o filme que pode conversar com plateias de qualquer lugar, ser
reconhecível em suas referências, emoções, linguagem cinematográfica – e especialmente nas
tecnologias corporificadas em narrativas que dizem respeito a gênero, raça e classe –, tão familiar que
a música que acompanha tais tropos narrativos pode ser pré-selecionada nas mesmas conhecidas
gôndolas, a que agora se chama “world music”.

363

Se essa iconografia, e a ideologia que a acompanha, é o Outro contra o que o


africano autêntico precisa estabelecer sua independência, então a própria
independência está marcada pelo Ocidente em cada movimento para tornar-se
independente dele: é o quadro que determina o escopo e a forma da
independência. Isso soaria ainda mais verdadeiro ao se tratar de cineastas – como
Sissako, Bekolo, Ramaka – com formação no exterior, na Europa, marcada
fortemente por figuras como Godard, Truffaut, a Nouvelle Vague francesa, o
social-realismo russo, o neorrealismo italiano e, em menor grau, por versões
internacionais do filme noir. Até mesmo Clando (1996), de Jean-Marie Téno, deve
muito ao vocabulário do filme noir, apesar de Téno insistir em professar sua
independência cultural com relação aos franceses.
Não que a Europa esteja necessariamente presente nessa interação entre
sujeito e poder; é sobretudo o cinema europeu, sua linguagem de câmera e suas
formas narrativas que se fazem presentes ao lado das linguagens que estão sendo
inventadas na África.
Para Diawara, o sujeito africano autêntico ainda está revoltado, mas não faz o
duplo movimento de também identificar-se com ou assumir o poder desse Outro

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contra o qual se revolta. O Outro dessas três categorias não é tão redutor quanto
estaria implicado no conceito de Ocidente. Para a primeira onda, o cinema de
arte, e a segunda, a Guilda, não se trata somente ou simplesmente de cinema
ocidental ou mundial, ou Hollywood, como o Outro do próprio cinema africano. Se
a terceira categoria cria tropos populares em gêneros populares ocidentais, ela
está mais perto de se identificar com o Outro do que as duas primeiras ondas
pretendiam.
O que, então, pode ser o Outro de Nollywood? Aqui é um cinema virtualmente
liberto de seus próprios antecedentes africanos. Teatros nômades iorubás e
telenovelas representam um distanciamento considerável em relação aos “Pais”
do cinema africano. A busca de Nollywood por um ideal de profissionalismo é
sobretudo moldada por Hollywood, e não pelo cinema africano, cujas ideologias
deixam Nollywood indiferente, e cujos valores de produção são desprezados. Os
filmes nollywoodianos são alegremente inconscientes do cinema africano, ou

364

mesmo indiferentes a ele, mas muito conscientes do mainstream hollywoodiano,


do cinema dominante e, mais ainda, das telenovelas e similares.
No que diz respeito às três ondas de Diawara, é primariamente o cinema
africano cuja voz fala dentro ou através das novas ondas enquanto Outro
abraçado e rejeitado. Entre os polos da submissão e da revolta, a ênfase das duas
primeiras ondas é na revolta contra o cinema africano enquanto outro; já a terceira
onda enfatiza a submissão – embora as três sejam marcadas por suas ênfases
opostas. O nome desse Outro Cinema Africano é o Espectro de Sembène. Ele
assombra as premissas do hotel de Diawara em Ouaga, onde ele costumava ficar
durante o Fespaco. Ele ri, segurando o cachimbo entre os dentes, para aqueles
que zombam de seu programa e escola noturna, e para aqueles que aspiram
tornar-se o Novo Pai do Cinema Africano, sabendo que só pode haver um Pai, e
que a cada nova geração será necessário que o Novo Cinema Africano descubra
que é hora de, mais uma vez, reconhecer as Mães marginalizadas, ao mesmo
tempo em que repetem os pecados de seus filhos.

Referências bibliográficas

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Submetido em 12 de setembro de 2016 | Aceito em 10 de dezembro de 2016

367

Fluxo:
para a compreensão da programação televisiva

Gilberto Alexandre Sobrinho1

Resenha

WILLIAMS, Raymond. Televisão:


tecnologia e forma cultural. São Paulo:
Boitempo, 2016.

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1
Professor do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação, do Instituto de
Artes, da UNICAMP.
e-mail: gilsobrinho@iar.unicamp.br

368

No quadro midiático atual, no Brasil, a televisão é o meio de comunicação mais


utilizado pela população 1 . Ela ainda reina como catalizadora dos maiores
investimentos publicitários; fonte de informação, de entretenimento e mobilizadora
central da atenção de receptores em todo o território nacional. A existência e
permanência desse quadro, a despeito das mudanças em escala global advindas
do surgimento dos modos de receber a imagem televisiva (smartphones, tablets,
notebooks, smart TVs etc.) e das reconfigurações da televisão sob demanda, em
que se destaca o modelo Netflix, permite-nos celebrar, mesmo tardiamente, um
texto tão importante, como é o caso da tradução para o português de Televisão:
tecnologia e forma cultural, de Raymond Williams (1921-1988). O livro foi lançado
originalmente em 1974 e se trata de uma ferramenta indispensável para a ainda
restrita crítica da televisão no solo brasileiro, com elogios à tradução efetuada por
Márcio Serelle e Mário F. I. Viggiano.
Sendo o modelo tradicional de grade de programação ainda responsável pela
organização dos programas de TV e, portanto, compreendido como o dispositivo
por excelência da organização da experiência audiovisual dominante, as ideias, os
conceitos e as conjecturas lançadas há quatros décadas ainda são oportunas

V OL . 5, N. 2 • REBECA 10 | J UL HO - D EZEM BRO 2016


para o debate necessário sobre televisão, nos moldes tradicionais. E o próprio
texto não perde de vista um cenário vindouro da TV segmentada e dos usos
alternativos, algo que se pode realizar comparativamente quando já dispomos de
dados sobre esse quadro da mídia alternativa, compreendida pela TV a cabo e os
dispositivos de vídeo.
O grande desafio hoje para a reflexão e pesquisa é justamente lidar com
temporalidades que coexistem, contrapõem-se, justapõem-se e se entrecruzam
em relação à televisão. Ao mesmo tempo em que há a permanência e forte
adesão ao modelo já tradicional de grade de programação, em que se acionam

1
BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Comunicação Social. Pesquisa brasileira de mídia
2015: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. Brasília: Secom, 2014. Disponível em:
<http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-quantitativas-e-qualitativas-de-
contratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2015.pdf>.

369

valores, tais como fidelização, relação horizontalidade e verticalidade na


organização dos programas e formas mais rígidas de controle; por outro lado, as
dinâmicas horizontalizadas advindas com o digital permitem o estilhaçamento
desses conceitos e estruturas e incrementam o vocabulário da televisão em
noções como programação multiplataformas, televisão sob demanda, streaming,
multiprogramação, TV interativa, YouTube etc. As alternativas a esse vocabulário
continuam no horizonte das apropriações e usos comunitários, havendo, assim,
mudanças significativas sobre a compreensão do que é sub-representação e
apropriação e expandindo-se consideravelmente os setores contra hegemônicos
após o surgimento e expansão das tecnologias digitais.
Assim, cabe situar o contexto de lançamento de Televisão: tecnologia e formas
culturais, destacar o campo conceitual e metodológico que a obra inaugura,
verificar sua estrutura e, enfim, situar sua importância hoje, haja vista os desafios
impostos pela cultura da convergência que tende a dominar as questões
tecnológicas e formais que moldam a televisão.
A década de 1970 é um período em que já se apresentam estabelecidos os
modelos de televisão pública e privada. Para o primeiro modelo, em geral, a Grã-

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Bretanha sobressai. Compreende-se esse tipo de organização da gestão da
programação como sustentado por taxas e apoio do Estado. No contexto da
Guerra Fria, de forte divisão ideológica da geopolítica, no qual a nação ainda
cumpria um destino que lhe era designado como grande narrativa, esse modelo
de TV tinha a experiência europeia de televisão como local privilegiado, sendo a
BBC, na qual Raymond Williams trabalhou como produtor e roteirista, o modelo
por excelência de TV pública. No outro extremo, a TV privada desenvolvia-se
plenamente nos Estados Unidos e teve muito mais penetração e influência em
outros países, em escala global, sendo seu modelo de negócio sustentado por
anúncios publicitários. Para ambos os modelos, a sala de estar consistia-se como
topografia essencial2, o lugar por excelência onde se desenvolviam os hábitos de

2
Expressão cunhada por Laura Mulvey. In: MULVEY, L.; SEXTON, J. Experimental British Television.
Manchester: Manchester University Press, 2007.

370

assistir à TV. Em relação à ética vigente, a TV pública arvora-se à formação


cultural do cidadão e a TV privada entende o público consumidor como sujeitos
da programação. Williams escreveu seu livro confrontando os dois modelos, visto
que, primeiramente, vivenciou e fez parte da BBC e, após uma viagem aos
Estados Unidos, ficou impactado com a fragmentação da programação da TV
norte-americana. Dessas experiências nasceu o livro, primeira teoria sobre
televisão, de um ponto de vista que conjuga análise formal, história social, cultura
e abstração intelectual. Desses investimentos, destaca-se, sobretudo, o conceito
de fluxo.
A citação que segue tornou-se referência obrigatória para a compreensão do
processo televisivo: “O que está sendo exibido não é, nos antigos termos, uma
programação de unidades separadas com inserções especificas, mas um fluxo
planejado, em que a verdadeira série não é a sequência publicada de programas,
mas essa sequência transformada pela inclusão de outro tipo de sequência, de
modo de que essas sequencias juntas compõem o fluxo real, a real
‘radiodifusão’”. (WILLIAMS, 2016, p. 100). Raymond Williams chegou a esse
conceito de maneira complexa e isso revela uma metodologia singular para a

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compreensão do fenômeno televisivo que conjuga uma série de práticas culturais
da sociedade moderna, juntamente a processos científicos e tecnológicos que se
desdobram desse mesmo contexto, em setores ligados ao desenvolvimento da
ciência, das técnicas, da indústria e das comunicações, no seio do capitalismo
ocidental. O fluxo televisivo compõe o cerne da dinâmica da programação
televisiva, pois ao distanciar-se de práticas culturais, tais como a literatura, o
teatro e o cinema, ainda centrados em unidades discretas que definem o livro, a
peça e o filme, para a televisão, interessa ter a atenção do espectador para a
programação, composta de uma série de programas, cuja divisão por gêneros,
formatos e o estabelecimento na grade de horário pressupõe uma
retroalimentação continua dos outros programas que virão, interpostos
fragmentariamente nos intervalos comerciais, o que gera uma intertextualidade

371

delirante, porém calculada. Com essa visão, Williams distanciou-se das


considerações demasiado formalistas de Marshall Mcluhan 3 , que sinalizava o
determinismo tecnológico como dominante para o estudo dos meios. Com a ideia
de fluxo, despontou-se um dos flancos mais influentes para o estudo do meio,
justamente por compreender a dinâmica da organização, distribuição e recepção
da programação televisiva por via das relações entre práticas sociais, tecnologia e
forma cultural.
Williams desbravou o campo dos estudos da televisão por via da compreensão
de seus lugares na história social, nos quais pesava fortemente os deslocamentos
e os estabelecimentos geográficos de famílias de trabalhadores para uma nova
ordem industrial e urbana, portanto, um redimensionamento do espaço doméstico
em que, primeiramente, o rádio protagonizaria um processo que se desdobraria na
chegada e centralização do aparelho de TV. São aspectos da vida moderna
analisados pelo autor que também enxergou uma nova sensibilidade preparada
para a gestação potencializadora da programação fragmentada da TV. Os modos
de organização institucional, tanto da TV pública, quanto da dominante TV privada
de inspiração norte-americana, estavam em sua mira, assim como a gestação da

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programação da TV, a princípio parasitária de grandes eventos tornados
programas audiovisuais, como esportes e comemorações, e o desenvolvimento
dos gêneros e formatos considerados propriamente em relação ao meio. Como já
disse, coube a Williams revelar o mecanismo nomeado “fluxo”, fonte de
atualização e funcionamento do dispositivo televisivo. Seguidamente a esse
trabalho, no desenvolvimento do livro, segue-se para um conjunto de reflexões
sobre os efeitos da tecnologia e seus usos, nos quais já se anteveem pânicos em
relação à violência, ao sexo, à degradação cultural, entre outros temas associados

3
Refiro-me à publicação em 1964 de Os meios de comunicação como extensões do homem
(understanding media). Aqui, chama a atenção o capítulo O meio é a mensagem, em que se lançam as
bases para a compreensão determinista da tecnologia em relação aos meios de comunicação e que
inclui o capítulo A televisão: o gigante tímido. In: McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como
extensões do homem. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.

372

ao novo meio. O autor é categórico em rejeitar qualquer determinismo, mesmo


social, em relação à televisão e enfático em delegar às instituições e/ou
corporações os usos que farão em relação aos meios e que traçarão seu destino.
Finalmente, o livro encerra após uma fecunda discussão sobre novas formas de
televisão, cotejando, assim, aspectos relacionados aos processos tecnológicos,
tais como a TV a cabo e via satélite, isso determina novas formas de distribuição e
recepção. Algo também considerado foi a tecnologia do vídeo e os possíveis usos
alternativos dessa tecnologia, visto que já se antecipava as potentes apropriações
de usos comunitários.
Portanto, trata-se de uma publicação obrigatória. Quando de seu lançamento,
a TV brasileira vivenciava, havia poucos anos, o processo de estabelecimento do
planejamento e gestão empresarial por meio da grade de programação e da
transmissão em cores, sendo a Rede Globo a protagonista dessas conquistas,
algo já bastante conhecido e estudado. Havia, assim, uma desvantagem no tempo
em mais de uma década em relação ao estabelecimento potencialmente
profissional da TV brasileira em comparação com as experiências britânica e
norte-americana. Essa desvantagem também acometeu o cenário midiático local

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no que se refere ao desenvolvimento das práticas alternativas do vídeo e também
da TV a cabo. Dessa forma, com os pioneiros da videoarte e os realizadores
ligados ao vídeo popular, ao longo dos anos 1980 e 1990, houve a possibilidade
de radicalização em relação à imagem televisiva e gêneros narrativos (TVDO e
Olhar Eletrônico), assim como o desenvolvimento de TVs alternativas, com
destaque para a TV de rua (TV Maxambomba e TV Viva) e para artistas que
realizaram uma militância por meio do audiovisual, mirando os meios de
comunicação, em narrativas politicamente engajadas (Rita Moreira, Joel Zito
Araújo, Eduardo Coutinho e outros). Em relação ao cabo, somente em 1995, com
a Lei do Cabo, oficializou-se a entrada dessa tecnologia televisiva considerada
alternativa para o autor britânico, porém ocupada e explorada pelos agentes do
capital privado que dominam a TV aberta.
Conforme iniciei, há ainda, no Brasil, fortemente instaurado o modelo da TV
aberta centrado na grade de programação. Isso requer que as considerações

373

sobre o meio estejam atentas para essas dinâmicas, em detrimento de análises


que se voltam exclusivamente para programas isolados. Certamente uma tarefa
não anula a outra, e o pensamento de Williams é claro em demonstrar como
conciliar esses lados na lide com a televisão.

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Submetido em 21 de novembro de 2016 | Aceito em 29 de novembro de 2016

374

Fora de Quadro

Antigas salas de cinema de Moçambique:


um breve panorama de vestígios do passado e condições atuais

Chico Carneiro1

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1
Fotógrafo e cineasta autodidata, divide seu trabalho entre Moçambique, onde
vive há 33 anos, e a Amazônia Paraense onde, desde 2001, já realizou 8
documentários. Em 2016, foi premiado no concurso DocTv CPLP, pólo
Moçambique, realizando e fotografando (em conjunto com Catarina Simão) o
documentário “DJAMBO”. Com ampla experiência em documentário, realizou ou
atuou como Diretor de Fotografia em mais de 150 filmes.
e-mail: chicocarneiro@gmail.com

377


Fachada do Cinema “3 de Fevereiro”, na cidade de Beira/ Moçambique, desativado.

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Projetores no Cinema “3 de Fevereiro”, na cidade de Beira/ Moçambique, desativado.

378

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Cinema “Vitória”, na cidade de Beira/ Moçambique, desativado.

379

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Fachada do Instituto Nacional do Audiovisual e Cinema (INAC), orgão do governo que regula a
atividade cinematográfica no país. No período socialista também era produtor, distribuidor e exibidor,
possuía um laboratório para revelação de películas p&b, onde o jornal noticioso "Kuxa Kanema",
depois de filmado em 16mm, era revelado, copiado, sonorizado e ampliado para 35mm. Exibido em
todo o país, que contava, nessa altura (pós independência), com cerca de 27 cinemas. Hoje atua
apenas como regulador e mantém o arquivo do cinema (em película) produzido no país.

380

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Latas velhas, vazias, depois do trabalho de recuperação.

381

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"Cinema" num bairro da cidade de Quelimane (capital da Província da Zambézia). Atualmente, existe
uma rede desses "cinemas" informais, que contam com leitor de DVD, uma TV, e oferecem exibições
de filmes piratas a preços baratos.

382

A N O 3 • E D 5 | J A N E I RO J U NH O 2 0 1 4

383

A REVISTA REBECA é uma publicação da

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