ISSN: 2316-9230
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Período
Julho | Dezembro de 2016
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ISSN
2316-9230
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Lúcia Nagib
María De La Cruz Castro Ricalde
Oliver Fahle
Robert Burgoyne
Robert Stam
Stephanie Dennison
Susana de Sousa Dias
Tamara Falicov
Sumário
10 Editorial
Apresentação do Dossiê
Dossiê – Africanidades
Temáticas Livres
Entrevista
304 “Precisamos vestirmo-nos com a luz negra”: entrevista com Florentino Flora
Gomes
Jusciele Conceição Almeida de Oliveira
Resenhas e Traduções
Fora de Quadro
Contents
10 Editorial
14 Scratchy Africanities
Amaranta Cesar e Lúcia Ramos Monteiro
General articles
Interview
304 “We need to dress ourselves with the black light”: interview with Florentino Flora
Gomes
Jusciele Conceição Almeida de Oliveira
Out of frame
377 Old movie theatres in Mozambique: traces of the past and present conditions
Chico Carneiro
Editorial
10
11
12
13
Amaranta Cesar 1
Lúcia Ramos Monteiro 2
1
Amaranta Cesar é professora adjunta de Cinema e Audiovisual da Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). É doutora em Cinema e Audiovisual pela
Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3 (2008) e realizou estágio pós-doutoral na
New York University. Foi curadora da Mostra 50 Anos de Cinema da África
Francófona (Ano da França no Brasil, 2009). Idealizou e coordena o Cachoeiradoc
14
3
Merecem destaque, dentre as publicações brasileiras que são referência na área, os volumes
organizados por Alessandra Meleiro (2007), por Mahomed Bamba e Alessandra Meleiro (2012), e por
Carolin Overhoff Ferreira (2014).
4
Uma série de mostras e programações culturais têm surgido no Brasil em torno dos cinemas
africanos. O evento mais constante dedicado à cinematografia do continente e de suas diásporas é,
provavelmente, o Encontro de Cinema Negro, Brasil, África, e Caribe Zózimo Bulbul, que completa dez
anos de existência em 2017. Idealizado pelo ator e realizador negro brasileiro Zózimo Bulbul, o
encontro, que incorporou seu nome após seu falecimento em 2013, tem dinamizado o intercâmbio
entre cineastas africanos, diaspóricos e afro-brasileiros e enfrentado o que parece se configurar como
uma negligência crítica aos seus cinemas. Nesse sentido, é difícil não pensar na ausência da própria
obra de Zózimo nas compilações clássicas da história do cinema brasileiro. Se Soleil ô (1970), o
manifesto vanguardista e anticolonial de Med Hondo, ainda não encontrou lugar na história do cinema
mundial compatível com a envergadura de sua invenção estética e discurso político, o mesmo se pode
dizer de Alma no olho (1975), curta-metragem de Zózimo Bulbul, no que diz respeito ao cinema do
Brasil.
15
16
5
Em sua análise dos filmes de Férid Boughedir, é possível encontrar essa aliança de forças
contraditórias na caracterização das personagens femininas de Halfaouine e Un été à la Goulette, em
que “há, sem dúvida, imagem de uma mulher culturalmente marcada de determinada pela tradição
árabe-muçulmana” e, ao mesmo tempo, “o espectador se depara também com as imagens de uma
mulher que é simultaneamente oriental, mediterrânea, ocidental e, em definitivo, universal” (BAMBA,
2012, p. 287).
6
Cf., a esse respeito, BAMBA, 2013a, 2013b, 2011.
17
*
Concentremo-nos sobre a questão da identidade no cinema: somos capazes
de enxergar traços de uma identidade continental comum, ou ela se conjugaria
sobretudo em termos nacionais e regionais, movendo-se também historicamente?
Se adotamos como parâmetro a idade das nações africanas independentes, de
fato as cinematografias africanas inserem-se entre as mais jovens do mundo. Mas
como estabelecer o(s) marco(s) de início? É mesmo o lançamento, em 1962, de
Borrom Sarret (O Carroceiro), curta-metragem do senegalês Ousmane Sembène?
Para além de toda a filmografia realizada em África durante o período colonial, por
encomenda de autoridades coloniais, e que recentemente começa a atrair a
atenção da academia (BLOOM, 2008; PIÇARRA, 2015; ANTONIO e PIÇARRA,
2013), e do olhar sobre os africanos enquanto objeto da curiosidade etnográfica,
que Sembène critica em diálogo com Jean Rouch (ROUCH e SEMBÈNE, 1965),
como encarar os filmes de ficção ou os registros documentais realizados por
estrangeiros de diferentes nacionalidades em momentos de estreita colaboração
com movimentos independentistas internacionalmente articulados, como o MPLA
7
Com relação à filmagem em apoio aos movimentos independentistas ou de registro das zonas
libertadas, é preciso citar a filmografia de Sarah Maldoror, que realiza, ao longo da década de 1960,
filmes de ficção no âmbito dos movimentos anti-coloniais da Guiné-Bissau e de Angola. Há ainda
importantes filmagens por parte de Dragutin Popovic, Margaret Dickinson, Robert Van Lierop ou do
grupo Cinéthique junto aos guerrilheiros moçambicanos (abordados por José de Sousa em seu texto
no presente dossiê; cf. também ARENAS, 2017, e GRAY, 2016); e nos registros de José Massip, John
Sheppard e Piero Nelli nas áreas libertadas da Guiné-Bissau (a que Cunha e Laranjeiro fazem
referência, em artigo publicado no presente dossiê).
18
8
Cf., a esse respeito, BAMBA, 2009 a.
19
20
Em seu artigo, que busca uma identidade comum ao cinema africano e aborda
os esforços para o reconhecimento de tal identidade, Dudley Andrew cria uma
constelação, reunindo filmes de Ousmane Sembène, Souleymane Cissé, Med
Hondo, Flora Gomes e Djibril Diop Mambéty, num arco temporal que vai de 1969
(Mandat) até 1996 (Waati), para falar da identidade africana assentada sobre uma
aliança de forças de direções opostas: a raiz do baobá e o vento do Sahel, o
desejo de fixar-se e a vocação nômade. “Os cineastas africanos podem preferir a
imagem do nômade, mas muitos parecem destinados a viver como migrantes,
indo de festival em festival, de universidade em universidade, para apresentar sua
obra”, afirma. Mas como enraizar-se e afirmar a própria perspectiva quando ainda
são patentes a dependência de economias estrangeiras para financiar a realização
e a necessidade do aval de festivais para garantir alguma chance de distribuição?
21
22
23
Em sua busca por estabelecer um quadro conceitual para uma história das
formas de imaginação da descolonização e das relações com a terra nos cinemas
africanos, Marcelo Ribeiro desenha uma sorte de cartografia da invenção de um
olhar. E é na análise de A vida sobre a terra (2000), filme de Adberrahmane
Sissako, que se desvela, mais uma vez neste dossiê, uma dupla articulação
fundamental: o que se inventa é “um olhar sobre si que é, igualmente, um olhar
sobre o mundo” e “um olhar a partir da África que é, ao mesmo tempo, um olhar a
partir do mundo” (RIBEIRO, 2017).
Esta dupla inscrição e perspectiva está no cerne da invenção formal e da
imaginação política de Bamako (2006), outro filme de Abderrahmane Sissako,
24
25
Referências Bibliográficas
26
________________. “In the name of 'cinema action' and Third World: The
intervention of foreign film-makers in Mozambican cinema in the 1970s and
1980s”. Journal of African Cinemas, v. 3, p. 173-185, 2012.
DIAWARA, Manthia. African film: new forms of aesthetics and politics. Nova York:
Prestel, 2010.
27
THIONG’O, Ngugi wa. Decolonizing the mind: the politics of language in African
literature. Londres: Heinemann, 1986.
28
Dossiê – Africanidades
Marcelo R. S. Ribeiro 2
1
Uma versão inicial deste texto, disponível em
<https://www.incinerrante.com/textos/cinemas-africanos-cosmopoeticas-
descolonizacao-comum>, serviu de base para minha participação na mesa de
abertura do Seminário Olhares sobre o Cinema de África e da Afrodiáspora, que
ocorreu nos dias 29 e 30 de setembro de 2015, na Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro. Agradeço à organização do evento, especialmente às
professoras Janaína Oliveira e Regiane Augusto de Mattos, pelo generoso convite
e pela rica oportunidade de apresentar algumas de minhas ideias e de conversar
sobre cinemas africanos. Agradeço também às duas pessoas que comentaram
30
Resumo
Com base na hipótese de que a emergência histórica dos cinemas africanos e sua
contemporaneidade são indissociáveis de uma reivindicação do direito de olhar, de narrar e de
imaginar o mundo, este artigo busca estabelecer um quadro conceitual para uma história das formas
de imaginação do comum nos cinemas africanos. Nessa história ainda a escrever, que pertence ao
programa de pesquisa mais amplo de criação de um atlas de cosmopoéticas, é preciso reconhecer o
sentido inaugural do gesto de inversão do olhar colonial, no contexto da emergência dos cinemas
africanos entre as décadas de 1950 e 1960, e do retorno inventivo às origens, que torna possível a
participação do cinema nos processos históricos que caracterizam a condição pós-colonial, nas
décadas seguintes (consolidação de Estados nacionais, aspirações pan-africanistas, Négritude,
internacionalismo revolucionário, cosmopolíticas do capital e dos direitos humanos, afropolitismo etc.).
Dessa forma, é possível reconhecer a tarefa estética e política da descolonização como horizonte
cosmopoético inaugural dos cinemas africanos, entre a inversão do olhar colonial e o retorno inventivo
às origens, nos filmes Afrique sur Seine (Mamadou Sarr, Paulin Vieyra, 1955), Soleil Ô (Med Hondo,
1967) e Touki Bouki (Djibril Diop Mambéty, 1973). Em filmes mais recentes, como La vie sur terre
(Abderrahmane Sissako, 1998), Terra sonâmbula (Teresa Prata, 2007) e Pumzi (Wanuri Kahiu, 2009),
torna-se evidente uma tendência de deslocamento da cosmopoética da descolonização à
cosmopoética do comum, associada ao tema da relação com a terra, em sua polissemia: terra pátria,
terra natal, desterro, exílio, terra devastada.
Abstract
Working on the hypothesis that the historical emergence of African cinemas and their
contemporaneity are inseparable from a claim of the right to look, to narrate and to imagine the world,
this article seeks to establish a conceptual framework for the formulation of a history of the forms of
imagination of the common in African cinemas. In this history yet to be written, which belongs to the
broader research program of creating an atlas of cosmopoetics, one must acknowledge the inaugural
meaning of the gesture of inverting the colonial gaze, on the one hand, in the context of the emergence
of African cinemas between the 1950s and the 1960s, and of the inventive return to origins, on the
other hand, which makes possible the participation of film in the diversity of historical processes which
characterize the postcolonial condition, in the following decades (consolidation of national states, pan-
Africanist aspirations, Négritude, revolutionary internationalism, the cosmopolitics of capitalism and
human rights, afropolitanism etc.). In this way, it is possible to recognize the aesthetic and political task
of decolonization as African cinemas’ inaugural cosmopoetic horizon, between the inversion of the
colonial gaze and the inventive return to origins, in the films Afrique sur Seine (Mamadou Sarr, Paulin
Vieyra, 1955), Soleil Ô (Med Hondo, 1967) and Touki Bouki (Djibril Diop Mambéty, 1973). In more recent
31
films, such as La vie sur terre (Abderrahmane Sissako, 1998), Terra sonâmbula (Teresa Prata, 2007) and
Pumzi (Wanuri Kahiu, 2009), it becomes evident that there is a trend towards the displacement of the
cosmopoetics of decolonization by a cosmopoetics of the common, which is linked to the theme of the
relation to the land, in its polysemy: fatherland, homeland, expatriation, exile, waste land.
32
Introdução
33
Quando Mamadou Sarr e Paulin Vieyra filmam Afrique sur Seine, em 1955, o
gesto fundamental da reivindicação do direito de olhar, de narrar e de imaginar o
mundo a partir de alguma africanidade aparece sob a forma de uma inversão. De
modo significativo, a experiência da diáspora é tanto uma das condições de
possibilidade do filme quanto uma perspectiva que sua trama constrói diante de
Paris, da luta pela independência e do mundo por vir. Impossibilitados de filmar no
território colonial, ainda dominado pelos franceses (que proibiam que africanos
filmassem nas colônias), Vieyra, Sarr e os estudantes do Institut des Hautes
1
Trata-se da atual Fondation européenne des métiers de l'image et du son (FEMIS).
34
2
No original: “expérience d'émergence et de soulèvement”. (Todas as traduções são do autor, salvo
indicação em contrário, e estão acompanhadas da reprodução do trecho traduzido, na língua original.)
35
3
No original: “right to look”, “visuality”, “a medium for the transmission and dissemination of authority,
and a means for the mediation of those subject to that authority”.
36
4
A esse respeito, é interessante consultar o estudo de Manthia Diawara (1992, p. 9), que identifica a
“dependência tecnológica e estética do cinema africano em relação ao Ocidente” (no original: “the
technological and aesthetic dependence of the African cinema on the West”) como um de seus
problemas mais difusos e complexos, ao mesmo tempo em que reconhece a ambivalência de uma
situação em que a instalação parcial de infraestrutura de produção cinematográfica em territórios
coloniais é também, em alguma medida, o que tornará possível o esforço de descolonização.
37
africanos.
5
O conceito de “invenção das tradições” remonta ao conhecido livro organizado por Eric Hobsbawm e
Terence Ranger (1997), no qual as possibilidades analíticas suscitadas por seu aparente paradoxo são
exploradas em diferentes contextos históricos. Na introdução ao volume, Hobsbawm (1997, p. 9)
escreve: “Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por
regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica visam inculcar certos
valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma
continuidade em relação ao passado”. Em diálogo com a diferenciação entre tradição e costume que
Hobsbawm propõe, o capítulo de Ranger (1997, p. 219-269) discute, especificamente, as formas de
invenção da tradição e do costume que informam a história colonial e as reivindicações anticoloniais e
descoloniais. Ranger (1997, p. 268) identifica “dois legados ambíguos da invenção colonial das
38
39
Parece que, para os brancos, há três tipos de seres vivos: há a espécie humana, a
espécie animal e, então, há os negros. Em todo caso, o que é certo é que, a seus
olhos, nós nunca somos realmente homens9.
8
O assimilacionismo que caracteriza o colonialismo francês está associado ao horizonte cosmopolítico
do humanismo europeu e a suas relações com o cristianismo missionário, que buscam neutralizar a
alteridade africana, por meio de políticas de integração e de conversão que aspiram a uma espécie
paradoxal de inclusão do africano como excluído, conforme um jogo duplo ou um duplo vínculo em
que a relação entre a civilização e seus outros é, ao mesmo tempo, de assimilação generalizada e de
rejeição sistemática.
9
Tradução do autor a partir do áudio original do filme, conforme a seguinte transcrição: “Il paraît que,
pour les blancs, il y a trois sortes d’êtres vivants : il y a l’espèce humaine, l’espèce animale, et puis il y
a les nègres. En tout cas, ce qu’il y a de sûr, c’est que, à leurs yeux, nous ne sommes jamais tout à fait
des hommes”.
40
Tanto Afrique sur Seine quanto Soleil Ô deslocam a pretensão universalista que
o discurso colonial atribui à experiência histórica europeia e que fundamenta o
projeto humanista. Se há uma cosmopoética, isto é, uma forma de invenção
estética do mundo comum, em toda cosmopolítica, isto é, em toda forma de
constituição jurídico-política do mundo comum, a tarefa da descolonização a que
os cinemas africanos estão associados opera um movimento duplo: por um lado,
a revelação dos limites da aspiração europeia ao universalismo, por meio da
exploração das singularidades que escapam de seu enquadramento; por outro, a
reinscrição da aspiração ao universalismo a partir do deslocamento de seus
10
Tradução do autor a partir do áudio original do filme, conforme a seguinte transcrição: “Vous êtes
complices de tous les crimes de la Terre. Vous laissez se perpétuez l’esclavage, les assassinats, le
génocide. Vous choisissez vos victimes et vos bourreaux selon la couleur de leurs peaux, selon qu’ils
acceptent ou refusent vos politiques. Et, l’âme sereine, vous dormez tranquilles. Un agréable sentiment
de bonne conscience vous enveloppe. Vous devenez de bons blancs, de bons noirs. Tous
compatissants. Tous bons chrétiens. Alors que vous savez que tout contact est intérêt. Tout dialogue
est marchandise. Toute aide est investissement. Tout temps est rapport au futur. Toute vérité est
monnayable. L’homme crève dans vos yeux ouverts, annihilé, bafoué, rejeté. Afrique, Afrique, Afrique,
Afrique…”.
41
11
No original: “right to narrate”; “an act of communication through which the recounting of themes,
histories and records is part of a process that reveals the transformation of human agency”.
12
No original: “is not a right for declarations of human rights, or for advocacy”.
13
No original: “is not merely a legal, procedural matter; it is also a matter of aesthetic and ethical form.
Freedom of expression is an individual right; the right to narrate, if you will permit me poetic licence, is
an enunciative right rather than an expressive right – the dialogic, communal or group right to address
and be addressed, to signify and be interpreted, to speak and be heard […]”.
42
14
No original: “afropolitanisme”; “nationalisme anticolonial”; “relectures du marxisme”; “paradigmes
politico-intellectuels”; “discours africain”.
43
15
No original: “relativise le fétichisme des origines en montrant que toute origine est bâtarde; qu’elle
repose sur un tas d’immondices”; “réinterroge le statut de ce que l’on pourrait appeler la ‘réalité’”;
“esthétique de la transgression”.
16
No original: “Le discours de la Négritude se voulait un discours sur la différence, un discours de la
communauté comme différence. La différence était conçue comme le moyen de recouvrer la
communauté, dans la mesure où l’on estimait que celle-ci avait fait l’objet d’une perte. Il fallait donc la
convoquer ou la reconvoquer, la rappeler à la vie, par le biais du deuil d’un passé érigé en signifiant en
dernière instance de la vérité du sujet. De ce point de vue, il s’agissait d’un discours des lamentations”.
44
17
No original: “[A]u principe de la perte et du deuil se substitue celui de l’excès et de la démesure. La
communauté est par définition le lieu de la démesure, de la dépense et du gaspillage. Sa fonction est
de produire des déchets. Elle vient au monde et se structure à partir de la production des rebuts et de
la gestion de ce qu’elle dévore. L’on passe à une écriture du surplus ou encore de l’excédent. La réalité
(qu’il s’agisse de la race, du passé, de la tradition ou mieux encore du pouvoir) n’apparaît pas
seulement comme ce qui existe et est passible de représentation, de figuration. Elle est également ce
qui recouvre, enveloppe et excède l’existant”.
45
46
18
A divisão da África em áreas geopolíticas associadas às línguas que os Estados nacionais do
continente herdaram dos colonizadores europeus não deve ser compreendida de modo estanque e
absoluto, embora ofereça um quadro interpretativo recorrente nos estudos sobre cinemas africanos e
sobre a história recente do continente.
47
48
No lugar da imagem antológica das grandes raízes que se estendem pelo chão, onde
homens sentam-se para conversar e contar histórias, Sissako nos dá a imagem do
tronco seco, nu, desse grande baobá cujas extremidades formam um emaranhado
de galhos que se projetam para o céu. Há aqui um significativo movimento de
inversão que se anuncia. O que Sissako parece propor não é um retorno às raízes, ou
à identidade original: trata-se de afirmar uma transformação do lugar de enunciação.
As histórias e palavras ancoradas nesse solo vão se emaranhando em uma grande
trama e projetam-se para fora do quadro. É nesse sentido que ele afirma sua posição
intermediária. Sissako parece querer deixar claro que ele fala da África, a partir da
perspectiva africana, para o mundo. (CÉSAR, 2012, p. 203).
49
50
Essa nova era se caracteriza pela intensificação das migrações e pela implantação
de novas diásporas africanas no mundo. Com a emergência dessas novas diásporas,
a África não constitui mais um centro em si. De agora em diante, ela é feita de polos
19
No original: “correspond à l’entrée de l’Afrique dans un nouvel âge de dispersion et de circulation”.
51
Se, como escreve Mbembe (2013, cap. 6) em seguida, “[a] África ela mesma é,
de agora em diante imaginada como um imenso intervalo, uma inesgotável citação
passível de diversas formas de combinação e composição”21, é preciso pensar
suas relações com o mundo num sentido novo, conforme um reconhecimento de
sua radical contemporaneidade, tal como evidenciam La vie sur terre, Terra
sonâmbula e Pumzi. De fato, ali onde La vie sur terre canta, com a força da escrita
poética de Aimé Césaire e a fragilidade da imagem dos galhos do baobá, a
humanidade comum que é preciso construir cotidianamente, contra o racismo; ali
onde Terra sonâmbula enaltece, contra a realidade da guerra e com a fantasia da
20
No original: “Ce nouvel âge se caractérise par l’intensification des migrations et l’implantation de
nouvelles diasporas africaines dans le monde. Avec l’émergence de ces nouvelles diasporas, l’Afrique
ne constitue plus un centre en soi. Elle est désormais faite de pôles entre lesquels il y a constamment
passage, circulation et frayage. […] [L]a question n’est plus de savoir de quelle essence est la perte :
elle est de savoir comment constituer de nouvelles formes du réel – des formes flottantes et mobiles. Il
ne s’agit plus de retourner à tout prix à la scène première ou de refaire dans le présent les gestes
passés. S’il a disparu, le passé n’est cependant pas hors champ. Il est encore là, sous la forme d’une
image mentale. On rature, on gomme, on remplace, on efface, on recrée les formes et les contenus. On
procède par de faux raccords, des discordances, des substitutions et des montages – condition pour
atteindre une force esthétique neuve”.
21
No original: “L’Afrique elle-même est désormais imaginée comme un immense intervalle, une
inépuisable citation passible de maintes formes de combinaison et composition”.
52
em sua relação com o mundo que nos resta, em suma, os cinemas africanos
entrelaçam a cosmopoética da descolonização que os funda, que corresponde ao
afropolitismo pós-colonial, com as cosmopoéticas do comum que seus filmes
buscam interminavelmente, associadas ao afropolitismo mundial.
Referências
ARMES, Roy. African filmmaking: North and South of the Sahara. Edinburgh:
Edinburgh University Press, 2006.
BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. 1. ed. Rio de Janeiro:
EdUERJ / Contraponto, 2005.
53
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador:
EDUFBA, 2008.
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. 4. ed. São Paulo: Selo
Negro, 2011.
MBEMBE, Achille. Sortir de la grande nuit. Edição digital em formato Epub sem
paginação fixa. Paris: Éditions La Découverte, 2013.
THIONG'O, Ngũgĩ wa. Decolonizing the Mind: The Politics of Language in African
Literature. 1. ed. Londres: Heinemann, 1986.
54
55
Guiné-Bissau:
do cinema de Estado ao cinema fora do Estado
1
Paulo Cunha é doutor em Estudos Contemporâneos pela Universidade de
Coimbra. Leciona Cinema na Universidade da Beira Interior e na Escola Superior
56
Resumo
O objetivo deste artigo é, olhando para o passado da Guiné-Bissau nas últimas cinco décadas,
refletir sobre o papel do cinema na construção da sociedade, da nação e do Estado da Guiné-Bissau.
Pretende-se fazer um ponto de situação em relação ao projeto inicial de Amílcar Cabral, líder histórico
da luta de libertação, que tomava o cinema enquanto meio para a descolonização do gesto e para a
emancipação do olhar. Neste percurso, começamos por reconhecer a importância e a influência de
movimentos emancipatórios no cinema mundial, como o Terceiro Cinema ou o Nuevo Cine latino-
americano, no processo de luta revolucionária dos guineenses contra o colonizador e, posteriormente,
no consequente processo de construção de uma identidade ou cultura nacional. Num segundo
momento, tentamos relacionar os planos de Amílcar Cabral para a consolidação de uma
cinematografia nacional (Cinema de Estado) com o atual cenário cinematográfico no território em que
não se vislumbra qualquer política pública para o setor (Cinema fora do Estado).
Abstract
We propose to reflect on the civil society, the nation and the State in Guinea-Bissau, through a
57
Introdução
1
Os combatentes do PAIGC eram designados por “guerrilheiros” porque praticavam a Guerrilha, um
tipo de guerra não convencional na qual a principal estratégia era a ocultação e extrema mobilidade
dos combatentes, incluindo também civis armados. Só a título de exemplo, essa foi também a mesma
estratégia adotada em Cuba pelo grupo de Fidel Castro e Che Guevara.
58
1. Cinema e Revolução
59
60
61
means of delineation becomes imperative [...]. The camera then becomes a gun, and
the cinema must be a guerrilla cinema. (SOLANAS; GETINO, 2016).
62
Solidariedade aos Povos da África, Ásia e América Latina, mais conhecida como a
Conferência Tricontinental, seria fundamental para a emancipação do cinema na
Guiné-Bissau. Organizada em Cuba, para celebrar o sucesso da revolução
socialista e anti-imperialista cubana, a Tricontinental consagrou os seus trabalhos
para promover a luta pela libertação nacional, a consolidação das independências
e soberanias nacionais, e o direito à autodeterminação dos povos colonizados. O
jovem líder africano Amílcar Cabral foi uma das figuras de destaque entre os
inúmeros participantes, em que figuravam o chileno Salvador Allende e o
venezuelano Pedro Medina Silva, e, seguramente, acompanhou os trabalhos de
uma das principais resoluções, dedicada a combater “a penetração cultural e
ideológica do imperialismo norte-americano na América Latina”. (OLAS, 1967, p.
48-50). Para além de denunciar o “domínio imperialista” da cultura de massas que
“deforma a verdade e trata de introduzir falsos valores políticos, morais e
estéticos” ou que “impõe esquemas de informação, gostos e modos de vida que
não correspondem de alguma forma aos nossos países”, a resolução exortava
que “o dever de todo o revolucionário é fazer a revolução”. (OLAS, loc. cit.).
O exemplo revolucionário cubano também se manifestava através do cinema, e
63
2. Cinema e Nação
64
65
66
Eu costumo dizer que o cinema feito por nós, guineenses, começou quando nós
começámos a filmar. Quando nós chegámos de Cuba, nós: a Josefina Crato, o José
Bolama, o Flora e eu. Nós chegamos a Conacri a 7 de janeiro de 1972. Havia guerra.
Nós tínhamos saído da guerra, ido a Cuba e voltámos para a guerra. (N’HADA 2015
apud LARANJEIRO, 2015b).
O Amílcar Cabral dizia para filmarmos a vida nas zonas libertadas, mas a guerra era
complicada. Ele decidiu que dois de nós íamos para o Norte e dois de nos íamos
para o Sul. Quem era do Norte ficou no Norte, quem era do Sul foi para o Sul. Fiquei
na frente Norte, para filmar a vida da população e a guerra. Mas os militares não
gostavam que nós estivéssemos lá [...]. (N’HADA 2015 apud LARANJEIRO, 2015b).
67
[...] aquilo que filmávamos ninguém revelava, mandavam para Conacri e nunca mais
sabíamos daquilo; [...] material que filmamos nos primeiros três meses foi tudo
enviado para a Argélia. Algumas coisas que o Flora filmou no Sul, por coincidência,
foram levadas pelo Lennart Malmer, que estava por lá nessa altura, e que devem
estar no Arquivo de Cinema da Guiné-Bissau. (N’HADA 2015 apud LARANJEIRO,
2015b).
68
pela libertação, como Cuba, União Soviética e RDA. O jovem cinema guineense
também manteve uma relação próxima com França, sobretudo justificada por
relações pessoais de alguns intelectuais e dirigentes guineenses, nomeadamente
Mário Pinto de Andrade.
Em 1979, o cineasta Sana Na N’Hada assumia a direção do INC. Mas, por
razões diversas, a atividade do INC seria quase nula. Devido à falta de
financiamento no país, esse departamento passou a estar praticamente
dependente das campanhas de promoção cultural das Embaixadas. Para além da
aposta na produção, uma das importantes medidas de N’Hada foi visitar vários
países aliados – Cuba, União Soviética, Argélia, China e Suécia – de forma a
conseguir recuperar uma parte residual das imagens rodadas no período de luta
pela independência, tão importantes para o esforço de construção da unidade
nacional.
O Regresso de Cabral é o único filme produzido pelo INC que está terminado.
Quando Sana Na N’Hada foi contemplado com uma bolsa sueca para realizar um
filme, decidiu documentar as cerimônias fúnebres em honra de Amílcar Cabral na
cidade de Bissau durante a transladação do corpo de Conacri, onde tinha sido
69
libertação através do discurso fílmico. Cabral surge como uma figura messiânica
na qual reside toda a força política e anímica da construção do novo país
soberano e independente. A ideia de um líder carismático que reunia o consenso
da população foi essencial para a afirmação e legitimação da luta de libertação no
contexto internacional. Tendo o líder sido assassinado, havia que garantir a
perpetuação da sua influência através do ritual fúnebre, que por sua vez foi
perpetuado através do discurso fílmico.
O espólio de material fílmico do INC foi recentemente digitalizado pelo Arsenal
– Institute for film and videoart de Berlim no âmbito do projeto coletivo Luta Ca
Caba Inda sob a orientação de Filipa César. Foram assim tornados visíveis os
fragmentos fílmicos que retratam os primeiros passos políticos na Guiné-Bissau,
como nação independente: as visitas do Presidente Luís Cabral a todo o País, as
comemorações do X aniversário do PAIGC, a nacionalização do banco e a
impressão de escudos guineenses, a primeira conferência das mulheres
organizada em Bissau, a visita oficial do Presidente de Moçambique Samora
Machel, entre outros. Estávamos na última metade da década de 70, ainda se
respirava o romantismo de uma luta que em tudo se aproximava do ideal de
70
3. O estado do Cinema
71
poderão marcar uma nova geração no cinema guineense, tais como Vanessa
Fernandes (realizadora de Taama Taama ani N´Fa Douwa, 2011, e Si Destinu,
2015) ou Filipe Henriques (realizador de O Espinho da Rosa, 2014).
Para além das formas mais convencionais, nos últimos anos tem-se verificado
um surto de produção cinematográfica e audiovisual proveniente de núcleos
amadores e semiprofissionais que tem aumentado exponencialmente. Trata-se de
produções de baixíssimo orçamento, com técnicos e atores amadores ou não
profissionais, com recurso a meios técnicos mais acessíveis aos potenciais
realizadores ou meros curiosos. Não é fácil mapear esse tipo de produções
porque têm uma circulação local (predominantemente em formato DVD). Mais
recentemente, e graças ao recente recurso à internet, é possível identificar alguns
produtores mais bem-sucedidos através de algumas redes sociais.
À semelhança do que tem acontecido em outros países africanos, como no
caso do fenômeno ugandês de Wakaliwood, o modelo de produção DIY (do it
yourself) de baixo orçamento de Nollywood se popularizou nas últimas décadas,
graças aos formatos de home video (primeiro o VHS e depois o DVD). Além das
questões técnicas e financeiras, Françoise Balogun (2007, p. 197) sublinha que
72
73
Esse filme pode ser comprado no popular mercado do Bandim ou nas ruas de
Bissau ou das principais cidades guineenses, onde muitos jovens vendem filmes e
músicas em DVDs ou pendrives gravados de forma artesanal. Entre os filmes mais
vendidos nessas circunstâncias encontram-se os “filmes de guerra”, sobretudo de
produção norte-americana, “filmes de amor indianos” e os filmes amadores feitos
na Guiné como A Lei da Tabanca. Essa é a forma mais frequente de distribuição
de filmes em Bissau e um pouco por toda a Guiné-Bissau. Apesar de muitos dos
74
75
Algumas conclusões
Sem meios financeiros e técnicos para ter uma produção profissional própria, o
cinema profissional na Guiné-Bissau é praticamente inexistente e só sobrevive
devido a algumas coproduções que são rodadas em território guineense ou a
apoio financeiro estrangeiro concedido a realizadores guineenses. De uma forma
ou outra, a coprodução é hoje um mecanismo vital, não só para a sobrevivência
do cinema guineense, mas também para a recuperação da memória visual do
país.
Os casos de Flora Gomes e Sana Na N’Hada são paradigmáticos do percurso
do cinema guineense desde o seu nascimento: todos os longas-metragens
realizados pelas duas principais referências internacionais do cinema guineense,
aqueles que foram formados para produzir o olhar pós-colonial guineense, só se
concretizaram com o apoio financeiro maioritariamente estrangeiro. Nas últimas
duas décadas, Portugal tem sido mesmo o principal financiador do cinema
76
Referências
77
78
79
Resumo
Abstract
80
81
ainda por fazer e constitui uma tarefa política – e poética – crucial de nossos
tempos.
Na expressão cinema moçambicano, não está em jogo apenas a constatação
da existência de filmes feitos em Moçambique a partir de uma perspectiva
africana, mas também a criação de uma possibilidade imaginativa que vai além do
que está dado. Com a condição de que seja compreendida de forma plural, a
expressão permanece irredutível à sua dimensão constativa (a constatação da
existência), abrindo um espaço de significação que se pode chamar de
performativo (a criação de um possível, como uma promessa). Dizendo de
maneira diferente, o cinema moçambicano existe (como um corpus) apenas na
medida em que se faz possível para além do existente e recria o mundo.
Mahomed Bamba (2007, p. 84) lembra que a crítica ocidental “elaborou e
projetou suas próprias representações imaginárias sobre as produções africanas”,
o que consequentemente estimula o desenvolvimento de um olhar
preconceituoso, ao mesmo tempo em que rejeita as novidades oferecidas pelos
cineastas africanos. Os filmes africanos e, no caso em análise, os filmes
moçambicanos apenas ganham um olhar diferenciado, “só começam a ser
82
83
84
National Congress) e começa a promover uma guerra civil que vai consumir o país
durante 16 anos.
Entre 1976 e 1991, o INC produziu treze longas-metragens, 119 curtas-
metragens e 395 reportagens televisivas batizadas com o nome de Kuxa Kanema
(“Nascimento do Cinema”).
Apesar da guerra que aumentava de intensidade dia a dia, Moçambique, com o
seu projeto de país, e o INC, com o seu projeto de cinema, vão atrair muitos
técnicos cooperantes e cineastas estrangeiros. É feito um grande esforço de
formação de novo pessoal com a ajuda destes cooperantes vindos, sobretudo,
dos países de Leste: Cuba, Canadá, Brasil, Inglaterra e França.
85
86
É por essa razão que em finais dos anos 70 e princípios dos 80, por iniciativa
própria, Guerra mobilizou uma série de cineastas progressistas, grandes
profissionais e com elevada capacidade técnica, que se disponibilizaram a vir a
Moçambique para dar cursos na área do cinema. Isto faz com que parte
significante da velha geração dos cineastas moçambicanos se identifique como
produto desta ação. (ALBINO, 2011).
Guerra passa então a dirigir as atividades do Instituto Nacional de Cinema
Pelos temas de seus filmes, pode-se notar que Ruy Guerra tem como preocupação
falar do presente pós-colonial e do futuro a partir de testemunhos extraídos do
período da luta anti-colonial de Moçambique. Este duplo compromisso com a
memória do passado colonial e as utopias do presente é nítido no trabalho de muitos
cineastas africanos depois das independências. Seus filmes são militantes na medida
em que a memória é seletiva e estrategicamente revisitada. Se há, portanto, uma
forma de engajamento político nessa ação de Ruy Guerra no cinema moçambicano,
isso se deve ao seu trabalho como cineasta e como responsável pela direção do
INC. O fruto desta colaboração é a inauguração de “uma nova poética e uma
temática específica ao cinema moçambicano”. O resultado desse trabalho acabou
suscitando a simpatia e o entusiasmo militante de outros cineastas africanos e do
mundo. (MELEIRO, 2011).
87
Na época trabalhar para o cinema moçambicano era algo fácil, mas ao mesmo
tempo difícil e complicado. Complicado porque, “estávamos a iniciar. O Instituto
Nacional do Cinema (INAC) estava a começar. E não havia nada”. Ora, “quando não
se tem nada as coisas são ao mesmo tempo facilitadas e complicadas”. Facilitadas,
“porque você não é obrigado a lutar contra nenhuma estrutura estabelecida que
eventualmente seja errada” [...] Havia um aspecto que fazia toda a diferença: uma
fortíssima vontade política de criar um cinema moçambicano. (GUERRA apud
ALBINO, 2011).
Essa simples fase determina tudo, porque sem “vontade política” não há cinema que
se construa ou que sobreviva em nenhum país. O cinema, pelas suas características
económicas, técnicas e pelo fato de ser a arte do século XX/XXI, explora uma técnica
que envolve todos os processos de produção das demais expressões artísticas
(Idem).
88
O cinema representa a memória de um povo. A memória, por sua vez, é uma coisa
viva. As imagens do cinema que existem sobre o passado são coisas que podem ser
revividas – quando falei da criança que se descobre no espelho – referia-me a uma
imagem real, mas ao mesmo tempo metafórico. De qualquer modo, a imagem
cinematográfica é fundamental, para a formação de um eu nacional. De um grupo de
indivíduos que se reconhecem como tendo algo forte de comum entre si e, que
pertença a todos eles. (GUERRA apud ALBINO, 2011).
Outro brasileiro, José Celso Martinez Corrêa, homem de teatro mais do que de
cinema, teve uma passagem pelo cinema moçambicano. Foi uma experiência
esporádica, curta, mas intensa. Ele e sua equipe chegaram a Moçambique com a
ideia de criar um circuito cinematográfico revolucionário. Esse projeto se inscrevia
na mais pura tradição do cinema de ação ou cinema de intervenção. Depois do
Brasil, Moçambique se prestava como terra de experimentação dessa estética
89
política.
De todos os cineastas estrangeiros que passaram pelo cinema moçambicano,
Licínio Azevedo 5 foi aquele que se tornou o mais moçambicano e o mais
visceralmente ligado culturalmente com este país da África, tanto que é citado
hoje como um dos grandes nomes do cinema moçambicano e africano.
Se Ruy Guerra costuma ser apresentado como o mais brasileiro do cinema
moçambicano, Licínio Azevedo é incontestavelmente o mais moçambicano e
africano dos cineastas brasileiros. A aventura africana de Licínio começa e se
limita a Moçambique, quando vai realizar o filme de ação Crossing the River, uma
coprodução com a Tanzânia.
As motivações da ida deste jornalista gaúcho a Maputo transbordam o estrito
quadro da investigação jornalística e se transforma numa prática do cinema
militante. Suas obras fílmicas exploram até hoje a temática das duas guerras
(Guerra de Descolonização e Guerra Civil Moçambicana) que marcaram a história
recente de Moçambique. Seus documentários mais atuais abordam, no estilo do
90
cinema direto, o tema da guerra civil pelo viés dos estragos e as consequências
que causou.
Predomina em sua obra uma preocupação estética com um tipo de cinema
mais engajado socialmente do que ideologicamente. Esta mudança pode
significar uma forma de desencantamento pós-colonial do cineasta e o fim das
grandes utopias nacionalistas que acompanharam os primeiros anos da
independência moçambicana. Mas indica, por outro lado, certo pragmatismo e
lucidez na forma como Licínio passou a administrar sua carreira, a partir dos anos
90, em Moçambique.
91
dialética do seu governo organiza-se sobre esta fronteira fixa. Esta nova lógica, ao
contrário, não coloca a divisão binária; suas fronteiras são sempre indefinidas,
flexíveis e em expansão. Apresenta-se, à primeira vista, como integradora e, em
seguida, impõe lógicas de diferenciação e de controle em seu espaço liso e
aberto. Esta lógica tem certamente raízes antigas, mas podemos pensar, também,
que se trata igualmente da lógica de poder mais difundida hoje em dia, em
particular depois do fim da guerra fria. Mas será que o caráter aberto da
hibridação suprime as diferenças entre os estratos culturais que se cruzam,
produzindo um pluralismo generalizado, ou será antes que ele apenas engendra
novas segmentações?
Com base nestes pressupostos e no que ao cinema diz respeito, é observável
uma mudança de postura em quase todos os cineastas que participaram dos
primeiros esforços de criação do cinema moçambicano, denotando o fim de uma
era marcada pelas utopias do engajamento ideológico. Com o incêndio que
destruiu, em 1987, aquilo que tinha sobrado do INC, é como se toda a memória
da década prodigiosa do cinema moçambicano também tivesse se volatilizado. A
principal explicação a este desencantamento dos cineastas poderá residir na
92
6
Capulana é o nome que se dá, em Moçambique, a um pano que, tradicionalmente, é usado pelas
mulheres para cingir o corpo, substituindo, às vezes, a saia, podendo ainda cobrir o tronco e a cabeça.
93
É nesta linha que se posiciona Stuart Hall quando interroga “por que o pós-
colonial é também um tempo de diferença? Que tipo de diferença é essa e quais
94
7
Camilo de Sousa nasceu em Lourenço Marques a 29 de Maio de 1953, onde fez os estudos
secundários. Sobrinho da poetisa Noémia de Sousa, aprendeu em casa a construir uma consciência
política e na rua que a cidade se demarcava consoante a cor da pele e a posição social. Guerrilheiro na
luta pela Independência de Moçambique, militante da FRELIMO, marcou-o profundamente o que veio
depois da guerra e que o leva a abandonar o partido. Em 1968, começou a interessar-se pela
fotografia, trabalhando nas Artes Gráficas e, posteriormente, como repórter fotográfico e redactor do
diário “O Jornal” publicado na então cidade de Lourenço Marques. Em 1972 refugiou-se na Bélgica,
onde obteve o estatuto de refugiado político junto às Nações Unidas (UNHCR). Em 1973 partiu para a
Tanzânia e juntou-se à Frente de Libertação de Moçambique, participando na luta pela Independência
de Moçambique. Depois da proclamação da Independência Nacional em 1975, trabalhou em diversos
projectos de carácter social e de comunicação na Província de Cabo Delgado, criando a primeira rede
95
96
9
Sol de Carvalho nasceu em 1953 em Moçambique, cresceu em Inhambane, ausentando-se para
estudar cinema em Portugal nos anos quentes de 1972 a 1974. Logo que se dá o 25 de Abril, e tendo
já abraçado a actividade política contra o regime de Oliveira Salazar, regressa ao país natal para se
juntar ao projecto independentista da Frelimo. Destacado como chefe do Serviço Nacional da Rádio
Moçambique, aí permanece até ser transferido para a revista Tempo em 1979, integrando a profícua
equipa de Mia Couto e Albino Magaia. Participa no projecto de concepção do Kuxa Kanema,
incompatibiliza-se com o Ministério e regressa a Tempo. Em 84, faz como 3º assistente, o primeiro
longa-metragem moçambicano coproduzido por Moçambique e a Jugoslávia ao que se seguem 56
edições do Kuxakanema. É em 1986 que regressa exclusivamente ao objecto de estudo, abraçando
definitivamente a carreira cinematográfica. Sol de Carvalho foi sócio fundador da produtora Ébano
(juntamente com Pedro Pimenta e Licínio Azevedo), da qual se desligou posteriormente para montar a
Promarte. As suas obras são conhecidas pelo cunho social, dedicando-se a temas como VIH/sida e
violência doméstica, entre outros. Adepto dos processos participativos, tem um gosto particular pelas
projecções junto das comunidades onde roda parte dos seus filmes (PEREIRA, 2011). Realizou mais de
20 filmes de que salientamos O Jardim do Outro Homem, A Janela, O Búzio, As Teias da Aranha, Não é
preciso empurrar (ficção), Bazaruto onde o céu tem mais cor, Ilha de Moçambique encontro de
culturas, Muhapiti Alima (ficção), Máscaras austrais, Empregadas domésticas, A herança da viúva
97
Rua”, “A Tempestade”, “Destorcido”, “Beat iT!”, “Marrabentando, “O Último Voo do Flamingo””. Editor
de ”Os Comprometidos”, uma série de 80 programas de televisão, de Rui Guerra, um dos maiores
cineastas contemporâneos do Brasil. Membro fundador da Coopimagem, empresa mista de produção
gráfica e cinematográfica, tendo trabalhado como criativo na concepção, maquetização de livros,
outdoors, folhetos e editor cinematográfico. Membro fundador da IRIS Imaginações, empresa
vocacionada para a produção de filmes e desenvolvimento de materiais de comunicação que visam
desenvolver habilidades para a vida. Diretor de atores e editor da primeira telenovela moçambicana,
“Não é preciso empurrar”. Concepção, edição, desenho e animação da primeira série de desenhos
animados em Moçambique, “Musculinho”, uma caricatura de um moçambicano que todos os dias tem
que inventar uma maneira de “desenrrascar a vida”. Compositor criativo gráfico, para aberturas e finais
de filmes incluindo cartazes de promoção. Compositor musical e efeitos especiais para trilhas sonoras
de diversos filmes. Concepção do programa de rádio: MozZzKITO!, um programa em direto, interativo
e de entretenimento sobre prevenção da malária. Editor criativo de jogos, programas e manuais que
integram o “Pacote Básico Habilidades para a Vida”, destinado a escolas primárias moçambicanas,
abrangendo 8.000 escolas, 40.000 professores e 2.000.000 de alunos. Diretor do NoTMoC, primeiro
jornal electrónico em Moçambique. Diretor criativo de um pacote de materiais para o combate à cólera,
malária e HIV/SIDA, no âmbito da emergência, concebidos para o UNICEF, nomeadamente folhetos e
spots de rádio. Disponível em: < https://sites.google.com/site/orlandomesquitalima/Home/versos-
musica>. Acessado em: 10 de julho de 2013.
98
Balsa Boieira (2008); Promesseiros de Joelhos (2008 – em edição); Nos Caminhos do Rei Salomão
(2009 – em edição). Disponível em: <http://www.blogdaluzia.com/2010/04/quem-e-chico-carneiro-
cineasta-e.html>.
13
Deve chamar-se a atenção que é mais fácil alcançar as audiências africanas com um filme do que
com um livro, dado que o letramento em África é muito baixo. “Em alguns países essa taxa não
ultrapassa os 15% (caso do Níger e Burkina Faso), noutros é de 30% a 35% e são poucos os países
africanos que atingem ou ultrapassam os 60%” (RAPAZOTE, 2013). Nessas condições, portanto, a
linguagem cinematográfica serve também para educar as pessoas, é uma forma de falar com elas, pois
se for apresentado um documentário a uma audiência facilmente se consegue colocar o público a
discutir um assunto. A verdade é que as pessoas interessam-se pelo cinema e pelo documentário
99
quando, de alguma forma, percebem que podem ver as suas vidas retratadas na tela e, quando assim
é, um cineasta consegue chegar a um público africano mais numeroso.
100
14
KUXA KANEMA: O Nascimento do Cinema. Documentário de Margarida Cardoso, Filmes do Tejo,
uma coprodução RTP (Rádio Televisão Portuguesa) – ARTE France – RTBF Televisão Belga, 52
minutos, cor, 2003).
101
O “Dockanema”
102
Considerações finais
103
104
105
106
Referências
MARTINEZ, José Celso Corrêa et al. Cinemação. São Paulo: Cine Olho Revista de
Cinema, 1980.
107
108
109
Resumo
O documentário A Batalha de Adwa, realizado pelo cineasta Haile Gerima, permite o acesso a um
fato da história etíope até então pouco conhecido pelo público brasileiro. Através de seu
documentário, o cineasta etíope faz uma releitura desse fato histórico, propondo-se a retraçar seus
aspectos marcantes e a entendê-los por meio de análise de fontes inovadoras, como entrevistas,
canções e material iconográfico. Como qualquer obra fílmica, essa é repleta de representações e
subjetividades que constituem os elementos necessários para a reconstituição de uma voz etíope
sobre a história da batalha.
Abstract
The documentary The Battle of Adwa held by the filmmaker Haile Gerima allows us to have access
to a fact of Ethiopian history until recently unknown by the Brazilian public. In this documentary, the
Ethiopian filmmaker reexamines this historical fact proposing to retrace its remarkable aspects and to
understand them through the analysis of innovative sources such as interviews, songs and
iconographic material. Like any other film, this documentary is full of representations and subjectivities
that constitute the principal elements for the reconstitution of an Ethiopian voice about the history of
110
“Você queria conhecer a história então porque não veio mais cedo? (...) Para
aprender a história deveria ter chegado mais cedo”.
Introdução
É com essa pergunta (e resposta) que uma voz over nos interpela logo no início
da película, nos deixando descobrir, em imagem de pano de fundo, as colinas de
Adwa, lugar dos combates. “Para conhecer a história, é preciso chegar cedo...”. A
forma como a voz misteriosa se dirige a nós poderia ser interpretada como uma
crítica (e uma autocrítica) sobre o nosso desinteresse em relação a certos
aspectos da história da África, nossa “demora” em valorizar as diversas narrativas
históricas africanas. Haile Gerima (n. 1946), diretor do documentário, explicou ao
Washington Post que o documentário sobre Adwa1 “é um documentário da alma e
do coração, um antídoto explícito aos registros eurocêntricos daqueles tempos -
ou à falta desses registros.” 2 Gerima - apesar de ter sempre ouvido falar da
Batalha de Adwa na sua infância - decidiu se aproximar das vozes etíopes que
1
A batalha de Adwa ocorreu em março de 1896, num momento em que os italianos queriam
concretizar seu projeto de colonização em África. O ataque italiano se transformou numa derrota em
poucos dias e do lado etíope o imperador Menelik II e a Imperatriz Tait se tornaram heróis da
resistência e vitória etíope. Os imperadores chegaram a estar presentes no campo de batalha e outros
dignatários políticos etíopes colaboraram com soldados e munições para garantir a vitória. Quando
houve a comemoração do centenário, em 1996, essa vitória etíope contra o invasor passou a ser
chamada de vitória Africana. Maiores informações estão em interessantes publicações; Richard
Pankhurst (1987); Metaferia Getachew e Paulos Milkias (2005) e Raymond Jonas (2011).
2
“Adwa overcomes all the obstacles”. Entrevista realizada por Desson Howe. Novembro de 1999.
https://www.washingtonpost.com/archive/lifestyle/1999/11/19/adwa-overcomes-all-
obstacles/611e77ec-60d1-4cd8-ac37-6ead6580db96/?utm_term=.31c3304c00b0
111
3
Citado por Stephen H. Webb na resenha do livro The Battle of Adwa: an African victory and its
aftermath. Disponível em:
http://www.booksandculture.com/articles/webexclusives/2011/november/battleadwa.html
112
o seu adversário que imediatamente apontou sua lança que entrou pela sua boca e
perfurou sua garganta. O animal morreu instantaneamente”4.
Na narrativa acima mencionada, que relação existe entre esse dragão, St.
Ghiorgis (nome de São Jorge na Etiópia), e a Batalha de Adwa? Uma primeira
resposta reside na dimensão religiosa e sagrada inerente à história da batalha e da
Etiópia, já que St. Ghiorgis foi a proteção divina que acompanhou e protegeu os
etíopes durante o conflito, garantindo assim a segurança de suas populações e
das terras contra o inimigo europeu. St. Ghiorgis aparece em muitas pinturas que
narram a batalha 5 . Podemos observar na maioria dos quadros a presença de
símbolos consagrados (como a bandeira, as cores verde, amarela e vermelha e St.
Ghiorgis, que se tornou ícone da batalha e um personagem central deste fato
histórico). Essa dimensão é também destacada pelo cineasta e os membros do
clérigo etíope entrevistados, que ressaltam a proteção de St. Ghiorgis no
momento do conflito. Ter do seu lado a participação desse santo reforça a
grandeza da nação – escolhida por Deus6 - então em construção.
Várias pinturas7 são apresentadas no documentário de Haile Gerima nas quais,
podemos ver St. Ghiorghis montado no seu cavalo branco, indo enfrentar o
4
Voz off ouvida no documentário.
5
Exemplo disponível em: https://theafricacollective.files.wordpress.com/2014/06/adwa-loc.jpg
6
Se referindo a um discurso de Menelik II em que o governante apresenta a Etiópia como a nação
escolhida por Deus.
7
As pinturas são parecidas com a que consta no link da nota de roda pé 6. Por não ter obtidos os
direitos autorais da imagem, não foi possível inserir nenhuma pintura no presente artigo.
113
do seu país vinculada à história colonial do continente africano foi o que atraiu
nossa atenção. Nosso interesse em entender o discurso e as representações de
Haile Gerima, sua mensagem em relação a esse fato histórico, o uso de fontes
orais e visuais ao longo do filme, o trabalho sobre a questão da memória e
símbolos nacionais são outras razões que explicam a escolha desse
documentário.
O artigo visa, então, entender quais são as representações que Haile Gerima
tem da batalha e como as histórias recolhidas por ele participam da sua visão da
identidade nacional. Para coletar tais histórias, o diretor se baseia nas memórias
dos mais velhos, tendo como fio condutor uma memória coletiva que compartilha
diversos símbolos nacionais. Ao abordar o tema emblemático de uma vitória
africana sobre o poder colonial - ligado à história nacional e criação do estado
etíope – procuramos encontrar o olhar e a versão do cineasta como etíope e
também como profissional, com suas escolhas técnicas e estéticas (lugares de
memória, iconografia e entrevistas), seu discurso. Por fim, procuramos entender
como o documentário aqui analisado nos ajuda a repensar a Batalha de Adwa,
sua historicidade na relação entre realidade e representação.
8
O que é um filme africano? É uma das perguntas mais recorrentes em relação aos filmes produzidos
por cineastas do continente africano. A definição de Sarah Maldoror talvez uma das mais pertinentes.
114
questão política crucial que interfere até na maneira de filmar dos cineastas que
perdem poder na escolha das imagens. A questão financeira, para muitos
cineastas africanos, é ainda o maior obstáculo para que a produção de filmes
africanos aumente de maneira significativa. Logo após as independências (a
maioria em 1960), alguns cineastas africanos vão se apossar do cinema e produzir
suas próprias imagens e filmes. Por mais que o cinema tenha sido enxergado
como uma invenção ocidental, o poder das imagens e das representações chama
a atenção da primeira geração de cineastas africanos, simbolizada pelo trabalho
de Sembène Ousmane (1923-2007).
Gerima, por sua vez, garante sua liberdade na escolha das imagens e critica o
caráter autoritário do sistema hollywoodiano, insistindo na importância da
independência para fazer um filme do roteiro até a sua distribuição. Isso nos
permite entender quanto os dados sobre contexto e condições de montagem e
produção de um filme são relevantes na análise do filme como documento
histórico. O cineasta também montou a Mypheduh Films, sua própria distribuidora
e é membro da L.A Rebellion (final dos anos 60), movimento conhecido também
como Los Angeles School of Black Filmmakers.
A cineasta considera que os filmes africanos só poderão ser chamados assim quando forem feitos
para um público africano. (Entrevista realizada com Sarah Maldoror, Paris, 2016). Sobre essa temática,
vale aprofundar a questão a partir dos artigos organizados por Alessandra Meleiro em Cinema no
mundo. África: Indústria, política e Mercado (2007). A cineasta considera que os filmes africanos só
poderão ser chamados assim quando serão feitos para um público africano. (Entrevista realizada com
Sarah Maldoror, Paris, 2016). Sobre essa temática, vale aprofundar a questão a partir dos artigos
organizados por Alessandra Meleiro em Cinema no mundo. África: Indústria, política e Mercado (2007).
115
negros de resistência - que existiam na época em que ele se mudou para os EUA
- foram cruciais nas suas escolhas. Gerima cresceu valorizando a história dos
“outros” - americana e europeia - e não a sua, sendo influenciado por uma visão
dos mais velhos, a tradição, a classe, o feudalismo como inimigos da Etiópia.
Durante a realização do filme, ele lembra que perguntava ao seu pai se os etíopes
haviam realmente vencido os europeus ou se isso era um mito. “A luta africana
americana me ressuscitou” afirma o professor etíope em entrevista, assumindo
sua militância pan-africanista construída nessa experiência migratória e
trabalhando na produção de imagens feitas por africanos para um público negro.
O cineasta afirma ainda pertencer não só à Etiópia mas também à América negra9.
A escolha do gênero documentário - o cineasta explica que se trata ao mesmo
tempo de um documentário e drama histórico - parece representar uma
possibilidade de pesquisar, construir uma narrativa própria e ao mesmo tempo
usar as fontes existentes recorrendo ao ofício de historiador para essa atividade.
Podemos nos perguntar aqui se o cineasta etíope considerou que o documentário
o auxiliaria com maior eficiência do que uma ficção. Ao situar o filme entre o
documentário e o drama histórico, o cineasta parece procurar uma forma de
9
Agradeço ao revisor do artigo pela referência indicada. Cf. MARCORELLES (1984).
116
117
118
119
uma cantora cega entrega sua voz para homenagear os que combateram na
batalha. Essas duas “testemunhas” cegas são etíopes – que fazem parte de duas
gerações diferentes – e, mesmo não tendo acesso às pinturas dos artistas
etíopes, participam, à sua maneira, de uma leitura sobre a batalha.
Gerima explica que faz filmes para exorcizar o passado, encontrar sua voz,
contar histórias. Para o diretor, as histórias fazem parte da alma e começam na
infância. Foi assim que, quando era criança, seu pai e sua avó contaram a batalha
para ele. Sua avó o teria influenciado porque ela era uma contadora de histórias.
“Adwa constituía um tipo de pano de fundo da minha realidade (...). Procurei
apenas desenterrar uma memória e a essência de Adwa no tecido da sociedade
etíope, mas não queria uma pessoa afirmando fatos”.10
A memória é ao mesmo tempo social e espelho de aspectos da realidade.
Todo o processo de recriação, reconstrução e transmissão “daquilo que
aconteceu” é dinâmico. Móses Finley (1983, p. 32) afirma que “a memória coletiva
é o resultado da transmissão a um grande número de indivíduos das lembranças
“Não existe, no sentindo estrito da palavra, memória coletiva. Essa noção pertence à
mesma família falaciosa que a da culpabilidade coletiva. O que existe é a instrução
coletiva. Toda memória é individual e não pode ser reproduzida, ela morre com cada
10
Notas esparsas de diversas entrevistas do Haile Gerima. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=p4ZmNclDqFw>. Acesso em: jul. 2016.
120
121
Isabel, João (2003, p. 80) declara que “A comemoração exige uma distância
pacificadora das emoções, das tensões, dos conflitos que a memória da guerra
suscita em nós” afirma Isabel João (JOÃO, 2003:80). E se existem discordâncias,
elas foram omitidas para dar lugar ao brilho da comemoração. A segunda parte do
documentário consiste na filmagem da celebração realizada por ocasião dos 100
anos da batalha na capital etíope. No decorrer das comemorações, diversos
líderes políticos africanos estavam presentes e a filmagem nos leva a refletir sobre
11
Fala do cineasta que aparece no documentário durante a viagem para a Itália.
122
“Apresentar a Batalha de Adwa (de maneira insistente) como uma vitória africana
12
Triulzi, Alessandro. Adwa: From monument to document. Disponível em:
http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/1353294032000074106?journalCode=cmit20.
13
Today's insistence on Adwa as an African victory appears to be the dominant historiographical
representation. The different interpretations all contain elements of truth, yet all, if frozen into
123
historiographical truths, become embarrassing to the historian who needs documents, rather than
monuments, as tools of analysis. To many historians both in Italy and Ethiopia, Adwa's respective
symbolism of victory/defeat has been transformed into an icon, an historiographical monument,
unassailable and immovable. The centenary of Adwa allows us to reconsider historical events of a
shared past as critical documents and biased representations reflecting their own culture and time. This
article attempts to deconstruct the historiographical monument of Adwa in Italian society so as to
transmit such a heavily coded event to the critical examination of future historians in both Italy and
Ethiopia.
124
Notas conclusivas
125
Referências Bibliográficas
EJIGAYEHU, Shibabaw (GIGI). Adwa. Album: Gigi, Palm Pictures. 2001. (canção
em homenagem aos soldados etíopes que morreram na Batalha de Adwa).
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=BFQVcYjARdQ>. Acesso em:
15 set. 2014.
HENZE, P.B. Layers of Time: A History of Ethiopia, London: Hurst & Co, 2004.
HOWE, Denson. Entrevista com Haile Gerima. Adwa overcomes all the obstacles.
nov., 1999. Disponível em:
126
<https://www.washingtonpost.com/archive/lifestyle/1999/11/19/adwa-overcomes-
all-obstacles/611e77ec-60d1-4cd8-ac37-
6ead6580db96/?utm_term=.31c3304c00b0>. Acesso em: 23 abr. 2014.
127
128
Roberta Veiga1
1
Roberta Veiga é doutora em Comunicação Social pela FAFICH-UFMG;
Professora adjunta do Dep. de Comunicação e do PPGCOM na mesma instituição;
Editora da Revista Devires: Cinema e Humanidades; Pesquisadora do grupo
Poéticas da Experiência (UFMG); Secretária acadêmica da SOCINE e integrante do
comitê consultivo do forumdoc.bh (Festival de Cinema Documentário e Etnográfico
de Belo Horizonte).
e-mail: roveigadevolta@gmail.com
129
Resumo
No filme Bamako (2006), o diretor mauritano Abderrahmane Sissako coloca lado a lado, num
tribunal imaginário, o povo africano (expropriado de suas formas de vida) e as grandes corporações
financeiras mundiais. Assim, permite ao cinema escrever a história a contrapelo. No terreno das ficções
cinematográficas, atravessada pelo real, impregnada pelo pó da terra e por rostos negros, num mundo
dividido e injusto, onde só os donos do capital têm voz, reescrever a história é conceder ao outro o
tempo da imagem e do verbo. É, portanto, reinventar a política.
Abstract
The film Bamako (2006), by the Mauritanian director Abderrahmane Sissako, places the African
people, dispossessed of their ways of life, and the world's major financial corporations, side by side in
an imaginary court that enables the film to rewrite history against the grain. In a cinematographic fiction
that is crossed by the real and impregnated by dust from the ground and the black people who lives in
a divided and unjust world, where only the capital owners have a voice, rewriting history is to give to the
other the time of image and of the word. This, thus, amounts to reinventing politics altogether.
130
Prólogo
***
131
comuns, pelo pó da terra e a miséria vivida, Sissako coloca lado a lado num
tribunal de júri por ele arquitetado um povo negro, africano, expropriado de suas
riquezas, de sua vida, e os donos do capital, as grandes corporações financeiras
mundiais. Num quintal de chão batido de um espaço comunitário, na cidade
africana de Bamako, capital do Mali, é constituída uma corte cuja finalidade é
julgar a responsabilidade do Banco Mundial e do FMI na propagação e
manutenção do profundo estado de pobreza de países africanos. Em Bamako,
Sissako cria um espaço não só discursivo e/ou performativo, mas também
sensível, pela materialidade da imagem, a uma comunidade malinesa para que, no
embate público e jurídico com um sistema de exploração de recursos e mão de
obra, o cinema possa figurar o povo. No terreno fértil da imaginação ou das
invenções cinematográficas, num mundo dividido e injusto (o da pequena e
precária cidade de Bento Rodrigues e de Bamako) onde só os donos do capital
têm voz e aparência, enquanto os excluídos do mapa geopolítico-capitalístico
vivem a miséria e a injustiça, expropriados de sua terra e seu trabalho, apartados
e apagados historicamente, reescrever a história1 é conceder ao outro que está à
margem o tempo da imagem e do verbo, portanto, o tempo da invenção política.
1
A reescrita da história a contrapelo é para Benjamin escutar os vencidos. Segundo Lowy, como um
teórico do materialismo histórico, a tarefa de Benjamin era a de “‘quebrar’, de fazer explodir, de
destruir o fio conformista da continuidade histórica e cultural. O materialista histórico deve, portanto,
desconfiar dos pretensos ‘tesouros culturais’. Para ele, estes não são mais do que restos mortais
provocados pelos vencedores na procissão triunfal, despojos que tem por função confirmar, ilustrar e
validar a superioridade dos poderosos”. (LOWY, 2011, p. 20).
132
A partir daí, é possível estar mais próximo da intricada relação entre a política
como potência e as potências do cinema. Através de Bamako, desejamos visar o
cinema como um trabalho histórico que, por conceder duração à experiência da
palavra e da visibilidade diferida (não só no tribunal, mas nos portrays e
micronarrativas que irrompem ao longo do filme), é capaz de criar um dispositivo
2
“Mas inversamente ‘povo’ é o nome, a forma de subjetivação, desse dano imemorial e sempre atual
pelo qual a ordem social se simboliza rejeitando a maioria dos seres falantes para a noite do silêncio ou
o barulho animal das vozes que exprimem satisfação ou sofrimento. Isso porque, antes das dívidas
que colocam as pessoas de nada na dependência dos oligarcas, há a distribuição simbólica dos
corpos, que as divide em duas categorias: aqueles a quem se vê e a quem não se vê, os de quem há
um logos — uma palavra memorial, uma contagem a manter —, e aqueles acerca dos quais não há
Logos, os que falam realmente e aqueles cuja voz, para exprimir prazer e dor, apenas imita a voz
articulada”. (RANCIÈRE, 1996, p. 36).
133
3
Uso aqui um jogo de palavras, a cena-corte, que designa a corte, sinônimo de tribunal, e também o
ato de cortar, separar, cindir, que é constituinte da forma política em jogo no filme.
4 “[...] com Rancière, a política é justamente o que se contrapõe à ordem policial, na medida em que
exige um novo ordenamento, uma nova cena a partir dos dissensos que ela instaura. Se a polícia é a
ordem que determina a função e o posicionamento dos sujeitos em determinado espaço sensível, a
política é o que exige a reconfiguração do espaço para que ali novos posicionamentos, novas funções
e outros sujeitos políticos possam existir”. (BRASIL, 2004, p. 5).
134
lugares de forma a oferecer no filme uma partilha do sensível. Tal diferença se faz
ver no próprio dispositivo cinematográfico, na inteireza e complexidade da cena-
corte: tanto nos atos de fala das testemunhas e seus embates quanto nos
deslocamentos, desvios, atravessamentos e desdobramentos que a encenação
do tribunal sofre pelos portrays e micronarrativas, que fazem oscilar ficção e
realidade. Finalmente, no terceiro tomo, buscamos compreender o cinema como
lugar de invenção histórica e política que, em sua dimensão estética, partindo da
cisão imposta pelo status quo geopolítico, apresenta um “mundo em vias de se
constituir a partir da subjetivação dos sem-parcela, sujeitos políticos com os quais
ainda não se contava” (BRASIL, 2004, p. 29), apresenta um povo por vir.
Dispositivo quintal
135
136
espacial” desse filme. Trata-se de uma reconexão com a terra original que, em certo
sentido, diz respeito a uma operação de intensa territorialidade. (CESAR, 2013, p.
582).
137
138
as histórias que ali têm lugar ou dali se avizinham, e, até mesmo, pela atenção à
audiência de dentro do julgamento que muitas vezes é destacada em close-ups
esteticamente primorosos. Nesses closes – em que muitas vezes o rosto é visto
ocupando uma parte do quadro enquanto a outra é tomada pelos panos que,
dependurados, multiplicam-se pelo quintal – os olhares atentos, ora curiosos ou
esperançosos, ora incrédulos ou incólumes, figuram o povo africano em sua
indumentária típica (os turbantes, os véus de pano, as estampas coloridas) e em
sua expressão. São esses closes e as cenas da vida ordinária que descentram a
cena-corte ao durarem e irromperem como experiência do povo, reafirmando um
realismo cinematográfico que denuncia, por contraponto, o artificialismo do
julgamento, ou seja, a possibilidade que, de fato, um conflito jurídico-político de
proporções geopolíticas globais tenha lugar naquele espaço precário, povoado
por homens, mulheres, crianças, animais, pó e milhares de mosquitos. Trata-se de
um descentramento da cena-corte que a afirma em sua dimensão surreal: a
presença do magistrado num quintal, que abriga o cenário e o teatro armado para
a magna corte, com toda sua pompa e circunstância, com o peso histórico e
político que tal feito teria. Além disso, toda a encenação jurídica que vemos é,
139
privatização desenfreada que retirou o Mali das mãos dos africanos, que
perderam autonomia e sustentabilidade; e o modo como tudo isso culmina num
neocolonialismo, em função do qual o povo africano se mantém aprisionado na
pobreza sem meios próprios para o desenvolvimento, pertencendo a um sistema
sem dele se beneficiar. Sem poder usufruir dos bens que produz, sem poder de
venda e de consumo, a participação do Mali (assim como de muitos outros países
da África que estão entre os mais pobres do mundo) no sistema é como o de uma
colônia que mendiga os bens produzidos aqui e fora, participando de forma
marginal e espúria de um capitalismo que a exclui. Não por acaso, é recorrente no
discurso das testemunhas a necessidade imperiosa de conscientizar a população
malinesa de sua posição no intuito de romper um sistema viciado. Em seu
testemunho, a escritora Aminata Dramane Traoré, ex-Ministra da Cultura do Mali,
afirma:
Tudo hoje pode ser vendido e comprado. A lição do ocidente é pague ou morra [...].
A África precisa se recompor. Embarcamos com o Ocidente num ideal de sociedade
que não podemos atingir. Nós não teríamos que vender nossos serviços públicos.
Teríamos podido desenvolver um sistema de controle de gestão, exercer a pressão
140
responde: “vocês sempre dizem isso”, enquanto procura a marca Gucci nos
óculos e resmunga que ela não está ali. Posteriormente, vemos o europeu de beca
preta de longas mangas a suar e exibir os óculos escuros em meio ao calor
intenso e ao pó da terra que sobe durante a sessão no tribunal de Bamako.
Ironicamente, ao inquirir a Aminata, M. Rappaport insiste em afirmar que, através
da globalização, vivemos num mundo irremediavelmente aberto. Ao que a
testemunha responde: “nós não vivemos num mundo aberto Monsieur Rappaport
[...]. O mundo é certamente aberto para os brancos, mas não para os negros”.
Cada uma a sua maneira, as testemunhas demonstram em seus argumentos
que o neocolonialismo, imposto pela dívida externa, pela privatização desenfreada
e pela presença das multinacionais, é uma forma de colonização do próprio
imaginário dos africanos, que já não se sentem capazes de promover o
desenvolvimento do país por meios próprios. Deflagra-se uma espécie de
colonização moral do povo. De certo modo, M. Rappaport se apoia nesse
argumento da incapacidade para desqualificar a fala da escritora, que, segundo
ele, arroga-se de ser especialista, mas não é capaz de ser precisa, objetiva, e nem
de oferecer propostas para o desenvolvimento do país. Ao dizer que Aminata só
141
tem nome.
Somos nós que damos tudo para América do Norte. E ainda na violação do
imaginário da pequena consciência que me resta e que eu posso chamar de eu, eles
vem me dizer que o negro é preguiçoso que ele não pode se desenvolver de forma
independente. (depoimento de Keita).
142
Cena cindida
143
Bamba que fala em seu próprio idioma antes da sua vez, pois não pode guardar
as palavras que “vêm do coração” e é interrompido pelo juiz; o professor com seu
testemunho mudo; a mulher que agride o advogado negro que nada sabe da vida
do emigrante que passou fome no deserto; e novamente Bamba que, como diz
César, retorna para retomar a palavra que lhe fora tirada:
Ele entoa um canto em sénoufo que, sem tradução, ressoa no pátio/tribunal como
uma mensagem ancestral, intraduzível mas (ou justamente por isso) compreendida
por todos. Anunciado e negado, este depoimento afirma a dimensão política da
cultura local e da tradição, sempre ameaçada de desaparecer mas que, como
vagalume, resiste em lampejos fulgurantes (DIDI-HUBERMAN, 2011). Através de
Zegué Bamba, talvez o personagem mais vigoroso do filme, Abderrahmane Sissako
demonstra, finalmente, que o essencial é reconhecer a potência política da fala
enquanto um ato. (CESAR, 2013, p. 587).
144
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147
Cinema partilha
148
jurídica tradicional, na qual pares opostos devem chegar a um termo médio, mas
por uma fratura antropológica sempre aberta e sempre tamponada que se dá a ver
no gesto estético do cinema. É porque o dispositivo, em sua dupla face, expõe um
dano fundamental, que ao recolocar a distância constituinte da relação entre
mundos, não pretende solucioná-la, mas fazer participar da cena, tomar a palavra
e exibir corpos e tradições de sujeitos esquecidos e apagados. Essa fratura, em
sua natureza antropológica, remete à impossibilidade da igualdade entre todos,
própria à diferença das culturas, das sociedades, das tradições, enfim, das formas
de vida que não atribuem o mesmo sentido, portanto os mesmos valores e
crenças, às mesmas coisas. Portanto, em Bamako, a fratura surge não apenas
onde a língua ou os costumes são outros, mas onde a globalização com seus
poderes internacionais tentou igualar os mundos, desconhecendo as diferenças
que os separam, ao mesmo tempo em que os cindiu por outra via, aquela que
coloca de um lado a fome e de outro o capital. Segundo Tejumola Olaniyan,
professor africano da universidade de Winsconsin, essa diferença se situa entre
ration and rationality (ração – porção, partilha – e racionalidade). Ração e
racionalidade são mundos incomensuráveis, um é fome, o pedaço de um mundo
149
concreto, que sobra, na voz do velho ancião negro que quebra o protocolo e
afirma a tradição ali. Sem expor misérias em melodramas, a simples mistura da
vida e da corte é suficiente para fazer o espectador duvidar, deflagrar a
impossibilidade de que a fome se vá nos atos de fala, a impossibilidade de que
algo tão primitivo seja erradicado na lei, que, nas palavras de Olaniyan, nada
destrói apenas conserva. O dispositivo é forte e potente porque guarda seu
reverso, expõe a fratura fingindo expor a sutura. No filme, não vemos só a cena-
corte, a vemos duplamente: o povo de Bamako vê o tribunal, e nós o vemos
vendo e ouvindo, e esse olhares também dizem. Vemos a duração de cenas
anódinas, as performances finais dos que advogam contra as injustiças, o choro
de Mèle, o velório de Chaka, a porta do quintal entre aberta, tudo, sobre a mesma
ambiência empoeirada, cenas feitas de terra, de pó, de barro. A vida, o julgamento
e a morte estão ali igualmente em tons de ocre, marrom, bege alaranjado, bege
sujo, bege pobre. Mas ainda assim, vemos mais, vemos mundos diferentes,
tempos diferentes, vemos o povo.
Referências
DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
150
OLANIYAN, Tejumola. “Of Rations and Rationalities: The World Bank, African
Hunger, and Abderrahmane Sissako's Bamako”. The Global South, Indiana Uni.
Press, v. 2, n. 2, 2008.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: Ed. 34,
2005.
151
1
Jusciele Conceição Almeida de Oliveira é Doutoranda do Centro de Investigação
em Artes e Comunicação da Universidade do Algarve-CIAC/Ualg, em
Faro/Portugal. Bolsista do Programa Doutorado Pleno no Exterior da CAPES, proc.
nº 0654/14-0.
e-mail: jusciele@gmail.com
152
Resumo
O trabalho parte de uma revisão teórica do conceito de autor e da “ideia de autoria”, tal como foi
transposta pelas instâncias da teoria acadêmica, crítica cultural, artística e cinematográfica, por alguns
estudiosos no campo das artes e dos cinemas africanos, para, em seguida, examinar os modos como
ela é assumida, negociada, e afirmada e/ou refutada nos filmes do bissau-guineense Flora Gomes,
ressaltando seu estilo e algumas marcas autorais iniciais. Informa-se também que o presente texto faz
parte do projeto de doutorado, que se encontra em fase de escrita da tese.
Abstract
This essay starts off with a theoretical review of the notions of “author” and “authorship” as
reflected by academic theory and cultural, artistic and film criticism by scholars of African arts and
cinema. The notions of “author” and “authorship” are used in order to examine the ways in which they
are assumed, negotiated and affirmed and/or refuted in the films by Bissau-Guinean Flora Gomes,
highlighting his style and some of the early authorship traits. This essay is part of a doctoral dissertation
currently in progress.
153
“Isso é muito importante, o que eu digo, eu não quero ter um mundo de uma cor só.
Eu gosto muito do arco-íris, a diversidade das cores. Eu acho que é isso que faz o
mundo cada vez mais bonito. Então, nos filmes que eu faço, eu tenho um objetivo a
atingir: encontrar um espaço, sem querer matar o outro que lá está” Flora Gomes (in:
OLIVEIRA; ZENUN, 2016: 325).
154
livro Flora Gomes: o cineasta visionário, com textos críticos e biográficos sobre a
vida e os filmes de Gomes. Na obra, há destaque para o filme Nha fala (2002),
visto que dos quatros artigos publicados três são dedicados à comédia musical,
bem como para a história de vida do realizador, com entrevistas e textos
biográficos, do qual destacam-se dois. Em primeiro lugar, “África que ri e sonha: a
Guiné-Bissau de Flora Gomes” dos professores de Estudos africanos, lusófonos e
francófonos da Universidade de Michigan/ Estados Unidos, Fernando Arenas e
Frieda Ekotto, que relaciona as temáticas dos filmes com a vivência do realizador,
demonstrando como a vida e obra estão entrelaçados. Já o texto do professor de
história e estudos africanos do Rhode Island College dos Estados Unidos, Peter
Karibe Mendy, “Florentino ‘Flora’ Gomes: contexto, desafios e sucessos de um
ativista cinemático”, faz uma relação entre a vida biográfica de Gomes e os
momentos políticos e sociais do mundo, da África e da Guiné-Bissau. Assim, trarei
à cena alguns fatos biográficos e temáticos do cineasta Flora Gomes, segundo as
informações dos dois textos destacados, e, quando possível, cruzando
informações também com o texto de Filomena Embalo, “O cinema da Guiné-
Bissau”, também disponível no citado livro.
155
numa nova década, especificamente no último dia desta, Peter Mendy destaca,
como marcos do ano de 1949, a criação da Organização do Tratado do Atlântico
Norte – OTAN, a proclamação da República Popular da China e a
institucionalização do sistema racista do Apartheid, na África do Sul. Ressalta
também que foi a década do início do conflito entre Estados unidos e a União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS); e igualmente começou o processo de
descolonização na Ásia, demonstrando como o menino “Flora encontrou um
mundo dicotomizado entre colonizador e colonizado; civilizado e gentio, definido
pela dinâmica da dominação e da resistência” (MENDY, 2015: 111).
Por outro lado, salienta que é no ano de 1949 que Kwame Nkrumah funda a
Convenção do Partido Popular (CPP), através da qual em 6 de março de 1957
Gana conseguirá sua independência. É o ano também da conscientização de Fidel
Castro sobre a situação de seu país. A Cuba revolucionária teve um papel de
destaque na libertação da Guiné Portuguesa, com a entrega de “equipamentos
militar e apoio às iniciativas político-diplomáticas, mas também a oferta de
oportunidades de educação e formação aos bissau-guineenses” (MENDY, 2015:
113), como Florentino Gomes, que em 1967, com 17 anos de idade, parte para o
1
“O ICAIC foi criado apenas 83 dias após a Revolução, pela Lei 169, de 24 de março de 1959. Alfredo
Guevara dirigiu o Instituto até 1982 e depois de um mandado exercido pelo cineasta Julio García
Espinosa, desse ano até 1991, voltou a dirigi-lo entre 1992 e 2000. A prioridade que o novo governo
deu à criação de um instituto de cinema, era explicada com o argumento de que a sétima arte era um
veículo ímpar de propaganda ideológica ‘da Revolução’ porque divulgava didaticamente, para as
massas, as novas ideias e tinha um eficaz – e universal – poder transformador” (VILLAÇA, 2010:44).
156
157
158
Amanhã lundju (Amanhã longe), na qual quando nasce uma criança uma árvore
deve-se ser plantada, visto que o espírito dessa criança estará ligado a este pau
por toda a sua vida. Ao dar à luz aos gêmeos Hami e Du (Ramiro Naka) sua mãe
planta duas árvores. Hami, que fica na tabanka, começa a derrubar as árvores
para fazer carvão e por isso morre, entretanto o Pau de sangue que morre é o de
Du, que partiu. Encena-se o retorno de Du para a realização do ritual fúnebre do
seu irmão Hami, como também destacar-se-á a preocupação de Gomes com as
questões ambientais.
O filme Nha fala narra a história da protagonista Vita, uma jovem guineense que
ganha bolsa de estudos, na França, a qual carrega uma tradição familiar, que
proíbe que as mulheres de sua família cantem; caso seja descumprida, as
mulheres de sua família poderão morrer. Todavia, em Paris, Vita conhece Pierre,
um jovem e talentoso músico por quem se apaixona. Esse amor a faz cantar. Mas,
temendo que a mãe descubra que quebrou a tradição e a promessa, Vita decide
voltar a casa… para morrer! Com a ajuda de Pierre e Yano, Vita encena a sua
própria morte e o seu posterior renascimento.
Seu último longa-metragem, Republica di mininus é uma coprodução da
159
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A fortuna crítica sobre os filmes de Flora Gomes está espalhada por muitos
países. Entre eles destacam-se Brasil, Guiné-Bissau, Estados Unidos, Alemanha,
Inglaterra, Portugal. Em pesquisas realizadas em acervos físicos e virtuais,
percebe-se que, dos países africanos de língua oficial portuguesa, Flora Gomes é
um dos grandes cineastas de destaque, com muitos trabalhos acadêmicos
publicados sobre seus filmes, com entrevistas publicadas em português do Brasil
165
2
O texto “O filme Nha fala: musical guineense de múltiplos trânsitos” de autoria de Jusciele Oliveira e
Fátima Ribeiro, desdobrou-se na pesquisa de mestrado. E o texto supracitado de Denise Costa.
166
documentaristas:
Se Flora Gomes inicia seu trabalho com o cinema documentário, creio, no entanto,
que separar sua filmografia entre cinema documentário e cinema ficcional não é a
melhor maneira de pensá-lo. De fato há com Mortu Nega (1987), seu primeiro longa,
e com Olhos Azuis de Yonta (1992) algo de novo em seu cinema. Mas não uma
ruptura (COSTA, 2012: 226).
Ainda de acordo com Denise Costa, no filme Olhos azuis de Yonta, o “cineasta
recorre a uma ironia que confunde os mais desavisados” (2012: 227), entretanto o
caráter irônico aparece em todos os filmes de Gomes, fazendo parte do seu estilo.
Para Costa, referindo-se aos filmes de 1987 e 1991, são “sempre perpassados por
pitadas de distopias contemporaneamente construídas que revelam o cinema
nada ingênuo do cineasta” (2012: 232).
O investigador uruguaio residente nos Estados Unidos Fernando Arenas, no
capítulo “África lusófona nas telas: depois da utopia e antes do fim da esperança”,
do livro África lusófona: além da independência, expõe o levantamento de
produções de filmes produzidos no continente africano, com especial destaque
para os países africanos de língua oficial portuguesa, ao mesmo tempo
“Ambos rótulos descrevem adequadamente Flora Gomes, que tenta equilibrar seu
compromisso com as culturas nativas de seu país e manter uma visão crítica dos
eventos atuais, assim como das tendências introduzidas pela globalização e seus
impactos, não apenas na sociedade guineense, mas também nas sociedades
africanas de forma geral” (ARENAS, 2017: 22).
167
168
169
3
No filme Nha fala, há também o francês como idioma, quando a personagem mora em Paris. E o
documentário As duas faces da guerra tem como idioma também o português de Portugal.
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também não são reconhecidas historicamente, pois muitas participaram das lutas
de independência e ganharam prestígio e fama pela sua bravura; contudo
continuam esquecidas nos livros, como Titina (Ernestina) Silá que “é considerada
uma heroína da luta nacionalista e uma mártir da guerra colonial, durante a qual
morreu, no campo de batalha, lutando contra o exército português” dez dias
depois do assassinato de Cabral, também assassinada numa emboscada
(BORGES, 2007: 79).
O silenciamento, em geral, da mulher africana e da bissau-guineense em
particular, faz com que o cineasta ressalte a mulher nos seus filmes, restaurando-
lhes a voz. No filme Mortu nega a personagem Diminga é, literalmente, uma
guerreira, que ajuda os companheiros de luta a carregar armamento para outros
sítios, na guerra colonial, sendo responsável pela plantação e pelas tarefas
domésticas; Yonta (Olhos azuis de Yonta) é o símbolo da beleza africana, que
trabalha e luta pelos seus ideais no dia-a-dia; as várias mulheres que movimentam
a tabanka Amanha Lundju (Po di sangui), especialmente a mãe dos gêmeos (Homi
e Du), que resolve não cumprir a tradição e sacrificar uma criança; Vita (Nha fala)
ganha uma bolsa de estudos para estudar na França, trabalha fora de casa como
172
173
da tradição imutável que deve ser respeitada e vista como uma peça de museu,
inerte” (TAVARES, 2013: 469).
Murphy e Williams concluem que, para Gomes “modernidade e tradição são
inseparáveis 4 ” (2007: 141) e esta relação estará presente principalmente nos
filmes Mortu nega, Po di sangui e Nha fala, sendo que neste último destacam-se
elementos das relações entre tradição e modernidade na África do século XXI. Por
sua vez, dentro dessa perspectiva de relação entre modernidade e tradições (no
plural para marcar a diversidade cultural da Guiné-Bissau, bem como do
continente africano), Flora Gomes parece acreditar que a África tem duas faces:
uma virada para o passado, a outra para o futuro, incialmente mostradas em
contraponto e, no entanto, tornadas inseparáveis e passíveis de contemporização,
nos sentidos de conjugação e simultaneidade. A África é um continente
constantemente dividido entre peso das origens e a força do desejos, entre a
colonização e a independência, entre as tradições e a modernidade, como se as
personagens procurassem a conciliação e compatibilização dos dois lados com
elementos das duas partes, ressaltando-se que a leitura não é de contraposição
(tradição versus modernidade), mas sim de conciliação e em alguns momentos de
4
“For Gomes, modernity and tradition are inseparable” (2007, p. 141). Todas as traduções do texto
foram realizadas pela autora.
174
175
Referências
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esperança. In: África lusófona: além da independência. Trad. Cristiano Mazzei. São
Paulo: Edusp, 2017. (No prelo).
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música de cinema. 4.ed. São Paulo: Escrituras Editora, 2012.
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produção Instituto Nacional de Cinema da Guiné-Bissau: Guiné-Bissau, 1988,
DVD.
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Yonta). [Filme]. Direção de Flora Gomes, produção executiva de Paulo de Sousa.
Bissau, Vermedia, com co-produção de Arco-Íris (Guiné-Bissau), Euro Creation
Production (Paris), 1992, DVD.
177
GOMES, Flora (dir.); TELES, Luís Galvão; THILTGES, Jani & ZEITOUN, Serge
(prod.). Nha fala (Minha fala). [Filme]. Direção de Flora Gomes, produção de Luís
Galvão Teles, Jani Thiltges, Serge Zeitoun. Roteiro: Flora Gomes. Luxemburgo,
Fado Filmes - Portugal, Les Films de Mai -França, Samsa Films, 2002, DVD.
GOMES, Flora (dir.); ARTEMARE, François (prod.); MAYER, Maria João (prod.).
Republica di mininus (República de meninos). [Filme]. Direção de Flora Gomes.
Roteiro: Flora Gomes, Franck Moisnard. Les films de l’Après-Midi; Filmes do Tejo.
Guiné-Bissau, Moçambique, França e Portugal. 2011, DVD
GOMES, Flora. Entrevista com Flora Gomes. In. Cinemas de África: Lisboa, 29 de
outubro-18novembro 1995. Lisboa: Cinemateca Portuguesa Culturguest, 1995,
pp. 44-49. Entrevista concedida à Cristina Fina.
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178
SERAFIM, José Francisco. “O mistério Marker: gênese de uma obra autoral”. In:
VILELA, Augusto. “África positiva. Entrevista concedida por Flora Gomes”. Revista
Macau. IV série, n.4, trimestral, p. 98-106, set. 2006.
179
180
181
Resumo
Desde 1973, acontece em Burkina Faso, África Ocidental, o Festival Pan-Africano de Cinema e
Televisão de Ouagadougou (FESPACO). Trata-se do maior e mais antigo evento audiovisual que ocorre
em África, incluindo a exposição, premiação e discussão de filmes produzidos em todo o continente
africano e seus territórios diaspóricos. Tal evento-ritual foi concebido por líderes burkinabés da
revolução anticolonial dos anos 1960, que perceberam no cinema uma forma de luta e libertação. A
manutenção de um festival tão grande se justifica, segundo organizadores do FESPACO, em função da
enorme necessidade que os países africanos sentem de desconstrução das imagens e memórias
produzidas pelo sistema-mundo colonial capitalista sobre a África e suas populações. Imaginário
perpetrado diante do perverso e sólido legado afetivo e sensorial criado pelo sistema colonial.
Portanto, neste artigo, apresento a discussão que venho desenvolvendo desde 2014, como projeto de
pesquisa de doutorado em Sociologia do Cinema, na qual investigo o papel do FESPACO no processo
de fortalecimento de um cinema africano que se propõe a descolonizar representações e discursos
produzidos sobre o continente.
Abstract
182
Introdução
1
Quando no texto, refiro-me à Europa, estou indiretamente fazendo alusão a essa Europa do projeto
político e ideológico ocidental, que atribui a si uma legitimidade assegurada na tradição inventada
sobre o pensamento branco. E que tem nos Estados Unidos sua principal alegoria, instituída na
definição do ser pelo ter, no apelo ao consumo e enraizamento das ideologias liberal e individualista
(CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEl, 2007).
Em Lisboa, Portugal, 2015 foi um ano interessante para quem esteve vivendo
na cidade e estuda questões relacionadas ao cinema e à África, como eu4. A data
2
São territórios diaspóricos do continente africano todas as regiões territoriais afetadas com a
chegada da população africana escravizada pelo sistema colonial.
3
Sobre cinema negro, há dois documentos brasileiros importantes: o Manifesto de Recife e o Dogma
da Feijoada. O cineasta guineense Flora Gomes, em entrevista concedida sobre a universalidade de
sua poesia fílmica, garante que nunca olhou para a sua cor como fator limitador. Pelo contrário, a
negritude de sua natureza africana, ajuda-lhe muito a compor. (OLIVEIRA; ZENUN, 2016).
4
Durante 2015, estive em estágio doutoral sanduíche no exterior, alocada em Lisboa, Portugal. Nesse
tempo, estive vinculada ao Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), da Faculdade de
marcou a passagem dos quarenta anos desde o fim das lutas por independência,
nos países africanos colonizados pela ex-metrópole. Respectivamente: Angola,
Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Esses, aliás,
foram os últimos países em África a romper com o regime de dominação colonial,
tamanha foi a máquina militar administrativa e ideológica do sistema colonial
português.
Tal marco histórico, não por acaso, ocorreu juntamente com o florescer de um
cenário interessante na cidade de Lisboa, e que teve a questão dos quarenta anos
como pano de fundo. Durante 2015, os debates sobre as independências, em
muito, coincidiram com um enorme interesse dos movimentos sociais africanos e
afrodescendentes por temas relacionados à colonialidade, enquanto modus
operandi ocidental. Foi também um ano premiado por diferentes eventos
acadêmicos e diversas produções e apresentações artísticas voltadas para
questões ligadas à afrodescendência e ao continente negro.
Afinal, como bem salientou certa vez António Costa, atual primeiro ministro
português, a África é um desafio enorme e prioritário para Lisboa, devido à grande
presença africana na cidade – responsável pelas maiores comunidades imigrantes
na capital do país. Na apresentação do livro Cinema Africano: novas formas
estéticas e políticas, António Costa diz que Lisboa tem sido um importante lugar
de cruzamento entre Europa e África, servindo de ponte intercultural e de diálogo.
Uma presença invisibilizada, mas que precisa ser revista, segundo o primeiro
ministro (DIAWARA; DIAKHATÉ, 2011).
Diante desse panorama, não se pode negar o protagonismo desempenhado
pelo cinema na agenda dos quarenta anos na ex-metrópole. Houve espaço para
mostras, discussões e debates organizados para e por artistas e ativistas
africanos e afrodescendentes. Pessoas que, direta ou indiretamente, estavam
interessadas em como o cinema tem se relacionado com os processos de
(re)construção das identidades culturais africanas e afrodescendentes. Tanto
Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, sob orientação da professora doutora
Catarina Alves Costa.
impacto da lógica euro centrada de interpretação sobre o corpo negro, nas formas
de representação imagética produzidas e consumidas no Brasil, por exemplo. Eu
me refiro aos grandes meios de comunicação, que vendem corpos negros
perfurados em seus telejornais e novelas, para mais de 2,5 milhões de domicílios
espalhados por todo o país, diariamente5. Afinal, trata-se de uma sociedade cuja
história está diretamente atrelada/afetada pela escravidão colonial – fator que
impõe toda uma especificidade a essa população tão marcada pela mentalidade
colonial. E que, no audiovisual, resulta na recorrente (re)produção, pela indústria
cultural, de narrativas altamente racializadas e inferiorizantes sobre a população
negra.
Já os filmes produzidos em África, pelos africanos, desenvolveram-se a partir
de um cenário semelhante, porém distinto, como pretendo demonstrar ao longo
do texto. Isso porque as elites (e os cinemas) em África e nas diásporas, embora
próximas e cúmplices no processo histórico da escravidão colonial e de
manutenção dos privilégios da branquitude, possuem algumas diferenças de
consolidação 6. O tráfico atlântico produziu muitas violências e fissuras na vivência
e humanização das populações negras, mas talvez uma das mais profundas seja
aquela causada no sentimento de pertença e parentesco entre as filhas e filhos do
continente, em oposição às filhas e aos filhos da diáspora. O que criou, para as
populações desterradas, outros vínculos, outros modos de se relacionar com a
negritude.
Portanto, enquanto técnica, desenvolvida pela cultura euro ocidental, o cinema
tem sido usado para várias possibilidades – econômicas, sociais e políticas. Entre
elas, como instrumento de educação e/ou fonte de entretenimento popular.
5
Dados do IBOPE 2009, sobre o alcance da televisão, entre as famílias brasileiras. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/850692-ibope-mostra-que-volume-de-espectadores-da-tv-
aberta-nao-encolheu.shtml>. Acesso em: 13 out. 2016.
6
Sobre o processo de industrialização da cinematografia brasileira, nos anos 1950, desenvolvi a
pesquisa de mestrado a respeito da Cia. de Cinema Vera Cruz, em que tratei de relacionar em uma
mesma discussão cinema, identidade e modernidade. (ZENUN, 2007).
reinventar a sua concepção. E da mesma forma que a Europa inventou uma África
na Conferência de Berlim 7 , o Pan-africanismo assume como principal objetivo
fomentar a ideia de que ter o corpo negro significa pertencer a um único povo, de
origem africana. Portanto, o Pan-africanismo surge na intenção de romper com o
esquema de dominação mental do colonialismo – que somente atribui glórias aos
povos europeus –, a fim de descolonizar o pensamento das populações afetadas
pela escravidão, dentro e fora do continente.
Diante disso, faz parte do exercício decolonial conhecer as histórias que
contam sobre o trânsito das populações negras, dentro e fora do continente, sob
a ótica dessas populações. Pois, mesmo tendo em vista que as noções negro e
branco foram inventadas, fabricadas, não se trata de negar a identidade negra.
Porque ela já está posta e enraizada. A questão é questionar tudo o que lhe é
atribuído. Para tanto, no caso do Pan-africanismo, foram desenvolvidas uma série
de ações no intuito de fomentar uma nova consciência a respeito da raça negra8,
dentro e fora da África. Entre elas, o FESPACO, que abriu um espaço que antes
não existia, de divulgação e fomento, para imagens totalmente diferentes
daquelas tão difundidas pela perspectiva de uma educação articulada à
colonialidade.
7
A Conferência de Berlim aconteceu entre novembro de 1884 e fevereiro de 1885 e teve a participação
da Grã-Bretanha, França, Espanha, Portugal, Itália, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Estados Unidos,
Suécia, Áustria-Hungria e Império Otomano (antiga Alemanha). Com o objetivo estabelecer as regras
de ocupação da África pelas potências coloniais. O que resultou em uma divisão territorial absurda,
que não respeitou nenhum critério histórico ou étnico entre as populações do continente africano.
(MAGNOLI, 2008).
8
Sobre a categoria RAÇA, ao levar em conta o desenvolvimento do campo sociológico sobre as
relações étnico-raciais, entendo que esse conceito deve ser trabalhado a partir da noção de que se
trata de uma expressão meramente linguística. Expressão esta que ainda serve para designar
diferenças de ordem fenotípica e culturais; posto que, em termos biológicos, os humanos seriam um
produto do ambiente cultural, sendo esse o fator gerador da diversidade humana, mais do que a
questão genética.
9
Sobre, consultar artigo em que Ousmane Sembène conversa com Jean Rouch, que pode ser
consultado em: <http://cine-africa.blogspot.pt/2011/01/um-confronto-historico-entre-jean-rouch.html>.
10
Sou mulher negra, latino-americana, alocada no Departamento de Sociologia da Universidade
Federal de Goiás e inserida em ampla comunidade interessada em discutir de que maneira é feita a
representação das populações negras no cinema. Em 2015, mudei para Lisboa, para cumprir o estágio
de doutorado no exterior, com o projeto sobre a decolonialidade nas identidades negras no cinema
africano apresentado no FESPACO. Fui para Lisboa, para ser orientada por uma doutora em
antropologia visual, conhecedora de cinema africano, Catarina Alves Costa. E também pela facilidade
geográfica e financeira, de se ter mais opções de ir para o continente africano de Portugal, do que do
Brasil.
Fonte: Fotografia tirada no evento de abertura do FESPACO de 2015, pela própria autora do texto.
11
No que tange a formulação de pensamentos elaborados sobre todos esses outros, não europeus,
não se pode esquecer que os ilustres fundadores da modernidade europeia – escritores, pensadores e
artistas como Diderot, Voltaire, Molière, Velásquez, Manet, Kant e Hegel – são bastante responsáveis
por essa perpetuação. E nunca denunciaram a escravidão transatlântica.
12
Foram eles: Avant le printemps, de Ahmed Atef (Egito); C'est eux les chiens, de Hicham Lasri
(Marrocos); Cellule 512, de Missa Hebié (Burkina Faso); Des étoiles, de Dyana Gaye (Senegal); Entre le
marteau et l'enclume, de Amog Lemra (Congo); Lalla Fadhma N'Soumer, de Belkacem Hadjadj
(Argélia); Fièvres, de Hicham Ayouch (Marrocos); Four Corners, de Ian Gabriel (África do Sul); Haïti
Bride, de Robert Yao Ramesar (Trinidad e Tobago); J'ai 50 ans, de Djamel Azzizi (Argélia); L'œil du
cyclone, de Sékou Traoré (Burkina Faso); Morbayassa, de Cheik Camara (Guiné Bissau); O Espinho da
Rosa, de Filipe Henriques (Guiné Bissau); Price of love, de Hermon Hailay (Etiópia); Printemps tunisien,
de Raja Amari (Tunísia); Rapt à Bamako, de Cheik Omar Sissoko (Mali); Render to Cesar, de Desmonde
Ovbiagele Onyekachi Ejim (Nigéria); Run, de Philippe Lacôte (Costa do Marfim); Timbuktu, de
Abderrahmane Sissako (Mauritânia).
13
Os principais prêmios do FESPACO, para ficção e documentário, exigem realização
africana/afrodescendente. Outras categorias, não competitivas, permitem a participação de
realizadores de outras nacionalidades.
14
Sobre o Le Balai Citoyen, consultar: <http://www.lebalaicitoyen.com>.
15
Dados consultados no sítio do FESPACO, que está disponível em: <https://www.fespaco.bf/fr/>.
16
Link para acessar o sítio oficial do FESPACI: <http://www.fepacisecretariat.org>.
O cinema africano não pode se dar ao luxo de usar a tecnologia para escapar ao
domínio do pessoal, isolado de sua interação com o público. As experiências
pessoais devem também ser vistas no contexto histórico em que se desenvolvem.
17 Desde a escravidão colonial, outras formas de migração também afetaram o continente negro. Goli
Guerreiro (2010) identifica três movimentos da diáspora africana: o primeiro, trânsito, pela via do tráfico
escravista. Indiscutivelmente, a pior ocorrência de migração forçada da história da humanidade. O
segundo acontece (ainda) das periferias para os centros urbanos, em função das péssimas condições
sociais e econômicas herdadas do colonialismo pelos Estados africanos. O terceiro está se realizando
agora, nesse exato momento, através das redes técnico-eletrônicas, que surgiram com a globalização.
Des étoiles (2013) de Dyana Gaye; e, por último, Fièvres (2015), do franco-
marroquino Hicham Ayouch.
Entre essas dezoito histórias de ficção vitoriosas do Étalon, sobre África e
Europa, oito delas tratam diretamente sobre os trânsitos vivenciados pelas
populações negras por conta do colonialismo, no período pós-colonial. Seis
enfocando situações dentro do continente, e duas sendo narradas a partir de um
olhar de fora da Europa, para dentro da própria, como o que acontece em Afrique-
Sur-Seine (Paulin Soumanou Vieyra, 1955), por exemplo. Em relação às lutas
anticoloniais, do total de 22 filmes, quatro são os que se referem ao tema
abertamente, tratando de cutucar os espólios dessas guerras. Difícil não notar
como é recorrente, portanto, a questão da crise desencadeada pelo encontro – na
maioria das vezes tenso, desastroso e desgastante – entre a África, negra, e a
cultura euro ocidental, branca.
E é interessante como, de maneira geral, todos os filmes laureados com o
Étalon trazem alguma discussão sobre situações/relações de conflito. Seja dentro
do continente, com histórias internas e particulares a sujeitos africanos (quatro),
ou em disputa com o de fora, sobre valores africanos em oposição a valores
europeus (dezesseis); seja fora do continente, na Europa, no confronto e desgaste
que surge no período pós-colonial, entre valores europeus, de fora, e valores
africanos, guardados dentro dos sujeitos africanos e afrodescendentes,
submetidos à realidade dos valores europeus, em função das diásporas negras
(dois).
Nesse sentido, filmes como os de Ousmane Sembène consagraram o tema do
encontro, pouco saudável, entre os espaços do colonialismo e os das populações
(ex)colonizadas. E rendeu uma extensa e plural filmografia erguida na necessidade
que muitas diretoras e diretores africanos sentem, até hoje, de produzir imagens
capazes de romper com os preconceitos raciais definidos pelo colonialismo.
Reconhecer a necessidade de elaborar novas imagens de negritude é um dos
efeitos de reconhecer que a branquitude é exatamente a insistência na falsa ideia
de que todos são iguais, e que, por isso, todos têm acesso aos mesmos direitos.
Ser igual significa corresponder a um pacote restrito e irreal, posto que uma das
[...] todos os elementos que compõem sua história, têm servido a cineastas,
curadores, pesquisadores e estudiosos da temática tanto como um termômetro de
tendências cinematográficas quanto de direcionamento das políticas de cultura
presentes nos caminhos do cinema do continente. Além disto, sua história se
conecta diretamente com os acontecimentos e debates no âmbito das políticas do
continente, como por exemplo da consolidação e crise do movimento pan-africanista
e dos dilemas observáveis nos processos de estabelecimento das nações após as
independências. (OLIVEIRA, 2016, p. 52).
Conclusão
Referências
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grafia, 2013.
GABRIEL, Teshome. Third Cinema in the Third World. 2000. Disponível em:
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allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad
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SANOGO, Aboubakar. “In Focus: Studying African Cinema and Media Today”.
Cinema Journal, v. 54, n. 2, 2015, 114-119.
Temáticas Livres
Filme-desvio:
do planejamento às contradições
Tatiana Hora1
1
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade
Federal de Minas Gerais.
e-mail: tati_hora@hotmail.com
214
Resumo
Partindo da noção de desvio, desenvolvido como método filosófico por Guy Debord no livro A
sociedade do espetáculo e como técnica situacionista para a crítica da linguagem do espetáculo no
ensaio Métodos e técnicas de desvio (escrito por Debord junto com Gil Wolman), propomos pensar o
filme Brasília, contradições de uma cidade nova (1967), de Joaquim Pedro de Andrade, como um filme-
desvio em relação ao curta-metragem Brasília, planejamento urbano (1964), de Fernando Coni
Campos. O desvio, enquanto contrário de uma citação, segue na contramão da verdade oficial e
destrói os sentidos propostos pela história dos vencedores. Em seu sentido mais profundo, o desvio
incorpora a dialética na forma e convoca o passado como devir. Assim, confrontamos as diferentes
imbricações entre tempo cinematográfico e tempo histórico apresentadas pelos filmes em questão,
tendo em vista que em Brasília, planejamento urbano a nova capital tem origens míticas e é erguida
acima da história, segundo os princípios da utopia modernista, enquanto em Brasília, contradições de
uma cidade nova, que traz vários planos e princípios formais semelhantes aos do filme oficial para
desviá-los, a cidade é re-historicizada a partir de uma crítica ao presente.
Abstract
215
Em 1964, ano em que João Goulart foi deposto e no qual o general Castelo
Branco assumiu a presidência através do Golpe Militar, foi lançado o curta-
metragem Brasília, planejamento urbano, de Fernando Coni Campos. O filme é um
documentário expositivo1 que mostra imagens da nova capital guiadas por uma
narração over baseada num relatório elaborado por Lúcio Costa, o urbanista, que,
junto com o arquiteto Oscar Niemeyer, formulou o planejamento urbano da
cidade. Numa entrevista concedida ao periódico O Pasquim, o cineasta baiano
conta que este foi seu primeiro filme, realizado após ter trabalhado no escritório
de Lúcio Costa, e que sua realização teria partido da intenção do Instituto
Nacional de Cinema de fazer um filme sobre a capital, pois “sempre que se falava
em Brasília, falava-se em arquitetura”. (CAMPOS, 1974).2
Brasília, planejamento urbano é marcado pela influência das sinfonias urbanas3
das primeiras décadas do século XX, e as imagens são acompanhadas pela
música especialmente realizada para a inauguração da capital: Brasília, sinfonia da
alvorada, composta por Antônio Carlos Jobim e escrita por Vinícius de Moraes
216
4
O desenho de Brasília tem o formato de um avião, e os componentes da concepção urbanística da
capital, segundo Lúcio Costa (2012), seriam: o eixo monumental, constituído pela Praça dos Três
Poderes, a estrutura da plataforma rodoviária e a Esplanada dos Ministérios, levaria, segundo ele, o
nome de monumental não pela ostentação, mas pela consciência de seus significados; o eixo
rodoviário-residencial, onde o tráfego de veículos se separa do tráfego de pedestres; e as
superquadras seriam as unidades de vizinhança, com parques, lojas de bairro, etc. As superquadras
foram imaginadas por Lúcio Costa como resistência à massificação: ele acreditava que a morada do
homem comum haveria de ser o monumento do seu tempo.
217
218
219
sua base geral, que prepara o solo que convém ao seu desenvolvimento, a própria
técnica da separação”. Em outras palavras, o planejamento urbano configura a
cidade segundo a afirmação do poder de classe e da pulverização dos
trabalhadores nas periferias afastadas do centro.
De acordo com Jacques (2003), entre as técnicas de apropriação dos espaços
defendidas pelos situacionistas estão à deriva, a construção de situações e a
psicogeografia. A psicogeografia era o método de estudo dos efeitos da geografia
sobre o comportamento dos indivíduos, e a sua prática correspondente era a
deriva, que consistia na passagem rápida por variados ambientes, uma
apropriação do espaço urbano através do “andar sem rumo”. Já a construção de
situações envolve a criação de iniciativas que convocam a participação ativa dos
habitantes da cidade, num movimento que buscava trazê-los de volta para a vida
cotidiana.
Guy Debord elabora um cinema que usa vários princípios situacionistas, a
exemplo de Sobre a passagem de algumas pessoas através de uma unidade de
tempo bastante curto (1959), em que, como sugere o título, alguns personagens
colocam em prática a deriva e a psicogeografia. Em filmes como A sociedade do
220
iria fazer o país progredir “50 anos em 5”, durante sua administração (de 1956 a
1961). Segundo James Holston (1993), JK defendia que Brasília promoveria a
integração nacional e seria o centro propulsor do desenvolvimento em todo o país.
A cidade terminou por convergir expectativas de personalidades das mais
diversas orientações políticas.
[...] Brasília foi planejada por um liberal de centro-esquerda, seus prédios foram
desenhados por um comunista, sua construção foi feita por um regime
desenvolvimentista, e a cidade consolidou-se sob uma ditadura burocrático-
autoritária, cada qual reivindicando uma afinidade eletiva com a cidade. (HOLSTON,
1993, p.46).
221
5
Nesse filme, Eduardo Coutinho montou, numa obra de uma hora e meia de duração, um total de 19
horas de imagens e sons registrados no dia 1° de outubro de 2009 e transmitidas pelos canais TV
Brasil, SBT, Globo, Bandeirantes, Record e MTV. O filme não apresenta créditos e as exibições
aconteciam furtivamente, de forma quase secreta, para não haver problemas com os direitos das
222
imagens detidos pelas emissoras. Segundo Anita Leandro (2012), o gesto fundamental do filme é a
alteração do dispositivo de exibição da televisão para a sala de projeção: “colocada à prova da tela
grande do cinema e da duração obrigatória de uma hora e meia de projeção, diante de um espectador,
a princípio, atento, a imagem da televisão passa a produzir um estranhamento: o horror, agora,
perturba, suscitando no espectador a análise do discurso que o produz e a avaliação de seus efeitos”.
(LEANDRO, 2012, p.20).
223
é o que faz surgir, inaugura, instaura ou fecunda, e o som musical tem uma força
criadora”. (CHION, 1999, p.171, tradução nossa).
Nessa introdução, o tempo cinematográfico articula o paradoxo de um tempo
histórico atemporal, vinculando imediatamente, de forma metafórica, à construção
de Brasília, no centro do país, ao “descobrimento” do Brasil, termo que apaga a
história dos que viviam na terra e ignora todo o violento processo colonizador.
Essas imagens que constroem a retórica de uma origem mítica de Brasília
remetem ao que Marilena Chauí (2001) afirma sobre o mito fundador (presente
inclusive no verde da bandeira nacional que se refere às matas). Segundo a
autora, ele embute a crença de que o Brasil é uma unidade, apesar de todas as
diferenças, e um dom de Deus e da natureza. Os mitos fundadores são soluções
imaginárias para conflitos e tensões, assentadas no passado concebido como
origem, um passado perene. No mito fundador, há um instante originário que
atribui significados ao presente; tal fundação é atemporal, situando-se para fora
da história. Segundo Chauí (2001, p.6), “um mito fundador é aquele que não cessa
de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e
ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a
224
225
Superquadra é um quadrilátero de 240 por 240 metros, rodeado por uma área
arborizada de 20 metros de largura. Dentro das superquadras, os blocos residenciais
podem dispor-se da maneira mais variada, obedecendo, porém, a dois princípios
gerais: gabarito máximo de seis pavimentos, mais piloti e separação do tráfego de
pedestres.
226
4. Filme-desvio
227
Longe desse bulício estão os cemitérios situados dos dois lados do eixo rodoviário.
Essa localização evita os cortejos através da travessia do centro urbano. Terão chão
de grama e serão convenientemente arborizados, com sepulturas rasas e lápides
singelas, à maneira inglesa. Tudo desprovido de qualquer ostentação.
228
229
6
Na definição de Deleuze (1983), os quadros físicos são enquadramentos em que os limites seguem
até onde a potência do corpo exige, e são dinâmicos, posto que formados por uma construção
dinâmica em ação, pois dependem da cena, dos personagens e dos objetos que o preenchem.
230
231
esta realidade, para que no rosto do povo se descubra o quanto uma cidade pode
ser bela”, seguindo-se imagens dos operários numa obra em construção. Como
afirma Agamben (1996, p.74), “[...] e o rosto é o único lugar da comunidade, a
única cidade possível”, pois o rosto é a revelação da própria linguagem, é o
sujeito exposto que é unicamente abertura e comunicabilidade, encontrando-se aí
o sentido político do rosto, pois “a exposição é o lugar da política”. (AGAMBEN,
1996, p.74). Para Agamben (1996), a desidentificação das qualidades do sujeito no
rosto visto como um fora devém pura comunicabilidade. Assim, nesse filme-
desvio, a crítica da linguagem espetacular e da verdade oficial se dá de modo
concomitante a uma busca por uma linguagem e uma comunicação a ser
recuperada em prol da transformação do mundo. A obra na qual os operários
trabalham e a obra de arte são aproximadas metaforicamente, e o filme mostra
que é necessário construir outro mundo não a partir dos intelectuais, como
propunha a utopia modernista e também o cinema novo, mas sim do próprio
povo. Em Brasília, contradições de uma cidade nova, o rosto é o tópus da utopia,
é a manifestação do devir.
Como afirma Aquino (2006) acerca da aproximação entre o desvio de Debord e
232
veio a ser (para o contemporâneo), consiste em que ele foi um presente por ter
vindo a ser (para o póstero)”. O fato histórico mantém-se em aberto, pois “aquele
fato é tão pouco necessário enquanto futuro como enquanto passado”.
(KIERKEGAARD, 2008 p.127).
Segundo Kierkegaard (2008), o fato histórico se mantém em aberto ao ser
retomado pelas determinações dialéticas do devir. É nesse sentido que Debord
propõe uma crítica histórica ancorada no presente e que recontextualiza a crítica
passada para cristalizar as contradições.
233
Referências
AGAMBEN, Giorgio. “O rosto”. II volto. In: Mezzi senza fine. Note sulla politica.
Trad. Murilo Duarte Costa. Bollati Boringhieri: Torino, 1996. p. 74-80.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 3. ed. Trad. Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
CHION, Michel. El sonido: música, cine, literatura. Buenos Aires: Ediciónes Paidós
Iberica, 1999.
234
HOLSTON, James. A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
235
236
Ximena Triquell2
237
Resumo
Este artigo recupera a tipologia proposta por Fernando Solanas e Octavio Getino, no final da
década dos anos sessenta, que define as categorias de Primeiro, Segundo e Terceiro Cinema. O
trabalho analisa a relevância destes conceitos e os recupera para abordar o chamado Novo Cinema
Cordobes, especificamente sobre o que faz com a representação dos setores populares. Para tanto,
são considerados os filmes De caravana (Ruiz, 2011), Yatasto (Paralluelo, 2012) e Guachos de la calle
(Schmucler, 2015).
Abstract
This paper recovers the typology proposed by Fernando Solanas and Octavio Getino at the end of
the sixties where they define the categories of First, Second, and Third Cinema. It reviews the relevance
of these concepts and recovers them to approach the so-called Nuevo Cine Cordobés (New Cinema
from Córdoba), paying particular attention to the representation of popular classes. In order to do this,
we consider the films: De Caravana (Ruiz, 2011), Yatasto (Paralluelo, 2012) y Guachos de la calle
(Schmucler, 2015).
El presente artículo recupera la tipología propuesta por Fernando Solanas y Octavio Getino a
finales de la década del sesenta que define las categorías de Primer, Segundo y Tercer Cine. El trabajo
revisa la actualidad de estos conceptos y los recupera para abordar el llamado Nuevo Cine Cordobés,
específicamente en lo que hace a la representación de los sectores populares. Para ello se consideran
las películas De Caravana (Ruiz, 2011), Yatasto (Paralluelo, 2012) y Guachos de la calle (Schmucler,
2015).
238
La primera alternativa del primer cine nace en nuestro país con el llamado “Cine de
Autor”, “Cine expresión” o “Nuevo Cine”. Este segundo cine significa un evidente
progreso en tanto reivindicación de la libertad del autor para expresarse de manera
no estandarizada, en tanto apertura o intento de descolonización cultural. Promueve
no sólo una nueva actitud, sino que aporta un conjunto de obras que en su momento
constituyeron la vanguardia del cine argentino, realizadas por: Del Carril, Torre
Nilsson, Ayala, Feldman, Murúa, Kohon, Khun y Fernando Birri que con Tiré Dié,
239
240
El Tercer cine debe ser, según sus forjadores, un cine de abordaje directo de la
realidad, de allí la preferencia por el registro documental –incluso en los films
ficcionales– ya que se trata de contraponer a las mentiras y las falsedades
impuestas por el colonialismo, una imagen verdadera que devele la realidad que
se pretende ocultar:
De igual modo, este nuevo cine implica nuevas condiciones y lugares para los
espectadores. Frente al Primer cine, que presupone un espectador al que hay que
seducir, entretener o sorprender a través de la historia, la puesta en escena o los
efectos especiales; y frente al Segundo, que postula un espectador reflexivo
capaz de entender las problemáticas psicológicas o sociológicas planteadas con
una mirada atenta pero distante; se trata ahora de convocar a un espectador que
no sólo reflexione sobre la realidad que se le expone, sino que además participe
del film, dando continuidad a las propuestas de este bajo la forma de una praxis al
concluir la proyección. En función de este hacer, el “cine-acto”, forma propia del
Tercer cine, implica pausas en su proyección para dar lugar al debate y la
discusión política, rompiendo así con la noción de espectáculo.
241
Compañeros y amigos: Esta parte de La hora de los hornos no está concebida como
cine-espectáculo. El filme se niega como tal, se abre ante los participantes, y se
asume como acto. El filme será desarrollado y completado por los participantes,
únicos protagonistas de la historia que el film recoge y testimonia; lo que importa no
es la imagen fílmica, es el acto vivo que se abre en cada proyección.
El film deja así de ser una obra cerrada y acabada, y se abre como acto a la
experiencia de los espectadores, los que son interpelados también desde el lugar
de protagonistas, tanto del film, como de la historia que este documenta.
“Hacia un Tercer cine”, pulsó una cuerda en toda América Latina e incluso más allá y
rápidamente fue traducido y publicado en pequeñas revistas dedicadas al cine y la
242
política cultural en varios idiomas y continentes. Junto con los escritos de Julio
García Espinosa en Cuba, Glauber Rocha en Brasil y algunos más, se convirtió en
uno de los textos definitorios del movimiento conocido como el Nuevo Cine
Latinoamericano que se desarrolló en los años 60s y 70s. (CHANAN, 2014: 16)
El Primer cine es industrial y comercial –es el cine de los estudios y los productores–
Bollywood tanto como Hollywood (y hoy en día el Nollywood de Nigeria). El Segundo
cine es el cine del director, cómodo como en su casa en Europa (donde el director
más que el productor tiene el derecho al corte final) pero también en todos aquellos
casos en los cuales se logra introducir la producción independiente; es individualista,
psicológico, pequeño burgués y por lo general políticamente reformista. El Tercer
cine pertenece en su quintaescencia a las luchas colectivas. En su forma
paradigmática, la del cine militante, es el colectivo anónimo trabajando
clandestinamente, al modo en que Solanas y Getino hicieron La hora de los hornos, el
film que originó el manifiesto (y que forzó, casi de manera inevitable, a sus autores al
exilio). (CHANAN, 2014: 16 – 17)
El Tercer cine se configura entonces como el cine del Tercer Mundo, países en
243
244
¿No significa todo esto que el Tercer cine se ha disuelto y es ahora poco más que
una referencia histórica irónica y emblemática en el repertorio del postmodernismo y
la hibridación? ¿Puede todavía existir algo así como el Tercer cine en este escenario
ultramoderno? Y sin embargo, ¿acaso el Primer y el Segundo cine han dejado de
existir? (CHANAN, 2014: 26)
245
Hay varias escenas que son muy cordobesas y ahí se tensionan los límites. Sabía que
eran las que me iban a criticar, pero también son las que más le gustan al público
cordobés. Siempre me doy una vuelta por los cines para ver si ponen los afiches y
los banners, y me gusta ver las reacciones de la gente. Hay muchos momentos que
la gente festeja y hasta aplaude. Me parece que hay una identificación grande con lo
246
cordobés, por la razón de que no hay mucho cine cordobés. Esta es la primera
3
película que muestra algo muy contemporáneo de Córdoba.
3
ANONIMO: "El buen momento del cine cordobés. Entrevista a Rosendo Ruiz y Rodrigo Guerrero" en
revista Alfilo, nro 32, julio-agosto 2011. Disponible en
http://www.ffyh.unc.edu.ar/alfilo/anteriores/32/sin-fronteras.html
247
película niega tanto el film de ficción como el film documental, ya que no hay ni
una trama ficcional que sostenga el primero, ni una intencionalidad argumentativa,
como se esperaría en el segundo.
En su artículo publicado en Diorama, Eva Cáceres4 relata que tanto el director
Paralluelo como el equipo de producción de “El Calefón” convivieron
prácticamente un año con los habitantes de Villa Urquiza hasta lograr la confianza
necesaria para llevar a cabo la propuesta del film. El resultado es notable: los
vecinos, devenidos actores de su propia historia, parecen ignorar la presencia de
una cámara “intrusa”, un objeto extraño a sus vidas de todos los días. Tanto en el
espacio del barrio como en las escenas desde arriba del carro pareciera no haber
nada ni nadie frente a ellos, solamente el paisaje que se despliega alrededor y en
el que buscan y negocian los elementos que les permiten sobrevivir.
En su registro cuasi etnográfico se percibe un interés que podríamos llamar
político, expresado en una voluntad de devolver a los niños retratados –situados
en los márgenes de una sociedad que no parece brindarles la protección que
necesitan– un lugar de mirada, de subjetividad, como sólo se puede hacer a través
del cine (los ejemplos sobran: Los 400 golpes, Crónica de un niño solo, por citar
4
COZZA, Alejandro (comp): Diorama. Ensayos sobre cine contemporáneo de Córdoba. Córdoba,
Caballo Negro Editora, 2013.
248
Ante todo, nos interesa hacer cine de autor, nos interesa que haya una mirada
personal en cada film. Y eso trasciende un poco a los géneros que los contienen,
muchas veces un poco difusos también. Lo principal es que haya una búsqueda, una
intención de profundizar en lo formal y lo estético que usamos para decir algo. (Lucía
Torres, en Martín Iparraguirre, 2015)
Desde que empezamos creo que la palabra que más surge como signo de nuestro
trabajo es “discusión”. Discutimos para hacer nuestras películas, las ponemos en
tensión, y creo que pretendemos que nuestras películas hagan lo mismo con su
espectador. Que no se establezca un vinculo dócil y adocenado, sino que le
interpelen. (Ezequiel Salinas en Martín Iparraguirre, 2015)
249
250
Es estúpido que nosotros los cineastas que no trabajamos con Brad Pitt
pretendamos disputarle espacio porque Bruce Willis, Schwarzenegger, Brad Pitt
hacen una cosa […] que no es lo mismo que hacemos nosotros. Entonces pretender
competir con ellos en los mismos espacios realmente es una tarea ingenua te diría,
tonta, infantil. Esto que estamos haciendo ahora me descubre eso. Es la película
llevada donde está la gente, en los centros vecinales, las escuelas, en este caso, los
CPCs, cualquier espacio […] Hoy con cualquier proyector, con un pequeño equipo
de sonido ya tenés una proyección cinematográfica. Entonces no hace falta tener
5
Entrevista a Sergio Schmucler en el programa “Voces del día”, de Radio La Ranchada, disponible en
http://laranchada.com.ar/voces-guachos-de-la-calle-la-pelicula-de-rimando-entreversos/
251
La verdad es que me conmueve mucho lo que pasa siempre, cada vez que pasamos
la película, porque además de lo que pretende ser una reflexión y una crítica al
modelo de sociedad que construimos que es tan terrible en relación a ciertos
sectores que quedan siempre afuera, dejados de lado, excluidos, es muy interesante
lo que pasa cada vez que pasa la película y que están los chicos porque se vuelve
una vinculación, una comunicación tan directa con el público, que entonces la
película es solamente una herramienta más, lo importante es lo que pasa en el
vínculo entre los chicos de Rimando y el público y eso se ha vuelto realmente una
bomba, una bomba nuclear te diría, porque manifiesta la potencialidad y la
Esto es cine vivo. Yo en mi infancia iba al cine Cervantes en Córdoba y veía las de
cowboys y era un cine vivo también porque cuando empezaban los locos a tirar tiro
nosotros silbábamos, aplaudíamos y después ya no, después el cine se murió […]
con esta película y con este evento del que participan los chicos, se volvió a un cine
7
vivo pero esta vez de nuestra realidad.
Una placa final señala una vez más la continuidad entre el film y la realidad, al
enumerar la cantidad de veces que los chicos fueron detenidos o arrestados en el
6
Ibidem.
7
Ibidem.
252
A modo de conclusión
Bibliografia
CHANAN, Michael. “Revisitando el Tercer Cine”. In: Toma Uno, Número 3, 2014.
FERREIRA, Fernando. Luz, cámara, memoria: una historia social del Cine
Argentino. Buenos Aires, Corregidor, 1995.
253
LUSNICH, Ana Laura y Pablo PIEDRAS (Orgs.). Una historia del cine político y
social en Argentina (1896-1969), Nueva Librería, Buenos Aires, 2009.
254
Carolina Soria1
1
Doctora en Historia y Teoría de las Artes (Universidad de Buenos Aires) y
profesora en la Cátedra de Historia del Cine Universal en la misma institución. Ha
publicado artículos sobre cine, teatro y televisión en revistas nacionales e
internacionales y participado en numerosos congresos. Actualmente está
realizando sus estudios posdoctorales (CONICET) sobre las nuevas narrativas
seriadas emitidas por la Televisión Pública argentina.
e-mail: soriacarolina@gmail.com
255
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar o texto dramático Fractal. Una especulación científica (2000) -
trabalho de criação coletiva escrito e dirigido por Rafael Spregelburd - no contexto de produção do
teatro dos anos noventa no cinema argentino contemporâneo, considerando-o como uma articulação
entre as duas formas de arte. Por um lado, porque condensa muito dos procedimentos utilizados no
teatro da década de noventa que entranham uma determinada concepção de prática cênica, do
processo de construção e da relação entre teatro e realidade que caracterizam especificamente o
chamado teatro de desintegração (PELLETTIERI, 2000; RODRÍGUEZ, 2000). Tais procedimentos são a
alienação e a preocupação com a linguagem, a desintegração da concepção tradicional do
personagem, a interação, não defender uma tese realista e empregar elementos absurdos. Por outro
lado, porque acreditamos que é um precedente chave do cinema que chamamos pós-dramático pela
repetição, em outra escala, das operações narrativas e estruturais, o status dos personagens e a
construção interativa ou efeito borboleta das cenas, elementos a serem discutidos no filme Viola (2012,
Matías Piñeiro).
Abstract
The aim of this article is to analyze the dramatic text Fractal. Una especulación científica (2000) —a
256
Resumen
En este artículo proponemos analizar el texto dramático Fractal. Una especulación científica (2000)
—obra de creación colectiva llevada a cabo bajo la dramaturgia y dirección de Rafael Spregelburd— en
el contexto de la productividad del teatro de los noventa en el cine argentino contemporáneo, en tanto
la consideramos una obra bisagra entre las dos manifestaciones artísticas. Por un lado, porque
condensa gran parte de los procedimientos empleados en el teatro de los noventa que entrañan una
determinada concepción de la práctica escénica, del proceso de construcción y del vínculo entre el
teatro y la realidad que caracterizan específicamente al denominado teatro de la desintegración
(PELLETTIERI, 2000; RODRÍGUEZ, 2000). Tales procedimientos son el enajenamiento y la
preocupación por el lenguaje, la desintegración de la concepción tradicional del personaje, la iteración,
no defender una tesis realista y emplear elementos absurdistas. Por otro lado, porque creemos que
constituye un precedente clave del cine que denominamos de situación o cine posdramático, por la
repetición, en otra escala, de las operaciones narrativas y estructurales, el estatuto de los personajes y
la construcción iterativa o efecto mariposa de las escenas, elementos que analizaremos en el film Viola
(2012, Matías Piñeiro).
257
1
La hipótesis general de Calabrese es que gran parte de los fenómenos culturales de nuestro tiempo
están marcados por una «forma» interna específica que puede evocar el barroco (CALABRESE, 1989:
31). Si bien La era neobarroca es un trabajo publicado en 1989, consideramos que sus planteos tienen
plena vigencia para analizar las producciones artísticas más actuales.
258
comenzar, vislumbrar el método que nos permita establecer cierto orden dentro
del caos? En efecto, el panorama no es decisivamente negativo. Podemos, frente
a un sistema cultural dominado por el azar, la irregularidad y el caos, elaborar
descripciones e interpretaciones partiendo de los detalles que conforman cada
texto dramático y cada texto fílmico, a partir del reconocimiento de
microestructuras y procedimientos que se repiten en diferentes escalas a la
manera de los fractales.
Para tal fin analizaremos, en una primera instancia, el texto dramático Fractal.
Una especulación científica —obra de creación colectiva llevada a cabo bajo la
dirección de Rafael Spregelburd— en el marco de una de las formas de expresión
en las que encauzó el teatro en la década del noventa y que se denominó teatro
de la desintegración (PELLETTIERI, 2000; RODRÍGUEZ, 2000, 1999). La
consideramos una obra emblemática del diálogo entre dicho teatro y el cine
argentino contemporáneo por aglutinar, principalmente, los procedimientos
empleados en la práctica escénica —extrañamiento, indagación del lenguaje,
desintegración de la concepción tradicional del personaje, iteración, ausencia de
tesis realista, elementos absurdistas— y articular un proyecto creador similar. En
Esta obra fue estrenada en octubre del 2000 en la Sala Batato Barea del Centro
Cultural Ricardo Rojas, Universidad de Buenos Aires. La descripción del proceso
de construcción que efectúan los actores en el Prólogo II del texto dramático
sintetiza, de manera precisa y eficaz, aquello que postulamos que sucede tanto en
el teatro como en el cine: “una catarata de situaciones que, algunas de manera
arbitraria y otras deliberada, se fueron uniendo con un hilo ahora invisible”
(SPREGELBURD, 2001: 12).
259
260
261
262
Son formas que se asemejan pero a diferentes escalas…es decir, todo sistema se
nos presenta como un lío, pero crea dentro suyo estructuras autosemejantes...¡en
todo! Por ejemplo, nosotros tenemos también una parte fractal…Representamos el
mundo como una miga (SPREGELBURD, 2001: 49).
263
al analizar Esperando a Godot, señala que la obra explora una situación estática
en la que los personajes no hacen más que esperar a Godot. En cada acto
Vladimir y Estragón intentan suicidarse sin lograrlo por diferentes motivos,
vacilaciones que “sirven para recalcar la esencial similitud de la situación, «plus ça
change, plus c’est la même chose»” (ESSLING, 1966: 34). Esta frase denomina
justamente la autosemejanza del sistema caótico y es expresada verbalmente por
el personaje de Maricarmen en la obra Fractal. Una especulación científica:
“Cuando más cambian las cosas, más se parecen” (SPREGELBURD, 2001: 48). Es
por ello que también percibimos una dimensión intertextual de nuestro corpus, el
cual revisita tanto el arte del pasado como también los preceptos de las ciencias,
configurando de esa forma una escritura fragmentaria. En ella, el fragmento se
convierte en un material “«desarqueologizado»: conserva la forma fractal debida a
la ocasión, pero no se reconduce a su hipotético entero, sino que se mantiene en
su forma ya autónoma” (CALABRESE, 1989: 102).
Como señala Anne Ubersfeld, “el discurso teatral, aún el más subjetivo, es un
conglomerado de otros discursos tomados de la cultura de la sociedad o, más
frecuentemente, de la capa social en que evoluciona el personaje” (UBERSFELD,
264
Marina (respecto del video proveniente de Buenos Aires): ¿por qué me habrá llegado
a mí?
Leonor: Marina, ¿no se te ocurrió preguntarte por qué te habrá llegado a vos?
Leonor: Marina, ¿no se te ocurrió pensar de qué época será? (SPREGELBURD, 2001:
105).
2
Benoît Mandelbrot fue un matemático e inventor de la geometría fractal: “Llegué a comprender que la
autosimilitud, lejos de ser una propiedad tibia y poco interesante, era un poderoso medio para generar
formas” (SPREGELBURD, 2001: 21).
265
266
personaje, sus personajes tienen una identidad mutante y eso los vuelve más
realistas. “Lo que pasa a primer plano es lo que dicen por encima de lo que son.
Uno no puede decir que edad o qué profesión tienen. No están presos de un
comportamiento tipificable” (AISEMBERG, 1997: 95-96). Por ejemplo en el caso
de Fractal, la madre confiesa que a veces no reconoce a su “cambiante” hija
Jimena, que a veces aparece como Jimena 1 y otras como Jimena 2 dentro de
una misma escena, dos “Jimenas” diferentes que son interpretadas por dos
actrices (Laura Paredes y Valeria Correa). Si bien el reemplazo de una Jimena por
otra es percibida por su madre en la primera escena haciendo evidente el
procedimiento, en la siguiente escena la didascalia señala que luego de que el
personaje de Jimena 2 se levanta y sale: “Cuando reingresa con los fósforos, ya
no es Jimena 2 sino Jimena 1, que será interpretada por otra actriz. Nadie parece
notar la evidente sustitución, y de hecho cabe aclarar que el parecido entre las
dos es un misterio” (SPREGELBURD, 2001: 34). La escisión del personaje llega
aquí a su manifestación más extrema, a la vez que se complementa con su
cualidad enigmática y su comportamiento incomprensible.
En relación con el trabajo del actor, el dramaturgo manifiesta que en sus obras
No son textos representados por nosotros, sino que son el producto del descarte, el
reciclaje y el accidente que tiene lugar en el ensayo. Entendemos que cada vez más
267
Así como Perla Zayas de Lima (2000) señalara que antes de los noventa el
teatro conformaba un “conjunto de signos autorreferenciales en una exhibición
que excluía todo proceso de significación” (ZAYAS DE LIMA, 2000: 116), en esta
nueva dramaturgia encontramos, de manera inversa, un mismo conjunto de signos
que plantean múltiples sentidos. Como sostiene Spregelburd en el Apéndice de
Fractal…, “Cada obra de arte inventa su lenguaje y propone sus significados, pero
fundamentalmente señala a sus sentidos” (SPREGELBURD, 2001: 116).
Por su parte, Lola Proaño-Gómez (2007) al referirse a las obras más crípticas
del teatro latinoamericano expresa que para lograr
una lectura más o menos comprensible, tenemos que dejar de lado la totalidad del
significado y poner atención a los detalles. Estos, a su vez, al final nos darán alguna
visión que, si bien no es totalizadora, al menos hacen posible entender un cierto
sentido que está por debajo de la escena, permitiéndonos establecer alguna
conexión entre el contenido manifiesto de la escena o el rompecabezas y su posible
significado (PROAÑO-GÓMEZ, 2007: 30).
268
la escena que la precede y de la que le sucede. Es por ello que la noción de fractal
ilustra adecuadamente este tipo de estructura fragmentaria en la que cada una de
las partes, fragmentada e irregular, se repite en diferentes escalas. Este texto
dramático que analizamos, más allá de que se construye como una sumatoria de
situaciones discontinuas, en su totalidad edifica un universo poético que
proporciona la visión de mundo del autor y su modo de concebir la escena. Si bien
es preciso diseccionar cada una de sus partes con el fin de analizar sus elementos
y procedimientos constitutivos, la recursividad y la apertura semántica que
propone se logran en su visión de conjunto, como totalidad.
Los films de Matías Piñeiro (El hombre robado, 2007; Todos mienten, 2009;
Rosalinda, 2011; Viola, 2012 y La princesa de Francia, 2014), forman parte de un
cuerpo textual fílmico más amplio3 que denominamos cine posdramático. Varios
de los recursos empleados por el realizador coinciden con aquellos que definen la
naturaleza de las manifestaciones y prácticas teatrales pensadas bajo el nombre
3
Pueden incluirse dentro de lo que denominamos cine posdramático películas tales como Sábado
(2001, Juan Villegas), Todo juntos (2002, Federico León), Extraño (2003) y Cuatro mujeres descalzas
(2004, de Santiago Loza), A propósito de Buenos Aires (2006, AA.VV), Incómodos (2008, Esteban
Menis), Luego (2008, Carola Gliksberg), Castro (2009, Alejo Moguillansky), Ocio (2010, Alejandro
Lingenti y Juan Villegas) y Vidrios (2013, Ignacio Bollini y Federico Luis Tachella).
269
270
Viola
4
Los dos films forman parte, junto a La princesa de Francia (2014, Matías Piñeiro) de la “trilogía
shakespereana” del director.
271
relaciones de pareja en el espacio de los ensayos teatrales, ámbito dentro del cual
el realizador indaga sobre los roles femeninos en las comedias de Shakespeare.
Los cuerpos y los rostros de las actrices Sabrina (Elisa Carricajo) y Cecilia
(Agustina Muñoz) se muestran, en toda su dimensión y desde todos los ángulos
posibles, como cuerpos deseantes. El deseo atraviesa el film e impregna cada uno
de los numerosos primeros planos que lo conforman. Retóricamente, el film está
anclado en una Buenos Aires contemporánea y la amplitud de sus calles
registradas en planos generales son el contrapunto de la intimidad y de los
espacios interiores en los que se desenvuelven y accionan los personajes en la
mayoría de las escenas.
272
273
La escena del ensayo en loop fue el inicio de la película. (…) me planteé encontrar las
variaciones en la repetición. No es una mera acumulación. Me preguntaba cómo
podemos ir más allá del texto y ver lo que hay entre las palabras a partir de esta
traducción (en BREGA, s/f).
274
5
Entrevista realizada al director por Sergio Wolf en el programa Nuevo Cine Argentino el Canal de la
Ciudad. Disponible en: https://www.youtube.com/watch?v=WfxhNfSXnvA
275
que no debería ser del todo confiable”) donde se plantean soluciones a la trama y
Viola cuestiona su personalidad y su proceder ante la vida y ante sus relaciones. El
sueño se construye mediante un extenso plano secuencia cerrado sobre el rostro
de Viola, quien dirige su mirada hacia el fuera de campo en donde están situadas,
y representadas mediante voces en off, sus interlocutoras (Cecilia y Ruth). Y es en
dicha conversación donde se termina de configurar el personaje que da nombre al
film, y en donde percibimos una referencia simbólica a la nueva disposición
actoral y a las características de los personajes del cine posdramático: “sos
bastante pasiva y sin embargo te pasa de todo. No hace falta que hagas mucho
porque las cosas se hacen por vos”. Asimismo y en relación con la pasividad y el
automatismo, los personajes reflexionan sobre las acciones cotidianas
mecanizadas, las cuales dicen “que son lo mismo que no hacer nada”.
276
Bibliografía
277
ESSLIN, Martin. El teatro del absurdo. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1966.
278
279
1
Guilherme Carréra é doutorando em Artes e Mídia na University of Westminster,
em Londres, Reino Unido, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes).
e-mail: guilhermecarrera@gmail.com
280
Resumo
O presente artigo tem como premissa apresentar dados sobre a produção documentária brasileira
focada na temática do samba (a partir da base da Agência Nacional do Cinema, do Portal Filme B e da
Cinemateca Brasileira), a fim de analisar particularmente dois documentários de longa-metragem
interessados na representação desse universo no cinema. O mistério do samba (Carolina Jabor e Lula
Buarque de Hollanda, 2008) e O samba que mora em mim (Georgia Guerra-Peixe, 2012) enfocam
personagens e lugares historicamente associados à discussão: a Velha Guarda da Portela, no subúrbio
de Oswaldo Cruz, e os moradores do Morro da Mangueira, respectivamente. Questões sobre a relação
estabelecida entre quem filma e quem é filmado são o cerne deste artigo, cujo objetivo é pôr luz sobre
o debate que circunda a realização de documentários sobre samba no Brasil.
Abstract
This article aims to present data on the production of Brazilian documentaries about samba (from
the database of the Agência Nacional do Cinema, Portal Filme B and the Cinemateca Nacional) in order
to discuss two samba long-length documentaries in particular. O mistério do samba (Carolina Jabor
281
282
ficou abaixo de 15 exemplares, com destaque para os anos de 2007, 2009 e 2011,
com 34, 39 e 42 lançamentos, respectivamente. Dez anos depois da ambivalência,
2013 não só foi o ano com mais documentários lançados (50), como também foi o
ano com mais filmes lançados (129). Em 2014, por sua vez, foram 114
lançamentos, sendo 74 ficções, 36 documentários e quatro animações. (ANCINE,
2014). Essa trajetória numérica nos obriga a procurar pelos documentários que
deram forma à estatística oficial. Mais especificamente, por aqueles que têm o
samba como centro.
A recuperação do cinema documentário produzido no Brasil se beneficiou da
política cinematográfica implementada em meados dos anos 1990, mas também
foi possibilitada pelo investimento direto no gênero. Consuelo Lins e Cláudia
Mesquita (2011) elencam a criação de festivais temáticos, passando pela
ampliação dos editais de fomento, aumento do número de produções
documentais nas TVs aberta e fechada e demanda de interessados em cursos
práticos e teóricos, até o debate acadêmico acerca dos meios e linguagens do
documentário contemporâneo, como alguns dos fatores preponderantes nesse
cenário. Estreita-se também a relação entre produtores e consumidores de
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60
50
50
42
39
40 34
32 31
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20 15 15
8 10
10 3 4 3 4
1 2 2
0
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
Documentários lançados comercialmente no Brasil, segundo a Ancine
(2014)
Antes de mais nada, é preciso esclarecer que a seguinte análise de dados tem
284
dados atual.
Isso posto, a procura pelo termo “documentário”, no entanto, já disponibiliza a
consulta de expressivos 15.136 títulos. Refinando a busca, acrescentando o termo
“samba”, ficam disponíveis 108 títulos, entre curtas, médias e longas-metragens.
O registro mais antigo data de 1928: O carnaval cantado no Rio, um curta-
metragem filmado em 35 mm, dirigido e produzido por Francisco Serrador. De
fato, trata-se de uma das primeiras imagens do carnaval brasileiro, aquele que
surgia no Rio de Janeiro federal. A sinopse da época já avisava: “Reportagem
completa da última folia no Rio – Os mais interessantes aspectos com cantos de
canções (sic), chulas, lundus e sambas por um grupo de vozes do Flor de
Abacate, do Rio. Clubes, ranchos, bailes e outros detalhes”. (CINEMATECA
BRASILEIRA, 2014). O formato de reportagem audiovisual dialoga com a
propaganda política articulada pelo Brasil República do início do século XX. É o
momento no qual se buscava uma unidade nacional, lapidava-se uma identidade
brasileira, tateando aquilo que era uma incógnita. É ainda o momento em que o
cinema passa a ser visto como meio ideal de propagação dessa incógnita, a ser
revelada aos poucos. E passa também a ser consumido, sobretudo depois da
285
286
287
1
Nesse sentido, é importante frisar que os dados aqui apresentados referem-se ao mês de dezembro
de 2014 e que novos títulos devem ser acrescidos brevemente.
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35
35 31
30
25
20
15 11 12 12
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5 3 2
1 1 0
0
1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010
Gráfico 2 – Em dezembro de 2014, a Cinemateca Brasileira ofereceu como resposta 108 títulos, a partir
dos termos “documentário” e “samba”.
Fonte: Elaborado pelo autor.
289
Os mistérios da Portela
No ano de 1998, a cantora Marisa Monte deu início a uma pesquisa que tinha
como objetivo reunir sambas inéditos da Velha Guarda da Portela em um CD. Para
isso, foi ao encontro dos sambistas, teve acesso a gravações caseiras, descobriu
290
291
292
lembram, das histórias por trás de uma História oficial. Imagens de Oswaldo Cruz
cobrem esse áudio. São detalhes que sugerem um subúrbio fotogênico: um vaso
de flores, uma fachada de bar, um fusca azul na garagem. É a chegada não só do
espectador, mas também do realizador, àquele endereço. Nesse sentido, um
plano é significativo – e fará parte também da narrativa de O samba que mora em
mim. A estação de trem, a plataforma do trem, os trilhos do trem, o trem
chegando, o trem partindo. É fato que o transporte ferroviário é parte daquele
cenário, de Oswaldo Cruz e de outros subúrbios, mas é sintomático que funcione
como metáfora. Visualmente, é um plano que afirma uma chegada. Mais ainda,
afirma um trajeto empreendido até aquele lugar. Espectadores são transportados
para onde moram os sambistas em questão. E vindos de cenários outros,
distantes dali, realizadores posicionam-se como visitantes. Estão ali, mas não são
dali. Criam, mas mediam.
293
294
Desde que eu era bem pequenininha que eu aprendi que carnaval era muito mais que
folia, muito mais que feriado, muito mais que festa. Eu nasci numa família onde a
música sempre teve um grande valor. E o meu pai escolheu o samba-enredo pra
representar essa musicalidade dentro de casa. Ele nunca foi um percussionista
talentoso, ele nunca foi um mestre de bateria, mas ele sempre foi um carnavalesco
apaixonado. E a gente acompanhava ele nessa paixão pelo samba em todos os
ensaios dos blocos carnavalescos, das escolas de samba que ele frequentava. E
nesse frequentar, nesse estar junto, até pra vê-lo feliz, a gente, cada um do seu jeito,
transformou essa experiência. O meu irmão aprendeu a tocar vários instrumentos. Eu
diria que o meu irmão é um percussionista talentoso. Talvez ele não saiba. A minha
mãe, que era descendente de alemães, assim, calada e tímida, ela aprendeu a
295
296
generalização.
É difícil identificar se outras estratégias fílmicas de O samba que mora em mim
materializam um distanciamento desejado (afinal, não se nega que aquele é o
primeiro ou um dos primeiros contatos da cineasta com o morro) ou uma
aproximação ressabiada. A dúvida aparece muito também por conta do
casamento entre fotografia e trilha sonora, dois pilares na elaboração do
documentário. A câmera de Marcelo Rocha representa outra ambiguidade do
filme. Ainda no making of, Guerra-Peixe comenta sobre a escolha estilística do
uso da steadicam, equipamento cinematográfico que se acopla ao corpo do
operador, estabilizando sobressaltos, garantindo uma sensação de flutuação. De
volta ao filme, essas imagens preenchem boa parte do que é visto no quadro.
Funcionam como respiros visuais, entre um depoimento e outro. É um adentrar o
morro sem buracos, sem topadas. Os planos, muitas vezes longos, passeiam
curiosos. Inclinam-se sobre uma janela, demoram-se em determinadas esquinas.
Mas parecem todos milimetricamente marcados. Por outro lado, a fala de Marcelo
Rocha, de volta ao making of, explica uma vontade de invisibilidade: “Nós da
câmera estamos quase invisível perante aquela cena do cotidiano das pessoas”.
2
No original, “fly-on-the-wall documentary”. Estilo documentário relacionado ao modo observativo,
aquele que não interage com o objeto filmado.
297
responde que não, que não tem namorado, que não vai sair de casa. A cena
parece servir para amarrar a sequência que vem a seguir, e não como um flagra
da intimidade entre as duas. É na comunidade que os moradores assistem à
Mangueira desfilar: até o sol se pôr e o filme chegar ao fim. A trilha sonora que
Dimi Kireeff assina parece estar consciente da corda bamba na qual o
documentário tenta se equilibrar. Musicalmente, O samba que mora em mim é
diverso. Parte do samba, mas passa por outros gêneros musicais, principalmente
o funk. O instrumental composto por Kireeff ignora toda essa informação. Mistura
percussão brasileira e orquestra europeia. Violão e harpa. Adiciona sintetizadores.
“A música é a trilha sonora do olhar de Georgia sobre o morro”, explicou em
entrevista. (SOUZA, 2011). A música é, portanto, o atestado da mediação que o
olhar da cineasta faz entre o samba e o espectador.
298
O samba que mora em mim teve uma pré-produção como se fosse uma ficção,
conta Guerra-Peixe, cuja experiência anterior à realização desse documentário
fora toda em cinema ficcional. Antes das filmagens, a própria cineasta foi a campo
299
Considerações finais
300
entrevista como dispositivo, sendo utilizada como uma forma de acessar a história
do samba e desses sambistas. Assim como em outros documentários
contemporâneos (de temas, enfoques e abordagens variados), essa estratégia é
recorrente. A segunda é o uso de imagens de arquivo. Um recurso disponível seja
para ilustrar um acontecimento histórico, seja para apresentar os personagens em
alguma situação do passado. Por fim, os números musicais. Presentes em todos
os exemplares dedicados ao samba, as apresentações funcionam como uma
espécie de suspensão da narrativa. A execução de uma música pode sublinhar
algo que vinha sendo dito em entrevista ou pode servir como um respiro na
montagem. Essa tríade é acionada não só nos filmes que compõem este artigo,
como também em outros documentários musicais merecedores de nossa
atenção.
Referências
301
SOUZA, C. “Dimi Kireeff assina a trilha sonora de ‘O samba que mora em mim’”.
Revista Músico! – Tribuna do Músico, São Paulo, 2 fev. 2011. Disponível em:
<http://tribunadomusico.blogspot.com.br/2011/02/dimi-kireeff-assina-trilha-
sonora-do.html>. Acesso em: 2 nov. 2014.
302
Entrevistas
1
Flora Gomes, cineasta bissau-guineense realizador dos filmes de ficção Mortu
nega (Morte negada, 1988); Odjus azul di Yonta (Olhos azuis de Yonta, 1992); Po di
sangui (Pau de sangue, 1996); Nha fala (Minha fala, 2002) e Republica di mininus
(República de meninos, 2012).
2
Doutorado em Curso, pelo Centro de Investigação em Artes e Comunicação da
Universidade do Algarve-CIAC/Ualg, em Faro/Portugal. Bolsista do Programa
Doutorado Pleno no Exterior da CAPES, proc. nº 0654/14-0.
e-mail: jusciele@gmail.com
304
Resumo
Entrevista com cineasta bissau-guineense Flora Gomes, que nasceu em 1949, em Cadique, na
Guiné-Bissau; estudou cinema em Cuba, no Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográfica, e
no Senegal, sob orientação de um dos mestres do cinema africano, Paulino Soumarou-Vieyra. É
realizador dos filmes de ficção Mortu nega (Morte negada, 1988); Odjus azul di Yonta (Olhos azuis de
Yonta, 1992); Po di sangui (Pau de sangue, 1996); Nha fala (Minha fala, 2002) e Republica di mininus
(República de meninos, 2012).
Abstract
An interview with Bissau-Guinean filmmaker Flora Gomes, who was born in Cadique, Guinea-
Bissau in 1949. He studied cinema in Cuba at the Cuban Institute of Arts and Film Industry, and in
Senegal, under the guidance of one of the masters of African cinema, Paulino Soumarou-Vieyra. He is
the director of the fiction films Mortu nega (Death denied, 1988); Odjus azul di Yonta (Blue Eyes of
Yonta, 1992); Po di sangui (Blond tree, 1996); Nha fala (My voice, 2002) and Republica di mininus
(Republic of children, 2012).
305
306
307
JO: Por causa do nome, muitas vezes, você é confundindo com uma mulher...
FG: É comum e já me aconteceu uma vez que insistiram que eu era mulher.
Não me lembro do ano. Foi até no Brasil, em São Paulo, por coincidência, havia
um encontro cinematográfico e na recepção do hotel, ao me apresentar, disseram
que tinha um quarto reservado para Dona Flora Gomes, não para o Senhor Flora
Gomes. Depois, resolveu-se. Acho muito interessante esses momentos. Também
em Veneza, quando fui apresentar o Mortu nega (1988), estavam todos à espera
da Dona Flora. Penso que isso tudo faz parte do mistério do cinema.
3
Cineasta bissau-guineense. Nasceu em Enxalé, Guiné-Bissau, em 1950. Estudou cinema no Instituto
Cubano de Artes e Indústria Cinematográfica, em Cuba e no Instituto de Altos Estudos
Cinematográficos, em Paris. Iniciou a carreira ao lado de Flora Gomes correalizando com ele dois
curtas-metragens: O regresso de Cabral (1976), Anos no oça luta (1976). Realizou também Os dias de
Ancono (1979), Fanado (1984), Xime (1994), Bissau de Isabel (2005).
308
JO: E as expectativas?
FG: Minha expectativa, na verdade, era ver meu país liberto do colonialismo.
Era toda a minha preparação. Tudo era voltado para um dia sermos nós mesmos,
já que o Amílcar Cabral4 tinha uma ideia muito clara do que ele queria para Guiné.
Foi nessa lógica que fomos bebendo: ser guineense, ser africano e ser um homem
do mundo. Como dizia Cabral, sou um simples africano e quero saldar a minha
dívida com meu país e com o mundo. Eu também queria seguir essa pegada, não
para ser como ele, pois isso é impossível, mas fazer algo, para que, se ele
estivesse vivo, sentisse sinceramente que valeu a pena essa luta. Assim, sou um
homem que tem a sorte de ter um instrumento na mão que resiste à história, ao
passado, ao presente e ao futuro. À passagem do tempo. Acho que isso é um
instrumento fundamental para deixar as marcas do nosso passado.
4
Amílcar Cabral (1924-1973), herói da independência das Ilhas de Cabo Verde e da Guiné-Bissau,
assassinado em 20 de janeiro de 1973, na Guiné Conacri.
309
JO: Em 1995, numa entrevista, você dizia que a televisão é um perigo cultural.
Ainda pensa assim? Por quê?
FG: Sim. Porque o que é cinema, não é só o ato de filmar. É aquele momento
solene, quando se apagam as luzes e entramos num imaginário. O filme é o
conjunto das cores que o compõem, das vozes, das imagens, das pinturas e tudo,
inclusive o espectador. Em Bissau, como nós do dito “Terceiro Mundo”, na
verdade, nem sei em que mundo está a Guiné-Bissau, pois já são tantos, não
temos uma televisão local. Passamos a ver a televisão dos outros. Chegas à
310
311
FG: Sim. Sou conhecido por fazer planos-sequência dos quais as pessoas não
gostam muito. Grandes movimentos. As pessoas acham que são longos e eu
gosto disso. Acho que levamos muito tempo para resumir o que queremos fazer e
eu gosto de mexer com o espectador.
JO: Vamos falar um pouco sobre seus filmes. Seu primeiro longa-metragem,
Mortu nega (1988), é um filme histórico, que retrata o último ano da guerra contra
o colonialismo português. Já o último, República de mininus (2012), narra o drama
das crianças-soldados, espalhadas pelas guerras no mundo. O que mudou (ou
não) no olhar do cineasta Flora Gomes?
312
FG: Acho que as coisas ainda não mudaram. Acho que talvez a minha voz
ainda tenha algumas barreiras. É preciso gritar muito mais forte do que isso. O
Mundo, a África, o continente, sinto que precisa ainda ser visto, ser mais filmado,
precisa falar-se mais nele ou fazer mais do que já se fez. Acho que a África nunca
esteve confrontada com tantos problemas quanto nos últimos anos. Acho que
isso tem a ver com a maneira, a forma como os nossos comandantes estão a gerir
os nossos países, com o modelo de democracia europeu. Estamos a copiar, como
falei no filme Olhos azuis de Yonta, estamos a copiar os modelos ocidentais.
Também não conhecemos outro modelo, mas acho que nós temos que repensar
os nossos modelos. Repensar a maneira de gerir os nossos países. A África está
cada vez mais confrontada com problemas, sobretudo por conta das guerras. É a
guerra do querer, de ser mais, tornar-se mais visível. As guerras não nos levam a
parte nenhuma. É preciso questionar o porquê dessas guerras. São guerras que
não deveriam ter lugar no século XXI. É a guerra do querer ser visível e
esquecemos o essencial que é a nossa cultura, identidade. A nossa identidade
não é estática, mas está sempre em constante mudança, que é a nossa pertença
da nossa cultura, como a nossa língua ou a nossa forma de vestir, a nossa forma
313
JO: Você pensa que ficou marcado pelo sucesso do seu primeiro longa-
metragem? Há sempre uma expectativa de encontrá-lo nos seus próximos filmes?
FG: O Mortu nega é um filme que fala de um momento de resistência de um
país, em que o herói é o povo da Guiné. Todo o povo da Guiné. Eu fiquei com a
marca da guerra, muita gente gostaria que eu continuasse a falar da guerra, acha
que não falei o suficiente da guerra. Respondo que a guerra não é só carregar
armas na mão. Nós estamos a fazer uma guerra para construir ou reconstruir a
Guiné. E essa guerra passa por ter uma boa escola, ter eletricidade, ter um bom
hospital. Novamente, é o caso dos Olhos azuis de Yonta, no qual falo dos filhos
desses combatentes, dos nossos filhos. Hoje tenho que falar dos netos. É uma
luta constante e, embora eu não esteja amarrado à luta de libertação, ela me
inspira. Tenho olhos no século XXI e não quero que a Guiné fique fora do jogo
desse século. De sermos africanos, sermos do mundo, ser o que somos, sem
esquecer a nossa pertença.
314
5
Vendedoras do mercado e nas ruas da Guiné-Bissau.
315
JO: Seus temas são vastos e suas histórias cruzam-se com histórias da Guiné-
Bissau. O que lhe motiva a continuar contando essas histórias?
FG: A Guiné-Bissau é um pequeno país. Uma vez um amigo senegalês me
perguntou quantos somos. Somos quase dois milhões. Isso é um bairro de Lagos,
na Nigéria. Eu não quero que a Guiné-Bissau tenha um bilhão de habitantes,
porque não é pelo tamanho que quero que ela seja lembrada. Quero que seja
lembrada pelos seus feitos, como a luta de libertação, quando declarou
unilateralmente sua independência em 1973. Isso para mostrar que a Guiné-
Bissau tem potencial. E esses cruzamentos nas minhas histórias ocorrem porque
quero ser ouvido. Quero que meu país seja visto, mas quero pertencer não só à
Guiné-Bissau, à África, mas ao mundo global. Isso é fundamental para que as
pessoas questionem de onde é esse filme, que fala que é preciso ousar para
em que uma criança questiona que: “seu destino está cada dia mais incerto”?8
Isso tudo são questões que surgem, podia ser uma história em Angola, em
Moçambique, no Brasil, em Portugal.
JO: “Entre o Norte e o Sul. Entre o quente e o frio. Nada é tão simples”9. As
coisas ainda continuam assim? Por quê?
6
Referência ao filme Nha fala.
7
Referência ao filme Po di sangui.
8
Referência ao filme Olhos azuis de Yonta.
9
Trecho de uma música do filme Nha fala.
316
FG: Continuam e vão continuar. Desde que haja na nossa mente que o outro é
diferente, que está ao meu lado, mas que somos obrigados a viver juntos. Iguais
na diferença. Essa é a nossa luta no mundo.
317
que marcharam com ele na construção do país. Ele começou a sentir que já teria
cumprido com a sua missão, que também sabia que ninguém podia impedir que a
Guiné-Bissau chegasse à independência. Aliás, é o que ele diz no seu último
discurso.
318
Resenhas e Traduções
A mobilidade enraizada:
contradições do cinema africano1
Dudley Andrew 2
Tradução: Moema Franca3
1
Este artigo foi extraído de um ensaio de Dudley Andrew entitulado “The roots of
the Nomadic: Gilles Deleuze and the Cinema of West Africa”, editado por Gregory
Flaxman em The Brain is the screen: Deleuze and the Philosophy of Cinema
(Minneapolis: University of Minesota Press, 2000, p. 228-243).
2
Dudley Andrew é professor de Literatura Comparada e Estudos Cinematográficos
na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Com mestrado sobre Alain Resnais
na Universidade de Columbia (1969) e doutorado sobre André Bazin na
Universidade de Iowa (1972), Andrew é autor de numerosas publicações na área
de estética e teoria do cinema, tendo se especializado na cultura literária,
cinematográfica e filosófica francesa e nos cinemas da Ásia, da Europa e da África,
321
Resumo
Seguindo as pistas abertas por Gilles Deleuze, para quem o cinema da metade
do século XX abriu perspectivas inéditas ligadas às formas de oralidade e
nomadismo, o presente artigo propõe-se a tecer uma análise do cinema do oeste
da África, perseguindo o desenho traçado por um conjunto de filmes em que se
alternam a afirmação de uma identidade original e o movimento de uma
identidade constantemente em reconstrução e trânsito, forças contraditórias que
se expressam pelas figuras do enraziamento - o Baobá - e do nomandismo - os
ventos do Sahel.
Palavras-chave: Nomadismo; Identidade; Cinema da África do Oeste.
322
323
324
1
Cissé continua: “Mesmo que eu considere o colonialismo, eu não o trato como fundamental na
emergência de certos valores. Ao negligenciarmos nossos próprios valores, nós permanecemos
alienados, controlados pelos valores dos outros”.
325
326
2
Ver o ensaio de Susan McRae sobre este filme em: Research in African Literatures, Fall, 1995. Ver
também meu próprio ensaio e de Philip Gentile em: Iris n. 18 (1995).
327
Kuuni soa como uma performance coletiva de uma lenda de aldeia. O filme
começa com um menino perdido na mata, que recebe o nome de Wend Kuuni,
“Presente de Deus”, daqueles que o encontram lá. Sua errância daí em diante será
espiritual, uma vez que, mudo e amnésico, ele está determinado, sob os cuidados
benevolentes de sua família adotiva, a recuperar o seu passado e a sua fala.
Marie-Magdalene Chirol argumentou que, ao descobrir sua identidade (ou seja,
mãe e pai), Wend Kuuni efetivamente descobre “ma” e “da”, os elementos
fonéticos primários que permitem a articulação da fala 3 . Esse Nachtraglichkeit
ocorre numa noite escura quando ele deixa a aldeia para procurar uma faca que
tinha deixado embaixo de um baobá. Lá, sua memória é reavivada pelo choque de
ver o corpo de um homem da aldeia, que havia se enforcado na árvore depois de
ter sido condenado ao ostracismo. Lembranças de sua própria expulsão de sua
aldeia, em companhia da mãe, agora inundam Wend Kuuni, levando a lembranças
da morte de sua mãe, de doença e de fome, embaixo de outro baobá.
Confrontando o cadáver, Wend Kuuni é liberado de sua ignorância; ele retorna,
capaz de falar com sua nova família e de saudar uma aldeia receptiva, que
esperou pacientemente pela sua recuperação.
3
Ver CHIROL, Marie-Magdalene. “The Missing Narrative in Wend Kuuni”. Research in African Literature
26, n. 3, Fall, 1995, p. 53.
328
o jovem Mabo Keita nunca deixa o corre-corre de Ouagadougou, onde seus pais e
professores o educam num estilo condizente com a nossa época. E mesmo assim
o jovem Mabo, instigado pelo griô Djeliba, embarca em sua própria jornada
transformadora, contra o desejo de seus pais e professores, cujos valores e
linguagem ele começa a questionar. Essa linguagem, Francês e Matemática, é
interrompida por Djeliba quando ele encontra Mabo pela primeira vez, pois o
garoto está lendo em voz alta, no seu livro francês de ciências, que os humanos
descendem dos gorilas. Chocado, Djeliba decide contar a Mabo sobre seus
ancentrais verdadeiros para ajudá-lo a firmar o seu nome e o seu lugar real.
Para interromper esse suave deslizamento da educação familiar para o
modernismo de Estado, o griô planta um objeto vertical no caminho, uma árvore
da memória: ou se deve evitá-la ou devem-se explorar seus galhos e raízes. O
filme seria tal obstáculo para os espectadores, que por um tempo (96 minutos,
nesse caso) são desviados de seus caminhos habituais para um outro plano da
experiência, um plano paralelo da fabulação. A fabulação, construção deliberada
de um mundo, começa no início de Keita, com o canto das origens que
acompanha os créditos. A câmera faz um movimento panorâmico sobre o corpo
329
ouve, fascinado, a lenda de suas origens. O clímax do filme está não na lenda,
uma vez que Djeliba interrompe o seu conto com o exílio de Soundjiata ao invés
do seu triunfo4, mas na vida de Mabo, quando, provocando a ira de seus pais e
professores, ele decide aceitar a busca para fazer reviver sua tradição. Djeliba o
abandona ao lado de um baobá próximo a sua casa (uma árvore na qual ele
sentou enquanto retransmitia aos seus amigos o conhecimento sagrado do griô).
Na cena final, Mabo circula ao redor do seu tronco imenso, prometendo localizar
outros griôs para ajudá-lo a explorar as raízes de seu passado e projetar as
ramificações do futuro de seu povo. Um pássaro sagrado voa em círculos sobre
ele, trasmitindo bons augúrios.
E, de fato, ele explorou essas raízes, pois o garoto (ou melhor, um garoto, Dani
Kouyate) cresceu para fazer exatamente esse filme. O griô, Djeliba, é interpretado
por um verdadeiro griô, seu pai, Sotigui Kouyate, uma voz e um rosto familiares
para aqueles que vivem na África Ocidental. Então o filho “na vida real”, como
costumamos dizer, tendo ouvido os contos de seu pai, foi de fato em busca de
seu passado mais vasto, fazendo doutorado em etnologia em Paris e ganhando
um certificado em cinema para cantar esse conto para uma nova geração, num
4
Uma pesquisa em audiências nativas depois das sessões do filme em Burkina Faso encontrou
espectadores frustrados e desapontados uma vez que a famosa lenda foi encurtada. “Fespaco 1995
Critique cinematographique”, editado por Traoré Biny, Jean-Claude (datilografado, Bobo-Doulasso, 17
de Fevereiro de 1995), p. 15-24.
330
5
Entre os muitos filmes que exibem árvores fabulosas, deixe-me destacar Mossane, de Safi Faye
(Senegal, 1995) e especialmente Po di Sangui, de Flora Gomes (Guinée-Bissau, 1996). Este último,
narrado por uma mulher griô, é baseado na premissa de que nas aldeias da Guiné Bissau uma árvore é
plantada no nascimento de cada criança. A árvore invariavelmente sobrevive à pessoa para quem ela é
uma metonímia; efetivamente, o espírito da pessoa passa para a árvore na sua morte. O drama gira em
torno da destruição da floresta de tais árvores pela modernização do país.
331
6
Ricoeur articula a fidelidade do novelista à sua intuição com a fideliade que o historiador exibe em
relação ao passado. (RICOEUR, 1988, p. 177).
7
Olivier Barlet apresenta uma visão diferente da minha nessa discusão extensa sobre o griô
cinematográfico. Ver seu livro Les Cinémas d’Afrique noire: le regard en question (BARLET, 1996). “O
cineasta é um griô moderno.... mas seu discurso é novo. O confronto entre a fala ancestral e os valores
modernos importados força uma nova forma de discurso no qual o homem contemporâneo (pelos
meios de uma mistura de culturas, considerada africana ou não) pode reconhecer a si mesmo. (p. 168-
69). Barlet descarta o “griot engagé”: “Se o cineasta se inspira no modelo do griô, é por o revirar: seu
objetivo não é a coesão do grupo mas sua evolução”. (p. 180). Essa evolução inclui o hibridismo, a
aceitação de certas influências ocidentais, impureza. Enquanto eu enfatizo o griô como aquele que visa
primeiro a coesão do grupo através da sua herança.
332
Ele passa adiante o que poderia ser chamado de tradição familiar, tribal ou racial.
O griô vasculha a amplidão plana do Sahel africano procurando evidências da
história, vestígios de ancestrais e de animais, conhecimento essencial para nutrir a
aldeia, para evitar que ela seja arrastada pelos ventos harmattan da mudança. Um
nômade do espírito, o griô localiza reservatórios de água sagrada, onde o passado
se reúne em poços subterrâneos. Uma linha de cineastas africanos tem buscado
repetidamente a água desses poços, esforçando-se, por muitos anos agora, para
transformar essa terra em algo viável.
O contador de histórias que Walter Benjamin venerava sustenta um ethos
público que desdenha da privacidade do romancista, que, sozinho em seu
escritório, inventa estados psicológicos íntimos de seus personagens.
Determinado em sua criação, o romancista fixa palavras numa página, páginas
num livro, e livros na instituição da biblioteca. O contador de histórias, o griô
africano, em contraste, transmite uma tradição comum. Ele molda contos
tradicionais com sagacidade e esperteza para adaptá-los ao momento de sua
apresentação. Ele nomeia as referências numa genealogia complexa que ele
acessa deslocando-se no tempo, para cima e para baixo do tronco da grande
333
nas áreas rurais, por empresários libaneses que oferecem principalmente filmes
hindus8. Guelwaar, talvez o filme africano mais discutido da década, esperou anos
para conseguir uma projeção em Dakar, cidade natal de Sembène. Na África, ele
pôde ser visto no FESPACO e foi exibido também em outros festivais, muitos
outros. Sembène o seguiu ao redor do mundo.
Os cineastas africanos podem preferir a imagem do nômade, mas muitos
parecem destinados a viver como migrantes, indo de festival em festival, de
universidade em universidade, para apresentar sua obra. Nessas viagens eles
inventam futuros projetos com outros membros da caravana, ou se associam às
fontes de dinheiro e tecnologia que encontram pelo caminho: uma promessa de
distribuição de uma rede de TV européia, uma subvenção para pós-produção
numa montadora parisiense, uma aliança com um compositor afro-pop conhecido
no coquetel de um festival. Para escapar do naufrágio, enquanto flutuam através
dos obstáculos de uma existência caótica, os cineastas africanos projetam
frequentemente imagens de um passado enraizado, uma árvore ancestral, que
assegura uma identidade que eles podem proclamar com orgulho. Evidentemente,
os griôs e as tradições que eles trasmitem promovem a estabilidade da família,
8
Alguns cineastas colocaram seus filmes na estrada em seus próprios países, exibindo-os de aldeia
em aldeia por uma ninharia. (BOTTÉON, Christophe. “Cinéma d’Afrique noir ou le talent sans moyens”.
Cinéma, Paris, n. 590, sep. 1997, 15-17).
334
nômade.
Os cineastas africanos podem fazer com que eles mesmos e o seu povo
sintam-se seguros a respeito de suas raízes sem se segurarem a essas raízes?
Essa é a mensagem explícita de Keita, uma vez que Mabo está determinado não
apenas a aprender o conhecimento tradicional reprimido de seu grupo, mas
também a frequentar a escola francesa, talvez para um dia estudar etnologia em
Paris. O futuro da cidade de Mabo, Ouagadougou, vai igualmente precisar
esboçar-se a partir de um passado variado e de línguas variadas. O griô ensina
Mabo a venerar, explorar e invocar a árvore da tradição, particularmente em
épocas de necessidade; presumivelmente, uma vez alimentado e descansado,
uma vez seguro sobre o seu valor, Mabo (sugerindo a África) sairá da sombra da
árvore para a amplidão do Sahel, para negociar o novo, no ato permanente de
tornar-se um povo. Desse modo, a tradição pode ser entendida como uma etapa,
um estado de poder acumulado, no percurso de se tornar uma outra coisa.
Para os cineastas africanos, a negociação acontece nos festivais europeus,
nos quais a “diferença” é premiada. Histórias pré-coloniais e histórias retratando a
vida na aldeia, especialmente quando envolvem práticas animistas, têm sido bem
335
336
337
distintos. “Identidade”, nesses três filmes afro-pop, não é outra coisa a não ser
persistência e sobrevivência. A identidade está em movimento nas cidades
africanas; aliás, num lugar assim, identidade é movimento.
Referências
RICOEUR, Paul. Time and Narrative III. Chicago: University of Chicago Press,
1988.
338
Cinema africano:
perturbando a ordem (cinemática mundial)
Kenneth W. Harrow1
Tradução: Lúcia Ramos Monteiro2
1
Kenneth W. Harrow é professor titular (“distinguished”) do departamento de
Inglês da Michigan State University, nos Estados Unidos. Com mestrado em inglês
(1966) e doutorado (1970) em literatura comparada pela New York University, ele
especializou-se em estudos pós-coloniais e no cinema e na literatura da África e
das diásporas. Dentre seus diversos livros publicados, os mais recentes são
Postcolonial African Cinema: From Political Engagement to Postmodernism (2007)
e Trash! A Study of African Cinema Viewed from Below (2013). Em 2011, ele
recebeu o prêmio de “africanista distinto” (Distinguished Africanist Award) na
339
Resumo
Kenneth Harrow pensa o conceito de “cinema mundial” – e suas novas formulações, a partir do
“transnacional” e do “global-local” – à luz dos cinemas africanos, tanto os herdeiros do Terceiro
Cinema e dos cinemas de libertação nacional (de Ousmane Sembène a Jean-Marie Téno), quanto os
que adotam uma perspectiva experimental ou vanguardista, como Jean-Pierre Bekolo, Mahamat-Saleh
Haroun e Andy Amadi Okoroafor, incluindo também os cinemas populares, principalmente Nollywood.
Os paradigmas evocados por Krings e Okome (2013) e Diawara (2010) dão ensejo à seguinte questão:
como o leque de práticas fílmicas realizadas atualmente na África, dos filmes sérios e independentes
às mini-indústrias ao estilo de Nollywood, requer a reconceituação de novas noções transnacionais da
globalização (DUROVICOVA & NEWMAN, 2010). Continuando seu trabalho anterior (HARROW, 2012), o
autor enfatiza a necessidade de uma abordagem dos filmes africanos baseada em sistemas de valores
que funcionem “isomorficamente”. Valores normativos devem ser desestabilizados pela introdução de
objetos considerados sem valor pelas escalas tradicionais – no caso, a presença de filmes africanos
desestabiliza os critérios de valor do chamado “cinema mundial”.
Abstract
340
1
No original, a expressão usada pelo autor é “World Cinema” assim como, mais tarde, ele falará de
“World Music”. Aqui, optamos por deixar a tradução para o português, como “cinema mundial”.
[N.d.T.]
2
APPADURAI, 2004, p. 50. [N.d.T.]
341
3
Estou usando a categoria de Cinema Mundial, frequente em círculos acadêmicos; costuma-se fazer
referência a tais filmes tanto como cinema global ou como cinema mundial.
342
343
344
certezas mais banais com relação à África, junto com noções de cinema marginal,
Terceiro Cinema, Cinema de Oposição. Ainda não estamos na era do Cinema
Mundial, mas em seu limiar, antes que o Global tenha deslocado o nacional,
quando as ênfases nos cinemas nacionais europeus, seguidas por cinemas
nacionais não-ocidentais, eram todas enquadradas em termos que replicavam os
cursos de pesquisa em cinema anteriores.
A descrição da Amazon para o Oxford History of World Cinema (NOWELL-
SMITH, 1996) aproxima-se, de maneira não intencional, da auto-paródia: “No
Oxford History of World Cinema, um grupo internacional de historiadores do
cinema traça a história desse persistente médium de entretenimento popular.
Cobrindo todos os aspectos de seu desenvolvimento, estrelas, estúdios e impacto
cultural, o livro celebra e narra mais de 100 anos de diversas conquistas, dos
filmes de faroeste à Nouvelle Vague, da animação à vanguarda, de Hollywood a
Hong Kong”. Isso, o mundo-compêndio, é transportado, como o livro de Hill e
Gibson, com uma grande ênfase no cinema ocidental, de seus primeiros anos até
o presente, com a mesma previsibilidade de conteúdos com que Chanan
descreve as sessões de cinema de grandes redes e franquias, em que as divisões
4
Trecho da resenha de Thomas Leitch, da Universidade de Delaware, reproduzido no material
promocional do livro de Martha Nochimson e divulgado pela editora Wiley (Cf.
http://www.wiley.com/WileyCDA/WileyTitle/productCd-1444358332.html, último acesso 8 de janeiro de
2017).
345
346
5
O cineasta senegalês Ousmane Sembène (1923-2007). (N.d.T.)
6
Referência ao cineasta Jean-Marie Téno (1954-), da República de Camarões, autor de uma série de
documentários, relativos sobretudo à história do colonialismo e pós-colonialismo na África. (N.d.T.)
7
O realizador camaronês Jean-Pierre Bekolo (1964-). (N.d.T.)
8
Mahamat-Saleh Haroun (1961-), realizador natural do Chade, estabelecido na França, autor do longa-
metragem premiado no Festival de Veneza Temporada de Seca (Daratt, 2006), entre outros filmes.
(N.d.T.)
9
O cineasta nigeriano Andy Amadi Okoroafor (1966-). (N.d.T.)
347
na medida em que eles fornecem uma abertura à questão central de como, dos
filmes independentes sérios às mini-indústrias ao estilo de Nollywood existentes
por todo o continente, a vasta gama de práticas fílmicas na África de hoje está
gerando um corpus de trabalho que requer a reconceituação das novas noções
transnacionais de globalização que Durovicova enfrenta em sua coleção.
Para tanto, tentarei prolongar o trabalho que iniciei em Trash: African Cinema
from Below (2012), no qual enfatizo a necessidade de formular uma perspectiva
sobre os cinemas africanos baseada em sistemas de valor que funcionam
“isomorficamente”, ou seja, que ecoam os parâmetros da cultura e se relacionam
uns aos outros por meio da incorporação do que, sob determinado ponto de vista,
é julgado sem valor, mas ganha lugares de valor distintos sob perspectivas
diferentes. Isso só pode ser feito pela perturbação dos sistemas de valores
normativos. Neste caso, os valores normativos a serem explorados e em seguida
desestabilizados pela introdução dos filmes africanos em seus corpus serão
aqueles subjacentes à denominação “Cinema Mundial”.
Então, o que é novo no Cinema Africano? O recente estudo de Manthia
Diawara sobre cinema africano, intitulado African Film: New Forms of Aesthetics
348
10
Cineasta ganês, autor de Lover’s Blues (1993) e Love in America (2004). [N.d.T.]
11
Cineasta ganesa (1977-), autora de Grey Dawn (2015), entre outros. [N.d.T.]
349
12
Os termos usados pelo autor, no original em inglês, traduzidos aqui para “áspero” e “lixesco”, são
“scratchy” e “trashy” [N.d.T.].
13
Kannywood é o termo usado informalmente para designar a indústria cinematográfica de língua
Hausa, que se situa no norte da Nigéria [N.d.T.].
14
O autor faz referência ao manifesto do cubano Julio Garcia Espinosa, publicado em cópia
mimeografada em 1969 e incluído em antologias de textos do autor (ESPINOSA, 1970). [N.d.T.]
15
O autor se refere ao cineasta etíope Haile Gerima (1946-) [N.d.T.].
16
O autor se refere ao cineasta mauritano Med Hondo (1936-) [N.d.T.]
17
Referência à chamada Los Angeles School of Black Filmmakers, de que faziam parte Charles
Burnett, Larry Clark, Julie Dash, etc. [N.d.T.]
350
veteranos Hondo e Gerima não se alinha a nenhuma das novas tendências. Eles
não podem, por exemplo, ser comparados a Fanta Nacro18, que Diawara também
não menciona, embora se desculpe, em determinado momento, por não examinar
com a devida atenção o trabalho de cineastas africanas mulheres. Seu pedido de
desculpas é impressionante. Ele escreve:
“Como artistas e críticos, poderíamos culpar líderes africanos por corrupção e exigir
democracia e transparência. [Notemos que ele não inclui justiça, o que seria uma
demanda socialista]. Poderíamos culpar líderes europeus por corromper africanos
com seu dinheiro, seu materialismo e suas atitudes paternalistas. Poderíamos até
professar a igualdade de direitos para as mulheres em nossos filmes, livros e
canções. Finalmente, poderíamos defender a nós mesmos, afirmando que atitudes
patriarcais e sexistas, como a corrupção e o nepotismo, não são absolutamente
problemas exclusivos dos africanos, mas existem firmes e fortes na Alemanha, no
resto da Europa, na América, em toda parte. Agora, porém, todas essas respostas
parecem fáceis demais e soam como desculpas.” (DIAWARA, 2010, p. 161).
O mesmo poderia ser dito sobre os filmes, sobre a crítica que o próprio
Diawara escreve e sobre a ideia de que os filmes recebem a crítica que merecem,
e que as sociedades têm os filmes que merecem. Trata-se, novamente, de
18
Referência à cineasta de Burkina Fasso Fanta Régina Nacro (1962-). [N.d.T.]
19
A expressão “calabash cinema” (ou, em francês, “films-calebasse”), designa um conjunto de longas-
metragens produzidos sobretudo entre as décadas de 1970 e 1990, em que personagens femininas
eram vistas carregando água em cabaças colocadas sobre suas cabeças, numa imagem que se tornou
351
352
escolhas visuais, numa comparação com Sissako, faz parte da melhor crítica do
cinema africano até hoje. Deixa para trás as generalizações excessivamente
didáticas de Teshome Gabriel (2011) sobre o que é africano em um plano
sequência, ou um plano longo, ou a doença da europeização no uso de close-ups.
Às vezes nos pedem que aceitemos a formulação banal segundo a qual um tema
africano é de algum modo mais comunitário que um tema ocidental, uma asserção
baseada mais na crítica sociológica vulgar do que na psicologia do sujeito. Mas,
quando Diawara descreve, por exemplo, os planos de A Vida sobre a Terra (La vie
sur terre, Abderrahmane Sissako, 1998), ele abre as possibilidades de leitura da
gramática de modo a permitir que um artista se agarre a seu desejo de abraçar
uma certa África, cujos ritmos da vida ele ouviu ecoar tempos atrás, no trabalho
de Césaire. Quando Diawara descreve a praça antes da cidade de Sokolo, ele
escreve: “conforme os jumentos entram no quadro e se afastam da câmera,
percebemos que tudo no plano foi coreografado e dirigido para revelar a inscrição
do tempo em um espaço particular” (DIAWARA, 2010, p. 102). Ele continua, para
mostrar, com precisão, como isso ocorre, como “seres humanos e animais são
colocados no mesmo patamar e numa relação de igualdade pela maneira como
353
23
Em francês no original. Em português, “povo”. [N. d. T.]
354
Madame Fall apenas mais tarde, trata-se de um discurso interno, visando apenas
um círculo fechado de interlocutores africanos que são vistos ouvindo de perto
suas palavras, enquanto os personagens europeus, e por conseguinte o público
implícito do filme de arte, são deixados de fora. Não há um momento comparável
no corpus de Sembène.
A segunda onda não tem uma formulação clara. Exceto para aqueles que
consideram a realização uma arte aprendida dos mestres, o que é La Guilde,
afinal, com os novos aprendizes agora livres para experimentar por conta própria?
Bekolo é o exemplo escolhido, e está claro que, com respeito a isso, Le complot
d’Aristote (Jean-Pierre Bekolo, 1996) funciona muito melhor do que seu mais
recente e mais programático Le Président (2013), ou que a segunda metade de
Les Saignantes (2005), em que a paródia do Ministro, e, por associação, do
governo de Biya, ou, melhor ainda, do legislador autocrático Mbembe, vem
substituir a estupenda história de Mvoundou e seus acólitos, as Saignantes24.
A Guilde parece consistir nas gerações mais jovens, ou mais precisamente na
geração que era a mais jovem na década de 1990, e reúne indistintamente nomes
como Téno e Bekolo, cujos estilos e abordagens não podem ser mais diferentes,
24
Em francês no original; em português, as “sangrantes”.
25
“A existência de um sujeito autônomo era uma parte essencial do artístico enquanto produção
cultural nos tempos modernos, conforme afirma Jameson. Isso permitiu que o artista como sujeito se
355
Téno é tudo menos ansioso com relação a sua subjetividade, a voz over
transmite garantias de valores básicos. Nesse sentido, ele se aproxima mais de
outros cineastas da “Guilde”, como Dani Kouyaté26, e especialmente de figuras
importantes, como Akomfrah27 e o Coletivo Black Audio Film28, com quem Diawara
diz estar em diálogo, ou seus progenitores, como Gerima ou Clyde Taylor29, que
usavam o termo L.A. Rebellion para definir a escola de Los Angeles.
Pouquíssimos cineastas africanos poderiam ser completamente dissociados de
uma forma ou outra de consciência negra, mesmo quando eles explicitamente se
distanciam de uma didática aberta dos termos da revolução. Quando Gerima, em
Teza (2008), questiona as premissas que levaram sua geração a advogar pela
mudança revolucionária sem antecipar a virada autoritária que levou a governos
como o DERG, da Etiópia, ou simplesmente a cínica expropriação dos discursos
da Negritude ou do Black Power por ditadores como Mobuto ou Idi Amin, não
surpreende que a nova geração, tão bem representada em Os olhos azuis de
Yonta, de Flora Gomes30 (Udju Azul di Yonta, 1992), agora passe sermões em seus
predecessores revolucionários, como Vicente, novo beneficiário da mudança
356
Ele continua: “a imagem deve portanto ser continuamente trabalhada; ela deve
estar imbuída de conotações que resistam a significantes negativos do Africano
na mídia ocidental e também dotada de um imaginário que seja ao mesmo tempo
atemporal e novo”. Essa imagem, conforme ele defende, “recusa a colonização e
as definições absolutistas” (DIAWARA, 2010, p. 130). Isso certamente define o
próprio trabalho de Diawara, que se vê como alguém que acredita na identidade
negra e em seus imperativos, embora não se restrinja a antigas noções
acadêmicas de arte revolucionária e ideologia.
Se a primeira onda é a mais autorista, e a segunda, a mais marcada por
sensibilidades diaspóricas, a terceira via, vagamente denominada “Novo Cinema
Africano Popular”, é ao mesmo tempo a mais amorfa e a mais africana. Depois de
357
31
O cineasta congolês Balufu Bakupa-Kanyinda (1957-).
358
afirma, tais filmes contribuíram para “constituir o início de fato do cinema africano
para africanos” (DIAWARA, 2010, p. 145). Como esses filmes, ainda não vistos
rapidamente na África, e certamente não em salas de cinema, praticamente
inexistentes, constituem o verdadeiro início de um cinema africano para africanos,
mais do que os vídeos de Gana e Nollywood, é um mistério para mim. Mas a
aspiração, se não a própria satisfação dessa reivindicação, é de grande valia para
definir seus traços essenciais. A “cultura real”, o “povo real” a quem esse cinema
se refere é sobretudo definido em termos nacionais, o que é estranho o suficiente
em uma era de globalização. Assim, ele entende que a linguagem fílmica é
informada por elementos nacionais de dança, linguagem, tradições orais, etc.,
como o Muridismo e o Sabar, formas religiosas e de dança senegalesas. Para o
estudioso cosmopolita e global, essas podem ser consideradas formulações
locais, não nacionais, e a circulação desses cineastas funciona bem – Karmen Gei
(Joseph Gaï Ramaka, 2001) ou O Preço do perdão (Ndeysaan, Mansour Sora
Wade, 2001) estão ligados ao circuito internacional de festivais ou ao circuito
comercial transnacional, é assim que são encontrados em sites dedicados a filmes
africanos. Esses filmes não podem ser definidos simplesmente como um conjunto
359
fórmulas, como a defesa de que o plano médio e o plano geral são mais
apropriados para identidades comunitárias do que individualismo e subjetividade,
associados ao ocidente e evocados por meio de close-ups. De toda forma, não é
possível chegar mais perto do nariz de Dieng do que na tomada em que seu
interior é limpo com uma navalha em Mandabi (Ousmane Sembène, 1968).
Diawara retorna a Senghor para uma explicação sobre esse sujeito africano,
retraçando linhagens familiares, mas de novas maneiras, abertas pelo cinema. A
máscara, por exemplo, se torna a imagem impressa sobre o olho com o close-up
do rosto. Senghor se apoia no que se aproximaria de um vitalismo do Padre
Temples, que Diawara transfere para o close-up: “Ele mostra a quantidade de
força vital que o realizador pode investir na tomada para dotá-la dos mesmos
poderes possessivos que a máscara durante a performance de um ritual...”
(DIAWARA, 2010, p. 150). O significado desse plano, originalmente menosprezado
por Gabriel, é que ele é “o lugar de nossa relação com o Outro” (DIAWARA, 2010,
p. 150).
Butler (1997) faz uso da noção hegeliana e nietzschiana do Outro para sua
concepção de assujetissement 32 , formação do sujeito, como vou mostrar em
32
Em francês no original; em português, poderia ser traduzido por “assujeitamento” [N.d.T.]
360
361
2010, p. 127). A questão central aqui, para todos que trabalham com os atributos
do Novo Cinema Africano, é o que é o Outro de que depende o trabalho de
estabelecer o sujeito africano. Tal questão pode ser encarada da mesma maneira
que a questão da autenticidade.
Por que Diawara abraça o critério da autenticidade, de algo que ele se sente
confortável em chamar de africano, mas não sob uma perspectiva estrábica,
como Ama Ata Aidoo (1979) a chama, ou do ponto de vista do lixo, como Robert
Stam (1998) nomeia um corpus de filmes brasileiros33? Isso se aproxima daquilo
que eu chamo de uma posição “de baixo”, do lixo, como Bataille (1989) ou John
Waters (1988) a veriam. A autenticidade para Diawara não se ancora em um valor
absoluto, mas em uma localização e uma perspectiva centradas em torno da
subjetividade.
Uma resposta para a adoção da autenticidade por Diawara pode ser vista na
noção de subjetividade oferecida por Butler, presente em seu Pshychic Life of
Power (1997). Ela argumenta essencialmente que o sujeito é formado por uma
dupla relação com o Outro, com aquele que impõe palavras ameaçadoras e às
vezes ação sobre crianças pequenas que se sentem inibidas, amedrontadas, se
33
A expressão usada pelo autor, em inglês, é “point of view of garbage”. Stam nota o motivo comum
da “redenção do detrito” em diversos neologismos estéticos latino-americanos criados para designar
movimentos cinematográficos e literários caracterizadas pela hibridez constitutiva e pela multiplicidade
cronotópica. Tal motivo estaria presente, por exemplo, na Estética da Fome de Glauber Rocha, no
Cinema Imperfeito de Julio García Espinosa, na estética do lixo (Rogerio Sganzerla), na Tropicália
(Gilberto Gil), entre outros. Cf. STAM (1998). A crítica ao olhar estrábico, enviesado, com que alguns
africanos olham a Europa aparece já no subtítulo do romance do autor ganês Ama Ata Aidoo,
“Reflections from a Black-Eyed Squint”, publicado pela primeira vez em 1977.
34
A criança cujo temor Freud identificaria como “medo da castração”, ou cujo medo de abuso sexual,
no caso da menina, seria evocado por Klein, em seu modelo da criança que percebe no adulto, no
outro, aquele que frustra e também que gratifica.
362
linguagem que se imita sem entendê-la; a Lei do Pai, a mãe como Outro, cuja voz
é ouvida quando alguém castiga a si mesmo, e contra a qual ele se depara, em
gritos desesperados de frustração, dor, desespero. É a autoridade que se
combate, e que se assume ao se tomar o lugar da figura da opressão. A postura é
dupla: rebelião e ódio pelo mestre; identificação e presunção da autoridade e da
posição do Outro. Ou seja, para ser um sujeito, é preciso presumir a submissão de
alguém, da acepção francesa assujetissement, em que ser um sujet ou sujeito é
algo que vem acompanhado tanto pela submissão quanto pela revolta contra o
Outro.
Em cada um dos movimentos de Diawara para estabelecer uma autenticidade
africana independente do dominador europeu, a questão volta: qual é o Outro
contra quem a autenticidade africana está sendo estabelecida? Por um lado,
parece ser Hollywood, ou o cinema ocidental dominante ou, agora, outra
paisagem cultural transnacional chamada Cinema Mundial35. Mas há um terceiro
Outro: o próprio cinema africano.
Se colocamos o teste de Butler para as três Novas Ondas de Diawara,
podemos ver o ponto em que Diawara se distancia da noção de assujetissement,
35
O termo que Garritano evoca, o filme que pode conversar com plateias de qualquer lugar, ser
reconhecível em suas referências, emoções, linguagem cinematográfica – e especialmente nas
tecnologias corporificadas em narrativas que dizem respeito a gênero, raça e classe –, tão familiar que
a música que acompanha tais tropos narrativos pode ser pré-selecionada nas mesmas conhecidas
gôndolas, a que agora se chama “world music”.
363
364
Referências bibliográficas
AIDOO, Ama Ata. Our Sister Killjoy: Or, Reflections from a Black-Eyed Squint. New
York: NOK, 1979.
365
DIAWARA, Manthia. African Film: New Forms of Aesthetics and Politics. Nova
York: Prestel, 2010.
366
HAYNES, Jonathan. Nigerian Video Films. Athens: Ohio University Center for
International Studies, 2000.
LARKIN, Brian. “From Majigi to Hausa Video Films: Cinema and Society in
Northern Nigeria”, in ADAMU, A. U., ADAMU, Y. U., e JIBRIL, U. F. (eds.), Hausa
Home Videos: Technology, Economy and Society, Kano, Nigeria: BKU University
Press, 2004.
STAM, Robert. “Hybridity and the Aesthetics of Garbage: The Case of Brazilian
Cinema.” Estudios Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe, vol. 9, nº 1,
1998. Disponível em
http://www7.tau.ac.il/ojs/index.php/eial/article/view/1091/1123, último acesso 10
de janeiro de 2017.
367
Fluxo:
para a compreensão da programação televisiva
Resenha
1
Professor do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação, do Instituto de
Artes, da UNICAMP.
e-mail: gilsobrinho@iar.unicamp.br
368
1
BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Comunicação Social. Pesquisa brasileira de mídia
2015: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. Brasília: Secom, 2014. Disponível em:
<http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-quantitativas-e-qualitativas-de-
contratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2015.pdf>.
369
2
Expressão cunhada por Laura Mulvey. In: MULVEY, L.; SEXTON, J. Experimental British Television.
Manchester: Manchester University Press, 2007.
370
371
3
Refiro-me à publicação em 1964 de Os meios de comunicação como extensões do homem
(understanding media). Aqui, chama a atenção o capítulo O meio é a mensagem, em que se lançam as
bases para a compreensão determinista da tecnologia em relação aos meios de comunicação e que
inclui o capítulo A televisão: o gigante tímido. In: McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como
extensões do homem. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.
372
373
374
Fora de Quadro
Chico Carneiro1
1
Fotógrafo e cineasta autodidata, divide seu trabalho entre Moçambique, onde
vive há 33 anos, e a Amazônia Paraense onde, desde 2001, já realizou 8
documentários. Em 2016, foi premiado no concurso DocTv CPLP, pólo
Moçambique, realizando e fotografando (em conjunto com Catarina Simão) o
documentário “DJAMBO”. Com ampla experiência em documentário, realizou ou
atuou como Diretor de Fotografia em mais de 150 filmes.
e-mail: chicocarneiro@gmail.com
377
Fachada do Cinema “3 de Fevereiro”, na cidade de Beira/ Moçambique, desativado.
378
379
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381
382
A N O 3 • E D 5 | J A N E I RO J U NH O 2 0 1 4
383