Apresentação
Capítulo
Uma vez que não faz muito sentido falar de cidade em sentido geral, é bom começar por fazer
alguns esclarecimentos do ponto de vista histórico-terminológico. A cidade enquanto tal não
existe. Existem diferentes e distintas formas de vida urbana. Não é por acaso que o termo
«cidade» pode ser dito de diferentes maneiras. Por exemplo, em latim não existe termo
correspondente ao grego pólis. A diferença respeitante à origem da cidade é uma diferença
essencial. Quando um grego fala de pólis pretende, antes de mais, indicar a sede, a residência,
o lugar em que um determinado génos, uma determinada estirpe, uma gente (gens/génos)
tem as suas raízes. Em grego, o termo pólis remete de imediato para uma ideia forte de
enraizamento. A pólis é o lugar onde determinada gente, específica no que toca a tradições e
costumes, tem a sua sede, reside, onde tem o seu próprio éthos. Em grego, éthos é um termo
que indica a mesma raiz dolo termo latino sedes, e não tem nenhum significado unicamente
moral, como pelo contrário o termo latino mos. Os mores latinos são tradições, costumes; o
éthos grego — termo muito anterior a qualquer costume e tradição — é a sede, o lugar onde a
minha gente tradicionalmente mora, reside. E a pólis é precisamente o lugar do éthos, o lugar
que serve de sede a determinada gente. Esta especificidade ontológica e genealógica do termo
pólis não está presente no termo latino civitas. A diferença é radical, á que no termo latino
civitas, reflectindo bem, se manifesta a sua proveniência do termo civis, e os cives formam um
conjunto de pessoas que se reuniram para dar vida à cidade. Émile Benveniste, o grande
linguista indo-europeu, sublinhou muito bem este aspecto há já bastante tempo. Não existe,
portanto, madame la ville, assim como não existe monsieur le capital ou madame la terre.
Civitas é um termo que deriva de civis, portanto, de certo modo surge como produto dos cives
quando se reúnem num mesmo lugar e se submetem às mesmas leis. No grego, ao invés, a
relação inverte-se por completo, já que o termo fundamental é pólís e o derivado é polítes, o
cidadão. Note-se a perfeita correspondência entre a desinência de polítes e de civitas; mas, no
segundo caso, indica a cidade, no primeiro, o cidadão. Para os romanos a civitas é, desde
sempre, aquilo que é produzido pela reunião de várias pessoas sob as mesmas leis para lá de
qualquer especificidade étnica ou religiosa. Este é um aspecto absolutamente característico e
extraordinário da Constituição romana comparativamente à história das cidades gregas e
helénicas que a precederam. E é fundamental para compreender, de seguida, a força política
da história
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romana, a ênfase política — no sentido actual do termo —, que domina a história romana. Na
civilização grega, a cidade é fundamentalmente a unidade de pessoas do mesmo génos, e
portanto consegue-se perceber como a pólis, ideia que remete para um todo orgânico,
antecede a ideia de cidadão. Em Roma, pelo contrário, desde as origens — e o próprio mito
fundador romano o diz — a cidade é confluência, convergência de pessoas muito diferentes no
que toca a religião, etnias, etc., e que só concordam entre si em virtude da lei. É o grande mito
da Concórdia romana, que domina Tito Lívio e está na fundação da historiografia romana. Com
efeito, no primeiro livro da história de Roma Ab urbe condita,' esta concepção é evidente e, de
seguida, torna-se um tema fundamental da politologia e filosofia política europeias. O primeiro
deus a quem se ergue um templo em Roma é o deus Asylum. Roma é fundada pela obra
concordante de pessoas que haviam sido, inclusivamente, expulsas das suas cidades, ou seja,
por exilados, errantes, refugiados, proscritos, e que confluem para um mesmo lugar, fundando
Roma. Este aspecto domina a história romana: a ideia de cidadania não apresenta qualquer
raiz de natureza étnico-religiosa. É verdade que também existiam escravos, mas entre os
homens livres é-se cidadão independentemente da estirpe ou do credo. Este facto é único
quando comparado com a história das cidades gregas e helénicas anteriores a Roma. De
seguida, através da influência romana, esta concepção de cidadania difunde-se também
noutras cidades e por toda a bacia do Mediterrâneo, quando esta se torna romana. O percurso
termina com o famoso Édito antoniniano de Caracalla nas primeiras décadas do século ni d. C.,
1 Lívio,Tito, Ab urbe condita (versão em português: História de Roma, Editorial Tr1rt,14rit-r, T
ichnn rnna1 [N. rir,
12 em que todos os homens livres que habitam nos confins do Império se tornam cives
romani, sejam eles africanos, da Ásia Menor, espanhóis, gálios, e por aí adiante, independente-
mente de qualquer especificação étnico-religiosa. Antes da influência romana, e do seu
domínio, não encontramos nada disto: em nenhuma das poleis gregas, onde prevalece, ao
invés, o princípio «pertenço àquela pólis porque é nela que o meu génos está sediado». Como
é óbvio, não se exclui a possibilidade de estabelecer foedera, alianças entre as cidades, mas
cada uma delas (aspecto fundamental para compreender a história da Grécia) constitui
substancialmente uma realidade isolada por causa do enraizamento de estirpe e génos. A
consequência é o isolamento de cada pólís em relação às outras. Existem as olimpíadas, as
grandes festas, porém, as cidades gregas permanecem ilhas, e só por brevíssimos períodos se
conseguem federar devido à pressão de acontecimentos extremos particularmente dra-
máticos (por exemplo, no início do século v a. C. devido às guerras persas) ou porque uma
delas assume hegemonia, mesmo que breve, sobre as outras (a hegemonia ateniense dura
pouquíssimo e a espartana ainda menos). Existe, portanto, a impossibilidade das cidades
gregas poderem dar vida a unidades federadas mais amplas precisamente porque nenhuma
delas é uma civitas, nenhuma consegue absorver e integrar no seu seio elementos que lhe
sejam alheios. Aquele que na pólís é livre, mas não pertence ao génos, é um meteco, um
hóspede, categoria muito próxima da que tinham os judeus e os cristãos nas cidades muçulma-
nas. Alguns historiadores, com efeito, consideram que o direito de hospitalidade nas cidades
muçulmanas — motivo pelo qual elas se tornam, durante séculos, cidades
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presente no mito das suas origens permite-lhe imaginar e construir o seu mito através da
síntese dos mais diversificados elementos. Todo o esforço de Virgílio e toda a ideologia
augustana se baseiam na ideia das origens, e as origens de uma cidade são sempre a sua
potissima pars (como é dito no Códice de Justiniano), a parte mais forte, pois a origem é aquilo
que funda uma cidade. Mas as origens de Roma, tal como a ideologia augustana as representa,
estão precisamente na confluência de diferentes povos; os próprios latinos não são os inimigos
conquistados e submetidos. Zeus promete a Juno que os troianos serão sim, os vencedores,
mas depois serão eles próprios absorvidos pela língua e pelo nome dos latinos. É Eneias quem
vai ter com os etruscos para lhes propor uma aliança: é tudo uma confluência de elementos
diferentes, de tradições e línguas diferentes e é esta precisamente a civitas. Sob a égide de
uma mesma ideia, aliás, sob a égide de uma mesma estratégia (mais do que uma ideia
fundadora), porque o que junta estes cidadãos tão diferentes não é a sua origem, mas o fim
comum. A cidade projectada no futuro junta os cidadãos, não o passado da gens, não o
sangue. Estamos juntos para atingir um fim: eis o porquê de Roma mobilis. Tudo isto é
claramente afirmado no grande poema virgiliano. Mas qual é o fim a alcançar? A resposta é:
imperíum síne fine. De diferentes lugares, da Europa, da África e da Ásia conflui-se, em
concórdia, para permitir que Roma expanda as suas fronteiras: que o Império Romano não
tenha fronteiras espaciais nem temporais. Império não significa império de polícia, domínio
exercido pelas armas: em Virgílio, «Império sem fim» quer dizer que Roma deve dar as suas
leis ao mundo inteiro, à urbe toda; que a Urbs deve tornar-
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-se aquela que dita as leis, aquela que impõe a concórdia ao mundo inteiro submetendo-o à
lei. O pressuposto implíci-to nesta ideia é o de que aquilo que rege a civitas não é um
fundamento originário, mas um objectivo: vivemos juntos pois, através da concórdia produzida
pelas nossas leis, podemos almejar um grande fim, Roma mobilis. Não é isto mesmo que a
Igreja veio copiar? Esta é a grande e eterna construção do direito romano; por isto mesmo é
que os Padres da Igreja consideravam Roma providencial. A estrutura jurídica da Igreja é
essencialmente romana e não poderia deixar de o ser. É grandiosa a ideia de que aquilo que
nos congrega e reúne, não é nada de originário, mas apenas um fim. Que não é mais que a
«globalização»: fazer da orbis uma urbs, de maneira a que o círculo mágico que nas puleis
delimitava e aprisionava dentro dos limites da cidade coincida com o círculo do mundo, em
toda a sua dimensão espacial e temporal. Esta é a grande ideia romana, que já faz parte do
ADN do Ocidente, e dele não se pode extirpar, á que se tornou a ideia fundamental da teologia
política, implícita no espírito de missão, de evangelização. Esta mobilidade, naturalmente, só
pode ter êxito se for associada à ideia de civitas augescens, de cidade sempre em crescimento:
outro termo chave e emblemático sobre o qual, amiúde, me tenha debruçado com os amigos
romanistas, e que predomina na nossa linguagem e no nosso património cultural. Mas é um
termo inconcebível no contexto da pólis: ao lermos Platão e Aristóteles damo-nos conta que o
problema dramático era o de a pólis não se alargar em demasia; se se alargava demasiado,
como conseguiria man-ter-se enraizada no seu génos? Nas obras República e Leis de
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o conjugam sempre em alternativa à sua pólis, aos seus concidadãos. Os filósofos políticos (o
empenhamento político da filosofia existe desde as origens, desde os Sete Sábios) intervêm na
pólis, mas sempre com intenções polémicas, já que a pólis não os escutava. E diziam que as
leis, os nómoi da cidade, devem ser imagem de Diké, para contrariar o facto de não o serem,
uma vez que estavam unicamente ligadas à terra. A morte de Sócrates foi o grande pecado da
pólis, a qual, para defender a sua Constituição material, condena o justo. O nómos da pólis aos
olhos do filósofo, — aos olhos daquele que diz: «escuta o lógos», «combina o nómos da pólis
com a Diké celeste» — era exclusivamente ligado à terra. Isto é o que acontece com os
filósofos até Platão durante dois séculos; por seu lado, Aristóteles vira página, fazendo uma
fenomenologia das Constituições políticas. Platão não é escutado, tanto que elabora a obra
República, como indicação suprema daquilo que a pólis deveria ser para funcionar de maneira
equilibrada e justa, indicação essa totalmente irreal em relação ao funcionamento da pólis
concreta. Por outro lado, a radicação na terra era uma referência simbólica fortíssima, pois o
génos e o lógos significavam aqueles mitos, aquelas tradições, aqueles costumes. Onde é que
os gregos aprendiam a ler e a escrever se não em Homero e em Hesíodo? O testemunho de
toda a filosofia grega é o de que a relação com a Diké cósmica é sempre incerta e
problemática. Acerca da raiz da palavra pólis diz-se tudo e mais alguma coisa. GiambattistaVico
afirmava que o termo tinha a mesma raiz que a palavra pólemos, guerra; o mesmo foi
defendido e repetido por Çarl Schimtt, e muitos outros
25 para a universalidade. Nós achamos que a cidade para ter dimensões humanas deve, de
certa maneira, recordar a pólis. Quanta retórica sobre a polis, sobre a política, que vem de
polis (todos os políticos repetem este refrão). Queremos regressar a um espaço bem definido,
a um território bem delimitado que permite trocas sociais, relações sociais ricas e
participadas? Na polis tudo isto acontecia na base daquele critério não indiferente, que se
tende a esquecer, segundo o qual poucos eram aqueles que tinham poder de decisão nas
assembleias; quando eram muitos limitavam-se a alguns milhares na agora a trocar cargos
entre si, a tomar decisões livres (os homens livres que participavam em Atenas eram no
máximo cerca de 15.00o-20.00o). É esta a ideia de cidade que queremos cultivar, ou, pelo
contrário, queremos cultivar a grande ideia romana de uma cidade feita de gente diferente
que vem de todos os lados, que fala todas as línguas, que tem todas as religiões, mas uma só
lei, um único senado, um imperador e uma missão? Que referencial escolhemos: a origem ou o
fim, o vínculo à estirpe ou à lei? É este o dilema. Caso contrário, como é que se constrói a
comunidade? Através de simples pactos entre interesses diferentes, mediante armistícios,
tréguas, compromissos precários? Esta é a primeira questão a examinar. Existe uma segunda
tensão que caracteriza a nossa relação com a cidade; uma tensão que é mais específica da
cidade moderna. Quando se fala de cidade, nós que pertencemos às civilizações urbanas (os
primeiros testemunhos arqueológicos de vida urbana no ambiente mediterrânico remontam a
3500-4000 a. C.; portanto, só há cerca de 6.000 anos é que podemos falar de civilização urbana
com os seus ciclos, os seus apogeus e as suas crises) assumimos
26 sempre uma postura dupla e contraditória em relação a esta forma de vida associada: por
um lado, concebemos a cidade como lugar para nos encontrarmos e reconhecermos como
comunidade, um lugar acolhedor, um «seio», um lugar onde residir bem e viver em paz, uma
casa (a casa como ideia reguladora através da qual, desde as origens, nos aproximá-mos desta
revolucionária forma de vida associada); por outro lado, cada vez mais consideramos a cidade
como uma máquina, uma função, um instrumento que nos permite, com o mínimo
impedimento, fazer os nossos negotia, os nossos negócios. De um lado, a cidade como lugar de
otium, lugar de troca humana, seguramente efectivo, activo, inteli-gente, enfim, um lugar para
morar; do outro, o lugar onde desenvolver os negotia da maneira mais eficaz possível. Ou seja,
continuamos a pedir duas coisas diferentes à cidade. Mas isso é característico da própria
história da cidade: quando ela desilude em demasia e se torna unicamente negócio é então
que começa a fuga da cidade, como tão bem testemunha a nossa literatura: a arcádia, a
nostalgia de uma idade mais ou menos não-urbana; por outro lado, quando, ao invés, a cidade
assume realmente as caracterís-ticas da agorá, do lugar de encontro rico do ponto de vista
simbólico e comunicativo, então, imediatamente nos apres-samos a destruir este tipo de lugar,
pois contrasta com a funcionalidade da cidade como meio, como máquina. O que é que
aconteceu na história urbana dos últimos séculos? Entre os séculos xv e xx houve a destruição,
em nome da cidade instrumento, de tudo aquilo que na cidade anterior impedia este
movimento, obstaculizava as dinâmi-casdos negotia. Em todas as cidades europeias, de manei-
ra sistemática e programática, de maneira mais ou menos
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violenta, aconteceu isso. Em Itália aconteceu menos do que noutros sítios, apesar de tudo; e
não porque amássemos mais o nosso passado, mas tão-somente porque tivemos um
desenvolvimento tardio e, portanto, a violência do impacto da indústria-mercado sobre a
cidade antiga foi mais lenta do que noutros países. Antes de discutirmos as escolhas
urbanísticas devemos, por isso, pôr-nos a questão: o que é que pedimos à cida-de? Pedimos
que seja um espaço no qual todo o tipo de obstáculo ao movimento, à mobilidade universal, à
troca, se reduza ao mínimo, ou pedimos-lhe que seja um espaço em que existem lugares de
comunicação, lugares fecundos do ponto de vista simbólico, onde se dê atenção ao otium?
Infelizmente, pedem-se ambas as coisas com a mesma intensidade, só que elas não podem ser
pedidas em simultâneo e, portanto, a nossa posição relativamente à cidade surge, cada dia
mais, literalmente, esquizofrénica. Isto não significa que seja uma posição «desesperada»,
aliás, é muito fascinante pois pode surpreender-nos a cada instante. É uma contradição de tal
maneira aguda que pode mesmo ser a premissa de uma nova criação. Foi o que aconteceu na
dissolução da forma urbana do mundo antigo: a dissolução radical dessas formas deu vida ao
novo espaço urbano continental europeu, mediante instituições que jamais alguém poderia ter
imaginado ou inventado (novas ideias de direito, novas relações de domínio, novas formas de
comunidade, por exemplo, a monástica, que foi fundamental na promoção de novos modelos
de desenvolvimento urbano). Talvez esta nossa pergunta tão violentamente contraditória
produza soluções criativas, que não estejam em
28 continuidade com a história passada. Convido sempre os urbanistas e os arquitectos a
raciocinarem nestes termos, não em termos de conservação — tentando desesperadamente
recortar pedacinhos de agorá —, ou de autorização acrítica da mobilidade universal, que são
modos de conce-ber os opostos como faces da mesma moeda, já que o futurismo e o
conservadorismo total sempre se acompanharam reciprocamente em tudo, na urbanística, na
arte, na política, por todo o lado. É necessário, ao invés, partir da contraditoriedade desta
questão e procurar valorizá-la enquanto tal, fazendo-a eclodir. É melhor fazer projectos de
arquitectura e urbanística que ponham em evidência, para o público, o carácter contraditório
típico da pergunta que o mesmo público levanta, sem esconder e mistificar esta situação, sem
julgar conseguir ultrapassá-la com a fuga para a frente ou regressando ao passado de Atenas.
Nunca mais existirá agorá.
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Capítulo 3
O advento da metrópole
Nos dias que correm ainda se pode falar de cidade? Em Itália, num ou noutro caso, talvez
ainda seja possível. No caso de Florença, por exemplo. Mas nos casos de Milão, Roma, Nápoles
e Palermo é dificil fazê-lo. As metrópoles tardo-antigas, Roma mobilis, a Urbs, que «de-lira» a
partir do seu sulco, tem muitas características comuns com quanto direi de seguida. A história
europeia das cidades até ao período barroco mostra uma cidade que, ao invés, e de certa
maneira, se assemelha à do palácio de Siena, descrito no fresco de Ambrogio Lorenzetti da
Alegoria do bom governo: é uma cidade em que está presente o elemento de comunhão e de
comunicação; existe também o elemento mítico (certamente nessa cidade havia conflitos,
causados na sua maioria pela proximidade como factor de inimizade), mas a sua forma
prevalecente é a da partilha comunitária dos espaços. Essa cidade é destruída pelo ímpeto
simultâneo da indústria e do mercado e, assim, surge a metrópole, a Grofistadt, dominada
pelas duas «figuras» chave, os dois corpos que a regulam: a indústria e o mercado. Na cidade
medieval, a catedral e o palácio do governo ou o palácio do povo são presenças chave. Do
mesmo modo, na cidade moderna as presenças chave são os lugares da produção e os das
trocas. Tudo se organiza em torno destas presenças como factores capazes de atribuir
fecundidade simbólica ao todo global da cidade. Mas ao mesmo tempo, a cidade organiza-se e
regula-se em redor destes momentos; é em torno deles que se institui a urbanística, que se
elaboram intervenções de programação desses factores dominantes que permitem, enquanto
«valores partilhados», resolver a «equação». Sabe-se, com efeito, que a indústria tem deter-
minadas exigências quanto ao local, implica determinadas funções —habitacionais, antes de
mais— que devem ser organizadas de uma certa maneira, com determinada tipologia de
edifícios. Deste modo, o espaço organiza-se em redor destes corpos relativamente conhecidos,
rígidos, fixos. No campo da física dir-se-ia que são «corpos galileianos» de referência. E a
metáfora não é extemporânea, á que o próprio Einstein nos convida a raciocinar — tendo por
base uma metáfora acerca da história da cidade — sobre uma relatividade restrita e uma
relatividade geral: e a primeira é a que diz que os corpos de referência permitem métricas, que
dizem respeito à totalidade do sistema. A evolução no sentido da metrópole foi possível
porque o ponto de partida da cidade europeia não foi a pólís grega, mas a civitas romana. A
nossa ideia de cidade é totalmente romana, é civitas mobilis augescens, facto fundamental
como demonstra a história das transformações urbanas, das revoluções políticas que têm a
cidade como centro, ao contrário de outras cidades, onde afirma urbis se modificou precisa-•
mente por influência, ou melhor, pelo assalto da civilização ocidental. As civilizações urbanas
da antiguidade que • conhecemos são riquíssimas, mas estáveis nas suas formas:
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todas demonstram estarem ligadas à terra, quer as grandes cidades mesopotâmicas quer
aquelas orientais (Quioto, Xangai, Pequim eram megalópoles quando Londres e Paris eram
aldeias, porém, as formas permaneceram relativamente estáveis durante séculos). As incríveis
revoluções da forma urbis são consequência da abordagem à cidade resultante da civitas
romana. As formas urbanas europeias ocidentais são consequência das características da
civitas. A cidade contemporânea é a grande cidade, a metrópole (este é, com efeito, o traço
característico da cidade moderna planetária).Toda a forma urbis tradicional foi dissolvida.
Outrora, as formas de cidade eram absolutamente diferentes (vejam-se as diferenças entre
Roma, Florença e Veneza). Agora, só existe uma forma urbis, ou melhor, um processo único de
dissolução de toda e qualquer identidade urbana. Este processo (que, como veremos, atinge o
seu ponto alto na cidade-território, na cidade pós-metropolitana) tem a sua origem na
afirmação do papel central que o nexo lugar de produção e mercado representa. O sentido da
relação humana reduz-se a produção-troca-mercado. Aqui todas as relações se concentram e,
assim, todos os lugares da cidade são vistos, projectados, projectados de novo, trans-formados
em função destas variáveis fixas, do valor delas. Lugares simbólicos são estes e mais nenhuns.
Desaparecem os lugares simbólicos tradicionais, sufocados pela afirmação dos lugares de
troca, expressão da mobilidade da cidade, do Nervenleben, da vida nervosa da cidade. As
novas construções são maciças, dominam, são um estorvo físico, são grandes contentores
(imaginem-se as grandes arquitecturas das típicas cidades industriais, o fascínio que por todo o
lado exerce a arquitectura-fábrica), cuja essência consiste,
32 no entanto, em serem móveis, em dinamizarem a vida. São corpos que produzem uma
energia mobilizadora, desestabi-lizadora, desenraizadora. Estas presenças dissolvem ou põem
entre parêntesis as presenças simbólicas tradicionais que, de facto, se reduzem ao centro
histórico. É assim que nasce o «centro histórico»: enquanto a cidade se desenvolve, agora, em
conformidade com as presenças de produção e de troca — dominantes e centrais —, a
memória torna-se museu e cessa, assim, de ser memória, pois a memória tem sentido quando
é imaginativa, recreativa, caso contrário, trans-forma-se numa clínica onde pomos as nossas
recordações. Acabámos por «hospitalizar» a nossa memória, tal como as nossas cidades
históricas, ao fazermos delas uns museus.
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Hoje estamos numa fase seguinte. Enquanto nas metrópoles estas presenças ainda
estruturavam o espaço, criando escalas que se podem reconhecer na dialéctica centro-
periferia, sendo critérios dominantes da urbanística clássica dos séculos xIx e xx (as diferentes
funções produtivas, residenciais e terciárias), hoje esta possibilidade foi simplesmente ultra-
passada. A cidade-território impede toda e qualquer forma de programação deste género.
Estamos, agora, na presença de um espaço indefinido, homogéneo, indiferente nos seus
lugares, onde se dão acontecimentos que se baseiam em lógicas que já não correspondem a
um desígnio unitário de conjunto. E estes acontecimentos, enquanto tais, modificam-se com
uma rapidez incrível: a fábrica não era certamente a catedral, não tinha a estabilidade dos
velhos centros da forma urbis, mas ainda assim tinha uma certa estabilidade. Agora, a rapidez
das transformações impede que no âmbito de uma geração se conservem memórias do
passado. Isto implica que, agora, vivamos numa situação em que casa
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e não-casa estejam interligadas, morada e não-morada sejam duas faces da mesma moeda.
Este processo, embora tenha o seu centro propulsor no Ocidente, atinge agora todos os
continentes. Em 195o, havia 83 cidades em todo o mundo com mais de um milhão de
habitantes, so das quais estavam em países industrializados. Hoje, as cidades com mais de um
milhão de habitantes são 30o e a maioria delas está em países pobres. Em 2015 teremos 33
cidades acima dos 20 milhões de habitantes, e 27 delas pertencem a países pobres. Qual a
configuração delas? Extrapolando da situação actual, seria demasiado fácil prevê-lo:
vastíssimas áreas indiferenciadas do ponto de vista arquitectónico, a regurgitarem de funções
de representação, financeiras, de governação, cercadas por áreas periféricas residenciais,
«guetizadas» umas em relação às outras, áreas comerciais de massa, «resquícios» da produção
manufactureira. O todo relacionado por «acontecimentos» ocasionais, fora de qualquer lógica
urbanística e administrativa. A «casa», para a grande massa, é a do mini-apartamento
padronizado. Como dizia uma publicidade no Senegal: «Comprem as nossas casas pequenas,
poderão viver nelas com a mulher e o filho, e finalmente poderão recusar hospitalidade aos
parentes quando vêm do campo.» Estas periferias para as classes médio-baixas-burocráticas,
que é um dos aspectos mais inauditos dos países subdesenvolvidos (em África as burocracias
públicas empregam dez vezes mais pessoas do que as que empregavam durante o período
colonial) são a consequência do processo de mega-urbani-zação daquelas zonas, porque
destruíram recursos e culturas locais e multiplicaram burocracias. Este é o plano destes
territórios: de um lado, centros directivos, representativos,
35
O corpo e o lugar
Mas por que é que precisamos de lugares? Por causa de • algo que diz respeito à nossa
dimensão fisica mais primitiva. -13 ".5 • Refiro-me à phYsis no sentido mais próprio (fisica vem
de phYsis, que é a natureza). Será concebível um espaço-sem-
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-lugar sendo verdadeiro, como é verdade, que aquele lugar absolutamente primeiro, que é o
nosso corpo, «resiste»? Como resolver este lugar no contínuum temporal? Ou como reduzi-lo
a uma função meramente dependente do seu desenvolvimento? Se somos lugar, como
podemos não buscar lugares? A filosofia do território pós-metropolitano parece exigir a nossa
metamorfose em almas puras, ou em pura dynamis, energia intelectual. Talvez a nossa alma
seja realmente a-oikos, sem casa, tal como o giros platónico, mas... o nosso corpo, a razão do
nosso corpo? E o próprio nómada não terá nada que ver com o lugar? Passa de um lugar para
o outro, não se detém em nenhum—mas conhece sempre novos lugares. E o que
representavam os seus grandes tapetes se não a casa, o lugar da sua casa, que o seguia por
todo o lado e no qual habitava? Pode ser que se chegue a um ponto — como já aconteceu com
as «profecias de ficção científica» — em que o nosso corpo pode ser transmissível como
qualquer outra informação. Então, porventura, o problema da sua razão específica, e portanto
do lugar e do habitar, será «resolvido». Mas esse homem será realmente além-homem em
tudo e para tudo? Podemos imaginá-lo em «transmissão» perene ou terá, pelo contrário, a
certa altura, que «pôr os pés na Terra»? Será permanentemente insone o peregrino, como as
almas em voo em redor do Poeta no Paraíso, ou terá que parar para descansar? E onde? Em
estações de «recarga»? Em distribuidores de energia? Ou noutros lugares? Mas quais? É
evidente que este homem jamais conseguirá reconhecer como seus os lugares dos antigos
espaços urbanos, nem sequer os das antigas metrópoles. Eis, então, o grande e fascinante
problema que têm que enfrentar todos aqueles que, com consciência crítica46
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a ideia reguladora, ou a filosofia de base, das tecnologias informáticas; para as quais, aliás, a
superação do vínculo espacial não é mais que o primeiro passo na direcção da superação do
vínculo temporal, ou seja, na direcção da possibilidade de uma forma da comunicação deveras
completamente angélica (com efeito, os anjos compreendem-se reciprocamente sem qualquer
mediação, no «imediatismo» do simples pensar). Semelhante forma de comunicação torna o
espaço perfeitamente indiferenciado e homogéneo. Deixa de apresentar qualquer
«densidade» particular, qualquer «saliência» significativa. E naturalmente o efeito desta sua
eliminação consistirá na perfeita transparência e fiabilidade das informações. De facto, se as
informações já não encontram qualquer obstáculo, se já não tiverem que ser «transportadas»,
não serão vítimas de desentendimentos ou equívocos. O mito ou a ideologia da perfeita
«desterri-torialização» faz-se acompanhar pelo mito de uma forma imediata de comunicação,
ou melhor pela total eliminação do desentendimento dissolvendo-se no entendimento. Mas
infelizmente, o espaço vinga-se desta vontade de ubiquidade! Vinga-se de duas maneiras:
antes de mais, no sentido de já não nos movermos nas cidades, por problemas de trânsito
(sim, todos os dias somos obrigados a descobrir que ainda somos corpos e que nos
movimentamos com meios que ainda são corpos que não se podem compenetrar: a ilusão de
que mediante as tecnologias informáticas as nossas exigências de movimento fisico seriam
reduzidas está substancialmente a revelar-se pura ideologia, pois quanto mais cresce a
velocidade de informação, mais aumenta, parece, o desejo de movimento fisico e de
ubiquidade). O espaço vinga-se, então, imobilizando-nos nas cidades.
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Mas vinga-se, também, de outra maneira: as arquitecturas que se fazem por todo o lado
contrastam radicalmente este desejo de movimento e de «espiritualização» resultando,
amiúde, num peso monumental único. Constroem-se corpos muito rígidos, que estorvam,
monovalentes. A arquitectura tem uma aspiração, paradoxal e patética, devido ao simbolismo
do edificio (em Berlim é possível ver, para lá da qualidade específica de cada contentor
individual, o triunfo da ênfase e da monumentalidade, como se quisessem fazer a nova
Acrópole ou o Parlamento americano típico dos finais do século xviii). A linguagem
arquitectónica, independentemente da qualidade deste ou daquele arquitecto, quando
intervém à escala urbana, fá-lo com uma filosofia que contradiz totalmente esta tendência
para a mobilização universal. Quando muito fizeram-no os mestres de há algumas gerações,
que haviam concebido edificios realmente transparentes, «passagens». Mas isto acontece por
uma razão essencial: a exigência de presenças fortes, significativas e simbólicas no território
pós-metropolitano é indicador de uma exigência psicologicamente insuperável, que todavia
entra em conflito com a da ubiquidade.
Este problema foi abordado, mas as respostas continuam a ser desadequadas. A existência
pós-metropolitana continua «congelada» em espaços fechados. Aos contentores tradicionais
juntaram-se outros, mas com a mesma lógica. Os contentores são dispostos segundo ordens e
motivações diferentes das que presidiam à organização metropolitana, 50
mas não deixam de ser contentores. Aumenta a ocasionalidade, o aparente arbítrio da sua
colocação, mas a sua qualidade é sempre a mesma: cada qual tem propriedades relativamente
fixas, estáticas. Continua a ser um «corpo» de referência, ou a pretender sê-lo (sempre com
maior esforço, já que na indiferença do território é agora impossível sobressair realmente).
Multiplica-se, então, a ênfase, a retórica do contentor, e quanto mais esta aumenta, mais
ressalta a sua pobreza simbólica. A persistência destes espa-os fechados, a resistência que
estes «corpos» exercem ao desenrolar-se da vida pós-metropolitana, é cada vez mais
claramente intolerável. Espaço fechado, não é, naturalmente, apenas o edificio definido na
base de uma função, ou de uma única «propriedade»; é-o, e mais ainda, o bairro «resi-
dencial»; espaços fechados são os parques de diversão, onde o próprio divertimento se torna
«crónico», como a doença nos hospitais, a educação nas escolas ou nos campus, a cultura nos
museus e nos teatros. O fenómeno é particularmente evidente na evolução da cidade
americana, mas é-o um pouco por todo o lado. Perante a intensificação, talvez insustentável,
desta vida nervosa e na impossibilidade de encontrar lugares no espaço-tempo do território,
quem pode vive uma parte do seu dia nesta mobilização universal e, depois, foge para aquelas
que os sociólogos americanos chamam gated communities (comunidades fechadas). Fechamo-
nos num sítio qualquer, fechamo-nos à noite, assim que os rendimentos o permitem, num
lugar-prisão. Quanto mais fisiologicamente in-secura é a vida na cidade-território, mais se
procura o sine-cura impossível da «morada». Em Itália só estamos no começo, ainda existem
poucos
51
exemplos deste fenómeno, mas nos EUA é prática comum. Os ricos abandonaram Manhattan,
vão para as localidades de New Jersey e passam as noites, como num fortim, a ver televisão. E
no dia seguinte voltam a mergulhar no trânsito metropolitano: a vida deles é assim. Esta
necessidade de comunidades fechadas provavelmente responde a uma exigência profunda da
nossa psique, uma vez que não é fácil viver na mobilização universal, viver numa métrica
simplesmente temporal. Mas a contradição é evidente: se o espaço fechado diz, por um lado,
necessidade de comunidade, por outro, diz necessidade de privacy: quer no que toca ao estilo
de vida quer no que respeita à concepção e prática do direito. Como podemos falar de cidade,
tentando dar a este termo uma valência comunitária, se a cidade é regulada por formas de
direito privado? Se assim é, então é apenas um conjunto de pessoas que cruzam relações na
base do interesse recíproco, como empresas que se relacionam mediante contratos
comerciais. E que a teoria do direito público se esteja a reduzir à forma contratual é, agora, um
processo inevitável. Porém, levanta um grande problema, porque então a nossa não é uma
pólis ou uma civitas, mas, como dizia Platão, uma sinoiquia, uma coabitação. Somos pessoas
indiferentes umas para as outras, mas que coabitam; regulamos as nossas relações na base do
direito privado. Mas sendo assim, quer dizer que nos «movemos» no contexto de algo que nos
obstinamos a chamar cidade, mas «moramos», habitamos num condomínio. Estaremos neste
ponto? Há quem diga que a indiferença do condomínio é um mal menor, já que lá onde
existem vínculos fortes, simbólicos, acabamos sempre por entrar em
O território indefinido
«Aonde é que nós habitamos, hoje?» questionam-se os mais perspicazes. Habitamos nas
cidades? Não, habitamos em territórios. Onde termina uma cidade e começa outra? As
fronteiras são meramente administrativas e artificiais, não têm qualquer sentido geográfico,
simbólico ou político. Habitamos em territórios indefinidos, e as funções distribuem-se no seu
seio, para além de qualquer lógica de programação, para lá de qualquer urbanística; localizam-
se consoante os interesses especulativos, a pressão social, mas não segundo um desígnio
urbanístico, que, mesmo nos grandes mestres da urbanística, provinha precisamente do facto
de se poder raciocinar na base daquelas funções fundamentais. Mais do que desaparecidas,
tais funções difundiram-se e disseminaram-se: a desindustrialização, o fim daquelas presenças
produtivas com o seu carácter maciço, produziu não o desaparecimento da produção, mas o
facto de ela já não estar concentrada em determinados espaços, mas por todo o lado, tendo-
se disseminado. Até as funções de troca estão por todo o lado. É verdade que ainda existem
polaridades neste «espaço»; que ainda existem actividades que podemos definir «cen-trais» e
que orientam.ern'seu redor as formas de ligação,
53
a mobilidade, etc. Mas estas polaridades cada vez mais se podem organizar por todo o lado. Os
acontecimentos produzidos pelas decisões de investimento produtivo, comercial,
administrativo, etc., podem localizar-se, agora, sem terem em conta os eixos tradicionais de
expansão da cidade. Os papéis de centro e de periferia podem substituir-se recíproca e
incessantemente; e esta troca recíproca ocorre ocasionalmente ou então, ocorre na base de
lógicas mercantis e especulativas, que rejeitam toda e qualquer «grelha» predefinida de
funções. O território continua a «especializar-se», mas fora de qualquer projecto global. É, de
facto, a morte de todas as «codificações» do movimento moderno, do seu pensar a cidade
como agregação sucessiva de elementos, desde a habitação ao edifício, ao pólo funcional, à
cidade inteira como «contentor de contentores». É a morte da tipologia abstracta. Que
significa isto? Será necessariamente o fim de toda a «forma» comunitária, ou um processo de
libertação dos vínculos que a caracterizavam? É uma excitação dos «espíritos animais» do
sistema, ou o processo acena a um intelecto geral capaz de «recuperar terreno» em formas
diferentes das do passado, livre de todo o enraizamento ligado à terra, fixo? Por outras
palavras, o território pós-metropolitano é a negação de toda a possibilidade de lugar ou é
possível «inventar» lugares próprios do tempo em que a vitalidade deles parecia ser-lhes
negada? A cidade está em todo o lado; ergo, a cidade já não existe. Já não habitamos em
cidades, mas em territórios (dá-me vontade de usar uma etimologia errada! Território vem de
terreo, ter medo, sentir terror). A própria possibilidade de fixar limites à cidade parece, hoje,
inconcebível, ou
54
melhor, reduziu-se a uma questão puramente técnico-administrativa. Chamamos cidade a esta
«área» por razões absolutamente ocasionais. Os seus limites não são mais que um mero
artificio. O território pós-metropolitano é uma geografia de acontecimentos, uma activação de
ligações, que atravessam paisagens híbridas. O «limite» do espaço pós-metropolitano só é
dado pela «fronteira» da rede de comunicações; à medida que a rede se alarga podemos dizer
que estamos a «sair» da pós-metrópole, mas é evidente que se trata de uma «fronteira» sui
generis: só existe para ser ultrapassada. Encontra-se num estado de crise perene. Neste
sentido, pode-se dizer, com uma fórmula paradoxal, que vivemos num território
desterritorializado. Habitamos em territórios cuja métrica já não é espacial; já não existe
qualquer possibilidade de definir, como para a metrópole antiga, os percursos de difusão ou
«delírio» segundo eixos espaciais precisos (aqui o centro, ali a periferia). O modelo de
irradiação a partir do centro, segundo determinados eixos, previa que à medida que se saía do
centro, ao longo de vias bem definidas, quase canais antigos, se encontravam as funções
residenciais, industriais, etc. Esta lógica, típica da organização urbana e metropolitana, deixou
de ter validade. As mesmas funções podem ser encontradas por todo o lado, sobretudo, se se
acentuar o grande problema da reutilização dos velhos espaços industriais; podem encontrar-
se, então, funções riquíssimas e centrais na antiga periferia (veja-se o caso da Pirelli em Milão,
onde pode surgir... o Scala!). Toda a métrica tradicional passou de prazo. Não há nenhum
desígnio urbanístico em base ao qual se faça o Scala na cidade de Sesto San Giovanni;
casualmente determinou-se ali um vazio ,que tinha que ser preenchido
55
e surgiu a ocasião para o fazer; no futuro poderá ser preenchido por um supermercado, por
escritórios, por uma universidade e por aí adiante. Não se sabe, não se pode saber, não é
predizível o que vai acontecer para preencher aquele vazio. O desenvolvimento da cidade de
metrópole para território não pode, portanto, ser programado: é este o drama de todos os
arquitectos e urbanistas. A dificuldade não depende da incapacidade deles ou da vontade
política dos administradores, depende da impossibilidade de programar. Até porque ultrapassa
qualquer limite administrativo; os limites administrativos são todos fictícios, artificiais, mas
continuam a existir, e isso torna ainda mais impossível uma séria programação, uma vez que
não é dado saber ou calcular de modo algum onde, por exemplo, terminam os limites de
Florença e onde começa Scandicci. A perda de «valor simbólico» da cidade cresce em pro-
porção; assistimos, ou temos a impressão de assistir, a um desenvolvimento sem meta, isto é,
literalmente, insensato, a um processo que não apresenta nenhuma dimensão «orgânica». E,
com efeito, a metrópole do intelecto abstracto, unicamente dominado pelo «fim» da produção
e da troca de mercadorias. É absolutamente «natural» que o «cérebro» de semelhante sistema
considere cada elemento espacial um obstáculo, um resquício inútil, um resíduo do passado
que deve ser «espiritualizado» ou «volatilizado». Mas ao mesmo tempo, e pela mesma razão,
esse facto produz a impossibilidade de programar o conjunto. Sobre os nexos entre as partes,
sobre a lógica das relações, que é o essencial, ninguém é soberano. Domina o jogo por
definição imprevisível dos interesses privados. A «ocupação» do território já não 56 conhece
nenhum nómos (já que nómos, lei — não o esque-çamos-- significa, na origem, divisão,
repartição de um determinado território ou «pastagem» [nomós]).
Espaço e tempo
Quem esteve em Tóquio, São Paulo ou Xangai sabe que não faz qualquer sentido falar de
cidade. São territórios, e nós moramos em territórios cuja métrica já não tem qualquer sentido
espacial, mas quando muito unicamente temporal. Fazemos todas as nossas contas em base
ao tempo, não ao espaço; já ninguém pergunta a que distância fica determinada cidade, mas
quanto tempo demora a chegar lá. O espaço tornou-se apenas um obstáculo. Claro, ele vinga-
se das nossas métricas temporais, já que o espaço possui uma inércia, como os filósofos
sempre souberam: não nos podemos desenraizar por completo e voar, pelo menos até agora,
para cobrirmos pequenas distâncias. A vingança do espaço é a de o sentirmos como
impedimento, como maldição. E com efeito, achamos que a felicidade é sermos ubíquos. O
que se revela um grande problema, pois, de um lado, a nossa mente raciocina em termos de
ubiquidade e, portanto, vive o espaço como maldição, mas por outro, exigimos que a cidade se
organize em lugares, ainda por cima, acolhedores. Mas como é que os lugares acolhedores,
simbolicamente ricos, podem não representar obstáculos espaciais? Exigimos atravessar a
cidade em tempo real, mas também queremos que seja bela. Não é possível construir em
determinado lugar uma cúpula de Brunelleschi e, ao mesmo tempo, querer atravessá-la num
instante., Uma coisa do género só
57
poderá acontecer numa cidade puramente virtual, como a que tentaram pôr às portas de
Veneza para os japoneses: saídos do aeroporto, em vez de irem para a cidade, entravam numa
espécie de sala cinematográfica tridimensional e visionavam um filme sobre Veneza. É claro
que uma cidade com Veneza resiste à transformação em mera realidade virtual, mas não deixa
de ser um grandíssimo problema, pois já na cidade moderna havia o esforço de transformar a
cidade em via (nos finais do século xix a transformação de todas as grandes cidades europeias
consistia precisamente nisto). Hoje precisamos de transformações ainda mais radicais, já que a
busca de mobilidade cresceu tão desmesuradamente graças às novas tecnologias que entra
em conflito com o espaço, sobretudo lá onde esse espaço resiste ou então não foi
anteriormente transformado. Para além do mais, no espaço pós-metropolitano, as funções
assumem o aspecto de acontecimentos, também devido à rapidíssima transformação do
próprio território: aí, mais do que localizar uma função, dá-se algo, acontece alguma coisa,
constrói-se um supermercado, que é um acontecimento, e passados alguns anos, no lugar do
supermercado surge outro. Isto passa-se em Xangai, em Tóquio, onde existem mais
acontecimentos do que propriamente edificios: é um espaço que se organiza conforme
medidas temporais para acontecimentos, e o território apresenta-se como colocação de
acontecimentos. É a última fase da cidade moderna, no seu desenvolvimento metropolitano,
que irradia a partir do seu centro, e é capaz de dominar toda e qualquer persistência antiga.
Mas assiste-se a um fenómeno que, a certo ponto, parece irreversível: esta expansão torna-se
cada vez mais ocasional, 56
conhece nenhum nómos (já que nómos, lei — não o esqueçamos-- significa, na origem,
divisão, repartição de um determinado território ou «pastagem» [nomós]).
58 cada vez menos programável e governável. Quanto mais a «rede nervosa» se dilata, mais
devora o território circundante e mais o seu «espírito» parece perder-se; quanto mais ela se
torna «poderosa», menos parece ser capaz de ordenar-racionalizar a vida que nela se
desenrola. O intelecto metropolitano sofre uma espécie de «crise espacial», que é
perfeitamente análoga à que sofre o Estado Leviatã, o Estado moderno na sua soberania
territorialmente determinada. Os poderes que determinam o crescimento metropolitano têm
cada vez mais dificuldade em se «territorializar», em se «encarnar» numa ordem territorial,
em dar vida a formas de convivência legíveis-observáveis no território. Pede-se aos habitantes
do território que reajam com «imediatismo», como um sistema nervoso «saudável», à
variação do estímulo, à variação da presença ou da forma, com uma velocidade que não tem
qualquer comparação com outro momento da nossa civilização urbana. E no entanto,
continuamos a pedir à nossa cidade, que nos ofereça lugares de acolhimento, de «estadias
demoradas», como se, por um lado, o nosso córtex cerebral tivesse desenvolvido estas formas
de mobilidade impetuosa, violenta, mas por outro, nalguma zona profunda do cérebro
continuasse a existir a necessidade de casa, de protecção: uma dissociação que, agora, diz
respeito à nossa estrutura fisiológica. Mas, entretanto, o tempo da metrópole contrasta
dramaticamente com a sua organização espacial, com o «peso» dos seus edificios, com a
massa dos seus contentores. As massas da metrópole não se transformam em energia, pelo
conw trário, absorvem-na, consomemna. Exactamente o oposto do que acontecia na cidade,
onde existia correspondência entre os tempos das funções, dos trabalhos, das relações, e a
Vivemos obcecados por imagens e mitos de velocidade e de ubiquidade, mas os espaços que
construímos insistem, obstinadamente, em definir, delimitar, demarcar. Precisamos de lugares
onde habitar, mas estes não podem ser espaços fechados que contradigam o tempo do
território no qual, goste-se ou não, vivemos. Um labirinto de dificuldades e de problemas! O
espaço metropolitano ainda era, para usar uma metáfora da fisica contemporânea, um espaço
de «relatividade restrita»; o espaço do território pós-metropolitano deverá ser um espaço de
«relatividade geral». Aqui, qualquer edifício deve não apenas valer como corpo de referência,
mas os corpos devem poder ser «de-formados» ou transforma-dos durante o seu movimento.
Deste modo, a distribuição da matéria neste espaço mutará constante e imprevisivelmente. O
espaço global nascerá da interacção entre os seus vários corpos: elásticos, «deformáveis»,
capazes de se «acolherem» reciprocamente, de penetrarem uns nos outros, de
6o
serem esponjosos. Cada qual será polivalente não apenas englobando em si diferentes
funções, eventualmente «confinando-as» de novo no seu seio, aprisionando-as dentro de si,
mas também entrando intimamente em relação com o outro diferente de si, enquanto capaz
de o reflectir. Nesse espaço, cada parte é como uma mónada que acolhe em si a globalidade
do todo, que tem em si a lógica do todo: uma individualidade universal. Não se trata, por isso,
de uma operação ideológica de supressão dos limites: qualquer corpo apresenta limites, sob
pena de se anular. Nem se trata de confundir «anarquicamente» as relações entre os diferen-
tes tempos dos diferentes lugares. Trata-se, sobretudo, de as concertar sem confundir,
fazendo viver a totalidade, a forma do inteiro, na qualidade de cada parte. Jamais poderemos
sentir-nos habitantes em lugares segregados do conjunto do território; em lugares «prote-
gidos» acabaremos por sentir-nos ainda mais alienados que numa carruagem do
metropolitano. Não buscamos lugares separados, fechados, protegidos, para nos sentirmos
em casa. E também não podemos morar num comboio, num auto-móvel, numa estação, num
aeroporto... Podemos talvez habitar lá onde o completamento formal do lugar concorda com a
universalidade das informações que nele recebemos, lá onde o próprio individual nos
comunica o universal. Será possível imaginá-lo? Devemos projectar os nossos edifícios como
estabelecimento no anti-espaço da rede informática, como nós da rede, polivalentes e
intercambiáveis. Devemos construí-los como sensores, quase interfaces de computador.
Quanto mais rica e complexa for a informação que recebemos, quanto mais móvel no tempo,
quanto menos «radi-cada» em propriedades rígidas, mais problemas nos suscitará
49-
66 «clínico»: uma clínica para as obras de arte, outra para os estudantes, outra ainda para os
doentes, para os apaixonados de ópera. É tudo rígido num território em que já não existe
nenhum lugar. Da parte do público sente-se a necessidade de dar valências simbólicas à cidade
e, assim, o político-administrador responde com teatros, universidades, hospitais, etc., e
suporta com enfado o já-construído, a cidade existente, que ocupa espaço por causa das suas
estradas, dos seus parques de estacionamento e dos seus novos «contentores», por detrás dos
quais já não existe a pessoa nem a comunidade de pessoas. Quando muito existem «comis-
sões» de interesse, em defesa de interesses absolutamente privados. Pelo contrário, um lugar
assume valor simbólico quando existe entre as pessoas um éthos comum, quando não mesmo
uma verdadeira religio civilis. Caso contrário, é impossível construir câmaras municipais,
tribunais, teatros. E até igrejas. Enfim, não é possível construir lugares que tenham valência
simbólica num espaço pós-metropolitano. É preciso, talvez, começar a projectar em voz baixa,
modestamente, «à civil», renunciar às grandes pretensões simbólicas, que ameaçam a cada
instante cair no ridículo. E tentar combinar mais funções na construção dos edifícios. Se esta
postura vai satisfazer a nossa exigência de lugares não sei. O que eu sei é que hoje vivemos
com estas contradições gritantes, com estas dissociações.
Capítulo 5
Embora nos pareça convicção eterna não conseguirmos prescindir do espaço externo, não está
escrito em lado nenhum que não o possamos fazer. Não é esta, porventura, a aspiração
fundamental da nossa civilização? Não é por acaso que, por mais subtilezas historiográficas
que se possam imaginar, o tom fundamental da nossa cultura, grega, helénica, cristã, é o da
rejeição do corpo. A perspectiva gnóstica de «desterritorializar» os corpos é, de facto, a
ideologia dominante, hoje, no projecto técnico-científico. O nosso destino consiste num radical
desenraizamento de toda e qualquer ligação à terra. Se reflectirmos sobre as dominantes da
cultura contemporânea veremos isto mesmo por todo o lado: desde o discurso de há pouco
sobre a cidade até à representação artística abstracta, ao espiritual na arte, manifesta-se o
desenraizamento em relação às condições estético-sensíveis. Estamos rodeados por ordens
68 sem enraizamento (Ordnung sem Ortung, como diriam Carl Schmitt ou Ernst Jünger). Esta
perspectiva gnóstica domina por todo o lado. Não tem nada a ver com a perspectiva judaica e
judaico-cristã original; porém, é impossível não ver a presença deste pensamento no
desenvolvimento da Europa e da Cristandade. Com efeito, a filosofia e a teologia cristãs não se
podem separar, nos seus desenvolvimentos, do platonismo e do neoplatonismo. Embora não
seja dualista não há dúvida que a perspectiva do platonismo cristão exige o retorno à pátria
não ligada à terra. Somos cives futuri, a verdadeira cidadania está no futuro, é isto que
Agostinho e a tradição cristã defendem. A nossa raiz está no alto (arbor inversa: uma árvore
invertida). A nossa cidadania, a nossa politéia, está nos céus. Existe uma reserva fundamental
relativamente a todo o enraizamento ligado à terra; a toda a possibilidade de afirmar «a minha
pátria está aqui». Esta dúvida radical em relação a toda a cidadania ligada à terra é a razão
pela qual os romanos consideravam «ateus» os judeus e os cristãos, pois estes recusavam
reconhecer o valor das divindades pagãs, incluindo as da cívitas no seu carácter móvel,
augescens. Os cristãos recusavam-se a prestar culto à cidade, porque esta cidade não é a
Cidade celeste. Os romanos sempre foram muito tolerantes com todos os cultos. Em toda a
história romana não existe qualquer sinal da mais pequena perseguição a uma religião, a não
ser aos cristãos. É verdade que os romanos massacraram os judeus (em 7o d. C. e em 140 d.
C.); mas a razão advinha do facto de estes se terem revoltado várias vezes. São Paulo, ao invés,
convida os cristãos a não lutarem contra o Império, e em séculos de perseguição não existe um
único atentado cristão às autoridades rórnanas. A grande estratégia cristã foi
69
a de desfazer o Império Romano a partir de dentro, sem a menor oposição política, sem nunca
o combaterem no seu terreno, como, ao invés, fizeram os judeus. Os judeus combateram o
Império em nome do esperado reino messiânico de cariz nacionalista; os cristãos pretenderam
substituí-lo mediante uma expectativa escatológica do reino celeste. Juliano, o apóstata, é um
caso completamente anómalo, é um verdadeiro reaccionário, não é um romano, é um grego, e
entra em feroz polémica contra o Senado Romano, defende a pólis, vê a «grecidade» ainda
como estirpe própria. Não ama Roma, mas Atenas, não ama a cidade que cresce e se expande,
é um nostálgico das letras e da pólis. A sua utopia é uma utopia regressiva e não se pode ler
como reacção romana ao Cristianismo. Já Constantino, pelo contrário, é um grande romano,
que procura, precisamente, alimentar com o Cristianismo uma renovatio írnperii com sede em
Roma; e a coisa parecia resultar. Constantino espera que o Cristianismo, tornando-se muito
forte e poderoso, como as outras religiões, constitua um carburante novo, um alimento novo
para o grande mecanismo do direito romano. Mas tal não aconteceu porque o universalismo
cristão é intransigente. Coisa assombrosa até para o patriciado romano, o Cristianismo, assim
que foi plenamente legitimado e reconhecido, impõe pela primeira vez no âmbito do Império
uma religião de Estado. O conceito de religião de Estado é tipicamente cristão. Roma não o
conhece, em Roma existiam numerosos cultos. E este facto impede a realização do desígnio
constantiniano tal como Constantino o augurara. Quando os especialistas defendem que o
nosso destino não está ligado à terra e que nós somos inevitavelmente chamados a colonizar o
universo todo, que a nossa casa não70
é o planeta Terra, este é o sinal distintivo fundamental de todas as grandes gnoses. É uma
gnose secularizada, a doutrina salvífica gnóstica é substancialmente niilista, isto é, não tem um
fim determinado, uma civitas futura precisa, mas a nostalgia da gnose é mesmo uma saudade
do caminhar, do infinito desenraizar-se, da espiritualização. A Vergeístung, a transformação de
todas as nossas relações comunitárias em relações espirituais, isto é, desterritorializadas,
incorpóreas, é o traço característico da metrópole, como ensinavam os grandes sociólogos dos
finais do século xix. As nossas trocas ocorrem cada vez mais numa dimensão comunicativa, que
evita a mediação corpórea. O espaço, que se contrai progressivamente mais, «catastrofizando-
se» em tempo, pode sofrer uma espécie de colapso gravitacional, uma contrafacção, um
espasmo. Existirão civilizações capazes de contrariarem esta tendência fundamental? O Islão é
uma religião universalista exactamente como o Cristianismo, o seu objectivo é o de concretizar
o Dar-el-Islam (a terra do Islão) no globo todo. Deste ponto de vista é uma concorrente, mas a
concorrência não é uma contratendência. O Islão, portanto, não é «o outro». A distinção
segundo a qual a globalização não é a ocidentalização do mundo, é uma das teses mais
discutidas e discutíveis, porque até agora não existe nenhuma prova empírica que a suporte.
Até agora, a globalização foi ocidentalização. Huntington diz: «se a globalização for uma
ocidentalização dar-se-á um choque de civilizações, pois aqueles que não se reconhecem na
civilização ocidental vão opor-se à globalização.» Mas ele não nega que a globalização tenha
sido, até agora, urna ocidentalização. Sublinha,
aliás, que todas as resistências à globalização até agora encontradas resultam do facto de ela
se apresentar como ocidentalização. Daqui, as reacções, em especial do Islão. É possível
pensar numa modernização que não seja ocidentalização, sabendo que, agora, o termo
Ocidente já não tem qualquer significado geográfico, e devemos entendê-lo apenas como
domínio da técnica, da racionalidade técnico-científica totalmente anónima, impessoal? A
partir de Max Weber é preciso raciocinar desta maneira quando se pensa no Ocidente. Este
Ocidente vai-se globalizando. Existe alguma via de domínio da racionalidade técnico-científica
que não seja ocidental? Será possível a cisão entre aspectos técnico-económicos e culturais?
De um ponto de vista histórico e filosófico é um disparate afirmar essa cisão, uma vez que
significa interpretar o desenvolvimento técnico--científico-económico ocidental como
realidade totalmente abstraída de qualquer pressuposto cultural, filosófico e religioso.
Algumas correntes reformistas presentes no Islão têm procurado desesperadamente conceber
uma via de modernização não ocidental, separando o aspecto económico do cultural
(interiorizar a técnica, a racionalidade científica, o mecanismo de mercado do Ocidente,
continuando a ser islâmicos). Uma tentativa fracassada. Este trágico falhanço resulta dos vícios
oriundos da colonização, do imperialismo, ou provém da incapacidade politica, da miopia
cultural? É certo que uma interpretação em chave meramente técni-co-económica da técnica
e da economia é insustentável no plano histórico e filosófico, pois sabemos que a «Técnica» é,
em si mesma, altamente filosófica, é produto de uma visão do mundo, de séculos de filosofia,
de teologia, de cultura72
73
ciência da natureza — são formas do tempo; o esquematismo dá-se no tempo, não no espaço.
E de resto o tempo domina a filosofia contemporânea: em Ser e tempo,' Martin Heidegger
reconhece que a única via de acesso ao ser é temporal, enquanto o espaço, na mesma obra, é
considerado um produto, pura imagem da temporalidade do ser-aí (Dasein), como se faltasse
uma topologia. Deste ponto de vista, existe um nexo forte entre Franz Rosenzweig, filósofo
judeu, e Heidegger, como se o primeiro antecipasse o segundo, afirmando que a prepotente
afirmação do tempo produz o conjunto inteiro das novas e específicas experiências espaciais.
Esta poderia ser uma linha de pensamento, não há dúvida. Para que o tempo possa abrir-se a
estas novas dimensões espaciais é preciso que seja um tempo especial. Não pode ser o tempo
kantiano, forma a priori como o espaço, indiferente e equivalente em todos os seus instantes;
deve ser o tempo litúrgico, que é descontínuo, constantemente «decidido», um tempo «re-
cortado», não-indiferente nem homogéneo. Como o espaço, o tempo de Kant é uma dimensão
homogénea e indiferente em todos os seus pontos; o tempo de Rosenzweig é tempo litúrgico,
que afirma que um dia é diferente do outro. Se se tem uma ideia do tempo deste género é
possível combinar aquele tempo com um espaço, caso contrário não. Caso contrário, a ideia de
tempo reflecte aquele espaço-tempo indiferente e vazio em que cada ponto equivale ao outro
e é mensurável segundo os eixos cartesianos. Portanto, para ter uma experiência litúrgica do
tempo, e para ter uma ideia de tempo que per-mita a sua tradução em espaço, é preciso éthos
e éthnos, ou seja judaísmo. E na polémica de Rosenzweig para com o
Capítulo 6
Alguém estará a perguntar se em toda esta problemática urbanística ainda está presente a
exigência de beleza que parece ter sempre caracterizado a ideia e a prática do habitar.
Respondo que temos que nos entender sobre o termo «beleza», sobre os seus significados.
Belezas há muitas, tal como formas de cidade. Hoje, andamos à procura de uma beleza que se
coloca numa dimensão puramente estética (belo é aquilo que gostamos, aquilo que nos é
agradável), mas a beleza não tem apenas este significado fenoménico-estético. Na idade
clássica não era assim: kalón tinha um significado diferente no grego antigo. Kalón significava:
«vê como está construído forte», «vê como está hirto», «vê como está bem radicado». Algo
que se formou, desenvolveu e construiu de maneira perfeita e, por isso, pode durar. E não era
um juízo subjectivo; ao invés, tinha que ser objectivo. E assim, o que queremos da nossa
cidade? Que seja bela conforme este segundo significado? Para que possa emergir uma beleza
nesta acepção seria necessário que os nossos edificios exprimissem plenamente a nossa vida e
as suas razões, caso contrário, a beleza torna-se uma coisa76 incapturável e indefinível. No
significado clássico de kalón havia medidas, cânones, um sólido fundamento objectivo, não
uma adesão estética subjectiva. Aquele edifício faz parte ou não daquele grande lógos?
Respeita aquele lógos que transcende todas as obras ou não? Uma estátua, um templo eram
belos se correspondiam àqueles cânones que transcendiam a posição estética subjectiva.
Deste ponto de vista, a nossa cidade é, ao invés, uma pátria da varietas. Já nos grandes
tratados arquitectónicos elaborados no século xvI (e, depois, na construção da cidade barroca)
perde força o cânone e as normas passam a ser vistas como artificiais, convencionais. Na
cidade concebida como território o nosso conceito de beleza está entregue à varietas. Não
podemos absolutamente pensar em restaurar medidas, lógoi, relações que tenham valor
canónico. As nossas normas, medidas, e métricas não podem ter um carácter artificial,
convencional. É impossível ultrapassar a corrente e construir monumentos. Mas a varíetas
pode ser uma varietas que agrada. O próprio Leon Battista Alberti, na obra De re aedficatoria,
diz: «olhem que o clássico não é aquilo que os antiquários pensam.» O clássico é também
variedade de formas, e pode ser concinnítas, um canto sinfónico (cum cano: canto conjunto).A
ideia de beleza como concinnítas emerge nos séculos xv e xvi. Teremos que ir nessa direcção.
Experimentá-la de novo.