WAYAMURI PANTONÎ
AS HISTÓRIAS DO JABUTI DE CAETANO RAPOSO
BOA VISTA
2016
SONYELLEN FONSECA FERREIRA
WAYAMURI PANTONÎ
AS HISTÓRIAS DO JABUTI DE CAETANO RAPOSO
BOA VISTA
2016
SONYELLEN FONSECA FERREIRA
WAYAMURI PANTONÎ
AS HISTÓRIAS DO JABUTI DE CAETANO RAPOSO
BOA VISTA
2016
Aos narradores indígenas, em especial a Caetano Raposo.
AGRADECIMENTOS
Primeiro agradeço a quem devo o que sou e, aliás, só por causa deles é
que sou e porque comecei antes de mim. À minha mãe, Eliete Praia Fonseca,
amada para além do sempre, meu sol de amor, que tanto de sua vida, amor,
tempo, sabedoria e vivacidade dedicou a mim e meus irmãos. Só com você,
mamãe aprendi o amor e que ele existe, mas que também existe quem não
sabe amar.
Aos meus já e tão cedo velhos amigos com quem pude compartilhar
angústias, ideias, horas, livros, lágrimas e risos, que acreditaram em mim,
antes de mim mesma e assim sendo, cá estou lhes dizendo obrigada, Otacílio
Gabriel, Kalhianne Alves, Roberto Mibielli, Sheila Praxedes e Raiane
Costa dos Santos.
A Devair Fiorotti, assim, pois sua presença em minha vida vai além de
títulos e definições e porque seu nome, apesar da intrusão vocálica, já
prenunciava qualquer coisa de transformação para mim, para nós. Obrigada
por me ensinar que o tempo não é linear e por isso me readolescer de quando
em vez. Obrigada pela generosidade com que me apresentou às narrativas de
Caetano Raposo e pela confiança, até demais, em minha escrita. Esse trabalho
é uma espécie de espelho em tintas negras, onde você pode ler-se. Obrigada.
This work aims to present and analyze the narratives turtle’s Caetano Raposo,
indigenous Makushi, from Raposa community, in Raposa Serra do Sol
indigenous territory, Roraima, Brazil. Although these narratives were created
and spread by oral tradition, they are recreated and made more complex in
semantic, aesthetic and literary instances through the active presence of the
narrator. From that seeks to understand what delights in Caetano Raposo
narrative, and why comes out this delightful. Argues, therefore, the process of
confabulation, associated with turtle laughter present in the narrative and its
relation to performance.
INTRODUÇÃO........................................................................................... 10
O carumbé................................................................................................. 30
A Onça....................................................................................................... 38
A prática discursiva.................................................................................... 71
O riso do Jabuti.......................................................................................... 77
O riso do Raposo....................................................................................... 83
A performance............................................................................................ 92
CONSIDERAÇOES FINAIS....................................................................... 99
REFERÊNCIAS......................................................................................... 102
10
INTRODUÇÃO
Não se passa imune às pessoas, nem a uma boa história. Pelo menos
eu não passei, ainda mais quando esta pessoa é um exímio narrador como
Caetano Raposo. Suas histórias têm como protagonista um animalzinho
inusitado como o jabuti e findam com uma contagiante e peculiar gargalhada:
Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!1 Incumbida de transcrever
a entrevista de Caetano Raposo pelo Prof. Dr. Devair Antônio Fiorotti, como
parte das atividades a serem desenvolvidas dentro do projeto de pesquisa
Panton Piá: Registro e Análise na Terra Indígena do Alto São Marcos e
Raposa Serra do Sol,2 fui capturada para o mundo de encanto destas
narrativas.
Indígena do povo Macuxi, um dos majoritários em Roraima, Caetano
Raposo é um artista da palavra, agraciado por uma memória admirável que,
apesar da intempérie do tempo e da frágil saúde, possui vigor criativo para
encadear uma série de narrativas fabulares tendo como protagonista o astuto
jabuti. Nestas narrativas, todo casco e artimanha, apesar da fragilidade que sua
natureza inspira, o jabuti consegue através da esperteza ludibriar e vencer
animais muito maiores, entre eles sua predadora mais voraz: a onça.
Entrecruzando memória coletiva e talento pessoal invulgar, as narrativas
do ciclo do Jabuti de Caetano Raposo incitaram-me uma série de
questionamentos, resumidos aqui em uma única pergunta: O que torna estas
narrativas tão particulares dentre as demais que se nos apresentaram ao longo
do tempo e do espaço, já que com seu casco-escudo, o quelônio pode ser
encontrado em narrativas que vão da mitologia hindu, passando pelas fábulas
1
Essa é uma tentativa, fracassada desde já, de transcrição da risada do Jabuti de Caetano
Raposo, já que tanto IPA (International Phonetic Alphabet) quanto especialistas consultados na
área de Fonética e Fonologia não conseguiram representar os sons que se apresentam no
momento da risada de forma satisfatória.
2
Projeto iniciado em 2007, primeiro registrou 29 narradores indígenas de 17 comunidades da
TI São Marcos. Depois, concluiu em 2014 as entrevistas de mais 10 narradores, de seis
comunidades, na TI Raposa Serra do Sol. Os narradores estão assim distribuídos: 27 homens
e 12 mulheres, sendo por etnia: 24 macuxi; seis taurepang; seis wapishana; uma
indeterminada. Na terceira fase, iniciada em 2015, o projeto está registrando e analisando
cantos, rezas e supertições de indígenas dessas duas terras. Desde 2007 o projeto é
financiado pelo CNPq e vinculado à Universidade Estadual de Roraima - UERR. A metodologia
de coleta e trato com as narrativas sustenta-se principalmente na História Oral (ALBERTI,
2004).
11
CAPÍTULO I
3
No segundo capítulo, dedico um subcapítulo "Panton: literatura indígena", para lidar com essa
palavra.
16
Uma questão tem sido levantada, se muitas das lendas que tanto se
assemelham com as fábulas do Velho Mundo, não podiam ter sido
introduzidas pelos negros; eu, porém, não vejo razão para entreter
esta suspeita, porque elas são muito espalhadas; a sua forma é
inteiramente brasileira, são mais numerosas justamente nas regiões
em que não há negros ou em que os há em pequena quantidade e,
além disso, elas aparecem não em português, mas na Língua Geral.
(HARTT, 1988, p. 22)
ao fracasso”, como bem definiu Erwin Frank (2005), Koch-Grünberg reuniu nos
cinco volumes da obra Von Roroima zum Orinoco (1916), o resultado de sua
empreitada, o que o alçou ao posto de expoente da historiografia cultural dos
povos indígenas em Roraima. No segundo volume de sua obra, Del Roraima
al Orinoco: observaciones de un viaje hecho por Teodor Koch-Grünberg
por el Norte de Brasil y Venezuela durante los años de 1911 y 1913 (1981)
com a obstinação das premissas científicas, legou ao mundo parte dos
fabulários indígenas Karib. Circunscreve geograficamente essas narrativas e
retira-as da boca de um genérico tupi, como em geral se atribuía, e dá nome e
voz aos narradores indígenas. Também, vale destacar que essas narrativas
trazem à luz parte da cultura dos povos do tronco linguístico Karib ao qual
pertence o de Caetano Raposo, o povo macuxi.
As narrativas presentes no segundo volume de Koch-Grünberg foram
coligidas com a ajuda de seus companheiros de viagem, Akuli e Mayuluaípu,
dos povos arekuna e taurepang respectivamente. Enquanto os dois indígenas
narravam nas horas de ócio do acampamento, o alemão vertia do português
traduzido por Mayuluaípu para seu idioma as mais de 50 narrativas que
compõem a obra, além da transcrição em língua indígena do ciclo de Kone’wó,
Makunaima, Piaimã e Zilikawai. Nestas narrativas, a tartaruga (na tradução), ou
oazamuli (wayamuri), protagoniza três das narrativas que compõem o que
classificou o naturalista de fabulas animales. A tradução, a princípio, se
equivoca. Em Macuxi, por exemplo, existem as palavras wayamuri (jabuti),
pitura' (cágado) e warara' (tartaruga) e terekayá (tracajá) para designar
quelônios. Mesmo a tradução optando por tartaruga, iremos nos referir a jabuti
no texto de Grünberg.5
Na primeira fábula Iwaleká y Oazamuli, como definiu o volkekündler, o
jabuti encontra seu compadre macaco em cima da árvore de inajá, comendo
frutas e a ele pede:
5
Fonte Tiago Simplício Napoleão, indígena da comunidade Napoleão, na TI Raposa Serra do
Sol.
26
Desta feita o Jabuti não sai tão incólume. Ao tentar descer do pé de inajá
cai sobre as espáduas e não consegue desvirar-se por talvez um mês quando
a onça o encontra e tenta comê-lo. Contudo negocia sua vida em troca da vida
da anta e segue em seu rastro. Empunhando arco e flecha dados pela Onça, o
matreiro Jabuti segue as pistas deixadas pela anta, suas fezes, que quando
indagadas respondem a quantos dias de distância se encontra sua dona. Já
premeditando sua investida, concebe uma solução de muito engenho e pouca
ortodoxia para o mundo ocidental:
da anta enquanto procura lenha para assá-la. Ao voltar coloca a carne em uma
panela e a leva ao fogo. Entretanto, volta a buscar lenha enquanto o Jabuti
busca veneno para colocar na panela da Onça. O Jabuti encontra a árvore urari
da qual retira a casca (kumaloá) e joga na panela da Onça que morre após
ingerir a refeição. Com um osso da cabeça da Onça faz uma flauta e assim
caminha até encontrar um buraco na terra de onde toca: “Uayi zemilión, uayi
zemilión (ésta es la flauta de Zemilión, ésta és la flauta de Zemilión)”, evocando
pelo nome de outra onça que aparece. De repente, a tartaruga se vê
novamente em apuros:
O carumbé
O carumbé ou Jabuti-Tinga (Geochelone denticulata) é o quelônio cuja
carapaça possui escudos poligonais com círculos centrais amarelos. Suas
patas possuem escamas avermelhadas o que os diferencia das demais
espécies de jabuti encontradas na Amazônia. Essa denominação é apenas
atribuída aos machos da espécie, já as fêmeas são chamadas de jabota. Em
tupi-guarani, carumbé significa o que é achatado e, na língua portuguesa, pode
também denominar as vasilhas arredondadas utilizadas por garimpeiros para
lavar cascalho.
Assim descrito, faltava quem nos apresentasse suas peripécias, o que
31
foi feito na coleta da narrativa oral realizada pelo Prof. Dr. Devair Antônio
Fiorotti, no dia 26 de abril de 2014. Contudo mais do que apenas ouvi-lo,
pudemos perceber o intrincado entrecruzamento que engendrou o lugar de
memória que habita Caetano Raposo e que se apresenta em suas narrativas
fabulares.
Nascido em 1946, filho de pais pertencentes ao povo macuxi, oriundo da
região da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, Caetano Raposo, doravante seu
Caetano, nasceu já sob o contato com os brancos: “Eu nasci no meio dos
brancos, já. Já sim. Por isso que eu sou amigo dos brancos, eu nunca briguei
com ninguém, não. Eu me criei com eles aí, com os filhos deles, brincava com
eles aí. Eu nunca briguei, não”.
Em Pemongon Patá: Território Macuxi, rotas de conflito (2001),
Paulo Santilli afirma que existiriam duas autodesignações: Pemon e Kapon. Os
Kapon corresponderiam aos Akawaio e aos Patamona, habitantes da região ao
norte e leste do Monte Roraima. Já os Pemon agrupariam Kamarakoto,
Arecuna, Taurepang e Macuxi, habitantes da região da Gran Sabana e da
cordilheira Pacaraima. Dessemelhanças à parte, diz Santilli que tanto Pemon
quanto Kapon aparentam-se através da mitologia, já que consideram-se
descedentes comuns dos heróis Makunaima e Insikiran. Ainda de acordo com
Santilli (2001, p. 19):
Sobre a tribo reina seu respectivo chefe e este reina também sobre
as palavras da tribo. Em outros termos, e muito particularmente no
caso das sociedades primitivas americanas, o índio, o chefe – o
homem de poder – detém também o monopólio da palavra. Não se
deve, junto a esses selvagens, perguntar: quem é seu chefe? Mas
antes: quem é entre vocês, aquele que fala? Senhor das palavras: é
esse o nome que muitos grupos dão ao seu chefe. (2012, p. 169)
Isso aí, foi embora, andou, andou. Deu sede e aí encontrou poço
grande, encostou lá pra beber água. Quando tava bebendo água, lá
vem Açu. Açu pegou ele. Disse pro Açu: "Não, não vai me comer, não
vai comer agora, não. Estou molhado, estou venenoso. Quando eu
fico molhado eu sou venenoso. Cuidado!"
DF: O Jabuti falou?
CR: Eh, o Jabuti falando aí pro.
DF: Pra quem?
CR: Pro Jacaré-açu.
DF: Ah, o Jacaré-açu.
CR: Então vamos esperar se enxugar. Aí saíram pro seco, embaixo
de uma árvore aí. Aí Açuzão sonento, também. Dormiu, dormiu,
acordava, perguntava: "E aí? Tá enxuto?" "Não, vou começar a me
enxugar agora. Mas eu tô perigoso, se você me comer, tu morre."
Manhã. [Risos] Aí ficou aí. Tinha um pedaço de pau assim, jabuti
pegou, levantou, Táaaaaaam! Em cima do Jacaré e caiu logo. Aí
Jacaré acordou logo. "Rapaz, cê queria me matar, é?" "Não, não isso
caiu lá de cima, isso caiu aí." "Também quase que me matava,
acertando minha mão". Ele contou. "Se me acertasse aqui, eu ia
morrer." Jabuti olhando aí. Jabuti também disse: "Se me acertasse
aqui também, ia me matar, mas me errou" Tá bom. Sono de novo,
jacarezão: "Coooooom, cooooomm". "Ah, agora eu sei onde é que é a
morte dele." Pegou o pau e em cima do coisa. "Ele falou que era
aqui." "Tãaaam! Tãaaam!" "Aai, aai." Acabou de matar ele. Matou
jacaré. Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!H ã'!Hã'
!Hã'! [Risos] Aí saiu, foi embora pro caimbezal. Aí encontrou, coco-
babão, caroço de coco-babão embaixo da pedra. Ficou quebrando
aqui, Tah, e comendo. Aí onça encontrou de novo: "Ê, camarada! Que
que tá fazendo?" "Tô comendo caroço do meu saco." "Será que é
gostoso caroço do seu saco?" "É gostoso. Quer provar?" "Então me
35
dê um." Tah! Deu pra ele. "E aí?" "Tá gostoso". Deu outro de novo.
"Assim também, o seu saco deve tá gostoso! Vamos experimentar?"
O saco do gato, da onça é atrás. "Então, senta aqui". Ele deu pedra,
colocou pedra, aí onçazão e Jabuti: "Padauuuuuu", dois logo aí.
"Heimmm" " Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!
Hã'!Hã'!Hã'!" [Risos de todos presentes, principalmente com a risada
imitada pelo narrador] Graça dele, aí foi embora, saiu de lá. Foi
embora, foi embora e aí encostou no poço. Aí tava brincando o Luar,
por aqui assim, quando bate na água, o Luar. Eles tavam brincando
lá. Aí Onça disse: "Que que tá fazendo aí?" "Não, quero comer beiju,
beiju de goma, beiju de goma. Tá lá dentro aí. Quero pegar ela, mas
não tô podendo não. Tô mergulhando, mas meu fôlego não dá, não."
"Aonde?" "Ali, olha. Tá ali." "É mesmo! Eu vou lá!" "Vai, mas é fundo.
Vamos amarrar pedra e aí tu vai ligeiro." Carumbezão tirou olho do
buriti, amarrou pedra no pescoço dele. "Tu vai lá, compadre, tu vai lá
e traga pra nós." Aí onçazão, "Tchibum!". Desceu ligeiro. Aí lá, matou,
matou, enforcado e dentro d'água, matou. " Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!
Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!" E saiu de lá. Foi embora e
aí encontrou com outra Onça. Aí Onça perguntou dele: "O que que
você come?" "Eu como veado, eu como paca, eu como." O Jabuti,
né? "Eu como paca, eu como veado, eu como tudo caça. Eu como
porco. Como tudo. E você?" "Eu também, eu como." Falou a Onça.
"Então vamos cagar, vamos cagar nós juntos pra ver quem é que
come mais, as sete estrelas vendo, não olha pra ninguém, não. Nem
eu nem você, só olha pras estrelas, sete estrelas." "Tá." Bem
juntinho, cagando aí. Aí o Jabuti trabalhou aqui e trouxe a merda da
Onça pra ele e dele colocou pra Onça. Ficou lá. "Vamos ver!"
Viraram, levantaram. Merda da Onça só folha, só folha. Do Jabuti,
pelo de caça, de veado, de porco, de toda caça, do Jabuti,
[Carumbé]. "Rapaz, de novo!"Jabuti fez o mesmo processo. Onça não
viu, não que ele fez.
DF: Passando por trás das costas, lá.
CR: Eh. Aí viraram de novo pra ver. Continuou. Onça só folha
mesmo; do Jabuti [Carumbé] só pelo de caça. "Então Jabuti, tu vai
matar anta pra mim comer." Ele sabia onde vivia anta, Jabuti, né? "Tá
bem"; "Tá aqui flecha venenosa." Onça dando pra ele, né?
DF: Ahã.
CR: "Tá bem". Foi embora, ele sabia onde era a casa da Anta e foi
direto pra lá. Chegou lá com sede, Anta tava trançando aí um
jamaxim. Aí pediu Anta. "Taí água, tá aí, bebe água aí". "Não, eu
quero do kumaaza'".
DF: Kumaaza' é o quê?
CR: Kumaaza' é um tipo de balde. Até que encheu o saco da Anta
com kumaaza'. "Eu quero tomar água de kumaaza' ". "O que é que tá
dizendo kumaaza'? Tá aqui kumaaza'." E tirou coisa dela aí e deu pra
ele. Pra quê! Isso aí que ele queria, o Jabuti.
DF: Essa aí eu não entendi direito o final.
CR: Hein?
DF: Não entendi direito o final, não. Ele queria o quê, o Jabuti?
CR: O Jabuti queria a pimba da coisa.
DF: Da anta?
CR: Da anta! Queria a pimba da anta, aí a anta tirou a pimba dela e
deu pra ele. Pra quê!
36
DF: Pegou!?
CR: Pegou. Anta esqueceu do jamaxim dela e correu. Não caiu, não.
Até cansou Anta, Anta caiu. Matou Anta. A flecha dele, colocou a
flecha da Onça. Aí ele voltou, encontrou onça lá e perguntou: "Como
é que é, compadre?" "Não, já tá morta." "Tá?" "Tá. Não falei que eu
como caça? Matei." "Então, umbora ver!" Aí foram pra lá. Chegaram
lá, tava antazona lá esticada. Aí cortaram ele todinho, ele deu
buchada pra ele, pro Jabuti. Só buchada, não deu carne, não. "A
carne é pra mim e a buchada pra ti." "Tá bem." Aí fizeram cozido pra
eles. Aí a onça disse: "Rapaz, eu vou tirar vara pra fazer o jirau pra
assar, né?" "Aí eu fico aqui cozinhando." "Pode cozinhar aí, mas não
mexe com a minha panela, não. Não come minha boia, não." Onça,
né?
DF: Falou.
CR: Aí, "Tá bom." Aí sobrou um resto de veneno da flecha, aí colocou
na panela da Onça, Jabuti. Aí chegou. "E aí? Tá cozido?" "Tá bom, tá
bom, tá cozido. Vamos comer agora." Boia do Jabuti só panelada e
da Onça, a carne. Comeram juntos e panela de Jabuti e panela da
Onça. Tá bom. Comeram. Aí onça falou: "Ahhhhhh, minha boia tá
amarga!" "Ahhhhhhhh, minha boia tá amarga!", Jabuti. "Ahhhhhh,
minha boia tá amarga! Minha comida tá amarga" "Ahhhhhhhhhhhh,
minha comida tá amarga!", Jabuti. Aí não demorou Onça, "Poh", caiu,
a Onça. Jabuti olhando pra ele. Matou Onça. "Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!
Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!". Aí foi embora, Jabuti.
Matou onça. Aí foi, tava subindo na serra, onça encontrou com ele. A
serra que dava na laje. Foi brincar lá, o Carumbé. Subia na laje e de
lá ele vinha. Saltava.
DF: Rolando.
CR: Rolando. "Pah. Tãaannn." Lá embaixo. Aí onça falou "Que que
está fazendo aí?" "Não, estou brincando aqui, tô brincando aqui." "É
gostoso?" "É gostoso! Que ver?" Saltou de novo. "Tãan." "Tá bom."
"Então bora nós dois?" "Bora." Ele falou. "Tu vai primeiro compadre,
tu vai primeiro. Eu vou atrás", Carumbé, né. Onça na frente e
Carumbé atrás. Aí Onça saltou de lá, Carumbé atrás. Quando onça
chegou lá embaixo e bateu na pedra.
DF: Já era.
CR: Aí vem Carubé de lá pra cá e acabou de matar ele. "Tá, ehhhhh".
" Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!".
É gostosa a brincadeira dele. [Risos] Aí foi embora, deixou ele aí pra
urubu comer. Tinha uma serra cheia de pedra e Onça encontrou de
novo. "Que tá fazendo aí, compadre?" "Não, estou rastejando Anta".
Anta subiu aqui, essa serra aqui, e vou rastejar ela, mas estou sem
companheiro pra pegar essa anta. "Eu vou pegar!" "Tu vai pegar
compadre?" "Eu vou pegar." "Tá, então pega aqui, mas não sai, pega
piscado. Não pega com olho aberto, não. Piscado. Não deixa ir
37
A onça
Dentre as oito narrativas de Caetano Raposo, decerto um antagonista se
destaca dos demais: a onça. Predadora por excelência, a panthera onca, a
onça-pintada ou jaguar é o maior felino do continente americano e o terceiro
maior do mundo, ficando atrás apenas do tigre e do leão. Carnívora, sua
ferocidade também figura boa parte das mitologias ameríndias, já que sua
poderosa mordedura é capaz de destroçar a mais forte das carapaças ou
mesmo um crânio humano. Ela está no topo da cadeia alimentar da floresta, à
exceção da predação por parte do homem com intuitos comerciais, ainda em
voga nos dias atuais. Ela pesa mais que um homem adulto, é capaz de
rastejar, nadar e mesmo subir em árvores para alcançar suas presas.
Em muitas mitologias surge como personagem de destaque. Nas
culturas indígenas, a onça tem um papel representativo nos mitos etiológicos e
de origem. Betty Mindlin (2002) perscrutando os mitos indígenas da origem do
fogo detecta entre os povos da família linguística Jê (Kaiapó-Gorotire, Timbiras
orientais, Xerentes, Apinaiés, Krahô, Suyá) uma forma recorrente em que dois
homens saem para caçar ninhos de arara no alto de uma rocha. Cunhados,
enquanto um atira os ovos de arara ao que está embaixo acaba ficando preso
por lá. Passando fome e sede acaba sendo resgatado por uma onça pintada
macho que o leva para casa e lhe apresenta carne assada, até então
desconhecida do homem. Contudo a esposa da onça tenta devorá-lo a todo
custo e acaba sendo morta pelo homem que foge e leva consigo a carne
assada para sua aldeia de origem. Apresentada à nova forma de alimentação,
a aldeia enceta, então, uma caçada em direção à casa das onças de quem
pretendem roubar o fogo.
Mais adiante em seu artigo, Mindlin apresenta o mito dos Suruí de
Rondônia, em que a onça (Mekô) também era dona do fogo. Os homens
desconhecedores da existência do fogo não cozinhavam e sentiam frio. Vendo
39
CAPÍTULO II
Da voz à letra
43
Le Goff diz que a relação entre mito e memória dá-se no sentido em que “O
primeiro domínio onde se cristaliza a memória coletiva dos povos sem escrita é
44
disputado ferrenhamente:
6
Esse último tópico será analisado no final do terceiro capítulo, tendo em vista sua relação
íntima com o riso do jabuti.
7
Informações sobre Esopo podem ser encontradas Coelho (1982); Souza (1982); Sampaio (
2006).
49
aquellas formas que también han surgido del lenguaje, pero que
parecen prescindir de esta sólida base que, hablando gráficamente,
con el tiempo se ubican en outro estado de agregación: aquellas
formas que no si encuentran incluidas ni en la estilística, ni en la
retorica, ni en la poética, tal vez en la “escritura”, las que, aunque
pertenecen al arte, no llegan a ser obras de arte, aunque poéticas no
son poemas (1972, p. 16)
Thus, when witches wish to damage the health of others, they use
selected parts of the same Coyote stories in their rituals; the
difference is that instead of integrating the story with a model of order
and restoration, their idea of deployment is to use images, symbols,
and allusions separately, divisively, analytically, in order to attack
certain parts of the victim’s body, or family, or livestock. (TOELKEN,
2004, p. 396, itálico no original)
Everyday life
resolved according to
community values)
I Entertainment
Era com aquela palhoça, faziam malocão que ali a tradição mesmo.
Mas eles faziam também casas em formatos de jabuti. Chamam de
jabuti. As casas eram assim, deixa eu fazer um desenho aqui
rapidinho. Eh, fazendo preservação, era redondo aqui e aqui era
assim. Aqui era redondo né? Era tudo de taipa. De barro na parede
faziam tipo vara unida mesmo, era a vida deles. Hoje eu fiz uma vez,
mas como a gente aprendeu agora essa casa. (FIOROTTI, 2007)
Upiakonya, enaimîpî
Seurima pii’pîke
Paaka pii’pîke
Waikin pii’pîke
Wayamuri’ piipîke
Um, mararîpra kamo’ pii’pîke
Yasikîpîto’ya imîya
Mîrîpî etekeimatane eporîpî to’ya
Sausaupiya, sausaupiya
O’niwanî sîrîrî eru
Inna
Esewankonoma sîrîrî, ye’nemokapa masa era’maita’
[Alguém fez mal para você
58
Jabuti! [...]: O senhor já viu jabuti criar com a mãe? Já viram ele se
criar junto na... junto da mãe do pai, da irmã, do irmão? Ele não se
cria por conta dele? A história tá aí professor. Eu vou dar isso pra
você passar não a coisa pra adivinha, pra fazer adivinhação pros
alunos. Esse é uma adivinhação, como sempre eu falo esse é mais
importante esse daqui, que ninguém sabe. Esse eu tirei, não é pela
minha cabeça. Eu tirei essa história pelo jabuti. Já achei jabutizinho
desse tamainho assim.[...] Pequenininho, desse tamainho sem mãe.
Fica grande na mata rapaz, não conhece a mãe. Agora ele só vive
chorando, procurando a mãe. Ele não vive com aquela água nos
olhos? Diz que tá chorando, ainda tá lembrando da mãe, do pai.
(FIOROTTI, 2007)
Ah, herói tarde piaste! Era uma honra grande pra mim receber no
meu mosqueiro um descendente de jabuti, raça primeira de todas...
No princípio era só o Jabuti Grande que existia na vida... Foi ele que
no silêncio da noite tirou da barriga um indivíduo e sua cunhã. Estes
foram os primeiros fulanos vivos e as primeiras gentes da vossa tribo.
(ANDRADE, 1988, p. 166)
Ah, o Jabuti sempre foi esperto, não é? Apesar de ele não andar
ligeiro. E a Onça perdeu, todo tempo a Onça perdeu pro Jabuti.
Então, a Onça sempre foi perdedora. Perdeu pro Jabuti, perdeu pro
Macaco, só ganhou pro Veado. Perdeu pro Fogo, perdeu pro
Relâmpago. A Onça sempre foi assim. Sempre a pessoa que diz
assim: "Olha eu sou forte.", às vezes o cara que não é nem forte, aí
mais forte do que ele vai dizer: "Rapaz, eu, coitado, eu sou fraco, né."
Mas destar que o cara é, né. Então a Onça sempre foi assim, querer
ser o mais valente, o mais forte, o mais corredor, sempre perdeu.
(FIOROTTI, 2007)
8
Designação dada aos filhos da união entre os indivíduos dos diferentes grupos Karib e
wapixana. (OLIVEIRA, 2012, P. 36)
60
desvantagem e, por isso mesmo, contra quem deve-se sempre ficar atento.
Nesta relação podemos associar tal selvageria e ferocidade ao não-índio, ao
“branco”, em especial os fazendeiros. Encontramos indícios desta perspectiva
na narrativa contada por Domício Pereira da Silva, macuxi da comunidade Sol
Nascente, TI São Marcos:
Baptism is regarded as being a vital ritual for the young child, and
whenever possible takes place soon after birth. This is easier now
than in the past, when access to a priest was more difficult. The
baptismal registers in the prelazia in Bôa Vista reveal that in the past it
was not unusual for several members of the same family to be
62
9
Informação fornecida em orientação deste trabalho. Há relatos de hoje professores, filhos de
fazendeiros à época, de terem assistido indígenas irem para o tronco, apanhar.
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predadores naturais, passa a sujeito das ações e das narrativas, fato muito
comum nas fábulas.
A natureza é assim ludibriada, indicando a posição que não apenas o
Jabuti, mas nós seres humanos devemos assumir perante os fatos naturais e
situações adversas que se nos interpõem – irreverência e criatividade. Dentre
as oito narrativas, todas seguem uma linearidade lógica e cronológica, nas
quais a estrutura básica textual – início, meio e fim – é seguida. Há, também, a
contextualização do ouvinte/leitor acerca do espaço em que se desenrola a
narrativa, neste caso podendo ser associado ao espaço geográfico do circum-
Roraima, já que incorpora às narrativas animais pertencentes à fauna (jabuti,
onça, anta, jacaré-açu, macaco, veado) e flora (najá, coco-babão, olho de
buriti) da região, além de termos relativos à cultura indígena (beiju, jamaxim,
flecha com veneno, kumaza’).
Assim o Jabuti enfrenta seus principais predadores naturais, dentre os
quais a Onça, que é seu predador natural, que representa o perigo à
continuidade de sua existência. Buscando meios de sobreviver em meio ao
lavrado do circum-Roraima, o Jabuti usa de artimanhas criativas para enfrentar
e, por conseguinte, levar à derrota seu predador felino. Um aspecto de
importância crucial para demarcar a transição temporal entre uma narrativa e
outra é a derrota de seus oponentes, seguida de uma risada característica do
Jabuti.
Caetano Raposo interage com o ouvinte no momento em que, se
dirigindo a ele, a respeito da subida do Jabuti ao alto do pé-de-najá, fala:
“Dizendo ele que subiu”, criando uma cumplicidade narrativa com o público que
culminará com “: Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!”. Essa
sonora e contagiante gargalhada marca os términos e passagens nas
narrativas fabulares de Caetano Raposo sobre o jabuti, imitando-o e criando-o
respectivamente, imprimindo a ele uma personalidade irreverente e
debochada. É a risada do jabuti que empresta outros sentidos não apenas à
narrativa, mas aos ouvintes. Ela indica que o texto vibra, o leitor o estabiliza e o
integra àquilo que é ele próprio, logo sendo ele que vibra de corpo e alma
(ZUMTHOR, 2005, p. 53). Através desta risada, o jabuti pontua sua vitória
perante a morte. A morte é a experiência que mais radicalmente comprova que
somos seres de tempo, que também pertencemos à história natural como nos
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Esse desejo de subjugar pela inteligência muito nos lembra outro ilustre
personagem da tradição oral brasileira, embora suas ações tenham potencial
menos ofensivo, o esperto Pedro Malasartes. De origem indefinida, segundo
Câmara Cascudo, “Malasartes português, Urdemales espanhol é o centro de
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A prática discursiva
A tartaruga e a lebre
Uma tartaruga e uma lebre discutiam a respeito de sua velocidade.
Então fixaram um prazo e um local e separaram-se. A lebre, rápida
por natureza, descuidou-se da corrida e, tendo-se deitado à beira do
Discurso caminho, adormeceu. E a tartaruga, consciente de sua lentidão, não
narrativo parou de correr e, tendo ultrapassado a lebre, que dormia, alcançou o
prêmio da ventura.
Discurso A fábula mostra que muitas vezes o esforço venceu uma natureza Discurso
metalinguístico relapsa. moral
a fábula literária, texto autônomo que institui seu próprio contexto por
meio de epimítios, tal qual a documentam as coleções esópicas, e a
fábula encaixada, aplicada a uma dada situação discursiva por um
locutor que decidiu construir seu ato de fala por meio de uma
narrativa. (1999, p. 138)
DF: É ligeiro.
DF: Lá no final?
CAPÍTULO III
homem. A natureza inorgânica não pode ser ridícula porque não tem nada em
comum com o homem”. Assim também o assegura Bergson
Poderia também ter sido definido como um animal que faz rir, pois se
outro animal o conseguisse, ou algum objeto inanimado, seria por
semelhança com o homem, pela característica impressa pelo homem
ou pelo uso que o homem dele faz.
O riso do Jabuti
O riso do Jabuti de Caetano Raposo faz rir. À primeira vista pela
inusitada atribuição da capacidade humana de rir ao animalzinho. O riso acaba
sendo uma reação diante do inesperado, uma vez que permite que se
estabeleça um jogo intelectual com o inesperado como afirma Dominique
Arnould, citado por George Minois (2003). Essa reação provoca
distensionamento após o assustador encontro com a voraz Onça. Este jogo
intelectual revela a faceta lúdica do riso do Jabuti. Esta faceta que provoca
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A primeira coisa que eu fiz foi comunicar a vocês que era uma história
inventada pelo povo brasileiro, então os dois cegos são dois
personagens abstratos, imunes ao sofrimento, né, não sofrem porque
não existem. E depois, mesmo assim, em um momento perigoso de a
gente sentir compaixão, que o riso desaparece, é o momento em que
fura o olho, eu, então, de propósito, fiz o gesto de palhaço (puxa
remos imaginariamente), aí ó, pronto, aí vocês riram. Claro, porque
eu anestesiei a sensibilidade de vocês, pra vocês não se
aperceberem das possíveis consequências dolorosas da ação.
(SUASSUNA, 2008)
estabelecido entre os dois velhos rivais, mas ainda assim o Jabuti abate a
Onça.
Isso poderia resultar em uma antipatia do público para com o Jabuti,
entretanto o riso atenua a percepção do dano causado à Onça. Tanto que
Jabuti e Onça tornam a encontrar-se e a enfrentar-se para então novamente
acontecer a morte da Onça, demonstrando aquilo que Ariano Suassuna aponta
na teoria de Aristóteles: a falta de consequências dolorosas na ação, pelo
menos para o narrador, o Jabuti e o ouvinte. Estes recursos evidenciam a
existência de Jabuti e Onça enquanto seres de linguagem libertando o público
das consequências reais da existência desses animais, em especial da Onça,
no mundo biossocial.
Ainda de acordo com a definição do riso estético, o riso do Jabuti
apresenta-se como recriação perante outras narrativas cujas semelhanças
temáticas e/ou de sentidos se apresentam. Como quando comparamos as
narrativas coletadas por Theodor Koch-Grünberg ou mesmo com a narrativa de
Esopo A tartaruga e a lebre. Comparada a esta, a narrativa de Caetano
Raposo acerca da corrida entre o Jabuti e o Veado Galheiro, apresenta
consideráveis diferenças embora mantenha a semelhança temática em que um
animal extremamente veloz estabelece uma competição com um animal muito
vagaroso. No riso do Jabuti dado contra o Veado corredor parece subverter a
moral ortodoxa da fábula esópica. Se na fábula do escravo grego temos uma
competição em que valores meritocráticos são colocados em evidência através
da fórmula: “A fábula mostra que muitas vezes o esforço venceu uma natureza
relapsa” (ESOPO in DEZOTTI, 2003, p. 69). Na narrativa de Caetano Raposo
temos uma competição em que a esperteza e a colaboratividade entre os
jabutis são as grandes vencedoras.
Outra posição sobre o riso analisada por Suassuna é a de Sigmund
Freud, na qual “o Risível é a repentina revelação do sexual sob o simbólico”
(2008, p. 150). Não obstante, o som atribuído por Caetano Raposo à risada do
Jabuti em muito lembra o som emitido pelo quelônio durante a cópula, seja pela
fricção entre plastrão e casco, seja vocalizado pelo próprio bichinho, o que não
deixaria de causar riso, por evocar a metáfora entre a relação sexual e
situações nas quais há um dos envolvidos sairá em desvantagem ou mesmo
prejuízo.
82
O riso do Raposo
Voltando à análise de Suassuna sobre a obra de Bergson acerca do riso,
o dramaturgo vai afirmar que, embora não tenha nada que comprove tal
opinião nos exegetas do teórico, sua teoria se fundamentaria nas ideias de
Schelling e Hegel sobre a liberdade e a necessidade (2008, p. 151). Segundo a
análise da obra de Hegel, o homem, livre e espiritual de nascimento, confronta-
se com a necessidade e sua face brutal, mecanizada e cega. Uma face dividida
entre a nobreza de espírito e as paixões mais grosseiras que dilaceram o
homem tanto em seu mundo interior quanto em sociedade, que o obriga a viver
em coletividade.
Já partindo do reverso da concepção de Trágico de Schelling, o Risível
nasceria da inversão entre a assunção do homem enquanto sujeito de sua
liberdade e da necessidade enquanto objeto mecânico, duro e hostil da
natureza. Ou seja, a necessidade então passaria a sujeito, tomando os modos
mecanizados da natureza, agora objeto. Nas palavras de Suassuna “Quer dizer
que para Schelling, um ato humano torna-se risível quando o homem,
renunciando explícita ou implicitamente à sua condição de ser livre, assume os
modos mecanizados da natureza” (2008, p. 152).
Por trás do riso do Jabuti, há o riso de Raposo, entremeado por vários
discursos resultantes do contexto sócio-histórico conflituoso entre os macuxi e
os não-índios. Assumindo o ciclo do jabuti como uma metáfora dessas
relações, pode-se interpretar o riso não como sujeição às necessidades, mas
como denúncia e resistência às relações estabelecidas em virtude de tais
necessidades e à possível naturalização delas, como por exemplo, a já
mencionada relação de compadrio.
Paulo Santilli, em Riso castiga os costumes (2010), admite o riso
enquanto “princípio político pervasivo, que incide sobre as esferas da
hierarquia e da reciprocidade, ou, de modo mais amplo, sobre a estrutura
social, trazendo à tona o valor da autonomia pessoal” (2010, p. 106). Embora
atenha-se às relações de parentesco e afinidade no âmbito da aldeia, Santilli
traz considerações interessantes quando ampliadas ao contato com o não-
índio. O estudioso aponta para o fato de o riso ser um princípio de sociabilidade
que perpassa o conjunto das relações sociais. Assim, o riso e aquele que faz rir
teriam, dependendo de sua posição hierárquica na família ou aldeia, um duplo
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Entonces, é por aí que nós temos, que às vezes, muitas vezes nós
perdemos nossas tradições devido ao branco; perdemos aquela
nossa cultura e tal. Não interessa mais hoje, porque os jovens
nossos, não têm uma língua Macuxi pra ensinar àquelas crianças.
Hoje nós queremos pagar uma professora pra levantar nossas
crianças com aquela língua, que melhor de aprender é quando tá
começando a falar.
Vê-se aparecer aqui uma função por assim dizer catártica do mito: ele
libera em sua narrativa uma paixão dos índios, a obsessão secreta de
rir daquilo que se teme. Ele desvaloriza no plano da linguagem aquilo
que não seria possível na realidade e, revelando no riso um
equivalente da morte, ensina-nos que, entre os índios, o ridículo
mata. (CLASTRES, 2012, p. 163)
Clastres ainda adverte para o fato de que não raro existe a transmutação de
xamã em jaguar, uma vez que um dos dotes do xamã é a capacidade de
metamorfosear-se em animais, sendo um de seus preferidos o jaguar ou onça.
Betty Mindlin também aborda a relação metamórfica dos xamãs ou
pajés e onça em Couro dos espíritos (2001). De acordo com a autora, para os
Gavião-ikolen de Rondônia, além de ter por animal preferido de estimação, a
onça, qualquer onça no mato, a qualquer hora do dia é wãwã, o pajé. Contudo,
não é apenas o ataque que causa o pavor no encontro com a fera, mas
também a aparição dela
Para não ser comido pelo jaguar, é preciso saber como assumir o
ponto de vista dele enquanto ponto de vista de Si. Este é o cerne do
problema: como se deixar investir de alteridade sem que isto se torne
um germe de transcendência, uma base de poder, um símbolo do
Estado, ou seja, o símbolo de um símbolo. (2011, p. 907)
A performance
Em A Necessidade da Arte (1971), Ernst Fischer vai discorrendo ao
longo do segundo capítulo de sua obra sobre as origens da arte e define a
mão, como o instrumento que transformou o homem propriamente em homem,
como ser distinto da natureza. Segundo o autor, a mão é uma das principais
ferramentas encontradas pelo homem na transformação da natureza, na
captura da realidade biossocial para o mundo da cultura:
p.22).
CR: [...] Isso aí, foi embora, andou, andou. Deu sede e aí encontrou
poço grande, encostou lá pra beber água. Quando tava bebendo
água, lá vem açu. Açu pegou ele. Disse pro Açu: “Não, não vai me
comer agora, não. Estou molhado, estou venenoso, quando eu fico
molhado eu sou venenoso. Cuidado!”
Devair Fiorotti (DF): O Jabuti falou?
CR: Éh, o Jabuti falando aí pro...
DF: Pra quem?
CR: Pro Jacaré-açu.
DF: Ah, o Jacaré açu.
CR: Então vamos esperar se enxugar. Aí saíram pro seco, embaixo
de uma árvore aí. Aí açuzão sonento, também. Dormiu. Acordava,
perguntava: “E aí? Tá enxuto?” “Não, vou começar a me enxugar
agora. Mas eu tô perigoso, se você me comer, tu morre.” Aí ficou aí.
Tinha um pedaço de pau assim, jabuti pegou, levantou, tá! em cima
do Jacaré e caiu logo. Aí Jacaré acordou logo. “Rapaz cê queria me
matar, é?” “Não, isso caiu lá de cima, também quase que me matava,
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Essa voz não é mais a mera voz que pronuncia: ela configura o
inacessível; e cada uma de suas inflexões, de suas variações de
tonalidade, de timbre, de altura – seria preciso forjar a palavra
pedante vocema? – combina-se e encadeia-se como uma
prosopopeia do vivido. Através dessa presença, o ouvinte descobre-
se: age e reage no âmago de um mundo de imagens, subitamente
autônomas, que se dirigem todas a ele. (ZUMTHOR, 1993, p. 229)
aproxima-se do som emitido pelo macho do jabuti durante a cópula. Essa que
pode ser chamada de uma desumanização vocal é também o que gera uma
inusitada sensação de curiosidade por parte do ouvinte, uma espécie de
embaralhamento sensorial que fustiga ainda mais o riso do público. Esse riso,
ou parecido a ele, nenhuma das narrativas em que figuram quelônios como
protagonistas traz. Pelo singular riso do Jabuti, Caetano Raposo torna sua
performance única.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Escrever, pelo menos aos desavisados, parece ser entrar numa guerra
de trincheiras na qual se está sempre em desvantagem com relação ao arsenal
com que se está munido. Esse trabalho poderia ser uma evidência disso e da
paradoxal situação a que se propôs vir à luz: como não transformar em ataúde
de tintas negras cujo sepultamento é o branco do papel, aquilo que nasce,
cresce e se perpetua pela voz? Aquilo que se torna timbre, intensidade, gesto?
Aquilo que é história, cultura? Como tentar capturar aquilo que a princípio
parecia evanescente, sempremovente, antigo e novo ao mesmo tempo como
são as narrativas surgidas da tradição oral dos povos indígenas, do Macuxi, do
qual seu Caetano faz parte? Pronto, aí estaria o campo minado bem à nossa
frente. Mas nem todos são assim tão desavisados e são justamente esses que
muito mais experientes na lida com o ofício da palavra nos apontam que talvez
escrever não seja a beligerância toda que havíamos imaginado, mas
justamente seu oposto: seja instrumento de conciliação.
Embora reconheçamos que esse trabalho em seu curto espaço de
leitura nada mais seja que uma introdução ao mundo de narrativas como as de
seu Caetano Raposo, dá indícios da complexidade que possuem porque, antes
de tudo e depois de mais nada, possuem um narrador vivo, ativo e criativo que
através de seu talento pessoal (re)cria não apenas o Jabuti, mas as próprias
narrativas em dimensões estéticas, performáticas e literárias.
No primeiro capítulo palmilhando o rastro dos quelônios pelas mais
distantes geografias e culturas percebemos que eles estabeleceram um diálogo
entre si, enfileirando-se e apontando para o fato de que a capacidade de narrar
é uma das formas encontradas pelo homem para relacionar-se com outros
homens e mesmo com a natureza, de que sua relação estabelecida com o
mundo antes de qualquer coisa é narrativa.
O segundo capítulo nos traz a discussão sobre a relação entre essas
narrativas, em especial as de Caetano Raposo, e a literatura, principalmente
através da dificuldade de enquadrá-las em gêneros tanto literários como
discursivos, não apenas do ponto de vista formal e também por ele, mas
principalmente do ponto de vista cultural. A perspectiva de estudiosos como
Dell Hymes, Dennis Tedlock e Barre Toelke nos ajudam a compreender
100
REFERÊNCIAS
FIOROTTI, Devair Antônio. Projeto Panton Pia’. Boa vista: UERR, 2007
[projeto de pesquisa].
MINDLIN, Betty. Couro dos Espíritos: namoro, pajés e cura entre os índios
Gavião-Ikolen de Rondônia. São Paulo: editora SENAC; São Paulo: Editora
Terceiro nome, 2001.
105
______. O fogo e as chamas dos mitos. Estud. av. vol.16 no.44 São
Paulo Jan./Apr. 2002
MUSSA, Alberto. Meu destino é ser onça. Rio de Janeiro: Editora Record,
2009.
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1985.
TEDLOCK, Dennis. Finding the center: the art of the Zuni storyteller. 2 ed.
University of Nebraska Press. 1999.
______. Percepção, recepção, leitura. 2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
SÍTIOS ELETRÔNICOS
http://www.crystalinks.com/trickster.html acessado em 23/04/2014