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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E POS-GRADUAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA, ARTES E CULTURA
REGIONAL

SONYELLEN FONSECA FERREIRA

WAYAMURI PANTONÎ
AS HISTÓRIAS DO JABUTI DE CAETANO RAPOSO

BOA VISTA
2016
SONYELLEN FONSECA FERREIRA

WAYAMURI PANTONÎ
AS HISTÓRIAS DO JABUTI DE CAETANO RAPOSO

Dissertação apresentada à banca


examinadora como parte dos requisitos
para a obtenção do título de Mestre em
Letras, na área de concentração de
Literatura, Artes e Cultura Regional.

Devair Antônio Fiorotti


Orientador

BOA VISTA
2016
SONYELLEN FONSECA FERREIRA

WAYAMURI PANTONÎ
AS HISTÓRIAS DO JABUTI DE CAETANO RAPOSO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Letras da Universidade Federal de Roraima como critério para obtenção do
título de Mestre em Letras, defendida em 15/04/16 perante a banca
composta pelos seguintes professores:

Prof. Dr. Devair Antônio Fiorotti


Orientador/ UERR- PPGL/UFRR

Profa Dra. Rosângela Pereira de Tugny


Membro/UFSB

Profa Dra. Cátia Monteiro Wankler


Membro/ PPGL/UFRR

Profa Dra. Maria Helena Valentim Duca Oyama


Suplente

BOA VISTA
2016
Aos narradores indígenas, em especial a Caetano Raposo.
AGRADECIMENTOS

De agradecimentos é feito este trabalho, mas muito mais de ajuda e


colaboração. Tanto que torna-se difícil arrolar a todos sem esquecer
desmerecidamente ninguém.

Primeiro agradeço a quem devo o que sou e, aliás, só por causa deles é
que sou e porque comecei antes de mim. À minha mãe, Eliete Praia Fonseca,
amada para além do sempre, meu sol de amor, que tanto de sua vida, amor,
tempo, sabedoria e vivacidade dedicou a mim e meus irmãos. Só com você,
mamãe aprendi o amor e que ele existe, mas que também existe quem não
sabe amar.

Ao meu pai, Edmilson Batista Ferreira, espírito indômito e impertencível.


Levei muito tempo tentando compreendê-lo e hoje sou capaz de dizer que o
compreendo. A sua lição me disse que nada nem ninguém está sujeito a nada
nem ninguém, não importa o que ou quem seja. Aprendi que o amor existe,
mas é muito abstrato e até intransferível, por isso necessita do gesto para que
se estabeleça. Cara lição.

Aos meus irmãos Edyellen, Ellyelson e Renato Fonseca Ferreira que


me ensinam que o caminho se faz caminhando, ainda que por vias tortas e
trechos solitários, e que vale palmilhá-lo cada centímetro quando se tem um
pavimento de amor e amizade como os que temos.

Aos meus já e tão cedo velhos amigos com quem pude compartilhar
angústias, ideias, horas, livros, lágrimas e risos, que acreditaram em mim,
antes de mim mesma e assim sendo, cá estou lhes dizendo obrigada, Otacílio
Gabriel, Kalhianne Alves, Roberto Mibielli, Sheila Praxedes e Raiane
Costa dos Santos.

A Devair Fiorotti, assim, pois sua presença em minha vida vai além de
títulos e definições e porque seu nome, apesar da intrusão vocálica, já
prenunciava qualquer coisa de transformação para mim, para nós. Obrigada
por me ensinar que o tempo não é linear e por isso me readolescer de quando
em vez. Obrigada pela generosidade com que me apresentou às narrativas de
Caetano Raposo e pela confiança, até demais, em minha escrita. Esse trabalho
é uma espécie de espelho em tintas negras, onde você pode ler-se. Obrigada.

Aos professores e colegas de curso do Programa de Pós-Graduação


em Letras da UFRR pelo conhecimento compartilhado em sala de aula.

Ao ensino público que me permitiu chegar aqui e dizer é possível


acreditar na educação como possibilidade de (re)humanização do homem, da
diminuição do sofrimento humano e das desigualdades sociais, de gênero,
racial e tantas outras. Que permitiu olhar para além da mera formação de
profissionais bem preparados, mas rumo de fato ao humano.

Às pedras do caminho, que me ensinaram a ser mais humana e a


continuar caminhando, pois por causa delas me dei conta de que poderia ser
maior que elas e apesar dos descaminhos, chegar aqui. Foi pela educação das
pedras que vi a pedra do tempo ressignificado e assim, empilhando as pedras
do caminho, jogar amarelinha com a pedra do tempo. Pois elas me fizeram
perceber que não apenas o meu destino, mas o de todos que a vida toca, o
nosso destino vai além.
Tudo é perigoso; sobretudo quando tudo é gente, e nós talvez não sejamos.
Eduardo Viveiros de Castro
RESUMO
Este trabalho apresenta e analisa as narrativas do jabuti de Caetano Raposo,
indígena Macuxi, da comunidade da Raposa, da Terra Indígena Raposa Serra
do Sol, Roraima, Brasil. Narrativas que, embora criadas e difundidas pela
tradição oral, são recriadas e complexificadas em instâncias semânticas,
estéticas e literárias através da presença ativa do narrador. A partir disso,
busca entender o que encanta nas narrativas de Caetano Raposo, além de por
que surge esse encantamento. Discute, com isso, o processo de fabulação,
associado ao riso do Jabuti presente na narrativa e sua relação com a
performance.

Palavras-chave: Literatura oral indígena, jabuti, riso, performance.


ABSTRACT

This work aims to present and analyze the narratives turtle’s Caetano Raposo,
indigenous Makushi, from Raposa community, in Raposa Serra do Sol
indigenous territory, Roraima, Brazil. Although these narratives were created
and spread by oral tradition, they are recreated and made more complex in
semantic, aesthetic and literary instances through the active presence of the
narrator. From that seeks to understand what delights in Caetano Raposo
narrative, and why comes out this delightful. Argues, therefore, the process of
confabulation, associated with turtle laughter present in the narrative and its
relation to performance.

Keywords: Oral indigenous narrative, Turtle, laugh, performance.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................... 10

CAPÍTULO I: Uma sequência de jabutis pelo mundo afora................. 14

Sobre cascos e artimanhas........................................................................ 17

Ipicui auti maiaué....................................................................................... 20

O carumbé................................................................................................. 30

A Onça....................................................................................................... 38

CAPÍTULO II: Da voz à letra.................................................................... 42

A fábula e as formas narrativas................................................................. 48

Panton: literatura indígena......................................................................... 56

A prática discursiva.................................................................................... 71

CAPÍTULO III: Hã'! Hã'! Hã'!– E o Jabuti ri............................................ 75

O riso do Jabuti.......................................................................................... 77

O riso do Raposo....................................................................................... 83

A performance............................................................................................ 92

CONSIDERAÇOES FINAIS....................................................................... 99

REFERÊNCIAS......................................................................................... 102
10

INTRODUÇÃO

Não se passa imune às pessoas, nem a uma boa história. Pelo menos
eu não passei, ainda mais quando esta pessoa é um exímio narrador como
Caetano Raposo. Suas histórias têm como protagonista um animalzinho
inusitado como o jabuti e findam com uma contagiante e peculiar gargalhada:
Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!1 Incumbida de transcrever
a entrevista de Caetano Raposo pelo Prof. Dr. Devair Antônio Fiorotti, como
parte das atividades a serem desenvolvidas dentro do projeto de pesquisa
Panton Piá: Registro e Análise na Terra Indígena do Alto São Marcos e
Raposa Serra do Sol,2 fui capturada para o mundo de encanto destas
narrativas.
Indígena do povo Macuxi, um dos majoritários em Roraima, Caetano
Raposo é um artista da palavra, agraciado por uma memória admirável que,
apesar da intempérie do tempo e da frágil saúde, possui vigor criativo para
encadear uma série de narrativas fabulares tendo como protagonista o astuto
jabuti. Nestas narrativas, todo casco e artimanha, apesar da fragilidade que sua
natureza inspira, o jabuti consegue através da esperteza ludibriar e vencer
animais muito maiores, entre eles sua predadora mais voraz: a onça.
Entrecruzando memória coletiva e talento pessoal invulgar, as narrativas
do ciclo do Jabuti de Caetano Raposo incitaram-me uma série de
questionamentos, resumidos aqui em uma única pergunta: O que torna estas
narrativas tão particulares dentre as demais que se nos apresentaram ao longo
do tempo e do espaço, já que com seu casco-escudo, o quelônio pode ser
encontrado em narrativas que vão da mitologia hindu, passando pelas fábulas
1
Essa é uma tentativa, fracassada desde já, de transcrição da risada do Jabuti de Caetano
Raposo, já que tanto IPA (International Phonetic Alphabet) quanto especialistas consultados na
área de Fonética e Fonologia não conseguiram representar os sons que se apresentam no
momento da risada de forma satisfatória.
2
Projeto iniciado em 2007, primeiro registrou 29 narradores indígenas de 17 comunidades da
TI São Marcos. Depois, concluiu em 2014 as entrevistas de mais 10 narradores, de seis
comunidades, na TI Raposa Serra do Sol. Os narradores estão assim distribuídos: 27 homens
e 12 mulheres, sendo por etnia: 24 macuxi; seis taurepang; seis wapishana; uma
indeterminada. Na terceira fase, iniciada em 2015, o projeto está registrando e analisando
cantos, rezas e supertições de indígenas dessas duas terras. Desde 2007 o projeto é
financiado pelo CNPq e vinculado à Universidade Estadual de Roraima - UERR. A metodologia
de coleta e trato com as narrativas sustenta-se principalmente na História Oral (ALBERTI,
2004).
11

esópicas, às narrativas indígenas dos povos caribe e aruak?


Este trabalho nasce ainda do desejo de conhecer mais do povo cujo
sangue também corre em minhas veias, como tributo a meus ancestrais
indígenas. Assim como tantos outros projetos, este mudou muito desde sua
escritura primeira, mas em essência permanece fiel ao seu intento primordial.
Eu sabia que queria trabalhar com literatura indígena e me recusava – e ainda
recuso – a não acreditar que narrativas como as de Caetano Raposo sejam
menos do que isso: Literatura.
Nasce, além disso, do desejo de contestar a imagem do índio
emudecido, tartamudeando uma linguagem ininteligível que forjou sua imagem
desde A carta de Pero Vaz de Caminha e que durante muito tempo foi
difundida pelos viajantes e etnógrafos que dedicados ao estudo dos povos
indígenas, a partir do século XVI. Situação essa que estabeleceu até muito
pouco tempo atrás uma espécie de união aduaneira cujo trânsito cultural exige
um valor muito mais oneroso dos elementos culturais provenientes do lado
indígena do que do não-indígena. O que resultou na exclusão do indígena
como produtor simbólico de literatura e no seu extenso silenciamento,
demonstrando uma espécie de reserva cultural e no limite literária por parte da
academia. É também o reconhecimento acadêmico da riqueza cultural que
representam os narradores como Caetano Raposo e suas narrativas que, além
de habitar e se entrelaçar na voz e memória dos habitantes de Roraima, são
pertencentes à tessitura cultural do Estado.
O método escolhido para lidar com as narrativas foi o da História Oral,
uma vez que produzindo as próprias fontes de consulta pode contribuir para as
diversas disciplinas das ciências humanas. Como afirma Verena Alberti:

A história oral pode ser empregada em diversas disciplinas das


ciências humanas e tem relação com categorias como biografia,
tradição oral, memória, linguagem falada, métodos qualitativos etc.
dependendo da orientação do trabalho, pode ser definida como
método de investigação cientifica, como fonte de pesquisa, ou ainda
como técnica de produção e tratamento de depoimentos gravados
(2005, p. 17).

Seguindo as etapas de entrevista, transcrição, conferência de fidelidade


e copidesque, a escolha deste método foi importante pelo fato de reconhecer
no entrevistado o ator/testemunha de acontecimentos, conjunturas,
movimentos, instituições e modos de vida contemporâneos (ALBERTI, 2003).
12

Também, é relevante por reconhecer a narrativa enquanto elemento basilar na


construção de conhecimento acerca de uma perspectiva particular de um
sujeito, já que:

Um acontecimento ou uma situação vivida pelo entrevistado não pode


ser transmitido a outrem sem que seja narrado. Isso significa que ele
se constitui (no sentido de tornar-se algo) no momento mesmo da
entrevista. Ao contar suas experiências, o entrevistado transforma
aquilo que foi vivenciado em linguagem, selecionando e organizando
os acontecimentos de acordo com determinado sentido. (ALBERTI,
2003, p. 01)

Reconheço neste trabalho que, mais do que narrar as histórias do jabuti


transmitindo o legado cultural de seu povo pela oralidade, Caetano Raposo o
cria e recria em outra instância semântica através de sua performance. Por
performance podemos entender a relação estabelecida entre a linguagem
verbal e a corporal ou, como afirma o estudioso suíço Paul Zumthor:
“performance é uma realização poética plena: as palavras nela são tomadas
num conjunto gestual, sonoro, circunstancial tão corrente (em princípio) que,
mesmo se distinguem mal palavras e frases, esse conjunto como tal faz
sentido” (ZUMTHOR, 2005, p. 87). Por isso, além do texto estabelecido por
escrito, a análise ateve-se ainda ao áudio e ao vídeo da entrevista com
Raposo.
Nesse contexto, a História Oral enquanto método não compreende o
processo de transformar em linguagem vivências como uma tradução direta da
realidade, mas sim que “conhecimentos e ideias tornam-se realidade à medida
que, e porque, se fala. O sentido se constrói na própria narrativa; por isso se
diz que ela constitui (no sentido de produzir) racionalidades” (ALBERTI, 2003.
p.01). Esta perspectiva é muito importante no sentido de reconhecer a
importância destes narradores enquanto produtores de conhecimento e de
contestar a representação do indígena emudecido, silenciado.
O primeiro capítulo é dedicado a um breve rastreamento da presença
dos quelônios em narrativas engendradas por diversas culturas espalhadas ao
longo do tempo e das latitudes. Trabalha-se aqui com a ordem, pois as suas
espécies apresentam características similares e de interesse ao trabalho aqui
presente: vagarosidade, fragilidade, mas que se transformam em sabedoria,
esperteza, nas narrativas. Presente em praticamente todos os cinco
continentes, tartarugas, cágados e jabutis pertencem à mesma ordem, dos
13

quelônios e, embora compartilhem da mesma vagareza e casco, possuem


algumas diferenças morfológicas e de habitat. Enquanto cágados e tartarugas
são capazes de viver na água – doce ou salgada – o jabuti habita
exclusivamente a terra. Apresentamos, em seguida, como a espécie terrestre
do animalzinho, o jabuti, encontra-se presente nas narrativas indígenas
relatadas pelas crônicas dos viajantes e estudiosos da Amazônia, como
Charles Frederik Hartt, Couto de Magalhães, Silvio Romero, Theodor Koch-
Grünberg e Luís da Câmara Cascudo, além de apresentar Caetano Raposo, o
narrador das peripécias de carumbé.
Já o segundo capítulo debruça-se sobre as peculiaridades relativas à
narrativa de origem oral, a partir da análise das narrativas de Caetano Raposo
e da comparação com outras narrativas fabulares apresentadas no capítulo
anterior, analisando primordialmente enquanto texto literário. Discute como
estudiosos acerca das narrativas indígenas, tais como Jerome Rothenberg,
Dell Hymes, Dennis Tedlock, Barre Toelke têm se desdobrado para lidar com
estas narrativas que distintivamente das narrativas literárias escritas contam
com a presença ativa do narrador através da performance. Discute ainda como
as narrativas são recriadas na instância discursiva, uma vez que, aproximando
as narrativas de Caetano Raposo à fábula e ao que Alceu Dias Lima (1989) e
Maria Celeste Consolin Dezotti (2003) divisaram enquanto forma da fábula,
retoma a narrativa enquanto ato de fala. Por último, analisa a performance
vocal de Caetano Raposo ao longo das oito narrativas do ciclo do Jabuti,
observando as mudanças de timbre durante as trocas de turno de fala e
escolhas estilísticas feitas pelo narrador.
Por fim, o terceiro capítulo detém-se no que mais particulariza as
narrativas de Caetano Raposo: o riso. Analisa o riso enquanto recriação
estética, partindo da reflexão de Ariano Suassuna e também de Aristóteles de
que o homem é o único animal que ri, analisando os significados adquiridos ao
longo da narração. Em seguida debruça-se sobre o riso levando em
consideração o contexto em que as narrativas foram (re)criadas passando por
aspectos sociais, culturais e mesmo políticos como aponta Paulo Santilli
(2006).
14

CAPÍTULO I

Uma sequência de jabutis pelo mundo afora


Caetano Raposo: Aí convidou outros
carumbés, companheiros dele. “Tu fica aqui,
quando veado perguntar de ti, diga que você tá
na frente.” Colocou outro mais na frente.
Devair Fiorotti: Uma sequência de jabutis.
Caetano Raposo: Éh, de jabutis.
15

Tão antiga quanto a humanidade é a necessidade de traduzir em


estruturas narrativas as experiências vivenciadas no seio de uma dada cultura.
Articulando símbolos e engendrando sistemas de representação através da
linguagem, o homem cria tais estruturas que, dentre uma miríade de
possibilidades, intenta responder aos questionamentos do homem acerca de
sua existência em meio ao cosmos. Ainda, a partir das narrativas, tenta
justificar a existência de fenômenos naturais com os quais depara(va)-se,
tentam questionar as atitudes do homem para com ou contra outros homens,
etc. Isso é o que, em geral, vemos nas narrativas. Aqui narrativa será
relacionada à panton, à história dos povos macuxi, traduzida em narrativas
históricas, míticas e lendárias.3
É também a maneira que encontramos de construir sentidos e dar
significados aos acontecimentos da vida, para que nossa existência não se
perca na sucessão aleatória destes acontecimentos e, assim, nos
desintegremos no caos do existir. Um elemento capaz de nos retirar desse
caos, ou da apatia visguenta da rotina, e nos lançar em outra dimensão da vida
é o inusitado. No inusitado, muitas vezes, habita a criatividade; nele, muitas
vezes, agitam-se as possibilidades da criação humana. Talvez por isso, o fato
de animaizinhos tão indefesos como a tartaruga, o jabuti e o cágado
protagonizar histórias nas quais saem vitoriosos, tenha sido o motivo que
permitiu sua longevidade e recorrência em muitas narrativas espalhadas ao
longo dos tempos e lugares distintos.
Aliás, longevidade e recorrência são as características do que Paul
Sébillot denominou como literatura oral, em 1881, na obra Littérature Oral de
la Haute-Bretagne (CASCUDO, 1984, p. 23). A literatura oral revela-se através
de um horizonte de conhecimentos e sabedoria engendrados no seio de uma
dada cultura perpetuados pela voz e pelo silêncio. Eles permitem ao gesto
ampliar os significados e corporificar o som através do movimento,
possibilitando a essas vivências serem impressas na memória de um povo.
Vivências que a cultura ocidental tentou domesticar através de gêneros

3
No segundo capítulo, dedico um subcapítulo "Panton: literatura indígena", para lidar com essa
palavra.
16

estanques, classificando as narrativas coletadas em mitos, lendas, fábulas,


contos, como bem lhe soavam no momento em que foram ouvidas.
Luís da Câmara Cascudo em Literatura Oral no Brasil (1984),
reconhecendo a relevância dos conhecimentos transmitidos de boca a ouvido
na formação da cultura brasileira, divide-os em duas forças que mantêm a
literatura oral viva. A primeira, estritamente oral, incluiria histórias, cantos
populares e tradicionais, danças de roda, danças cantadas, danças de
divertimento coletivo, ronda e jogos infantis, cantigas de embalar (acalantos),
estrofes de velhas xácaras e romances portugueses com solfas, músicas
anônimas, aboios, anedotas, adivinhações, lendas, etc. A outra força se daria
através da reimpressão de antigos livrinhos oriundos de Espanha ou Portugal,
a produção contemporânea feita por processos de versificação popularizada.
Processos que fixariam assuntos da época, tais como guerras, política, sátiras,
histórias de animais, fábulas, ciclo do gado, da caça, amores e mesmo a
poetização de romances como Romeu e Julieta. Essa forma, em particular,
embora já vertida para a palavra escrita, afirma Cascudo, é parte da literatura
oral, uma vez que

Com ou sem fixação tipográfica essa matéria pertence à literatura


oral. Foi feita para o canto, para a declamação, para a leitura em voz
alta. Serão depressa absorvidos nas águas da improvisação popular,
assimilados na poética dos desafios, dos versos, nome vulgar das
quadras nos sertões do Brasil. (1984, p. 24)

Mas muito mais do que a transmissão irrefletida, esvaziada de


significação, estabelecida meramente pela automanutenção que demanda a
tradição, a transmissão feita pelas vias da oralidade é o compartilhamento da
vivência com o outro. Ela é uma maneira encontrada pelos povos para criar
entre seus membros a sensação de pertença a uma comunidade baseada na
experiência cotidiana, nas experiências que tornam o homem, de fato, humano.
Narrar foi e é inscrever-se na humanidade e na cultura, e a memória foi e é a
faculdade que nos permitiu e permite manter-nos nelas.
17

Sobre cascos e artimanhas


Várias culturas apresentam em suas mitologias a tartaruga,
representando longevidade, persistência e sabedoria. Feurestein (2005) diz
que na mitologia hindu duas são as tartarugas primordiais: Akupara e Chukwa.
A primeira traria sobre seu casco a terra e o mar. A segunda equilibraria quatro
elefantes sobre as costas dos quais repousaria a terra. Nos textos sagrados de
Satapatha Brahmana, Vishnu, uma das potestades da tríade divina hindu, na
segunda de suas dez encarnações, teria adquirido a forma de uma tartaruga,
Kurma. Kurma tinha a incumbência de descer à Terra e recuperar tesouros
perdidos durante o dilúvio que deu vida à raça humana, dentre eles o elixir da
vida. Tarefa cumprida com a ajuda da serpente Ananta e da montanha
Mandara. Essa forma de Vishnu representaria a configuração do universo: seu
plastrão seria a terra, seu corpo, a atmosfera e sua carapaça, o céu.
Feurestein (2005) diz ainda que, assim como na cultura hindu, a chinesa
partilha do mito de que sobre o plastrão de uma tartaruga repousa a terra,
depois que a deusa criadora Nuwa tomou de uma tartaruga marinha seu casco
para servir de esteio ao céu quando Gong Gong, um deus das águas, destruiu
a montanha na qual se amparava. Diz também que outro mito chinês versa que
uma enorme tartaruga com cabeça de dragão saiu das águas de um rio e
revelou a Yu, o imperador fundador da dinastia Xia, qual seria a forma com que
dividiria o mundo e que em cada ponto cardeal desta divisão seria governado
por um animal. O norte regido pela Tartaruga Negra, o sul pela Fênix, o leste
pelo Dragão e o este pelo Tigre. Feita de água, fogo e luz de estrelas, trouxe
inscrito no casco o Hong Fan, a regra geral. Alguns chineses antigos afirmam
que estas inscrições são uma forma primeva de sua escrita diagramática.
Feurestein fala também que os indígenas norte-americanos também
pagam tributo ao quelônio. Para o povo Iroquoi o universo é concebido como a
Ilha da Tartaruga, o lar do Grande Espírito que o teria assentado sobre as
costas do animal. Nessa ilha ninguém jamais havia experimentado o
nascimento, a morte ou a tristeza e do seu centro erigia-se, diretamente da
espinha dorsal da tartaruga, uma árvore sagrada. Essa crença difunde-se entre
outros povos habitantes da costa leste dos Estados Unidos. Contudo em uma
delas, ganha uma abordagem que distancia-se do aspecto mítico das demais
narrativas. Entre o povo Wabanaki, Mikcheech é o velho e trôpego tio do herói
18

cultural Gluskap que, após uma série de desventuras, transforma-se em


tartaruga na tentativa de arranjar uma esposa.
Na cultura ocidental, a tartaruga ganhou popularidade através da fábula
"A tartaruga e a lebre", de Esopo. Na narrativa, a lépida lebre resolve apostar
uma corrida com a vagarosa tartaruga. Valendo-se de sua reconhecida
velocidade, a lebre decide no meio da corrida cochilar. Enquanto a tartaruga
continua lenta e persistentemente seu trajeto, fato que acaba levando-a à
vitória.
Apesar de sua indefinição pátria, podemos atribuir ao narrador de
origens obscuras, Esopo, o título de pai daquilo que hoje conhecemos como
fábula. Esopo seria originário da Ásia Menor, não sendo raro ser descrito como
oriundo da Frígia, e vivido entre finais de século VII a.C. e VI a.C. Era escravo
na Grécia e foi reconhecido como um virtuoso fabulista, fato que o fez
conquistar sua liberdade. Esopo foi o principal entusiasta do gênero, levando-o
à sua popularização além dos limites da Grécia, lugar onde codificou a forma
da fábula e apesar de gozar da boa companhia de homens ilustres de seu
tempo, não teve acesso à escrita, imortalizando suas narrativas através da voz.
As fábulas atribuídas a Esopo datam de cerca de dois séculos após sua morte,
pelo coligimento de Demétrio de Falero (SAMPAIO, 2006. p. 34) .
Jean de La Fontaine (1621-1695), influenciado por Esopo, reconta a
famigerada corrida entre a lebre e o quelônio na obra Fábulas Escolhidas, de
1668. Entretanto, a despeito de Esopo, La Fontaine o fez não enquanto prosa,
mas enquanto verso, elevando o prestígio da narrativa entre os leitores da
época (COELHO, 1982). Coelho diz ainda que o fabulista preservou a
simbologia atribuída aos animais por Esopo: a lebre manteve-se representante
da empáfia e a tartaruga da perseverança.
Em Os Nascimentos (2010), primeiro livro da trilogia Memória do fogo,
Eduardo Galeano dispõe-se a narrar a história da América Latina através de
mitos indígenas fundacionais. Assim nos diz sobre o surgimento da tartaruga:

Quando baixaram as águas do Dilúvio, era um lodaçal o vale de


Oaxaca.
Um punhado de barro ganhou vida e caminhou. Muito devagarinho
caminhou a tartaruga. Ia com o pescoço esticado e os olhos muito
abertos, descobrindo o mundo que o sol fazia renascer.
Em um lugar que fedia, a tartaruga viu o urubu devorando
cadáveres.
19

– Me leva para o céu – rogou. – Quero conhecer Deus.


Muito se fez de rogado o urubu. Estavam saborosos os mortos. A
cabeça da tartaruga aparecia para suplicar e tornava a meter-se
debaixo da carapaça, porque não suportava o fedor.
– Você, que tem asas, me leva – mendigava.
Farto da pidona, o urubu abriu suas enormes asas negras e
empreendeu voo com a tartaruga nas costas.
Iam atravessando nuvens e a tartaruga, escondida a cabeça, se
queixava:
– Como você cheira mal!
O urubu se fazia de surdo.
– Que cheiro de coisa podre! – repetia a tartaruga.
E assim até que o pássaro perdeu sua última paciência, e se
inclinou bruscamente e jogou-a para a terra.
Deus desceu dos céus e juntou seus pedacinhos.
Na carapaça a gente vê os remendos. (GALEANO, 2010, p. 42-43)

Já aportando em terras brasileiras, Monteiro Lobato (1882-1948) seria o


próximo a propagar as peripécias do quelônio em suas histórias infantis,
revisitando a obra de Esopo e incluindo narrativas oriundas dos povos
autóctones. Ele, o quelônio, protagoniza várias das narrativas de Monteiro
Lobato presentes na obra Histórias de Tia Nastácia (1937). Por exemplo,
através da voz da amável negra, em “O cágado na festa do céu”, tia Nastácia
revela a Pedrinho, Narizinho e à boneca Emília o motivo pelo qual os indígenas
acreditavam ser o casco do animal repleto de segmentos. Na narrativa
acontecia uma grande festa no céu de três dias. Contudo, vagaroso como é o
cágado demorava-se a chegar. Por isso pede ajuda à perversa garça que, à
boa altura do solo, solta o pobre animal que se estilhaça. Com pena, Deus
restaura seu casco que, assim, adquire a aparência fragmentada que possui.
Já no casco da espécie terrestre do quelônio, o jabuti protagoniza outras sete
histórias, em que se depara respectivamente com o homem, a caipora, a onça,
a fruta, o lagarto, o jacaré e com os sapinhos.
Outro autor brasileiro que fez da tartaruga personagem de uma de suas
Fábulas Fabulosas (1973) foi Millôr Fernandes (1924 – 2012). Contudo em “A
morte da tartaruga”, o bichinho não leva a melhor. Henriquinho desconsolado
acorda o pai ao saber da morte da sua tartaruga de estimação. Consternado e
convencido de que o momento é o propício para ensinar ao filho o significado
da morte, o pai persuade o filho a realizar um grande funeral. Entretanto,
contrariando as constatações de seus donos, a tartaruga dá sinais de vida,
frustrando a cerimônia. O que não desanima o menino que retorque ao
comentário do pai que não seria preciso mais realizar o funeral: “Vamos, sim,
20

papai! – disse o menino ansioso, pegando uma pedra – Eu mato ela!”


(FERNANDES, 1999, p. 99)

Ipicúi auti maiaué


Apesar de inscrever o jabuti na literatura brasileira, Monteiro Lobato não
foi o primeiro a apresentá-lo enquanto personagem importante de narrativas e
escritos literários. Em Literatura Oral no Brasil (1984), Luís da Câmara
Cascudo perscruta as raízes da tradição oral brasileira. Organizada em dez
capítulos, a obra discute desde as fontes que mantêm a literatura oral viva,
passando pela contribuição dos povos formadores da cultura brasileira até
chegar à classificação do repertório oral em contos, poesia, autos e danças
dramáticas. Cascudo reúne diversos relatos publicados pelos estudiosos da
cultural oral brasileira e pelos cronistas viajantes dispostos a desvendar os
mistérios da Amazônia e de seu povo. Em certa passagem, Cascudo aponta
para a recorrente presença do jabuti nas narrativas coligidas pelos viajantes:

As fábulas que encontramos nos divulgadores de estudos indianistas


raramente deparamos na reminiscência popular brasileira
talqualmente fora registrada pelo general Couto e Magalhães,
Barbosa Rodrigues ou Carlos Frederico Hartt. As aventuras do jabuti
aparecem ao redor do Conje (coelho) na sul América central. No
populário brasileiro substituem-no o macaco, o sapo, a raposa. O
jabuti denuncia a predileção indígena. É inútil procurar uma estória do
jabuti, prestigioso na oralidade tupi, nas recordações dos pescadores
do litoral nortista, mesmo praianos descendentes de tupi. O domínio
do jabuti e de suas façanhas é o extremo-norte, Pará – Amazonas.
(CASCUDO. 1984. p. 91-92)

Batizado de jabuti, yauti em tupi-guarani, a espécie terrestre da tartaruga


tornou-se tema principal da monografia de Charles Frederik Hartt, Mitos
Amazônicos da Tartaruga, publicada em 1875 e só vertida para língua
portuguesa em 1977 pelos esforços e dedicação de Luís da Câmara Cascudo.4
Na obra, considerada por Cascudo como a primeira coleção sobre o quelônio
divulgada no Brasil, Hartt narra oito façanhas do jabuti (e suas versões),
entremeadas por interpretações de viés astronômico. Ouvidas da boca de seu
fiel piloto, o indígena Lourenço Maciel Parente, de outros indígenas ou
estudiosos, como o capitão de engenheiros do exército, Joaquim Xavier de
4
O título da obra em inglês é Amazonian tortoise myths. O título traduzido por Cascudo é:
Mitos amazônicos da tartaruga, contudo, no decorrer da obra, prevalece o uso da palavra
jabuti.
21

Oliveira Pimentel, Couto de Magalhães, Silva Coutinho, as histórias traçam um


itinerário narrativo que navega pelas águas do rio Amazonas, Tapajós, Branco,
até as fronteiras com o Peru. Recolhidas em Língua Geral, denominação para
as línguas de base indígena, em especial do tronco linguístico Tupi e que
abrangia vastas áreas e povos do território brasileiro no século XVIII, Hartt traz
versões das narrativas indígenas assemelhadas a de outras culturas como a
africana e a oriental, levantando a hipótese de que o ciclo do jabuti tenha sido
transplantado para o Brasil e difundido pelo contato entre os povos formadores
da cultura brasileira.

Uma questão tem sido levantada, se muitas das lendas que tanto se
assemelham com as fábulas do Velho Mundo, não podiam ter sido
introduzidas pelos negros; eu, porém, não vejo razão para entreter
esta suspeita, porque elas são muito espalhadas; a sua forma é
inteiramente brasileira, são mais numerosas justamente nas regiões
em que não há negros ou em que os há em pequena quantidade e,
além disso, elas aparecem não em português, mas na Língua Geral.
(HARTT, 1988, p. 22)

Hartt embora salvaguarde as narrativas construídas no bojo das culturas


indígenas devido ao afastamento entre indígenas e negro e à sua narração em
Língua Geral, aponta para a semelhança entre a narrativa nomeada “Como o
jabuti venceu o veado na carreira” e a narrativa negra norte-americana sobre
Balder Deer (veado) e Brudder Coutah (jabuti). Na primeira, o jabuti vence às
expensas de seus parentes que se postam ao longo do percurso da corrida,
valendo-se da semelhança entre si e confundindo o veado que acredita ser o
mesmo jabuti da linha de chegada o da linha de partida. Na narrativa negra,
"Brudder Deer e Brudder Coutah" disputam o amor da mesma senhorita que
para evitar ressentimentos entre os pretendentes, propõe uma corrida para
decidir quem levará sua mão. Empenhando-se na corrida Brudder Deer usando
a mesma estratégia do jabuti, Brudder Coutah acaba conquistando a senhorita
em questão. Hartt interpretando a narrativa atribui aspectos astrológicos à sua
análise. A carreira entre o jabuti e o veado simbolizaria a mesma travada entre
“o sol, o vagaroso, e a lua, a veloz, e parece-me muito provável que os mitos
semelhantes do Amazonas possam ter a mesma significação” (HARTT, 1988,
p. 31). Sobre essa indefinição pátria das narrativas do jabuti, adverte Luís da
Câmara Cascudo que
22

O processo não foi exclusivamente de exosmose, mas também de


endosmose. As estórias tupis foram para os contos populares
portugueses como as estórias populares portuguesas foram para os
contos tradicionais dos tupis. Elementos, característicos, cenas,
sabidamente da técnica oral lusitana, vivem nas reminiscências orais
indígenas. E quando os ciclos, no advento do africano, coincidiam, a
estória se fundia, fingidamente íntegra, mas revelando, aos olhos
perspicazes, os veios denunciadores da fusão. (1984, p. 86-87)

Também no encalço do jabuti, José Vieira Couto de Magalhães lança em


1876, O selvagem, onde busca deslindar os aspectos e a importância da vida
indígena no território brasileiro. O General Couto de Magalhães tinha para isso
o conhecimento dado pelas gestões políticas nas províncias de Goiás, Pará,
Mato Grosso e São Paulo entre os anos de 1863 e 1889. A obra organizada em
oito partes dedica a sétima parte à mitologia zoológica indígena e são
encaradas como métodos de educação intelectual dos povos primitivos.

Na coleção que se segue, além do sentido simbólico que as lendas


possam ter, assunto esse que eu não trato de investigar, porque me
faltam ainda estudos de comparação, é muito claro o pensamento de
educar a inteligência do selvagem por meio da fábula ou parábola,
método geralmente seguido por todos os povos primitivos.
(MAGALHÃES, 2013, p. 208-209)

Nele, no subcapítulo nomeado como Lendas Tupis são apresentados


dez pequenos episódios nos quais o jabuti é personagem central, nos quais

Todos eles foram imaginados com o fim de fazer entrar no


pensamento do selvagem a crença na supremacia da inteligência
sobre a força física. Cada um dos episódios é o desenvolvimento ou
desse pensamento geral, ou de algum que lhe é subordinado.
(MAGALHÃES, 2013, p. 209)

Reconhecido pelos indígenas como o mais vagaroso dos animais, que


de acordo com Magalhães suscitou entre os tupis o prolóquio Ipicúi auti
maiaué, ou vagaroso como um jabuti, tem função civilizadora. A seu modo,
claro.

Cada vez que reflito na singularidade do poeta indígena de escolher o


prudente e tardo jabuti para vencer os mais adiantados animais de
nossa fauna, fica-me evidente que o fim dessas lendas era altamente
civilizador, embora a moral nelas ensinada divirja em muitos pontos
da moral cristã. (MAGALHÃES, 2013, p. 211)

Uma curiosidade com relação à explicação de Couto de Magalhães é


relativa à função e ao gênero com que ele interpreta tanto as narrativas quanto
23

o narrador. De acordo com o estudioso, o narrador seria um poeta e sua


matéria poesia, asserção reiterada na passagem: “Quanto ao estilo das lendas,
há aí alguma coisa de tão singelo e infantil que é impossível vê-las sem
reconhecer que há nisso verdadeira poesia selvagem” (MAGALHÃES, 2013, p.
215).
Assim como Hartt e Couto de Magalhães, Silvio Romero debruçou-se
sobre a cultura oral brasileira e reuniu na obra Contos Populares do Brasil
(1865) a compilação realizada por outros estudiosos, narrativas de
proveniência europeia, africana e tupi, espalhadas por todo o território
brasileiro. O objetivo desta coleção, aponta Teófilo Braga em “Sobre a
Novelística brasileira”, texto que introduz a obra de Romero, possui um caráter
sociológico já que

Colligir essas tradições no syncretismo actual em que se acham,


determinar a intensidade de cada elemento ethnico, é um processo
de alta importância para avaliar como a par dá assimilação orgânica
se está elaborando uma nacionalidade em todas as manifestações da
literatura e da arte synthese affectiva, que individualisa e unifica uma
nacionalidade em todas as manifestações da literatura e da arte. Foi
sob este aspecto que ligámos uma singular importância aos Contos
populares do Brazil, coordenando-os ethnologicamente, de
preferencia a qualquer disposição esthetica. (ROMERO, 1865, p. VIII-
IX, sic.)

Recolhidas basicamente em estados da região nordeste, as fábulas de


origem africana trazem o cágado enquanto figura central em cinco das
dezenove narrativas. Novamente a origem de certas narrativas indígenas é
colocada em questão, embora o autor sobre a contenda não se delongue.
Sobre esta indefinição pátria, Teófilo Braga admite que

A relação ethnica do negro com a pátria brasileira é vastíssima, como


se vé pela abundância de Fábulas colhidas da tradição oral. Na
Grécia a Fábula era também considerada como proveniente de uma
civilização negroide, d'onde a sua designação de Fábulas lybicas,
ethiopicas, e a identificação de Esopo com Âithiops A publicação
moderna dos Contos dos Zulus, por Henrf Callaway, veiu esclarecer-
nos sobre a evolução das fôrmas tradicionaes entre a raça negra,
onde apparecem os contos do Renard, do Petii-Pôucet, e a
elaboração de um fetichismo que perdeu a fôrma cultuai. (ROMERO,
1865, p. XXII, sic.)

Por isso e pela miscigenação com os indígenas, Braga atribui ao


contato cultural a presença do jabuti nas narrativas dos povos autóctones.
24

Partindo para as narrativas de origem indígena, tal como Couto de Magalhães,


ressalta o caráter poético de tais narrativas, além de indicar sua relação com
aspectos mnemônicos quando declara que

Todos os que têm colligido tradições populares conhecem o


phenomeno psychologico de desconfiança ou de medo com que o
depositários d'esses thesouros poéticos respondem ás interrogações
que lhes fazem; receiam descobrir essas reminiscencias queridas,
julga-se expostos ao ludibrio dos indiferentes, tem medo ás' vezes
que as suas palavras se tornem sortilegios com que os persigam.
(ROMERO, 1865, p. 24, sic)

Também, no conjunto de narrativas míticas dos Baniwa, povo do tronco


linguístico Aruak, habitante da região do Alto Rio Negro, Amazonas, encontra-
se o surgimento dos quelônios, em especial, dos cabeçudos. De acordo com as
narrativas, ninguém podia atravessar o Bacaba-poço (Lago de Poperiana), pois
se o fizesse, atrairia a ira de um sucuri muito bravo que por lá vivia. (SANTOS,
2012, p. 203). Entretanto, um homem com seu filho, por ser muito tarde, decide
atravessar o Bacaba-poço. Um redemoinho arrasta a canoa e seu filho para o
fundo das águas. O homem então compreende que o sucuri havia devorado
seu filho e decide flechá-lo. Colocando-se a postos, o homem encontra uma
pessoa, o boto. O boto então avisa que o filho do homem não havia sido
devorado, mas vivia na maloca do Sucuri, sob sua rede. Seguindo as
orientações do boto, o homem entra numa maloca em que vive o Sucuri e sua
esposa. O homem consegue flechar o Sucuri, mas não sua esposa, e
consegue recuperar seu filho. Contudo ao retornar para sua casa, o menino
vive a tomar banho. O pai percebe que o filho não mais deseja viver entre os
homens e o deixa escolher onde quer viver. O menino então decide viver nas
águas, tornando se o pai dos cabeçudos. Alguns dos seus filhos continuam sua
geração de cabeçudos, outra dá origem aos jabutis, e ainda outra em uma
espécie de cabeçudo venenosa.
Adentrando as vastidões do lavrado de Roraima e nas vidas dos povos
por cá habitantes, o alemão Theodor Koch-Grünberg foi um estudioso a
percorrer as trilhas culturais e narrativas dos povos indígenas roraimenses.
Imbuído pelo espírito da volkerkünde alemã, iniciou sua viagem em 1911, com
a tarefa hercúlea de organizar detalhadamente os vocabulários de cerca de 23
povos indígenas, mitos, cantos, lendas e registros fotográficos. Embora “fadada
25

ao fracasso”, como bem definiu Erwin Frank (2005), Koch-Grünberg reuniu nos
cinco volumes da obra Von Roroima zum Orinoco (1916), o resultado de sua
empreitada, o que o alçou ao posto de expoente da historiografia cultural dos
povos indígenas em Roraima. No segundo volume de sua obra, Del Roraima
al Orinoco: observaciones de un viaje hecho por Teodor Koch-Grünberg
por el Norte de Brasil y Venezuela durante los años de 1911 y 1913 (1981)
com a obstinação das premissas científicas, legou ao mundo parte dos
fabulários indígenas Karib. Circunscreve geograficamente essas narrativas e
retira-as da boca de um genérico tupi, como em geral se atribuía, e dá nome e
voz aos narradores indígenas. Também, vale destacar que essas narrativas
trazem à luz parte da cultura dos povos do tronco linguístico Karib ao qual
pertence o de Caetano Raposo, o povo macuxi.
As narrativas presentes no segundo volume de Koch-Grünberg foram
coligidas com a ajuda de seus companheiros de viagem, Akuli e Mayuluaípu,
dos povos arekuna e taurepang respectivamente. Enquanto os dois indígenas
narravam nas horas de ócio do acampamento, o alemão vertia do português
traduzido por Mayuluaípu para seu idioma as mais de 50 narrativas que
compõem a obra, além da transcrição em língua indígena do ciclo de Kone’wó,
Makunaima, Piaimã e Zilikawai. Nestas narrativas, a tartaruga (na tradução), ou
oazamuli (wayamuri), protagoniza três das narrativas que compõem o que
classificou o naturalista de fabulas animales. A tradução, a princípio, se
equivoca. Em Macuxi, por exemplo, existem as palavras wayamuri (jabuti),
pitura' (cágado) e warara' (tartaruga) e terekayá (tracajá) para designar
quelônios. Mesmo a tradução optando por tartaruga, iremos nos referir a jabuti
no texto de Grünberg.5
Na primeira fábula Iwaleká y Oazamuli, como definiu o volkekündler, o
jabuti encontra seu compadre macaco em cima da árvore de inajá, comendo
frutas e a ele pede:

– Ay, compadre, échame abajo algunas frutas!


El mono contestó:
– No, súbete así como he subido yo.
La tortuga dijo:
– Arrójame por lo menos una para probarla.
El mono replicó:

5
Fonte Tiago Simplício Napoleão, indígena da comunidade Napoleão, na TI Raposa Serra do
Sol.
26

– No, súbete como he subido yo.


La tortuga trató de subir, pero no lo logro. Había subido un pequeño
tramo del tronco, pero volvió a resbalar hacia el suelo. El mono le
mostro como debía subirse, pero la tortuga volvió a resbalarse hasta
el suelo. Entonces le dijo al mono:
Llévame arriba.
El mono constestó:
– Está bien. Voy a llevarte.
Se bajo. Después llevó a la tortuga al árbol, la dejó sola allá y se fue
corriendo. (KOCH –GRÜNBERG, 1981, p. 119)

A narrativa estende-se para o segundo conto, batizado pelo etnógrafo de


Oazamuli, Wailá y Kaikusé (La tortuga, el tapir y el jaguar). Ainda no topo de
inajá o tapir, anta, agora faz o papel de pedinte.

– Ay, compadre, échame abajo frutas.


La tortuga dijo:
– No, súbete como he subido yo también.
El tapir contestó:
– Échame abajo frutas. Yo no puedo subir.
La tortuga dijo:
– No te echo abajo nada. Súbete como he subido yo.
No le echo abajo ni una fruta El tapir se fue. La tortuga comió todas
las frutas. ((KOCH-GRÜNBERG, 1981, p. 119)

Desta feita o Jabuti não sai tão incólume. Ao tentar descer do pé de inajá
cai sobre as espáduas e não consegue desvirar-se por talvez um mês quando
a onça o encontra e tenta comê-lo. Contudo negocia sua vida em troca da vida
da anta e segue em seu rastro. Empunhando arco e flecha dados pela Onça, o
matreiro Jabuti segue as pistas deixadas pela anta, suas fezes, que quando
indagadas respondem a quantos dias de distância se encontra sua dona. Já
premeditando sua investida, concebe uma solução de muito engenho e pouca
ortodoxia para o mundo ocidental:

– Tengo sed, amigo mío, Orina en mi boca. He corrido mucho y no he


encontrado agua.
El tapir dijo:
– Abre la boca.
La tortuga dijo:
– Mete el pene más dentro de mi boca. Mi garganta está
completamente seca.
El tapir lo hizo así. La tortuga mordió y agarro bien duro el pene del
tapir. El tapir corrió de un lado a outro y golpeó la tortuga contra los
árboles, pero ésta no lo solto sino que se aferró cada vez con más
fuerza hasta que mato el tapir. (KOCH-GRÜNBERG, 1981, p. 119)

Depois de conseguir cravar a flecha no corpo da anta, o Jabuti então


apresenta à Onça sua refeição. A Onça então o encarrega de preparar a carne
27

da anta enquanto procura lenha para assá-la. Ao voltar coloca a carne em uma
panela e a leva ao fogo. Entretanto, volta a buscar lenha enquanto o Jabuti
busca veneno para colocar na panela da Onça. O Jabuti encontra a árvore urari
da qual retira a casca (kumaloá) e joga na panela da Onça que morre após
ingerir a refeição. Com um osso da cabeça da Onça faz uma flauta e assim
caminha até encontrar um buraco na terra de onde toca: “Uayi zemilión, uayi
zemilión (ésta es la flauta de Zemilión, ésta és la flauta de Zemilión)”, evocando
pelo nome de outra onça que aparece. De repente, a tartaruga se vê
novamente em apuros:

– Qué dijiste compadre?, y saltó cerca del hueco, pero no cogió a la


tortuga.
Esta contestó:
– Nada –, y se cayó de espaldas al hueco. El jaguar metió la mano
dentro y agarro una pata de la tortuga. Esta dijo:
– Ay compadre, esa és una raíz. Tú crees que es mi pierna.
El jaguar solto la pierna y la tortuga exclamó:
– Compadre, ahora te engañé, porque sí era mí pierna.
Entonces se encontro con el pájaro “Kara’rá”. El jaguar le dijo:
– Quédate aqui y no dejes escapar a la tortuga. Si ella escapa te
como a ti. Voy a buscar mi azada.
La tortuga estaba sentada en el hueco y oyó todo. (KOCH-
GRÜNBERG, 1981, p. 121)

Entretanto o Jabuti novamente às custas de esperteza consegue


enganar o Kara’rá e fugir. Acha outro buraco onde toca a mesma canção e atrai
a atenção de outra onça o agarra. Dessa vez para se livrar pede que a onça a
atire num pé de açaí que ficava dentro da água e escapa descendo as águas
do rio.
A terceira e última narrativa, “Oazamuli y Waikín (La tortuga y el venado
de la sabana)”, começa rio abaixo. Subindo à terra seca, o Jabuti encontra o
veado que propõe uma corrida entre os dois. Assim que definem o percurso da
corrida, traçam suas estratégias para vencer. Enquanto o Veado confia-se em
toda sua velocidade, o Jabuti reúne seus parentes e ordena que se pusessem
a determinadas distâncias do caminho e que respondessem a cada pergunta
do veado. Assim:

El venado volvió a correr un trecho. Corría y corría. La tortuga


contestaba ora por delante de él, ora al lado Después el venado
volvió a llamar la tortuga le constestó por detrás de él. El venado
volvió a llamar la tortuga y la tortuga contestó por delante de él.
Después el venado llamó una vez más y la tortuga contestó de muy
por delante. Entonces el venado corrió con todo su fuerza y dijo:
28

–Ahora el jabuti está detrás de mí. (KOCH-GRÜNBERG, 1981, p.123)

Continuam a corrida até que o Veado esgotado deita-se sob um pé de


buriti e lá morre. Os jabutis então reúnem-se para descobrir onde ficou o veado
e descobrem seu corpo. O Veado então transformou-se na planta waikín-epíg e
o Jabuti em oazamuli-epíg, plantas mágicas usadas para ter sucesso na caça
de veado e jabuti, respectivamente.
Essas narrativas ganham importância por revelar parte dos
conhecimentos relacionadas ao edifício cultural sob a qual se erigiram a
memória coletiva dos povos indígenas do tronco linguístico Karib que por cá
habitam, entre os quais estão os povos Taurepang, Arekuna e Macuxi. Como
afirma Michael Pollak (1989, p. 3), retomando as afirmações de Maurice
Halbwachs, há pontos de referência que estruturam nossa memória, tais como
monumentos, paisagens, datas, personagens históricos, as tradições e
costumes, certas regras de interação, o folclore, a música e até mesmo as
tradições culinárias. De acordo com Pollak,

Na tradição metodológica durkheiminiana, que consiste em tratar


fatos sociais como coisas, torna-se possível tomar esses pontos de
referência como indicadores empíricos da memória coletivo de um
determinado grupo, uma memória estruturada com suas hierarquias e
classificações, uma memória também que, ao definir o que é comum
a um grupo e o que o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os
sentimentos de pertencimento e as fronteiras sócio-culturais.
(POLLAK, 1989, p. 03)

Sob essa perspectiva, a abordagem de Durkheim enfatizaria a força


“quase institucional dessa memória coletiva, a duração, a continuidade e a
estabilidade” (POLLAK, 1989, p. 03). Contudo, essa faculdade humana não se
estabeleceria através da imposição, mas da adesão afetiva que reforçaria a
coesão social, criando o que Halbwachs denominou de “comunidade afetiva”.
De certa forma, Koch-Grünberg não foi apenas o tradutor dessas
narrativas indígenas, mas seu fiador perante a cultura ocidental, o que permitiu
no século XIX que escritores sul-americanos se sentissem atraídos pelas
literaturas indígenas (SÁ, 2012, p. 20) e dessem ao mundo obras como
Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e Los Pasos Perdidos (1953), de
Alejo Carpentier. Grosso modo, as literaturas indígenas têm sido interessantes
29

enquanto fontes, mas ignoradas enquanto corpus, ficando relegadas a uma


espécie de limbo. Observa Lúcia de Sá (2012, p. 20) que

Não obstante, ainda são raros os críticos e historiadores literários que


se detêm nesse processo de apropriação cultural. As fontes
indígenas têm sido basicamente ignoradas, tanto como antecedentes
indispensáveis para escritos posteriores quanto por seu valor
intrínseco como corpus literário. Não há sequer uma história da
literatura tupi ou caribe, por exemplo, e nenhum estudo sistemático
da influência tupi-guarani ou caribe em obras brasileiras ou sul-
americanas. Histórias literárias e antologias nacionais do Brasil e de
países vizinhos raramente incluem o precedente indígena, mesmo
quando se trata daquelas culturas consideradas mais avançadas,
como a inca. Nas pouquíssimas ocasiões em que os textos
amazônicos ou das planícies sul-americanas foram levados em
conta, seu papel ficou restrito ao de mero material etnográfico ou
matéria-prima sem valor estético ou literário. Por esse motivo, a
própria noção de intertextualidade, fundamental para este estudo,
nunca foi levantada.

A partir da obra de Koch-Grünberg, mais estudiosos voltaram-se para as


culturas dos povos autóctones da região do circum-Roraima. Alguns desses
estudos foram publicados em revistas como a Revista do Museu Paulista
(1950). No quarto volume da revista, encontram-se 69 narrativas colhidas entre
os índios Wapichana, povo do tronco linguístico Aruak. Intitulado Lendas dos
Índios Vapidiana, dentre as narrativas coletadas entre os anos de 1935 e
1949 por D. Mauro Wirth, da Ordem de São Bento, cinco narrativas são as que
trazem a figura do jabuti. A primeira narrativa foi contada por Cipriano do
Panelão, na comunidade de Uruca, no ano de 1938. Nela tanto macaco quanto
jabuti conseguem safar-se das investidas da onça através de um engodo. Na
segunda narrativa, de Edgar de Malacacheta, coletada em Boa Vista, em 1938,
são o pássaro jacuruaru e o jabuti que se desvencilham das garras da temida
onça. Nas últimas três narrativas apenas jabuti e onça, velhos rivais, tornam a
enfrentar-se. Recolhidas em Quixadá, no Rio Contigo em 1937 (narrador
desconhecido), Lago Grande (Vicente Vapidiana de Anaruk), e Tabalascada
(Luiz Cadete) 1939, narram todas a vitória do jabuti sobre a onça.
Charles Weagley e Eduardo Galvão em Os índios Tenetahara (1961,
Pp. 157-160) elencam 37 narrativas dentre as quais cinco tratam das investidas
do jabuti. A primeira narra a aposta do Jabuti e do Gambá em que a vitória
consiste em superar o adversário no maior tempo sem comer enfiado dentro de
um buraco e assim como em outras narrativas, o Jabuti acaba levando a
30

melhor enquanto o gambá morre enterrado. A segunda narra a corrida entre


Jabuti e Veado. A terceira conta como o Jabuti enganou seus cunhados,
fazendo-os acreditar que era caçador de caititus, sendo descoberto, porém,
passa a retirar pedaços da própria perna para alimentar a família. Desfeita a
armação, acaba conseguindo enraivecer os cunhados que o ameaçam atirar no
fogo, livrando-se só por dizer que o fogo seria seu pai e nada sofreria caso
cumprissem a ameaça. Desvia-lhes a atenção dizendo que só morreria se o
atirassem na água. Caindo na lábia do Jabuti, assim o fazem, e mais uma vez
ele se salva, graças a sua esperteza.
A penúltima narra a vitória do Jabuti sobre a Onça, que avistando o
Jabuti sobre um pé de inajá, pede que o quelônio jogue cocos. Temendo ser
devorado o Jabuti atira-se sobre o focinho da predadora, livrando-se. O Jabuti
põe-se a cantar vitória, o que provoca a ira da Onça que o agarra e com ele
ameaça copular. Entretanto, com muita conversa, o Jabuti reverte o jogo e
negocia a cópula, desde que ele o fizesse em primeiro lugar com a Onça.
Conseguindo seu intento, na troca de parceiro, o Jabuti se livra dos desejos da
Onça, enfiando-se num buraco, onde à espera de sua saída, a Onça morre de
inanição. ´
Por último, o Jabuti vai à festa do Urubu às escondidas nas costas da
Garça. Perdendo a carona cai das nuvens e se despedaça no chão, sendo
remendado por Tupã que condoído restaura-lhe o casco. Essa narrativa possui
estrutura idêntica à contada por Monteiro Lobato, "O cágado na festa do céu" e,
também, aproximasse da narrativa apresentada de Galeano anteriormente.

O carumbé
O carumbé ou Jabuti-Tinga (Geochelone denticulata) é o quelônio cuja
carapaça possui escudos poligonais com círculos centrais amarelos. Suas
patas possuem escamas avermelhadas o que os diferencia das demais
espécies de jabuti encontradas na Amazônia. Essa denominação é apenas
atribuída aos machos da espécie, já as fêmeas são chamadas de jabota. Em
tupi-guarani, carumbé significa o que é achatado e, na língua portuguesa, pode
também denominar as vasilhas arredondadas utilizadas por garimpeiros para
lavar cascalho.
Assim descrito, faltava quem nos apresentasse suas peripécias, o que
31

foi feito na coleta da narrativa oral realizada pelo Prof. Dr. Devair Antônio
Fiorotti, no dia 26 de abril de 2014. Contudo mais do que apenas ouvi-lo,
pudemos perceber o intrincado entrecruzamento que engendrou o lugar de
memória que habita Caetano Raposo e que se apresenta em suas narrativas
fabulares.
Nascido em 1946, filho de pais pertencentes ao povo macuxi, oriundo da
região da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, Caetano Raposo, doravante seu
Caetano, nasceu já sob o contato com os brancos: “Eu nasci no meio dos
brancos, já. Já sim. Por isso que eu sou amigo dos brancos, eu nunca briguei
com ninguém, não. Eu me criei com eles aí, com os filhos deles, brincava com
eles aí. Eu nunca briguei, não”.
Em Pemongon Patá: Território Macuxi, rotas de conflito (2001),
Paulo Santilli afirma que existiriam duas autodesignações: Pemon e Kapon. Os
Kapon corresponderiam aos Akawaio e aos Patamona, habitantes da região ao
norte e leste do Monte Roraima. Já os Pemon agrupariam Kamarakoto,
Arecuna, Taurepang e Macuxi, habitantes da região da Gran Sabana e da
cordilheira Pacaraima. Dessemelhanças à parte, diz Santilli que tanto Pemon
quanto Kapon aparentam-se através da mitologia, já que consideram-se
descedentes comuns dos heróis Makunaima e Insikiran. Ainda de acordo com
Santilli (2001, p. 19):

Macuxi é a designação corrente para os grupos Pemon que habitam


o sul da área circum-roraima, as vertentes meridionais do Monte
Roraima e os campos ou savanas que se estendem pelas cabeceiras
dos rios Branco e Rupununi, território politicamente partilhado entre
Brasil e Guiana.

Também haveriam cinco subgrupos dialetais entre os macuxi,


identificados por Theodor Koch-Grünberg: Monoikó, Asepanggóng, Kenoloko,
Tewayá e Eliáng. Os macuxis habitam tradicionalmente a região que vai de
leste a oeste, do vale do rio Rupununi ao vale do rio Uraricoera (SANTILLI,
2010, p. 22). Contudo, vale acrescentar que atualmente essas fronteiras
mudaram, principalmente porque Boa Vista, a capital, é um reduto de milhares
de macuxi. Acerca da designação macuxi, Paulo Santilli (2001, p. 19-20,
parafraseando Nadia Farage) diz:
32

O termo Macuxi aparece nas fontes historiográficas atinentes à região


circum-roraima desde meados do século XVIII, quando tem início a
ocupação colonial na área, a partir de duas frentes simultâneas: a
colonização holandesa que, estabelecida na costa da Guiana, atingia
o vale do Rio Branco em razão do tráfico de escravos índios – o qual
envolvia povos indígenas desde a costa até o vale amazônico – e, de
viagens esparsas de funcionários da Companhia das Índias
Ocidentais, que operavam no entreposto de Arinda no Rio Rupununi,
limite sul mais avançado da colônia holandesa do Essequibo; no
mesmo período, a colonização portuguesa se fazia presente no vale
do Rio Branco por meio de viagens esporádicas de traficantes de
escravos índios e de funcionários coloniais vindos do vale do Rio
Negro e, nos anos setenta, consolidar-se-ia em ocupação militar.

Santilli reforça a ideia de que a denominação macuxi surge do contato entre


brancos e índios, além de indicar que este contato começa muito antes dos
portugueses estabelecerem-se em terras roraimenses.
Desse contato, seu Caetano mudou-se de sua comunidade para a
capital Boa Vista, para trabalhar e estudar na Prelazia, onde estabeleceu
contato com a língua portuguesa de forma mais intensa. A esse respeito ele
diz: “Aí em 1963, 62, eu fui embora pra trabalhar com os padres aqui na
Prelazia. Fiquei oito anos trabalhando com os padres. Depois de velho, por isso
eu não sei falar bem português, não”. Caetano Raposo apresenta-se como a
personificação, paradoxal de certo, das questões políticas, históricas, sociais e
culturais pelas quais os indígenas do estado de Roraima, em específico,
Macuxi vivencia(ra)m. Indígena, falante de português e macuxi, líder indígena
tuxaua por 38 anos, foi vereador, vice-prefeito por um mandato, apesar de
evangélico estudou com os padres da Prelazia, acompanhou as lutas que
confluíram na demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e, além de
tudo, um narrador inato.
Como se vê, Caetano Raposo esteve enlaçado à palavra e com a
capacidade da palavra, seja ela indígena ou não, escrita ou não, chegou, por
exemplo, à função de tuxaua. O tuxaua é o representante da comunidade,
responsável por mediar conflitos intracomunitários e mesmo forâneos, com os
não-indígenas. São eleitos pela comunidade e duas são as características
fundamentais para o cargo “‘Saber falar’ e ter um certo prestígio na
comunidade.” (CIDR, 1989, p. 48). Pierre Clastres também alude a essa
capacidade de diálogo. Para ele
33

Sobre a tribo reina seu respectivo chefe e este reina também sobre
as palavras da tribo. Em outros termos, e muito particularmente no
caso das sociedades primitivas americanas, o índio, o chefe – o
homem de poder – detém também o monopólio da palavra. Não se
deve, junto a esses selvagens, perguntar: quem é seu chefe? Mas
antes: quem é entre vocês, aquele que fala? Senhor das palavras: é
esse o nome que muitos grupos dão ao seu chefe. (2012, p. 169)

Assim como para a função de tuxaua, para a de vereador e vice-prefeito


a palavra exerce papel mais do que definitivo. Assim, quando interpelado a
ocupar o papel de narrador, de artista da palavra, embora seu Caetano afirme
não falar bem a língua portuguesa, é capaz de encadear com maestria, oito
histórias tendo como principal personagem o jabuti, ou como o chama,
carumbé. Ao início da narração, Caetano Raposo faz silêncio. Um breve
silêncio que denuncia a preparação para mais sua concepção das coisas se
aproxima uma dupla personificação: a de narrador e ator. É como se por breves
instantes se preparasse para o espetáculo que logo se iniciará, como o ator em
cima da ribalta que repassa as marcações, não de espaço, mas de memória
ancestral, física e vocal. Começa a narrar a fábula do jabuti e de sua mais forte
e ameaçadora oponente, a onça.

Caetano Raposo (CR): Jabuti... Ele andou e encontrou macaco


comendo inajá, os macacos comendo. Aí pediu [que] Macaco
derrubasse inajá pra ele. “Derruba najá pra mim!” Macaco derrubou.
Comeu. Pediu outro. Macaco derrubou. Até que Macaco se enjoou
dele. Aí ele veio: “Rapaz, eu vou te buscar lá, eu vou te deixar aqui
em cima do pé de inajá.” Aí colocou lá em cima, ficou comendo lá.
Não demorou muito lá vem Onça. Onça veio e falou pra ele “O que é
que o senhor tá fazendo aí?” “Não, eu subi aqui pra comer najá.”
Dizendo ele que subiu. “Tá gostoso?” “Tá” “Então derruba um pra
mim”. Derrubou pra Onça. “Mas tá gostoso, mesmo!” Comeu.
“Derruba mais um”. Comeu. “Derruba mais um”. Até que Jabuti
pensou: “Rapaz, eu vou matar essa Onça.” “Derruba mais um” “Então
fica embaixo, na minha direção, bem embaixo de mim, mas pisca
olho, não olha pra mim, não. Pisca olho. Eu vou te derrubar najá, pra
você.” Ficou aí piscado. Jabuti veio de lá e ó pá! E achou graça. Hã'!
Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!

A primeira das oito narrativas de Caetano Raposo soa bastante familiar,


principalmente quando a comparamos com a narrativa Iwaleká y Oazamuli,
coletada por Koch-Grünberg. Os personagens que travam os primeiros
diálogos tanto em uma como em outra são o Jabuti e o Macaco assim como a
árvore sob a qual se dá o encontro também é o pé de inajá. Outros pontos de
semelhança se dão com relação as ações desenvolvidas pelos personagens.
34

Em ambas narrativas o Macaco leva o Jabuti ao topo da árvore e lá o deixa


como castigo. Isso leva o Jabuti à próxima complicação. Outro pedinte de
frutas, mas enquanto a narrativa apresentada por Koch-Grünberg traz a Anta, a
de Caetano Raposo o personagem é a Onça, embora o encontro com a Onça
se faça no adiantar da narrativa de Koch-Grünberg e com a Anta no adiantar
das narrativas de Raposo. Nas duas narrativas o Jabuti se safa, tanto do alto
da árvore quanto da Onça com a diferença de que enquanto Koch-Grünberg
apresenta o Jabuti tentando desvirar-se de sobre o próprio casco e assim
defronta-se com a Onça, Raposo narra o Jabuti livrando-se dos dois ao mesmo
tempo ao lançar-se da árvore sobre o focinho da Onça “piscada”. A narrativa de
Raposo resguarda semelhanças com a penúltima das narrativas dos
Tenetehara, como se verá adiante, no tocante ao lugar de encontro e na
estratégia traçada para sair do topo do pé de inajá. Transpassando as
adversidades das situações, o jabuti reinicia sua trajetória:

Isso aí, foi embora, andou, andou. Deu sede e aí encontrou poço
grande, encostou lá pra beber água. Quando tava bebendo água, lá
vem Açu. Açu pegou ele. Disse pro Açu: "Não, não vai me comer, não
vai comer agora, não. Estou molhado, estou venenoso. Quando eu
fico molhado eu sou venenoso. Cuidado!"
DF: O Jabuti falou?
CR: Eh, o Jabuti falando aí pro.
DF: Pra quem?
CR: Pro Jacaré-açu.
DF: Ah, o Jacaré-açu.
CR: Então vamos esperar se enxugar. Aí saíram pro seco, embaixo
de uma árvore aí. Aí Açuzão sonento, também. Dormiu, dormiu,
acordava, perguntava: "E aí? Tá enxuto?" "Não, vou começar a me
enxugar agora. Mas eu tô perigoso, se você me comer, tu morre."
Manhã. [Risos] Aí ficou aí. Tinha um pedaço de pau assim, jabuti
pegou, levantou, Táaaaaaam! Em cima do Jacaré e caiu logo. Aí
Jacaré acordou logo. "Rapaz, cê queria me matar, é?" "Não, não isso
caiu lá de cima, isso caiu aí." "Também quase que me matava,
acertando minha mão". Ele contou. "Se me acertasse aqui, eu ia
morrer." Jabuti olhando aí. Jabuti também disse: "Se me acertasse
aqui também, ia me matar, mas me errou" Tá bom. Sono de novo,
jacarezão: "Coooooom, cooooomm". "Ah, agora eu sei onde é que é a
morte dele." Pegou o pau e em cima do coisa. "Ele falou que era
aqui." "Tãaaam! Tãaaam!" "Aai, aai." Acabou de matar ele. Matou
jacaré. Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!H ã'!Hã'
!Hã'! [Risos] Aí saiu, foi embora pro caimbezal. Aí encontrou, coco-
babão, caroço de coco-babão embaixo da pedra. Ficou quebrando
aqui, Tah, e comendo. Aí onça encontrou de novo: "Ê, camarada! Que
que tá fazendo?" "Tô comendo caroço do meu saco." "Será que é
gostoso caroço do seu saco?" "É gostoso. Quer provar?" "Então me
35

dê um." Tah! Deu pra ele. "E aí?" "Tá gostoso". Deu outro de novo.
"Assim também, o seu saco deve tá gostoso! Vamos experimentar?"
O saco do gato, da onça é atrás. "Então, senta aqui". Ele deu pedra,
colocou pedra, aí onçazão e Jabuti: "Padauuuuuu", dois logo aí.
"Heimmm" " Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!
Hã'!Hã'!Hã'!" [Risos de todos presentes, principalmente com a risada
imitada pelo narrador] Graça dele, aí foi embora, saiu de lá. Foi
embora, foi embora e aí encostou no poço. Aí tava brincando o Luar,
por aqui assim, quando bate na água, o Luar. Eles tavam brincando
lá. Aí Onça disse: "Que que tá fazendo aí?" "Não, quero comer beiju,
beiju de goma, beiju de goma. Tá lá dentro aí. Quero pegar ela, mas
não tô podendo não. Tô mergulhando, mas meu fôlego não dá, não."
"Aonde?" "Ali, olha. Tá ali." "É mesmo! Eu vou lá!" "Vai, mas é fundo.
Vamos amarrar pedra e aí tu vai ligeiro." Carumbezão tirou olho do
buriti, amarrou pedra no pescoço dele. "Tu vai lá, compadre, tu vai lá
e traga pra nós." Aí onçazão, "Tchibum!". Desceu ligeiro. Aí lá, matou,
matou, enforcado e dentro d'água, matou. " Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!
Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!" E saiu de lá. Foi embora e
aí encontrou com outra Onça. Aí Onça perguntou dele: "O que que
você come?" "Eu como veado, eu como paca, eu como." O Jabuti,
né? "Eu como paca, eu como veado, eu como tudo caça. Eu como
porco. Como tudo. E você?" "Eu também, eu como." Falou a Onça.
"Então vamos cagar, vamos cagar nós juntos pra ver quem é que
come mais, as sete estrelas vendo, não olha pra ninguém, não. Nem
eu nem você, só olha pras estrelas, sete estrelas." "Tá." Bem
juntinho, cagando aí. Aí o Jabuti trabalhou aqui e trouxe a merda da
Onça pra ele e dele colocou pra Onça. Ficou lá. "Vamos ver!"
Viraram, levantaram. Merda da Onça só folha, só folha. Do Jabuti,
pelo de caça, de veado, de porco, de toda caça, do Jabuti,
[Carumbé]. "Rapaz, de novo!"Jabuti fez o mesmo processo. Onça não
viu, não que ele fez.
DF: Passando por trás das costas, lá.
CR: Eh. Aí viraram de novo pra ver. Continuou. Onça só folha
mesmo; do Jabuti [Carumbé] só pelo de caça. "Então Jabuti, tu vai
matar anta pra mim comer." Ele sabia onde vivia anta, Jabuti, né? "Tá
bem"; "Tá aqui flecha venenosa." Onça dando pra ele, né?
DF: Ahã.
CR: "Tá bem". Foi embora, ele sabia onde era a casa da Anta e foi
direto pra lá. Chegou lá com sede, Anta tava trançando aí um
jamaxim. Aí pediu Anta. "Taí água, tá aí, bebe água aí". "Não, eu
quero do kumaaza'".
DF: Kumaaza' é o quê?
CR: Kumaaza' é um tipo de balde. Até que encheu o saco da Anta
com kumaaza'. "Eu quero tomar água de kumaaza' ". "O que é que tá
dizendo kumaaza'? Tá aqui kumaaza'." E tirou coisa dela aí e deu pra
ele. Pra quê! Isso aí que ele queria, o Jabuti.
DF: Essa aí eu não entendi direito o final.
CR: Hein?
DF: Não entendi direito o final, não. Ele queria o quê, o Jabuti?
CR: O Jabuti queria a pimba da coisa.
DF: Da anta?
CR: Da anta! Queria a pimba da anta, aí a anta tirou a pimba dela e
deu pra ele. Pra quê!
36

DF: Pegou!?
CR: Pegou. Anta esqueceu do jamaxim dela e correu. Não caiu, não.
Até cansou Anta, Anta caiu. Matou Anta. A flecha dele, colocou a
flecha da Onça. Aí ele voltou, encontrou onça lá e perguntou: "Como
é que é, compadre?" "Não, já tá morta." "Tá?" "Tá. Não falei que eu
como caça? Matei." "Então, umbora ver!" Aí foram pra lá. Chegaram
lá, tava antazona lá esticada. Aí cortaram ele todinho, ele deu
buchada pra ele, pro Jabuti. Só buchada, não deu carne, não. "A
carne é pra mim e a buchada pra ti." "Tá bem." Aí fizeram cozido pra
eles. Aí a onça disse: "Rapaz, eu vou tirar vara pra fazer o jirau pra
assar, né?" "Aí eu fico aqui cozinhando." "Pode cozinhar aí, mas não
mexe com a minha panela, não. Não come minha boia, não." Onça,
né?

O trecho da narrativa referente a morte da Anta, assemelha-se ao trecho


da narrativa coletada por Koch-Grünberg Iwaleká y Oazamuli, em que o Jabuti
negocia sua vida com a Onça em troca da vida Anta e o meio encontrado para
matá-la nos dois trechos é idêntico, uma mordida fatal no órgão sexual.

DF: Falou.
CR: Aí, "Tá bom." Aí sobrou um resto de veneno da flecha, aí colocou
na panela da Onça, Jabuti. Aí chegou. "E aí? Tá cozido?" "Tá bom, tá
bom, tá cozido. Vamos comer agora." Boia do Jabuti só panelada e
da Onça, a carne. Comeram juntos e panela de Jabuti e panela da
Onça. Tá bom. Comeram. Aí onça falou: "Ahhhhhh, minha boia tá
amarga!" "Ahhhhhhhh, minha boia tá amarga!", Jabuti. "Ahhhhhh,
minha boia tá amarga! Minha comida tá amarga" "Ahhhhhhhhhhhh,
minha comida tá amarga!", Jabuti. Aí não demorou Onça, "Poh", caiu,
a Onça. Jabuti olhando pra ele. Matou Onça. "Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!
Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!". Aí foi embora, Jabuti.
Matou onça. Aí foi, tava subindo na serra, onça encontrou com ele. A
serra que dava na laje. Foi brincar lá, o Carumbé. Subia na laje e de
lá ele vinha. Saltava.
DF: Rolando.
CR: Rolando. "Pah. Tãaannn." Lá embaixo. Aí onça falou "Que que
está fazendo aí?" "Não, estou brincando aqui, tô brincando aqui." "É
gostoso?" "É gostoso! Que ver?" Saltou de novo. "Tãan." "Tá bom."
"Então bora nós dois?" "Bora." Ele falou. "Tu vai primeiro compadre,
tu vai primeiro. Eu vou atrás", Carumbé, né. Onça na frente e
Carumbé atrás. Aí Onça saltou de lá, Carumbé atrás. Quando onça
chegou lá embaixo e bateu na pedra.
DF: Já era.
CR: Aí vem Carubé de lá pra cá e acabou de matar ele. "Tá, ehhhhh".
" Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!".
É gostosa a brincadeira dele. [Risos] Aí foi embora, deixou ele aí pra
urubu comer. Tinha uma serra cheia de pedra e Onça encontrou de
novo. "Que tá fazendo aí, compadre?" "Não, estou rastejando Anta".
Anta subiu aqui, essa serra aqui, e vou rastejar ela, mas estou sem
companheiro pra pegar essa anta. "Eu vou pegar!" "Tu vai pegar
compadre?" "Eu vou pegar." "Tá, então pega aqui, mas não sai, pega
piscado. Não pega com olho aberto, não. Piscado. Não deixa ir
37

embora, não." Aí subiu. Encostava na pedra, experimentava se a


pedra tava frouxa. Foi-se embora até que encontrou pedra grande,
entrou embaixo, aí saiu pedra. "Lá vaaaaai, compadre! Lá vaaaaai,
compadre! Peeeeega, compadre! Seguuuuura, compadre! Não olha,
não, pega piscado!" Aí ficou olhando de lá e onça: "Lá vem anta."
Pegou Onça, aliás pedra. Pedra passou por cima dele. "Ermmmm."
Matou. Foi lá ver compadre dele: tava todo esmigalhado. " Hã'!
Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!". [Risos]
Oh, compadre! Saiu e aí foi embora. Aí encontrou com Veado. Disse:
"Você é corredor?" "Sou corredor, eu sou corredor, disse o Veado, e
você?" "Eu também sou corredor." "Então vamos experimentar nossa
carreira?" "Vamos." "Tal dia." "Tá bom." "Nós vamos sair daqui. Aqui
tá o igarapé, você fica d'outro lado e eu fico d'outro." "Tá." Aí convidou
outros carumbés, companheiros dele. "Tu fica aqui, quando veado
perguntar de ti, diga que você tá na frente." Colocou outro mais na
frente, assim.
DF: Uma sequência de jabutis.
CR: Eh, de jabutis. Aí chegou o dia deles. Aí o veado perguntou: "Já,
compadre?" "Já, compadre, vamos embora!" Saíram. Veado saiu torto
daí. Aí perguntou: "Compadre?" "Erhmm!" Responderam lá na frente.
Veado é bicho todo [esperto], carreira do Veado é de 80 quilômetros
por hora.
DF: É ligeiro.
CR: "Compadre!" "Erhmm!" Lá na frente. Foi embora, foi embora, foi
embora, foi embora, compadre foi embora. "Compadre!" "Erhmm!"
Veado cansou, diminuiu carreira. Chegou no ponto deles lá, lá ele
estava.
DF: Lá no final?
CR: Lá no final, estava lá.
DF: E descansado ainda? [Risos]
CR: Eh, descansado. [Risos] "Cheguei muito perto, compadre." "Eu
não falei que eu sou corredor?" "Tá bom, compadre." Vieram com a
língua desse tamanho, assim.
DF: Do lado de fora?
CR: Cansado, cansado, cansado. Aí o Carumbé achou graça dele "
Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!".
Professor, até aí que eu sei.

A última narrativa de Caetano Raposo encontra semelhanças entre


autores como Esopo e sua fábula “A tartaruga e a lebre”. Nela temos a
presença de um quelônio que é desafiado por um animal veloz, a lebre. Já na
de Caetano embora tenha-se a presença de um quelônio, o Veado faz as
vezes de animal de veloz.
Outra narrativa que traz a corrida entre animais de distintas velocidades
é a de Charles Frederik Hartt, de origem Munduruku, de título “Como o jabuti
venceu o veado na carreira”. Nela à semelhança da de Caetano Raposo o
Jabuti reúne seus parentes de casco e os distribui ao longo do percurso da
38

corrida. Contudo, diferente de Caetano Raposo, engabelado o Veado de Hartt,


corre até não mais poder e morre. Assim como também os Jabutis se dispõem
ao longo do caminho e morre o Veado na narrativa de Koch-Grünberg,
intitulada “Oazamuli y Waikín (La tortuga y el venado de la sabana)”. Contudo
na narrativa de Raposo, o Veado permanece vivo para ver sua própria derrota.

A onça
Dentre as oito narrativas de Caetano Raposo, decerto um antagonista se
destaca dos demais: a onça. Predadora por excelência, a panthera onca, a
onça-pintada ou jaguar é o maior felino do continente americano e o terceiro
maior do mundo, ficando atrás apenas do tigre e do leão. Carnívora, sua
ferocidade também figura boa parte das mitologias ameríndias, já que sua
poderosa mordedura é capaz de destroçar a mais forte das carapaças ou
mesmo um crânio humano. Ela está no topo da cadeia alimentar da floresta, à
exceção da predação por parte do homem com intuitos comerciais, ainda em
voga nos dias atuais. Ela pesa mais que um homem adulto, é capaz de
rastejar, nadar e mesmo subir em árvores para alcançar suas presas.
Em muitas mitologias surge como personagem de destaque. Nas
culturas indígenas, a onça tem um papel representativo nos mitos etiológicos e
de origem. Betty Mindlin (2002) perscrutando os mitos indígenas da origem do
fogo detecta entre os povos da família linguística Jê (Kaiapó-Gorotire, Timbiras
orientais, Xerentes, Apinaiés, Krahô, Suyá) uma forma recorrente em que dois
homens saem para caçar ninhos de arara no alto de uma rocha. Cunhados,
enquanto um atira os ovos de arara ao que está embaixo acaba ficando preso
por lá. Passando fome e sede acaba sendo resgatado por uma onça pintada
macho que o leva para casa e lhe apresenta carne assada, até então
desconhecida do homem. Contudo a esposa da onça tenta devorá-lo a todo
custo e acaba sendo morta pelo homem que foge e leva consigo a carne
assada para sua aldeia de origem. Apresentada à nova forma de alimentação,
a aldeia enceta, então, uma caçada em direção à casa das onças de quem
pretendem roubar o fogo.
Mais adiante em seu artigo, Mindlin apresenta o mito dos Suruí de
Rondônia, em que a onça (Mekô) também era dona do fogo. Os homens
desconhecedores da existência do fogo não cozinhavam e sentiam frio. Vendo
39

a penosa situação dos homens, Palop (Nosso Pai), pede a Orobab, um


pássaro preto, que roube o fogo da onça. Palop para que Orobab não seja
devorado de pronto, besunta o pássaro com uma substância amarga.
Encontrando-se com a onça, Orobab consegue distraí-lo e sentar-se muito
perto ao fogo que lhe chamusca o longo rabo. Conseguido seu intento, o
pássaro foge e pousa primeiro numa árvore de urucum, depois numa árvore
cujo nome ainda não se encontrou equivalente em língua portuguesa e por
último na árvore do Pau-Brasil. Depois disso, os homens conseguem fazer fogo
friccionando galhos de qualquer umas dessas três árvores.
Já para os jabuti, ainda em Rondônia, havia um sol eterno que acabou
sendo devorado pelos ‘demônios’ onça. Esses demônios também devoravam
humanos. As mulheres grávidas tornavam-se onças. Os humanos que
sobreviveram resolveram queimar um velho pajé para substituir o sol. Contudo,
o pajé depois de muito se coçar na fogueira, não apenas transformou-se em sol
como em galanteador. Isso despertou os ciúmes dos homens que o matam.
Outro pajé mais moderado foi eleito para queimar no lugar do sol. Assim surgiu
novamente o Sol, espantando para sempre as onças monstruosas.
Para os Marubo, segundo Júlio Cezar Melatti, Os Inovakenáwavo ou
Inonáwavo, também conhecidos como gente da onça, depois de escaparem da
extração de seus olhos pelos macacos-prego encontram Rovoshavo. A mulher
então os concede o fogo e eles a renomeiam como Tome. Os Inovakenáwavo
saem à caça de queixadas, relegando sempre a Tome, Taokate e Rami, as
mulheres, as partes menos nobres da carne. Elas então decidem apagar o
fogo, em seguida transformando-se em pássaros. Os Inovakenáwavo, sem
fogo, veem que precisam comer carne crua e transformam-se em onças.
Pedro Agostinho (2009) também recolheu mitos indígenas nos quais a
onça tem papel de destaque. Em uma das narrativas de Mitos e Narrativas
Kamayurá, o herói cultural Mavutsini(n) tem por sobrinhos um clã de onças,
Yawat. Em busca de madeira, Mavutsini(n) chega perto da morada do clã. Lá,
um de seus sobrinhos pretende devorá-lo enquanto outro o dissuade da ideia.
Em compensação, Mavutsini(n) o leva para sua casa para que escolha uma
das moças que o aceite em casamento. Com medo de serem devoradas pela
futura sogra, nenhuma das moças aceita casar com Yawat. É diante da
negativa que Mavutsini(n) começa a criar a humanidade, moldando em barro,
40

barbante e caroços de mangaba as futuras noivas de Yawat. No dia do


encontro entre os nubentes, um mal entendido acaba por fazer com que as
noivas sejam acolhidas por Awaratsi(n)ng, outro irmão-onça. Entretanto, a mais
nova das noivas, grávida, é enganada e devorada pela sogra. Do ventre da
mulher são retirados dois meninos, Kwat (Sol) e Yaì (Lua).
Tal como os Kamayurá outros povos possuem, com algumas variações,
narrativas nas quais gêmeos são retirados com vida do ventre materno em
virtude da morte causada pela onça e de quem também podem ser parentes
diretos. Algumas dessas narrativas são encontradas em As Lendas da
Criação e Destruição do Mundo como Fundamentos da Religião dos
Apapocuva-Guarani (NIMUENDAJU, 1987, contracapa), Os índios
Tenetehara (WEAGLEY & GALVÃO, 1961), Shoma Wetsa: A história de um
mito (MELATTI, 1989, pp. 56-61), Watunna (CIVRIEUX, 2005), Antes o
mundo não existia: mitologia dos antigo Desana-Kehíripõrã (KÊHÍRI,
1995), Lendas dos índios do Brasil (BALDUS, 1946, Pp. 37-47).
Esta temática, modifica-se em parte na narrativa de Clemente Flores,
indígena taurepang (FIOROTTI, 2014). Narrando o mito de Macunaimö e Xicö,
Clemente Flores nos diz sobre a morte da mãe dos heróis causada pelo inimigo
de seu marido, a Onça. Desviando a mãe do caminho seguro ao trocar as
penas de pássaro que serviam de sinal. A mulher acaba indo parar na casa da
esposa da Onça, Dona Sapa que a mata e esconde seu corpo em um jamaxim.
Alertados pelo canto de um pássaro, Macunaimö e Xicö vão em busca da mãe
e descobrem seu corpo. Para salvar-se da Dona Sapa transformam-se em
besouros e voltam ao útero materno. Posteriormente, traquinamente, matam a
Onça.
Theodor Koch-Grünberg assim define o papel da onça dentre as
narrativas cotejadas entre os Arekuna e Taulipang:

Con la mayor frecuencia aparece el jaguar, pero casi siempre


desempeña un papel lastimero. Lo vencen y engañan no sólo fuerzas
superiores como el fuego, el rayo y la lluvia sino también hombres y
animales. En cambio, unos animales insiginificantes se distinguen por
su astucia, como vemos en la leyenda de héroes al roedor agutí y en
las fábulas a la tortuga terrestre. (1981, p.28)

Para os Maxakali, Inmoxã, pertencente ao grupo linguístico Macro-jê,


espécie de demônio selvagem e canibal na qual transformam-se, após a morte,
41

aqueles que não obedecem aos preceitos religiosos nem as regras da


convivência em comunidade. De acordo com os Maxakali, os possuídos por
Inmoxã devem ser desenterrados e cremados, assim não continuarão a vagar
em busca de alguém para devorar. Possui corpo repleto de pelos e cabelos
longos, além de lâminas nos pulsos para dilacerar suas presas, seus pontos
frágeis são os orifícios: ânus, olhos, boca, ouvidos e umbigo Sua manifestação
animal realiza-se enquanto a onça. Assim como Inmoxã, dos maxakali,
Jaguarový, entre os Apopocúva Guarani (NIMUENDAJU,1987, p. 51) é uma
onça-demônio sobrenatural e imortal que descansa sob a rede da divindade
Nanderuvçú, esperando lançar-se sobre a humanidade, da qual nem os
guerreiros mais destemidos escaparão da voracidade da fera azul.
Entre os não-indígenas a onça também exerceu fascínio como entre
João Guimarães Rosa no conto Meu tio o Iauaretê e Alberto Mussa em Meu
destino é ser onça (2009). Na obra Estas histórias (1985), Em uma narrativa
com fortes marcas de oralidade, Guimarães Rosa apresenta em um monólogo-
diálogo a história de um caboclo, filho de uma índia guarani e um branco,
contratado por um fazendeiro para “desonçar esse mundo todo”. Percebe-se a
intervenção de um interlocutor, que mais do que conversar com o onceiro,
presencia sua transformação no animal tão caçado por seu locutor, além de,
talvez, ser seu algoz.
Já Mussa parte de um longo e minucioso estudo, a partir das obras de
André Thevet, frade católico e viajante pelas terras brasileiras, para reconstruir
de forma poética, aquilo que poderia ter sido uma grande narrativa mitológica
dos Tamoio, ou dos famigerados índios antropófagos Tupinambá.
42

CAPÍTULO II

Da voz à letra
43

Pierre Chompré (1923) define de maneira curiosa o que seria a fábula:

Fabula, divindade allegorica, filha do Somno e da Noite. Diz-se que


desposara o Engano, e que o seu contínuo entretenimento era
contrafazer a historia. Representa-se com mascara no rosto, e
magnificamente vestida. (CHOMPRÉ, 1923, p. 158)

Curiosa por, incontinenti, apresentar a fábula do alto de duas de suas


características primordiais enquanto forma consagrada: a personificação e a
alegoria. Não raro, a fábula é definida como uma narrativa breve, de caráter
alegórico, em que animais são dotados da capacidade de fala e personificam
qualidades e defeitos humanos, arrematada por um ensinamento de ordem
moral. Entretanto, ao trazer aspectos como contrafeição à história e a sua
representação com máscara no rosto e magníficas vestes, Chompré indica
outras possibilidades para além daquilo que se consagrou enquanto forma
textual escrita.
Tendo dupla origem no latim fari e no grego phaó, as duas raízes
etimológicas da palavra fábula remetem ao ato de falar, contar algo (COELHO,
1984, p. 115). A origem da fábula se perde nas areias do tempo, nas
imensidões geográficas percorridas pelos narradores fabulares e pela algaravia
de vozes que trouxe à luz este gênero consagrado pela tradição literária. A
descoberta da escrita cuneiforme pelos Sumérios nos dão algumas indicações
sobre a possível pátria das fábulas, o que nos indica que este gênero é um
modo universal de construção discursiva (DEZOTTI, 2003).
A fábula compartilha com o conto e o mito as formas apriorísticas das
narrativas que vieram a figurar no mundo literário, uma vez que compartilha
suas origens na oralidade. Oralidade que perpetuou e perpetua conhecimentos
engendrados no seio de uma dada cultura, ajudando a configurar sua memória
coletiva. Como indica Lovisolo

A memória histórica ou coletiva, repete-se, é fundamental para o


sentimento nacional, para a consciência de classe, étnica ou das
minorias, sendo constitutivas das lutas contra a opressão ou a
dominação. Valorizada, então, quer por sua participação na
construção da identidade e da comunidade, quer pelo papel que
desempenha no fortalecimento e emancipação dos fracos, ela não
pode nem deveria ser esquecida. (1989, p.16)

Le Goff diz que a relação entre mito e memória dá-se no sentido em que “O
primeiro domínio onde se cristaliza a memória coletiva dos povos sem escrita é
44

aquele que dá um fundamento – aparentemente histórico – à existência das


etnias ou das famílias, isto é, dos mitos de origem” (1990, p. 428).
Dentro das sociedades consideradas “primitivas”, estas formas
narrativas demandam muito mais do que a transmissão de forma irrefletida,
esvaziada de significação, estabelecida meramente pela automanutenção que
demanda a tradição. A transmissão destas formas narrativas é o
compartilhamento da vivência com o outro. É a maneira encontrada pelos
povos para criar entre seus membros a sensação de pertença a uma
comunidade baseada na experiência cotidiana, nas experiências que tornam o
homem, de fato, humano. Narrar é uma maneira de inscrever-se na
humanidade e na cultura, e a memória é a faculdade que permite manter-nos
nelas. Não obstante, Mnemosine, a deusa grega Memória, mais do que reger
esta incomparável faculdade, rege também a poesia, o que faz do poeta um
intermediário entre passado e futuro, já que pela voz era capaz de atingir
outros homens de memória.
Esta capacidade de encontrar ressonância entre os membros de uma
comunidade dá-se em virtude da plasticidade com relação ao material narrativo
contado. Já que, como indica Le Goff (1990, p. 429), “a memória transmitida
pela aprendizagem nas sociedades sem escrita não é uma memória 'palavra
por palavra'”, muito menos uma forma de aprendizado mecânica, automática,
mas uma “reconstrução generativa”. O papel importante caberia à dimensão
narrativa, o que atribuiria mais liberdade e mais possibilidades criativas à
memória. São estas possibilidades que divisamos nas narrativas de Caetano
Raposo.
Contudo, escrever foi a principal forma encontrada pela humanidade
para lutar contra o esquecimento, para capturar ainda que momentaneamente
a realidade através das palavras. Escrever é também a tentativa desesperada
da humanidade de adiar o seu retorno à insignificância, ou melhor, à não-
significação que se dá com o término de sua existência, a morte, a pior forma
de esquecimento. Desta maneira, na tentativa de perdurar para além do
esquecimento e da morte, escrevemos.
Entretanto, são tortuosos os caminhos que levam da rememoração à
escrita. Assim como a memória, a escrita é o campo das representações
simbólicas e nele estabelece-se um território contestado no qual o domínio é
45

disputado ferrenhamente:

Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das


grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que
dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos
e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de
manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 1990, p. 427)

Assim como a memória, a escrita, ou a decisão do que será escrito é


seletiva. Desta forma, como indica Pollak (1992, p. 203): “Nem tudo fica
gravado. Nem tudo fica registrado”. Entretanto, os motivos desta seleção são
muito menos inconscientes, como acontece com o processo de memorização,
do que ideológicos, além de que a relação entre as textualidades advindas da
oralidade e a escrita ainda não é ponto pacífico dentro dos estudos literários, o
que afasta da academia narrativas nascidas e perpetuadas na tradição oral.
Voltando a definição Chompré, a fábula enquanto filha da Noite e do
Somno nos remete ao hábito noturno de se contar histórias, como destaca Luís
da Câmara Cascudo (1981, p. 228-229), e pode remontar a diversos povos. Ele
diz que o hábito de contar fábulas e outras formas narrativas só poderia
acontecer nas primeiras horas da noite, após o expediente de trabalho. Caso
contadas de dia, os narradores sofreriam penalidades, como a infelicidade,
cabaças arremessadas ao nariz, mães transformadas em zebras, fulminações
por raios e uma inconveniente aquisição de um rabo de cotia. Esse tipo de
narrativa alcançou ampla receptividade entre o público infantil que, capturados
pela fábula, podia ouvir animaizinhos e suas peripécias antes de ir dormir. Além
disso, contadas pelos pais, as fábulas eram e são eficiente instrumento
moralizante e pedagógico, também um ótimo entretenimento nos preparativos
para as noites de sono das crianças.
Já as partes segunda e terceira da definição de Chompré trazem os
aspectos mais instigantes da fábula. Casada com o Engano, a divindade tem
por entretenimento contrafazer a história. Essa asserção em muito subjaz ao
aspecto performático e discursivo da forma fabular de Esopo e de Seu
Caetano. Primeiro por revelar que enquanto forma dinâmica nascida do
encontro entre narrador e público, a fábula era adaptada ao círculo e à situação
em que era narrada. Tanto que estudiosos como Manuel Aveleza de Souza
afirmaram que aspectos como a moral da fábula não existiam, sendo resultado
de “acréscimo tardio, acéfalo, acrescentado por copistas em épocas
46

posteriores, alheio, portanto, ao texto original da fábula” (2003, p. 19). Assim a


relação entre fábula e mentira foi sendo estabelecida ao longo do tempo, dada
à inexatidão temporal de seu surgimento, só se poderia situar num tempo em
que os animais falavam. Ou seja, num tempo imemorial, distante da
comprovação empírica e lógica, o que só pode incorrer em mentira. A relação
com a mentira é visível na definição dada por Aelius Theon (I. d. C), quando
afirma que “A fábula é um discurso mentiroso que retrata uma verdade” (apud
DEZOTTI, 1988 p. 12). Assim, pelo fato de ser resultado da criação humana,
da invenção ou em termos literários da ficção, da arte de confeccionar
narrativas a partir de temas e personagens do cotidiano e não de uma
existência biossocial, comprovada pela realidade objetiva, a fábula se
relacionaria à mentira.
Todavia a contrafeição a história da definição de Chompré ganha outro
viés quando levamos em conta por exemplo o contexto cultural e histórico em
que as narrativas de Caetano Raposo foram contadas. Levando em
consideração o contexto cultural indígena, o conceito de história e o princípio
de historicidade podem não corresponder aos concebidos pelo ocidente. Esta
perspectiva é explorada por Joanna Overing em "Mito como História": que
discute o posicionamento de estudiosos como Pierre Clastres e Claude Levi-
Strauss com relação à concepção de história por parte das sociedades
indígenas. De acordo com Overing, para Clastres os povos indígenas
constituiriam um modelo político não-coercitivo no qual, ao contrário do
coercitivo, o poder não adviria da coerção, da violência e por causa delas
resultaria a inovação, a mudança e a historicidade. Já para Lévi-Strauss, as
sociedades indígenas distinguem-se em sociedade “quentes” e “frias”.
Participando desta última, as sociedades indígenas seriam a-históricas, no
sentido que combinariam o tempo mítico e tempo presente num regime
temporal que eliminaria a história.
Arrogando uma concepção de história e historicidade condizente com
cada povo indígena distinto e sua metafísica, após descrever parte das
atividades desenvolvidas em uma comunidade Piaroa, Overing afirma que

Do mesmo modo, a prática cotidiana dos Piaroa também inclui o


próprio ato de afirmar postulados cosmológicos a respeito do mundo,
o que pode ser associado ao fato de que a prática cotidiana dos
Piaroa é constitutiva de uma metafísica específica. Ainda que essas
47

observações pareçam óbvias, muitas vezes se esquece –


principalmente nas abordagens que tentam separar as práticas
sociais ilusórias das realmente reais (o que é muito comum quando o
assunto em questão é a fala ritual) – o que o ato de pronunciar
palavras é uma forma de prática, de modo que a palavra em si é
sempre um aspecto da realidade social, e portanto constitui
experiência. Em suma, é legítimo falar-se da relação entre a palavra e
a experiência no mundo. A força da palavra não se limita ao
proposicional; ela faz mais do que simplesmente dizer algo que é
verdadeiro (ou falso) a respeito da realidade. A palavra tem efeito
sobre a prática no mundo esteja ou não em harmonia com as
proposições a respeito do mesmo [sic]. O realmente construído
também é real, e portanto tem efeito real sobre as ações no mundo.
(1995, p. 128-129)

Isso sinaliza a possibilidade de compreensão das narrativas indígenas


do povo Macuxi para além da instância unicamente ficcional. Como veremos,
nas narrativas de Caetano Raposo, há uma subversão causada por essa
possibilidade com relação à história do Estado nacional com a qual vem
estreitando paulatinamente o contato. Admitindo a palavra e seu efeito sobre o
a prática do mundo, podemos pensar que a realidade indígena é uma criação
pela palavra, principalmente quando nos deparamos com a definição de
panton, melhor discutida adiante.
Por último, quanto à citação de Chompré, a máscara e a vestimenta
magnífica dizem-nos muito da própria estruturação narrativa e dos recursos
estilísticos e performáticos do narrador da fábula. A máscara porque revela o
duplo movimento realizado pelo narrador durante a enunciação fabular:
primeiro usa personagens animais para responder por ações e sentimentos
humanos, depois usa humanos para julgar essas ações e sentimentos numa
espécie de máscara que antropomorfiza animais e denuncia os vestígios
animalescos ainda presentes no ser humano.
Em suma a definição dada por Chompré traz à baila questões
essenciais para serem discutidas neste trabalho, pois admitimos que as
narrativas de Seu Caetano em muito se aproximam às fábulas, e que ele as
narra num tríplice imbricamento, separado apenas para demonstrar de forma
didática como a figura do narrador é capaz de enriquecê-las sobremaneira e de
entrelaçar palavra e voz, demonstrando sua complexidade e sofisticação
narrativas. Desta forma, exploramos as fábulas de Seu Caetano enquanto
48

forma literária, prática discursiva e enquanto narrativa performativa.6

A fábula e as formas narrativas


A fábula se configuraria como uma narrativa breve, alegórica, de grande
potencial pedagógico em que homens, deuses e principalmente animais
antropomorfizados, envolvem-se em situações cotidianas das quais podem
exercer variados atos de fala (DEZOTTI, 2003), como aconselhar, questionar,
censurar, mostrar, etc. Outra característica inerente ao gênero fábula é a
atribuição da fala a animais, distinguindo a capacidade de linguagem como
estritamente humana, que diferencia o homem do mundo natural. Estas
características são o que possivelmente explicam o fôlego milenar desta forma
de narrativa, assim como o fato de sua maleabilidade discursiva poder ser
incorporada às diversas situações e temporalidades. Apesar de seu grande
potencial pedagógico em função das morais atribuídas à cada uma das
narrativas ao final de seu desenrolar, as fábulas não nasceram voltadas para o
público infantil. As fábulas eram contadas para público diverso.
Apesar de sua indefinição pátria, se atribui ao narrador de origens
obscuras, Esopo, o título de pai da fábula. Esopo seria originário da Ásia
Menor, não sendo raro ser descrito como oriundo da Frígia, e vivido entre finais
de século VII e VI a.C. Era escravo e foi reconhecido como um virtuoso
fabulista, fato que o fez conquistar sua liberdade. Esopo foi o principal
entusiasta do gênero, levando a sua popularização além dos limites da Grécia,
lugar onde codificou a forma da fábula e apesar de gozar da boa companhia de
homens ilustres de seu tempo, não teve acesso à escrita, imortalizando suas
narrativas através da voz. As fábulas atribuídas a Esopo datam de cerca de
dois séculos após sua morte, pelo coligimento de Demetrio de Falero. Parte do
mérito da contribuição de Esopo dá-se no fato de ter atribuído a animais
virtudes e defeitos humanos como a previdência à formiga, a majestade ao
leão e etc. A despeito de sua origem oral, a fábula esópica encontrou
consagração através da escritura.7
Ao analisarmos as oito narrativas de Seu Caetano, encontramos

6
Esse último tópico será analisado no final do terceiro capítulo, tendo em vista sua relação
íntima com o riso do jabuti.
7
Informações sobre Esopo podem ser encontradas Coelho (1982); Souza (1982); Sampaio (
2006).
49

características parecidas ao gênero literário da fábula. Contudo, temas e


personagens, algumas vezes, são diversos dos concebidos na cultura não-
indígena. Trazemos o conceito de fábula aqui na tentativa de pensar um gênero
usado por um indígena que, pelo contato com o mundo branco, não podemos
afirmar ser estritamente indígena. Apesar de essa dúvida, temos cuidado ao
estabelecer este diálogo entre a cultura ocidental (fábula) e a narrativa de seu
Raposo, pois a realidade ameríndia apresenta organização e estrutura
específicas.
Vale mencionar que, quase sempre, narrativas como de Caetano
Raposo têm sido tratadas pelo viés sacralizante do mito. Isso tem contribuído
para manter essas narrativas à parte dos estudos literários, a despeito de ser
um gênero que tem origem na tradição oral e origem em culturas consideradas
de matriz não-ocidental, como se esse fosse um papel para antropólogos. Em
geral, isso afasta e nega a participação de narrativas e narradores
extraordinários no âmbito acadêmico literário. Aliás, a origem na tradição oral e
a tentativa de classificar as narrativas indígenas em especial tem colocado
muitos estudiosos das formas narrativas em grandes dificuldades.
Em Las formas Simples (1972), André Jolles discute a contiguidade
entre as textualidades advindas da oralidade e sua relação com a escrita. A
leda, a saga, o mito, a adivinha, o ditado, o caso, o memorável, o conto e o
chiste seriam as formas simples que, segundo ele, são

aquellas formas que también han surgido del lenguaje, pero que
parecen prescindir de esta sólida base que, hablando gráficamente,
con el tiempo se ubican en outro estado de agregación: aquellas
formas que no si encuentran incluidas ni en la estilística, ni en la
retorica, ni en la poética, tal vez en la “escritura”, las que, aunque
pertenecen al arte, no llegan a ser obras de arte, aunque poéticas no
son poemas (1972, p. 16)

Jolles atribui aos irmãos Grimm a configuração do conto, sem antes


refletir sobre a origem desta forma simples e da etimologia da palavra conto:

O importante na palavra Marchën não é o seu sentido etimológico,


que se encontra no alto alemão mâri (lenda, fábula) ou no gótico mêrs
(conhecido, célebre). Tampouco o fato de Marchën ser um diminutivo
depreciativo de Märe (narrativa, tradição) e designar, pois, uma
história curta, até um simples boato que se propaga sem que se saiba
se é exato ou verídico. O que nos interessa é uma forma que tem
nomes diferentes, segundo as línguas, mas em que todos concordam
50

em atribuir à coletânea de Grimm e sua expressão essencial. (1976,


p. 182)

Outro estudioso do mito, Eleazar Mielientiski, em A poética do Mito


(1987), também associa imaginação mitológica e substrato psicológico,
contudo ressalta que a relação entre o mito e a literatura é geneticamente
estabelecida uma vez que:

a mitologia mais antiga compreendia como unidade sincrética


rudimentos tanto da religião e das mais antigas concepções filosóficas
(que, é verdade, se formaram no processo de superação das fontes
mitológicas) quanto da arte, antes de tudo da arte verbal. A forma
artística herdou do mito o modo concreto-sensorial de generalização e
o próprio sincretismo. Em seu processo de evolução, a literatura
utilizou os mitos tradicionais com fins artísticos por muito tempo.
(1987, p. 1)

Contudo, avançando no perscrutamento das características gerais do


pensamento mitológico é que surgem as contiguidades com o gênero fábula,
quando declara que

o homem “primitivo” ainda não separava nitidamente a si mesmo do


mundo natural circundante e transferia para os objetos naturais as
suas próprias características, atribuía a esses objetos vida, paixões
humanas, atividade econômica consciente e útil, possibilidade de se
apresentar com face física antropomorfa e ter organização social, etc.
(MIELIENTISKI, 1987, p. 191)

Desta forma, encontramos contiguidades entre mito e fábula já que


esta se configuraria como uma narrativa breve, alegórica, de grande potencial
pedagógico na qual homens, deuses e principalmente animais
antropomorfizados, envolvem-se em situações cotidianas das quais pode-se
exercer variados atos de fala como aconselhar, questionar, censurar, mostrar,
etc. Outra característica inerente ao gênero fábula é a atribuição da fala a
animais, distinguindo a capacidade de linguagem como estritamente humana e
que diferencia o homem do mundo natural.
Theodor Koch-Grünberg (1981), no segundo volume de sua obra
classifica e compila cinquenta narrativas. Na introdução da obra, Koch-
Grünberg classifica as narrativas em: mitos da natureza e lenda de heróis,
contos de fadas, fábulas de animais e contos humorísticos, definindo a fábula a
partir de suas contiguidades com outras narrativas coletadas:
51

Los cuentos animales tienen en parte un caracter etiológico, ya que


explican las características, los colores, y las formas de los animales
por sucesos de los tempos primitivos. Se encuentran entonces, por lo
general como espisodios en los mitos y cuentos de hadas. Otras son
fábulas de animales propriamente dichas, en donde se enfrentan la
astucia y la imbecilidad, la habilidad y la torpeza, la fuerza y la
flaqueza
La misma tendencia de las fábulas de animales tienen los cuentos de
Kene’wó. El protagonista es un hombre sagaz y intrépido, que vence
en astucia especialmente a los jaguares y los mata, pero que al final
perece por uma pequenez, como muchos hombres valientes: un
escarabajo lo mata. Son anécdotas llenas de humor, algunas de una
comicidade grosera, que provienen de épocas muy distintas y que
aún en la actualidad deben su existencia al placer de fantasiar, según
se pude reconocer por algunos rasgos completamente modernos.
(1981, P. 17)

Contudo, Sérgio Medeiros, na introdução de Makunaima e Jurupari


(2002), tece críticas à perspectiva etnocêntrica do naturalista em classificar as
narrativas como “confusão desordenada”, em vez de abundância de sentidos
ou riqueza poética. De acordo com Medeiros, conceitos como os utilizados por
Koch-Grünberg teriam pouca eficácia perante as narrativas indígenas, já que
pela compilação do alemão um mito poderia ser um conto que seria uma lenda
que seria um mito que seria um conto e etc. Mas estes mesmos conceitos
estariam falidos não pela utilização equívoca, mas porque

Atualmente, o estudo dos gêneros narrativos indígenas ainda não


solucionou os impasses ou dificuldades que cercam a transposição
para a realidade oral ameríndia de conceitos eminentemente
livrescos, oriundos do contexto cultural europeu, de maneira que o
leitor não deverá estranhar se a mesma “confusão desordenada”, no
emprego de tais conceitos, nos textos de outros etnólogos
teoricamente mais ousados e consistentes que Koch-Grünberg,
como, por exemplo, o já citado Claude Lévi-Strauss, estudioso dos
mitos ameríndios, [ocorrer]. (2002, p. 18-19 )

Ou seja, a partir de Medeiros, a narratologia ocidental ainda não


conseguiu dar conta de um aspecto crucial no acontecimento da narrativa
indígena: a presença de um narrador vivo, atuante e sócio-culturalmente
localizado. Desta fenda surgem alguns estudos encetados dentro da
etnopoética, como os de Denis Tedlock, Dell Hymes e Barre Toelke.
O termo etnopoética surgiu em meados dos anos 60, criado por Jerome
Rothenberg, com o objetivo de ampliar para além da poesia consagrada pela
tradição ocidental a perspectiva de literatura. Rothenberg, dessa forma,
reformulou as antologias poéticas, nas quais incluía ao lado de poetas como
52

William Blake e Arthur Rimbaud, canções ameríndias. A etnopoética então tem


por diretriz, nas palavras de Pedro Cesarino, encarregado do texto de
apresentação de Etnopoesia no milênio,

a suspeita de que certas formas de poesia, assim como certas formas


de arte, permeavam as sociedades tradicionais & de que estas
formas geralmente religiosas não apenas se assemelhavam, mas há
muito já haviam realizado o que poetas experimentais e artistas estão
tentando fazer (ROTHENBERG, 2006, p. 06).

Dentro desta percepção, até mesmo os sons, aparentemente sem


sentido dentro da poesia indígena, são traduzidos a partir de uma perspectiva
transcultural, o que Rothenberg definiu como Tradução Total. Assim,
Rothenberg traduz como um modo de informar o que sentiu ou viu da atuação
de outra pessoa; verdadeiro até onde fosse possível, para sua “imagem da vida
& reflexão sobre a fonte” (ROTHENBERG, 2006, p. 40-41).
Também Dell Hymes e Dennis Tedlock asseveram que a forma narrativa
prosaica não é mais significativa ou expressiva para representar as narrativas
indígenas, o que seria mais eficazmente empreendido através de versos,
entretanto, a partir de perspectivas diferentes. Hymes concebe o verso através
da organização retórica do texto, na transcrição em estrofes, cenas e atos,
definindo o verso através da disposição sintática e lexical dos elementos. Já
Tedlock baseia-se em aspectos como a qualidade da voz, nas pausas feitas
durante a narração, entonação e outros aspectos prosódicos.
Em In vain I tried to tell you – essays in native american
Ethnopoetics (2004), Dell Hymes investiga a organização textual interna de
narrativas pertencentes ao Chinook e suas variedades, partindo de narrativas
coletadas por etnógrafos como Henry Schoolcraft. Segundo Hymes (2004, p.
150)

In general, Chinookan narratives are organized in terms can be called


“acts”, “scenes”, “stanzas”, “verses”, and “lines”. [..] A variety of
features contributes to the organization of the text, and hence to
recognizing that organization. Two types of iteration, descriptive
cataloguing (as in verses 36, 37) and cumulative repetition of action
(as in 21-25), provide evidence of integral units. There are minor
forms, or small sub-genres, that are recognizable across texts, such
as the idyll (38), the speech of remonstrance (cf. Hymes 1968a: 186),
the song as a set piece (stanza K)
53

Dennis Tedlock trabalhando com os Zuni do Novo México, entre os anos


de 1964 e 1965, tendo como narradores Andrew Peynetsa, bilíngue em inglês e
Shiwi’ma (língua Zuni), e Walter Sanchez, monolíngue, reuniu em Finding the
center (1999) as narrativas transcritas de acordo com sua proposição. Dessa
forma, as oito que compõem a obra são precedidas de um guia para leitura em
voz alta (Guide to read aloud). No guia, pausas são representadas por um
ponto, voz alta por letras maiúsculas, letras minúsculas para voz mais baixa,
travessões para prolongamento das vogais e assim por diante.
Tanto a percepção da narrativa indígena de Hymes quanto a de Tedlock
possuem um lado positivo: o de reconhecer a presença ativa do narrador no
momento da transcrição gráfica e o desejo de perpetuarem e fazerem ressoar
suas vozes assim como ouvidas no momento da narração. Buscam manter,
assim, o encantamento ou talvez, melhor, recriar o encantamento das
apresentações originais. Contudo, ao mesmo tempo, subestimam a capacidade
narrativa deste mesmo narrador, em razão de idealizá-lo como um indígena
desconhecedor de outras formas narrativas e de seus usos, já que
estabelecem o verso como única forma de produção textual indígna. O que
também redundaria de certa forma em uma perspectiva idealizada do indígena,
já que se ignoraria o contato com a cultura não-indígena, “branca”, possuidora
do conceito e da literatura escrita, contato que no caso do povo Macuxi se faz
desde o século XVIII, tentando associar à produção indígena a ideia de não
maculada pela poética ocidental e dela estranha, distante e destoante.
Já Barre Toelken, assume uma perspectiva mais contextualizada das
narrativas indígenas Navajo, pois percebe que a complexidade da língua, da
cultura, da variação das situações e contextos modificam funções destas
narrativas (1987, p. 388). Assim, estabelece quatro níveis semânticos para as
narrativas do ciclo do Coiote: de entretenimento, moral, medicinal e de
feitiçaria.

Level I of the Navajo Coyote tales can be called the entertainment


level; that is, the surface story with all its descriptions of Coyote’s
selfish, humorous – and occasionally heroic behavior. Level II can be
called the moral, or evaluative level, where each Coyote’s actions will
be registered and responded to according to how it reflects or flaunts
Navajo values and morality. The function of Level III is, then,
medicinal: the conscious application of the story and its imagery to
specific ailments and their treatments during healing rituals.
(TOELKEN, 2004, p. 390-391, itálico no original)
54

O último nível seria aquele em que a palavra, a narrativa fere, prejudica


e até mesmo mata.

Thus, when witches wish to damage the health of others, they use
selected parts of the same Coyote stories in their rituals; the
difference is that instead of integrating the story with a model of order
and restoration, their idea of deployment is to use images, symbols,
and allusions separately, divisively, analytically, in order to attack
certain parts of the victim’s body, or family, or livestock. (TOELKEN,
2004, p. 396, itálico no original)

Toelken ilustra os níveis semânticos das narrativas do Coyote no


seguinte quadro, sob a perspectiva Navajo (2004,p. 398):

I Entertainment literary Disorder (dramatized and

Everyday life
resolved according to
community values)

II Moral evaluative order


Worldview

III Medicine Ritual order life


(restorative)

IV Witchcraft Ritual Disorder (aimed at


Ritual life

(destructive) individuals, contrary to


community values)
death

Entretanto de acordo com uma perspectiva objetiva do próprio autor,


este quadro se apresentaria da forma (TOELKEN, 2004, p. 399) :
55

I Entertainment

II Moral worldview (Navajo) II Moral worldview (Skinwalker)

- cooperative, sharing, group- - competitive, acquisitive,


centered individual-centered

III Ritual (Skinwalker)


III Ritual (Navajo)
- destructive, alienating, deadly
- restorative, integrative, healing

Mais simpáticos à proposição de Toelken, já que reconhece além da


presença do narrador dentro da narrativa, a presença do público, podemos
aproximar as narrativas de Seu Caetano daquilo que o autor elencou como
primeiro e segundo níveis. Embora as fábulas do ciclo do Jabuti produzam no
espectador o riso, ele não é o único objetivo das narrativas. O riso apresenta-
se com outros intuitos como será explorado no terceiro capítulo.
Concepções como as de Rothenberg, Tedlock, Hymes e Barre Toelke,
em contraponto às narrativas de Seu Caetano, nos levam a ponderar sobre a
possibilidade não apenas da existência de uma etnopoética, mas de uma
etnopoiesis ou etnopoiética, em que o fazer poético expande-se para também o
conhecimento da elaboração de narrativas, numa articulação entre o termo
ethnos, que significa povo em suas origens gregas, e poiesis, também de
origem grega que significa criar, fazer, numa aproximação daquilo assim
definido por Gilberto Mendonça Teles:

pode-se pensar em dois ramos da POÉTICA: um, que conserva o


nome de Poética e provém da tradição aristotélica, estudando a lírica,
a ficção (narrativas) e o teatro; e o outro, com o nome Poiética, com a
preocupação de recuperar no étimo do termo todos os problemas da
origem, do nascimento da obra literária. Uma psicologia da criação.
Neste sentido a Poética se preocuparia com a obra produzida, tendo
pois a função crítica de uma metalinguagem, enquanto a Poiética se
voltaria para o fenômeno da criação com todas as suas implicações.
Essas duas faces se juntam para dar conta da totalidade possível do
56

conhecimento da literatura. (TELES, 2009, pp. 16-17)

Assim, a etnopoiesis levaria em conta não apenas os aspectos literários, mas


também outros aspectos como a performance e o contexto cultural no qual as
narrativas e poesias vieram à luz.

Panton: literatura indígena


A discussão, anteriormente encetada, acerca da complexidade das
narrativas indígenas e de sua classificação em gêneros é um dos motivos para
que elas ocupem uma espécie de deslugar dentro dos estudos literários. Outro
motivo por vezes apontado é o fato destas narrativas serem engendradas no
cerne de culturas que não conceberam o conceito de literatura, como o
entendemos. Contudo, nunca é bastante relembrar, principalmente no caso do
povo Macuxi, que o contato com o “branco” que dispõe desse conceito e dessa
sistematização já se faz desde o século XVIII. Além do que os povos reunidos
sob a designação pemon, como os Macuxi, dispõem de uma concepção que
reúne, como nós nomeamos, as narrativas de caráter mítico, lendário, fabular e
mesmo histórico: panton.
Na língua indígena macuxi a palavra panton designa história, como
declara Severino Barbosa, habitante da comunidade indígena São Jorge,
quando interpelado a contar os mitos e lendas de sua comunidade (FIOROTTI,
2015, no prelo) “Ahn, panton, história, nós chamamos panton, panton” e
também como já indicado por Paulo Santilli (2001, p. 16), Frei Cesáreo
Armellada nas obras Tauron Panton (2012; 2013) e já dicionarizado (AMÓDIO
& PIRA, 2007; RAPOSO, 2008). Panton também é o que nomeia o projeto
Panton Pia’ no qual foram coletadas narrativas de 37 indígenas da região da TI
Raposa Serra do Sol e São Marcos.
Entretanto, a tradução de panton enquanto história nos leva a
considerar sentidos outros, além daquele que a considera como a sucessão de
fatos ao longo do tempo, como sugere Le Goff:

Mas nas línguas românicas (e noutras), 'história' exprime dois, senão


três, conceitos diferentes. Significa: 1) esta "procura das ações
realizadas pelos homens"(Heródoto) que se esforça por se constituir
em ciência, a ciência histórica; 2) o objeto de procura é o que os
homens realizaram. [...] Mas a história pode ter ainda um terceiro
sentido, o de narração. Uma história é uma narração, verdadeira ou
57

falsa, com base na "realidade histórica" ou puramente imaginária –


pode ser uma narração histórica ou uma fábula. (1990, p. 18)

Para compreender as narrativas do jabuti é necessário divisar que o


jabuti goza de grande consideração entre os povos indígenas, pois que pode
ser encarado como um aliado à vida do homem, já que sua carne serve como
alimento. Afirma Valdélio Perez Ribeiro, macuxi da comunidade Santa Rosa em
entrevista ao projeto Panton Pia’, quando indagado sobre as mudanças
sofridas na alimentação da comunidade:

Eh, na parte da carne sempre mudou, não é? Depois que a gente


tem, tá criando os nossos animais como gado, porco, galinha, essas
coisas assim, não sei no passado, que eu não me lembro, mas acho
que mudou, com certeza. Eh, porque segundo as histórias dos
antigos, dos mais velhos, uma parte da alimentação da carne era só
através da caça mesmo, ali era uma região que tinha um monte de
jabuti também. Segundo o pessoal, tinha tanto jabuti que eles faziam
parede de casa só de casco de jabuti, só. (FIOROTTI, 2007)

Como se pode ver, o jabuti mostra-se um verdadeiro polivalente, além da


carne, seu casco chegou a ser utilizado na construção de moradias como
material de construção ou na imitação do formato como afirma Terencio Luiz da
Silva da comunidade Ubaru, TI Raposa Serra do Sol:

Era com aquela palhoça, faziam malocão que ali a tradição mesmo.
Mas eles faziam também casas em formatos de jabuti. Chamam de
jabuti. As casas eram assim, deixa eu fazer um desenho aqui
rapidinho. Eh, fazendo preservação, era redondo aqui e aqui era
assim. Aqui era redondo né? Era tudo de taipa. De barro na parede
faziam tipo vara unida mesmo, era a vida deles. Hoje eu fiz uma vez,
mas como a gente aprendeu agora essa casa. (FIOROTTI, 2007)

Também na confecção de amuletos, puçangas ou feitiços como canta América


Perez Torres, indígena da comunidade do Barro:

Upiakonya, enaimîpî
Seurima pii’pîke
Paaka pii’pîke
Waikin pii’pîke
Wayamuri’ piipîke
Um, mararîpra kamo’ pii’pîke
Yasikîpîto’ya imîya
Mîrîpî etekeimatane eporîpî to’ya
Sausaupiya, sausaupiya
O’niwanî sîrîrî eru
Inna
Esewankonoma sîrîrî, ye’nemokapa masa era’maita’
[Alguém fez mal para você
58

Com o coro do Seurima


Couro de boi
Couro do veado
Casco de jabuti
Bastante pele de caça
Colocaram tudo na garganta dele
Encontraram ele quando ele estava quase morrendo
Vamos com Sausau
O que tá passando contigo, cunhada?
Sim
Estou muito triste agora, mas deixa ver] (FIOROTTI, 2007)

Ademais o casco do jabuti também é utilizado enquanto utensílio doméstico e


instrumentos musicais. Outra curiosidade que conquistou a empatia do homem
é o fato de o jabuti se criar por si próprio, como muito espirituosamente nos
informa Alcuíno de Lima, taurepang da comunidade do Taxi, TI Raposa Serra
do Sol através de uma adivinha assim formulada

Qual é animal que nasce no mundo, que nasce no mundo, se cria no


mundo, não conhece pai, nem mãe, nem irmão, nem parente nem
nada. Qual é esse animal? [...] Eh, animal tem é muito por aqui, é
perto, é fácil de pegar.[...]

Ao passo que a resposta se dá:

Jabuti! [...]: O senhor já viu jabuti criar com a mãe? Já viram ele se
criar junto na... junto da mãe do pai, da irmã, do irmão? Ele não se
cria por conta dele? A história tá aí professor. Eu vou dar isso pra
você passar não a coisa pra adivinha, pra fazer adivinhação pros
alunos. Esse é uma adivinhação, como sempre eu falo esse é mais
importante esse daqui, que ninguém sabe. Esse eu tirei, não é pela
minha cabeça. Eu tirei essa história pelo jabuti. Já achei jabutizinho
desse tamainho assim.[...] Pequenininho, desse tamainho sem mãe.
Fica grande na mata rapaz, não conhece a mãe. Agora ele só vive
chorando, procurando a mãe. Ele não vive com aquela água nos
olhos? Diz que tá chorando, ainda tá lembrando da mãe, do pai.
(FIOROTTI, 2007)

O ser humano, a partir da concepção de Alcuíno de Lima, encontraria no jabuti


uma espécie de cúmplice das agruras da vida sobre a Terra e das até então
insolúveis questões: De onde viemos e por quê? O jabuti é presa de animais
maiores e de maior poder e, diante deles, é munido apenas de sua capacidade
de resiliência. De certa forma, é desprezado pela natureza na concessão das
defesas naturais e dos postos mais altos na cadeia alimentar, como bem define
José Melquíades Peres, macuxi da comunidade Aleluia, TI Raposa Serra do
Sol: “Que jabuti não prejudica ninguém, né. Não morde, não tem arma, não tem
força nenhuma” (FIOROTTI, 2007).
59

Ainda, quando o filho de Macunaíma e Ci morre, é colocado "numa


igaçaba esculpida com a forma de jabuti e pros boitatás não comerem os olhos
do morto o enterraram mesmo no centro da taba com muitos cantos muita
dança e muito pajuari" (ANDRADE, 1988, p. 27). No total, Mário de Andrade
cita o Jabuti cinco vezes, com destaque para no final da obra. Primeiro foi
numa lápide, que já tinha sido jabuti, que ele escreve: "NÃO VIM NO MUNDO
PARA SER PEDRA" (p. 165) e, logo depois, Pauí-Pódole, o Pai do Mutum, dirá
a Macunaíma:

Ah, herói tarde piaste! Era uma honra grande pra mim receber no
meu mosqueiro um descendente de jabuti, raça primeira de todas...
No princípio era só o Jabuti Grande que existia na vida... Foi ele que
no silêncio da noite tirou da barriga um indivíduo e sua cunhã. Estes
foram os primeiros fulanos vivos e as primeiras gentes da vossa tribo.
(ANDRADE, 1988, p. 166)

O jabuti, nas palavras de Mário de Andrade, é o animal que dará origem ao


povo de Macunaíma, relacionando à cosmogonia dos Macunaima assim como
também visto no primeiro capítulo em relação aos chineses, hindus e povo
Iroquoi.
Já a onça não dispõe da mesma simpatia entre os indígenas. Ela traz
consigo predação e morte. Sua posição hierárquica na natureza a faz presente
e importante em muitos mitos fundacionais, mas em eterna chacota nas
narrativas fabulares a ponto de inspirar a seguinte afirmação de Dionísio
Antônio Severino, karapiwa8 da comunidade Araçá da Serra, TI Raposa Serra
do Sol:

Ah, o Jabuti sempre foi esperto, não é? Apesar de ele não andar
ligeiro. E a Onça perdeu, todo tempo a Onça perdeu pro Jabuti.
Então, a Onça sempre foi perdedora. Perdeu pro Jabuti, perdeu pro
Macaco, só ganhou pro Veado. Perdeu pro Fogo, perdeu pro
Relâmpago. A Onça sempre foi assim. Sempre a pessoa que diz
assim: "Olha eu sou forte.", às vezes o cara que não é nem forte, aí
mais forte do que ele vai dizer: "Rapaz, eu, coitado, eu sou fraco, né."
Mas destar que o cara é, né. Então a Onça sempre foi assim, querer
ser o mais valente, o mais forte, o mais corredor, sempre perdeu.
(FIOROTTI, 2007)

No limite, a onça também representa o outro, geralmente mais selvagem


e feroz, com quem se trava relações das quais sempre se sairá em

8
Designação dada aos filhos da união entre os indivíduos dos diferentes grupos Karib e
wapixana. (OLIVEIRA, 2012, P. 36)
60

desvantagem e, por isso mesmo, contra quem deve-se sempre ficar atento.
Nesta relação podemos associar tal selvageria e ferocidade ao não-índio, ao
“branco”, em especial os fazendeiros. Encontramos indícios desta perspectiva
na narrativa contada por Domício Pereira da Silva, macuxi da comunidade Sol
Nascente, TI São Marcos:

É que um Veado tinha um gado. Aí quando foi um dia a Onça foi lá e


levou um boi pra ele: “Veado, toma conta do meu boi?” “Tá bom.
Pode deixar aí com meu gado.” Aí ficou tomando conta. Aí quando foi
com cinco anos, aí a Onça decidiu ir lá, disse que gado dele tinha
aumentado, aí queria metade do gado do Veado. Aí diz que o Veado
tava triste lá, aí o Macaco vinha. O Macaco chega: “O que foi,
camarada? Tá triste?” “A Onça deixou um boi aqui, tá com cinco
anos, e agora diz que já produziu e quer levar metade do meu gado.”
“Rapaz, deixa de ser besta! Tu diz pra ela me esperar amanhã até
nove horas, que eu venho aqui advogar teu caso.” O macaco falava
que ele tava andando. “Mas tu vem?” “Eu venho. Não pode dividir
gado enquanto eu não chegar.” “Então tá bom.” Aí já ficou mais
animado, que o Macaco ia advogar o caso. Quando foi oito horas,
Onça chegou. “Ah! camarada Onça, Macaco disse pra tu esperar ele.”
“Que hora que ele vai chegar?” “Nove horas ele ficou de chegar.”
“Então tá bom. Eu vou esperar.” Deu nove horas, nada. Nove e meia,
nada. Dez horas lá vem ele: “Lá vem ele.” Mas já vinha com coisa na
cabeça pra ganhar gado do Veado. Aí ele disse: “Agora, camarada
Macaco.” “Agora, rapaz. Agora que eu venho chegando. Eu ia saindo
lá de casa, tava aqui na metade da viagem, mandaram me chamar,
mandaram me chamar que o meu pai tava sentindo dor pra ganhar
nenê.” “Mas, camarada Macaco, onde é que tu já viu homem ganhar
nenê?” “Pois é, e como é que tu quer que teu boi produza?” Aí ele
advogou causa, ganhou só uma questão. (FIOROTTI, 2007)

A narrativa aborda o que foi cunhado, de acordo com Paulo Santilli,


como projeto de gado e fez parte da implantação da pecuária entre os
indígenas por volta da década de 80 pela Diocese de Roraima, como
alternativa ao escasseamento da caça e fazer frente à ocupação do lavrado
perante os fazendeiros. O projeto consistia em ceder, em sistema de rodízio,
durante cinco anos algumas cabeças de gado às comunidades indígenas,
responsáveis então pela reprodução e trato do gado, projeto adotado nos anos
seguintes pela Funai (SANTILLI, 2001, p. 42).
De acordo com Jaci Guilherme Vieira, a atividade pecuarista teve início
em 1787, com a implantação dos primeiros rebanhos nos campos gerais,
através da fundação das “Fazendas do Rei” (2014, p. 42). Três foram as
fazendas implantadas: São Bento, São José e São Marcos. A primeira entre o
rio Uraricoera e o rio Branco – oeste do estado de Roraima –, a segunda
próxima ao Forte São Joaquim e a última entre os rios Uraricoera e Tacutu,
61

onde atualmente é a TI São Marcos – norte do estado. A partir de então as


relações entre os não-índios e os índios adquiriram outro feitio: os índios e
suas terras passaram a ser disputados entre fazendeiros. Os índios pela mão-
de-obra maciça que representavam e as terras para expandir a atividade
pecuarista nascitura. Para, então, garantir a manutenção destas relações,
vários expedientes clientelistas foram utilizados, como a oferta de bens
industrializados em troca dos serviços prestados pelos indígenas, além do
recrutamento de crianças indígenas para a lida com o gado, o compadrio
(SANTILLI, 2001, p. 39).
O compadrio está relacionado, nas religiões cristãs, ao sacramento do
batismo. Através dele torna-se filho de Deus e membro da Igreja e pelo qual
ascende-se a salvação eterna. Claude Lévi-Strauss, em Estruturas
elementares do parentesco (1982), investigando as estruturas assimétricas,
aponta para a índia meridional e seu sistema de parentesco. Assim, Lévi-
Strauss evidencia o compadrio estabelecido entre homens que cedem irmãs ou
filhas:

Em todos os lugares onde se pratica um método simples de troca


direta ou indireta, fundado sobre estas estruturas elementares de
reciprocidade que são as cessões de irmãs e de filhas, a relação de
cunhados, ou, como preferimos dizer, o compadrio, possui uma
importância marcada por agudo caráter de ambiguidade. Os
cunhados dependem verdadeiramente, de maneira vital, um de outro,
e esta dependência mútua pode criar alternadamente, às vezes
também simultaneamente, a colaboração, a confiança e a amizade,
ou então a desconfiança, o temor e o ódio. Na maioria das vezes, a
arbitragem entre estes sentimentos opostos é assegurada por: um
comportamento social rigorosamente fixo, e por todo um sistema de
obrigações e de interdições reciprocas, dos quais o tabu dos sogros
(incluindo neste termo todos aqueles que em inglês são designados
como "in-iaw") é somente um elemento. (1982, p. 479)

Ou seja, a cessão de mulheres naquela comunidade gera assimetrias


na relação entre compadres e mais do que obrigações, e talvez por causa
delas, animosidades entre os compadres. Peter Rivière em Forgotten frontier:
ranchers of nothern Brazil (1972) assim descreve o batismo entre os
roraimenses:

Baptism is regarded as being a vital ritual for the young child, and
whenever possible takes place soon after birth. This is easier now
than in the past, when access to a priest was more difficult. The
baptismal registers in the prelazia in Bôa Vista reveal that in the past it
was not unusual for several members of the same family to be
62

baptized together. The stress on early baptism is related to the high


infant mortality rate in the region and beliefs concerning the fate of the
souls of the unbaptized. The baptism ceremony itself is a very simple
affair; it is not necessary for the godparents to be present, although
they normally are. If the parents are unable to provide godparents, it is
quite usual for the priest or a saint to be named.
In spite of the high infant mortality rate – few families have not ex-
perienced the loss of a child – neither childbirth nor infant care is
hedged in with ritual activities. Although, once again, this may reflect
the belief in the eternal salvation of an innocent's soul, it should be
noted that ritual is on a very low key in all aspects of Roraimaense life.
(1972, Pp. 73-74)

Mais adiante, Riviere se delonga sobre a relação de compadrio e afirma


que a forma mais importante com ela é estabelecida é através do batismo.
Contudo, mais do que estabelecer laços de parentesco, o compadrio também é
explorado com objetivos políticos e econômicos, resultando numa relação de
patrão-cliente, como afirma Riviere: “The choice of compadres is more often
than not made with an eye to some potential advantage and thus operates as a
system of patronage” (1972, P.85).
Marcos Lanna em A estrutura sacrificial do compadrio: uma
ontologia da desigualdade? (2009), citando Pitt-Rivers, atenta para a
sinonímia entre a palavra “padriño" e a palavra “patrón” na Andaluzia, além de
apontar para o uso cotidiano da expressão “meu patrão” no Brasil. Afirma que
“Em ambos os locais as palavras convergem, estão em relação hierárquica”
(2009, p. 07). Para Lanna o batismo seria a incorporação a uma sociedade
moral e, sob a lei canônica, os pais ao dedicarem seus filhos a santos teriam
os padrinhos como intermediários. Assim a criança seria a primeira dádiva na
relação de compadrio. A segunda seria o nome dado pelos padrinhos a criança
e a última a dedicação da própria criança.

Por ser um valor máximo, a graça não é nunca perfeitamente


retribuída, mas algo que coloca seu recebedor numa posição inferior,
com a obrigação de retribuir. Vê-se, com isso, já que a dádiva é uma
relação instável desequilibrada, não se retribui identicamente, ao
mesmo tempo, a alguém em posição social idêntica. Percebe-se,
ainda, como a troca é uma síntese entre dois movimentos em
sentidos opostos, cada um criando sua dívida. Dessa forma, é
possível afinal definir o compadrio como a troca da pessoa física pela
pessoa social, esta simbolizando um valor superior maior do que
aquela. Ainda: o compadrio é a troca do afilhado pela graça, uma
troca assimétrica, ainda que recíproca. (LANNA, 2009, p. 08)
63

Em virtude do caráter instável e desequilibrada da dádiva, depois da


dádiva da criança aos padrinhos, restariam apenas assimetrias e
desequilíbrios.

Em alguns locais e momentos históricos, os padrinhos receberiam


outras prestações materiais, as quais podem simbolizar a própria
pessoa do afilhado e o trabalho deste é a contraprestação mais
valiosa que ele poderia dar em troca da graça (ou uma continuação
lógica, uma reprodução da dádiva inicial que seus pais fizeram aos
padrinhos). Se a pessoa física foi dada pelos pais biológicos antes do
batismo, o trabalho constitui o dom da pessoa social do afilhado, algo
com certo conteúdo sagrado, que se aproxima da graça como modo
de retribuição. O afilhado é, ao mesmo tempo, um sujeito que dá e
um objeto que circula, semelhante às mulheres no modelo das
estruturas elementares do parentesco de Lévi-Strauss, um valor
simbólico e um veículo de valor, sua incorporação. Se o dom mais
valioso que os pais biológicos podem fazer é o do seu filho, ou de
alguns direitos ligados ao seu filho, o afilhado pode dar mais dele
mesmo, do seu trabalho. Isso sugere o aspecto sacrificial do
compadrio. (LANNA, 2009, p. 08)

Contudo, Lanna observa que a prática redistributiva por parte dos


patrões não está implicada nessa relação. A troca entre afilhados e padrinhos
incorreria em patronagem como observa Lanna, já que as graças recebidas
pelo afilhado, seu nome, sua existência e o recebimento do Espírito Santo, em
suma sua vida seriam uma dívida permanente de vida. Além da lida do gado
como menciona Santilli, foi muito comum que crianças fossem dadas para
serem criadas por famílias de fazendeiros e mesmo por pessoas da cidade. Há
relatos desses no projeto Panton Pia'. Essas crianças, no geral, viviam em
situação de escravismo, exercendo, no caso feminino, trabalhos domésticos.
Como relatou Fiorotti,9 indígenas em situação de compadrio, eram inclusive
amarrados para apanhar, caso contrariassem os interesses do padrão.
A dimensão de compadrio presente na palavra compadre surge ao longo
das oito narrativas contadas por Seu Caetano. O termo “compadre” é utilizado
pelo Jabuti ao referir-se à Onça e a derrotando. Nas narrativas do Jabuti de
Koch-Grünberg, a palavra aparece quatro vezes; na narrativa de seu Caetano,
aparecem 19. Presente na narrativa de Raposo, o termo mobiliza toda uma
gama de relações sócio-históricas e de poder estabelecidas a partir do contato
entre não-índios e índios que reconfigurou não apenas a divisão e

9
Informação fornecida em orientação deste trabalho. Há relatos de hoje professores, filhos de
fazendeiros à época, de terem assistido indígenas irem para o tronco, apanhar.
64

estabelecimento de produtividade de terras a partir da criação do gado, mas


aspectos culturais pela introdução de dogmas cristãos, como o batismo. Com a
derrocada da Onça, do compadre, numa leitura simbólica, invertem-se as
relações historicamente estabelecidas entre não-índios e índios de predatismo
e exploração.
Entretanto, se o jabuti não possui a mesma capacidade de predação e
mecanismos de defesa natural que a onça, uma particularidade anatômica o
faz sobressair a feroz inimiga: a sua capacidade reprodutiva. A começar pelo
órgão sexual que pode alcançar mais da metade do tamanho de seu plastrão,
desdizendo assim aquilo que sua aparência frágil sugere e a terminar pelo
número de filhotes nascidos a cada ninhada: entre um e quinze. Esses fatos
aliados à longevidade do jabuti, o colocam fora do risco de extinção,
exatamente o contrário da onça.
O ouvinte ingressa no mundo fabular do Jabuti de pronto, assim que o
narrador atribui movimento ao simpático animalzinho, através dos verbos de
ação “andou” e “encontrou”:

Jabuti... Ele andou e encontrou macaco comendo inajá, os macacos


comendo. Aí pediu [que] Macaco derrubasse inajá pra ele. “Derruba
najá pra mim!” Macaco derrubou. Comeu. Pediu outro. Macaco
derrubou. Até que Macaco se enjoou dele. Aí ele veio: “Rapaz, eu vou
te buscar lá, eu vou te deixar aqui em cima do pé de inajá.” Aí
colocou lá em cima, ficou comendo lá. Não demorou muito lá vem
Onça. Onça veio e falou pra ele “O que é que o senhor tá fazendo
aí?” “Não, eu subi aqui pra comer najá.” Dizendo ele que subiu. “Tá
gostoso?” “Tá” “Então derruba um pra mim”. Derrubou pra Onça.
“Mas tá gostoso, mesmo!” Comeu. “Derruba mais um”. Comeu.
“Derruba mais um”. Até que Jabuti pensou: “Rapaz, eu vou matar
essa Onça.” “Derruba mais um” “Então fica embaixo, na minha
direção, bem embaixo de mim, mas pisca olho, não olha pra mim,
não. Pisca olho. Eu vou te derrubar najá, pra você.” Ficou aí piscado.
Jabuti veio de lá e ó pá! E achou graça. Hã! Hã! Hã! Hã! Hã!'”

A utilização do verbo na forma do pretérito perfeito situa de antemão o


ouvinte: uma situação vivenciada e superada. Já a atribuição de verbos de
ação ao Jabuti cria uma situação curiosa e irreverente, uma vez que de animal
extremamente covarde, cuja maior estratégia de sobrevivência na natureza é a
autodefesa e a inação, transmuta-se em esperteza, criatividade e atividade. Ao
Jabuti são atribuídas ações tipicamente humanas, como a capacidade de fala,
de fuga dos instintos puramente animais através da criatividade e
premeditação: ele personificado. De animal assujeitado pelas intempéries e
65

predadores naturais, passa a sujeito das ações e das narrativas, fato muito
comum nas fábulas.
A natureza é assim ludibriada, indicando a posição que não apenas o
Jabuti, mas nós seres humanos devemos assumir perante os fatos naturais e
situações adversas que se nos interpõem – irreverência e criatividade. Dentre
as oito narrativas, todas seguem uma linearidade lógica e cronológica, nas
quais a estrutura básica textual – início, meio e fim – é seguida. Há, também, a
contextualização do ouvinte/leitor acerca do espaço em que se desenrola a
narrativa, neste caso podendo ser associado ao espaço geográfico do circum-
Roraima, já que incorpora às narrativas animais pertencentes à fauna (jabuti,
onça, anta, jacaré-açu, macaco, veado) e flora (najá, coco-babão, olho de
buriti) da região, além de termos relativos à cultura indígena (beiju, jamaxim,
flecha com veneno, kumaza’).
Assim o Jabuti enfrenta seus principais predadores naturais, dentre os
quais a Onça, que é seu predador natural, que representa o perigo à
continuidade de sua existência. Buscando meios de sobreviver em meio ao
lavrado do circum-Roraima, o Jabuti usa de artimanhas criativas para enfrentar
e, por conseguinte, levar à derrota seu predador felino. Um aspecto de
importância crucial para demarcar a transição temporal entre uma narrativa e
outra é a derrota de seus oponentes, seguida de uma risada característica do
Jabuti.
Caetano Raposo interage com o ouvinte no momento em que, se
dirigindo a ele, a respeito da subida do Jabuti ao alto do pé-de-najá, fala:
“Dizendo ele que subiu”, criando uma cumplicidade narrativa com o público que
culminará com “: Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!”. Essa
sonora e contagiante gargalhada marca os términos e passagens nas
narrativas fabulares de Caetano Raposo sobre o jabuti, imitando-o e criando-o
respectivamente, imprimindo a ele uma personalidade irreverente e
debochada. É a risada do jabuti que empresta outros sentidos não apenas à
narrativa, mas aos ouvintes. Ela indica que o texto vibra, o leitor o estabiliza e o
integra àquilo que é ele próprio, logo sendo ele que vibra de corpo e alma
(ZUMTHOR, 2005, p. 53). Através desta risada, o jabuti pontua sua vitória
perante a morte. A morte é a experiência que mais radicalmente comprova que
somos seres de tempo, que também pertencemos à história natural como nos
66

fala Benjamin: “A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode relatar. É da


morte que ele deriva sua autoridade. Em outras palavras: suas histórias
remetem à história natural” (1987, p. 208).
Caetano Raposo cria onomatopeias para representar os sons feitos
pelos animais. Sons como os emitidos pelo Jacaré-açu enquanto dorme
esperando o Jabuti secar-se e livrar-se do alegado veneno. Ou como quando
já livre da ameaça do Açu, depara-se novamente com a onça.

Aí saiu, foi embora pro caimbezal. Aí encontrou coco-babão, caroço


de coco-babão embaixo da pedra. Ficou quebrando – Tá – e
comendo. Aí Onça encontrou de novo: “Ê camarada! Que que tá
fazendo?” “Tô comendo caroço do meu saco.” “Será que é gostoso
caroço do seu saco?” “É gostoso. Quer provar?” “Então me dê um.”
Deu pra ele. “Tá gostoso”. Deu outro de novo. “Assim é também o
seu saco, deve tá gostoso! Vamos experimentar?” O saco da Onça é
atrás. Então ele pensa que deu pedra pra ele em cima, ele colocou
pedra, aí onçazão e Jabuti “Padauuuuuu”, dois logo aí. “ Hã'! Hã'!
Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!”. Graça dele, aí foi
embora, saiu de lá

Desta vez o ardil consiste em convencer a Onça de que assim como os


seus testículos são comestíveis, os dela também o seriam. No momento em
que a ingênua Onça coloca os próprios testículos entre duas pedras, o jabuti
toma distância e pula com as duas patas sobre as pedras. Não sem antes
emitir uma espécie de brado vitorioso: “Padauuuuuu”, com que alcança o seu
intento. Todos esses sons podem ser melhor conferidos no CD anexo, com a
narrativa de seu Caetano.
Esses expedientes vocais projetam-se ricamente no imaginário do
ouvinte, tornando-o mais do que público, em cúmplice do Jabuti, além de
imprimir quase que cinematograficamente em nossa mente o cenário e as
ações mobilizadas pelos personagens, como na seguinte narrativa em que o
cenário pode ser atribuído às áreas de lagos comumente encontradas no
lavrado roraimense:

Foi embora, foi embora e aí encostou no poço. Aí tava brincando o


luar por aqui assim, quando bate na água. Eles tavam brincando lá. Aí
Onça disse: “Que que tá fazendo aí?” “Não, quero comer beiju de
goma. Tá lá dentro. Quero pegar ela, mas não tô podendo não. Tô
mergulhando mas meu folego não dá, não.” “Onde?” “Ali, olha. Tá ali.”
“É mesmo! Eu vou lá!” “Então vai. Mas é fundo. Vamos amarrar pedra
e aí tu vai ligeiro.” Tirou olho do buriti, amarrou pedra no pescoço
dele. “Tu vai lá, Compadre, e traga pra nós”. Aí Onçazão: “tchibum”.
67

Desceu ligeiro. Aí lá, matou. Enforcado e dentro d'água. “ Hã'! Hã'!


Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!”. E saiu de lá.

Em boa parte das narrativas em que o Jabuti enfrenta a Onça, podemos


entrever o desejo não apenas de garantir sua sobrevivência, mas o de
assegurar sua vitória através do subjugo intelectual. Essa postura perante as
situações que se lhe interpõem oferecem a oportunidade de transpassar as
hierarquias da cadeia alimentar, mas também de afirmá-las quando o
personagem em questão é a Anta.

Foi embora e aí encontrou com outra Onça. Aí Onça perguntou dele:


“Que que você come?” “Eu como veado, eu como paca, eu como...”
O jabuti, né? “Eu como paca, eu como veado, eu como tudo caça,
tudo. Porco. Como tudo. E você?” “Eu também como”, falou a onça.
“Então vamos cagar nós juntos pra ver quem é que come mais, vendo
as sete estrelas, não olha pra ninguém não. Nem eu nem você. Só
olha pras sete estrela.” Tá. Bem juntinho, cagando aí. Aí o Jabuti
trabalhou aqui e trouxe a merda da onça pra ele e dele colocou pra
Onça. Ficou lá. “Vamos ver!”. Viraram, levantaram. Merda da Onça só
folha, só folha. Do jabuti, pelo de caça, de veado, porco, de toda
caça, do jabuti, [carumbé]. “Rapaz, de novo!”. Jabuti fez o mesmo
processo. Onça não viu, não que ele fez.
DF: Passando por trás das costas, lá.
CR: Éh. Aí viraram de novo pra ver. Continuou. Onça só folha
mesmo, do Jabuti, carumbé só pelo de caça. “Então Jabuti, tu vai
matar anta pra eu comer.” Ele sabia onde vivia anta, Jabuti, né? “Tá
bem.” “Tá aqui flecha venenosa.” Onça dando pra ele, né?
DF: Aham.
CR: “Tá bem”. Ele sabia onde era a casa da anta e foi direto pra lá.
Chegou lá com sede, Anta tava trançando aí um jamaxim. Aí pediu
Anta. “Taí água, tá aí, bebe água aí”. “Não, eu quero do kumaza' ”.
DF: Kumaza' é o quê?
CR: Kumaza' é um tipo de balde. Até que encheu o saco da anta com
kumaza'. “Eu quero tomar água de kumaza'”. “O que é que tá dizendo
kumaza'? Tá aqui kumaza'.” E tirou coisa dela, aí e deu pra ele. Pra
quê! Isso aí que ele queria, o Jabuti.
DF: Essa aí eu não entendi direito o final.
CR: Hein.
DF: Não entendi direito o final, não. Ele queria o quê, o Jabuti?
CR: O jabuti queria a pimba da coisa.
DF: Da Anta?
CR: Da Anta! Queria a pimba da Anta, aí a anta tirou a pimba dela e
deu pra ele. Pra quê!
DF: Pegou!?
CR: Pegou. Anta esqueceu do jamaxim dela e correu. Não caiu, não.
Até cansou Anta, Anta caiu. Matou Anta. A flecha dele, colocou a
flecha da Onça.

Esse desejo de subjugar pela inteligência muito nos lembra outro ilustre
personagem da tradição oral brasileira, embora suas ações tenham potencial
menos ofensivo, o esperto Pedro Malasartes. De origem indefinida, segundo
Câmara Cascudo, “Malasartes português, Urdemales espanhol é o centro de
68

interesse reunindo estórias de muitas origens, castelhanas, francesas,


italianas.” (CASCUDO, 1984. p. 173). Na narrativa coletada por J. Leite de
Vasconcelos em 1882, Cabeceira de Bastos, Pedro Malasartes encontra no
alto de uma serra uma casa de ladrões. Dizendo-se barbeiro que andava a
fazer barbas pediu socorro, espantando os ladrões, dos quais apenas um
permanece para o jantar. Propondo-se a fazer a barba do ladrão corta-lhe a
língua fora e aproveita o jantar. Continuando sua caminhada, Malasartes vai a
outra serra onde sobe em um pinho. Debaixo desta árvore os ladrões fugidos
preparam o jantar. Malasartes aproveita o descuido dos ladrões e urina nas
panelas do jantar. Sem nada perceberem os ladrões provam do jantar e
gostam. Em seguida atira-lhes sobre a cabeça uma cancela. Descoberto,
Malasartes foge para a beira de um rio onde é capturado por um boneco de
visgo confeccionado pelos ladrões, que acaba sendo jogado no rio.
Embora a narrativa coletada por Vasconcelos Leite tenha um final trágico
para o protagonista, recebendo como punição a morte, outras narrativas
difundem as peripécias de Malasartes, como em “A sopa de Pedras”, em que
aproveitando da ingenuidade e boa vontade de seus vizinhos consegue
preparar uma refeição para si, garantindo sua sobrevivência. Em outras
narrativas, Malasartes ludibria avarentos, mesquinhos e poderosos em favor
dos pobres.
Assim como nas aventuras de Malasartes, as narrativas de Caetano
Raposo longe estão da moral maniqueísta da cultura ocidental. Analisando o
caráter trickster do herói cultural dos Pemons, Makunaima, Lúcia Sá declara
que

De fato, se procurarmos uma característica de Makunaíma presente


na maior parte ou, quem sabe, em todas as suas narrativas, veremos
que é sua capacidade de adaptação – o que Ellen Basso chamou de
“flexibilidade e criatividade pragmática” da cultura e dos tricksters
kalapalos. Se, ao lermos essas histórias, nos distanciarmos de
categorias fixas como “bem” e “mal”, iremos constatar que
Makunaíma é simplesmente mais adaptável e mais criativo do que
seus irmãos ou os demais personagens que o rodeiam.” (2012, p. 62)

Estas mesmas características são extensivas a alguns personagens que


circulam nas narrativas indígenas, em especial nas de Caetano Raposo. Ou
seja, não parece haver diferenças categóricas entre o comportamento de
tricksters como Makunaíma (SÁ, 2012, p. 64). Nesta perspectiva, o Jabuti
69

adquire traços trickster ao recorrer à capacidade de adaptação e criatividade


para vencer os obstáculos que lhe interpõem, não se adequando a uma moral
típica ocidental, por exemplo. Dando sequência às narrativas de Caetano
Raposo,

Aí ele voltou, encontrou Onça lá e perguntou: “Como é que é,


compadre?” “Não, já tá morta.” “Tá?”. “Tá. Não falei que eu como
caça? Matei.” “Então, umbora ver!” Aí foram pra lá. Chegaram lá, tava
antazona lá esticada. Aí cortaram ela todinho, ela deu buchada pra
ele, pro Jabuti. Só buchada, não deu carne, não. “A carne é pra mim
e a buchada pra ti.” “Tá bem.” Aí fizeram cozido pra eles. Aí a Onça
disse “Rapaz, eu vou tirar vara pra fazer o jirau pra assar, né?” “Aí eu
fico aqui cozinhando”. “Pode cozinhar aí, mas não mexe com a minha
panela , não. Não come minha boia, não.” Onça, né?
DF: Falou.
CR: Aí, “Tá bom.” Aí sobrou um resto de veneno da flecha, aí colocou
na panela da Onça, o Jabuti. Aí chegou “E aí? Tá cozido?” “Ta bom,
tá bom, tá cozido. Vamos comer agora.” Boia do Jabuti só panelada e
da Onça, a carne. Comeram juntos e panela de Jabuti e panela da
Onça. Tá bom. Comeram. Aí Onça falou “Ahhhhhh, minha boia tá
amarga!” “Ahhhhh, Minha boia tá amarga!”, Jabuti. “Ahhhhhh, minha
boia tá amarga! Minha comida tá amarga” “Ahhhhh, minha comida tá
amarga!” Jabuti. Aí não demorou Onça: “Pouuu”, caiu. Jabuti olhando
pra ele. Matou Onça. “Há’ há’ há’ há’ há’ ”. Aí foi embora, jabuti. Matou
onça

O conteúdo dessa narrativa (assim como aquele em que a Onça quebra


seus testículos) tanto chamou a atenção de Mário de Andrade, que a atribuiu
ao personagem de sua obra Macunaíma (1928), quando depois de caçar uma
anta só recebe de seu irmão mais velho Jiguê, as tripas. Dizemos que o Jabuti
possui traços trickster porque parece a personagens como o coiote nas
narrativas indígenas norte-americanas e mesmo Makunaima nas narrativas
pemón. Contudo, o Jabuti se difere de um trickster tradicional, já que não
representa um herói cultural, como o próprio Makunaima, além de também não
possuir capacidade metamórfica.
A colaboratividade também é uma das características da narrativa que
evidencia a peculiaridade cultural dos povos indígenas. Em uma fábula de
Esopo, muito assemelhada em tema à de Caetano Raposo, “A Tartaruga e a
Lebre”, temos uma corrida estabelecida entre dois animais em condições
desiguais de competição. Entretanto, ao contrário da fábula de Caetano
Raposo, na fábula esópica a Lebre vale-se do conhecimento da fraqueza de
sua vagarosa opositora enquanto a Tartaruga vale-se da prepotência
vangloriada pela Lebre com relação à própria velocidade. Vemos, então, a
70

natureza, ou melhor, as limitações por ela impostas, sendo burlada pela


inteligência.

Aí encontrou com Veado. “Você é corredor?” “Sou corredor, eu sou


corredor e você?” “Eu também sou corredor” “Então vamos
experimentar nossa carreira?” “Vamos.” “Tá o dia.” “Tá bom.” “Nós
vamos sair daqui. Você fica do outro lado e eu fico do outro.” “Tá”. Aí
convidou outros carumbés, companheiros dele. “Tu fica aqui, quando
Veado perguntar de ti, diga que você tá na frente.” Colocou outro
mais na frente. Uma sequência de jabutis. Aí chegou o dia deles. Aí o
Veado perguntou “Já, compadre?”. “Já, compadre, vamos embora!”
Saíram. Veado saiu torto daí. Aí perguntou: “Compadre!”. “Ê...!”
Responderam lá na frente. Carreira do veado é de 80 quilômetros por
hora. “Compadre!” “Ê...!” Lá na frente. Foi embora, foi embora.
“Compadre!” “Ê...!”. E ele cansou, diminuiu carreira. Chegou no ponto
deles lá, lá ele estava. Lá no final, estava lá. Éh..., descansado.
“Cheguei muito perto, compadre.” “Eu não falei que eu sou corredor?”
“Tá bom, compadre.” Vieram com um palmo de língua desse tamanho
assim. Cansado, cansado, cansado. Aí o Carumbé achou graça dele:
“: Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!”

O tom de irreverência que permeia todas as narrativas através do


emprego de vocábulos surpreendentes como a adjetivo “torto”, para qualificar a
forma com que o veado lavradeiro inicia a corrida, e “piscado”, evidenciam
outra peculiaridade. Além de pontuar a vitória sobre o veado lavradeiro,
parecem indicar também a maneira como se deve encarar as situações que se
nos põem: com irreverência, sagacidade e colaboratividade, lembrando-nos
aquilo que Benjamin já havia nos dito sobre outra forma narrativa aparentada
do mito e fábula,

O conto de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade, e


continua ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é
enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância […]. O
feitiço libertador do conto de fadas não põe em cena a natureza como
uma entidade mítica, mas indica a sua cumplicidade com o homem.
(1987, p. 215)

Ensina, ainda, como repete a narrativa de Caetano Raposo, que as


narrativas permite-nos vivenciar o fenômeno da morte e compreender que ela
não está alijada da vida, como a modernidade quer nos estabelecer com toda
sua velocidade e imediatismo.
71

A prática discursiva

Aristóteles foi o primeiro a definir a fábula em Arte Retórica (1964),


localizando a fábula enquanto um dispositivo argumentativo utilizado pelos
oradores com intuito de descobrir os modos de persuadir o público audiente.

A imitação de uma ação é o mito (fábula); chamo fábula a


combinação dos atos; chamo caráter (ou costumes) o que nos
permite qualificar as personagens que agem; enfim, o pensamento é
tudo o que nas palavras pronunciadas expõe o que quer que seja ou
exprime uma sentença. (ARISTÓTELES, 2007, p. 36)

A fábula seria então criação do orador para compor seu discurso de


exemplo e assim narra fatos que podem ser apresentados como reais. Ao
apresentar a fábula esópica da raposa que atravessou o rio, Aristóteles indica
um aspecto essencial da fábula: a divisão da narrativa em duas partes. A
primeira parte consistiria na narrativa (mythos) e a segunda, epimítio
(precedente à narrativa) ou promítio (antecedente) assim nomeadas pelos
retores antigos, segundo Dezotti (2003).
Partindo da análise das fábulas de Fedro, e por consequência as de
Esopo, a estrutura da fábula foi analisada por Alceu Dias Lima (1984) que
identificou o que chamou de a forma da fábula. De acordo com Lima, a fábula é
a articulação dos discursos narrativo, interpretativo ou moral, e pragmático ou
metalinguístico e é este último aspecto a lograr significante importância na
análise das fábulas esópico-fedrianas. Essa divisão pode ser identificada como
na fábula a seguir de Esopo citada por Dezotti (2003):

A tartaruga e a lebre
Uma tartaruga e uma lebre discutiam a respeito de sua velocidade.
Então fixaram um prazo e um local e separaram-se. A lebre, rápida
por natureza, descuidou-se da corrida e, tendo-se deitado à beira do
Discurso caminho, adormeceu. E a tartaruga, consciente de sua lentidão, não
narrativo parou de correr e, tendo ultrapassado a lebre, que dormia, alcançou o
prêmio da ventura.
Discurso A fábula mostra que muitas vezes o esforço venceu uma natureza Discurso
metalinguístico relapsa. moral

Embora Lima ressalte que a forma da fábula não se aplique a todas


narrativas fabulares, o que dá lugar ao efeito de fábula, ou seja, “toda
sequência que, independentemente do texto em que se encontra, evoca, por
sua própria forma, a de uma fábula” (2003, p. 14), é o discurso metalinguístico
72

presente na palavra “moral” ou em variantes como “a fábula ensina” ou a


mudança na entonação da voz do narrador que revela a estrutura enunciativa
da fábula, de acordo com Lima. É através também deste discurso que se
retoma a figura do alocutário, do público, se atualiza a narrativa e se esconde o
ator humano por trás da narrativa na qual podem protagonizar animais, para no
final revelar que é este humano que quer ensinar, mostrar, censurar, louvar,
aconselhar e etc.
Nessa perspectiva, o narrador é quem conduz o público na interpretação
da fábula. Além disso, é a moral que indica o dinamismo e aplicabilidade da
fábula a diversas situações discursivas. Como aponta Dezotti (1999, p. 139-
140) quando traz a fábula "O rouxinol e o gavião", contada por Hesíodo.
Destinada a reis e a seu próprio irmão Perses adapta sua moral com o intuito
de advertir seus destinatários que acima da força bruta e da fragilidade existe
uma justiça divina, no caso advinda de Zeus, sob a qual estão assujeitados.
Palmilhando as pesquisas feitas por Lima, Dezotti (1999) retoma o
aspecto discursivo da fábula esópica enquanto ato de fala, além da forma
tripartite em que se estrutura. Dedicando-se a percorrer os caminhos tomados
pela fábula grega da prática discursiva à sua fixação enquanto gênero literário,
Dezotti identifica duas realidades textuais:

a fábula literária, texto autônomo que institui seu próprio contexto por
meio de epimítios, tal qual a documentam as coleções esópicas, e a
fábula encaixada, aplicada a uma dada situação discursiva por um
locutor que decidiu construir seu ato de fala por meio de uma
narrativa. (1999, p. 138)

Averiguando textos de Heródoto, Hesíodo e Homero, Dezotti constata


que:

Da fábula como gênero discursivo já institucionalizado na cultura


grega como um ato de fala realizado por narrativas é que deriva a
fábula como gênero literário. Esta, porém, ao contrário da prática
discursiva, não permitia ao locutor valer-se dos fatores situacionais
para indicar ao interlocutor o valor ilocucional da narrativa. Isso
porque a fábula autônoma instaura, pela própria linguagem, sua
própria situação discursiva. Por isso é necessário pressupor-se que,
quando se torna gênero literário, a fábula se institucionaliza com um
esquema discursivo canônico que prevê a explicitação, em promítios
ou em epimítios, de modo como o texto narrativo deve ser
interpretado pelo alocutário (1999, p. 141)
73

Ainda de acordo com os fatores situacionais, o locutor poderia omitir uma


das partes da fábula, deixando ao alocutário a tarefa de reconstituir o esquema
discursivo, a partir de relações intertextuais estabelecidos entre as fábulas, o
que acaba por alçá-lo a co-elaborador da fábula (1999, p. 141-142). Não à toa,
expedientes como esse, em que o ouvinte ou leitor precisa reconstituir a moral
da fábula através de indícios situacionais ou textuais concederam à fábula,
antes da denominação mythos, a de ainos, cognato de ainigma, enigma na
transliteração para o português, já que exigia do alocutário um esforço
interpretativo do alocutário (DEZOTTI, 2003, p. 23).
Enigma também é o que configura aquilo que nas narrativas de Seu
Caetano poderiam ser associadas ao que Lima e Dezotti identificaram
enquanto discurso moral. Como pode-se perceber na narrativa a seguir:

Aí encontrou com Veado. Disse: "Você é corredor?" "Sou corredor, eu


sou corredor, disse o Veado, e você?" "Eu também sou corredor."
"Então vamos experimentar nossa carreira?" "Vamos." "Tal dia." "Tá
bom." "Nós vamos sair daqui. Aqui tá o igarapé, você fica d'outro lado
e eu fico d'outro." "Tá." Aí convidou outros carumbés, companheiros
dele. "Tu fica aqui, quando veado perguntar de ti, diga que você tá na
frente." Colocou outro mais na frente, assim. DF: Uma sequência de
jabutis.

CR: Eh, de jabutis. Aí chegou o dia deles. Aí o veado perguntou: "Já,


compadre?" "Já, compadre, vamos embora!" Saíram. Veado saiu torto
daí. Aí perguntou: "Compadre?" "Erhmm!" Responderam lá na frente.
Veado é bicho todo [esperto], carreira do Veado é de 80 quilômetros
por hora.

DF: É ligeiro.

CR: "Compadre!" "Erhmm!" Lá na frente. Foi embora, foi embora, foi


embora, foi embora, compadre foi embora. "Compadre!" "Erhmm!"
Veado cansou, diminuiu carreira. Chegou no ponto deles lá, lá ele
estava.

DF: Lá no final?

CR: Lá no final, estava lá.

DF: E descansado ainda? [Risos]

CR: Eh, descansado. [Risos] "Cheguei muito perto, compadre." "Eu


não falei que eu sou corredor?" "Tá bom, compadre." Vieram com a
língua desse tamanho, assim.

DF: Do lado de fora?


74

CR: Cansado, cansado, cansado. Aí o Carumbé achou graça dele


"Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!".
Professor, até aí que eu sei.

Assim como na forma da fábula podemos distinguir um discurso narrativo


– onde a temática da corrida mantém-se, indicando a manutenção da tradição
oral indígena e ao mesmo tempo sua atualização através da linguagem
despojada e dos recursos estilísticos utilizados pelo narrador – e um discurso
metalinguístico e interpretativo amalgamados pelo riso final do Jabuti,
indicando a contribuição criativa do narrador e compartilhando com o público a
interpretação de suas fábulas. O próximo capítulo dedica-se a essa
interpretação.
75

CAPÍTULO III

Hã'! Hã'! Hã' – E o Jabuti Ri


CR: Jabuti veio de lá e ó pá! E achou graça. Hã'!
Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!
Hã '!Hã'!Hã'!Hã'!
76

A presença ativa de Caetano Raposo enquanto narrador-performer


movimenta uma série de recursos que criam as narrativas do ciclo do Jabuti,
mas nada de forma tão marcada quanto a risada que ao animalzinho atribui. As
narrativas de Caetano Raposo compartilham com outras narrativas não apenas
o protagonismo por parte do Jabuti como as ações por ele desenvolvidas. Em
boa parte das narrativas, o Jabuti apresenta-se como a corporificação da
esperteza, tomando atitudes em que muitas das vezes beiram à crueldade.
Como em:

Foi embora, foi embora e aí encostou no poço. Aí tava brincando o


luar por aqui assim, quando bate na água. Eles tavam brincando lá. Aí
Onça disse: “Que que tá fazendo aí?” “Não, quero comer beiju de
goma. Tá lá dentro. Quero pegar ela, mas não tô podendo não. Tô
mergulhando mas meu folego não dá, não.” “Onde?” “Ali, olha. Tá ali.”
“É mesmo! Eu vou lá!” “Então vai. Mas é fundo. Vamos amarrar pedra
e aí tu vai ligeiro.” Tirou olho do buriti, amarrou pedra no pescoço
dele. “Tu vai lá, Compadre, e traga pra nós”. Aí Onçazão: “tchibum”.
Desceu ligeiro. Aí lá, matou. Enforcado e dentro d'água.
“Ha’ha’ha’ha’ha’”. E saiu de lá.

Esta atitude repete-se em outras duas narrativas. Na narrativa, embora a


mera presença da Onça já represente suficiente ameaça para sua existência, a
Onça não estabelece confronto direto com o Jabuti. Contudo, o Jabuti
aproveita-se da Onça e sua despretensão e a mata. Entretanto, a gargalhada
do Jabuti reverbera não apenas ante o público, mas também no cerne da
compreensão deste mesmo público a ponto de praticamente absolver o
quelônio. Nas outras narrativas o conflito entre o Jabuti e outros animais
maiores e seus predadores é estabelecido de imediato e ao Jabuti cabe
apenas lidar com a situação que lhe é interposta. O que nos leva a afirmar que
é esta risada que particulariza a narrativa de Caetano Raposo ante outras, pelo
menos nenhum outro narrador do projeto Panton Pia' (FIOROTTI, 2007) nem
mesmo da revisão bibliográfica realizada executam tal risada.
Já dizia Aristóteles em Partes dos animais (2010, p. 136) que o homem
é o único animal que ri. Não apenas ri, como bem atalhou Henri Bergson
(1983), como também faz rir e muito embora sob o riso exista um apanágio de
atitudes e sentimentos humanos, inclusive a crueldade, é pelo viés do cômico
que este trabalho se desenvolve. Para Propp (1992, p. 38) ainda que se ria de
um animal, é em virtude de evocar a lembrança do homem ou de a ele
assemelhar-se: “O cômico sempre direta ou indiretamente está ligado ao
77

homem. A natureza inorgânica não pode ser ridícula porque não tem nada em
comum com o homem”. Assim também o assegura Bergson

Poderia também ter sido definido como um animal que faz rir, pois se
outro animal o conseguisse, ou algum objeto inanimado, seria por
semelhança com o homem, pela característica impressa pelo homem
ou pelo uso que o homem dele faz.

Não há comédia sem riso, já a recíproca não é verdadeira. Remontando


novamente a Aristóteles da A poética (1964), o estagerita indica a gênese da
comédia, gestada no ventre das artes da mimeses, na qual também se nutriu a
tragédia, sendo uma diferente da outra pelo fato de esta imitar os homens
melhores do que em realidade são, e aquela por imitá-los piores. Entretanto
estes homens piores não o eram a ponto de imitarem todos os vícios, mas só
os ridículos: aquelas taras e defeitos não dolorosos e não corruptores.
Mas se o homem é o único animal que ri, antes mesmo do homem,
antes de tudo veio o riso, como apresenta George Minois (2003, p. 23) citando
parte do texto encontrado no século III, o papiro de Leyde. Deus deu sete
gargalhadas de onde nasceram os setes deuses: Luz, Água, Hermes, Geração,
Destino, Tempo e, do choro do riso, a Alma. Já oito gargalhadas dá o Jabuti de
Caetano Raposo entre uma narrativa e outra, que à primeira impressão parece
configurar uma espécie de riso-refrão, que marca o término de uma e anuncia
outra narrativa. Mas a cada repetição um novo significado pode ser dado à
risada do Jabuti. Fazendo rir o Jabuti, Caetano Raposo institui-se
definitivamente enquanto narrador e estabelece um movimento incessante de
aproximação e afastamento entre narrador-público e público-sentidos das
narrativas.

O riso do Jabuti
O riso do Jabuti de Caetano Raposo faz rir. À primeira vista pela
inusitada atribuição da capacidade humana de rir ao animalzinho. O riso acaba
sendo uma reação diante do inesperado, uma vez que permite que se
estabeleça um jogo intelectual com o inesperado como afirma Dominique
Arnould, citado por George Minois (2003). Essa reação provoca
distensionamento após o assustador encontro com a voraz Onça. Este jogo
intelectual revela a faceta lúdica do riso do Jabuti. Esta faceta que provoca
78

excitação sensorial através da sonoridade da gargalhada e, talvez, por isso


mesmo, encontre tão forte ressonância perante o público e, assim, imprima
profundamente o riso do Jabuti em sua memória cognitiva e mesmo afetiva,
quase não deixando tempo para que o público avalie racionalmente o
significado daquele riso.
O riso assim seria também um jogo lúdico cuja característica maior, de
acordo com Johan Huizinga (2000), é o divertimento. A concepção de jogo de
Johan Huizinga torna-se interessante quando amplia para além do humano e
assim do lógico a atividade lúdica. Embora assuma o jogo enquanto fenômeno
cultural, o estudioso assume que o jogo começa mesmo antes da própria
civilização, com os animais. E ainda que esta concepção assuma o aspecto
irracional do jogo enquanto divertimento, não se isenta de uma função
significante. Partindo para a concepção de jogo já inscrito enquanto fenômeno
cultural, Huizinga nos lembra que dentro da cultura o primeiro jogo estabelecido
pelo homem foi a linguagem. O estudioso assim assume a linguagem enquanto
um jogo constante entre a matéria e as coisas pensadas que ocultaria uma
metáfora, um jogo de palavras.
Nesse caminho, nas narrativas de Caetano Raposo teríamos uma
espécie de metajogo em que Jabuti e Onça, seres nascidos na/da linguagem,
estabelecem outro jogo com o público através da performance do narrador.
Jogo viabilizado por passagens como na primeira narrativa de Caetano Raposo
em que narrando a subida do Jabuti no pé de inajá, dirige-se ao entrevistador e
comenta: “Dizendo ele que subiu”. Jogo que culmina com a risada do Jabuti
que mobiliza por sua vez o riso do público. É este jogo que estabelece o
movimento de aproximação entre humanidades do performer e do público
através do riso repentino que logo transforma-se em jogo intelectual.
Em contrapartida, o riso despende certo distanciamento por parte de
quem ri com relação a situação vivenciada, como assume Propp (1992, p. 31):
“O riso ocorre em presença de duas grandezas: de um objeto de riso e de um
sujeito que ri – ou seja do homem.” Assim sendo, ao menos no plano narrativo,
o Jabuti de Caetano Raposo é capaz de afastar-se do risco de morte iminente
provocado pela presença da Onça com sua risada final, numa espécie de
exorcismo do medo. Ao mesmo tempo esse afastamento também é possível ao
público, além de ser-lhe proporcionada, ainda que temporariamente, a
79

possibilidade de libertar-se do medo da Onça, pela ruptura da lógica da cadeia


alimentar, da subversão dos papéis exercidos desde os tempos imemoriais por
predador e presa.
Essa subversão avia os caminhos da comicidade das fábulas do Jabuti
porque possibilita no plano narrativo aquilo de que é impossível desvencilhar-
se no plano real, causando uma espécie de riso catártico que aproxima
narrador-personagem e público pelas vias da comicidade. Também o riso do
Jabuti alivia os rigores impostos pelo mito. Relembrando que tanto Jabuti como
Onça são seres de linguagem, nascidas dela, pudemos perceber no traçado
histórico de ambos que muitas vezes estão atrelados ao mito.
Libertando-se do medo da Onça e rindo dela, o público liberta-se e ri
também do medo da morte, extinguimos, ainda que simbólica e
momentaneamente, a própria morte. O homem então pode rir e libertar-se da
consciência daquilo que é inexorável à sua existência: o tempo, a memória e a
morte. O riso ganha um status humanizador, pois nos lembra que tanto Jabuti,
Onça e homem estão sob as mesmas leis naturais. Assim temos um
movimento de aproximação. Do rir de alguém passamos a rir com alguém,
criando reverberação ou como bem percebeu Bergson (1983)

O riso parece precisar de eco. Ouçamo-lo bem: não se trata de um


som articulado, nítido, acabado, mas alguma coisa que se
prolongasse repercutindo aqui e ali, algo começando por um estalo
para continuar ribombando, como o trovão nas montanhas.

Outros motivos para o riso podem ser apreciados em Ariano Suassuna


(2013), comediógrafo, teórico e autor cômico, que em uma de suas aulas-
espetáculo narra a história de dois cegos: um forte e completamente cego,
outro fraco e cego de um olho só. O fraco convence o forte a passearem de
bote sob a condição de que enquanto este remasse, aquele comandaria o
leme. Já em alto mar, o cego forte dá uma remada e deixa escapulir o remo de
sua mão, que acerta o cego fraco no único olho bom que lhe restava e que diz
“Pronto!”. O cego forte ouvindo isso, pensa que chegaram ao seu destino e
desembarca. Suassuna então pergunta ao público por que se ri de uma história
assim tão horrorosa e retoma a definição de Aristóteles para o cômico
“Desarmonia de pequenas proporções sem consequências dolorosas”
(ARISTÓTELES apud SUASSUNA, 2008, p. 145). Usando a história para
80

discutir a definição de Aristóteles, Suassuna aponta para dois recursos


fundamentais que causam o riso: a de localizar as personagens enquanto
seres de linguagem e o de estabelecer um gesto cômico ao mesmo tempo que
a ação possivelmente prejudicial se desenvolve.

A primeira coisa que eu fiz foi comunicar a vocês que era uma história
inventada pelo povo brasileiro, então os dois cegos são dois
personagens abstratos, imunes ao sofrimento, né, não sofrem porque
não existem. E depois, mesmo assim, em um momento perigoso de a
gente sentir compaixão, que o riso desaparece, é o momento em que
fura o olho, eu, então, de propósito, fiz o gesto de palhaço (puxa
remos imaginariamente), aí ó, pronto, aí vocês riram. Claro, porque
eu anestesiei a sensibilidade de vocês, pra vocês não se
aperceberem das possíveis consequências dolorosas da ação.
(SUASSUNA, 2008)

Estes dois recursos são perceptíveis ao longo das narrativas de Caetano


Raposo. De primeiro porque Caetano Raposo é interpelado a contar as
histórias do Jabuti por um entrevistador. Logo tem-se que o público de antemão
sabe que trata-se de uma recriação da realidade, e mesmo narrativa, já que
pode-se perceber a presença recorrente de narrativas como as da corrida entre
o Veado e o Jabuti em outras culturas e épocas.
Logo, o riso atribuído ao animalzinho é uma recriação. A essa recriação,
Ariano Suassuna vai definir de riso estético: “Aquele tipo de Risível recriado ou
possível de ser recriado pela Arte riso do qual as principais categorias são o
Cômico e o Humorístico” (SUASSUNA, 2008, p. 143). Partindo da definição de
recriação que abrange o riso estético, temos nas narrativas de Caetano
Raposo a atribuição de ações e da capacidade de fala aos animais. Essas
revelam que a atribuição se trata de uma criação pertencente ao mundo
narrativo. Ao término da narrativa e da investida contra a Onça há o riso. O riso
então seria um gesto que distanciaria o público das possíveis consequências
dolorosas da ação do Jabuti contra a Onça, o que anularia a crueldade das
ações, já que distanciaria o público do sofrimento causado à Onça.
Como nas narrativas em que Jabuti encontra a Onça brincando na laje,
observando a lua refletida na água, há momentos em que o riso torna-se
incômodo e constrangedor. É quando o caráter puramente cruel do Jabuti
demonstra-se. Contudo, o próprio Suassuna ao analisar a concepção de
Hobbes sobre o riso e mais tarde a de Stendhal aceita a crueldade enquanto
elemento na forma com que se ri dos outros. Não há embate claramente
81

estabelecido entre os dois velhos rivais, mas ainda assim o Jabuti abate a
Onça.
Isso poderia resultar em uma antipatia do público para com o Jabuti,
entretanto o riso atenua a percepção do dano causado à Onça. Tanto que
Jabuti e Onça tornam a encontrar-se e a enfrentar-se para então novamente
acontecer a morte da Onça, demonstrando aquilo que Ariano Suassuna aponta
na teoria de Aristóteles: a falta de consequências dolorosas na ação, pelo
menos para o narrador, o Jabuti e o ouvinte. Estes recursos evidenciam a
existência de Jabuti e Onça enquanto seres de linguagem libertando o público
das consequências reais da existência desses animais, em especial da Onça,
no mundo biossocial.
Ainda de acordo com a definição do riso estético, o riso do Jabuti
apresenta-se como recriação perante outras narrativas cujas semelhanças
temáticas e/ou de sentidos se apresentam. Como quando comparamos as
narrativas coletadas por Theodor Koch-Grünberg ou mesmo com a narrativa de
Esopo A tartaruga e a lebre. Comparada a esta, a narrativa de Caetano
Raposo acerca da corrida entre o Jabuti e o Veado Galheiro, apresenta
consideráveis diferenças embora mantenha a semelhança temática em que um
animal extremamente veloz estabelece uma competição com um animal muito
vagaroso. No riso do Jabuti dado contra o Veado corredor parece subverter a
moral ortodoxa da fábula esópica. Se na fábula do escravo grego temos uma
competição em que valores meritocráticos são colocados em evidência através
da fórmula: “A fábula mostra que muitas vezes o esforço venceu uma natureza
relapsa” (ESOPO in DEZOTTI, 2003, p. 69). Na narrativa de Caetano Raposo
temos uma competição em que a esperteza e a colaboratividade entre os
jabutis são as grandes vencedoras.
Outra posição sobre o riso analisada por Suassuna é a de Sigmund
Freud, na qual “o Risível é a repentina revelação do sexual sob o simbólico”
(2008, p. 150). Não obstante, o som atribuído por Caetano Raposo à risada do
Jabuti em muito lembra o som emitido pelo quelônio durante a cópula, seja pela
fricção entre plastrão e casco, seja vocalizado pelo próprio bichinho, o que não
deixaria de causar riso, por evocar a metáfora entre a relação sexual e
situações nas quais há um dos envolvidos sairá em desvantagem ou mesmo
prejuízo.
82

Mas a característica do riso que perpassa todas as oito pantoni do Jabuti


é a de riso de zombaria ou escárnio, importantíssimo para a compreensão de
obras literárias, de acordo com Vladimir Propp (1990, p. 28). Partindo seu
estudo acerca do riso de zombaria, Propp o baseia como objeto da derrisão e
para cada objeto haveria meios mais específicos e outros mais gerais, dentre
os quais, o teórico elenca o de fazer alguém de bobo, ação bastante provocada
pelo Jabuti contra a Onça. Propp recorre a um termo russo para definir a ação
de fazer alguém de bobo, odurátchivanie. Em nota de rodapé da tradução
brasileira, o termo russo carrega em si além do sentido de logro ou engabelo, a
manifestação da própria imbecilidade por parte da vítima do odurátchivanie. Ou
seja, a vítima compartilha a culpa pela situação de engodo.

Se nos casos precedentes a comicidade é provocada por impressões


repentinas e inesperadas, o procedimento do odurátchivanie pode
constituir a base de comédias em muitos atos e de narrativas mais ou
menos longas. A vítima de odurátchivanie pode tornar-se tal por sua
própria culpa. O antagonista vale-se de algum defeito ou descuido da
personagem para desmascará-la para escárnio geral. Há casos,
entretanto, em que aquele que é feito de bobo parece não ser
culpado embora todos riam dele. (1990, p. 99-100)

Assim o Jabuti atuaria no sentido de revelar a ignorância como defeito


mortal da Onça, ideia que circula entre os depoimentos de indígenas como
Clemente Flores: “Também, onça é besta, né?” (FIOROTTI, 2007). Essa
interpretação talvez seja uma percepção de que o apego a desejos ou mesmo
atitudes criam obsessões que nos afastam do padrão aceitável, mesmo em
relação à esperteza. Tornando a odurátchivanie, Propp (1990) indica que sua
presença é sustentáculo fundamental das comédias que vão do teatro de
marionetes passando pela commedia dell’ arte italiana e pelas comédias de
Shakespeare. Também servindo de sustentáculo ao folclore cômico e narrativo,
as anedotas, populares, facécias, Schwanke, fabliaux, assim como os contos
maravilhosos de animais e os satíricos. Propp aponta para o fato de que
mesmo em narrativas folclóricas, há subjacente sátiras sociais em que os
enganados são representantes das classe que oprimem e exploram o povo.
Isso por exemplo é o que mais se destaca na obra de Bakhtin sobre Rabelais:
uma inversão de papeis em que a opressão pode ser questionada, por meio do
riso, principalmente carnavalesco e popular (1987).
83

O riso do Raposo
Voltando à análise de Suassuna sobre a obra de Bergson acerca do riso,
o dramaturgo vai afirmar que, embora não tenha nada que comprove tal
opinião nos exegetas do teórico, sua teoria se fundamentaria nas ideias de
Schelling e Hegel sobre a liberdade e a necessidade (2008, p. 151). Segundo a
análise da obra de Hegel, o homem, livre e espiritual de nascimento, confronta-
se com a necessidade e sua face brutal, mecanizada e cega. Uma face dividida
entre a nobreza de espírito e as paixões mais grosseiras que dilaceram o
homem tanto em seu mundo interior quanto em sociedade, que o obriga a viver
em coletividade.
Já partindo do reverso da concepção de Trágico de Schelling, o Risível
nasceria da inversão entre a assunção do homem enquanto sujeito de sua
liberdade e da necessidade enquanto objeto mecânico, duro e hostil da
natureza. Ou seja, a necessidade então passaria a sujeito, tomando os modos
mecanizados da natureza, agora objeto. Nas palavras de Suassuna “Quer dizer
que para Schelling, um ato humano torna-se risível quando o homem,
renunciando explícita ou implicitamente à sua condição de ser livre, assume os
modos mecanizados da natureza” (2008, p. 152).
Por trás do riso do Jabuti, há o riso de Raposo, entremeado por vários
discursos resultantes do contexto sócio-histórico conflituoso entre os macuxi e
os não-índios. Assumindo o ciclo do jabuti como uma metáfora dessas
relações, pode-se interpretar o riso não como sujeição às necessidades, mas
como denúncia e resistência às relações estabelecidas em virtude de tais
necessidades e à possível naturalização delas, como por exemplo, a já
mencionada relação de compadrio.
Paulo Santilli, em Riso castiga os costumes (2010), admite o riso
enquanto “princípio político pervasivo, que incide sobre as esferas da
hierarquia e da reciprocidade, ou, de modo mais amplo, sobre a estrutura
social, trazendo à tona o valor da autonomia pessoal” (2010, p. 106). Embora
atenha-se às relações de parentesco e afinidade no âmbito da aldeia, Santilli
traz considerações interessantes quando ampliadas ao contato com o não-
índio. O estudioso aponta para o fato de o riso ser um princípio de sociabilidade
que perpassa o conjunto das relações sociais. Assim, o riso e aquele que faz rir
teriam, dependendo de sua posição hierárquica na família ou aldeia, um duplo
84

papel de aproximar os indivíduos como o de afastar, afim de estabelecer a


primazia dos indivíduos sobre as relações sociais pelas quais se organizam,
obedecendo ao princípio de igualdade.
Els Lagrou em Rir do poder e o poder do riso (2006), analisando as
narrativas míticas e performances entre os Kaxinawá, mostra as relações entre
o humor e o conhecimento nativo sobre o mundo e também admite o riso
enquanto socialidade e agência ritual entre as pessoas e o mundo animado. O
riso então seria um poderoso instrumento de captura do outro, seja outro
gênero ou outra cultura, e da perspectiva do outro em prol da manutenção da
harmonia. Enquanto agente ritual,

O humor expressa um conhecimento de como agir sobre o mundo


que os protagonistas dos mitos careciam. Nos mitos, os poderosos
donos de saberes cruciais à vida eram conquistados e mortos. No
ritual, estes mesmos seres são “alegrados” e seduzidos. A agência
ritual subverte o tempo mítico do conflito para produzir o tempo
histórico, um tempo no qual pessoas são produzidas com base nas
qualidades construtivas de seres poderosos, conhecidos por suas
capacidades predatórias. (LAGROU, 2006, p. 56)

Diz ainda que o rir do outro principalmente do estrangeiro, ou do que pertence


à outra cultura é uma forma de aproximar-se dele para melhor ser si mesmo
numa espécie de devir em que o outro pode se tornar como nós mesmos e o
mesmo se tornar o outro (2006, p. 72). O que pode se tornar uma contraface
cruel como veremos mais a seguir.
O riso do Jabuti de Caetano Raposo cria um movimento de aproximação
e também cria uma espécie de cumplicidade indulgente entre público e Jabuti,
pois o público pode apreciar a narrativa enquanto sátira social em que a Onça
é, numa analogia com os personagens da realidade social dos povos
indígenas, encarnada como os a priori mais fortes na comunidade, também os
fazendeiros, e por isso mais abastada e forte, porém derrotada. Ao Jabuti, cabe
também a empatia do público que através do animal consegue sentir-se
justiçado dos séculos de espoliação e dizimação de sua gente e cultura. O riso
passa a ser então reflexão sobre os conflitos sociais vivenciados a partir do
contato com a cultura não-indígena. Assim, rindo, Caetano Raposo ri junto com
o jabuti ao mesmo tempo em que constrói o riso dele, o de si mesmo e o de
seu povo diante do opressor. Na leitura simbólica, o riso impede que se
85

cristalize a hierarquia em que o não-índio ocuparia posição superior ante o


índio.
Esta perspectiva, porém, nos sugere uma outra mais pungente, a
contraface cruel aludida anteriormente, a do ceticismo. George Minois (2003)
ao analisar o riso na comédia de Aristófanes entrevê o desejo de provocar a
reflexão acerca do cenário político que desenvolvia-se na Grécia por volta dos
fins do século V a. C. Contudo, ao contrário do que aparentava ser, o riso em
Aristófanes, de acordo com o autor, não era revolucionário e sim conservador.

Como nas festas, o riso da comédia visa ao confronto das normas, a


repetir um mito fundador, a excluir os desvios e os inovadores, para
manter a ordem social. Ele censura os mantenedores da ordem
antiga apontando o dedo da derrisão para os perturbadores.
(MINOIS, 2003, p. 40)

Voltando ao riso do Jabuti de Caetano Raposo, esta perspectiva também


insinua-se: a de que o riso denunciaria uma situação não para criticá-la em sua
injustiça, mas para acusar aqueles que provocam insubordinação às normas
vigentes, relegando ao ridículo a tentativa daqueles que buscam modificar as
posições hierárquicas. O riso transforma-se numa espécie de concessão
temporal em que é possível afrouxar as rédeas das convenções e opressões
sociais, apenas para voltar a elas com fôlego suficiente para suportá-las até o
próximo momento em que o riso seja novamente permitido tal qual válvula de
escape. Este ceticismo pode ser notado principalmente na relação dos
indígenas das gerações mais novas face aos mais velhos, que os têm levado à
negação aos costumes, língua e tradições de seus povos em virtude do contato
com o não-índio e suas tecnologias, patente na fala de Lucinézio Peres Ribeiro,
comunidade Sabiá, TI São Marcos, para o Projeto Panton Piá:

[...] o que a gente vê hoje é que a tecnologia vai derrubar um pouco,


assim, um pouco da tradição indígena. Aqui na comunidade, uns
tempos atrás os alunos faziam dançar muito o parixara, de vez em
quando apresentavam fora, hoje não, hoje já pararam de dançar
parixara. A tradição já tá ficando pra trás, estão esquecendo. Então,
já assim da tecnologia, os alunos vão começar a fazer curso agora, a
gente vai fazer curso de informática. Antão vão com certeza abrir
outras ideias, vão ter outras ideias na frente e vão esquecer da
tradição indígena, hoje. (FIOROTTI, 2007)

Fala reiterada por Aristides Macuxi da mesma comunidade:


86

Entonces, é por aí que nós temos, que às vezes, muitas vezes nós
perdemos nossas tradições devido ao branco; perdemos aquela
nossa cultura e tal. Não interessa mais hoje, porque os jovens
nossos, não têm uma língua Macuxi pra ensinar àquelas crianças.
Hoje nós queremos pagar uma professora pra levantar nossas
crianças com aquela língua, que melhor de aprender é quando tá
começando a falar.

Apesar de todo ceticismo, Caetano Raposo apresenta uma outra forma


de lidar com o outro sem deixar a si:

Eu quero aprender, eu sou gente, eu sou gente, eu quero aprender.


Porque o branco tem, eu quero ter, também. Eu não quero ficar o
tempo todo ali como índio, no chão, no pó, não. Então, eu penso
diferente, eu quero que o meu povo aprenda que são índio, mas
ninguém não vai esquecer a nossa cultura nem tradições, ninguém
esquece, não. Nós somos índios, vamos tomar caxiri, vamos comer
damorida, ninguém esquece, não. Eu penso assim. [...] Hoje eu vejo,
agora diferente, todo ano o mundo muda e os brancos acompanha e
eu lá sem saber de nada? Pra passar fome, pra passar necessidade?
Não! Não quero não! Eu quero acompanhar. [...] Hoje tem vacina 11
horas, nós vamos descer pra tomar vacina, injeção no meio dos
brancos, fazendo aquilo ali. Então doutor, eu quero assim: índio,
índio, mas é gente, inteligente. Eu sou índio, mas gente inteligente,
nós somos. Quero viver assim, eu sou índio, ninguém tira não, minha
cara. Não tem pelo, não tem pelo, não tem nada. [...] É diferente, não
tem nada não. Eu sou índio, com o meu idioma eu falo mais do que
português. É prática, índio. Então, eu quero viver assim: índio, índio
civilizado. Eu sou civilizado, tenho o documento aí, tenho o
documento, eu voto como qualquer um brasileiro, eu sou brasileiro,
eu me entendo assim. Eu sou índio, mas eu sou brasileiro, brasileiro
nativo, roraimense nativo daqui. Eu gosto, eu gosto quando me
chamarem índio. Não me chamem de caboco, eu falo sempre pros
brancos, não me chama de caboco. Porque caboco entende, é filho
do branco com índia, é caboco. Agora com índio mesmo puro, é índio.
Pode me chamar de índio, aí eu me encho de orgulho aí, quando me
chamam de índio. Opa! Eu sou índio. Porque índio? Isso é que conta,
que conta, índio, conta, pronto. Tá dizendo que ele é índio. Então eu
sou é índio, não sou caboco não, eu sou índio, sou índio. Então é por
aí assim, começamos a escola da Raposa, hoje a Raposa tá aí
diferente, muitos índios já saíram ali da Raposa pra ensinar o povo
como professor. Que a primeira escola que chegou na Raposa,
ninguém queria. O Conselho indígena não queria a escola, não queria
política, não queria, não, nem documento. Seu Jaci, eu cheguei uma
vez quando eu era vereador lá no Gavião, eu cheguei lá, Jaci tinha
ido como ontem, ele tinha queimado os documentos do parente
tudinho [ênfase], era desse tamanho assim, aí me amostraram. “Não,
índio não precisa de documento, não. Documento do índio é isso
aqui, isso aqui, calcanhar tudo cheio de calo aí, tudo rachado, isso aí
é documento do índio. Índio não precisa, não, de documento”.
Mentira, rapaz, eu falei não, não, ele vai precisar, tá mentindo aí. Aí
como é que ele vai pro exterior, sem documento, hoje? Hoje precisa.
Hoje tá querendo colocar os filhos pra ser candidato a deputado
federal. Filho dele.
87

Em sua fala, Caetano Raposo deixa claro o desejo ao acesso a bens


materiais produzidos pelos não-índios, pelos "brancos"; aos serviços públicos
proporcionados pelo estado nacional; mas sem deixar de lado os bens
culturais, a língua e a tradição indígenas. Esse acesso, a partir da fala de
Caetano, retiraria os indígenas de condições consideradas não-civilizadas, de
fome e condições de vida precárias e principalmente de falta de
reconhecimento enquanto cidadão brasileiro. Nisso residiria o paradoxo ser-
índio e não-ser-índio sob a perspectiva de quem teve acesso aos dois lados
envolvidos na relação entre índios e não-índios. Reflete também sobre as
acusações de perda de identidade que sempre são feitas contra os indígenas
que buscam o acesso à sociedade nacional.
Essa perspectiva nos remonta a Fernando Ortiz e seu Contrapunteo
Cubano del Tabaco y el azúcar (1983), em que pode-se vislumbrar que as
relações estabelecidas entre culturas diferentes não acabariam na completa
assimilação de uma pela outra, mas na troca recíproca na qual nenhuma das
duas sai imune, a transculturação.

Entendemos que el vocablo transculturación expresa mejor las fases


del proceso transitivo de una cultura a outra, porque éste no consiste
solamente de adquirir una distinta cultura, que es lo que en rigor
indica la voz angloamericana acculturation, sino que el proceso
implica también la pérdida o desarraigo de una cultura precedente, lo
que pudiera decirse una parcial desculturación, y, además significa la
conseguiente creación de nuevos fenômenos culturales que pudieram
denominarse neoculturación. Al fin, como sostiene la escuela de
Malinowski, em todo abrazo de culturas sucede lo que em la cópula
genética de los indivíduos: la criatura siempre tiene algo de ambos
progenitores, pero también siempre es distinta de cada uno de los
dos. (1983, p. 90)

Sob o aspecto social das relações estabelecidas entre os próprios


indígenas podemos avaliar as considerações de Pierre Clastres em De que
riem os índios (2012). O texto traz dois mitos dos Chulupi, índios que vivem
ao sul do Chaco paraguaio. O primeiro tem como personagem principal um
velho xamã confuso e concupiscente que empreende uma expedição em busca
da alma do bisneto. O segundo traz a figura do tolo jaguar que também
empreende uma viagem cheia de imprevistos. Como afirma Clastres (2012, p.
160), “Esses dois mitos apresentam xamãs e jaguares como vítimas de sua
própria estupidez e de sua própria vaidade, vítimas que por isso merecem não
a compaixão, mas o riso”. Clastres também pontua que essas não são as
88

principais causas do riso provocado por xamã e jaguar quando analisa-se a


posição de ambos na relação vivida que mantêm com os índios, já que “longe
de serem personagens cômicas, ambos são ao contrário seres perigosos,
capazes de inspirar o medo, o respeito, o ódio, mas nunca a vontade de rir”
(idem). Em suma, de acordo com Clastres, os índios riem do que temem e
então o riso admite um caráter simbólico poderoso. Sendo impossível realizar
na esfera do real, é no plano narrativo que se dá cabo ao que se intenta: matar
o medo.

Trata-se pois, para os índios, de colocar em questão, de desmistificar


a seus próprios olhos o medo e o respeito que lhes inspiram jaguares
e xamãs. Esse questionamento pode operar-se de duas maneiras:
seja realmente, e mata-se então o xamã julgado muito perigoso ou o
jaguar encontrado na floresta; seja simbolicamente, pelo riso, e o mito
(desde então instrumento de desmistificação) inventa uma variedade
de xamãs e jaguares tais que se possa caçoar deles, já que são
despojados de seus atributos reais para serem transformados em
idiotas da aldeia (2012, p. 162).

O riso torna-se um equivalente da morte, o ridículo passa a ter um


potencial letal.

Vê-se aparecer aqui uma função por assim dizer catártica do mito: ele
libera em sua narrativa uma paixão dos índios, a obsessão secreta de
rir daquilo que se teme. Ele desvaloriza no plano da linguagem aquilo
que não seria possível na realidade e, revelando no riso um
equivalente da morte, ensina-nos que, entre os índios, o ridículo
mata. (CLASTRES, 2012, p. 163)

Clastres ainda adverte para o fato de que não raro existe a transmutação de
xamã em jaguar, uma vez que um dos dotes do xamã é a capacidade de
metamorfosear-se em animais, sendo um de seus preferidos o jaguar ou onça.
Betty Mindlin também aborda a relação metamórfica dos xamãs ou
pajés e onça em Couro dos espíritos (2001). De acordo com a autora, para os
Gavião-ikolen de Rondônia, além de ter por animal preferido de estimação, a
onça, qualquer onça no mato, a qualquer hora do dia é wãwã, o pajé. Contudo,
não é apenas o ataque que causa o pavor no encontro com a fera, mas
também a aparição dela

é o chamado do pajé para quem encontrou a onça virar wãwã


também, para aprender. São instantes: o pajé vem, veste o couro do
jaguar. Num piscar de olhos é gente outra vez, a onça se foi. Ficamos
com o medo maior, o caminho-obrigação: virar pajé, ser onça e outros
seres, conhecer os espíritos. (MINDIN, 2001, p. 75)
89

À concepção de que é costume dos xamãs transformarem-se em onça


soma-se o relato de Theodor Koch-Grünberg no seu diário de viagem:

Temos onças em quantidade suficiente na vizinhança. As serras


próximas lhes oferecem vários esconderijos. Agora é tempo de
acasalamento, por isso ficam ousadas e perigosas. No porto
encontramos fezes frescas durante o nosso banho matinal.
Em noites claras, entre 7 e 9 horas da noite e às 5 da manhã, uma
delas anda pela mata ribeirinha do riozinho e, em tons horripilantes,
expressa seus sentimentos apaixonados. Uma outra lhe responde do
monte Suhí. Por fim, nós nos acostumamos a esses passeios ao luar.
De certo modo, fazem parte de nossa solidão. Uma noite porém, a
coisa fica impossível. Estamos sentados confortavelmente,
conversando junto ao fogo, quando, de repente, uma delas urra “hu-
hu-hu “bem perto da casa. Agarro minha Winchester e saímos de
maneira furtiva. Schimdt segura Kaikuschí, que quer correr
corajosamente ao encontro de seu inimigo fidagal e xará, o que
provavelmente não lhe faria bem. A onça, pelo visto um senhor velho,
nem faz caso dele. Aproxima-se a uma distancia de dez passos e
rosna furiosa atrás de um algodoeiro à entrada da casa. Infelizmente,
está escuro como breu. No fim, a fera corre atrás da clareira e se
perde na floresta, uivando e rosnando aborrecida. [...]
Alguns dias depois, quando conto para Manduca nossa
experiência noturna, ele diz:
“Não era uma onça, era um xamã que queria buscar seu banco”.
Replico: “Por que ele não me disse? Eu teria levado o banco para
fora”.
Na casa há um escabelo grande em forma de onça, esculpido em
madeira grossa, como os bancos que os xamãs usam em suas curas
noturnas (KOCH-GRÜNBERG, p. 282-283.)

Já no terceiro volume de sua obra, dedicada a registros etnográficos


como cantos e instrumentos musicais, Koch- Grünberg reitera essa ideia ao
afirmar que

Los piaches están firmemente convencidos de que pueden


convertirse en jaguares con ponerse ‘el traje de jaguar’, ‘kaikusé’,
‘zamatale’. En esto ellos vuelven todo el cuerpo de modo que su
abdômen quede para arriba. La espalda queda hacia abajo como
jaguar y se vuelven hacia atrás.
Cuando los piaches están muy embriagados se convierten en
jaguares sin saberlo. Akuli contó que en una gran fiesta de baile en el
Roraima, él se había convertido en la misma casa del baile en un
jaguar y por certo, delante de los ojos de toda la gente, que huía y
trancaba la casa. También había subido a un poste y se había caído.
Cuando la gente se lo contó al día siguiente, él se había avergonzado
mucho.
Hay piaches malignos que al enemistarse con alguna persona se
convierten em jaguar, la espían en el caminho y la matan. (KOCH-
GRÜNBERG, PP 174, 175)

Partindo para estudos antropológicos, uma teoria pode revelar mais do


pensamento ameríndio, principalmente acerca de como esse pensamento
90

concebe o sujeito no mundo, cunhado de perspectivismo por Eduardo Viveiros


de Castro. De acordo com Viveiros de Castro

[...] os animais são gente, ou se veem como pessoas. Tal concepção


está quase sempre associada à ideia de que a forma manifesta de
cada espécie é um envoltório (uma “roupa”) a esconder uma forma
interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria
espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. (2011,
p. 351)

Contudo, nem todos animais estariam dentro do regime perspectivista.


Para Viveiros de Castro o perspectivismo parece incidir principalmente sobre
predadores e carniceiros tais como jaguar, sucuri, urubu ou harpia; e sobre
presas tipicamente humanas, como pecari, macacos, peixes, veados e antas. E
cada espécie veria a si mesmo como gente e as demais enquanto predadores
ou presas. Assim, não seria difícil localizar as narrativas de Caetano Raposo
dentro da teoria perspectivista, já que conta com personagens tanto
predadores como a Onça e o Jacaré-açu; como presas, o próprio Jabuti,
macacos, Anta e Veado. Além disso, dentro do perspectivismo animais falarem
(e rirem) não seria fato extraordinário, como afirma o antropólogo

Já para os índios, eu diria, os leões – no caso, os jaguares – não


apenas podem falar, como somos perfeitamente capazes de entender
o que eles dizem; o que eles querem dizer com isso, entretanto, é
outra história. Mesmas representações, outros objetos; sentido único,
referencias múltiplas. (VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p. 387)

Ou seja, apenas aqueles que possuem a capacidade de adotar os


pontos de vista e mesmo a forma corporal das diversas subjetividades dentro
do perspectivismo seriam capazes de mediar o diálogo entre as espécies.
Esses seriam os xamãs. Ou os narradores, embora com objetivos diferentes.
Aqueles de administrar as relações entre animais e humanos, estes entre
humanos e humanos. A partir de então, o riso do Jabuti de Caetano após a
derrota de seus oponentes poderia ser interpretado como uma espécie de
antropofagia em que não há a ingestão, literal, do outro, até pelo contrário. O
riso assemelha-se mais a um regurgitamento libertador frente ao medo.
Contudo, a cada morte da Onça é conferida ao Jabuti ainda mais ligeireza,
esperteza. O que nos conduz a outro pensamento desenvolvido por Viveiros de
Castro sobre a tomada do ponto de vista do Outro, desta vez um Outro inimigo.
91

Em outro artigo, "O medo dos Outros" (2011) rebatendo a pergunta de


Pierre Clastres “De que riem os índios?”, Viveiros de Castro tenta responder o
que temem os índios. Segundo o antropólogo, em consonância com Clastres,
os índios temem exatamente aquilo de que riem: jaguares, xamãs, brancos e
espíritos, acrescentando que são temidos já que são “seres definidos por sua
radical alteridade. E eles têm medo porque a alteridade é um objeto de desejo
igualmente radical por parte do Eu” (2011, p. 889). Contudo, esse medo não
implica na exclusão ou desaparição do outro, mas justamente no seu contrário
na:

inclusão ou a incorporação, do outro ou pelo outro (pelo também no


sentido de “por intermédio do”), como forma de perpetuação do devir-
outro que é o processo do desejo nas socialidades amazônicas. Sem
o influxo perigoso das forças e das formas que povoam o exterior do
socius, este fatalmente falece, por carência de diferença. (2011, p.
889)

Conforme Viveiros de Castro, ainda que com as transformações sofridas ao


longo do tempo, a pessoalidade ou personitude do perspectivismo não se
extinguiram, mas foram colocadas em estado de não-aparência, isto é, de
latência ou potencialidade” (2011, p. 894).
Num encontro como o do Jabuti e da Onça, nas narrativas de Caetano
Raposo, temos o encontro entre predador e presa, cada um se julgando gente.
Entretanto para o Jabuti ver a Onça e ser visto por ela, indica uma coisa: ser
comido por ela. De alguém antes do encontro, voltaria a ser ninguém depois do
encontro, retornaria ao nada, à inexistência. Tomando emprestado o
pensamento de Viveiros de Castro, de um “eu” sujeito, o Jabuti passaria a um
objeto na perspectiva da Onça. Isso revela o que Viveiros de Castro define
como a “‘guerra dos mundos’ que constitui o pano de fundo agonístico da
cosmopraxis indígena” (2011, p. 903). Adiante, Viveiros de Castro vai
relacionar a figura da Onça ao Estado, levando em consideração o fato de que
ela é a antítese letal do parentesco, escolhida pela América Indígena como
símbolo imperial. Voltando a guerra de mundos, o grande desafio é transformar
o Outro em parente sem deixar que esse Outro elimine sua subjetividade, nas
palavras do autor:
92

Para não ser comido pelo jaguar, é preciso saber como assumir o
ponto de vista dele enquanto ponto de vista de Si. Este é o cerne do
problema: como se deixar investir de alteridade sem que isto se torne
um germe de transcendência, uma base de poder, um símbolo do
Estado, ou seja, o símbolo de um símbolo. (2011, p. 907)

Assim sempre que o Jabuti de Caetano Raposo derrota a Onça é pela


apropriação do ponto de vista da Onça e de sua intencionalidade; e através
disso consegue salvar a si e transformar-se mais poderoso que a Onça, não
somente ainda como aquele que a venceu, mas o fez sem recorrer aos
mesmos recursos sanguinários que ela. Houve a incorporação do ponto de
vista inimigo não pela objetificação do outro, nos termos do antropólogo, mas
pela hiperssubjetificação do outro, numa completa identificação com o outro.
Portanto, a relação entre Jabuti e Onça revela que o Eu e o Outro são
realidades particulares entre si, em que o Outro assim como eu também pensa
e por isso não deve ser subestimado.
O riso do Jabuti nas narrativas seria a culminância da destituição do
poder da Onça, seja ela a predadora e seu poder advindo da força física, seja o
pajé transmutado e seu poder de comunicação entre as diversas formas de
existência na terra, incluindo os espíritos e seu potencial malfazejo. Destituição
essa conseguida pela astúcia. O Jabuti, enquanto sujeito, avalia o outro, a
Onça, em equivalência não de forças, mas de sujeitos pensantes. O riso nesse
processo é uma instância intelectual instaurada a partir da estrutura
perspectivista comum aos povos ameríndios. Caetano Raposo pertence a essa
estrutura. A Onça e o Jabuti também.

A performance
Em A Necessidade da Arte (1971), Ernst Fischer vai discorrendo ao
longo do segundo capítulo de sua obra sobre as origens da arte e define a
mão, como o instrumento que transformou o homem propriamente em homem,
como ser distinto da natureza. Segundo o autor, a mão é uma das principais
ferramentas encontradas pelo homem na transformação da natureza, na
captura da realidade biossocial para o mundo da cultura:

O ser pré-humano que se desenvolveu e se tornou humano só foi


capaz de tal desenvolvimento porque possuía um órgão especial, a
mão, com a qual podia apanhar e segurar objetos. A mão é o órgão
essencial da cultura, o iniciador da humanização. (FISCHER, 1971,
93

p.22).

É a mão que inicia toda uma transformação na natureza do trabalho


catapultando a condição humana a estágios de desenvolvimento intelectual
mais profundo, já que “Somente no trabalho e através do trabalho é que seres
vivos passam a ter muito que dizer uns aos outros. A linguagem surgiu
juntamente com os instrumentos.” (FISCHER, 1971, p. 30). Assim, a linguagem
surge para retirar o homem do mundo natural e inscrevê-lo no mundo da
cultura: “O homem tornando-se homem juntamente com o trabalho e a
linguagem, de modo que nem o homem, por seu lado, nem o trabalho ou a
linguagem, por sua vez vieram primeiro”. (FISCHER, 1971, P. 34). Desta
imbricada tessitura em que trabalho, gesto e linguagem se entrelaçam, nasce a
capacidade de narrar.
Lévi-Strauss será mais incisivo e específico. Dirá que é a partir do
estabelecimento da linguagem articulada que surgeria a cultura. A partir da
pergunta de Charbonnier, sobre qual seria o signo representativo da cultura,
Strauss diz:

Durante muito tempo, pensou-se, e muitos etnólogos talvez ainda


pensem, que é a presença de objetos manufaturados. Definimos o
homem como homo faber, fabricador de utensílios, vendo nesse
caráter a marca da cultura. Eu admito que não concordo, e que um de
meus objetivos essenciais sempre foi colocar a linha de demarcação
entre cultura e natureza, não nos utensílios, equipamentos, mas na
linguagem articulada. É aqui verdadeiramente que se dá o salto.
Suponha que estejamos em um planeta desconhecido, de seres vivos
que fabricam utensílios. Nós não teríamos certeza sobre o nível em
que estariam na ordem da humanidade. Na verdade, já encontramos
no nosso planeta alguns animais capazes, até certo ponto, de fabricar
utensílios ou esboçar utensílios. Contudo, nós não acreditamos que
eles tenham completado a passagem da natureza à cultura. Mas
imagine que nós ataquemos esses seres vivos que possuem uma
linguagem diferente da nossa, mas que seria traduzível para outra
linguagem, portanto, seres com os quais nós poderíamos nos
comunicar. (1989, p. 137)

Até o momento a linguagem articulada é uma capacidade estritamente


humana. E por meio dessa capacidade, tudo indica, o homem vem criando
narrativas a milhares de anos. Por trás de uma narrativa oral, obrigatoriamente
há alguém que conta, que narra. Há o corpo de quem narra. Uma narrativa só é
capaz de ser transmitida de forma eficiente quando o narrador, que num
primeiro momento também foi ouvinte, for capaz de internalizar, vivenciar
94

internamente e fazer eco dessa narrativa a partir de seus sentimentos. É


quando a voz encontra ressonância não apenas em outra voz, mas no peito e
mente dos sujeitos envolvidos no momento da enunciação e audição narrativa,
como aponta Benjamin

A alma, o olho e a mão estão assim inscritos num mesmo contexto.


Interagindo, eles definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser
familiar. O papel da mão no trabalho produtivo tornou-se mais
modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora
vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo
algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão
intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência
do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito.)
(BENJAMIN, 1987, p. 220-221)

O estudioso suíço Paul Zumhtor nos fala que “performance é uma


realização poética plena: as palavras nela são tomadas num conjunto gestual,
sonoro, circunstancial tão corrente (em princípio) que, mesmo se distinguem
mal palavras e frases, esse conjunto como tal faz sentido”. (ZUMTHOR, 2005,
p. 87). A palavra performance, ainda segundo Zumthor (2007, p. 29-30), tem
sido empregada mais ostensivamente há muito pouco tempo, a partir dos anos
30 e 40 do século XX, emprestada do vocabulário da dramaturgia. Se
livremente decompormos a palavra, se nos aparece bem diante dos olhos a
que se destina. Per-formance. Pela forma, pela formação. É justamente pela
formação do gesto, verbal ou físico, que também forma-se o significado, pela
forma humana do performer que os significados vão se construindo e
atualizando. Na performance palavra e gesto podem se aliar ou se contradizer,
mas qualquer uma das possibilidades irão criar na percepção do ouvinte-
espectador uma excitação sensorial que dificilmente serão esquecidas, o que
reafirma o papel artístico do narrador, já que através da transgressão aos
limites físicos entre os sujeitos alcançada no momento da enunciação-audição
performática ocorre um processo de sensibilização do outro e, nesse aspecto,
como veremos mais adiante, Caetano Raposo é mestre.
Nesta tessitura da qual voz e gesto se emaranham, também se fiam as
discussões entre texto oral e texto escrito. Zumthor (1983) perscrutando as
origens do privilegiamento das textualidades escritas face às orais identifica na
Idade Média, entre os séculos XIII e XV, a emergência da transição da arte
vocal para a literária. Alcoforado dirá que “No processo de criação desse novo
95

universo literário [o escrito canônico], apresentado como único e superior, os


intelectuais associaram a idéia de poesia com modalidade escrita, resultando
disso a exclusão da expressão oral” (2008, p. 111). Em seguida, o surgimento
da burguesia consagrou a forma escrita enquanto expressão erudita e
principalmente o romance. O romance trouxe consigo uma espécie de acordo
tácito entre autor e leitor. Ele passa a ser uma espécie de espelho em tintas no
qual o burguês vê-se refletido e do qual o romancista pode viver à sombra do
poder.

A partir do século XVIII e, sobretudo, do século XIX, a leitura ganhou


lugar representativo. Com a Revolução Francesa, uma nova
concepção de cultura se expande na sociedade e há a rejeição do
que é popular e a supervalorização do erudito e do escrito. O
Romantismo, naquele período, ofereceu à sociedade o que ela
desejava ler e o espaço do que se considerava popular tornou-se
cada vez menor. (BERGAMINI, 2011, p. 29).

Cria-se um desvão entre erudito e popular e desta forma, a arte da


palavra falada descai para um vestígio rudimentar da forma mais elevada de
expressão humana, para o que se considera popular. Em Culturas híbridas:
estratégias para entrar e sair da modernidade (2003), Néstor García
Canclíni dedica o quinto capítulo de sua obra ao que descreve como "A
encenação do popular" e denuncia: “O popular costuma a ser associado ao
pré-moderno e ao subsidiário” (2003, p. 205), resultante de um encandeamento
de dicotomias maniqueístas expressas de forma em que

moderno = culto = hegemônico


tradicional = popular = subalterno

Desta forma, as culturas cultivadas pela tradição oral, como as


indígenas, estariam pelas oposições, relegadas aos elementos mais
desprestigiados. Seguindo a problematização entre erudito e popular, Canclíni
analisa a secção entre arte e artesanato. Como já havia indicado Walter
Benjamin

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesão – no


campo, no mar e na cidade – , é ela própria, num certo sentido, uma
forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em
transmitir o “puro em si” da coisa narrada, como uma informação ou
96

um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em


seguida retirá-la dele. Assim, imprime-se na narrativa a marca do
narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (1987, pp.205)

Sendo comunicação artesanal as narrativas estariam em vias de


extinção, já que o próprio meio artesão estariam em vias de extinção, dando
lugar cada vez mais às atividades de caráter especializado e relacionadas às
modernas tecnologias. Entretanto, contrariando o prognóstico de Walter
Benjamin, apesar do correr do tempo ainda há narradores, como Caetano
Raposo embora a capacidade de ouvir, muito mais do que a de narrar corra tão
velozmente para a extinção.
Ao iniciar o ciclo de oito pandoni referentes ao Jabuti, podemos perceber
o dinamismo da palavra falada logo nas primeiras palavras da primeira
narrativa, através da aliteração da consoante “n” e do fonema [k], da
assonância da vogal “o” e mesmo a paranomásia das terminações “ou” (andou,
encontrou) e “co” (macaco, comendo). Outros usos denotam a oralidade
quando elementos das orações exercem funções sintáticas diferentes das que
normativamente exercem como o advérbio “aí”, a conjunção adversativa “mas”,
além da repetição da conjunção “que” e da redução das palavras “está” para
“tá” e “para” para "pra" e, nas pandoni seguintes, na utilização do pronome “tu”
com a concordância realizada enquanto “você”.
Em outras narrativas, seu Raposo emprega recursos estilísticos que
particularizam suas performances. Uma delas é o da supressão de letras do
meio de palavras como da palavra sonolento – sonento, ou mesmo a ênfase
pelo aumentativo de Açu-Açuzão, na segunda narrativa fabular:

CR: [...] Isso aí, foi embora, andou, andou. Deu sede e aí encontrou
poço grande, encostou lá pra beber água. Quando tava bebendo
água, lá vem açu. Açu pegou ele. Disse pro Açu: “Não, não vai me
comer agora, não. Estou molhado, estou venenoso, quando eu fico
molhado eu sou venenoso. Cuidado!”
Devair Fiorotti (DF): O Jabuti falou?
CR: Éh, o Jabuti falando aí pro...
DF: Pra quem?
CR: Pro Jacaré-açu.
DF: Ah, o Jacaré açu.
CR: Então vamos esperar se enxugar. Aí saíram pro seco, embaixo
de uma árvore aí. Aí açuzão sonento, também. Dormiu. Acordava,
perguntava: “E aí? Tá enxuto?” “Não, vou começar a me enxugar
agora. Mas eu tô perigoso, se você me comer, tu morre.” Aí ficou aí.
Tinha um pedaço de pau assim, jabuti pegou, levantou, tá! em cima
do Jacaré e caiu logo. Aí Jacaré acordou logo. “Rapaz cê queria me
matar, é?” “Não, isso caiu lá de cima, também quase que me matava,
97

acertando minha mão.” Ele contou: “Se me acertasse aqui, eu ia


morrer.” Jabuti olhando aí. Jabuti também disse: “Se me acertasse
aqui também ia me matar, mas me errou.” Tá bom. Sono de novo,
jacarezão. “Agora eu sei onde é que é a morte dele.” Pegou o pau e
em cima do coisa. “Ele falou que era aqui...” Tá! Tá! Jabuti matou ele.
Matou Jacaré.

Desta forma, além de enriquecer e dinamizar a performance, deixa


transparecer a indolência do jacaré-açu. Sofistica os recursos vocais do qual
abre mão ao longo das narrativas, principalmente quanto à mudança dos
turnos de voz. Para que a empatia do público seja ainda maior, utiliza do
expediente das alternâncias entre os tons de voz:

Essa voz não é mais a mera voz que pronuncia: ela configura o
inacessível; e cada uma de suas inflexões, de suas variações de
tonalidade, de timbre, de altura – seria preciso forjar a palavra
pedante vocema? – combina-se e encadeia-se como uma
prosopopeia do vivido. Através dessa presença, o ouvinte descobre-
se: age e reage no âmago de um mundo de imagens, subitamente
autônomas, que se dirigem todas a ele. (ZUMTHOR, 1993, p. 229)

Na panton em que se depara com o Jacaré-açu, atribui um tom


anasalado quando o turno de fala é tomado pelo Jabuti e um grave quando a
tomada de turno é da Onça, essas mudanças podem ser ouvidas no CD
anexo. Os tons de voz também se alternam quando a intenção empregada na
fala é, por exemplo, de uma dissimulada advertência quanto ao seu suposto
veneno: “Não, não vai me comer agora, não. Estou molhado, estou
venenoooso, quando eu fico molhado eu sou venenoooso. Cuidado!” A tônica
da palavra “venenoso” é ressaltada e reiterada nas duas vezes em que é dita,
além de arrematada pela interjeição de “cuidado”, o que dissuade o Jacaré de
seu propósito fatal e demonstra o poder de persuasão do malandro quelônio
que ganha tempo com o estratagema. Aliada aos recursos das alternâncias de
tons de voz, a utilização de recursos estilísticos dão o tom bem-humorado às
narrativas.
O riso é o ponto máximo da performance de seu Caetano. Emitido num
tom gutural, o riso atribuído ao Jabuti, contagia o público que o faz seu próprio
riso. O som do riso do Jabuti não possui, pelos menos não se foi possível fazê-
lo, equivalente na linguagem escrita que o permita descrever, como aludido
anteriormente, aproximando-se mais de um som produzido por raspagem,
como no reco-reco, casaca, ou fricção, que de fato pela voz humana. Esse riso
98

aproxima-se do som emitido pelo macho do jabuti durante a cópula. Essa que
pode ser chamada de uma desumanização vocal é também o que gera uma
inusitada sensação de curiosidade por parte do ouvinte, uma espécie de
embaralhamento sensorial que fustiga ainda mais o riso do público. Esse riso,
ou parecido a ele, nenhuma das narrativas em que figuram quelônios como
protagonistas traz. Pelo singular riso do Jabuti, Caetano Raposo torna sua
performance única.
99

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Escrever, pelo menos aos desavisados, parece ser entrar numa guerra
de trincheiras na qual se está sempre em desvantagem com relação ao arsenal
com que se está munido. Esse trabalho poderia ser uma evidência disso e da
paradoxal situação a que se propôs vir à luz: como não transformar em ataúde
de tintas negras cujo sepultamento é o branco do papel, aquilo que nasce,
cresce e se perpetua pela voz? Aquilo que se torna timbre, intensidade, gesto?
Aquilo que é história, cultura? Como tentar capturar aquilo que a princípio
parecia evanescente, sempremovente, antigo e novo ao mesmo tempo como
são as narrativas surgidas da tradição oral dos povos indígenas, do Macuxi, do
qual seu Caetano faz parte? Pronto, aí estaria o campo minado bem à nossa
frente. Mas nem todos são assim tão desavisados e são justamente esses que
muito mais experientes na lida com o ofício da palavra nos apontam que talvez
escrever não seja a beligerância toda que havíamos imaginado, mas
justamente seu oposto: seja instrumento de conciliação.
Embora reconheçamos que esse trabalho em seu curto espaço de
leitura nada mais seja que uma introdução ao mundo de narrativas como as de
seu Caetano Raposo, dá indícios da complexidade que possuem porque, antes
de tudo e depois de mais nada, possuem um narrador vivo, ativo e criativo que
através de seu talento pessoal (re)cria não apenas o Jabuti, mas as próprias
narrativas em dimensões estéticas, performáticas e literárias.
No primeiro capítulo palmilhando o rastro dos quelônios pelas mais
distantes geografias e culturas percebemos que eles estabeleceram um diálogo
entre si, enfileirando-se e apontando para o fato de que a capacidade de narrar
é uma das formas encontradas pelo homem para relacionar-se com outros
homens e mesmo com a natureza, de que sua relação estabelecida com o
mundo antes de qualquer coisa é narrativa.
O segundo capítulo nos traz a discussão sobre a relação entre essas
narrativas, em especial as de Caetano Raposo, e a literatura, principalmente
através da dificuldade de enquadrá-las em gêneros tanto literários como
discursivos, não apenas do ponto de vista formal e também por ele, mas
principalmente do ponto de vista cultural. A perspectiva de estudiosos como
Dell Hymes, Dennis Tedlock e Barre Toelke nos ajudam a compreender
100

possibilidades de produção intelectual indígena que dispensam o livro como


suporte fundamental para difusão e manutenção dessa produção. Isso nos
instiga a pensar para além de uma etnopoesia, a pensar na possibilidade de
uma etnopoiesis. Dela, se pode melhor compreender a concepção de panton
pelos povos pemonguianos, enquanto forma de produção que abrangeria
narrativa, discurso e performance. Já a proximidade com o gênero fábula e sua
retomada enquanto discurso por Alceu Dias Lima e Maria Celeste Consolin
Dezotti e a análise das narrativas por essa perspectiva nos fizeram atentar em
especial à presença do vocábulo “compadre” nas pantoni de seu Caetano. Isso
nos indica que o contato entre indígenas e não-indígenas já se dá há séculos e
que, principalmente, os primeiros não saíram incólumes desse contato.
Já no terceiro capítulo, embora a sensação de missão cumprida esteja
longe de passar ao final dessa empreitada, a sensação é de que este trabalho
não se traiu ao longo do percurso, já que foi assumindo as narrativas enquanto
Literatura e nada menos que isso é que se desenvolve. Há uma grata
convicção de que enquanto resultado do espírito e da capacidade humanos
ela, a Literatura ou Panton, sob o nome a qual as mais diversas línguas e
culturas a batizam, não se nega àqueles que por ela são animados.
Debruçando-se sobre o riso, vimos que ele é marca distintiva e peculiariza a
ação de Caetano Raposo perante outras narrativas. O riso do Jabuti de
Caetano nos aproxima não apenas do ente literário, mas da construção social,
histórica e cultural tornada à luz através das narrativas do Jabuti.
Esta aproximação só é possível pela (re)criação e mediação de Caetano
Raposo realizada através da voz. Em suma a voz, no âmbito da oralidade, é o
que proporciona que pessoas se aproximem. Como bem afirma Paul Zumthor
(1997), a voz ultrapassaria a palavra, entendida pelo estudioso como
linguagem vocalizada, realização fônica na emissão da voz, coisa que se diz
per si enquanto se diz e através dela : “o som vocalizado vai de interior a
interior e liga, sem outra mediação, duas existências” (ZUMTHOR, 1997, p. 15).
Embora tragam as narrativas a figura de um animal, e talvez por isso mesmo,
sua risada aproxima humanidades. Humanidades essas aparentemente cada
vez mais fragmentárias e solúveis naquilo que tanto se tem discutido enquanto
Pós-Modernidade, já que os contatos entre os sujeitos seriam tão breves
quanto incapazes de criar laços afetivos ou sociais mais profundos e densos.
101

Brevidade acaba pondo em questão até mesmo o que é propriamente o


humano, já que todas as paisagens culturais (HALL, 2000) lá fora mudaram,
desestabilizando as identidades.
Nisso que se denomina Pós-modernidade, a percepção, o empenho
delongado entre dois seres através da troca corpórea operacionalizada pela
voz, pelos gestos, pela sensibilidade não estaria no estatuto da pós-
modernidade, o que acaba por constrangê-la, sobremaneira. Vive-se na Pós-
Modernidade o paradoxo do corpo. Tem-se sua fetichização, sua
hiperexposição, a erotização, pode-se tocar o corpo mas, no geral, ele todo é
esvaziado da capacidade do sentir, de sensibilização. Em suma, pode-se tocar
os corpos sem chegar a seus corações. Os sentidos são bombardeados,
levados ao transbordamento. Pode-se tocar o corpo e ignorar solenemente
suas percepções e sensibilidades.
Neste cenário, a grande transgressão realizada pelas artes como a
performance e a literatura é a de reabilitar a capacidade humana de sensibilizar
o outro e reumanizá-lo, recorporificá-lo, tornar o corpo o meio através do qual a
sensorialidade é o vetor para a afetividade e para o encantamento. Lidar com a
performance é sempre deparar-se com aquilo que evanesce e nos foge, uma
vez que cada encenação é única e irrepetível, embora o repertório narrativo
seja o mesmo.
102

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