RESUMO
1 INTRODUÇÃO E DESENVOLVIMENTO
O inconsciente coletivo, como escreve Gambini (1998, p. 18), é algo que não
se sabe, não se conhece, é como “um lençol de água subterrâneo, é uma camada
1
Graduação do Curso de História da Universidade Sagrado Coração – Bauru – SP.
2
Prof. Dr. da Universidade Sagrado Coração – Bauru – SP.
80
não-visível, mas profunda, que está lá”. Chega a ser trágico pensar em algo como o
lençol freático, um aqüífero Guarani invisível, parte do 1% de água doce, dos 70%
de água existente no planeta (97% estão nos mares e oceanos e 2% nas calotas de
gelo nos pólos Sul e Norte), disponível aos seres humanos inclusive aos índios,
invisível aos nossos olhos e, consequentemente, inacessível para matar nossa sede.
“É preciso perfurar um poço artesiano para começar a absorver aquela água e
permitir que ela suba até a superfície”, reforça Gambini (1998, p.18). Isso é bom,
porque pode nos levar a redescobrir um outro Brasil e nossa ancestralidade indígena
– dar visibilidade ao indígena que está entre nós, presente em nossa história,
invisível aos nossos olhos.
Precisamos enxergar o indígena como ele é e não com aquela imagem
reservada em nosso inconsciente coletivo, herdadas de nossos antepassados com
toda a carga de preconceitos arraigados em nossa sociedade – uma espécie de
invisibilidade imposta. Uma projeção sobre o desconhecido, pois pretendemos
explicar, em relação aos professores poderemos pretender ensinar, algo que não
compreendemos muito bem – o índio. Assim, esse espaço “desconhecido e vazio”
acaba “cheio de projeções psicológicas”, como nos informa Jung ([19--] apud
GAMBINI, 1998, p.37), “o que se vê no escuro, ou acredita poder ver, é
principalmente um dado de seu próprio inconsciente que aí projeta”. E é exatamente
nesse ponto que observamos o quanto somos vazios de conhecimento sobre os
índios e toda sua contribuição na formação de nossa brasilidade.
O inconsciente coletivo, segundo Carl Gustav Jung, não deve sua existência
a experiências pessoais; ele não é adquirido individualmente. É um
reservatório de imagens latentes, chamadas de arquétipos ou imagens
primordiais, que cada pessoa herda de seus ancestrais. A pessoa não se
lembra das imagens de forma consciente, porém, herda uma predisposição
para reagir ao mundo da forma que seus ancestrais faziam [...] a teoria
estabelece que o ser humano nasce com muitas predisposições para
pensar, entender e agir de certas formas.(GAMBINI, 1998, p.37)
Tornar visível aquele que representa a primeira matriz étnica nacional parece
ser fundamental para a nossa própria compreensão. Trazer à memória as
lembranças do extermínio indígena, que não foi pequeno, como escreve o saudoso
professor Darcy Ribeiro: “ao longo das praias brasileiras de 1500” representada
pelos grupos do tronco lingüístico Tupi, que “somavam, talvez, 1 milhão de índios,
divididos em dezenas de grupos tribais [...] Não era pouca gente, porque Portugal
àquela época teria a mesma população ou pouco mais” (RIBEIRO, 1995, p. 31).
Eles representavam, no inicio do século XVI, quando os portugueses aqui
chegaram, uma população estimada em cerca de 6 a 12 milhões de índios, que
falavam, provavelmente, o dobro das línguas indígenas conhecidas atualmente, que
perfazem cerca de 180. Esse fato se deve a campanha de extermínio de povos que
não se submeteram a escravidão promovida pelos europeus, pelas epidemias de
doenças contagiosas do Velho Mundo, pela redução dos territórios de caça, plantio e
coleta, que determinaram uma violenta redução da população indígena já no
primeiro século de colonização. Além de todo o processo de violência física que foi
tão grande que “em finais do século XVI, a costa atlântica se transformou em um
deserto humano”, como descreve Fernandes (1993, p.26), o conseqüente
desaparecimento das línguas indígenas acabaram por fechar “a única porta de
82
acesso ao conhecimento pleno das múltiplas visões de mundo dos povos indígenas
brasileiros (estupidamente extinto pelos europeus) – com todo o complexo cultural,
social e emocional a elas associado – que têm importância crítica para o
crescimento humano”, como afirma Rodrigues (1986, p. 27), pois todo esse
conhecimento foi forjado em “completa independência histórica em relação às
tradições culturais asiáticas e européias, que caracterizam a civilização ocidental”.
Ainda hoje, nas aldeias, a transferência do saber transmitido na língua
materna, ocorre através de classes por idades que se acentuam na puberdade
quando, em alguns grupos, os jovens permanecem em reclusão numa espécie de
“oficina do saber” e o todo vivenciado pelo grupo lhes é passado de forma gradual,
harmoniosa e constante.
Fazendo um paralelo à “escola indígena”, creio que já estamos na idade de
entender melhor essa nossa matriz étnica, visível no inconsciente coletivo brasileiro
e invisível na construção de nossa brasilidade, aproveitando os momentos de
reclusão e reflexão na academia – nossa “oficina do saber”, de modo que as
Licenciaturas possam repensar conceitos como: civilização, progresso,
modernidade, cultura, não silenciando a participação indígena, que reflete sobre os
mesmo conceitos a partir de sua visão de mundo.
Não apenas “to know” (saber/conhecer), mas, fundamentalmente, procurar
compreender a alma indígena presente em nossa brasilidade, as “vitórias-régias,
borboletas, canto dos pássaros”; resgatar essa alma indígena que ainda não foi
assimilada e permitir que ela represente o “nosso grande desafio humano e
histórico” (GAMBINI, 1998, p.25), neste século XXI. O desafio de produzir material
didático e/ou utilizá-lo, resgatando, nas salas de aula, o índio como ator social e
intérprete constante de sua história, inserida na história do Brasil. O índio não mais
como um papel em branco onde escrevemos nossas verdades, mas como
“partícipes originais do processo de construção social, cultural e ecológica do
continente americano”, como afirma o antropólogo Heringer Filho (1993).
É nesse contexto de invisibilidade consciente em relação aos povos indígenas
no Brasil que não podemos apenas nos preocupar com as “verdades históricas”,
mas buscar o sentido do Brasil, como Darcy Ribeiro escreve e não ter medo de
passar além: “Quem quere passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor”,
pois “Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena” nos versos de Fernando Pessoa.
83
inocência”, descreveu Pero Vaz de Caminha na primeira carta aos reis de Portugal,
em 1500, maravilhado com o que via.
“[...] Não são maiores nem mais gordos que os europeus; são, porém mais
fortes, mais robustos, mais entroncados, mais bem dispostos e menos sujeitos a
moléstias, havendo entre eles muito pouco coxos, disformes, aleijados e doentios
[...]”, afirmou o cronista do século XVI, Jean de Léry, em sua viagem ao Brasil.
“Homens sem fé, sem lei e sem rei”, julgaram os Jesuítas.
“Os índios do Brasil não são um povo: são muitos povos, diferentes de nós e
diferentes entre si [...] E distinguem-se também de nós e entre si por falarem
diferentes línguas”, na visão de Rodrigues (1986, p. 17).
Darcy Ribeiro (1995) apresenta essa parcialidade do povo brasileiro da
seguinte forma: “[...] indígena é aquela parcela da população que apresenta
problemas de inadaptação à sociedade brasileira, motivados pela conservação de
costumes, hábitos ou meras lealdades que a vinculam a uma tradição pré-
colombiana”.
Finalmente, quero resgatar um conceito que me é muito caro, pois foi
concebido por um querido professor, que acabou se tornando um amigo fraterno,
“um irmão por parte dos índios” como ele costumava falar. Já falecido, o antropólogo
“Xará” – Ezequias Heringer Filho (1993, p. 15), ousou apresentar os índios como
sendo “pessoas que formam sociedades que se distinguem e são distinguidas como
partícipes originais do processo de construção social, cultural e ecológica do
continente americano. São os primeiros humanizadores da América”
Esses primeiros humanizadores da América, na atualidade, somam 345 mil
habitando terras indígenas e 50 mil fora das terras indígenas; formam 227 povos
(sociedades) indígenas, sendo que existem no país 53 grupos indígenas sem
contato (chamados autônomos); falam 180 línguas e estão distribuídos em 573
Áreas Indígenas – 95,8 milhões de hectares, que equivale a 11% do território
nacional (BRASIL, [199-?])
Kaingang, fala sobre o preconceito: “Me parece que o branco ainda tem dentro de si,
ele já traz consigo do próprio berço o preconceito, que é muito forte, eu acho que o
preconceito está acima de tudo, então isso me assusta muito”. Respeito passa,
fundamentalmente, pela compreensão desse Outro brasileiro – o índio, afastando
todo o tipo de preconceito, principalmente aquele que está lá no fundo, dentro de
nós, usando a expressão do líder kaingang, em nosso inconsciente coletivo.
A Revista Veja publicou duas reportagens que fazem referência aos índios e
que podem nos ajudar a compreender essa visibilidade indígena no inconsciente
coletivo e a invisibilidade indígena presente na consciência do povo brasileiro. A
primeira reportagem foi publicada em 10 de junho de 1992, durante o Fórum Global,
evento paralelo a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento – ECO 92, realizada no Rio de Janeiro e que reuniu 12.000
militantes de ONGs do mundo todo, trazia como título a seguinte frase: “A explosão
do instinto selvagem – Paiakan, cacique-símbolo da pureza ecológica, estupra e
tortura adolescente”. A segunda reportagem é de 12 de abril de 2000, ano das
comemorações dos 500 anos de Brasil, e traz como título: “No papel de mocinho –
Brasileiros acham que os índios são bons e protegem a natureza. As coisas ruins
aprenderam com os brancos”. Nas duas reportagens podemos observar expressões
que de certa forma se repetem: “pureza ecológica” com “protegem a natureza” e
“estupra e tortura adolescente” com “coisas ruins aprenderam com os brancos”. Em
1992, ano da ECO 92, o mundo estava voltado para as questões de proteção ao
meio ambiente (desenvolvimento a parte), o cacique Kaiapó, Paulinho Paiakan,
detentor do Prêmio Global 500 da ONU e do Diploma da Sociedade por um Mundo
Melhor de Washington, condecorações cobiçadas por qualquer ecologista de
qualquer parte do mundo, seria uma das estrelas do encontro das ONGs no aterro
do Flamengo e acabou sendo manchete de um crime brutal: “A explosão do instinto
selvagem”, uma volta aos primeiros anos de Brasil com os Tupinambás realizando
rituais antropofágicos, horrorizando Hans Staden, um alemão que esteve em terras
brasileiras no século XVI. Já em 2000, nas comemorações dos 500 anos do
“achamento” do Brasil, lembranças de Pero Vaz de Caminha “sobre a graça e a boa
índole dos habitantes da terra recém-descoberta”, como cita a reportagem, são
recordadas, um cenário que permite liberarmos nossa imagem do inconsciente – o
bom selvagem. São momentos históricos diferentes e a revista se aproveita disso
para publicar essas matérias, mas é preciso que aproveitemos para refletir um pouco
87
sobre a questão inicial desse artigo, isto é, por que a visibilidade sobre os índios
presente em nosso inconsciente coletivo (arquétipos) torna-se invisível ao se
relacionar com a nossa psique individual? O antropólogo Carlos Alberto Ricardo, do
Instituto Socioambiental que solicitou ao Ibope que realizasse uma pesquisa sobre o
que os brasileiros achavam dos índios em 2000, admitiu que “pode ser que exista
uma visão até romântica das pessoas, mas o capital simbólico é que os índios têm
de mais valioso”, já o decano dos antropólogos brasileiros, como cita a reportagem
de 1992, Darcy Ribeiro, afirma que “com certeza, esse rapaz (Paiakan) está
contaminado pelos brancos. Os índios não são neuróticos e tampouco têm
problemas com o sexo”. Podemos ver dois antropólogos, pessoas capacitadas para
realizar uma leitura da alma brasileira, ressaltar a imagem presente no inconsciente
coletivo brasileiro, o “bom selvagem” – o índio que pode fazer o papel de mocinho ou
de bandido. Até hoje, continuamos a não compreender a alma indígena, o que vem
reforçar a invisibilidade indígena que constatamos na formação do povo brasileiro. O
chamado “bom selvagem”, o “bom moço” agora aureolado como defensor do meio
ambiente, vai representar a imagem do cidadão ideal no século XXI. Apenas
representar, nada mais? Essa imagem, Jung (1987, p.13) trata como sendo “uma
imagem histórica que se propagou universalmente e irrompe de novo na existência
através de uma função psíquica natural [...] é o caso de um arquétipo reativado“ e
continua “essas imagens arcaicas são restituídas à vida [...] não se trata de idéias
inatas, mas de caminhos virtuais herdados”. É preciso esclarecer que, conforme
Jung (1987, p. 28),
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
reflexão de Oswald de Andrade: “Tupi or not Tupi, that is the question”, inserida em
seu Manifesto Antropófago de 1928, poderá levar a uma melhor compreensão de
nosso compromisso enquanto indivíduos na construção de uma sociedade mais
justa e igualitária. Tupi, Nambikuara, Bororo, Cinta-Larga, Paresi e tantos outros
povos presentes em nosso país e em nossa memória, por isso, reafirmo os dizeres
de Gambini (1998), que a verdade histórica seja o renascimento da alma brasileira,
incluída a parcialidade indígena. É preciso compreender a visibilidade indígena
produzida pelo nosso inconsciente coletivo, de forma que a consciência nacional
reproduza uma história que contemple todas as óbvias contribuições que deram cara
e nome a esse país chamado Brasil.
ABSTRACT
REFERÊNCIAS
GAMBINI, R. ; DIAS, L. Outros 500: uma conversa sobre a alma indígena. São
Paulo: Editora SENAC, 1998.
GOMES, L.; SILBER, P. A explosão do instinto selvagem. Revista Veja, São Paulo,
p. 68-73, jun. 1992.
PESSOA, F. Obra Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1986.
POTIGUARA, E. O grito dos povos indígenas. Revista Partes, São Paulo, n. 18, jan.
2002.