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fomentadores

Hegel preocupou-se constantemente cornos


problemas do direito, aos quais consagrou, em
1821, uma obra de conjunto: Princípios da fi-
losofia d o direito. Sob o termo "direito", Hegel
compreende, além dos problemas do direito em
. E A SOCIEDADE
sentido estrito, os da moral, da economia políti-
ca e da política. Esta reflexão culmina na análi- TEÂN-PIERRE LEFEBVRE
se do direito social, que Hegel designa pela ex- E PIERRE MACHEREY
pressão Sittiichkeit, de difícil tradução. São os
textos que ele consagra a essa noção que se en-
contram aqui. Eles são interessantes, sobretudo
pela confrontação que operam entre dois tipos de
questões: aquelas que dizem respeito â sociedade
civil e as que se referem ao "Estado". Hegel é o
primeiro a sistematizar essa distinção e^a inter-
pretação que dá a ela servirá de referência às
teorias posteriores da sociedade, principalmente
a de rvlarx.

340.1*
L489h

ISBN 858659010-X

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discurso editorial
HEGEL E A SOCIEDADE

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Clássicos & Comentadores

HEGEL E A SOCIEDADE
JEAN-PIERRE LEFEBVRE
&
PIERRE MACHEREY

tradução de
Thereza Christina Ferreira Stummer
Cet ouvrage, publié dans le cudre du programme de participation à Ia
e Lygia Araújo Watanabe
publication, beneficie du soutien du Ministère Françaix des Affaires Étrangères,
de 1'Ambaxxade de France au Bréxil, de Ia Maixon Française de Rio de Janeiro
et du Conxulat General de France à São Paulo.
Este livro, publicado no âmbito do programa de participação à publicação,
contou com o apoio do Ministério Francês das Relações Exteriores,
da Embaixada da França no Brasil, da Maison Française do Rio de Janeiro
e do Consulado Geral da França em São Paulo.

CONSULADO CERAL
DA FRANÇA/SP
MINISTÉRIO
DA CULTURA
H
discurso editorial
Copyright © hy Presses Universitaires de France, 1984
Título original em francês: Hegel et Ia société.

Copyright © da tradução brasileira: Discurso Editorial, 1999


SUMÁRIO
Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada,
armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada,
7 Apresentação
reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer
sem a autorização prévia da editora. 9 Hegel e sua má reputação
O início como fim e o fim como início e assim por diante, 15
Projeto editorial: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP
Direção editorial: Milton Meira do Nascimento 18 Hegel e o direito
Projeto gráfico e editoração: Guilherme Rodrigues Neto
Ilustração da capa: Christian Biancardini
Revisão: José Teixeira Neto 2 5 A sociedade civil
Tiragem: 1.000 exemplares
O momento da diferença, 25
A contradição da sociedade civil, 29
O Estado exterior, 34
Ficha catalográfica: Sônia Marisa Luchetti CRB/8-4664 O sistema das necessidades, 38
H462 Lefebvre, Jean-Pierre A divisão do trabalho, 42
Hegel e a sociedade/ Jean-Pierre Lefebvre, PierreMache- A divisão da sociedade civil em estados (Stânde), Al
rey; tradução, Thereza Christina Ferreira Slummer, Lygia
Araújo Watanabe. - São Paulo: Discurso Editorial, 1999. O populacho e a consciência de classe, 53
159 p. - (Clássicos e Comentadores, Edição de Bolso)
O imperialismo da sociedade civil, 57
Tradução de: Hegel et Ia société A corporação, 57
ISBN: 85-86590- 10-X

1. Hegel 2. Sociedade civil 3. Filosofia do direito 4. 6 5 O Estado


Filosofia política I. Título. II. Macherey, Pierre III.
Stummer, Thereza Christina Ferreira. III. Watanabe, Lygia A idéia do Estado, 65
Araújo. IV. Série. Contra Rousseau, 69
CDD(19.ed) 193.5 O Estado como indivíduo e sua constituição histórica, 73
320.5
340.1 O espírito de um povo: o Volksgeist, 77
Soberania epoder, 82
O soberano, 84
O povo soberano, 89
O interesse geral e sua administração, 93

if
discurso editorial
O fim do Estado, 102

1 0 6 TEXTOS
Texto n * l : A IDÉIA DE SITTLICHKEIT, 107
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 (sala 1033)
05508-900 - São Paulo - SP
Tel./Fax: (Oxxll) 814-5383
Texto na 2: A SOCIEDADE CIVIL BURGUESA, 108
disc urso @org. usp.br Texto n« 3: O SISTEMA DAS NECESSIDADES
www.discurso.com.br
E AS LEIS DA ECONOMIA, 110
!

JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY

Texto n* 4: A NECESSIDADE
E A SUA REPRESENTAÇÃO SOCIAL, 113 Apresentação
Texto n* 5: O TRABALHO ABSTRATO, 115
Texto n a 6: OS DIFERENTES ESTADOS (Stãnde), 116
Texto n* 7: A H O N R A D O O F Í C I O , 117
Texto n* 8: O P O P U L A C H O E O ESPÍRITO D E REVOLTA, 119
Texto n 2 9: EXPANSÃO E C O N Ô M I C A O objetivo deste pequeno livro é facilitar a leitura
E C O L O N I Z A Ç Ã O , 121 de um texto de Hegel considerado difícil: os Princípios da
Texto n" 10: O ESPÍRITO C O R P O R A T I V O , 123
filosofia do direito (Grundlinien der Philosophie des Rechts),
Texto n* 11: A IDÉIA D O ESTADO, 128
do qual ressaltamos a terceira parte, consagrada à análise
Texto n u 12: C O N T R A A SEPARAÇÃO D O S P O D E R E S , 132
Texto n* 13: A C O N S T I T U I Ç Ã O H I S T Ó R I C A dos diversos aspectos da vida em sociedade. E um texto
D O ESTADO, 137 difícil, mas não obscuro. Hegel, para quem a filosofia é
Texto n* 14: DA SOBERANIA A O SOBERANO, 139 uma empresa racional, "científica", é exatamente o con-
Texto n* 15: OS F U N C I O N Á R I O S , 144 trário de um pensador hermético. Mas a racionalidade é,
Texto n a 16: A V O N T A D E POPULAR, 148
segundo ele, indissociável de uma apresentação científica
152 VOCABULÁRIO rigorosa de seu conteúdo. Isto explica o caráter espinhoso
da exposição hegeliana, que para ser assimilada supõe um
157 LEITURAS COMPLEMENTARES
certo esforço de atenção e de compreensão.
Ao escolher algumas passagens desse texto, cuja tra-
dução e explicação estamos apresentando, concentramo-
!QÃJ&L nos no sentido de preparar e auxiliar esse esforço. Tanto
quanto possível, evitamos dar, ou até mesmo sugerir, uma
Livraria interpretação histórica ou dogmática do texto. Uma tal
4 Mio, interpretação poria problemas inteiramente diferentes e
N.Fi*caí_lk que não podem ser encarados antes que o texto hegeliano
tenha ao menos sido objeto de uma leitura literal, em pri-
m meiro grau.
Desejamos mostrar, contra uma tradição ainda te-
i^DECHÂ&JlÂDA
naz na França, que Hegel é u m autor legível, passível de
ser lido por todos, contanto que efetivamente seja forne-
4 cido o esforço de que falávamos há pouco.
c&mQümmm CóDIGO ACERVO ( KI
8 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY

Uma das dificuldades específicas com as quais se Hegel e sua má reputação


defronta o leitor de Hegel deve-se à maneira hegeliana de
se expressar, a sua linguagem, mais precisamente, a sua
terminologia. Todos os filósofos, ou quase todos, são tam-
bém escritores e possuem u m estilo; Hegel não foge a essa
A filosofia de Hegel tem m á reputação.
regra: tem u m estilo que só pertence a ele, e que nos é
Alguns até lhe atribuem crimes, e dos grandes, na
necessário dominar para penetrarmos em seu sistema de
consciência.
pensamento. Para tornar mais fácil a aquisição dessa lin-
Ela tem notadamente a reputação de ser de difícil
guagem, insistimos especialmente em certos problemas de
acesso, mais difícil que as outras filosofias.
vocabulário, que tentaremos esclarecer à medida que fo-
E isso, grosso modo, por três ordens de razões: por
rem surgindo: os termos principais em torno dos quais
causa da maneira pela qual Hegel expressa e desenvolve
gira toda a exposição hegeliana sobre o direito e a sociali-
suas idéias; por causa dessas idéias propriamente ditas; e,
dade [socialité] serão retomados, no final deste livro, em
finalmente, por causa dessa reputação que lhe foi conferida
um Vocabulário sumário, ao qual remetem as palavras
desde o princípio, que inibe o leitor de boa vontade.
indicadas em itálico durante o comentário.
Ora, a filosofia de Hegel não é realmente mais di- !
E m uma primeira parte, propomos u m comentá-
fícil que qualquer outra. Sob certos aspectos, ela seria até
rio de conjunto do texto de Hegel, como preparação à
mais fácil, em particular do ponto de vista da memória.
leitura dos trechos que serão apresentados em seguida,
Uma vez que a assimilamos, não mais a esquecemos. E
n u m a tradução nova.
então uma filosofia que temos a impressão de fazer funcio-
nar por nós mesmos, e de reconstruir em todos os cam-
pos nos quais pensarmos.
Às vezes, é até mesmo uma filosofia da qual não
conseguimos mais nos desembaraçar.
Essa "má reputação" exprime porém algo de ver-
dadeiro: não se entra "de mansinho" no pensamento de
Hegel. Penetra-se nele como n u m a ciranda que já estives-
se em movimento: uma mão estende-se em nossa direção,
e, pouco importa qual seja ela, é necessário segurá-la, e
pular na roda.
10 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY : Hegel e sua má reputação 11

As primeiras voltas são estonteantes. Pode-se girar responde bem, logo de início, a essa noção de ciranda
assim durante certo tempo, às vezes durante muito tem- ininterrupta de que falamos: a imagem de um círculo de
po, sem nada entender. O contrário é que seria de se es- círculos, ou, se preferirmos, de uma ciranda de cirandas.
pantar: não se ter essa espécie de vertigem, ou n e n h u m N ã o a de um anel, ele próprio feito de anéis e que desse •
problema de adaptação. modo estivesse fechado por todos os lados; mas a de um
Os que já estão na roda, ou que assimilaram o modo círculo nunca verdadeiramente fechado, composto de cír-
de entrar nela, podem entretanto prestar certos auxílios. culos nunca verdadeiramente fechados, sempre suscetíveis
Alguns auxílios limitados em número, e delicados em sua de se abrir em espirais infinitas, com pontos de junção
realização, mas que podem ser úteis. relativamente turvos.
Limitados, porque se trata simplesmente de puxar Tão turvos quanto as relações que a realidade mes-
o aspirante hegeliano para dentro desse pensamento em ma mantém com seu próprio passado, mesmo quando ela
movimento sem parada nem começo. Delicados, porque aparece como uma novidade radical.
será necessário, apesar desse movimento, guiar seus pas- Turvos como o pensamento dessa realidade que
sos na cavalgada dos termos, dos conceitos. Entretanto, procura precisar-se e que logo foge da precisão encontra-
somente à custa desse movimento imediatamente lança- da, porque essa precisão, essa definição, essa Bestimmung
do pode-se esperar observar um pouco mais longamente seria o fim do movimento, a morte da relação entre a rea-
tudo o que merece um exame prolongado e minucioso, lidade e o pensamento, e, portanto, também a morte do
caminhando, se é que isso é possível, tão depressa quanto pensamento; enfim, a morte em suma [tout court], über-
o conceito. haupt, como diz Hegel.
Então, e somente então, e sobretudo não antes dis- Essa ciranda é uma "allemande". A música é alemã,
so, poderemos fazer uso de todos os "truques" existentes mas, principalmente, a letra é em alemão. E portanto ne-
que já serviram para descrever a passagem dessa filosofia cessário traduzir a letra para todos aqueles que não falam
em movimento: dialética, negação da negação, alienação, essa língua, e isso traz toda uma série de problemas suple-
artimanha da razão, senhor e escravo, fenomenologia, mentares, em se tratando de um autor que permanente-
consciência infeliz, espírito do tempo, espírito de u m mente joga com significados que se encontram entre os
povo, o pássaro de Minerva que..., em si-para si, em si e menos tradutíveis da língua alemã, entre os mais enraiza-
para si, e outros lenços perdidos na dança. dos nas antigas locuções, nos antigos usos.
Entre essas expressões insólitas que evocam u m a Para compensar essa desvantagem, aumentamos um
espécie de mistério hegeliano, de ritual iniciático, uma pouco a corrente, desdobramos os termos problemáticos
imagem um pouco menos utilizada do que as outras cor- com alguns termos, alguns tempos suplementares, que per-
12 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY Hegel e sua má reputação 13

mitam manter o equilíbrio, permanecer em movimento, bougé"], que resiste a uma definição nítida no seio de um
começar de novo... Essas poucas redundâncias, mergulha- conceito único em francês.
das no movimento geral, acompanhadas freqüentemente Entramos nela porque esta parte da filosofia do
pelo próprio termo alemão, nos serão perdoadas. A expo- direito é o seu final, e porque, ao mesmo tempo, ela ter-
sição oral está sempre repleta delas, sobretudo a exposi- mina naquilo que, para Hegel, é o começo do Direito: o
ção de Hegel, cuja obra é essencialmente oral, apesar das Estado, por oposição à sociedade econômica, chamada
aparências. sociedade civil burguesa, e por oposição à família. Pois,
Leitor, o movimento já começou. Até mesmo a se começamos por aquilo que termina, é porque o que
observação à distância força o observador a se deslocar, a termina é o que principia...
girar, a entrar progressivamente na atração das elipses. E, finalmente, porque o Estado, em Hegel, põe a
A estranha figura circular, pela qual nos propomos questão da liberdade mais rapidamente do que todas as
neste volume a entrar no pensamento de Hegel, chama-se outras problemáticas, e porque essa noção de liberdade
Filosofia do Direito, ou, mais exatamente, "princípios, está no centro de todos os círculos de círculos do sistema
grandes linhas da filosofia do direito". Poderíamos ter es- hegeliano.
colhido a filosofia da religião, ou a estética, ou a história Esse termo, Sittlichkeit, como veremos u m pouco
da filosofia, ou a filosofia da história. Sem dúvida, é o mais adiante, é um termo em movimento, uma expressão
que faremos ulteriormente. Todas essas "filosofias" de do movimento na qual se conciliam a moral individual
qualquer modo se sustentam solidariamente e até mesmo no que ela tem de subjetivo, até mesmo de único, e o com-
se incluem uma na outra. p o r t a m e n t o objetivo dos membros de u m a sociedade
Utilizaremos aqui apenas parte do círculo da filo- regida por u m direito e tradições, e governada por um
sofia do direito, um dos círculos do Círculo do Direito: a Estado. Difícil conciliação, como todos sabem; difícil de
terceira parte, que no livro situa-se no final da exposição. fotografar...
E uma vez que, de qualquer forma, não há meio de não E m alemão, as palavras terminadas em -keit são
nos sentirmos deslocados, nós a tomaremos de passagem palavras abstratas que servem para designar u m a qualida-
pelo seu nome em alemão: die Sittlichkeit. de cujo sentido é expresso pelo radical da palavra. Fala-se
Dizendo esta palavra em alemão, já entramos na da Freundlichkeit de u m h o m e m que é freundlich, isto é,
filosofia de Hegel, naquilo que ela tem de original. En- amistoso; da Dankbarkeit de u m h o m e m que se mostra
tramos nela justamente por causa da dificuldade de tra- dankbar, isto é, agradecido; da Wirklichkeit de algo que é
dução desse termo, do seu jeito de se "mexer" ["de son wirklich, real. Na maioria das vezes, esse radical é ele pró-
prio formado a partir de uma raiz antiga, na maioria das
JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY Hegel e sua má reputação 15 <
14
j

vezes formada por uma única sílaba, que remete a u m serve de conceito para concluir uma reflexão filosófica
substantivo c o m u m germânico muito antigo, ou a u m sobre a Lei, o Direito, a Moral.
verbo. E m compensação, as palavras direito, lei, moral I

Os substantivos desse tipo são portanto abstratos e querem dizer, segundo Hegel, aquilo que também signi-
ao mesmo tempo germânicos até a raiz, e Hegel faz ques- ficam segundo outros autores, pois se tudo se move em
tão de empregar um determinado número deles em sua um mesmo movimento de conjunto, nem tudo é neces-
filosofia, ao lado de u m certo número de verbos forma- sariamente transformado.
dos com radicais muito antigos, para substituir — ou me- (
lhor, para afrontar, aniquilar — toda uma série de concei-
O início como fim e o fim como início e assim por diante
tos de aparência exterior mais filosófica, geralmente
oriundos do francês ou do latim. A Sittlichkeit é portanto o fim da filosofia do direi- (
Evidentemente, esse é o caso de Sittlichkeit. A to. Em boa lógica comum, teríamos antes pensado que a (
Sittlichkeit é a qualidade daquilo que é, daquele ou da- filosofia começa descrevendo os costumes das pessoas (sa- í
quela que é, daqueles, daquelas que são sittlich. E o adje- ber se usam calções ou não, ou se andam nus como os l
tivo sittlich remete ao substantivo comum Sitte — plural: selvagens de Montaigne, se são polígamos ou monógamos,
die Sitten —, que designa o costume, o b o m hábito social, o que comem, como enterram seus mortos e como edu-
(
o uso. E sittlich aquele ou aquela que se comporta de acordo cam seus filhos); em seguida, ela os opõe uns aos outros,
i
com os usos e costumes do mundo humano em que vive. A compara-os, relativiza-os a fim de buscar, em outra coisa
Sittlichkeit é a forma de moralidade mais c o m u m , mais que não nos costumes, mais acima, e cada-vez mais aci-
corrente, de certa maneira a menos filosófica, a menos in- ma, aquilo que poderia ser um direito geral, universal, e (

dividual, muito embora seja u m fato de indivíduos. E uma uma moral h u m a n a para além dos costumes particulares >
espécie de polidez social, de sociabilidade misturada com dos diferentes povos. Ora, Hegel começa pelo fim da boa
virtude: no decorrer da tradução, por vezes a chamamos lógica habitual. Mas não é tampouco para que permane- (
de "ética social". Veremos que, de certa maneira, é nor- çamos na nova ordem assim obtida, que, a rigor e para (
mal, consoante a diferença entre a França e a Alemanha, ver melhor, poderíamos olhar de trás para diante. Todo
termos de fabricar uma expressão com dois termos para encaminhamento seu, tanto no nosso caso quanto nos
designar o que o alemão diz com uma só palavra. outros campos pensados pela sua filosofia, tende a chegar
E portanto um termo animado por u m movimen- a um fim que será de fato verdadeiro começo, base ou (
to interno, de algum modo inacabado em si mesmo, que pressuposto de tudo o que tiver precedido.
16 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY
Hegel e sua má reputação 17

É uma filosofia na qual se empregam todos os tem-


imediatez, da natureza, da substância, com crise, tragé-
pos do indicativo e do subjuntivo, embora o mais freqüen-
te seja o presente. dia, estilhaçamento, dilaceramento, tomada de consciên-
cia e conflito; momento da reflexão, primeiro desenvol-
Isto é realmente necessário, uma vez que, quanto
vimento para si daquilo que existia somente em si, vir-
ao resto, as referências mais elementares são retiradas do
tualmente, desejo de reencontrar a substância, crise,
pensamento. Nem tudo gira somente no espaço, nem tão-
tragédia, dilaceramento, e t c ; momento da reconciliação,
somente no tempo. Tudo gira também na própria lógica:
ou da conciliação de tudo aquilo que a reflexão desuniu,
aquilo que é suprimido é conservado, o todo existe na
dividiu, e t c ; nova imediatez, segunda natureza, segunda
parte. O próprio tempo, o tempo das frases das narrativas,
substância, e t c
dos processos, nunca é verdadeiramente o tempo. Assim,
Mas esse percurso aparentemente típico, na reali-
de certa maneira, Hegel faz mesmo u m histórico do
dade, nunca é o mesmo. De acordo com a substância da
Estado. Ao mesmo tempo, toda vez que se alonga em de-
qual se partiu — que é sempre o resultado de um processo
masia debaixo dessa relação, que o pensamento corre o
de evolução interior —, chega-se a momentos diferentes
risco de estacionar em uma determinada operação e que
no devir do pensamento. O u , se preferirmos: todos os
acreditássemos estar definitivamente instalados na mar-
percursos são determinados, originais, complementares e
cha cronológica que vai do começo ao fim, varre essa espé-
necessários.
cie de ilusão. O Estado de que se trata no fim é o mais
moderno que se pode pensar segundo ele e é, ao mesmo Entremos então, sem mais demora, no percurso do
tempo, a forma de todo Estado, seja ele qual for. Tudo é, pensamento do direito.
ao mesmo tempo, aquilo que é e o contrário daquilo que
é, sucessiva e simultaneamente. O Estado e a sociedade
que Hegel pensa estão em movimento entre aquilo que
existe em seu tempo e aquilo que segundo ele deveria
existir.
D o mesmo modo, aquilo que é chamado de "a dia-
lética de Hegel", essa maneira de pensar precisamente, é
ao mesmo tempo ainda a velha dialética antiga, sempre
hábil em fazer tropeçar as certezas pesadas, utilizando o
próprio peso delas, e também a dialética hegeliana pro-
priamente dita, com seu percurso típico: m o m e n t o da
Hegel e o direito 19

Hegel e o direito Aubier, 1944). Após sua estada em Nüremberg (1808-16),


onde exerce as funções de provedor do Ginásio e onde
compõe a Ciência da lógica, Hegel exerce as funções de
professor da Universidade de Heidelberg (1817-8); lá
publica, para servir de manual a seus ensinamentos, sua
O s Princípios da filosofia do direito são a última obra
Enciclopédia das ciências filosóficas (tradução francesa da
escrita e publicada por Hegel. Veio a público em 1821,
Gallimard, 1970), que fornece u m resumo de todo o seu
em Berlim. Esse livro é o resultado de todo u m trabalho
sistema: a filosofia do direito é objeto de um desenvolvi-
de elaboração que remonta de fato ao início de sua carrei-
mento contínuo na terceira parte, sob o título de "Espírito
ra. Hegel interessou-se pelos problemas do direito desde
Objetivo". Nomeado professor da Universidade de Berlim, !
os anos em que estudou no seminário deTübingen (1788-
em 1818, onde permanecerá até sua morte, em 1 8 3 1 ,
93), durante os quais reagiu de maneira apaixonada aos
Hegel retoma de forma mais completa a exposição já apre-
acontecimentos da Revolução Francesa. Durante sua per-
sentada na Enciclopédia, sob o título de Grandes linhas da
manência em Berna (1793-96) e em Frankfurt (1796- N
filosofia do direito ou direito natural e ciência do Estado re-
1800), começou a escrever a respeito dessas questões — por
sumidas (1821). [Os autores preferem traduzir o alemão
exemplo, um importante texto sobre a Constituição da N
Grundlinien, "linhas básicas", "fundamentos", por "gran-
Alemanha (cuja tradução francesa pode ser encontrada nos
des linhas".] E neste último texto que iremos trabalhar.
Ecritspolitiques, publicados pelas Editions C h a m p Libre,
Esse texto não tem uma significação isolada; só as-
1977). Durante seus primeiros anos como professor em
sume todo seu valor se recolocado no contexto formado Ü
Jena (1800-07), onde dá forma ao projeto de seu "siste-
pelo conjunto do sistema, isto é, nesse discurso racional
ma" de filosofia, elabora o conceito de Sittlichkeit, cujas
bases servirão a toda sua reflexão ulterior sobre o direito.
global que fornece a compreensão racional de tudo quan- i
to existe. O espírito que comanda essa elaboração siste-
Por exemplo, no artigo sobre o Direito natural às. 1803
(tradução francesa da Vrin, 1972), no manuscrito System
der Sittlichkeit (tradução francesa sob o título Système de
mática da filosofia está bem resumido na famosa frase que
se encontra no Prefácio dos Princípios da filosofia do direi-
h
to: "Was vernünftig ist (o que é racional) das ist wirklich (é
Ia vie étbique, Payot, 1976), em suas aulas (ver as notas
efetivo) und was wirklich ist (e o que é efetivo) das ist
correspondentes ao ano de 1803-4, publicadas em fran-
vernünftig (é racional)". O termo wirklich tem aqui u m a
cês sob o título Lapremièrephilosophie de 1'esprit de Hegel,
significação inteiramente particular que tentamos tradu-
PUF, 1969); e, finalmente, no início do Capítulo VI da
zir em francês com a palavra ejfectif (efetivo). O efetivo
Fenômenologia do espírito (tomo 2 da tradução francesa,
não é o real no sentido de uma realidade dada como obje-
20 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY
Hegel e o direito 21

to de uma simples constatação empírica, e sim o resulta- reunifica todos os aspectos que apareceram sob formas
do de um processo: é este sentido que Hegel ressalta, por provisórias e incompletas em suas realizações anteriores,
exemplo, no Adendo do § 156 dos Princípios [ T E X T O o "direito abstrato" e a "moralidade". Por meio de seu con-
1]. Esse processo é aquele através do qual o Espírito se efe- ceito da Sittlichkeit, Hegel propôs-se especialmente ultra-
tua, diversificando-se progressivamente segundo as gran- passar a oposição do objetivo e do subjetivo, como ele
des linhas de sua existência concreta, que se constituem declara no § 141 dos Princípios: "A Sittlichkeit é a unida-
também como articulações de seu sistema. de do bem subjetivo e objetivo, existente em e para si. E
O direito é um dos momentos desse sistema, no qual nela que se completa a reconciliação".
ocupa, portanto, um lugar necessário. O sistema, que re- Por que falar em Sittlichkeit em lugar de procurar-
presenta o desenvolvimento completo do Espírito, com- mos um equivalente em francês para esse termo alemão?
põe-se de três grandes partes: a Lógica, a Filosofia da Na- Porque nenhuma das soluções que foram aventadas para
tureza e a Filosofia do Espírito. A Filosofia do Espírito, esse fim é suficiente para dar o significado muito particu-
que nesse processo corresponde ao momento da reconci- lar que Hegel conferiu a esse termo. Ele é formado a par-
liação, procede por sua vez em três etapas, cujos extremos tir do substantivo Sitte (no plural, Sitten), que também
são o Espírito subjetivo (antropologia, fenomenologia, origina o adjetivo sittlich. Sitte significa o costume, os
psicologia) e o Espírito absoluto (arte, religião, filosofia); costumes, no sentido de u m habitus de vida coletiva que
o Espírito objetivo, que se interpõe entre eles, constitui o reúne os indivíduos em seu c o m u m pertencimento a u m
momento do direito. Este representa, portanto, a forma mesmo sistema de existência e de representação. Nesse
intermediária do Espírito. Esse sistema objetivo do direi- sentido, Sittlichkeit designa aquilo que "entrou para os
to reagrupa, ao lado do terreno tradicional de que tratam costumes". Essa noção exprime u m modo de vida sociali-
os juristas, os terrenos da moral, da economia e da políti- zado e, por essa razão, não tem relação direta com uma
ca. O próprio direito apresenta-se sob a forma de um ci- moral ou uma ética, as quais podem, e até talvez devam,
clo racional que procede dialeticamente em três m o m e n - ser pensadas fora das condições de uma existência coleti-
tos: o direito abstrato (§§ 34-104 dos Princípios), a va. Como Hegel sublinha na Introdução de seus Princí-
moralidade (§§ 105-41) e a Sittlichkeit (§§ 142-360). É pios: "As expressões Moralitat e Sittlichkeit, habitualmen-
esta terceira e última forma que desejamos estudar. te consideradas sinônimas, são tomadas aqui em u m
O que representa esse conceito de Sittlichkeit en- sentido essencialmente diferente" (§ 33). A língua fran-
quanto m o m e n t o do direito, que, por sua vez, é ele pró- cesa não possui n e n h u m termo usual que permita tradu-
prio um m o m e n t o de toda a filosofia? Ele exprime, para zir essa nuance e, por essa razão, na maioria dos casos,
Hegel, a forma acabada do direito, aquela que agrega e conservamos a fórmula original de Hegel, pois ela carac-
22 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 23
Hegel e o direito
I

1
(
;
teriza de maneira essencial sua reflexão sobre o direito. O Espírito objetivo acede a uma realidade efetiva
Q u a n d o for o caso, tentaremos traduzi-la também pelas porque ele deu-se concretamente u m m u n d o em u m m o -
expressões "socialidade" [socialité] ou "ética social", que
vimento que é também o de seu desenvolvimento racio-
se aproximam desse significado.
nal. Dois pontos de vista sobre essa realidade são possí-
A partir dessas considerações, abordemos a leitura veis: um é o do conceito, que expõe o conteúdo do direito i

de um primeiro texto: os §§ 151 e 156 [ T E X T O 1] dos segundo essa gênese espiritual; o outro é o dos indivíduos
Princípios. "Na identidade simples com a realidade efeti- que participam desse processo global, no qual são arras- í i
va dos indivíduos, o elemento que chamamos sittlich, o tados como acidentes particulares. C o m relação ao pri- <
modo geral de eles agirem, aparece como costume (ais meiro ponto de vista, o segundo parece incompleto e ar- (
Sitte). "Esta frase é construída a partir de u m jogo de pa- bitrário; carece daquilo que existe de efetivamente racional I
lavras em torno de Sitte, e isso significa que a Sittlichkeit é no direito, aquilo a que ele deve seu caráter universal. Esse (
o elemento do direito que impregna completamente o ponto de vista "de onde a espiritualidade está ausente ... (
comportamento dos indivíduos, de maneira que funcio- só pode alguma vez chegar a uma junção de elementos
na como um sistema habitual ou costumeiro, isto é, como compósitos", enquanto, ao contrário, o processo do di-
uma segunda natureza, na qualidade de "uso", ou de Sitte. reito consiste em u m movimento de assimilação que in-
E essa mesma idéia que Hegel precisa no início do Adendo tegra o indivíduo na ordem da Sittlichkeit, "de tal modo
ao § 151: "Assim como a natureza tem suas leis, assim que esta espiritualidade se torne nele um hábito". O u seja,
também o animal, as árvores, o sol, todos cumprem sua um modo de existência que não se constitua como conse-
lei; o costume (Sitte), da mesma forma, é da alçada do qüência de uma escolha individual, subjetiva e contingen- •
espírito de liberdade". Aquilo que a lei natural é para o te, mas que já tenha "entrado para os costumes" e que
m u n d o da necessidade, o m u n d o livre do Espírito o efe- possua em sua própria ordem as condições para sua orga-
tua em seu uso, como Sitte: trata-se então de uma outra nização e seu funcionamento.
"natureza", que toma o lugar da natureza imediata ou ex-
A Sittlichkeit é portanto o coroamento de todo o
terior e confere à vida do Espírito seu quadro objetivo
processo do direito. Ela própria é um processo, no qual se
específico, na medida em que essa vida se desenrola em
sucedem dialeticamente três momentos: família, socieda-
um m u n d o que lhe pertence exclusivamente, que é pro-
de civil, Estado. Antes de abordar de maneira mais minu-
duto de sua atividade e que, assim sendo, se opõe ao m u n -
ciosa o estudo desses dois últimos momentos, digamos
do da necessidade como um m u n d o da liberdade; é "o
algumas palavras sobre a família, à qual são consagrados
Espírito como mundo, vivo e presente".
o s § § 1 5 8 a l 8 1 dos Princípios. Ela representa a Sittlichkeit
em sua forma imediata e instintiva, tal e qual se consti- ( )
( \
24 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE
MACHEREY

tuiu espontaneamente, tendo como base um sentimento


(§ 158); esta reúne os membros da família em uma espé-
cie de sociedade natural pelo vínculo de uma solidarieda- A sociedade civil
de afetiva primordial, irrefletida. Em que esta solidarie-
dade instintiva depende do Espírito que anima todo o
processo da Sittlichkeit? No fato de assegurar a integração
completa do indivíduo a esse embrião de sociedade cons-
tituído pela família, em que ele renuncia a uma existência O momento da diferença
independente, e à qual adere, "não na qualidade de pes- /A família não é uma forma social parada, curvada
soa por si, mas de membro" (§ 158). A família forma por- e fechada sobre si mesma, mas desenvolve-se a partir de
tanto uma totalidade organizada, cujo sistema precede e suas próprias contradições até o m o m e n t o de sua dissolu-
condiciona a existência particular dos indivíduos. Essa
ção (Auflõsung): e então o que nela era unido separa-se no
organização funda-se numa relação dual elementar, a do
momento em que se separa e se dissolve essa totalidade
h o m e m e da mulher, cujos papéis, já completamente so-
natural imediata. Assim, como acabamos de ver, a crian-
cializados, são ao mesmo tempo exclusivos e complemen-
ça deve "sair" da família e levar, fora dela, uma existência
tares (§ 166): a família associa um espírito passivo, com-
independente para se tornar um ser completo. No momen-
pletamente interiorizado, e um espírito ativo, voltado, ao
to em que surge, a sociedade civil — que toma o lugar an-
contrário, para o exterior, e é essa diferenciação concreta ?!
teriormente ocupado pela família no desenvolvimento das
que dá conteúdo à ordem coletiva assim efetuada. Essa
formas sucessivas da Sittlichkeit — representa, no desen-
ordem realiza todas as suas virtualidades na criança e em
volvimento de conjunto do processo, o momento interme-
sua educação (§ 175), que representa também o m o m e n -
diário da separação, da cisão. E o que exprime o § 181,
to da "dissolução" da família. Educar crianças é dar-lhes
que descreve a passagem da família à sociedade civil: "Os
condições de levar uma existência adulta fora da família
momentos ainda ligados na unidade da família ... devem
em condições outras, aquelas da sociedade civil e do Es-
aceder à realidade autônoma: é o estágio da diferença".
tado, sobre as quais iremos falar. Então, "os momentos
Esta fórmula é retomada no início do Adendo ao § 182
ainda ligados na unidade da família, ... como idéia que
[TEXTO 2]: "A sociedade civil burguesa é a diferença que
ainda é conceito, devem ser liberados por esse conceito e
aceder à realidade autônoma" (§ 181). se instaura entre a família e o Estado", isto é, entre os dois
momentos extremos, terminal e inicial, do processo da
Sittlichkeit.
Assim sendo, o movimento do conceito, que faz
com que da família saia a sociedade civil, apresenta nesta
'

26 JEAN-PERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY i


A sociedade civil 27
(

última, em estado separado, no elemento da diferença, na comunidade afetiva e instintiva que realizava de ime- (
aquilo que na primeira estava unido; isto significa que, diato a coesão de seus interesses particulares. C o m o vere- (
nesta nova forma de sua existência social, os indivíduos mos, a concepção hegeliana da sociedade civil é domina-
se tornam realmente indivíduos e, desse m o d o , indepen- da por essa categoria da exterioridade: as relações que a
dentes e isolados, tomam a si mesmos como fim de sua caracterizam são relações de exterioridade; estas se esta-
atividade. Assim, enquanto membros da sociedade civil, belecem entre os termos, no caso, entre os indivíduos, que
"os indivíduos são pessoas privadas, tendo como fim o se põem primeiramente como independentes ou diferen-
seu próprio interesse" (§ 187), e essa meta é, desde logo,
tes, antes de entrarem em relação uns com os outros. Essa
uma "meta egoísta" (§ 183) [TEXTO 2].
idéia está bem expressa no § 523 da Enciclopédia, que cor-
N o desenvolvimento das formas da socialidade, a responde às passagens da Filosofia do direito que estamos
sociedade civil corresponde então ao m o m e n t o negativo explicando: "E o sistema atomístico. A substância torna-
da cisão, isto é, ao que Hegel chama também de reflexão, se assim uma relação geral e mediadora entre extremos
no sentido primeiro desse termo, que designa o desdo- independentes e seus interesses particulares".
bramento, a divisão de um objeto na relação que o reme- Mas será que uma tal relação é ainda "substanci-
te a sua imagem num espelho. E esse o motivo pelo qual al"? De acordo com os §§ 151 e 156 [ T E X T O 1], que já
Hegel caracteriza a sociedade civil, no final do § 183, como foram comentados, a unidade substancial da Sittlichkeit é
"o Estado do entendimento", e não da razão. O entendi- uma relação integrada que não se reduz a uma junção de
mento é, com efeito, para Hegel, a faculdade negativa por elementos exteriores, construída a partir de elementos
excelência; é a inteligência que diferencia por análise, que atomizados. E aqui que, na demonstração de Hegel, sur-
põe em estado separado aquilo que se apresentava ime- ge uma dificuldade: a partir dos caracteres gerais que aca-
diatamente como unido: "A atividade de dividir (die bam de ser-lhe atribuídos, entende-se facilmente que a
Tãtigkeit des Scheidens) é a força e o trabalho do entendi- sociedade civil seja o momento negativo da Sittlichkeit;
mento, da potência mais maravilhosa e maior, ou, antes, porém, o que não mais se entende é que, marcada por
da potência absoluta". E a idéia que Hegel desenvolve em essa negatividade simples, ela ainda possa ser considerada
toda a segunda parte do Prefácio da Fenômenologia do es- como uma forma da socialidade quando parece ter aban-
pírito. A atividade do entendimento é essencialmente donado a propriedade fundamental que dá a esta última
analisante: o que é aqui analisado é a totalidade natural um conteúdo substancial, unificado e integrado em uma
da família; ela é decomposta em seus elementos, que são totalidade. Segundo o Adendo ao § 181, "a universalida-
os indivíduos; estes são então isolados uns dos outros, de tem aqui como ponto de partida a autonomia da par-
quando anteriormente estavam confundidos, ou fundidos ticularidade e, desse ponto de vista, a determinação pela
*-i I >..^,,v.

28 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY A sociedade civil 29

Sittlichkeit parece perdida". Existe aqui um paradoxo to- y} contradição da sociedade civil
talmente característico da concepção hegeliana: é na
existência da "sociedade" propriamente dita (como o in-
C o m o a família, a sociedade civil é para Hegel uma
dica seu nome de "sociedade civil") que a sociedade está
forma contraditória, o que significa muito simplesmente
mais ameaçada.
que nela a Sittlichkeit ainda não existe sob uma forma com-
Ora, é justamente esse caráter negativo que con- pletamente desenvolvida ou efetiva: para isso será preciso
fere à sociedade civil, em sua posição intermediária, seu que a sociedade civil chegue a sua determinação última,
valor de mediação no desenvolvimento de conjunto da ao seu destino, que é o Estado. Esta contradição está ex-
Sittlichkeit. Pois é preciso, em primeiro lugar, que esta se posta no § 182 [TEXTO 2], que distingue na sociedade
apresente em sua totalidade imediata, a família, e depois I civil "dois princípios" cujas características são opostas.
que esta última seja desintegrada — é o m o m e n t o da dife- Por u m lado, a sociedade civil constitui-se a partir
rença —, para que finalmente, com o Estado, retorne-se à de um princípio de particularidade, representado nos in-
unidade, de tal forma que essa unidade não exista apenas divíduos que são seus membros, considerados os traços
em si, mas esteja concreta e completamente desenvolvida. distintivos que os diferenciam uns dos outros; literalmente,
Assim sendo, a sociedade civil deve interpor-se entre a são os "particulares". O "particular" é "a pessoa concreta
família e o Estado para que seja possível a passagem, o que é ela mesma seu próprio fim", o que quer dizer que
"retorno" de uma para a outra. Mas isto significa também ela se toma a si própria como fim exclusivo de sua ativi-
que, nas condições muito particulares que a especificam dade; sua existência é assim definida "como totalidade de
como momento da diferença, os caracteres da socialidade necessidades". Trata-se portanto do indivíduo privado,
entretanto persistem: quer dizer, é necessário que, entre cujo comportamento é determinado por seu interesse pró-
os elementos que a constituem — os indivíduos —, a socie- prio, como "uma mescla de necessidade natural e de deci-
dade civil instaure uma certa forma de unidade, ainda que são arbitrária". Isto significa que o particular deve procu-
esta continue sendo uma unidade exterior. O problema rar por si mesmo — e que ele tem a ilusão de escolher — os
essencial que vai ser posto pela teoria hegeliana da socie- meios que lhe parecem mais eficazes para satisfazer à ne-
dade civil é de compreender e identificar o tipo muito cessidade a partir da qual ele se define, ou que ele reco-
particular de solidariedade que liga seus membros uns aos nhece como sua, em toda independência, quer esta seja
outros, justamente quando eles tendem a separar-se, se- real ou aparente.
guindo cada qual seu interesse particular, que parece de- O indivíduo que Hegel descreve aqui é o sujeito
ver opô-los entre si, e impedi-los de formar uma socieda- econômico, segundo a concepção que foi progressivamente
de comum, uma coletividade efetiva. elaborada nos séculos XVII e XVIII, principalmente na
3O JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 31
A sociedade civil

Inglaterra, por intermédio das teorias do "individualismo ram satisfazer seu próprio interesse. N ã o têm meio para
possessivo", para retomarmos a expressão do historiador agir de outro modo. Assim, embora corresponda ao mo-
Macpherson [deste autor, pode-se ler a obra clássica: A mento da diferença e da separação, que supõe a dispersão •1
teoria política do individualismo possessivo de Hobbes a dos indivíduos e os fixa na singularidade exclusiva de sua
Locke, Oxford University Press, 1962 (trad. francesa da necessidade própria, a sociedade civil continua sendo uma
Gallimard, 1971)]: trata-se do proprietário individual, que "sociedade", isto é, ela mantém entre os indivíduos uma I
se define por essa vocação de defender o bem que propria- relação social que determina suas existências em referên-
mente lhe pertence e ao qual ele se identifica, porque sua cia a normas coletivas. Seu princípio, portanto, é, ao mes-
aquisição ou sua conservação são necessárias a sua mo tempo, a divisão, o estilhaçamento e a associação.
constituição particular, sua constituição como "particular".
Mas essa associação de interesses privados forma
E essa posse exclusiva q u e faz dele u m m e m b r o da
uma sociedade egoísta, na qual o universal, isto é, a idéia
sociedade civil; enquanto membro ou cidadão do Estado,
de coletividade em seu conjunto, é somente u m meio, e
ele será sujeito político, o que para Hegel é algo totalmente
esse meio está a serviço dos fins particulares dos indiví-
diferente. •A
duos. E por isso que Hegel, que toma emprestado a no-
Todavia, na sociedade civil, o princípio de parti- ção de sociedade civil do inglês Ferguson, autor de u m
cularidade está associado a um segundo princípio, que Ensaio sobre a história da sociedade civil (publicado em
implica, ao contrário, uma certa forma de universalida- Londres, em 1766), exprime-a, segundo a tradução ale-
de. C o m o explica a seqüência do § 182 [ T E X T O 2], a mã da expressão original civil society, por meio da fórmu- 1
existência particular do indivíduo que se põe em primei- la bürgerlische Gesellscha.fi, isto é, literalmente, "sociedade
ro lugar em si mesma "está por essência em relação com burguesa". C o m efeito, o sujeito econômico que é mem- !
uma outra particularidade da mesma espécie, relação na bro da sociedade civil, isto é, o "burguês", é o indivíduo I
qual cada uma se faz reconhecer e se satisfaz graças à ou- privado que está unicamente preocupado com a seguran-
tra". Nesta relação, que é em primeiro lugar estritamente ça do bem que propriamente lhe pertence e com o qual !
econômica, o universal, isto é, a representação da socie- ele se identifica. Todo h o m e m que se toma em sua singu-
dade considerada como um intermediário e como um todo •
laridade exclusiva como fim de toda a sua atividade é u m
desempenha um papel de mediação, isto é, intervém como "burguês". Para se fazer entender, Hegel faz referência à
um intermediário e como um meio. N o âmbito da socie-
dade civil, os indivíduos particulares travam relações de
língua francesa, que distingue nitidamente o "cidadão" do i
"burguês". N a sociedade civil, os indivíduos, todos os in-
trabalho, de troca, tornam-se então membros de urna divíduos, existem como burgueses, e não como cidadãos.
coletividade; é por meio desse pertencimento que procu- Esse recurso a um termo estrangeiro (Hegel escreve: der
1
I
31 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY A sociedade civil 33

Bürger ais Bourgeois) é excepcional em Hegel, e deve por- fica que os membros da sociedade civil, os sujeitos eco-
tanto ser assinalado. nômicos, não têm meios de se representar a comunidade
N o Estado, pelo contrário, do qual a sociedade ci- à qual pertencem, de tal modo que ela lhes pareça como
vil oferece de alguma forma uma imagem invertida, o um fim ao menos possível, mas que eles somente a refle-
universal não é mais meio, torna-se fim, enquanto o indi- tem através das exigências e das eventualidades de suas
víduo particular não é mais do que o agente do funciona- existências particulares; no entanto, seu comportamento
mento de seu sistema global. " Q u a n d o se confunde o Es- é determinado por seu pertencimento a esse todo, de que
tado com a sociedade civil burguesa, quando se lhe confere são apenas elementos.
como determinação a segurança e a proteção da proprie- É aqui que a contradição da sociedade civil assu-
dade e da liberdade das pessoas, é o interesse dos indiví- me, do ponto de vista de Hegel, sua forma mais aguda,
duos enquanto tais que constitui então o fim último em porque então ela se torna também contradição na consci-
vista do qual eles estão reunidos, e, desse modo, ser mem- ência dos indivíduos. Efetivamente, os sujeitos econômi-
bro do Estado torna-se uma decisão da ordem do 'bom cos não são somente agentes cegos de um processo que os
querer'" ["bon vouloir"]. "Ora, a relação do Estado ao in- inclua e os arraste mecanicamente em seu movimento:
divíduo é totalmente diferente; na medida em que o Es- enquanto a família, ainda muito próxima da natureza,
tado é que é o Espírito objetivo, o indivíduo propriamente caminha, como já dissemos, movida pelo sentimento e
dito tem objetividade, verdade, e Sittlichkeit apenas en- pelo instinto, a sociedade civil caminha movida pela re-
quanto membro do Estado" (observação ao § 258 [TEX- presentação ou pela opinião. O vínculo de egoísmo altru-
T O 11]. A confusão entre a sociedade civil e o Estado está ísta, ou de altruísmo egoísta, que os indivíduos estabele-
na base de todas as teorias contratuais da sociedade, que cem entre si neste contexto, supõe seu consentimento —
fazem com que ela dependa do consentimento dos parti- eles que sempre podem recusá-lo —, e veremos que é isto
culares e, portanto, de seus fins singulares. que constitui a fragilidade desta forma de socialidade. H á
portanto espaço na sociedade civil e no comportamento
O elemento de universalidade sem o qual a socie-
de seus membros para uma consciência: mas essa consci-
dade civil não seria sequer uma "sociedade", mas somen-
ência é apenas a da reflexão, do "reflexo"; é uma consci-
te um ajuntamento díspar, ocasional, de interesses diver-
ência incompleta e alienada, para a qual a idéia do uni-
gentes, ocupa entretanto dentro dela uma posição apenas
versal permanece exterior, e é por isso que ela finalmente
subordinada; disso resulta que ele não é refletido como
desemboca n u m jogo arbitrário de opiniões que podem
tal na consciência dos indivíduos, que é, pelo contrário,
ser mais ou menos controladas. A livre escolha dos indi-
inteiramente ocupada pela sua própria representação de
víduos, que acreditam decidir o que é melhor para eles,
si e da singularidade exclusiva de suas escolhas. Isto signi-
34 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY r A sociedade civil 35

\
não passa de uma independência ilusória, de um efeito
n ão
completamente desenvolvida, como só o será no Es-
de espelho. Assim explica o Adendo ao § 181: "Na rela-
tado autêntico, que estiver totalmente despojado desse
ção nova que doravante entra em jogo, é o particular que
elemento de exterioridade.
deve ser para mim a coisa primeira e determinante... Nis-
Isso significa que a idéia de Estado já preocupa a
so simplesmente estou errado, pois enquanto creio ater-
sociedade civil, ainda que seja sob uma forma que per-
me firmemente ao particular, ainda assim o universal e a
manece em grande parte inconsciente. Mas, para que essa
necessidade de coesão geral é que são a coisa primeira e
idéia se desenvolva e se torne efetiva, deve passar pelas
essencial. Encontro-me, portanto, simplesmente no está-
contradições desse "Estado exterior" que é a sociedade
gio da aparência..." Com efeito, enquanto apresenta o
civil; o que significa que o Estado deverá ele próprio "sair"
Estado como um m u n d o de liberdade, Hegel caracteriza
da sociedade civil e de seu desenvolvimento imanente, tal
ao contrário a sociedade civil como u m m u n d o de neces-
como Hegel explica no § 256. N o m o m e n t o em que esta
sidade. Mas essa necessidade vai precisamente conseguir
transformação for operada, a própria relação entre socie-
se impor através da ilusão da liberdade.
dade civil e Estado será invertida: ficará visível que, em-
bora a sociedade civil venha antes do Estado na sucessão
O Estado exterior das formas da socialidade, é não obstante nele que ela
encontra seu suporte e seu fundamento, isto é, também o
Acabamos de indicar que a sociedade civil apresenta
seu objetivo, o qual, sendo sua base efetiva, precede-a ideal-
uma imagem invertida daquilo que será o Estado, quer
mente. Nesse sentido, a sociedade civil "sai" ela própria
dizer, então, que ela já é um "Estado". D e fato, ela é pre-
do Estado, do qual ela não é outra coisa além de uma re-
cisamente um "Estado exterior", fórmula que retorna nos
presentação incompleta e "exterior". E por isso que, se-
§§ 157, 183 [TEXTO 2] e 187. Nesta expressão, reen-
gundo o Adendo ao § 182 [TEXTO 2], "enquanto dife-
contramos a categoria da exterioridade, que comanda todo
rença ela pressupõe o Estado". Reencontramos aqui u m
o funcionamento da sociedade civil burguesa: as relações
eco das preocupações do jovem Hegel tal como se mani-
que ela estabelece entre seus membros são relações de ex-
festaram primeiramente em Berna, após sua saída do se-
terioridade, que pressupõem a existência separada de in-
minário de Tübingen: a separação do h o m e m privado —
divíduos independentes. O universal já está presente nes-
o sujeito econômico membro da sociedade civil — e do
sa relação, e é ele que lhe assegura em última instância
homem público — o cidadão político a serviço do Estado
sua coesão. Mas nisso ele ocupa uma posição subordina-
— não era conhecida na Antigüidade; esta cisão é, ao con-
da, pelo menos quanto a seu funcionamento manifesto, e
trário, característica do m u n d o moderno.
essa é a razão pela qual ele assume aí uma forma ainda
.
•£•
36 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY A sociedade civil 37

A anterioridade da sociedade civil em relação ao fundiram a apresentação racional do conceito com a sua
Estado só tem portanto uma significação lógica na pers- manifestação exterior, seu simples "reflexo", sem se dar
pectiva do desenvolvimento de um processo que "deve" conta, ficaram na noção de u m "Estado exterior", que não
passar por u m certo número de etapas intermediárias, passa de uma simples associação baseada no querer dos
mediações, para chegar até sua finalidade. Mas não é uma indivíduos, sem perceberem que deste modo falsificavam
anterioridade no sentido cronológico ou histórico desse o conceito autêntico do Estado, de cujo p o n t o de vista a
termo. E o que Hegel justificava na Introdução de seus relação entre os indivíduos e a coletividade toma uma
Princípios da filosofia do direito, da seguinte maneira: "Se forma exatamente oposta àquela que recebe na sociedade
os momentos, cujo resultado é uma determinada forma
civil.
enquanto determinações conceituais, precedem esse resul- Essa consideração explica por que não podemos
tado no desenvolvimento científico da idéia, o mesmo não
traduzir literalmente bürgerliche Gesellscbaft, fórmula que
ocorre no desenrolar do tempo, no qual, enquanto figu-
Hegel emprega para exprimir a noção de sociedade civil.
ras concretas, eles não lhe são anteriores" (Observação ao
Com efeito, a expressão "sociedade burguesa" assumiu no
§ 32: ver também o Adendo.) Então pode muito bem
uso corrente, depois de Marx, uma significação essen-
haver um hiato entre a apresentação racional da idéia da
cialmente histórica, e que serve para designar a forma de
Sittlichkeit e a sua apresentação empírica ou histórica.
sociedade característica de uma determinada época, aquela
Esse hiato explica o fato de que a sociedade civil,
em que a burguesia é a classe dominante, ao passo que,
que ainda é apenas o Estado exterior, pode ser confun-
para Hegel, toda sociedade, qualquer que seja a época à
dida com o Estado, que só aparece como tal no momento
qual pertença, apresenta-se, era u m certo nível de sua
em que essa exterioridade é ultrapassada; de onde o erro
constituição — aquele que corresponde ao "momento da
dos teóricos do Direito que acreditaram expor as leis da
diferença" —, como sociedade civil burguesa. Pai de família,
sociedade em seu conjunto, quando estavam apenas des-
burguês, cidadão: essas características não se sucedem
m o n t a n d o os mecanismos da sociedade civil. "Quando
necessariamente no desenrolar de uma evolução empírica,
se representa o Estado como uma unidade de pessoas dis-
mas coincidem em todo indivíduo enquanto membro de
tintas, como uma unidade que de fato não passa de uma
uma sociedade, seja ela qual for; ele é u m "burguês"
simples comunidade, está-se designando simplesmente a
precisamente na medida em que o seu ponto de vista so-
determinação que define a sociedade civil burguesa.
bre o conjunto da coletividade continua sendo o da so-
Muitos professores de Direito Político da época moderna
ciedade civil, isto é, um ponto de vista exterior, o do Estado
só chegaram até esse ponto na sua concepção do Estado"
exterior.
(Adendo ao § 182 [ T E X T O 2]). Esses teóricos, que con-
(
38 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY A sociedade civil 39
I

O sistema das necessidades natural com a necessidade espiritual da representação, é


esta última que é universal e se torna preponderante, há
A sociedade civil introduz portanto a diferença na nesse momento social o aspecto liberador no qual a rigo-
existência humana, cuja unidade imediata ela cinde, para rosa exigência [necessite] natural da necessidade é oculta-
permitir que se exteriorize. O ponto de partida dessa ope- f da..." A necessidade, assim que toma lugar nesse sistema,
ração de divisão é a necessidade; a sociedade civil toma o isto é, logo que é socializada, torna-se livre no sentido de
indivíduo primeiramente como um ser de necessidade, e que não mais depende exclusivamente de pressões da na-
o interesse próprio que o define inicialmente consiste na tureza. É por isso que, na observação que segue, assim
satisfação dessa necessidade. " O Espírito só tem a sua re- como já o fizera na Observação ao § 187, Hegel ridicula-
alidade efetiva porque ele se divide em si mesmo, porque riza as ficções do estado de natureza — a alusão a Rousseau
nas necessidades [besoins] naturais e na conexão dessa exi- aqui é transparente — que o apresentam como um estado
gência [necessite] externa, ele se confere esse limite, essa de liberdade. Ora, a natureza só assegura, de modo con-
característica acabada, e, precisamente por inserir-se nela, tingente, e se assim o quiser, uma satisfação imediata da
por conformar-se a ela, ele o domina, e neles conquista necessidade; é incapaz de mediatizá-la, isto é, de introdu-
sua existência" (Observação ao § 187). O Espírito se reali- zir-lhe esse elemento universal, essa reflexão que faz dela
za através da necessidade; ele a domina, introduzindo nela uma necessidade propriamente humana.
uma "conexão"; ele toma então a forma de um "sistema" C o m o é que a sociedade civil reflete a necessidade
de necessidades, um dispositivo cuja exigência [necessite] para arrancá-la de sua determinação puramente natural?
é exposta por uma ciência específica, a Economia Política Transformando-a em "necessidade saída da representação".
[mais exatamente, Hegel fala de "economia do Estado", Então, sempre segundo o § 194 [ T E X T O 4], "a rigorosa
Staatsoekonomie]. exigência [necessite] das necessidades é ocultada e o ho-
Isso significa que a idéia da Sittlichkeit, tal como mem se reporta à sua opinião [Meinungj', que é aqui a
ela se encarna na sociedade civil, tira a necessidade de seu opinião universal, e a uma exigência que só existe por ser
caráter natural imediato, para introduzir-lhe — integran- de fato; em lugar de reportar sua conduta a uma contin-
do-a desse modo num sistema em que ela recebe seu cará- gência unicamente externa, ele a liga a uma contingência
ter universal e objetivo — um elemento espiritual que interior, ao arbitrário de sua escolha". A necessidade soci-
modifica sua significação, ao mesmo tempo em que trans- alizada não se dá mais em sua particularidade, mas é or-
forma suas condições de realização. E o que Hegel expli- ganizada e representada; entre sua manifestação e sua sa-
ca no § 1 94 [TEXTO 4]: "Na medida em que, na neces- tisfação interpõe-se uma mediação, a do sistema no qual
sidade social, como ligação da necessidade imediata ou ela deve tomar lugar para existir como necessidade. Isso
40 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY
A sociedade civil 41

quer dizer que essa necessidade, mesmo sob suas formas


intermédio que se estabelece um vínculo entre os indiví-
mais naturais em aparência (necessidade alimentar ou se-
duos, que, a partir daí, não mais existem como entidades
xual), é também o produto artificial de uma cultura que a
isoladas e independentes, mas como membros da socie-
desprende cada vez mais da natureza. Segundo uma con-
dade civil. A necessidade, a partir do m o m e n t o em que é
cepção que Platão já havia exposto no Livro II da Repú-
reconhecida, e, assim, de certa forma, legalizada, supõe
blica, e à qual Hegel parece se referir aqui, a necessidade
uma relação recíproca entre indivíduos: suas necessida-
consiste nesse "suplemento" acrescentado à natureza, sem-
des deixam de ser apenas necessidades particulares, mas
pre em excesso, acima de suas solicitações imediatas. Tor-
passam a refletir-se umas nas outras e é essa ligação que
na-se então busca do luxo, do refinamento, ou daquilo
lhes confere sua própria exigência [necessite] e uma signifi-
que os ingleses chamam de "conforto" (o próprio Hegel
cação universal. Assim explica Hegel no Adendo ao § 184:
faz alusão a isso), noções que só têm sentido no contexto
"A particularidade e a universalidade, ao mesmo tempo
de uma existência socializada, e portanto de certa forma
em que estão dissociadas na sociedade civil, nem por isso
desnaturada.
deixam de continuar presas por um vínculo e um condi-
A necessidade existe socialmente desde o m o m e n - cionamento recíprocos. Ao mesmo tempo em que pare-
to em que é "reconhecida", como Hegel explica no § 192 cem fazer exatamente o que é contrário ao outro, e acre-
[ T E X T O 4J. Isto quer dizer que ela não é apenas minha
ditando não poderem existir sem se manterem a uma boa
necessidade, como pareceria se eu não passasse de um ser
distância dele, cada um tem entretanto o outro como con-
natural. Mas ela me é apresentada, ou representada, por
dição". Através de sua necessidade particular, o indivíduo,
meio do sistema global que lhe confere sua legitimidade,
na medida era que pertence à sociedade civil, "reflete" a
por sua conformidade a uma norma geral que se torna
necessidade de todos os outros.
condição prévia de sua singularização. C o m efeito, como
Disso resulta também que a necessidade não pode
Hegel explica no § 193 [ T E X T O 4], até mesmo o desejo
mais ser satisfeita imediatamente, de maneira simplesmen-
de se distinguir é ele próprio determinado socialmente,
te natural; enquanto necessidade social, ela requer a me-
pois implica também referência ao conformismo dessa
opinião comum que lhe dá lugar no sistema global de re- diação do trabalho. C o m o veremos, essa mediação é o que
presentação e lhe permite que se diferencie. Até mesmo o caracteriza especialmente a ordem da sociedade civil, na
original, ainda que sem o saber, obedece também a uma medida em que essa ordem substitui a da natureza para
norma. determinar o comportamento dos indivíduos, segundo sua
lei própria, que é a lei do trabalho: a lei da família, ao
Assim é que o sistema das necessidades é também contrário, era a lei do instinto. Esse trabalho, tal como a
um sistema de representação das necessidades. E por seu necessidade que ele permite satisfazer, é trabalho social.
43
A sociedade civil
42 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY

em jogo espontaneamente", e essa exigência "apresenta


Por seu intermédio, o indivíduo entra em um sistema de
uma semelhança com o sistema planetário, que sempre
relações recíprocas que o associa aos outros membros da (
deixa ver movimentos irregulares, mas cujas leis podemos
sociedade civil na busca de um objetivo comum: a satis-
todavia conhecer". E portanto sem o saber que os indiví-
fação dessa necessidade social, que já não é mais apenas
u m a carência individual. O trabalho que o indivíduo re- duos, acreditando perseguir finalidades que lhes são par-
aliza para si mesmo, em seu próprio interesse, é também ticulares, obedecem a incitações e respondem às pressões
destinado a satisfazer a necessidade dos outros indivíduos; de uma ordem global e ultrapassam os limites de sua exis-
reciprocamente, o indivíduo só consegue se satisfazer por tência singular.
meio do trabalho dos outros. Essa transfiguração da atividade individual corres-
Assim, por seu trabalho, que em primeiro lugar ele ponde ao que Hegel define em outras obras, em particu-
executa para si próprio, o sujeito econômico se integra, lar na Introdução a suas Lições sobre a filosofia da história,
tenha ele ou não consciência do fato, em um sistema uni- texto conhecido sob o título "A Razão na História", quan-
versal de determinações que confere à sua atividade pes- do fala da "artimanha da razão": o comportamento dos
soal uma significação social global. E esse sistema que a homens, que aparentemente está submetido ao livre jogo
economia política descreve, desvendando suas leis especí- de suas pulsÕes, de suas inclinações passionais, é na ver-
ficas — tal como a astronomia expõe as leis do "sistema" dade regido por "um direito que se dá por si mesmo",
solar — a partir do conceito de divisão do trabalho. portanto, sem que eles tenham subjetivamente consciên-
cia dele, e que é em si racional. Tudo se passa então como (
se a razão universal "fizesse artimanhas" com as paixões (
A divisão do trabalho
humanas particulares, desviando-as contra a vontade de-
A socialização da necessidade libera esta última de las, para seu próprio proveito. As finalidades privadas tor- (
sua determinação natural, ao mesmo tempo em que a põe nam-se portanto meios em vista do desenvolvimento glo-
em relação com o que de arbitrário existe nas representa- bal do Espírito. Essa concepção se aplica particularmente
(
ções individuais ("Sei muito bem do que preciso"); mas o bem à ordem da sociedade civil, que possui também a es-
faz para submetê-la a um outro tipo de pressão, que é a pantosa propriedade de reverter a particularidade das ações
do seu "sistema". C o m o o explica o Adendo ao § 189 individuais em sua determinação econômica, inscreven-
[ T E X T O 3]: "Toda essa efervescência de arbitrário engen- do-a no contexto de seu sistema universal: assim, ela con-
dra, porém, a partir dele próprio, determinações univer- verte completamente a significação das finalidades priva-
das, impondo-lhes u m caráter objetivo. Segundo o § 199, <
sais: essa dispersão aparente e essa ausência de idéia dire-
triz são mantidas por uma exigência [necessite] que entra "nessa dependência e nessa reciprocidade entre o traba-
44 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY A sociedade civil 45

lho e a satisfação das necessidades, o egoísmo subjetivo Como membro da sociedade civil, o indivíduo é
converte-se em contribuição para a satisfação das necessi- somente um agente de execução para u m sistema que o
dades de todos os outros, isto é, em mediação do particu- ultrapassa. Segundo o § 198 [ T E X T O 5], é a divisão do
lar pelo universal enquanto movimento dialético, na me- trabalho — tomada segundo um conceito muito próximo
dida em que cada qual adquire, produz e usufrui para si daquele que já fora dado por Adam Smith, cujo pensa-
mesmo, do mesmo modo em que também produz e ad- mento Hegel parece conhecer bem — que garante a im-
quire para o gozo de todos os outros". Somente do ponto plantação desse sistema. O termo "divisão" deve aqui ser
de vista do indivíduo é que sua atividade é "egoísta": re- tomado ao pé da letra: exprime diretamente o movimen-
colocada no contexto global em que ela toma lugar, tor- to de diferenciação que caracteriza a sociedade civil. O
na-se atividade social, e como tal tende, ao menos impli- trabalho é socializado na medida em que é cindido entre
citamente, ao universal. ramos distintos de atividades, que estão em relação recí-
Vemos então que, se por intermédio da sociedade proca no interior desse conjunto diversificado. " O que
civil o indivíduo atinge ura certo grau de consciência que existe de universal e objetivo no trabalho reside em sua
o liberta das coerções da natureza, essa consciência per- abstração, em seu caráter abstrato, que tem por efeito a
manece bastante limitada e incompleta, ou estreita. Tra- especialização dos meios e das necessidades, a qual, por
ta-se de uma consciência inconsciente, se é que podemos
chamá-la assim, ou de uma falsa consciência, porque ela
1 isso mesmo, especifica igualmente a produção e engen-
dra a divisão dos trabalhos." Esta abstração caminha jun-
continua a ignorar as motivações profundas que a diri- to com o nível de racionalidade que é o da sociedade ci-
gem, mas que excedem seus limites finitos; é por isso que vil; é ela que torna possível uma organização coletiva do
ela se manifesta não em um saber, mas por meio de uma trabalho. Em troca, essa racionalização tende a satisfazer
opinião. Por essa razão, Hegel mantém uma rígida distin- a necessidade dos indivíduos, enquanto u m a necessidade
ção entre a ordem da sociedade civil e a ordem do Esta- social. "Esse caráter abstrato da habilidade e do meio com-
do. Somente atingindo esta última forma de socialidade é pleta a dependência e a relação m ú t u a que os homens
que o indivíduo poderá aceder a uma liberdade autênti- mantêm para a satisfação das outras necessidades, até fa-
I
ca, correspondente a uma consciência completamente zer dela uma exigência [necessite] global." O trabalho dei-
desenvolvida, pela qual sua vontade será libertada dos li- xa então de ser uma atividade estritamente individual,
mites que sua escolha arbitrária particular lhe impõe, e orientada para a satisfação imediata de u m a necessidade
nos quais o restringe; então, ela receberá uma dignidade particular: ele preenche uma função geral, no âmbito da
universal. ordem econômica c o m u m da produção.
46 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY A sociedade civil 47

A--

Essa divisão do trabalho conduz finalmente à sua


r
A divisão da sociedade civil em estados (Stánde)
mecanização. C o m efeito, a produção de riquezas, esca-
pando à iniciativa individual, arrasta-se em seu movimento A função da sociedade civil, como vimos desde o
de conjunto, como o funcionamento automático de uma início, é essencialmente uma função de mediação. Media-
máquina à qual o homem serve, ao invés de dirigir. O ção entre o indivíduo isolado e a coletividade considera-
desenvolvimento da "maquinização" é preparado e até da em seu conjunto, que fixa um sentido para todas as
mesmo exigido pela tendência para a socialização do tra- suas atividades, ela interpõe formas intermediárias de as-
balho: o sistema geral, no qual o trabalho h u m a n o toma sociação, espécies de subsociedades ou "sistemas particu-
lugar, é ele próprio como uma imensa máquina cuja es- lares de necessidades", segundo a formulação do § 201
trutura de conjunto carrega consigo e determina as ativi- [TEXTO 6]. É essa repartição das atividades individuais
dades particulares que ela requer. entre funções sociais diferenciadas aquilo que permite
Se a sociedade civil toma por base o interesse priva- organizá-las coletivamente.
do considerado como um fim em si mesmo, segundo a A sociedade civil é portanto composta de Stãnde,
motivação fundamental do "particular" ou do "burguês" isto é, de "estados", no sentido em que falamos, por exem-
que é membro dela, então ela transforma completamente plo, do "terceiro estado". Veremos logo a seguir que, para
esse interesse, submetendo-o às suas leis; é precisamente Hegel, essa noção é essencialmente diferente da de classe
sob esse aspecto que ela representa a idéia da Sittlichkeit, social (Klasse), e que ela até se opõe a esta. N ã o obstante o
realizando a tendência universal própria ao Espírito. Nesse manifesto parentesco etimológico dos termos que servem
nível, porém, o movimento da universalização assim ini- para designá-los, é importante acima de tudo não con-
ciado permanece inconsciente, não aparece enquanto tal fundir os conceitos de "estado" (Stand) com o de "Esta-
para a consciência dos indivíduos: é do exterior que ele do" (Staat), para o qual a língua alemã possui uma pala-
faz o comportamento deles se curvar. Eles obedecem às vra diferente, coisa que falta à lingua francesa. Faremos
leis objetivas dos sistemas das necessidades sem o saber, um esforço no sentido de manter essa distinção, lembran-
assim como os planetas obedecem às leis do sistema solar: do a cada ocorrência o termo alemão Stand, ao qual cor-
em ambos os casos, o termo "sistema" tem o mesmo responde o "estado" da sociedade civil, traduzindo Stand
significado. por "estado", com minúscula, e Staat, por "Estado", com
maiúscula.
D e acordo com a observação do § 200: "E a razão
imanente no sistema das necessidades humanas e em seu
desenvolvimento que articula esse sistema em um todo
48 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY A sociedade civil 49

orgânico de diferença", isto é, de estados (Stãnde). Esses ma da socialidade, que é o "Estado" (Staat) enquanto tal.
"estados" correspondem a funções sociais especializadas, Assim sendo, é o "estado" intermediário dos trabalhado-
preenchidas a cada vez por uma categoria determinada de res da indústria que representa especificamente a socieda-
indivíduos que elas reúnem, cada qual em sua ordem pró- de civil: por seu intermédio, a sociedade civil se reflete,
pria: a idéia aqui expressa por Hegel é muito próxima da de certa forma, no interior de si mesma.
que fora exposta por Platão no final do Livro III da Re- O que determina o pertencimento de u m indiví-
pública, justificando a idéia de uma divisão tripartite da duo a um "estado"? Para Hegel, que não está fazendo aqui
sociedade. uma classificação empírica nem sequer analítica da socie-
Com efeito, Hegel também distingue na sociedade dade, é, primeiramente, u m certo tipo de consciência.
civil três ordens ou "estados". Confere porém a essa dis- Como já indicamos, a sociedade civil funciona essencial-
tinção um significado dialético, atribuindo a cada um dos mente movida pela opinião, pela representação. Segundo
termos que ela permite identificar os caracteres sucessi- o § 2 0 7 [ T E X T O 7], o indivíduo está socializado a partir
vos que pertencem aos momentos de um processo. O pri- do momento em que dá a sua atividade u m significado
meiro estado é portanto imediato, ou substancial. C o m o universal por intermédio da opinião que tiver sobre a dig-
está explicado no § 2 0 3 , ele corresponde às formas de tra- nidade de seu "estado"; essa representação encerra sua ati-
balho que permanecem mais próximas da natureza: as dos vidade dentro dos limites que lhe são prescritos pela or-
camponeses que efetivamente vivem no campo, n u m qua- dem global do sistema das necessidades e, ao mesmo
dro que continua sendo o da existência familiar. O "esta- tempo, assegura-lhe o "reconhecimento" dessa atividade,
do" intermediário, descrito no § 204, é o de todos aque- que lhe é conferido por seu estatuto social e sua "posi-
les que, a qualquer título, enquanto empreendedores ou ção". Aí então, como diz Hegel no A d e n d o ao § 2 0 7
operadores, consagram-se às tarefas da indústria, tarefas [TEXTO 7], um h o m e m se torna "alguma coisa de subs-
especificamente urbanas. Finalmente, o último "estado" tancial", uma vez que, pelo mecanismo da interpretação
é, de acordo com o § 205, o dos administradores do Es- que ele próprio faz de sua atividade — diríamos, em uma
tado (Staat), que levam diretamente em consideração o outra linguagem: através do mecanismo de sua "ideolo-
interesse coletivo na realização de sua tarefa, cujo objeto gia", com a condição de entendermos bem que se trata
é fixado por essa mesma consideração. De acordo com essa aqui de uma "ideologia" de "estado" (Stand), e não de uma
caracterização, fica claro que, enquanto o primeiro esta- ideologia de classe —, essa atividade acaba sendo autenti-
do permanece marcado pelo modo de vida familiar, para ficada e legitimada. Portanto, segundo Hegel, a divisão
o qual seu apego a todas as formas da vida natural o pre- do trabalho social não consiste apenas n u m a divisão ma-
dispõe, o último "estado" (Standjjá. pertence à última for- terial, puramente técnica, das tarefas produtivas, mas
50 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY A sociedade civil 51

também numa repartição dos modos de existência e de Essa cultura toma primeiramente a forma do di-
representação que convém a cada u m a dessas atividades, reito próprio da sociedade civil: este sanciona o pertenci-
e que lhe garantem, por meio dela, o reconhecimento da mento do indivíduo a u m "estado" determinado e o con-
solidariedade entre ambos, indivíduo e coletividade. Este trola para que ele observe suas regras. Por meio de uma
conhecimento é condição de sua solidariedade, tal como legislação apropriada, esse direito mantém o indivíduo no
o estabelece a sociedade civil. Vê-se aqui que Hegel faz lugar que é dele, na posição que lhe cabe no sistema glo-
í
intervir um certo número de elementos que serão toma- bal da sociedade civil. A pressão que esse direito exerce
dos e desenvolvidos pela Sociologia, e que uma concep- sobre o indivíduo não é somente negativa ou repressiva:
I
ção demasiado "economista" da realidade social tenderia tem também u m sentido positivo, na medida em que lhe
a eliminar (como, por exemplo, a reprodução). garante em troca a segurança, meta de toda a sua conduta (

A sociedade civil entra em relação com o universal enquanto "burguês". Mas, por outro lado, essa pressão só
por intermédio do reconhecimento, quer dizer, também é verdadeiramente eficaz se for aceita, isto é, reconhecida
daquilo que Hegel chama de cultura (Bildung). E essa em seu conteúdo racional. Segundo o Adendo ao § 2 1 1 ,
cultura que forma e informa a representação individual e "o sol e os planetas possuem igualmente as suas leis, ain- (

a submete à lei coletiva, ou, no mínimo, a inclina a uma da que não tenham consciência delas; os bárbaros são go- (
tal submissão. C o m efeito, essa subordinação do indiví- vernados por pulsões, costumes e sentimentos, mas não
duo particular à ordem comum não é automática: ela su- têm n e n h u m a consciência deles. O fato de o direito ser
põe o consentimento do indivíduo, e esse consentimento posto (gesetzt) e ser conhecido faz cair e desaparecer tudo ( I
depende do livre-arbítrio, que sempre pode levar o indi- o que existe de contingente no sentimento e na opinião —
víduo a recusá-lo. Portanto, não basta que a sociedade es- a forma da vingança, da compaixão, do egoísmo —, e as-
tabeleça um mecanismo objetivo regulador que arraste o sim o direito alcança a sua verdadeira determinidade e a
indivíduo em seu movimento: é necessário ainda que ela sua honra. Somente pela disciplina da compreensão é que
dê a si mesma os meios para obter a adesão de seus mem- ele se torna capaz de universalidade". O direito supõe a
bros, isto é, que ela atue sobre suas opiniões, de modo consciência, sem a qual ele é meramente formal e inefetivo.
que eles orientem-se na sua própria direção, sem o que Isto constitui o indício de sua superioridade, pois essa
ela corre o risco de entrar em conflito consigo mesma. característica espiritual o eleva acima das leis da natureza,
Isto significa que as leis econômicas só agem por meio cuja aplicação é mecânica; mas é também a causa de sua
dessa cultura que garante que os indivíduos lhes sejam fraqueza: basta que o indivíduo retire a sua adesão cons-
submetidos. ciente, para que se torne letra morta, para que seja rebai-
xado no nível de u m universal completamente objetiva-
52 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY A sociedade civil 53

do, isto é, no nível de um sistema que permanece exterior nais etc.) pertencem, segundo Hegel, à esfera da socieda-
à existência dos indivíduos particulares, os quais não to- de civil.
m a m conhecimento dele e a ele permanecem indiferen- É a "polícia" da sociedade civil que assegura essa
tes, ainda que o suportem. adesão do particular ao universal. De acordo com as in-
Isso mostra que a reconciliação entre o particular e dicações que precederam, fica claro que Hegel interpreta
o universal, na direção da qual pende a sociedade civil, essa noção num sentido muito amplo: evidentemente, ela
continua sendo, na ordem da sociedade civil, precária e inclui a função de repressão tradicionalmente exercida por
provisória: os termos que ela reúne parecem logo se essa instituição, no sentido restrito e atual do termo. Com-
dissociar e se pôi üO extremo um cio outro. E então ne- preende também, e principalmente, as tarefas de vigilân-
cessário que ela apele para outras mediações para obter essa cia e de assistência, e até de educação, que estão direta e
adesão reconhecida e consentida, e para se proteger da positivamente relacionadas à manutenção desse bem-es-
ameaça de desagregação que a persegue, que é conseqüên- tar, sem o qual o indivíduo ficaria insatisfeito na ordem
cia de sua contradição interna. Ora, o indivíduo só pode da sociedade civil, tendendo então a escapar às suas leis.
aderir ao ideal coletivo que ela lhe apresenta se ele pró- É por isso que Hegel reúne n u m mesmo desenvolvimen-
prio estiver convencido de encontrar também aí o seu in- to, dentro de sua análise da sociedade civil, a apresenta-
teresse, uma vez que é justamente enquanto particular que ção da polícia e a da corporação, cujas funções são, afi-
ele entra em sua ordem e se submete às suas leis. A condi- nal, complementares: ambas têm por encargo obter e fixar
ção para o seu consentimento é que ele encontre a sua sa- o consentimento do indivíduo à pressão que a sociedade
tisfação por meio dessa submissão, seja ela satisfação efe- exerce sobre ele. São esses dois órgãos da sociedade civil
tiva ou somente reconhecida como tal. " O bem-estar que impedem a formação do "populacho" e conjuram
:
[Wohl] é, dentro do sistema das necessidades, uma deter- desse modo o principal perigo que a ameaça.
minação essencial. O universal, que de início é apenas o :

direito, deve portanto estender-se a todo o campo da par-


O populacho e a consciência de classe
ticularidade... Na medida em que eu estiver completamen-
te enredado na particularidade, terei o direito de exigir Desde o início de sua análise do sistema das neces-
que em toda essa conexão o meu bem-estar particular tam- sidades, Hegel mostrou que esse sistema traz a marca de
bém seja favorecido..." (Adendo ao § 229). E por isso que uma contradição fundamental, que se encontra na base
o exercício do direito, a aplicação das leis, em suma, o da sociedade civil, em que o universal e o particular estão
que se chama justiça enquanto jurisdição (juizes, tribu- apenas reunidos sem realmente se fundir: eles mantêm
desse modo a sua diferença. "Quando a situação social
I
54 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY A sociedade civil 55 (

l
orienta-se no sentido da multiplicação e da especificação noção de classe, que para Hegel é mais abstrata que a no- í
indeterminada das necessidades — meios e gozos que, as- ção de estado, corresponde melhor à sociedade civil — na
sim como a diferença entre necessidades naturais e neces- qual ela reforça essencialmente o lado negativo — do que (
sidades não formadas pela cultura, não têm limite —, em a noção de Stand, que, por um lado, está mais próxima
(
resumo, no luxo, há um aumento igualmente infinito da da determinação substancial da família, e, por outro, da
(
dependência e da falta" (§ 195). Os membros da socieda- determinação racional do Estado, determinações estas
de civil repartem-se então entre os dois pólos extremos, (
cujos laços mútuos ela garante.
os ricos e os pobres, e essa oposição tende incessantemen- <
Forma-se o "populacho" no momento em que essa
te a se agravar: é a unidade orgânica da ordem c o m u m noção de classe encontra seu espaço na análise kegelwna
que é então reposta em questão. do direito: Hegel utiliza aqui o termo Pobel, do \zúm plebs, (
Exatamente nesse momento do desenvolvimento da expressão que designa justamente o povo em revolta con-
sociedade civil surge a noção de classe (Klasse), à qual a tra a situação miserável à qual está condenado e pela qual
análise de Hegel não havia feito n e n h u m a referência até ! é privado desse bem-estar que seria a condição de sua sa-
I
então; ela designa a crescente separação entre categorias ! tisfação e do seu consentimento à ordem c o m u m . Aí, en-
de indivíduos cujos interesses divergem cada vez mais, à tão, como explica o § 244 [ T E X T O 8], o indivíduo "aca-
medida que a acumulação de riquezas se torna também, ba perdendo o sentimento do direito, da legalidade e da
no outro pólo da sociedade civil, acumulação de pobreza. honra que há em subsistir graças à sua atividade e ao seu
N o m o m e n t o em que essas "classes" se constituem, a re- trabalho", isto é, ele deixa de se representar ele próprio e «
presentação da sociedade, considerada como u m todo, se para si próprio, como alguém pertencente a uma coletivi- (
desfaz, deixando campo livre para conflitos que, no de- dade solidária. Essa revolta está ligada ao estado de i
correr do tempo, questionam a própria existência da co- despojamento no qual ele estiver mergulhado: mas o po- 1
letividade. E essa noção de classe (Klasse) que exprime bre somente se revolta caso represente para si a sua misé-
<
então a idéia exatamente contrária àquela que era pensa- ria como algo intolerável, pondo novamente em questão
da por meio da noção de "estado" (Stand): enquanto esta a sua própria existência. Hegel explica, assim, no Adendo
última representa a integração do indivíduo em um con- ao § 244 [ T E X T O 8], que "nunca é a pobreza que faz
junto ao qual ele pertence organicamente, e por intermé- com que alguém pertença ao populacho. Este somente é (
dio do qual ele próprio se torna membro de uma coletivi- determinado como tal pela mentalidade que estiver liga-
dade, a outra corresponde ao m o m e n t o em que este da à pobreza". Reencontramos aqui a idéia fundamental
vínculo se desagrega, ao mesmo tempo era que desapare- de que a sociedade civil funciona movida pela representa-
ce toda idéia de interesse comum. D e certa forma, essa ção e pela opinião; a miséria só é perigosa para a comuni-
56 JEAN-! IE MACHEREY A sociedade civil 57

dade a partir do momento em que é sentida como tal, O imperialismo da sociedade civil
isto é, na medida em que se reflete em u m estado de espí-
rito que a torne insuportável do ponto de vista do indiví- A sociedade civil, "pela dialética que lhe é própria"
duo que sofre seus efeitos. No limite, a pobreza é primei- (§ 246) [TEXTO 9], está presa em um círculo vicioso,
ramente para Hegel uma forma de consciência, ou pelo do qual só pode sair tomando o caminho de uma pro-
menos é nessa qualidade que ela determina o "ser de clas- gressão indefinida: esta lhe permite de certa forma proje-
i se" do iiidivMün Todas as reflexões que irão se desenvol- tar para o exterior de si mesma os conflitos que estão ins-
ver depois de Marx a respeito da noção de classe e em tor- critos em sua natureza, isto é, exportá-los. E por isso que
no do problema da relação entre "ser" e "consciência" de ela está condenada ao crescimento, isto é, à colonização e
classe têm origem aqui. à conquista; sua vocação imperialista latente é o sintoma
de seu poder e, ao mesmo tempo, de sua fraqueza.
E necessário que a sociedade se proteja contra os
maus pensamentos. E é para isso que serve a sua polícia, Encontramos novamente aqui a categoria da exte-
que lhe dá os meios não apenas para reprimir essa revolta, rioridade que marca de ponta a ponta a constituição da
como também para preveni-la. Para isso, ela instala todo sociedade civil: porque ela é u m "Estado exterior", deve
um regime de proteção e de assistência que defende os procurar no lado de fora as soluções que lhe permitam
pobres contra eles mesmos, socorrendo sua miséria; mas superar suas dificuldades internas. Do lado de fora, isto
esse socorro, se for apenas material, não devolve ao indi- é, "em outros povos", em que irá procurar matérias-primas
víduo o sentimento de dignidade própria, de sua honra e mercados que lhe permitam sufocar o protesto de seus
como membro da sociedade civil, que tem seu lugar no próprios desfavorecidos, dos quais sempre pode surgir o
conjunto da sua divisão de trabalho. E é por essa razão espírito de revolta que torna inevitável a formação, para
que, como explica o § 245, esse socorro não passa de um ela mortal, de um populacho. E necessário então que ela
paliativo que permite adiar o problema, sem verdadeira- faça com que outros paguem o preço de sua segurança:
mente resolvê-lo. " O que aparece aqui é que em seu ex- ela só se mantém à custa da desigualdade de desenvolvi-
cesso de riquezas a sociedade civil burguesa não é sufi- mento entre os povos, a qual lhe permite transferir para
cientemente rica, isto é, não possui suficientemente a os mais fracos os aspectos mais negativos de seu próprio
riqueza que a caracteriza para poder remediar o excesso crescimento. Aparentemente, n e n h u m limite pode con-
de pobreza e deixar de engendrar um populacho." A so- ter essa expansão.
ciedade civil burguesa está então condenada a um cresci- Aqui, no § 247 [TEXTO 9], Hegel deduz logica-
mento ilimitado. mente desse princípio uma conseqüência espantosa: a
vocação essencialmente marítima da sociedade civil, que
(
<
58 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY A sociedade civil 59

consegue assim se abrir para o exterior e para essa pers- última: a corporação, que atua, não no exterior da socie-
pectiva indefinida de conquista de que tem necessidade dade civil, como a colonização, mas no interior dela. <
para sobreviver. Ela está voltada para o mar, que de qual- [Note-se que Marx termina o Livro I de O capital com
(
quer forma se apresenta como o "elemento" por excelên- um capítulo sobre a colonização, à qual ele atribui a mes-
(
cia da mediação e da reflexão, ao passo que a família per- ma função (de resolver as contradições da sociedade capi-
(
manece presa à terra, na qual de certo modo ela própria talista), e que está votada ao mesmo fracasso (ela só trans-
está plantada. E por isso que "todas as nações animadas porta a contradição). Mas, em Marx, a corporação torrxã.-ac
por u m esforço interior precipitam-se para o mar", pois a associação livre dos trabalhadores, a cuja organização (

este materializa para elas o poder de ir além de seus limi- política leva.] <

tes naturais e de nele encontrar um exutório para seus (


problemas. (
A corporação
A colonização oferece, literalmente, uma saída para (

os males de que sofre a sociedade civil: "Ela oferece a uma A função da corporação decorre das considerações ;
parcela de sua população o retorno ao princípio familiar" anteriores: ela mantém o indivíduo no lugar que lhe cabe «
(§ 248) [TEXTO 9], isto é, permite-lhe recomeçar em dentro do sistema global da sociedade civil, impedindo-o (
outro lugar uma existência que aqui se tornou impossí- de se afastar dele para entrar na lógica infernal do lucro e
vel. Mas, evidentemente, isso não é uma solução, ou, no da revolta. Chega a esse resultado instaurando entre seus i
m í n i m o , não passa de uma solução fortuita; apenas des- membros uma forma de solidariedade associativa, baseada
loca o problema, que se reproduz indefinidamente sob no seu trabalho e na divisão geral na qual esse trabalho se <
u m a forma cada vez mais agravada. Pois, ao aumentar seu inscreve: essa solidariedade não existe somente de fato,
poderio, a sociedade civil também multiplica suas carên- como na corporação feudal; ela é desejada e organizada
cias e assim se expõe a conflitos cada vez mais insolúveis; de maneira que sirva de intermediária entre a unidade
é o próprio exemplo daquilo que Hegel chama, em sua imediata da família — de acordo com o § 252 [ T E X T O
Lógica, a "má infinidade", cujo conteúdo puramente ex- 10], a corporação é uma "segunda família" — e a universali-
terior é apenas negativo e fracassa em resolver positiva- dade efetiva do Estado (Staat) que ela prepara. A seu modo, <
mente a contradição da qual surgiu. isto é, dentro dos limites particulares que lhe são impostos
Portanto, não se deve ter muitas ilusões sobre o pela divisão do trabalho que se encontra na base do sistema
valor desse remédio, que é, mais exatamente, um expedi- de necessidades, ela representa o Estado como tal no âm- i

ente. E por isso que, para garantir sua unidade e sua se- bito da sociedade civil: é por isso que lhe cabe garantir a t
gurança, a sociedade civil deve recorrer a uma mediação transição de uma ao outro, como Hegel expõe no § 256,
60 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY A sociedade civil 61

ao qual voltaremos. Poder-se-ia esperar que fossem a do pela coletividade. Assim, "o fim egoísta, mesmo estan-
polícia e o aparelho judiciário que manifestassem a do orientado para a sua particularidade, percebe-se e põe-
presença do Estado na sociedade civil: ora, não é assim. É se em atividade ao mesmo tempo, como u m fim univer-
por intermédio do seu pertencimento à corporação que o sal" (§ 251) [TEXTO 10].
indivíduo particular, sujeito econômico da sociedade ci- Recusar-se a reconhecer a exigência de uma tal
vil, torna-se cidadão do Estado, sujeito político no sentido mediação é retornar a uma concepção abstrata e tendencio-
estrito. A corporação desempenha portanto um papel es- samente terrorista da ordem social. No Adendo ao § 255
sencial de mediação que é fundamental para o desen- de sua Filosofia do direito, Hegel faz referência às leis de-
volvimento da sociedade: não estando ainda dentro do cretadas pelos revolucionários franceses contra as associa-
Estado, ela/íZ não está mais inteiramente na sociedade civil. ções operárias: "Se em períodos recentes foram suprimidas
A corporação preenche inicialmente esse papel ga- as corporações, isto significava que se supunha que o indi-
rantindo a segurança do indivíduo, permitindo-lhe assim víduo particular deveria se responsabilizar por si mesmo.
se elevar acima dos limites de seu interesse particular, para Mas, de qualquer forma, ainda que se possa admitir isso,
aceder a uma representação de conjunto da coletividade e a corporação não modifica a obrigação de o indivíduo
da sua própria destinação social. E o consegue implan- providenciar ele próprio a aquisição daquilo que lhe é
tando um sistema de proteção e garantia que suscita o necessário. Em nossos Estados modernos, os cidadãos têm
contentamento e o consentimento do membro da socie- apenas uma participação limitada nos negócios universais
dade civil. Ao mesmo tempo em que satisfaz a reivindica- do Estado; ora, é entretanto necessário proporcionar ao
ção individual pelo bem-estar, transfigura o significado homem sittlich, no nível de seu universo ético-spcial, uma
dessa reivindicação, conferindo-lhe um valor universal: a atividade exterior aos seus próprios fins privativos. Esse
corporação "contém esses dois momentos (a particulari- universal, que o Estado moderno nem sempre lhe ofere-
dade subjetiva e a universalidade objetiva) que, na socie- ce, ele o encontra na corporação" [ T E X T O 10]. Supri-
dade civil, estão inicialmente divididos, por um lado, em mir as corporações é pressupor que entre o universal — o
particularidade da necessidade e do gozo refletida em si Estado — e os particulares — os indivíduos — possa se esta-
mesma, e, por outro lado, em universalidade jurídica abs- belecer uma relação direta e transparente, portanto, sem
trata — reunidos de maneira interna, de tal sorte que, nes- mediações. Mas uma ilusão como essa somente pode acres-
sa reunião, o bem-estar particular é realizado ao mesmo centar riscos de conflitos indefinidos, que incessantemente
tempo em que existe enquanto direito" (§ 255) [ T E X T O questionam a unidade da coletividade social, e tornam
10]. Na corporação, o desejo de segurança do indivíduo inevitável um regime de terror.
torna-se um direito, e é enquanto tal que ele é reconheci-
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A corporação, pelo contrário, realiza essa unidade, tação adequada de sua situação de maneira que reflita a
porque ela insere o indivíduo — quando reconhece nele particularidade da atividade individual, pondo-a em re-
(
uma aptidão para exercer determinada tarefa — em um sis- lação com o universal. Essa representação, na medida em
tema global no qual a sua atividade particular recebe uma que é formada e transmitida no âmbito da corporação,
dignidade universal. C o m o Hegel explica no § 252 de sua deixa de ser uma opinião contingente, mas recebe u m <
Filosofia, do direito [ T E X T O 10], o h o m e m que tem seu (
suporte legal que a estabiliza e lhe confere u m significado
ofício, membro de uma corporação, preenche uma fun- racional coletivo, como indica o § 254 [ T E X T O 10].
ção necessária e permanente em virtude de u m privilégio A corporação dá ao indivíduo a consciência do seu c
que lhe é legalmente reconhecido e conferido enquanto ser social: ela evita para ele a tentação de se isolar em sua t
trabalhador. Assim, ele se distingue fundamentalmente do | particularidade e de reconduzir tudo a si mesmo, ao in- (
"diarista". Este, livre com relação a uma tal determinação i vés de se referir ao todo no qual tem lugar. E por isso que (
universal, é relegado à contingência da sua pura particu- a corporação é a proteção mais eficaz, por meio da qual a \
laridade e ganha o pão de um único dia, formando a cli- sociedade civil pode defender sua ordem: ela previne o
entela do populacho, que ameaça a estabilidade da ordem (
social.
espírito de revolta, combatendo as suas causas profundas. c
Como explica a Observação ao § 2 5 3 [ T E X T O 10]:
O pertencimento de um indivíduo à sociedade ci- "Quando não é mais membro de uma corporação juridi- t
vil é assim sancionado pelo fato de que a sua atividade é camente habilitada, o indivíduo não tem essa honra liga-
I
legalmente reconhecida. A corporação é o aparelho desse da a um estado social; fica reduzido, em virtude do seu
I
reconhecimento; ela funciona portanto como u m verda- isolamento, apenas ao lado egoísta da indústria", daí por
deiro aparelho ideológico. D e acordo com o § 2 5 3 [TEX- (
diante seu comportamento deixa de ser regulado por uma
T O 10], "torna-se assim reconhecido que ele (o indiví- representação racional e tende a afastar-se das normas co- I

duo) faz parte de um todo que é, por sua vez, u m elo da muns. O populacho, que é por assim dizer a corporação
(
sociedade universal; que ele tem interesse nos objetivos dos descontentes — ou a corporação daqueles que não per-
desinteressados aos quais esse todo visa: assim, ele tem sua (
tencem a n e n h u m a corporação da qual pudessem ter
1
honra no seu estado social". O que a corporação fixa, an- aprendido sua dignidade de ser social —, é a negação da
tes de mais nada, é portanto um estado de espírito que é corporação: ele se forma quando a corporação deixou de <
ao mesmo tempo particular e universal: é ela que dispen- cumprir o seu papel. (
sa a "cultura" necessária para que a sociedade mantenha A corporação define-se, portanto, essencialmente
sua coesão; não somente garante a seus membros um "es- por seu espírito, que encarna o universal — isto é, o senti- (
tado" (Stand), como também lhes inculca uma represen- do comunitário que afasta o indivíduo de sua meta egoís- (
64 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY

ta_— no particular, a partir do privilégio que é legalmente


reconhecido a uma determinada atividade, no âmbito da 0 Estado
divisão do trabalho própria à sociedade civil: segundo o
§ 256, ela converte ao universal "uma finalidade limitada
e finita". É assim que ela realiza a passagem a esse espírito
realmente coletivo, que já não está, pelo menos de direi-
A idéia do Estado
to, limitado por uma particularidade, tal como ele se efe-
tua no Estado (Staat). E por isso que a existência da O Estado "sai" da sociedade civil por intermédio
corporação, que corresponde à forma de socialidade à qual da corporação. Como indica o § 256, "esse desenvolvi-
acede o indivíduo como sujeito econômico, conduz à exis- mento da Sittlichkeit, da ética social imediata, que passa
tência do Estado, que ela exige e prepara: segundo o § pela cisão da sociedade civil burguesa e vai até o Estado —
255 [TEXTO 10], o Estado se enraíza na corporação, cujas que se verifica ser seu verdadeiro fundamento — e que cons-
aspirações ele prolonga, fornecendo-lhes os meios para titui, sozinho, a prova científica do conceito do Estado".
uma completa realização. A corporação corresponde, por- O Estado é, ao mesmo tempo, resultado de todo o pro-
tanto, ao momento da superação (Aufhebung) da socieda- cesso da Sittlichkeit e aquilo que dá base a esse processo.
de civil: a partir dela, produz-se o Estado, do qual ela é O desenvolvimento da Sittlichkeit, que é o resultado de
condição de existência e antecedente racional. todo o ciclo do direito ao qual confere uma justificação
retrospectiva, é ele próprio um ciclo que encontra seu fun-
damento em sua meta, em sua finalidade. N o m o m e n t o
em que o ciclo termina, seu desenrolar se apresenta em
sentido exatamente inverso ao do percurso que revelou
progressivamente seu conteúdo racional, e então, "é a pró-
pria idéia do Estado que se divide nesses dois m o m e n -
tos", o da família e o da sociedade civil. Tudo se passa como
se o Estado já estivesse presente em si nessas duas primei-
ras formas de Sittlichkeit, pois elas já expunham a idéia
do Estado de uma maneira que ainda não estava comple-
tamente resolvida e, em razão dessa insuficiência, devia se
submeter à prova da mediação e da superação, antes de
chegar à efetividade.
*
!
66 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 61
O Estado r

A partir dessa consideração, fica claro que, para I


gou ao seu desenvolvimento completo e encarnou em uma
Hegel, não se trata de construir a idéia do Estado a partir si
forma concreta. Hegel diz ainda, no Adendo ao § 258
de elementos externos, dos quais o Estado resultaria por [TEXTO 11], que "o Estado é o Espírito que se dá no
simples junção, sob a forma, por exemplo, de u m a soma mundo e que se realiza conscientemente nele". "No m u n -
de poderes políticos justapostos; e sim, de mostrar como do": esta fórmula não deve ser entendida somente no sen-
este se constitui por seu próprio desenvolvimento ima- tido de uma manifestação fenomênica ou de uma apre-
nente, retornando para si mesmo, para revelar-se afinal em sentação empírica. C o m o explica o segundo parágrafo da
uma forma que realiza a integração total de seus momen- Observação do § 258, o caráter concreto do Estado per-
tos. A dedução racional dessa idéia, a lógica do Estado, tence a este último enquanto idéia, isto é, enquanto é efe- M
consiste no movimento de sua autoprodução, durante o tivo: essa idéia não deve portanto ser confundida com a
qual ela se apresenta como ao mesmo tempo a condição e existência histórica deste ou daquele Estado, determina-
o resultado dessa gênese. da na sua singularidade por condições específicas; mas ela
E isto que dá sentido a uma expressão bastante coincide com o princípio racional c o m u m a todas essas ir*
inesperada que se encontra no § 258 [ T E X T O 11] da Fi- realizações, que tiram dela sua verdade. Ora, "a investiga-
losofia do direito: " O Estado é o racional em si e para si ... ção científica só lida com a substância interior de tudo
uma finalidade própria, imutável e absoluta". Por que isto, com o conceito pensado".
imutável, se apareceu durante o movimento de seu pró- O que caracteriza esse princípio racional e garante
Q
prio desenvolvimento? Porque, ao longo desse movimen- sua efetividade? Primeiramente, seu aspecto consciente. D e
to, ele jamais deixou de estar ao pé de si mesmo, em casa acordo com o final do parágrafo primeiro da Observação i
(hei sich), presente a si mesmo: e o ciclo dialético só fez do § 258, ele representa "uma ação que se determina se- I
revelar, exibir, o que ele era em si, desde o início, de acor- gundo leis e princípios pensados, isto é, universais". En-
do com o conteúdo inalterável de seu conteúdo racional. quanto na família a consciência era r e c o n d u z i d a ao
E por isso que, no final do primeiro parágrafo da Observa- instinto natural e na sociedade civil era limitada a u m a
ção do § 258 [ T E X T O 11], Hegel escreve ainda que "essa opinião mais ou menos adequada a seu conteúdo, no Esta-
idéia é o ser em si e para si eterno e necessário do Espírito". do, pelo menos de direito, torna-se consciente e explícita:
D e acordo com a primeira frase da seção da Filoso- quer dizer, ela atinge a universalidade que é sua verdadei- ]
fia do direito dedicada ao Estado, que citamos aqui em ra destinação, pois uma consciência que continua sendo
alemão, "der Staat (o Estado) ist die Wirklickkeit (é a efeti- particular não é totalmente consciente de si mesma.
vidade) der sittlichen Idee (da idéia àa.Sittlichkeit)", (§ 257) <3
T e n d o atingido essa consciência de si (Selbst-
[TEXTO 11]. Isto significa que no Estado essa idéia che-
beivusstsein), o Estado é livre, pois é "o racional em si e .1
68 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 0 Estado 69

para si... chegado a seu fim absoluto, onde a liberdade Contra Rousseau
acede ao seu direito supremo" (§ 258) [ T E X T O 11]: nele,
o Espírito se liberou de toda determinação exterior, e só , N o Estado, a relação do indivíduo com a coletivi-
tem relação consigo mesmo. Mas a liberdade do Estado dade é completamente invertida em vista do que ela era
seria também liberdade no Estado? Hegel precisa que "esse nas formas anteriores da Sittlichkeit. Aqui, é o universal
fim próprio tem em face dos indivíduos singulares o di- que é tomado conscientemente como meta, e o particu-
reito supremo, enquanto o dever supremo destes últimos lar, apenas um meio a seu serviço. E ao aceitar essa subor :
é serem membros do Estado" (ibid.). Nesse nível não há, dinação, que o indivíduo.alcança uma existência efetiva:
ao que parece, reciprocidade entre os direitos e os deve- "O indivíduo propriamente dito só tem objetividade, ver-
res, ou antes: só há reciprocidade entre os direitos do Es- dade, Sittlichkeit, se for membro de um Estado ... a des-
tado e os deveres dos cidadãos. O único direito de que tinação dos indivíduos é levarem uma vida universal"
dispõe o indivíduo com relação ao Estado é o de respeitar (Observação do § 258) [TEXTO 11]. Aí, então, "é a união
as leis deste, portanto, de cumprir por si mesmo o seu enquanto tal que é a finalidade e o conteúdo verdadei-
dever, que se apresenta a ele como uma meta racional da ros". Diante destes, o interesse singular do indivíduo per-
qual não pode se afastar, a menos que renuncie à mais alta de todo valor próprio, porque ele descobre que só pode
dignidade à qual pode aspirar: a de cidadão de um Esta- realizar-se conformando-se completamente às exigências
do livre. do interesse geral.
Livre e consciente de si próprio, o Estado tem o E por essa razão, como lembra Hegel no início da
valor de uma meta, de um rim. Toda forma de existência Observação do § 258, que é tão importante nãoconfun-
social deve, segundo Hegel, ser remetida a ele, porque nele dir o Estado com a sociedade civil, sob pena de lhe adul-
ela encontrará seu significado racional. Isto quer dizer que terar completamente o conceito. E o que já mostramos
em seu nível todas as contradições surgidas no curso do ao explicar o Adendo ao § 182 [TEXTO 2], no qual Hegel
desenvolvimento da Sittlichkeit, e que serviram de motor criticava os teóricos modernos que ignoraram essa distin-
para este processo, estão resolvidas: a idéia da Sittlichkeit ção entre "uma união que é uma simples comunidade", à
se apresenta aí como um todo, porque aí se encontra com- maneira da sociedade civil, e a coesão orgânica do Esta-
pletamente reconciliada consigo mesma. Resta perguntar- do. Fica claro que Rousseau está sendo visado aqui; no
mos se, no seu funcionamento real, o Estado estaria de- terceiro parágrafo da Observação do § 258, Hegel se refe-
sembaraçado de todo e qualquer conflito, isto é, se com re explicitamente à doutrina do contrato social, sublinhan-
ele a oposição do objetivo e do subjetivo estaria definiti- do ao mesmo tempo o seu interesse e as suas limitações.
vamente superada.
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Hegel indica inicialmente aquilo que Rousseau A concepção contratual da sociedade está portan-
compreendera bem: "Ele instaurou a vontade como prin- to viciada em seu princípio: reduzindo a liberdade políti-
cípio do Estado", isto é, estabeleceu o conteúdo essenci- ca ao ato de decisão da vontade individual, ela revela-se
almente espiritual de seu conceito. A realidade do Estado incapaz de dar u m conteúdo concreto a seu conceito e se
não é somente natural, ela não depende da carência, isto fecha na abstração: "De onde resultarão ulteriormente
é, de um instinto inicialmente sem consciência: mas ela conseqüências que só têm racionalidade na ordem do en-
se apoia na existência de uma vontade livre e universal. É tendimento, e que destroem o divino em si e para si, sua
o que exprime bem, na teoria de Rousseau, a ruptura en- majestade e sua autoridade absoluta". O divino em si e
tre o estado de natureza e o estado de sociedade, cuja idéia para si é a idéia efetiva do Estado, ou a sua "idealidade",
Hegel retoma implicitamente, interpretando-a no senti- que consiste na preeminência absoluta da sua unidade glo-
do de uma concepção completamente espiritualista do bal sobre os elementos que lhe pertencem e que ela con-
Estado. trola totalmente. Fundamentar a existência do todo so-
Mas, segundo Hegel, Rousseau pára aqui em sua cial no consentimento dos indivíduos, como o pressupõe
construção racional do Estado, sendo incapaz de dar um o conceito de vontade geral, é desnaturar seu conteúdo
conteúdo substancial a essa vontade, porque, para ele, a racional.
o p o s i ç ã o d o p a r t i c u l a r e do u n i v e r s a l p e r m a n e c e E a Revolução Francesa, à qual Hegel alude no pa-
intransponível. "Ele só concebeu a vontade sob a forma rágrafo seguinte da Observação do § 258, que mostra da
determinada de uma vontade singular." Essa vontade é melhor maneira os efeitos negativos da teoria do contra- i
determinada no sentido negativo desse termo; em outras to. Nela, as abstrações da representação tornam-se terror
(
palavras, é limitada inicialmente pelas condições de um nos fatos, sob a forma de u m "espetáculo monstruoso,
(
interesse particular. O contrato social, que se apoia nessa inaudito em memória humana", pois "fizeram desta ten-
' :
vontade, corresponde ao esforço de construir a totalidade tativa o episódio mais cruel e mais assustador que existe".
social a partir de seus elementos constitutivos, à maneira Na base desse empreendimento encontra-se a pretensão
de uma junção. Um tal procedimento, que parece legíti- de "recomeçar a constituição de u m Estado radicalmente
pelo princípio, partindo do pensamento e derrubando (
mo na esfera da sociedade civil, é totalmente inadequado
à natureza específica do Estado. Este, segundo a idéia que tudo aquilo que existia anteriormente", isto é, suprimin-
o define, procede ao contrário a partir do todo, que des- do as mediações — não é por acaso que os revolucionários
de logo inclui todas as suas partes como membros, segun- proibiram as corporações — que permitem enraizar a exis- <
do um princípio de coesão orgânica, e este não pode ser tência dos indivíduos na vida da coletividade, e recipro-
reduzido a u m a montagem mecânica. i camente. Apresenta-se então o universal como um imedia-
i

:
c

72 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY O Estado 73

to, quando, ao invés, ele somente pode resultar, enquan- crucial para a sociedade civil; quando se trata do Estado,
to meta e enquanto fundamento, do processo através do já nem é mais necessário pô-lo.
qual ele se efetua e somente no qual se completa. Reconduzir o Estado ao ponto de vista da cons-
Em suas Lições sobre a filosofia da história, Hegel ciência individual é portanto desnaturar seu conteúdo ra-
apresenta a Revolução Francesa como "um soberbo nas- cional e comprometer sua racionalidade imanente. E ne-
cer do sol". Essa imagem deve ser tomada ao pé da letra: a cessário afirmar, ao contrário: "Na medida em que é o
alvorada é, para a idéia, o momento de sua aparição ime- Estado que é o Espírito objetivo, o indivíduo propria-
diata, na qual ela se apresenta de uma só vez, em uma for- mente dito só tem objetividade, verdade, uma Sittlichkeit,
ma que é necessariamente abstrata, porque ainda lhe fal- na medida em que é membro do Estado" (Observação ao
tam as condições de seu desenvolvimento efetivo. Segundo § 258). O Estado é análogo a u m organismo composto
uma fórmula célebre do Prefácio dos Princípios da filoso- de membros cuja regra de existência é dada pela lei de fun-
fia do direito, o momento simbólico do racional é, ao con- cionamento do todo: ele não é redutível a uma junção de
trário, o crepúsculo, m o m e n t o em que o dia termina, partes, quer se trate de indivíduos, de famílias ou de gru-
quando o processo se completou através da série total de pos, nem mesmo de "partes contratantes" que lhe seriam
suas mediações. A filosofia que os revolucionários france- preexistentes e lhe ditariam sua própria lei.
ses herdaram de Rousseau é, portanto, uma filosofia im-
paciente, presa à ficção do imediato e de suas origens e,
por esse fato, condenada à abstração e ao terror. O Estado como indivíduo e sua constituição histórica
Reconduzindo a idéia de Estado a um contrato fir- Se o Estado como tal não é redutível ao ponto de
mado entre indivíduos, dependente da vontade deles, de vista e às iniciativas dos indivíduos que são somente seus
sua decisão livre, no sentido de que é arbitrária, priva-se membros, é também porque ele próprio é uma individua-
essa decisão de sua autonomia e, portanto, também de sua lidade: ele existe como indivíduo, senão como u m indiví-
exigência [necessite], e afinal a pomos em contradição con- duo, e é essa característica que se exprime através de sua
sigo mesma. O princípio do Estado é realmente a vonta- constituição (Verfassung).
de, como Rousseau o vira, mas não é a vontade individu- Na Observação ao § 274 [TEXTO 13], Hegel con-
al, pois "a vontade objetiva é o que é racional em si em tinua sua crítica da Revolução Francesa e da ideologia
seu conceito, sendo ou não reconhecido pelos indivíduos
abstrata que a inspira, pois esta é própria do funciona-
singulares, sendo ou não desejado pela sua vontade".
mento da sociedade civil. Ele denuncia, uma vez mais, "a
C o m o já mostramos, o problema do consentimento é
tentativa de começar radicalmente pelo início a consti-
tuição de um Estado" (Observação ao § 258) [ T E X T O
(

74 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 0 Estado 75


I

<
11], que tende a reduzir esta última a uma construção ar- cio dos Princípios da filosofia do direito, em que afirma a
(
tificial, dependendo do arbitrário de uma iniciativa sin- identidade do racional (vernünftig) e do efetivo (wirklich):
gular. U m exemplo é dado pelo Adendo ao § 274 [TEX- "Poder-se-ia crer que nunca houve Estado nem constitui-
T O 13]: ao querer impor à Espanha uma constituição ção política no m u n d o , e ainda menos em nossos dias,
completamente nova, sem relação com a sua história, com como se agora (e esse agora se perpetua indefinidamente)
sua tradição nacional, nem com seu nível de desenvolvi- devêssemos recomeçar tudo desde o princípio, como se o
l
mento, Napoleão só poderia ter fracassado em sua em- mundo da Sittlichkeit tivesse aguardado essa busca atual
presa, que, aliás, é interpretada na lógica de uma política para que dele tivéssemos um conhecimento aprofundado,
de expansão e anexação, característica da "má infinidade" em que ele encontrasse seu fundamento". Recomeçar tudo
própria à sociedade civil. " C o m efeito, uma constituição desde o princípio: esta \àéh-; que já encontramos várias
não é algo que se fabrique simplesmente desse modo. E o vezes, significa a recusa de se levar em conta o caráter efe-
resultado do trabalho de povos inteiros: a idéia e a cons- tivo da idéia do Estado, isto é, o fato de que ela é o resul-
ciência daquilo que é racional tanto quanto elas puderam I tado de um processo de elaboração do qual não pode ser
se desenvolver em um povo. E por isso que não existe cons- separada, e apenas no interior do qual ela recebe u m a sig-
tituição que seja simplesmente criada por sujeitos." Pois ! nificaçao racional.
é o próprio Espírito, na medida em que se encarna na idéia Somente uma filosofia impaciente pode ignorar a
de um Estado, que procede a essa elaboração e lhe confe- exigência de se pensar o Estado segundo sua lei imanente, ! '
re seu caráter efetivo. E portanto o processo da história isto é, de ter a paciência de seguir a lei de sua gestação e (
universal que produz paulatinamente as formas de Esta- de se dar o tempo necessário para apreender, u m após o
(
do que correspondem às características próprias de cada outro, os momentos de sua formação, em lugar de questio-
(
povo: a condição individual de um Estado depende sem- nar arbitrariamente e, de certo modo, por princípio, os
pre de tais condições históricas. homens e as instituições estabelecidos. Tocamos aqui n u m
E essa exigência que confere ao Estado seu caráter aspecto muito importante do pensamento de Hegel, que
racional, e este coincide com a sua efetividade. N ã o a le- aparentemente o isola radicalmente de todas as concep-
var em conta é apoiar-se em uma concepção errônea da ções políticas que se desenvolveram dentro do contexto
racionalidade, até então apresentada como exterior e opos- do Iluminismo: mas aqui não se trata apenas de uma re-
ta ao real e, portanto, assumindo a forma de u m dever- cusa das utopias políticas e de seu vonluntarismo abstra-
ser abstrato e arbitrário ao qual não corresponde n e n h u m to; trata-se, sobretudo, de criticar uma certa forma abusiva
conteúdo (é o verbo alemão sollen que exprime essa idéia de racionalismo,
il do nos programas e na po-
que esta agindo
de um dever-ser). Assim, como observa Hegel no Prefá- >
lítica correntes.
76 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 0 Estado 77

Uma passagem bastante conhecida do Prefácio da não podia ser compreendido: ele representa, então, a fi-
Fenomenologia do espírito exprime, de maneira particular- gura trágica da história, fadada ao fracasso, porque o tem-
mente clara, esse raciocínio: "Visto que a substância do po do reconhecimento ainda não havia chegado para ela.
indivíduo, visto que o próprio Espírito do m u n d o , teve a Jyías, ao mesmo tempo, Hegel observa que essa mensa-
paciência de percorrer essas formas na longa extensão do gem prematura — que de fato só encontrará seu conteúdo
tempo e de tomar nos ombros o prodigioso trabalho da com a constituição do m u n d o cristão, pois este último
história do mundo, modelando em cada forma seu con- dará à consciência sua interioridade — aparece também
teúdo inteiro, na medida da capacidade dessa forma, e como "uma exigência de sua época" (Observação ao § 274)
visto que ele não podia com menor labor atingir a consci- [TEXTO 13]. Vale dizer, para além do destino pessoal"do
ência de si mesmo, o indivíduo, de acordo com a própria indivíduo, de sua tragédia e de seu fracasso relativo, exis-
coisa, não pode fazer menos para conceber a sua substân- te a significação universal de seu ato, que supera seus li-
cia" (Parte II). O indivíduo de que se trata, no início des- mites imediatos: a morte de Sócrates, que este não apenas
sa frase, encontra a sua "substância", vale dizer, a determi- sofreu, mas que ele próprio deliberadamente desejou, isto
nação racional de seu conteúdo, no Espírito universal e é, aceitou e compreendeu, levado por seu "daimôn", seu
objetivo que se faz mundo, no curso de sua própria histó- demônio, ou seja, pela voz de sua própria consciência ín-
ria, cujo conteúdo filosófico, aliás, foi exposto por Hegel tima, corresponde na história do Espírito ao momento
em suas Lições sobre a filosofia da história: como indivíduo da cisão. Exprime justamente essa reivindicação abstrata
singular, ele próprio só pode se conformar à lei desse^ro- de liberdade que é a contribuição específica do povo gre-
cesso global, no interior do qual sua existência toma uma go à cultura universal. Ao fazer Sócrates morrer, ao se re-
existência e uma legitimidade, contanto que respeite os cusar a ouvir a mensagem que sua própria verdade nega-
limites que lhes são impostos pela posição que ela ocupa tiva exprimia em profundidade, o povo grego nada mais
nele. fez do que exprimir, ele mesmo, seu próprio dilaceramento
Nas passagens da Filosofia do direito que estamos imanente, o conflito entre u m futuro e u m passado que
lendo, encontra-se um exemplo particularmente signifi- dilacera seu presente.
cativo a esse respeito, que Hegel trata detidamente em
outros textos. E o exemplo de Sócrates, citado no final da
O espírito de um povo: o Volksgeist
Observação ao § 274 [ T E X T O 13]. Sócrates, ao reivin-
dicar, no contexto da cidade grega, o princípio subjetivo O direito da vontade individual só pode portanto
da moralidade e da inferioridade, fundamentado no di- se fazer reconhecer ao se submeter à jurisdição do Espíri-
reito da consciência individual, teve razão cedo demais e to universal, pois é a intenção objetiva deste último que
78 JEAN^PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 0 Estado 79
(

ele efetua, até no caso extremo em que se põe diante dela de seu desenvolvimento, o Espírito universal encarna na
como uma entidade independente. A união de u m indi- figura exclusiva de um só povo; em seguida, quando o
víduo particular com o Espírito do m u n d o (Weltgeist) não processo do Espírito passa a um momento ulterior, a uma
é todavia uma união imediata: ela supõe todo u m con- nova fase de seu desenvolvimento, o povo com o qual ele
junto de mediações, entre as quais a mais importante é <
se identificou historicamente se acha privado desse privi-
aquela que a existência histórica de um povo realiza. Como légio histórico, dessa dignidade racional, que só lhe pode
acabamos de ver, foi por intermédio dos gregos que caber uma vez, de representar o Espírito em totalidade,
Sócrates entrou em comunicação, no sentido de uma co- tal como ele é n u m momento da sua evolução própria, (
municação histórica, com esse Espírito. O § 274 [TEX- isto é, de dar a sua individualidade uma forma histórica
T O 13] da Filosofia do direito indica que o Estado real, concreta, uma "figura" (Gestalt).
historicamente constituído, é o Estado enquanto espírito Um povo é primeiramente então, para Hegel, uma
de um povo. Essa noção de Espírito de u m povo (Volks- realidade espiritual enquanto constitui uma figura parti-
geist) é central na filosofia hegeliana da história, segundo cular do Espírito universal: esse Espírito do povo é deter-
a qual o Espírito configura-se historicamente através da minado como uma forma de consciência específica, his-
existência histórica dos povos, aos quais confere desse toricamente delimitada por meio da forma de cultura (
modo o seu "Espírito" particular, que não é nem o espíri- (Bildung) que propriamente lhe pertence. E o que expri- (
to singular dos indivíduos, nem o Espírito universal, tal me o § 274 [ T E X T O 13]: uma cultura histórica é "a lei i
como ele se efetua na totalidade do m u n d o e de sua his- que penetra todas as relações, todas as situações próprias
tória. Citemos essa passagem de "A razão na história": "A a um povo", e faz com que ela represente o Espírito uni-
forma concreta que reveste o Espírito (o qual concebe- (
versal, cuja consciência de si ela exprime, em u m certo
mos essencialmente como consciência de si) não é aquela grau. "E nessa consciência que reside a liberdade subjeti- i

de u m indivíduo humano singular. O Espírito é essenci- va desse povo"; não se trata aqui, evidentemente, da li-
almente indivíduo, mas no elemento da história univer- berdade subjetiva no sentido do indivíduo em particular,
sal não lidamos com pessoas singulares reduzidas à sua pois este se acha, ao contrário, submetido à cultura de seu
individualidade particular. Na história, o Espírito é um povo e de seu tempo, que ele não pode ultrapassar, e so-
indivíduo de uma natureza ao mesmo tempo universal e mente por essa mediação ele entra em relação com o Espí-
determinada: um povo; e o Espírito com o qual lidamos rito universal. Porque um povo só pode ser livre dentro
é o Espírito do povo" (La raison dans 1'histoire, trad. fran- dos limites que lhe são estipulados pela sua situação his-
cesa, Col. 10/18, p. 80). O pressuposto fundamental da tórica, por meio dos quais ele chega subjetivamente à cons-
concepção hegeliana da história é que, a todo m o m e n t o ciência de si mesmo.
80 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY O Estado 81

Essas noções recebem sua justificativa dentro do A constituição de um Estado não se reduz, portan-
quadro de uma filosofia da história que confere a essa jus- to, a uma junção artificial de elementos, "pois ela é verda-
tificativa o tipo de racionalidade que propriamente lhe deiramente aquilo que existe absolutamente em si e para
cabe: elas são necessárias para se compreender, no con- si e que, por essa razão, deve ser considerado como o divino
texto paralelo de uma filosofia do direito, como é deter- e durável, como algo que está acima da esfera das coisas
minada a constituição de um Estado. Esta não é regida fabricadas" (§ 2 7 3 , final da Observação). Vemos aqui que
pelos princípios de uma organização formal, isto é, por Hegel toma o termo "constituição" (Verfassung) no senti-
um conjunto de disposições legais que a caracterizariam do de uma fôrma política e ao mesmo tempo, no de uma
abstratamente: por exemplo, por referência à tipologia organização viva, no sentido que se diz de um indivíduo
tradicional das formas de governo (monarquia, aristocra- que ele tem uma boa constituição. Ela é o "organismo do
cia, democracia). No limite, tais disposições têm somen- Estado" (§ 267), na medida em que este é "constituído"
te uma significação acidental e dependem das condições de membros, que nele estão não apenas associados como
externas nas quais um Estado se "constituiu" no final de partes de uma junção mecânica, mas concretamente uni-
um processo de desenvolvimento que encontra seu princí- dos no desenvolvimento imanente de um processo: é este
pio na vida mesma do Espírito. Essa idéia se impôs mui- que lhe assegura sua coesão efetiva. " O Estado concreto é
to cedo à reflexão política de Hegel, pois já a encontra- o todo, cujas funções estão distribuídas em círculos par-
mos no ensaio escrito em I3CC sebee "A. Constituição da ticulares" (Observação ao § 308). E por,isso,que "todos
Alemanha": "Uma lei de Império não pode inscrever como os povos têm a constituição que lhes é adequada e que
que n u m quadro virgem a regra geral das linhas e dos seg- convém a cada um" (Observação ao § 274) [TEXTO 13],
mentos que é necessário traçar nele, nem se posicionar na porque esta constituição representa uma etapa do desen-
realidade segundo essa regra única: pelo contrário, uma volvimento do Espírito, que se configura encarnando-se
lei de Império encontra diante dela a matéria para a qual na existência histórica dos povos e que, para esse fim, en-
é feita, com suas determinações particulares e já existen- gendra as formas de Estado que lhes são adequadas.
tes" (Ecritspolitiques, Ed. C h a m p Libre, p. 7A). Essa "ma- Hegel não se cansa de voltar a essa metáfora
téria", que confere a uma constituição política o seu con- f
organicista para definir o direito do Estado: nós a reen-
teúdo próprio e seu princípio unificador, é a forma que a contramos, por exemplo, nos adendos aos §§ 2 6 3 , 267,
idéia de Estado assume em um determinado momento de 269, 274, e nas observações aos § § 278 e 286, que carac-
seu desenvolvimento, em relação a uma cultura nacional, »tí terizam a forma do Estado, aproximando-a da estrutura
ou ao Espírito de um povo. diferenciada de u m corpo vivo. Para que serve essa com-
paração, que nem é muito nova? Ela exprime, na obra de
82 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 0 Estado 83

Hegel, essencialmente o fato de que todos os aspectos da sendo, o Estado é o desenvolvimento completo do querer
"vida" do Estado estão integrados no movimento de uma objetivo do Espírito universal, que tende para a sua pró-
totalidade coerente, que tira dessa unidade a sua determi- pria unidade e reúne em cada uma das suas manifestações
nação racional, isto é, a forma de consciência ou de cons- todos os momentos anteriores de sua realização.
ciência de si, à qual lhe cabe ter acesso. E este aspecto que Nessas condições, segundo uma surpreendente fór-
também é desenvolvido na teoria do poder de Estado e mula do Adendo ao § 279 [ T E X T O 14], o Estado é "um
da soberania. hieró^lifo da razão que se apresenta na realidade". Vale
(
dizer, o Estado luniâ visível .na sua. organização convicta
i
Soberania e poder o princípio racional do querer do Espírito, do qual é a
/;
revelação. É por isso que, segundo uma expressão que re-
A idéia do Estado tem um conteúdo concreto: ela aparece em várias ocasiões no texto de Hegel, ele é tam- (
supõe a existência de uma vontade comum, como bem bém "o divino sobre a terra", esta expressão deve ser to-
viu Rousseau, que apenas cometeu o erro de construir essa mada ao pé da letra: significa que, no caráter soberano do
vontade sob a forma de um contrato a partir da decisão poder do Estado — que encontra sua necessidade em si
de vontades individuais independentes. A unidade orgâ- mesmo e não pode ser submetido à pressão arbitrária de
nica do Estado "constitui-se" a partir desse princípio que nenhum interesse exterior —, existe algo que faz dele o
primeiramente se exprime por meio da soberania do Es- análogo dessa razão absoluta e divina, da qual ele é a ema- \
tado ou de seu poder. Esse poder representa diretamente nação. Trata-se, de certa forma, de u m a c o n c e p ç ã o (
a idéia do Estado, e resulta de seu desenvolvimento ima- panteísta do Estado.
nente: portanto, não se trata apenas de um poder de fato N o § 270 da Filosofia do direito e na longa Obser-
que estaria exteriormente estabelecido, mas de uma sobe- vação que o acompanha, Hegel tira todas as conseqüên-
rania necessária e racional que tira de seu princípio inter- cias práticas dessa analogia, para mostrar qual deve ser a
no a sua coerência e a sua legitimidade. Segundo a O b - justa relação entre o Estado e a religião [nota: Considera-
servação do § 279 [TEXTO 14], "o Estado é precisamente da de u m ponto de vista positivo, nas suas instituições,
essa totalidade na qual os momentos do conceito chegam isto é, como culto organizado em igrejas]: completamen-
à efetividade, segundo a verdade que lhes é própria ... como te independente e livre com relação aos interesses especí-
momentos da idéia, e não isolados ou singulares". A "ver- ficos e tendencialmente divergentes de cada culto, o Es-
dade" do Estado consiste na sua soberania, isto é, no fato tado não pode ter outra religião que não a sua própria,
de que todos os aspectos de seu funcionamento se redu- que consiste primeiramente na plena consciência do seu
zem a uma só "vontade" da qual são a emanação. Assim poder e na defesa da sua soberania.
84 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 0 Estado 85

A soberania do Estado é portanto o poder absolu- A mais pura forma dessa representação é dada pela
to da coletividade considerada como uma totalidade orgâ- existência de u m indivíduo cuja pessoa singular empresta
nica e que tira de si mesma os princípios de suas próprias seu rosto — no sentido mesmo mais imediato, sua efígie,
decisões: os indivíduos e os agrupamentos particulares de seu perfil — à soberania do Estado. Na medida em que o
indivíduos devem, sem restrição, submeter-se a esse po- Estado, para ser racional, deve, assim como um indiví-
der que determina a sua vontade a partir de seu interior, e duo, pôr todos seus atos sob a jurisdição de uma vontade
dá um conteúdo necessário às suas iniciativas. Pois "é um ideal, isto é, indivisível, ele se reconhece a si próprio, tal
absurdo dizer que os homens deixam-se governar contra qual é em verdade, na realidade concreta de u m indiví-
seus interesses, suas metas, seus projetos, já que os homens duo soberano. Assim, no § 279 [ T E X T O 14], que come-
não são estúpidos a esse ponto. E a sua necessidade, é a ça expondo a idéia da soberania do Estado, a realização
força da idéia ela mesma que os constrange a essa submis- dessa soberania, "como pessoa, como sujeito que é para
são, mesmo contra a consciência aparente deles, manten- si", é deduzida: o Estado-sujeito assume imediatamente a
do-os nessa sujeição" (Adendo ao § 281). Na medida em forma de um sujeito singular concreto, que exprime e ga-
que eles constituem-se como membros de u m organismo rante a unidade do Estado. O Estado efetivo é aquele que
cuja coesão é a condição mesma de suas existências, os põe a sua testa um monarca, para exprimir a concentra-
indivíduos singulares são postos sob a dependência de um ção de todos os seus poderes em torno de uma vontade
tal poder do qual não podem se desligar, sob pena de pôr absoluta única.
novamente em questão a própria sobrevivência deles. E a A função do monarca é então a de exprimir esse
isso que Hegel chama, no início do § 279 [ T E X T O 14], caráter absoluto do poder de Estado. "A representação mais
"idealidade" do Estado que se desenvolve e age como um próxima da natureza desse conceito é aquela que consiste
único indivíduo, arrastando consigo todos os seres que em considerar que o direito do monarca é fundamentado
ele reúne em sua indivisível vontade. em uma autoridade divina, pois ela contém o elemento
incondicionado, absoluto, que tal conceito implica" (Obs.
O soberano ao § 279) [ T E X T O 14]. O monarca é de direito divino,
exatamente da mesma maneira que "o Estado é a vontade
O soberano é a encarnação, a forma visível, a car- divina tomada como Espírito atualmente presente, que
ne e os ossos da soberania; ele a representa exatamente do se desdobra para se tornar a figura real e a organização de
mesmo m o d o que ela própria representa a idéia do Esta- um mundo" (Obs. ao § 270): essa "figura" encarna-se pre-
do, da qual é a manifestação concreta. Poder-se-ia igual- cisamente na pessoa do monarca, que se identifica com a
mente dizer que o soberano é o hieróglifo do poder. vontade pura do Estado, isto é, com a sua soberania.
86 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY
0 Estado 87
I

Daí resulta que para Hegel a monarquia é a forma isso não significaria que, por meio dessa submissão, a co-
racional do poder político por excelência. Isto significa letividade se achará subordinada à pressão de um interes-
que todo movimento da história universal — em cujo cur- se singular, que atrai tudo para si e que, assim, estará sem-
so sucedem-se as diferentes formas de constituição do pre em condições e com poder de tomar o lugar do todo
Estado — tende para essa forma, em que ela se completa. que está encarregado de representar? Uma tal objeção não
(
Essa completude é tendencial: como Hegel indica no fim leva em consideração, segundo Hegel, aquilo que existe
da Observação ao § 279, "sempre é necessário que haja de essencialmente racional na idéia de uma vontade pura
nas figuras não completamente desenvolvidas do Estado incondicionada: esta é uma pura vontade, isto é, u m po- (

um ápice individual". A realização material, física, dessa der de decisão absoluto, precisamente porque está afasta- i
individualidade é secundária em face da função que ela da das incitações e pressões particulares, quaisquer que \
desempenha, a de encarnar uma idéia: no limite, todo Es- sejam elas. O soberano é somente um "eu quero", e é exa-
tado é, em si, até certo ponto monárquico, na medida em tamente por isso que as suas decisões estão preservadas de i
que carrega em si mesmo o conceito do soberano, que é a qualquer risco de arbitrariedade.
expressão de seu princípio efetivo. No Adendo ao § 279
C o m efeito, a racionalidade do Estado monárquico
[ T E X T O 14], Hegel dá como exemplo a democracia
está ligada a seu caráter constitucional, e este termo deve
grega, na qual "já havia uma espécie de articulação or-
ser aqui entendido no sentido que já definimos: ele expri-
gânica", embora esta ainda não tivesse chegado a sua en-
me a constituição orgânica do Estado, isto é, o fato de
carnação suprema na afirmação de uma vontade incon-
que, em virtude de sua "idealidade", nele o particular sem-
dicionada, realizada em um indivíduo singular que decide
pre se encontra submetido ao universal. Constitucio-
a respeito de tudo, em última instância.
nalmente soberano, o monarca encarna o poder incon- i
É então que essa realização do poder do Estado na dicionado da coletividade sobre todos os seus membros,
existência pessoal de um monarca encontra obstáculos que inclusive ele próprio: como puro querer, ele só tem a rati-
retardam sua plena realização. C o m o Hegel também o ficar decisões cujo conteúdo já esteja racionalmente de-
observa, "infelizmente, essa determinação é muitas vezes terminado, sem que ele próprio possa mudar sua orienta-
considerada como puramente exterior e da ordem do mero ção, segundo seus caprichos. Isto quer dizer que ele é u m a
bom querer". Por quê? Porque tendemos espontaneamente vontade pura, incondicionada enquanto vontade, mas li-
a remetê-la à forma limitada de um poder de decisão es- mitada quanto ao resto, pela competência de uma instân-
tritamente individual, que se reduz, portanto, aparente- cia de saber que lhe dita ou lhe aconselha aquilo que ele H

mente, às escolhas arbitrárias de uma vontade particular: deve decidir, não por si mesmo, mas em nome da coleti-
já que é o monarca que quer, isto é, que decide por todos, vidade à qual ele apenas empresta sua efígie e sua assina-
88 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 0 Estado 89

tura, de maneira que seja simbolizado o fato de que ela devido a tal partilha? São perguntas às quais teremos de
não passa de uma mesma e única vontade. "Isto não quer responder em seguida.
dizer que o monarca tem o direito de agir de maneira ar-
bitrária: ao contrário, ele está ligado pelo conteúdo con-
O povo soberano
creto das deliberações nos conselhos, e, quando a consti-
tuição é sólida, freqüentemente ele não tem mais que fazer A soberania exprime uma idéia, a da unidade ideal
além de apor a sua assinatura. Mas esse nome é impor- do Estado: ela coincide também com a existência concre-
s 1
tante: é o ápice, além do qual não se pode ir, que não pode ta de um povo, que é a realização histórica do Espírito.
ser ultrapassado" (Adendo ao § 279) [TEXTO 14]. Nesse sentido, mas em n e n h u m outro mais, é possível fa-
Não se poderia dizer melhor que o poder do sobe- lar, segundo Hegel, em soberania popular.
rano é tanto mais absoluto quanto mais hieroglífico for, Entre a soberania do povo e o poder do monarca
isto é, mais simbólico. O monarca somente tem que as- não pode, portanto, surgir n e n h u m conflito, pois ambos
sinar, isto é, endossar, atos cuja exigência já é reconhe- representam uma mesma realidade, a unidade racional,
cida. Agora devemos nos perguntar segundo qual pro- ou a constituição orgânica do Estado. Segundo a Obs. ao
cedimento isto se dá. Em um outro comentário ao seu § 279 [ T E X T O 14], em um povo que não está em u m a
texto — é significativo que estas precisões tenham sido condição "na qual reinam o arbitrário e o inorgânico, mas
orais, mais do que escritas —, Hegel declara que o monar- que, ao contrário, é pensado como uma totalidade desen-
ca "somente tem que dizer sim e pôr os pingos nos ii" volvida em si mesma e verdadeiramente orgânica, a sobe-
(Adendo ao § 280). Essa fórmula provocadora marca per- rania existe enquanto personalidade do todo e essa perso-
feitamente os limites bastante estreitos dentro dos quais é nalidade existe na realidade adequada ao seu conceito,
"constitucionalmente" mantido esse poder absoluto. O enquanto pessoa do monarca". E m u m Estado bem cons-
poder de decisão do monarca é racional quando se con- tituído, de boa conformação, o povo e o soberano, em
forma ao que lhe sugere a competência daqueles que o vez de compartilharem, como rivais, de um poder que deve
aconselham: eles elaboram completamente o conteúdo das permanecer em si mesmo indivisível, identificam-se com-
decisões do soberano, que, em seguida, somente tem de pletamente u m ao outro por meio de seu pertencimento
tomá-las formalmente. De onde tais conselheiros, indivi- comum à soberania do Estado^ da qual, juntos e organi-
duais ou coletivos, tiram sua própria legitimidade e em camente, são os detentores. Somente quando o Estado se
qual medida participam com o monarca da soberania do decompõe, quando seu poder se divide, é que o poder do
Estado? A unidade desta soberania não seria questionável soberano e o do povo se opõem um ao outro, embora ex-
primam o mesmo conteúdo racional.
90 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 0 Estado 91

Ao evocar esse risco de divisão, Hegel pensa mais ciedade civil. Ora, o Espírito de u m povo, tal como ele se
uma vez no exemplo da Revolução Francesa. Assim é qu e encarna autenticamente na figura hieroglífica de seu so-
escreve: "E por oposição à soberania existente no monar- berano, não é o espírito do povo falsamente reunido na
ca que se começou a falar em soberania popular, em uma reivindicação de u m a vontade independente, oposta à
época recente" (Obs. ao § 279) [TEXTO 14]. A realida- vontade do Estado e com a qual entra então em competi-
de efetiva do Estado e de seu poder é aqui submetida a ção e em luta. E necessário que a soberania pertença de
uma análise abstrata, que lhe desloca os elementos: o povo maneira indissolúvel ao povo e ao soberano, sem o que
deixa de representar o todo da coletividade e de seus "mem- ela perde a sua "idealidade", isto é, sua constituição orgâ-
bros", para constituir apenas "parte" desse todo, em re- nica concreta, ficando entregue ao jogo dissolvente das
volta contra o soberano, cujo poder é também ele reduzi- abstrações. "Essa opinião que se propõe a introduzir o ele-
do à particularidade. O conceito de Estado, assim como mento democrático sem a menor forma racional no orga-
o conceito de povo e de soberano, está então profunda- nismo do Estado, que todavia não existe senão em virtu-
mente desnaturado e perde seu caráter racional. "A sobe- de de uma tal forma, apresenta-se muito naturalmente ao
rania do povo faz parte das idéias confusas enraizadas espírito, porque ela se apoia na determinação abstrata de
numa representação grosseira daquilo que é o povo" (ibid.). ser membro do Estado, e porque o pensamento superfi-
C o m o diz ainda Hegel, o povo fica então reduzido a "um cial permanece limitado às abstrações" (Observação ao §
amontoado" (expressão que se acha no artigo de 1817 308). Mas, de acordo com uma fórmula muito impor-
sobre os Estados de Wurtemberg, cf. Escritos políticos, p. tante que já encontramos, "o Estado concreto é o todo
229), e nele todo caráter de soberania é apagado, porque cujas funções estão distribuídas nos seus círculos particu-
o próprio princípio de sua legitimidade — a constituição lares" (ibid.). Sua racionalidade reside exatamente na so-
orgânica do Estado — é suprimido. Essa desintegração do lidariedade concreta de todos os seus membros, e o res-
povo n u m a "massa" corresponde ao momento em que se peito dessa solidariedade impede que u m de seus membros
forma o populacho (Põbel), e no qual surgem também as adquira uma existência independente.
"classes" sociais: o Estado então desaparece, e deixa o cam- O povo é portanto soberano, mas sob a condição
po livre para as contradições da sociedade civil, que fica de fundir completamente seu destino no da coletividade
permanentemente exposta aos conflitos que a multidão organizada, em cujo interior ele próprio deixa de ter va-
não organizada suscita nela. lor enquanto tal, isto é, a título de uma entidade separa-
A demagogia populista, literalmente "democrática", da. Isto porque, se ele permanecer uma pluralidade não
reconduz portanto a soberania do Estado ao livre jogo dos organizada de indivíduos, reunidos aritmeticamente na
interesses particulares, próprio ao funcionamento da so- massa informe do "grande número" (oi poltoi), ele será
92 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 0 Estado 93

"algo totalmente indeterminado" (Observação ao § 301) verdadeiro" (Adendo ao § 318). N a falta desse grande
[ T E X T O 16]. Vale dizer, incapaz de ter acesso à mentali- homem, herói ou arauto do seu povo, cujas aspirações
dade racional, concreta e completa, daquilo que ele é. "O profundas e destino histórico ele compreenda, é necessá-
povo, se designarmos com essa palavra uma parte parti- rio recorrer à intercessão de conselheiros competentes, que
cular dos membros de um Estado, exprime precisamente saibam o que o povo quer melhor do que o próprio povo,
a parte que não sabe o que quer" (ibid.). Hegel já empre- pois este é incapaz de dizê-lo claramente a si mesmo: "Sa-
gara esta formula, que manifestamente aprecia, no seu ber o que se quer, e, mais ainda, saber aquilo que a vonta-
artigo de 1817 sobre a constituição dos Estados de de em si e para si, aquilo que a razão quer, é o fruto de
Wurtemberg (Escritos políticos, p. 277). Separado do so- uma inteligência è de u m conhecimento profundos, que
berano, o povo tem uma vontade anenpc formal, isto é, não são precisamente apanágio do povo" (Observação ao
privada de conteúdo. § 3 0 1 ) [ T E X T O 16]. O povo é soberano em si, quer di-
Essa idéia Hegel a desenvolveu na sua teoria da zer, o é de tal maneira que essa soberania permanece
opinião pública, ou opinião de massa, que, segundo ele, inefetiva, enquanto ela.não.receber a forma orgânica que
está presa a uma contradição insolúvel. "Nessa opinião lhe conferem aqueles que têm o encargo de administrar o
pública, o universal em si e para si, o substancial e o ver- interesse c o m u m , delimitando-lhe e formulando-lhe o
dadeiro, acha-se mesclado ao seu conteúdo, o elemento conteúdo racional.
próprio e particular da opinião na multidão" ( § 3 1 6 ) . Vale
dizer, no julgamento J a multidão, o universal, que está O interesse geral e sua administração •
presente somente em si, substancialmente, não chega a se
desenvolver, nem a se exprimir adequadamente, retornan- A existência de um Estado racional transforma as
do ao estado fragmentado de uma representação arbitrá- atividades de todos os cidadãos particulares no sentido da
ria e incompleta, em perpétuo conflito consigo mesma. utilidade c o m u m , de tal maneira que "cada membro, ao
"A opinião pública é a maneira inorgânica que há para se se conservar por si no seio do organismo racional, man-
dar a conhecer aquilo que um povo quer e pensa" (Adendo tém igualmente os outros, cada qual em sua especificida-
ao § 316). Provavelmente, a opinião pública representa de" (§ 286). Ao subordinar o particular ao universal, como
indiretamente as aspirações comuns da coletividade, mas quer a orientação geral do Estado, não se trata de supri-
só o consegue por meio de um discurso lacunar e obscuro mir a particularidade dos interesses individuais, isto é, de
que somente ganha sentido se for interpretado. "Na opi- negá-la abstratamente, à custa de uma intervenção exte-
nião pública, tudo é a um só tempo verdade e falsidade, e rior e arbitrária. Mas, "em um estado de coisas orgânico,
é justamente tarefa do grande h o m e m discernir nela o no qual são membros e não partes que estão em relação
94 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 0 Estado 95

uns com os outros, cada qual conserva os outros ao reali- vil, na qual representa, inversamente e contra ele, o conjun-
zar aquilo que é próprio à sua esfera. A conservação dos to dos interesses particulares: pelo contrário, é necessário
outros membros é a meta e o efeito substanciais da con- que ele realize concretamente a fusão desses interesses,
servação própria de cada membro" (Observação ao § 286). apoiando-se em intermediários, as mediações que são in-
O interesse comum reconcilia os interesses particulares, dispensáveis à plena realização dessa unidade. Hegel de-
integrando-os em sua ordem própria, vale dizer, supera a senvolve essa idéia em constante referência ao modelo
oposição que há entre eles. do Estado inorgânico que a França revolucionária repre-
E portanto necessário que o Estado, ao mesmo tem- senta para ele: esta r e t i r o u t o d o o poder das antigas co-
po em que inverte a tendência própria à sociedade civil, munas e corporações, consideradas resíduos da ordem feu-
apóie-se não obstante nas instituições que são próprias a dal, ou dos Estados no Estado, e lhes opôs a sua própria
ela, cujo funcionamento o Estado mesmo mantém e ga- ordem centralizadora abstrata, mas, deste modo, só fez re-
rante: fazendo do interesse geral uma finalidade, ele não forçar a oposição do universal e do particular, isto é, pri-
toma o lugar dos interesses particulares, de maneira for- vou a sua organização política de qualquer conteúdo subs- 1
mal; ao contrário, preserva-os e confere-lhes uma nova tancial. O Estado orgânico, ao contrário, é aquele que l
legitimidade. E essa idéia que Hegel desenvolve muito encontra nessas formas intermediárias as fontes de sua le-
bem, dando-lhe uma expressão geral em um discurso de gitimidade. "E por isso que a profundidade e a força que
distribuição dos prêmios de 28 de setembro de 1809: "A o Estado tem na mentalidade dos cidadãos residem nesse
marca autêntica da liberdade e da força de uma organiza- espírito de corporação, pois é ele que contém imediata-
ção consiste em que os momentos diferentes que ela con- mente o enraizamento do particular no universal" ( O b -
tém aprofundem-se em si mesmos e se modelem em sis- servação ao § 289) [ T E X T O 15]. Sem este enraizamen-
temas acabados, realizem uns ao lado dos outros sua obra, to, o poder político perde todo contato com a vida real
e se vejam realizar essa obra, sem inveja nem temor, e em dos indivíduos: ora, ela constitui a matéria à qual ele dá
que todos, em compensação, sejam apenas as partes de forma, e sem a qual ele fica privado de todo caráter efeti-
um grande todo" (Textospedagógicos, trad. francesa da Vrin, vo. Ao afirmar a preeminência do interesse geral, o Esta-
p. 81). Reunidas na unidade orgânica do Estado, as esfe- do leva em consideração ao mesmo tempo o conjunto dos
ras da existência particular "aprofundam-se", isto é, des- interesses particulares, aos quais fornece os meios de se
cobrem as formas de uma autonomia nova, que lhes per- satisfazerem de maneira coerente, eliminando o risco de
mite realizar tudo aquilo que trazem consigo. que entrem em conflito uns com os outros: " O indivíduo
Isso significa que o Estado, representante do inte- encontra aí a garantia do exercício de seus direitos e vin-
resse geral, não está nem fora nem acima da sociedade ci-
96 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 0 Estado 97

cuia o seu interesse particular à conservação do todo" do Estado orgânico e a hierarquia complexa de todas as
(Adendo ao § 290). esferas intermediárias às quais pertencem as existências
D o ponto de vista do interesse geral, todavia, os individuais. Ao lado do soberano — ou melhor, abaixo dele,
indivíduos particulares não podem ser recuperados tais veremos que esta precisão é importante —, é necessário que
como são: seu significado é invertido a partir do momen- a soberania do Estado seja representada por uma instân-
to em que são subordinados a um objetivo c o m u m . Pra- cia pura de saber, que é o complemento necessário de seu
ticamente, isso quer dizer que devem ser submetidos à querer: para retomar o vocabulário da filosofia kantiana,
vigilância e ao controle do poder soberano. C o m o são é necessário que o poder prático do monarca seja com-
"mm
exercidos esse poder e esse controle? Eles são da compe- pletado por uma espécie de poder teórico, exercido por
tência do governo e da administração do Estado, que têm assembléias e administrações, sob a condução do governo.
CGXTíO encargo, em ligação constante com as instituições Isso corresponderia ao que é comumente chamado
próprias à sociedade civil, regulamentar os negócios pú- de "poder executivo" e "poder legislativo"? Essas expres-
blicos, de maneira que seja eliminado todo risco de con- sões já não têm grande significado na perspectiva aberta
tradição entre o particular e o universal. Seu papel, diz por Hegel, pois não mais correspondem a "poderes" es-
Hegel, é de "subsumir o particular sob o universal", isto pecíficos, cujo quinhão seria uma margem de iniciativa,
é, de levar em conta as exigências e as aspirações dos par- ou um terreno de intervenção, que lhes fosse especialmente
ticulares, convertendo-as no sentido do interesse geral. reservado. Para Hegel, o problema de uma separação e de
Lidamos aqui com um novo "órgão" do Estado, um equilíbrio de poderes não tem sentido, porque a no-
distinto do soberano: a este último, como já mostramos, ção de separação dos poderes só conserva seu valor en-
cabe a tarefa exclusiva de representar a vontade incondi- quanto exprime a idéia de uma constituição diferencia-
cionada da coletividade, considerada como uma totalida- da, por meio da qual o Estado recebe a sua organização
de indivisível; entretanto, como já observamos, essa von- efetiva: é o que exprime a Observação ao § 272 [ T E X T O
tade pura nada mais é do que uma vontade, e toma 12]. Mas essa separação é, de alguma forma, interna ao
decisões tanto mais absolutas quanto mais não lhe caiba poder, que ela diversifica a partir de seu próprio princí-
dar ela própria ura conteúdo a elas. Esse conteúdo deve pio imanente e cuja unidade ela preserva: não se trata,
então ser elaborado antes da decisão do soberano: é papel • portanto, de u m a divisão abstrata entre poderes indepen-
das assembléias, do governo e do conjunto de corpos ad- dentes, que existiriam cada qual para si e por si, e que
ministrativos que têm especificamente competência para desse modo poderiam entrar em concorrência.
"subsumir o particular sob o universal", assumir concre- E necessário seguir até o fim dessa idéia. Neste pon-
tamente a ligação entre o interesse comum, a idealidade to, Hegel afasta-se de toda a tradição do liberalismo poli-
98 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 0 Estado 99

tico e da inspiração de Montesquieu. A autoridade do de um "corpo" bem particular de cidadãos que se relacio-
Estado é una e, por essa razão, deve ser depositada intei- nam não com u m interesse particular, nem com uma ne-
ramente na vontade do soberano. Os órgãos executivos e cessidade dentro do quadro da divisão geral do trabalho,
legislativos do Estado, que estão encarregados de dar um e sim com o bem público ou com o interesse coletivo do
conteúdo à vontade pura do soberano, isto é, de elaborar Estado, que constitui sua tarefa própria. São de certa for-
concretamente as decisões dessa vontade, não têm poder ma os especialistas do universal, fórmula esta que exprime
próprio, já que todo o poder do Estado está de uma vez bem o caráter intermediário de sua função: ficam entre o !

por todas concentrado na vontade soberana de um chefe poder soberano e o conjunto das instituições da socieda- (
ideal: aquilo que lhes especifica as funções é precisamen- de civil, assegurando, de u m para o outro, como uma es-
te algo diferente de u m poder, o que Hegel chama "uma pécie de "correia de transmissão", o vai-e-vem que realiza
competência", quer dizer, essa forma de conhecimento que a ligação substancial deles. Assim, "o ponto de contato
assegura a ligação entre o universal e o particular. entre as leis e decisões do governo e a singularidade dos
O que Hegel teoriza aqui é a doutrina das "capaci- indivíduos situa-se no comportamento e na cultura dos
dades", tal como ela se forma em todos os Estados euro- funcionários: é também o ponto em que essas leis e deci-
peus durante a primeira metade do século XIX e que é sões se fazem valer na realidade" (Observação ao § 295).
uma das origens do que ora chamamos "tecnocracia". To- Essa intercessão, entretanto, põe o seguinte proble-
davia, contrariamente a uma interpretação que foi dada a ma: na junção do Estado e dos indivíduos, os funcioná-
sua teoria do direito, Hegel não imaginou uma forma de rios constituem, eles próprios, uma esfera particular: for-
organização política em que a totalidade efetiva do poder m a m esse "estado universal" (allgemeiner Stand), do qual
fosse reservada aos que sabem, isto é, a funcionários com- já se tratou, no m o m e n t o em que a sociedade foi dividida
petentes; pelo contrário, ele caracteriza essa competência em três "estados" (Stãnde): " O estado (Stand) universal
de maneira tal, que, posta a serviço do poder, seja privada cuida dos interesses universais da situação social: por essa
de qualquer poder próprio: no máximo, ela dispõe de razão, deve ser retirado do trabalho fornecido diretamen-
poder por delegação, e a sua iniciativa depende da vonta- te para suas necessidades, quer graças a uma fortuna pri-
de absoluta do soberano, que exerce, ele próprio, a res- vada, quer por meio de uma indenização do Estado (Staat),
ponsabilidade absoluta e incondicionada desse poder. que se apossa de sua atividade, de tal forma que o interes-
Q u e m são esses funcionários e esses administrado- se privado encontre sua satisfação no seu trabalho para o
res aos quais sua competência confere o encargo de pôr o universal" (§ 205). E nesses mesmos termos que esse "es-
interesse geral e os interesses particulares da sociedade ci- tado" é também caracterizado no § 303: " O estado (Stand)
vil? São eles próprios os membros de uma corporação ou universal, ou, mais precisamente, o estado que. se consa-

t

100 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 0 Estado 101

gra ao serviço do governo, tem imediatamente como temente de se submeter e às quais elas mesmas opõem suas
destinação ter o universal como objetivo da sua atividade próprias reivindicações.
essencial". J Podemos nos perguntar se essas soluções sucessi-
Nesse ponto, surge uma dificuldade no sistema ex- vas para o problema da reconciliação do particular e do
posto por Hegel: o que garante que esse corpo intermedi- universal nada mais fazem do que deslocar uma dificul-
ário não irá se fechar em sua particularidade, procurando dade que retorna incessantemente ao próprio local em que
fazer prevalecer os interesses da sua própria esfera, servin- se supõe seja resolvida. O que Hegel procura pensaraqui
do-se dos meios de que dispõe para estabelecer seu domí- é uma espécie de equilíbrio hierárquico, vertical, das ins-
nio? E exatamente para afastar este risco que Hegel recu- tâncias da sociedade: estas representam, em todos os ní-
sa-se a reconhecer um poder, no sentido estrito de termo, veis, um único poder do qual tiram, sem o compartilhar
para essa elite competente, apresentando-a a serviço do nem o dividir, sua substância c o m u m . Mas a unidade or-
soberano, a quem deve caber, em última instância, a ini- gânica assim obtida, longe de eliminar com sua ordem
ciativa de decidir o que está bem para todos. Podemos todo risco de conflito, o vê reaparecer ininterruptamente
todavia nos perguntar se essa solução ao problema que em todos os níveis do seu funcionamento, sem que nada
acaba de ser posto não é apenas formal: de que m o d o o assegure, a não ser do ponto de vista de uma racionalida-
soberano — que está privado de um contato direto com a de ideal, que eles penderão para o lado certo, de forma
realidade concreta das existências individuais, que não que se mantenha, com certeza, a preeminência do inte-
dispõe, ele próprio, de n e n h u m meio de 'saber" o que é resse geral. Não existiria aqui um resquício de irraciona-
necessário "querer" — pode exercer um controle sobre o lidade, impossível de ser absorvido? O perigo é de tal modo
governo e a administração, a menos que saia do seu pró- real, que Hegel o evoca ainda no último trabalho escrito
prio papel, que é o de representar hieroglificamente a so- que dedica ao direito político, em abril de 1831, e que é
berania pura e indivisível do Estado? Perfeitamente cons- também seu último texto; trata-se do artigo a respeito da
ciente de tal dificuldade, Hegel precisa então q u e a lei de reforma eleitoral na Inglaterra: "Uma massa de se-
atividade dos funcionários, para escapar à tentação à qual res humanos pode se atribuir o título de povo com todo
está permanentemente exposta — ou seja, fechar-se na de- o direito, pois o povo é uma massa indeterminada: é ne-
fesa do seu próprio interesse corporativo —, deve estar sub- cessário, porém, distinguir dela as autoridades e os fun-
metida a u m duplo controle: vindo de cima, do sobera- cionários, e, de u m a maneira geral, todos aqueles que fa-
no, mas t a m b é m vindo de baixo, de parte das outras zem parte da organização do poder do Estado: estes
corporações, que afinal são as mais bem colocadas para parecem então se subtrair ao direito, abandonando o pla-
vigiar uma administração
v
a cujas iniciativas têm constan- no da igualdade e opondo-se ao povo, que possui, sobre
,,«;„ 4ko J u d a s Tadaw >
102 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 0 Estado 103

eles, a vantagem infinita de ser reconhecido como vonta- que o Estado é, ele próprio, um fim, o termo de u m pro-
de soberana. Eis aqui o ponto extremo das contradições cesso do qual ele constitui a realização mais acabada.
em meio às quais uma nação se vê arrastada, quando ela C o m o acabamos de ver, entretanto, essa forma
se deixa dominar por essas categorias formais" (Escritospo- completamente racional não está ela própria isenta de
líticos, p. 394). E necessário, portanto, impedir que essas contradições: é dentro dos limites que lhe são impostos
"categorias formais" se instalem, isto é, que se formem no pela natureza mesma do direito que ela constitui u m mo-
interior do corpo orgânico do Estado, e em oposição a delo último, insuperável. Ao se encarnar nessas figuras
sua constituição racional; grupos autônomos, conscien- históricas que os povos constituem para ele — como diz
tes de sua especificidade e que, a partir de uma tal toma- Hegel, ao se objetivar —, o Espírito não pode fazer me-
da de consciência, reivindicam direitos para si mesmos: lhor, não pode ir mais longe do que impor a eles essa for-
senão, retornamos à ordem — ou às desordens — da socie- ma de existência que a organização de um Estado lhes as-
dade civil. N o entanto, é certo que, uma vez colocada essa segura, sendo esta a única que pode fazer prevalecer o
exigência, o retorno da contradição, que desse modo só é interesse coletivo sobre os interesses particulares. Mas isto
provisória ou idealmente afastada, é de qualquer forma não significa também que o Espírito deve ele mesmo ul-
inelutável: a termo, esta ameaça não poria novamente em trapassar os limites que lhe são impostos pela esfera do
questão a existência efetiva do Estado? direito, pois eles restringem sua exigência de uma realiza- (
ção efetiva concreta, e permitindo-lhe apenas, na melhor
das hipóteses, aproximar-se, sem a atingir, dessa unidade
O fim do Estado absoluta consigo mesmo, que é a sua verdadeira meta? N o
N a filosofia hegeliana do direito, o Estado racio- plano da Enciclopédia, em que Hegel esforçou-se para ex-
nal constitui o resultado de todo o processo do direito e por na sua totalidade o percurso do Espírito, que conse-
de sua forma última, tal como ela é compreendida sob o gue chegar, por meio da sucessão das suas realizações, a
sua unidade consigo mesmo, o direito e o Estado ocu- <
conceito da Sittlichkeit: é a forma completa, perfeita, da
socialidade que nela encontra as condições de uma com- pam a posição do Espírito objetivo. Ora, esta "esfera" é
pleta reconciliação consigo mesma. Daí seu caráter "divi- ela própria seguida pela esfera do Espírito absoluto, com- (
preendendo as três formas últimas da racionalidade: a arte, i
no", muitas vezes reafirmado por Hegel: o Estado é a rea-
a religião e a filosofia. Essa formas vêm depois do Estado;
lização absoluta do Espírito no m u n d o , depois da qual
porque elas o ultrapassam, no sentido hegeliano da
nada mais, isto é, nada de superior, pode ser pensado.
Aufhebung, quer dizer, continuam a tentativa unitária de (
Nesse sentido, pode-se falar do fim do Estado para dizer
reconciliação, mas em um novo elemento, para além do
104 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 0 Estado 105

elemento do direito e do Estado. E, desse ponto de vista, teóricas de Hegel terminam da mesma maneira, não como
a expressão "o fim do Estado" comporta u m a nova sig- encerramento de um discurso que se fecharia absoluta-
nificação: indica a necessidade de compreender aquilo que, mente sobre si mesmo, de maneira especulativa, mas na
no interior do próprio Estado, põe as condições de seu perspectiva aberta que conduz também a desenvolvimen-
próprio acabamento, e também, em certo sentido, de sua tos ulteriores: a Fenômenologia, ao pôr, para encerrar, o
supressão. problema do saber absoluto, abre caminho para a Ciência
Nos parágrafos finais da Filosofia do direito. Hegeí da lógica; esta, por sua vez, prepara as condições para u m a
evoca a contradição entre dois "mundos" — u m reino tem- filosofia da natureza e uma filosofia do Espírito; e, quan-
poral e um reino espiritual — que persegue o desenvolvi- do Hegel dá a público sua última edição da Enciclopédia,
mento histórico das formas do Estado: essa contradição é acrescenta à exposição, em princípio, completa do saber
ainda u m indício da limitação que ele carrega em si e pela filosófico três novos "silogismos" (§§ 575, 576, 577 da
qual está inelutavelmente marcado até o fim. Tomar cons- Enciclopédia), que deixam ainda em suspenso o seu aca-
ciência dessa limitação é, ao mesmo tempo, compreender bamento, remetendo-o a novos desenvolvimentos. C o n -
que a filosofia não tem como única função pensar o Esta- tra uma lenda tenaz, é necessário afirmar sem dúvida que
do, isto é, conferir-lhe o estatuto de u m modelo de racio- Hegel não é um pensador do fim do saber nem do fim da
nalidade ideal e insuperável: é necessário que ela pense história. Pelo menos, ele não elude — e de que outro modo
também o fim do Estado, isto é, as condições de sua. supe- um dialético consciente poderia fazê-lo? — a contradição
ração, de sua abolição e de sua absorção em uma forma inerente ao conceito de fim, que designa, ao mesmo tem-
superior que o inclua, transformando-o. Se Hegel não re- po e concorrentemente, uma meta e u m termo, o momen-
solveu o problema — esse ponto é afinal aquilo que Marx to de u m a realização e o de u m desaparecimento. É ainda
mais reprovará nele —, pelo menos, ele o põe claramente, neste sentido problemático que é necessário considerar a
e é justamente a isso que chega a sua reflexão sobre o di- noção do fim do Estado, com a qual termina a exposição
reito: o problema de uma crítica do Estado, a qual não racional do m u n d o objetivo do Espírito. Isto significa que,
seria somente a crítica desta ou daquela forma determi- para Hegel, o Estado não constitui um fim em si, mas
nada de Estado. que ele próprio não passa de u m momento determinado e,
Poderíamos estranhar ao ver a reflexão hegeliana portanto, limitado dentro do processo global do Espírito:
sobre o direito terminar de maneira crítica, exatamente no Estado, o Espírito é livre de m o d o objetivo, mas não o
ao contrário do dogmatismo que geralmente se imputa a é de modo absoluto.
esse pensamento, apresentado como "totalitário". É ne-
cessário, no entanto, observar também que todas as obras
TEXTOS 107

ra contornada e difícil, principalmente a respeito de ques-


TEXTOS tões sobre as quais a censura era particularmente vigilan-
í
te, como era o caso das questões da filosofia do direito.

\ '
N a obra de Hegel, a exposição de u m conteúdo T E X T O N ° 1: A IDÉIA D E SITTLICHKEIT
científico é essencialmente c o n t í n u a . Os Princípios Parágrafo 1 5 1 , Adendo. Parágrafo 156, Adendo !

(Grundlinien) da filosofia do direito abreviam essa apre- (

sentação, fragmentando-a em uma sucessão de parágra- 151. N a identidade simples com a realidade efetiva dos I

fos numerados, que esclarecem cada qual u m ponto pre- indivíduos, o elemento que chamamos sittlich, ou ético-
ciso da argumentação. Podemos dar aqui somente alguns social, a maneira de agir deste último aparece como cos-
trechos, retomando certo número desses parágrafos, o que tume (ais Sitte) — e o hábito desse comportamento cha-
acentua ainda mais esse efeito de descontinuidade e de mado sittlich aparece como uma segunda natureza posta
ruptura. Mas fica claro que cada uma das passagens que no lugar da vontade primeira e simplesmente natural, que
reproduzimos em uma nova tradução só tem sentido se é a alma íntima e profunda, o significado e a realidade
for recolocada no conjunto e na seqüência do raciocínio efetiva da sua existência, o Espírito como m u n d o , vivo e
ao qual pertence: tentamos restituir essa unidade por meio presente, e cuja substância só é Espírito a partir de então.
do comentário dos textos, feito em outra parte do livro.
Por outro lado, o texto dos Princípios, assim como Adendo. Assim como a natureza tem suas leis, assim como
•:
o da Enciclopédia, é constituído por uma sucessão de pa- o animal, as árvores e o sol, cumprem todos a sua lei, o
rágrafos, observações e adendos: os parágrafos foram redi- costume, o ethos social, die Sitte, é da alçada do espírito
gidos diretamente por Hegel, para a publicação; as obser- de liberdade. O costume é aquilo que o direito e a moral
vações correspondem às explicações que ele mesmo redigiu ainda não são: ele é Espírito. N o direito, com efeito, a
para comentar seu livro, quando de suas aulas; finalmen- particularidade não é ainda a particularidade do concei-
te, os adendos retomam, segundo as anotações dos alu- to, mas somente a da vontade natural. Do mesmo modo,
nos, as explicações orais de Hegel. Essas explicações orais, no nível da moralidade, a consciência de si não é ainda
embora nos tenham sido transmitidas somente de manei- consciência espiritual. Trata-se ainda apenas do valor do
ra indireta, são preciosas, porque esclarecem muito bem sujeito nele mesmo; quero dizer com isso, que o sujeito
as intenções do texto: muitas vezes, Hegel deixava-se di- que se determina de acordo com o Bem e contra o Mal
zer simplesmente aquilo que somente escrevia de manei- tem ainda a forma do arbitrário. E m compensação, no
108 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 109

ponto em que estamos, no nível da Sittlichkeit, a vontade um dos princípios da sociedade civil burguesa; enquanto
é vontade do Espírito, tem um conteúdo substancial ade- ela estiver por essência em relação a uma outra particula-
quado a si mesma. ridade da mesma espécie, relação na qual cada u m a se faz
reconhecer e se satisfaz graças à outra, e, portanto, unica-
156. A substância da Sittlichkeit, na medida em que con- mente pela mediação da forma da universalidade, ela é o
tém, unida ao seu conceito, a consciência de si que é ao outro princípio da sociedade civil burguesa.
mesmo tempo para si, é o Espírito real de uma família e
de um povo. Adendo. A sociedade civil burguesa é a diferença que se
instaura entre a família e o Estado, embora o desenvolvi-
Adendo. O elemento ético-social, das sittlicheElement, não mento pleno dessa diferença se complete mais tarde do
é abstrato como o Bem; é algo efetivamente real, no sen- que aquele do Estado. Enquanto diferença, com efeito,
tido intenso do termo. O Espírito tem u m a realidade efe- ela pressupõe o Estado; é necessário, para que ela própria
tiva, cujos acidentes são os indivíduos. E porque, em se exista, que ela já o tenha antes dela, como algo que tenha
tratando de Sittlichkeit, nunca há mais do que dois pon- uma realidade autônoma. A criação da sociedade civil
tos de vista disponíveis: seja p r o c e d e n d o a partir da burguesa, além do mais, é algo que pertence ao m u n d o
substancialidade, seja procedendo de maneira atomizada, moderno, o primeiro a conceder todos os seus direitos a
erguendo-nos ao tomar como ponto de partida a indivi- todas as determinações da Idéia. Q u a n d o se representa o
dualidade singular. Neste segundo ponto de vista, a espi- Estado como uma unidade de pessoas distintas, como uma
ritualidade está ausente, visto que aí ela só poderá resul- unidade que de fato não passe de uma simples comuni-
tar em uma reunião de elementos compósitos, ao passo dade, está-se designando simplesmente a determinação que
que o Espírito, precisamente, não é algo singular, e sim a define a sociedade civil burguesa. Muitos professores de
unidade do singular e do universal. direito político da época moderna pararam neste ponto
na sua concepção do Estado. N a sociedade civil burgue-
sa, cada indivíduo é a si mesmo o seu próprio fim, todo o
T E X T O N ° 2: A S O C I E D A D E CIVIL BURGUESA resto nada representa a seus olhos; ora, ele não pode al-
Parágrafo 182, Adendo. Parágrafo 183 cançar o conjunto dos fins que visa sem se relacionar com
outros; estes outros são então meios em vista dos fins do
182. E a pessoa concreta, a pessoa particular, que é para particular.
si mesma o seu próprio fim, que, como totalidade de ne- Mas, com essa relação aos outros, o fim particular
cessidades e mescla de exigência natural e de arbítrio, é se confere a forma da universalidade e se satisfaz, ao mes-
110 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 111

mo tempo em que satisfaz o bem de outrem. Portanto, na vidade, isto é, à sua satisfação, por intermédio: a) de coi-
í
medida em que a particularidade é associada à condição sas exteriores, que ao mesmo tempo são propriedade e
da universalidade, o conjunto será o solo da mediação, produto de outras necessidades e de outras vontades; b)
onde todas as singularidades, todas as disposições indivi- da atividade e do trabalho, na medida em que operam a
duais, todos os azares de nascimento e de fortuna terão <
mediação entre os dois lados. N a medida em que a sua
livre curso, onde se precipitarão as ondas de todas as pai- meta é a satisfação da necessidade subjetiva, mas na qual,
xões, que só poderão ser governadas então por aquilo que por outro lado, a universalidade se faz por sua vez valer '
lá penetrar como fachos de luz da razão. A particularida- na relação com as necessidades e com o livre-arbítrio dos (
de limitada pela universalidade faz com que progrida o outros, o aparente feixe de luz de racionalidade que vem (
seu próprio bem. iluminar essa esfera da finitude será o facho de luz do en- (
tendimento. E esse aspecto do entendimento que impor- <
183. Ao se realizar efetivamente, o objetivo egoísta assim ta aqui na observação das coisas e que constitui o elemen-
condicionado pela universalidade funda um sistema de to conciliador no seio desta esfera propriamente dita. ("
dependência generalizada, na qual a subsistência e o bem- I i
estar do indivíduo singular, bem como a sua existência Observação. A economia política, die Staatsõkonomie, é a <
jurídica, estão entrelaçados na subsistência, no bem-estar ciência que inicialmente se apoia nesses pontos de vista,
e no direito de todos; aí têm eles sua base, e são reais e mas que a seguir deve expor a relação entre as massas e os l
garantidos somente no quadro desse vínculo. N u m pri- movimentos destas na sua determinidade e no seu entre-
(
meiro tempo, pode-se considerar esse sistema como o do laçamento quantitativos e qualitativos. Esta é u m a das
Estado exterior: o Estado da exigência [necessite] e do en- (
ciências nascidas na época moderna e que não têm outro
tendimento, Notstaat. (
terreno a não ser esta época. O interessante em seu desen-
volvimento é que ele nos mostra como o pensamento (ver
Smith, Say, Ricardo) consegue aferir da multidão infinita
T E X T O N ° 3: O SISTEMA DAS N E C E S S I D A D E S de singularidades que se apresenta diante dele inicialmente
E AS LEIS DA E C O N O M I A os princípios simples, e então descobrir ali o entendimento
Parágrafo 1&9, Observação, Adendo que rege a coisa. E, do mesmo modo que, de u m lado, há
u m elemento de conciliação no reconhecimento, no seio
189. A particularidade, enquanto inicialmente é aquilo da esfera das necessidades, da aparência e do facho de luz
que é determinado contra o universal da vontade, é ne- de racionalidade que ali reside e nele se emprega, o cam-
cessidade subjetiva, e essa necessidade chega à sua objeti- po da economia política é também, inversamente, aquele
112 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 113

no qual o entendimento dos fins subjetivos e das opini- sempre nos faz ver movimentos irregulares, mas cujas leis
ões morais dá livre curso a seus movimentos de humor, a podemos entretanto conhecer.
seu descontentamento, e se entrega a sua irritabilidade
moral.
T E X T O N ° 4: A N E C E S S I D A D E
Adendo. Existe certo número de necessidades universais, E A SUA R E P R E S E N T A Ç Ã O SOCIAL
como comer, beber, vestir-se* e t c , mas a maneira como Parágrafo 192, Adendo. Parágrafo 193- Parágrafo 194,
as satisfazemos depende inteiramente de circunstâncias Observação
contingentes. O terreno, de acordo com a localização, será
mais ou menos fértil; as colheitas, de acordo corr. os anos, 192. A partir do momento em que realmente existem, as
serão mais ou menos a h u n ^ r u c s , um h o m e m é corajoso, necessidades e os meios de satisfazê-las tornam-se um ser
ao passo que outro é preguiçoso, etc. E, entretanto, toda para outros, e a satisfação dessas necessidades é mutua-
essa efervescência de arbítrio engendra, a partir de si mes- mente condicionada pelas necessidades e pelos trabalhos
ma, determinações universais; essa dispersão aparente e desses outros. A abstração torna-se uma qualidade das
essa ausência de uma idéia diretriz são mantidas por uma necessidades e dos meios, ao mesmo tempo que uma de-
exigência que entra em jogo espontaneamente. O objeto terminação da relação recíproca que os indivíduos man-
da economia política, ou economia de Estado, é precisa- têm entre si. A universalidade assim adquirida no reco-
mente descobrir qual é essa necessidade, e esta ciência nhecimento recíproco é o m o m e n t o que faz deles, no seio
honra o pensamento, porque encontra as leis que corres- mesmo do seu isolamento e da sua abstração, a u m só tem-
pondem a toda uma massa de fenômenos contingentes. E po necessidades e meios ou modos de satisfazê-las, que
u m espetáculo muitíssimo interessante observar como são, eles sim, bastante concretos, na medida em que são
todas as conexões que se constituem nesse nível têm um sociais.
efeito retroativo, como as esferas particulares se reagrupam,
têm influência sobre as outras esferas, e nelas encontram Adendo. A forma da universalidade entra em jogo aqui
algo que as favorece, ou, pelo contrário, constitui-lhes um pela obrigação que tenho de regular minha conduta em
obstáculo. Essa passagem contínua de um elemento para função de outrem. E dos outros que obtenho os meios de
dentro de u m outro, na qual não se quer acreditar n u m minha satisfação, e, conseqüentemente, é preciso que eu
primeiro momento, porque tudo parece entregue ao ar- aceite suas opiniões. Mas, ao mesmo tempo, sou forçado
bítrio do indivíduo singular, é particularmente notável e a produzir os meios para a satisfação de outros que não
apresenta uma semelhança com o sistema planetário, que eu. Existe então um jogo de um sobre o outro e recipro-
114 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 115

camente, no qual ambos se mantêm então solidariamen- or, ele a liga a uma contingência interior, ao arbitrário de
te. Tudo o que pode haver de particular torna-se nessa sua escolha.
medida algo de social. Na maneira de se vestir, no horá-
rio da refeição, existe u m a espécie de convenção que é Observação. A idéia de que, em um pretenso estado de
preciso aceitar, pois nessas coisas não vale a pena fazer valer natureza, no qual ele somente teria necessidades naturais
suas próprias idéias, e o mais inteligente é, pelo contrá- pretensamente simples, e empregaria para satisfazê-las
rio, proceder nessa matéria assim como fazem os outros. unicamente os meios que u m a natureza contingente lhe
forneceria de forma imediata, o h o m e m viveria em liber-
193. Este m o m e n t o torna-se assim para os meios, consi- dade no que concerne às necessidades — ainda que faça-
derados por si, uma determinação de finalidade particu- mos momentaneamente abstração do m o m e n t o de libe-
lar, que também é a da sua posse e a da maneira mesma ração q u e o t r a b a i h o CCrpporta, a respeito do n u e
de satisfazer as necessidades. Além disso, ele contém, ime- voltaremos posteriormente — é produto de uma opinião
diatamente, a exigência de igualdade com os outros nesse errônea, porque a necessidade natural, enquanto tal, e a
campo, de modo que, por u m lado, a necessidade dessa sua satisfação imediata somente alguma vez seriam o es-
igualdade — e a operação por meio da qual a pessoa torna- tado no qual a espiritualidade está oculta na natureza, um
se igual e idêntica^ a imitação — e, por outro lado, a neces- estado primitivo e não livre, enquanto a liberdade só pode
sidade de particularidade, a necessidade de se fazer valer residir na reflexão em si mesmo do elemento espiritual,
distinguindo-se de um m o d o qualquer, que nela existe em sua diferenciação em relação ao que é natural e em
igualmente, tornam-se ambas uma fonte efetiva da mul- sua projeção de volta sobre essa natureza.
tiplicação e da propagação das necessidades.

194. N a medida em que na necessidade social, enquanto T E X T O N ° 5: O T R A B A L H O ABSTRATO


ligação da necessidade imediata ou natural com a necessi- Parágrafo 198
dade espiritual da representação, é esta última que é uni-
versal e se torna então preponderante, há nesse momento 198. Aquilo que existe de universal e objetivo no traba-
social o aspecto liberador no qual a rigorosa exigência lho reside na sua abstração, no seu caráter abstrato, que
natural da necessidade é ocultada e no qual o h o m e m re- tem como efeito a especificação dos meios e das necessi-
porta-se a sua opinião, que é aqui opinião universal, e a dades, que, por sua vez, igualmente especifica a produção
uma exigência que existe apenas por esse fato: ao invés de e engendra a divisão dos trabalhos. A divisão torna mais
ligar sua conduta a uma contingência unicamente exteri- simples o trabalho do indivíduo e aumenta assim sua ha-
116 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 117

bilidade nesse trabalho abstrato, bem como a massa das é algo de necessário. Se a primeira base, o primeiro fun-
suas produções. Ao mesmo tempo, o caráter abstrato da damento do Estado é a família, a segunda são as diferen-
habilidade e do meio completa a dependência e a relação tes ordens ou os diferentes estados da sociedade. O que
mútuas que os homens mantêm para a satisfação das ou- dá a esta segunda base uma importância tão grande é o
tras necessidades [besoins], até fazer delas uma exigência fato de que as pessoas privadas devem, a despeito de todo
[necessite] global. Além disso, o caráter abstrato da pro- o seu egoísmo, e de uma maneira necessária, afastar-se
dução torna o trabalho cada vez mais mecânico, e susce- delas mesmas e voltar-se para os outros. E aí portanto que
tível a termo de ver o homem abandoná-lo para ceder seu se acha situada a raiz que liga o egoísmo ao universal, ao
lugar à máquina. Estado, e este deve ter como preocupação que tal vínculo
seja de qualidade homogênea e sólida, que seja fiável.

T E X T O N° 6: OS D I F E R E N T E S ESTADOS (Stãnde)
Parágrafo 2 0 1 , Adendo T E X T O N ° 7: A H O N R A D O O F I C I O
Parágrafo 207, Observação, Adendo
2 0 1 . Os meios infinitamente numerosos e intricados den-
tro do movimento igualmente infinito dessas produções 207. O indivíduo somente se confere uma realidade efe-
e trocas mútuas reúnem-se, devido à universalidade ine- tiva ao entrar na existência em geral, e por isso mesmo,
rente ao seu conteúdo, e diferenciam-se em massas uni- na particularidade determinada, limitando-se por conse-
versais; vê-se assim todo esse conjunto desenvolver-se em guinte de maneira exclusiva a uma das esferas particula-
tantos sistemas particulares de necessidades, de meios cor- res da necessidade. E por essa razão que, nesse sistema da
respondentes e de trabalhos, de formas de satisfazê-los e mentalidade ético-social, o estado de espírito conforme à
de tipos de formação teórica e prática — sistemas nos quais Sittlichkeit será a retidão, a Rechtschaffenbeit, e a honra
estão distribuídos os indivíduos —, em resumo, desenvol- própria a cada estado social consistirá em fazer de si mes-
ver-se em uma diferença de estados ou de ordens sociais, mo — determinando a si mesmo pela sua atividade, sua
de Stãnde. coragem na tarefa e sua habilidade profissional — como
u m membro da sociedade civil burguesa, e em se manter
A d e n d o . O modo como as pessoas participam da riqueza nesse estado. Consistirá igualmente em só cuidar de si por
universal é certamente deixado à particularidade de cada essa mediação com o universal, e, portanto, em somente
indivíduo, mas a diversidade universal inerente à reparti- ser reconhecido por meio dela, tanto na própria represen-
ção da sociedade civil burguesa em entidades particulares tação que tem de si mesmo, quanto na representação que
<
1
118 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY 119
TEXTOS

os outros fazem dele. A moralidade está totalmente no ticularidade pelo universal, e imagine que, ao se pôr em
lugar que lhe cabe nessa esfera em que predominam a re- um determinado estado particular, estaria se entregando
flexão sobre aquilo que se faz, bem como sobre as finali- a algum tipo de decadência. E u m a concepção errônea,
dades da necessidade particular e do bem-estar, e onde o que pretende que qualquer pessoa que adquira uma exis-
caráter contingente da satisfação dessas necessidades faz tência que lhe era necessária esteja com isso impondo-se
da assistência, ela também contingente e individual, um uma limitação e uma renúncia a si.
dever moral.

Observação. Se, n u m primeiro tempo, notadamente em T E X T O N ° 8: O P O P U L A C H O


sua juventude, o indivíduo insurgir-se contra a idéia de E O E S P I R I T O D E REVOLTA
dever optar por u m estado social determinado, por um Parágrafos 243 e 244, Adendo
Stand, vendo aí uma limitação a sua determinação e a sua
destinação universal, uma necessidade somente exterior, 243. Q u a n d o a sociedade civil burguesa funciona com
é em razão do modo de pensamento abstrato que se atem eficiência, sem entraves, a sua indústria e a sua população
ao universal e, portanto, ao não-efetivo, e que não reco- estão, no interior dela própria, em progressão. Por u m
nhece que, para existir, para estar aí, é necessário que o lado, a universalização do vínculo que une os homens pelas
conceito em geral aceda à diferença do conceito e da sua suas necessidades e a universalização dos modos de pre-
realidade empírica, e entre portanto na determinidade e parar e de obter os meios destinados a essas necessidades
na particularidade; ele não reconhece que ele próprio — o fazem com que a acumulação de riquezas aumente (pois
indivíduo — não pode adquirir realidade efetiva e objeti- se tira maior proveito dessa universalidade redobrada), ao
vidade própria da Sittlichkeit, a não ser por essa via.
passo que, por outro lado, crescem a singularização e o
caráter limitado do trabalho particular, ao mesmo tempo
Adendo. Q u a n d o dizemos que é necessário que o homem em que a dependência e a miséria da classe presa a esse
seja algo, queremos dizer com isso que ele deve pertencer trabalho, situação à qual está ligada a incapacidade de
a u m estado determinado, pois esse algo significa que ele gozar e experimentar o sentimento de liberdades mais
é então algo de substancial. Um homem sem estado so- amplas, e, em particular, as vantagens espirituais da socie-
cial, ura h o m e m que não tem Stand não passa de uma dade civil burguesa.
pessoa privada, não tem status, nem está dentro da uni-
versalidade real. Por outro lado, pode ocorrer, inversamen- 244. O fato de que uma grande massa de pessoas caia
te, que o indivíduo singular se tome em sua própria par- abaixo do nível de um dado m o d o de subsistência — que
120 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 121

se regulou por si mesmo, no limiar daquilo que era ne- dano causado a esta ou àquela classe. A importante ques-
cessário a u m membro da sociedade, vindo com isso a tão dos remédios que permitiriam lutar contra a pobreza
perder o sentimento do direito, da legalidade e da honra, agita e atormenta mais particularmente as sociedades
que existe em subsistir graças a sua atividade, a seu traba- modernas. /
lho — acaba por engendrar o populacho, o que, por sua
vez, tem como conseqüência uma maior facilidade em
concentrar riquezas desproporcionadas nas mãos de um T E X T O N° 9: EXPANSÃO E C O N Ô M I C A
pequeno número. E COLONIZAÇÃO
Parágrafo 246. Parágrafo 247, Observação. Parágrafo
Adendo. O mais baixo modo de subsistência, aquele que
o populacho conhece, encontra sozinho o nível no qual 2 4 6 . A dialética própria à sociedade civil burguesa impele
acaba por se estabelecer, mas esse mínimo difere conside- esta última para fora e para além de si própria. Essa so-
ravelmente segundo os diferentes povos. N a Inglaterra, o ciedade, que é primeiramente uma sociedade determina-
mais pobre dos homens ainda acredita que dispõe de seu da, vai buscar no exterior dela própria — em outros povos
direito: eis aí algo totalmente diferente daquilo que irá que estão em atraso com relação a ela, quanto aos meios,
satisfazer os pobres em outros países. N u n c a é a pobreza que ela possui em superabundância, ou, simplesmente,
em si m e s m a q u e faz cora q u e alguém p e r t e n ç a ao quanto à industriosidade — novos consumidores e, con-
populacho. O populacho só é determinado e definido seqüentemente, os meios de subsistência necessários.
como tal pela mentalidade ligada à pobreza, pela revolta
interior contra os ricos, a sociedade, o governo, etc. Além 247. Assim como o princípio da vida familiar tem por
do mais, isso se liga ao fato de que o h o m e m reduzido a condição a terra, u m terreno bem estabelecido, o elemen-
esse estado de contingência torna-se descuidado e rebelde to natural que anima o movimento da indústria, em dire-
para o trabalho, como os Lazzaroni de Nápoles, por exem- ção ao exterior, é o mar. Ao procurar o lucro e ao se expor
plo. A conseqüência sobre o populacho é funesta: ele não ao perigo, a indústria eleva-se ao mesmo tempo acima
tem a honra que consiste em conseguir subsistir pelo pró- desse lucro e substitui a vinculação à gleba e aos círculos
prio trabalho; não obstante, reivindica encontrar sua sub- limitados da vida civil burguesa, com seus prazeres e de-
sistência como um direito que lhe cabe. Em face da natu- sejos, pelo elemento da liquidez, do perigo e da absorção.
reza n i n g u é m p o d e p r e t e n d e r q u e u m d i r e i t o seja Além disso, pela mediação desse fator de ligação, o maior
respeitado, mas no estado de sociedade, essa falta logo que existe, ela faz com que países longínquos entrem nas
toma a forma de uma injustiça, de uma denegação, de um relações criadas pela troca e pelo tráfico, uma relação ju-
1 <

122 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 123

1
rídica que introduz o contrato, em que se encontra o mais 2 4 8 . O alargamento dessa conexão oferece igualmente os (
poderoso meio de cultura, e em que o comércio adquire a meios da colonização — sistemática ou esporádica — para
importância universal que assumiu na história universal. a qual é impelida a sociedade civil burguesa que atingiu o í \
termo de sua evolução, o que lhe permite fornecer a uma
Observação. Os rios não constituem as fronteira naturais, parcela da população o retorno ao princípio familiar, ao
\
como se pensou, em períodos recentes; pelo contrário, eles passo que, por outro lado, ela própria obtém aí u m a nova
« (
u n e m os h o m e n s , assim c o m o o faz t a m b é m o mar. demanda e u m novo campo para seu gosto pelo trabalho.
Horácio não exprime portanto uma idéia verdadeira quan- (

do diz, n u m de seus Cantos (Carmina, I, 3): <


•li?
T E X T O N ° 10: O E S P I R I T O C O R P O R A T I V O
Foi um Deus que, em sua prudência,
Parágrafo 2 5 1 . Parágrafo 252, Observação. Parágrafo 253, (
Pôs, para as desunir, entre as terras,
Observação. Parágrafo 254 x Parágrafo 255, Observação,
A barreira dos oceanos...
Adendo
São provas disso, de forma convincente, não somente as
bacias dos grandes rios, habitadas por uma única tribo ou 2 5 1 . N a sociedade civil burguesa, o trabalho divide-se
um único povo, mas também todas as relações que exis- segundo a natureza de sua particularidade em diferentes
tiam, por exemplo, entre a Grécia, a Jônia e a Magna Gré- ramos. N a medida em que aquilo que é em si idêntico no
cia; entre a Bretanha e a Grã-Bretanha; entre a Dinamar- seio da particularidade acede à existência na associação
ca e a Noruega, a Suécia, a Finlândia, a Lituânia, e t c , em • corporativa, na Genossenscha.fi, como algo c o m u m , o fim
contraste sobretudo com a ligação bastante fraca que une egoísta, embora esteja orientado para sua particularida-
os habitantes do litoral desses países e os habitantes do ! de, percebe-se e põe-se em funcionamento ao mesmo tem-
interior dessas mesmas terras. Para ter uma idéia dos meios po enquanto fim universal, e o membro da sociedade bur-
de cultura inerentes a tal vínculo com o mar, compare-se guesa, exatamente em função da sua habilidade e da sua
a relação que mantêm com o mar as nações nas quais a qualificação particular, é membro da corporação, cujo fim
engenhosidade e a indústria foram e ainda são florescen- universal é assim inteiramente concreto, sem outra exten-
tes, e aquelas que proibiram a navegação, e que, como os são além daquela inerente a sua indústria particular, a sua
egípcios, os hindus, e t c , apagaram-se em si mesmas e afun- esfera e a seus interesses econômicos próprios.
daram na mais horrível e lamentável superstição, ao con-
trário de todas as grandes nações, animadas por um es- 2 5 2 . Em virtude desta determinação, desta destinação que
forço interior que impele para o mar. lhe é própria, a corporação tem o direito de prover, sob a
124 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 125

vigilância do poder público, aos seus próprios interesses 253- N ã o somente a família tem na corporação a sua ter-
internos: de admitir membros em função da qualidade ra firme, a garantia de sua subsistência, assegurada pela
objetiva de suas habilidades e de sua retidão, de acordo capacidade de seus membros, uma riqueza estável, mas,
com uma quantidade que se determina pelo efeito do vín- além disso, essa capacidade e essa riqueza são reconheci-
culo universal; de se encarregar, por todos aqueles que dela t 1 das, de modo que o membro de uma corporação não tem
fazem parte, do cuidado de enfrentar as circunstâncias necessidade de comprovar a excelência de suas qualida-
:
*> £ des, nem de mostrar os recursos adequados de que dis-
particulares, bem como da formação para a aptidão re-
querida para se tornar versado nessa corporação; em resu- põe, em resumo: de comprovar que ele é mesmo algo, por
mo, de intervir por eles como'uma segunda família^ posi- meio de outras demonstrações exteriores. Desse m o d o ,
ção que continua mais indeterminada para a sociedade reconhece-se igualmente que ele faz parte de u m todo, que
civil burguesa, na medida em que esta é universal, mais é, ele próprio, um elo da sociedade universal, tendo inte-
afastada dos indivíduos e do estado de grande necessida- resse nos fins desinteressados visados por esse todo, e é
de que podem eles conhecer individualmente. nesse sentido que ele emprega seus esforços; assim, ele tem
a honra no seu estado, no seu Stand.
Observação. O homem dos ofícios corporativos distin-
:M Observação. Pela garantia que proporciona à riqueza, a
gue-se do trabalhador diarista, bem como de qualquer
outra pessoa disposta a prestar um simples serviço singu- instituição da corporação corresponde, em u m a outra es-
lar e contingente. Enquanto patrão, ou enquanto alguém fera, à introdução da agricultura e da propriedade priva-
que deseja tornar-se patrão, ele não é membro dessa co- da. Se há motivo para erguer protestos contra o luxo e a
munidade corporativa, dessa Genossenschaft, visando ob- mania de desperdício próprios das classes industriosas, que
ter u m ganho singular e contingente, mas para obter toda desempenham um papel na gênese do populacho, não se
1
a extensão, a universalidade da sua substância particular. ] deve contudo negligenciar, entre as outras causas (por
O que distingue os privilégios, enquanto direitos de um exemplo, o caráter cada vez mais mecânico do trabalho),
ramo da sociedade civil burguesa inserido na corporação, a razão proveniente da Sittlichkeit, a razão ético-social, tal
dos privilégios propriamente ditos, tomados em seu sen- como foi exposta acima. Q u a n d o não é m e m b r o de uma
tido etimológico, é que estes últimos são exceções feitas à corporação juridicamente habilitada (e uma entidade co-
lei universal por razões contingentes, ao passo que os pri- letiva somente é corporação enquanto habilitada), o in-
meiros são apenas determinações tornadas legais, ineren- divíduo singular não tem essa honra ligada a seu perten-
tes à natureza da particularidade, à natureza de u m ramo cimento a u m estado social, Stand, e, pelo seu isolamento,
essencial da própria sociedade. fica reduzido apenas ao aspecto egoísta da indústria; sua
\
(

126 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 127


(

subsistência e seu usufruto não são algo de estabelecido 255- A corporação constitui, depois da família, a segun-
na duração. Ele também procurará fazer-se reconhecer por da das duas raízes ético-sociais do Estado, aquela que é
meio de demonstrações exteriores de seus sucessos na in- fundamentada na sociedade civil burguesa. A primeira, a
I
dústria, demonstrações que não conhecem limites: com família, contém os momentos da particularidade subjeti-
va e da universalidade objetiva no seio de uma unidade (
afeito, nunca ocorre que ele viva em conformidade com o
;eu estado, com o seu Stand, pois tal estado não existe (na substancial; a segunda, a corporação, contém esses mes- \

/erdade, nada de coletivo pode existir na sociedade civil, mos dois momentos — que na sociedade civil burguesa
>e não estiver constituído e reconhecido legalmente), e, estão inicialmente divididos em particularidade da neces- i

portanto, ele jamais se permite u m modo de vida mais sidade e gozo refletido em si mesmo, por um lado, e em (
iniversal, como lhe seria adequado. N a corporação, a as- universalidade jurídica abstrata, por outro —, mas ela os
;istência que cabe aos pobres perde ao mesmo tempo aqui- contém reunidos de maneira interna, de tal m o d o que
o que tem de contingente e, muito erradamente, de hu- nessa reunião o bem-estar particular é ao mesmo tempo
milhante, ao passo que a riqueza, nos deveres que a ela realizado efetivamente e existe enquanto direito.
ncumbem para com toda a Genossenschaji, para com toda
i comunidade cooperativa, perde aí ao mesmo tempo a Observação. O caráter sagrado do casamento e a honra
irrogância e a inveja que pode suscitar, a arrogância nela inerente à corporação são os dois elementos em torno dos
mesma e a inveja nos outros: a retidão, ^.Rechtschaffènheit, quais gira a desorganização da sociedade civil burguesa.
idquire aí seu verdadeiro reconhecimento e sua verdadei-
a honra. Adendo. Se, em períodos recentes, foram suprimidas as
corporações, isto significava que o indivíduo deveria en-
154. N a corporação não existe limitação ao que se chama carregar-se de si mesmo. Mas, de qualquer forma, mesmo
iireito natural de exercer sua habilidade profissional e de que possamos admitir o fato, ele em nada modifica a obri-
idquirir graças a isso tudo o que pode ser adquirido na gação do indivíduo de trabalhar ele próprio para a aquisi-
nedida em que tal habilidade aí for determinada racio- ção daquilo de que necessita. E m nossos Estados moder-
íalmente, e destinada à racionalidade; isto é, liberada de nos, os cidadãos têm apenas uma participação limitada
:ontingência e da opinião própria a cada um, liberada do nos negócios universais do Estado. Ora, é entretanto ne-
perigo para si mesma, bem como do perigo para outrem; cessário p r o p o r c i o n a r ao h o m e m n o nível d e sua
econhecida, garantida e elevada ao mesmo tempo ao ní- Sittlichkeit, em seu universo ético-social, uma atividade
rc\ de atividade consciente exercida em vista de uma meta universal exterior a seus fins privados próprios. Essa uni-
:omum. versalidade que o Estado nem sempre lhe oferece, ele a
128 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY T EXTOS 129

I encontra na corporação. Vimos anteriormente que, na tancial, pela intervenção da sua mentalidade no Estado,
sociedade civil burguesa, o indivíduo que se preocupa com enquanto este é sua essência, seu fim, e o produto de sua
seus próprios negócios age ao mesmo tempo para outrem. atividade.
Mas essa exigência inconsciente não é o bastante. Ela so-
mente se torna consciência ético-social, Sittlichkeit cons- 2 5 8 . Enquanto realidade efetiva da vontade substancial,
ciente e pensante, na corporação. Certamente, é necessá- que ele tem na consciência de si particular elevada a sua
rio haver, acima da corporação, a vigilância superior do universalidade, o Estado é o racional em si e para si. Essa
Estado, pois a corporação, na ausência do Estado, se ossi- unidade substancial é um fim próprio, imutável e absolu-
ficaria, se fecharia em si mesma, afundando-se em u m to, no qual a liberdade acede a seu direito supremo, do
miserável sistema corporativo feudal, ein elendes Zunft- mesmo modo que esse fim próprio tem, em face dos indi-
wesen. Ora, a corporação não é em si uma guilda fechada; víduos singulares, o direito supremo, ao passo que o de-
pelo contrário, ela é aquilo que confere uma dimensão ver supremo destes últimos é serem membros do Estado.
ético-social, é aquilo que dá a Sittlichkeit, à indústria in-
dividual isolada dos ofícios, e a faz entrar em uma esfera Observação. Q u a n d o se confunde o Estado com a socie-
na qual ela adquire força e honra. dade civil burguesa, quando lhe atribuímos a segurança e
a proteção da propriedade e da liberdade das pessoas como
determinação, é o interesse dos indivíduos enquanto tais
T E X T O N° 11: A IDÉIA D O E S T A D O que constitui então o fim último em vista do qual eles se
Parágrafos 257 e 258, Início da Observação reuniram, e, com isso, ser membro do Estado torna-se uma
decisão da ordem do mero b o m querer. Ora, a relação do
257. O Estado é a realidade efetiva da sittliche Idee, da Estado com o indivíduo é totalmente diferente: na medi-
idéia ético-social: ele é o Espírito ético social, der sittliche da em que o Estado é que é o Espírito objetivo, o indiví-
Geist, enquanto vontade substancial manifesta, claramente duo propriamente dito somente tem objetividade, verda-
percebida por ela própria, que se pensa e se sabe, e que de e ética social, Sittlichkeit, enquanto membro do Estado.
realiza aquilo que sabe e na medida mesma em que o sabe. A união enquanto tal é ela própria o conteúdo e o fim
O Estado tem sua existência imediata nos usos, nos cos- verdadeiros, e a destinação dos indivíduos é levarem uma
tumes ético-sociais, die Sitten; e sua existência não imedia- vida universal. Todas suas outras satisfações particulares,
ta, mediatizada, na consciência de si, no saber e na ativi- suas atividades, seus tipos de comportamento, e t c , têm
dade do indivíduo singular, da mesma forma que essa essa realidade substancial e universal ao mesmo tempo
consciência de si do indivíduo tem sua liberdade subs- como ponto de partida e como resultado. A racionalida-
130 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 131

\
de considerada de um ponto de vista abstrato consiste mui- princípio do Estado u m princípio que, não somente pela
to simplesmente na compenetração recíproca, da qual re- forma (como ocorre no caso do instinto social ou da au-
sulta a unidade da universalidade e da singularidade, e, toridade divina), mas também pelo seu conteúdo, é u m
concretamente, no que diz respeito ao conteúdo, na uni- pensamento, a saber, o próprio pensamento ativo, a von- I

dade da liberdade objetiva, isto é, da vontade universal tade. Mas, ao conceber a vontade somente sob a forma
substancial e da liberdade subjetiva, enquanto saber indi- determinada de uma vontade singular (como irá ocorrer
vidual e vontade desse saber, em busca de metas particu- posteriormente com Fichte), e concebendo a vontade uni-
lares. E por isso que, quanto à forma, ela consiste em uma versal não como a racionalidade em si e para si da vonta-
ação que se determina segundo leis e princípios pensa- de, mas apenas como elemento coletivo, que se destacaria
dos, isto é, universais. Essa idéia é o ser em si e para si conscientemente dessa vontade singular dos indivíduos,
eterno e necessário do Espírito. a reunião dos indivíduos no Estado torna-se u m contrato
Q u a n t o à questão de saber agora qual é ou qual foi que, por esse fato, tem como fundamento sua escolha ar-
a origem histórica do Estado em geral, ou, mais precisa- bitrária, sua opinião, uma aprovação explícita de acordo
mente, de cada Estado particular, dos seus direitos e de- com sua visão. Daí resultam posteriormente conseqüên-
terminações; se ele procede em primeiro lugar de relações cias que somente têm racionalidade na ordem do enten-
do tipo patriarcal, do temor ou da confiança, ou, ainda, dimento e destroem o divino em si e para si, sua majesta-
da corporação, e t c ; e de que modo aquilo sobre o que de e sua autoridade absoluta.
esses direitos estão fundados foi concebido, e como se fi- Q u a n d o essas abstrações prosperaram a ponto de
xou na consciência enquanto um direito divino ou posi- chegarem ao poder, produziram então, por u m lado, o es-
tivo, ou como u m contrato, u m hábito, e t c ; essa é uma petáculo monstruoso, inaudito, de u m a constituição, em
questão que não diz respeito à Idéia do Estado propria- um grande Estado real, que foi recomeçada radicalmente
mente dita, mas que, em relação ao conhecimento cientí- do princípio, partindo do pensamento e pondo por terra
fico — o único de que se trata aqui —, é, enquanto fenô- tudo quanto existia anteriormente, e à qual u m decreto
meno, u m caso histórico. N o que diz respeito à autoridade da vontade quis dar como base uma racionalidade que não
real e na medida em que esta se refere a razões, tais razões era a verdadeira racionalidade; tratava-se somente de abs-
são auferidas nas formas do direito vigente nesse Estado. trações sem idéias, e foi por esse motivo que as abstrações
A investigação científica só tem a ver com a substância fizeram desta tentativa o episódio mais cruel e terrível já
interior de tudo isso, com o conceito pensado. havido.
N o exame desse conceito, é necessário reconhecer Contra o princípio da vontade individual, é neces-
que cabe a Rousseau o mérito de haver instaurado como sário recordar a proposição fundamental segundo a qual
132 JEAN-PIERRE LEFEBVRE i , MACHEREY T EXT 0 S 133

a vontade objetiva é o racional em si, em seu conceito, lhor compreendiam o que era a constituição, excluindo
seja ele ou não reconhecido pelos indivíduos singulares, todos os demais, e, em primeiro lugar, os governos, e que
seja ou não desejado pelo b o m querer deles, e segundo a pensavam encontrar uma justificação irrefutável no fato
qual o oposto da vontade subjetiva, o saber e o querer, a de que na base de todas suas asneiras a religião e a pieda-
subjetividade da liberdade, que é mantida unicamente de deveriam supostamente desempenhar o papel de fun-
dentro desse princípio, contém apenas u m dos m o m e n - damento. N ã o se deve portanto estranhar que todo esse
tos, e portanto um momento unilateral, da Idéia da von- falatório tenha tido como conseqüência o fato de que
tade racional, a qual só é isso porque ela é tanto em si homens sensatos acabassem tendo aversão pelas palavras
quanto ela é para si... razão, Iluminismo, direito, e t c , ou ainda, constituição e
liberdade, e que quase nos envergonhamos de discutir a
respeito da constituição política. Pode-se, entretanto, ao
T E X T O N ° 12: C O N T R A A SEPARAÇÃO menos esperar que o desprazer assim causado contribua
DOS PODERES para tornar mais generalizada a convicção de que um co-
Parágrafo 272, Observação, Adendo nhecimento filosófico desse gênero de objetos não pode-
ria provir de raciocínios do entendimento, da considera-
272. A constituição é racional na medida em que o Esta- ção das metas, das razões e das utilidades, e menos ainda
do determina e diferencia nele mesmo sua própria eficiên- de fatores afetivos, do amor e do entusiasmo, e sim, uni-
cia em função da natureza do conceito, e isso de tal ma- camente, do conceito; e que, aqueles que consideram o
neira que cada u m desses poderes é ele próprio em si a divino como algo que não pode ser concebido pelo pen-
totalidade, pelo fato de que ele contém nele mesmo os samento, e o conhecimento do verdadeiro como uma
outros momentos, que nele agem, e também porque tais empresa vã, devem abster-se de participar dessa discus-
poderes, exprimindo a diferença de conceito, permane- são. N e m os falatórios mal digeridos, nem as superficiali-
cem bem simplesmente na sua idealidade e constituem u m dades edificantes, que possam extrair de suas sensibilida-
único conjunto individual. des ou de seu entusiasmo podem sequer ter a pretensão
de serem dignos da consideração filosófica.
Observação. Tem-se ouvido ultimamente u m a quantida- Entre as representações correntemente aceitas, deve-
de inaudita de falatórios diversos sobre a constituição, bem se lembrar a da divisão necessária dos poderes do Estado.
como sobre a própria razão; os louros dos discursos va- Trata-se aí de uma determinação extremamente importan-
zios neste caso foram merecidos, na Alemanha, pelas pes- te, que se poderia com todo o direito considerar como a
soas que se haviam convencido de que eram as que me- garantia da liberdade pública, se a tivéssemos tomado em
V

134 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 135



<

seu verdadeiro sentido. Mas eis justamente uma representa- necessitam da eficiência de outros diques, é uma atitude
(
ção da qual nada sabem nem querem saber os que pensam ... totalmente característica do pensamento do entendi-
falar apoiando-se no amor e no entusiasmo. Pois é exatamen- mento negativo e, no que toca à mentalidade, caracterís-
te nela que reside o m o m e n t o da determinidade racional. tica das idéias do populacho.
O princípio da divisão dos poderes contém, com /
A autonomia dos poderes, a do poder executivo e
efeito, o momento essencial da diferença, da racionalida- do legislativo, por exemplo, consiste em instituir, como (

de real. Ora, o entendimento abstrato apreende-o de um se costuma dizer, e como pudemos ver de modo amplia- !
modo que implica, por u m lado, a determinação errônea do, a ruína imediata do Estado, ou então, se o Estado se (
da autonomia absoluta dos poderes uns com relação aos mantiver quanto ao essencial, a autonomia instaura uma <
outros, e, por outro lado, um procedimento unilateral que lula H2 n , ial u m dos poderes subordina o outro a ele, cri-
consiste em tomar seu relacionamento mútuo como algo ando assim a unidade ícj« q'J o1 f o r ° m o c i o c o m o t a l u n i '
negativo, como uma restrição recíproca. Esse modo de ver dade é constituída, e somente por esse meio poaera saivar
encerra uma hostilidade, u m temor, de cada qual em face o essencial, a manutenção do Estado na sua existência e
do outro; cada um aparece como um mal para o outro e o na sua duração.
determina a opor-se a ele, o que certamente leva a um
equilíbrio geral de contrapesos, mas de modo algum a uma Adendo. N ã o se deve querer ter outra coisa no Estado
unidade viva. Somente a autodeterminação em si do con- senão aquilo que seja uma expressão da racionalidade. O
ceito, e não qualquer outro fim ou utilidade contém a Estado é o m u n d o que o Espírito se fez. Essa é a razão
origem absoluta dos diferentes poderes, e somente em ra- pela qual sua marcha é uma marcha determinada, que é
zão dela a organização do Estado é racional em si, o refle- em si e para si. Quantas vezes se trata da sabedoria de Deus
xo da razão eterna. E é a lógica — a verdadeira, não a lógi- na natureza; isto entretanto não nos obriga a acreditar que
ca trivial — que nos permite saber como o conceito, e, mais o universo da natureza física seja alguma coisa de mais
tarde, de maneira concreta, a idéia, determinam neles elevado que o universo do Espírito, pois o Estado está tão
mesmos e situam, pondo assim, mesmo de um modo abs- acima da existência física, quanto o Espírito está acima
trato, seus três momentos: universalidade, particularida- da natureza. E por isso que se deve reverenciar o Estado
de, singularidade. A atitude que consiste em tomar o ne- como um divino terrestre, e compreender bem que, se já
gativo em geral como p o n t o de partida, em fazer da é difícil conceber a natureza, entender o Estado é algo in-
vontade do mal e da desconfiança a coisa primeira, e em finitamente mais penoso. E extremamente importante que,
seguida sedimentar habilmente diques sobre a base desse no período moderno, se tenha adquirido certo número
pressuposto, que, para serem totalmente eficientes, só de opiniões determinadas a respeito do Estado em geral,
136 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY
TEXTOS 137

e que pessoas se tenham ocupado tanto em falar das cons-


poderes, sendo em si o todo, constituem todas igualmen-
tituições, e até em fazê-las; mas nem por isso estamos qui-
te, na existência, o conceito inteiro. Q u a n d o se fala habi-
tes; é preciso que, em se tratando de um assunto racional,
tualmente de três poderes, legislativo, executivo e judici-
a razão também seja atuante na própria concepção que
ário, o primeiro corresponde à universalidade, o segundo
dela fazemos, e que saibamos aquilo que é essencial: sai-
à particularidade, mas o terceiro, o judiciário, não é o ter-
bamos que nem sempre aquilo que espontaneamente vem
ceiro momento do conceito, ele não é a singularidade, uma
à mente, ou aquilo que mais impressiona, é o essencial. É
vez que esta se situa para além dessas três esferas.
assim, é verdade, que devem ser distinguidos os poderes
do Estado, mas cada um deles deve constituir um todo
nele próprio, e conter nele os outros momentos. Q u a n d o
T E X T O N ° 13: A C O N S T I T U I Ç Ã O H I S T Ó R I C A
se fala da diversidade da eficácia dos poderes, de sua ação
D O ESTADO
e da sua eficiência, é necessário evitar incorrer no enorme
Parágrafo 274, Observação, Adendo
erro de considerar as coisas como se cada poder estivesse
supostamente lá abstratamente, por ele próprio, quando
2 7 4 . C o m o o espírito somente é efetivo na medida em
os diferentes poderes supostamente se diferenciam ape-
que é aquilo que ele se sabe, e que o Estado, enquanto
nas enquanto momentos do conceito. Se, em compensa-
espírito de um povo, é ao mesmo tempo a lei que penetra
ção, essas diferenças subsistirem abstratamente, cada qual
era todos os relacionamentos, todas as situações próprias
por ela própria, fica claro que duas autonomias não po-
a esse povo, o costume e a consciência dos indivíduos que
dem constituir uma unidade; pelo contrário, só podem
c o m p õ e m esse povo, e a constituição de u m determinado
engendrar uma luta da qual resultará ou a ruína do todo,
povo dependerão simplesmente do tipo de cultura e do
ou a restauração da unidade pela violência. Assim é que,
m o d o como se constituiu a formação da consciência de si
na Revolução francesa, ora o poder executivo absorveu o
desse povo. É nessa consciência que residem a sua liber-
legislativo, ora o legislativo absorveu o executivo e se con-
dade subjetiva e, portanto, t a m b é m a realidade efetiva da
tinua incapaz de formular aqui a reivindicação moral da
constituição.
harmonia. Pois, se de fato remetermos ao Gemüt, à sensi-
bilidade, evidentemente nos pouparemos muito trabalho;
Observação. Dar a priori uma constituição a u m povo,
mas se o sentimento próprio da Sittlichkeit, o sentimento
mesmo que pelo seu conteúdo essa constituição seja mais
ético-social for igualmente necessário, ele não terá que
ou menos racional, seria u m a idéia que negligencia preci-
determinar por si mesmo os poderes do Estado. O que é
samente o m o m e n t o que faz com que uma constituição
importante, e que é decisivo, é que as determinações dos
seja mais do que u m a simples criação do pensamento. E
138 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 139

por isso que todos os povos têm a constituição que lhes é T E X T O N ° 14: D A S O B E R A N I A A O S O B E R A N O
adequada e que convém a cada um. Parágrafo 279, Observação, Adendo

Adendo. O Estado deve, na sua constituição, impregnar 2 7 9 . A soberania, que inicialmente é apenas o pensamen-
todos os relacionamentos e todas as situações. Napoleão, to universal dessa idealidade, existe somente como subje-
por exemplo, quis dar apriori uma constituição aos espa- tividade certa dela própria, somente como autodetermi-
nhóis, mas as coisas saíram mal. Com efeito, u m a consti- nação abstrata — e, nessa medida, desprovida de razão, de
tuição não é algo que se fabrique assim, simplesmente. E fundamento — da vontade, autodeterminação na qual re-
o resultado do trabalho de séculos inteiros, a idéia e a cons- side o elemento último da decisão. Temos aqui a substân-
ciência do racional, tanto quanto tais idéias chegaram a cia individual enquanto tal do Estado, e é unicamente nela
se desenvolver em um povo. Por isso não há constituição que ele próprio é u m . Mas só há subjetividade em sua
que seja simplesmente criada por sujeitos. Aquilo que verdade, como sujeito, só há personalidade como pessoa,
Napoleão deu aos espanhóis era mais racional do que aqui- e na constituição que se expandiu até a racionalidade real
lo que tinham anteriormente, e, entretanto, eles o rejeita- cada u m dos três momentos do conceito tem, separada-
ram como algo de estranho a eles, porque o desenvolvi- m e n t e , sua configuração real para si. E por isso que esse
mento de sua cultura ainda não os levara até esse nível. m o m e n t o absolutamente decisivo do todo não é a indivi-
Ao se tratar da sua constituição, é necessário que u m povo dualidade em geral, mas u m indivíduo, o monarca.
tenha o sentimento do seu direito e da sua situação atual,
do ponto em que ele se encontra, senão, de nada adianta- Observação. O desenvolvimento imanente de uma ciên-
rá essa constituição existir exteriormente: para ele, ela não cia, a dedução de todo seu conteúdo a partir do conceito
terá nem significação nem valor. simples (pois, caso contrário, a ciência que assim não pro-
E claro que freqüentemente encontramos nos in- cedesse nem sequer mereceria o n o m e de ciência filosófi-
divíduos a necessidade e o desejo de u m a constituição ca), apresenta esta característica, de que u m único e mes-
melhor, mas para que essa idéia penetre em toda a massa, m o conceito, neste caso particular, a vontade, que no
tudo acontece de outro m o d o , e é algo que somente in- início, e porque ele é o início é abstrato, se conserva bem,
tervém muito mais tarde. O princípio de moralidade e de mas que somente adquire as suas determinações, e por isso
interioridade afirmado por Sócrates foi necessariamente mesmo u m conteúdo concreto, ao final de u m processo
engendrado durante a vida do filósofo, mas para que esse de acumulação e de condensação progressiva dessas de-
princípio se tornasse consciência de si universal, foi pre- terminações, que nele se desenrolam. Tratando-se do di-
ciso tempo. reito, é portanto o m o m e n t o fundamental da personali-
140 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 141

dade, inicialmente abstrata no direito imediato, que se determinações por elas próprias e em todas as figuras que
desenvolveu continuamente através de suas diferentes for- elas assumem; se as repetimos aqui, é porque elas são ad-
mas de subjetividade, e que aqui, no direito absoluto, no mitidas, por certo facilmente, em suas figuras particula-
Estado, na objetividade perfeitamente concreta da vonta- res, mas não são reconhecidas nem apreendidas quando
de, é a personalidade do Estado, a certeza que o Estado elas se acham na sua verdadeira posição, em que se apre-
tem de si, nível último, no qual são abolidas todas as par- sentam, segundo sua verdade, como m o m e n t o s da Idéia,
ticularidades na ipseidade simples, no simples si mesmo, e não isoladas e singulares. Se o conceito do monarca é o
que põe u m termo nas hesitações e vacilações entre as ra- conceito mais difícil para o raciocínio, isto é, para o exa-
zões e as contra-razões, e que decide, dizendo "Eu o que- me reflexionante que o entendimento faz, é porque o ra-
ro", sendo assim começo de toda ação, de toda realidade ciocínio permanece atado às determinações singulares e,
efetiva. Além disso, a personalidade e a subjetividade em conseqüentemente, conhece apenas as razoes (Gründe), os
geral, enquanto referência infinita a si própria, só e sim- pontos de vista finitos, a dedução a partir de razões e de
plesmente têm verdade, somente têm sua verdade imedi- princípios. É por isso que ele apresenta a dignidade do
ata mais próxima, enquanto pensamento, enquanto pes- monarca como algo deduzido não somente segundo a sua
soa, enquanto sujeito que é para si, e aquilo que é para si forma, mas também segundo a sua determinação; ao pas-
é do mesmo m o d o e simplesmente uno. A personalidade so que, pelo contrário, o conceito do monarca é o de ser
do Estado somente é efetivamente real enquanto pessoa, algo que não seja derivado de outra coisa, algo que tem
somente enquanto a pessoa do monarca. em si o seu próprio começo. A representação mais próxi-
A personalidade exprime o conceito enquanto tal, ma da natureza desse conceito é a que consiste em consi-
ao passo que a pessoa contém ao mesmo tempo a realida- derar que o direito do monarca está fundamentado em
de efetiva do conceito, e nada mais que essa determina- u m a a u t o r i d a d e divina, pois ela c o n t é m o elemento
ção faz com que o conceito seja idéia, verdade. U m a pes- incondicionado, absoluto, que o conceito implica. Mas,
soa chamada "moral", sociedade, comunidade, família, por por outro lado, os mal-entendidos ligados a essa repre-
mais concreta que possa ser nela própria, tem em si mes- sentação são bem conhecidos, e a tarefa do exame filosó-
ma a personalidade apenas de maneira abstrata, como u m fico é justamente apreender conceptualmente esse elemen-
m o m e n t o . Ela não atinge a verdade da sua existência: em to divino.
compensação, o Estado é precisamente essa totalidade na Pode-se falar de "soberania de u m povo", no senti-
qual todos os momentos do conceito atingem a efetivida- do de q u e u m povo em geral constitua em face do exteri-
de segundo a verdade que lhe é própria. D u r a n t e todo o or u m a realidade a u t ô n o m a e u m Estado próprio, como
decorrer do nosso desenvolvimento, já expusemos essas ocorre com o povo da Grã-Bretanha, por exemplo, senti- •
142 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 143

do esse que implica, entretanto, que os povos da Inglater- desenvolvida, não se trata mais dessa representação. E m
ra, da Escócia, ou ainda de Veneza, Gênova, do Ceilão, u m povo que não é o produto de uma representação, que
e t c , já não são povos soberanos, desde que deixaram de não é apreendido nem como u m a linhagem patriarcal,
ter as suas próprias instâncias supremas de governo. Pode- nem no estado de subdesenvolvimento em que são possí-
se, portanto, igualmente dizer da soberania no interior que veis as formas da democracia e da aristocracia, nem, por
ela reside no povo, se nos referirmos unicamente ao con- fim, em u m a condição na qual predominam o arbitrário
junto em geral, exatamente da mesma maneira pela qual e o inorgânico, mas que, pelo contrário, é pensada como
anteriormente mostramos que a soberania cabe ao Esta- totalidade desenvolvida em si mesma, e verdadeiramente
do. Foi entretanto por oposição à soberania existente no orgânica, a soberania existe enquanto personalidade do
monarca que se começou a falar, em uma época recente, todo, e esta personalidade existe na realidade adequada
de soberania popular, e esse é o sentido mais corrente. ao seu conceito, enquanto pessoa do monarca...
Entendida assim nessa oposição, a soberania popular faz
parte das idéias confusas enraizadas em uma compreen- Adendo. N a organização do Estado, isto é, no caso, na
são grosseira daquilo que o povo é. O povo, t o m a d o sem monarquia constitucional, não se deve ter diante de si nada
o seu monarca e sem tudo aquilo que é necessária e ime- além da exigência da Idéia em si. Todos os outros pontos
diatamente articulado, é a massa sem forma, que não é de vista devem ser apagados. O Estado deve ser conside-
mais um Estado, e à qual já não cabe nenhuma das deter- rado como u m grande edifício arquitetônico, u m hieró-
minações presentes em um todo que tenha uma forma em glifo da razão, que se apresenta na realidade. Tudo quanto
si mesmo: soberania, governo, tribunais, autoridade, Es- tenha a ver unicamente com a utilidade, com a exterio-
tado e ordens sociais, sabe-se lá o que mais. Assim que ridade, deve ser excluído do tratamento filosófico. Ora,
esses momentos, que remetem a uma organização, à vida compreender que o Estado é a vontade perfeitamente so-
do Estado, aparecem em um povo, esse povo deixa de ser berana que se determina a si mesma, como último ato
o abstractum indeterminado, que comumente é represen- de decisão, é algo que não põe muitos problemas para a
tado com a expressão geral "povo". Se, por soberania do representação. Difícil é entender esse "eu quero" como uma
povo, entendermos a forma da república, e mesmo, para pessoa. Isto não quer dizer que o monarca tenha o direito
ser mais preciso, da democracia (pois com o termo repú- de agir de maneira arbitrária; pelo contrário, ele está ata-
blica concebe-se uma grande quantidade de realidades em- do pelo conteúdo concreto das consultas aos conselhos,
píricas mitigadas que não têm lugar em uma reflexão fi- e, quando a constituição é sólida, na maioria das vezes ele
losófica), por u m lado, já dissemos o que era necessário não tem outra coisa a fazer senão apor sua assinatura. Mas
dizer sobre o assunto, e, por outro lado, diante da Idéia esse n o m e é importante. E o ápice além do qual não se
JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY T EXTOS 145
144

pode ir, que não pode ser ultrapassado. Poder-se-ia dizer tura que culmina em u m a cúpula suprema, ela própria
que na bela democracia ateniense já havia uma espécie de em contato com o monarca.
articulação orgânica, mas vemos logo que os gregos to-
mavam sua decisão última a partir de manifestações in- Observação. Do mesmo m o d o que a sociedade civil bur-
teiramente exteriores: a partir de oráculos, de entranhas guesa é o campo de batalha dos interesses privados indi-
de animais sacrificados, do vôo dos pássaros; e compor- viduais, em que todo o m u n d o afronta todo o m u n d o , o
tavam-se diante da natureza como diante de um poder conflito que tem aqui, no nível do Estado, a sua sede, é o
que enuncia e anuncia tudo aquilo que é b o m para os desse mesmo interesse privado contra os negócios parti-
homens. Nessa época, a consciência de si não havia ainda culares coletivos — ou ainda, aquele que opõe, de u m lado,
chegado à consciência de si da subjetividade, ao ponto em a aliança dos interesses privados e interesses particulares
que é necessário que seja pronunciado pelo próprio ho- coletivos e, de outro lado, os pontos de vista superiores e
m e m u m "eu quero" sobre aquilo que deve ser decidido. as disposições recomendadas pelo Estado. O espírito
E esse "eu quero" que constitui a grande diferença entre o corporativo, que se fabrica na legitimação das esferas par-
m u n d o moderno e o m u n d o da Antigüidade, e é necessá- ticulares, inverte-se ao mesmo tempo nele mesmo, tor-
rio que tenha sua existência própria no grande edifício nando-se espírito do Estado, na medida em que tem no
do Estado. Muitas vezes, porém, essa determinação é, in- Estado o meio para atingir aquilo que os fins particulares
felizmente, considerada como puramente exterior e da visam. Neste aspecto é que reside o segredo do patriotis-
ordem do bom querer. mo dos cidadãos: eles sabem que o Estado é a sua subs-
tância, porque é o Estado que m a n t é m as esferas particu-
lares deles tanto em sua legitimação e em sua autoridade,
T E X T O N ° 15: O S F U N C I O N Á R I O S quanto em seu bem-estar. É por isso que a profundidade
Parágrafo 289, Observação e a força que o Estado aufere na mentalidade dos cida-
dãos residem nesse espírito de corporação, pois é ele que
2 8 9 . Para preservar o interesse universal do Estado, bem contém de forma imediata o enraizamento do particular
como a legalidade em todos esses direitos particulares e no universal.
para reconduzir esses direitos particulares ao interesse Freqüentemente a administração dos negócios da
universal, é preciso que esse cuidado seja assumido por corporação pelos seus próprios dirigentes será inábil, u m a
delegados do poder governamental, os funcionários exe- vez que essas pessoas, com certeza, têm que conhecer e
cutivos do Estado e as autoridades deliberativas superio- tratar de seus próprios interesses e negócios, mas conhe-
res, constituídas então em instâncias de colegiado, estru- cem e tratam de maneira muito incompleta as perspecti-
144 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 145

pode ir, que não pode ser ultrapassado. Poder-se-ia dizer tura que culmina em uma cúpula suprema, ela própria
que na bela democracia ateniense já havia uma espécie de em contato com o monarca.
articulação orgânica, mas vemos logo que os gregos to-
mavam sua decisão última a partir de manifestações in- Observação. D o mesmo m o d o que a sociedade civil bur-
teiramente exteriores: a partir de oráculos, de entranhas guesa é o campo de batalha dos interesses privados indi-
de animais sacrificados, do vôo dos pássaros; e compor- viduais, em que todo o m u n d o afronta todo o m u n d o , o
tavam-se diante da natureza como diante de u m poder conflito que tem aqui, no nível do Estado, a sua sede, é o
que enuncia e anuncia tudo aquilo que é b o m para os desse mesmo interesse privado contra os negócios parti-
homens. Nessa época, a consciência de si não havia ainda culares coletivos — ou ainda, aquele que opõe, de u m lado,
chegado à consciência de si da subjetividade, ao p o n t o em a aliança dos interesses privados e interesses particulares
que é necessário que seja pronunciado pelo próprio h o - coletivos e, de outro lado, os pontos de vista superiores e
m e m um "eu quero" sobre aquilo que deve ser decidido. as disposições recomendadas pelo Estado. O espírito
E esse "eu quero" que constitui a grande diferença entre o corporativo, que se fabrica na legitimação das esferas par-
m u n d o moderno e o m u n d o da Antigüidade, e é necessá- ticulares, inverte-se ao mesmo tempo nele mesmo, tor-
rio que tenha sua existência própria no grande edifício nando-se espírito do Estado, na medida em que tem no
do Estado. Muitas vezes, porém, essa determinação é, in- Estado o meio para atingir aquilo que os fins particulares
felizmente, considerada como puramente exterior e da visam. Neste aspecto é que reside o segredo do patriotis-
mo dos cidadãos: eles sabem que o Estado é a sua subs- (
ordem do bom querer.
tância, porque é o Estado que m a n t é m as esferas particu-
lares deles tanto em sua legitimação e em sua autoridade,
T E X T O N ° 15: O S F U N C I O N Á R I O S quanto e m seu bem-estar. E por isso que a profundidade
Parágrafo 289, Observação e a força que o Estado aufere na mentalidade dos cida- i

dãos residem nesse espírito de corporação, pois é ele que


2 8 9 . Para preservar o interesse universal do Estado, bem contém de forma imediata o enraizamento do particular
como a legalidade era todos esses direitos particulares e no universal.
para reconduzir esses direitos particulares ao interesse Freqüentemente a administração dos negócios da
universal, é preciso que esse cuidado seja assumido por corporação pelos seus próprios dirigentes será inábil, uma
delegados do poder governamental, os funcionários exe- vez que essas pessoas, com certeza, têm que conhecer e
cutivos do Estado e as autoridades deliberativas superio- tratar de seus próprios interesses e negócios, mas conhe-
i
res, constituídas então em instâncias de colegiado, estru- cem e tratam de maneira muito incompleta as perspecti-
i
146 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY T EXT O S 147

vas do universal, e as conexões entre coisas que depen- xo, u m controle pelo alto que não se exerce até o nível
dem de uma ordem mais distante. Isto sem falar dos ou- dos comportamentos individuais.
tros fatores que contribuem para o mesmo resultado: por
I
exemplo, os seus contatos privados próximos e tudo aquilo Observação. O ponto de contato entre as leis e as deci-
que faz deles, além do mais, iguais a pessoas que em prin- sões governamentais e a singularidade dos indivíduos si-
cípio lhes deveriam ser subordinadas, os múltiplos aspec- tua-se no comportamento e na formação, na cultura dos
tos da dependência, etc. Pode-se considerar que esta esfe- funcionários; é igualmente o ponto no qual tais decisões
ra específica é a b a n d o n a d a no m o m e n t o da liberdade fazem-se efetivamente valer na realidade. E portanto des-
formal, no qual, as qualidades próprias de conhecimen- se ponto que também dependem a satisfação dos cidadãos
to, de decisão e de execução, bem como as pequenas pai- e sua confiança no governo, do mesmo m o d o que dele
xões e as vaidades secundárias, dispõem de u m terreno de dependem a execução das intenções do governo, o enfra-
jogo no qual podem se mover livremente, e isto, tanto mais quecimento ou o fracasso das mesmas, visto que a manei-
que o conteúdo dos negócios que são por isso corrompi- ra pela qual tais intenções são postas em execução facil-
dos, ou não muito bem conduzidos, ou ainda conduzi-
mente será considerada como de igual importância — pelo
dos de maneira mais falha, for de menor importância para
sentimento e pela mentalidade dos interessados — à do
o interesse mais geral, para o interesse universal do Esta-
próprio conteúdo daquilo que deve ser executado, para
do; tanto mais que a gestão laboriosa ou fantasista deste
além da carga que tal conteúdo já pode representar para
gênero de negócios sem importância, estiver em relação
ele próprio./E o caráter imediato e pessoal desse ponto de
direta com a satisfação pessoal e a opinião de si próprio
contato que explica que o controle exercido pelo alto possa
que daí se aufere.
atingir ainda menos completamente sua meta, na medida
em que tal meta encontra obstáculo no interesse coletivo
295. A proteção do Estado e dos governados contra o dos funcionários, enquanto ordem social, enquanto Stand,
abuso de poder que pode advir das autoridades e de seus formando u m bloco contra os subordinados e contra os
funcionários reside, por ura lado, na hierarquia e na defi- superiores hierárquicos, obstáculos que somente podemos
nição das responsabilidades destes últimos, e, por outro retirar, q u a n d o as instituições são ainda relativamente
lado, nos direitos a que estão habilitadas as comunas e imperfeitas, por meio da intervenção superior da sobera-
corporações, na medida em que esses direitos permitirem nia, e que tornam tal intervenção necessária e legítima
pôr um freio na ingerência do arbitrário subjetivo nos (como foi a de Frederico II, por exemplo, no memorável
poderes confiados aos funcionários e completar, por bai- caso do moleiro Arnold).
148 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 149

T E X T O N ° 16: A V O N T A D E P O P U L A R que esse povo tem inegavelmente a melhor vontade pos-


Parágrafo 3 0 1 , Observação sível no que diz respeito a esse "melhor". Ora, tratando-se
do primeiro aspecto, o caso em que se apresenta, ao con-
3 0 1 . O elemento dos estados (Stande) tem por determi- trário, é que o povo — se com essa palavra designarmos
nação e destinação o fato de que a causa geral, o caso que uma fração particular da massa dos membros de u m Es-
é o do universal, não seja unicamente em si, mas igual- tado — exprime precisamente a parcela que não sabe o que
mente para si, vale dizer, que o m o m e n t o da liberdade quer. Saber o que se quer e, ainda mais, saber aquilo que
formal subjetiva, a consciência pública, acede à existência a vontade em si e para si, aquilo que a razão quer, é o fru-
como universalidade empírica das opiniões e das idéias to de u m a inteligência e de u m conhecimento profundos,
do grande número. que não são exatamente da alçada do povo. Se quisermos
refletir u m pouco sobre esse ponto, a garantia que os es-
Observação. A expressão "grande número", a pluralida- tados, Stande, representam quanto ao que é melhor para
de, oipolloi, em grego, designa mais exatamente a univer- todos e para a liberdade pública não se situa na inteligên-
salidade empírica do que o banal e corrente "todos" ou cia particular deles. Os funcionários superiores do Esta-
"todo o mundo". Q u a n d o , com efeito, tivermos dito que do, com efeito, têm necessariamente uma inteligência mais
é necessário antes de mais nada excluir desse "todos" as profunda e mais abrangente das necessidades do Estado e
mulheres, as crianças e t c , ficará ainda mais evidente que das disposições por ele tomadas, ao mesmo tempo em que
melhor seria não empregar uma expressão muito deter- uma familiaridade maior e uma qualificação maior para
minada quanto é "todos", quando se trata ainda de algo esse gênero de ocupação; podem, portanto, fazer o me-
inteiramente indeterminado. Essa impropriedade fez sur- lhor sem os estados, do mesmo m o d o que é necessário
gir na opinião corrente uma imensa quantidade de repre- que o façam continuadamente por ocasião das assembléi-
sentações errôneas e claudicantes a respeito do povo, da as desses estados, por ocasião dos "estados gerais". Essa
constituição e dos estados da sociedade, os Stande, a tal garantia reside antes, em parte, n u m aumento de inteli-
ponto que seria trabalho perdido enumerá-las, comentá- gência de parte dos deputados, notadamente no que toca
las e corrigi-las. A representação inicial que a consciência aos feitos e gestos dos funcionários mais afastados dos
c o m u m faz habitualmente, a respeito da necessidade e da olhares das instâncias superiores e, muito especialmente,
utilidade de uma atividade concorrente dos estados con- no que se refere aos defeitos e necessidades mais urgentes
siste principalmente em dizer que são os deputados do e mais específicos que agora têm diante dos olhos; mas,
povo, isto é, o próprio povo, que compreendem necessa- por outro lado, a garantia reside também no efeito que
riamente da melhor maneira o que melhor lhes servirá, e produz a espera da censura do maior número, de uma
150 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY TEXTOS 151

censura pública, e que consiste em se empregar a melhor les o m o m e n t o subjetivo da liberdade universal, a inteli-
inteligência no que diz respeito a negócios e projetos avan- gência e a vontade próprias da esfera que em nossa ex-
çados, pondo-os em execução em função das motivações posição chamamos de sociedade civil burguesa, acede à
mais puras, pressão essa que, em suma, é igualmente efi- existência por referência ao Estado. O fato de que esse m o -
caz para os membros dos estados. Q u a n t o à boa vontade mento seja uma determinação da Idéia desenvolvida em
particular dos estados visando a obtenção, em nível óti- totalidade, e de que essa necessidade interior que lhe é
mo do bem geral, já fizemos precisamente a observação própria, que não poderia ser confundida com as necessi-
de que faz parte da opinião do populacho — a qual repre- dades e utilidades de ordem exterior, é o resultado do
senta o ponto de vista do negativo em geral — pressupor ponto de vista próprio da filosofia, o que ocorre também
uma má vontade ou uma vontade menos boa da parte do com todo o restante.
governo, pressuposto ao qual, caso fosse necessário res-
ponder na mesma forma, poderia receber à guisa de ré-
plica as seguintes recriminações: os estados, que proce-
dem da singularidade dos indivíduos, do ponto de vista
privado dos interesses particulares, estariam de fato pro-
pensos a empregar toda sua eficiência à custa do interesse
universal, uma vez que, inversamente, os outros m o m e n -
tos do poder de Estado já estão consagrados por eles pró-
prios às finalidades universais e situados desde o início
do ponto de vista do Estado. Q u a n t o à garantia que se •
supõe residir em particular nos estados, trata-se de uma
característica que eles compartilham com toda e qualquer
outra instituição do Estado, da garantia do bem-estar
público e da liberdade racional, havendo entre elas insti-
tuições, como, por exemplo, a soberania do monarca, o
caráter hereditário da sucessão ao trono, a constituição
judiciária, e t c , nas quais essa garantia está presente em
.
u m grau ainda bem mais elevado.
Essa é a razão pela qual se deve procurar a defini-
ção adequada do conceito dos estados no fato de que ne-
VOCABULÁRIO 153

aqui o termo "ultrapassar", que nos parece ser de uso mais


VOCABULÁRIO corrente. A partir do verbo aufheben, cujo particípio pas-
sado é aufgehoben, Hegel emprega também os substanti-
vos das Aufheben, ou die Aufhebung.
Fica difícil compreender uma filosofia sem antes Efetivo (effectif) [wirklich] - E o termo característico que
assimilar a terminologia a partir da qual ela se exprime. Hegel emprega para designar a realidade na qualidade de
N o comentário que antecede este vocabulário, demos uma racional, isto é, de não redutível a caracteres empíricos.
grande importância às palavras e à sua significação literal, l
Neste termo, Hegel reencontra o radical do termo werk,
que têm um papel essencial no discurso hegeliano. Reto- (
que designa o trabalho ou a obra. E efetivo aquilo que
m a m o s aqui, sob uma forma bastante simplificada, as não é tão-somente real no sentido de uma realidade dada (
definições de alguns termos ou expressões fundamentais (sob a forma de u m "em-si" imediato), mas que é o resul- (
que reaparecem constantemente no texto e fixam seu sen- tado de seu próprio trabalho de elaboração, que o faz (
tido. Este vocabulário restringe-se aos esclarecimentos aceder à efetividade (Wirklichkeit), graças à "mediação", 1
indispensáveis à leitura das passagens da Filosofia do di- q u e permite a u m conteúdo desenvolver completamente
reito aqui apresentadas; não tem a pretensão de constituir aquilo que ele é a partir dele próprio, portanto, de m o d o
u m léxico da língua hegeliana tomada em seu conjunto. "imanente". 1
1

1
Ultrapassar (dépasser) [Aufheben] - Termo muito difícil E m si (en soi) [an sichj - Designa o "momento" no qual
(
de se traduzir em francês, porque é o suporte de u m jogo u m conteúdo racional é apresentado de maneira apenas
(
de palavras específico da língua alemã, em que o verbo virtual; carece então de seu desenvolvimento completo ou
aufheben significa ao mesmo tempo suprimir e conservar. d e sua atualização ( n u m sentido muito próximo daquele
Hegel emprega essa palavra, cujo significado é ambiva- I dado por Aristóteles a esta noção, q u a n d o fala da passa-
lente, para exprimir aquilo que existe de característico no gem do ser em potência ao ser em ato). O em si é a forma
desenvolvimento dialético de u m "processo" racional: ao característica do imediato, isto é, daquilo que "ainda não"
passar de u m "momento" para aquele que o sucede, ele se é efetivo. Hegel distingue an sich (em si) de in sich (den-
aplica negativamente à sua forma anterior, e portanto a tro de si) e de für sich (para si, ou como si), que repre-
suprime, para transformá-la, isto é, reconstituí-la sob u m a senta(m) o m o m e n t o da existência consciente.
forma mais completa ou mais racional. Entre as tradu-
Espírito (esprit) [Geist] - O Espírito no sentido hegelia-
ções propostas para o termo, na verdade intradutível, as-
no é o Espírito n u m a acepção absoluta do termo: não se
sinalamos "superar", "relevar", "sobressumir"; escolhemos
V O C A B U L Á R I O 153

aqui o termo "ultrapassar", que nos parece ser de uso mais


VOCABULÁRIO corrente. A partir do verbo aufheben, cujo particípio pas-
sado é aufgehoben, Hegel emprega também os substanti-
vos das Aufheben, ou die Aufhebung.
Fica difícil compreender u m a filosofia sem antes Efetivo (ejfectif) [wirklich] - E o termo característico que
assimilar a terminologia a partir da qual ela se exprime. Hegel emprega para designar a realidade na qualidade de
N o comentário que antecede este vocabulário, demos u m a racional, isto é, de não redutível a caracteres empíricos.
grande importância às palavras e à sua significação literal, Neste termo, Hegel reencontra o radical do termo werk,
que têm u m papel essencial no discurso hegeliano. Reto- que designa o trabalho ou a obra. E efetivo aquilo que
mamos aqui, sob uma forma bastante simplificada, as não é tão-somente real no sentido de uma realidade dada
definições de alguns termos ou expressões fundamentais (sob a forma de u m "em-si" imediato), mas que é o resul-
que reaparecem constantemente no texto e fixam seu sen- tado de seu próprio trabalho de elaboração, q u e o faz
tido. Este vocabulário restringe-se aos esclarecimentos aceder à efetividade (Wirklichkeit), graças à "mediação",
indispensáveis à leitura das passagens da Filosofia do di- que permite a u m conteúdo desenvolver completamente
reito aqui apresentadas; não tem a pretensão de constituir aquilo que ele é a partir dele próprio, portanto, de m o d o
um léxico da língua hegeliana tomada em seu conjunto. "imanente".

Ultrapassar (dépasser) [Aufheben] - Termo muito difícil Em si (en soi) [an sich] - Designa o "momento" no qual
de se traduzir em francês, porque é o suporte de u m jogo u m conteúdo racional é apresentado de maneira apenas
de palavras específico da língua alemã, em que o verbo virtual; carece então de seu desenvolvimento completo ou
aufheben significa ao mesmo tempo suprimir e conservar. de sua atualização (num sentido muito próximo daquele
Hegel emprega essa palavra, cujo significado é ambiva- dado por Aristóteles a esta noção, q u a n d o fala da passa-
lente, para exprimir aquilo que existe de característico no gem do ser em potência ao ser em ato). O em si é a forma
desenvolvimento dialético de um "processo" racional: ao característica do imediato, isto é, daquilo que "ainda não"
passar de u m "momento" para aquele que o sucede, ele se é efetivo. Hegel distingue an sich (em si) de in sich (den-
aplica negativamente à sua forma anterior, e portanto a tro de si) e de für sich (para si, ou como si), que repre-
suprime, para transformá-la, isto é, reconstituí-la sob uma senta(m) o m o m e n t o da existência consciente.
forma mais completa ou mais racional. Entre as tradu-
ções propostas para o termo, na verdade intradutível, as- Espírito (esprit) [Geist] - O Espírito no sentido hegelia-
sinalamos "superar", "relevar", "sobressumir"; escolhemos no é o Espírito n u m a acepção absoluta do termo: não se
154 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY VOCABULÁRIO 155

deixa portanto reduzir aos limites de uma consciência. N o cera a unidade aparente daquilo que se dá logo à primeira
decorrer do seu desenvolvimento completo, o Espírito se vista e m uma unidade imediata, para poder, em seguida,
torna "efetivo": produz a partir dele próprio u m m u n d o restabelecer essa unidade sob uma forma completa e con-
que particularmente lhe pertence, no qual ele é livre, isto creta. O conceito de mediação está evidentemente no cen-
é, que só tem a ver com ele próprio. N a sua Filosofia da tro de todo o sistema hegeliano. E dele que decorre o prin-
História, Hegel fala do Espírito do m u n d o (Weltgeist) para cípio essencial do seu "método": quando se apresenta uma
exprimir essa criatividade do Espírito que se encarna em dificuldade, é necessário buscar a mediação que permite
formas, ou em figuras, nas quais se manifesta sucessiva- resolvê-la.
mente, de modo que finalmente atinja u m a expressão to-
Momento (moment) [das Moment] - Termo tomado de
tal. O Espírito é liberdade.
empréstimo diretamente do latim (fato que não é freqüen-
Imanente (immanent) [immanent] - Literalmente, aqui- te no discurso filosófico de Hegel, que prefere empregar
lo que permanece (do latim manere, ficar, manter-se), em palavras de origem grega ou germânica), que Hegel utili-
u m relacionamento interno, interior, intrínseco (in signi- za para distinguir, diferenciar as articulações ou as etapas
fica "dentro de") a ele próprio. E portanto o caráter de de u m "processo" que se desenrola através de uma suces-
u m processo que se desenvolve unicamente a partir de si são de "momentos". Esses momentos não estão simples-
mesmo, mantendo-se dentro de limites que ele próprio mente justapostos, mas desenvolvem-se uns a partir dos
fixou, de maneira que conserve sua própria unidade or- outros, no âmbito de u m movimento "imanente" que os
gânica. Imanente, racional, concreto são termos que no põe e m estado de dependência recíproca. Constituem as
vocabulário hegeliano quase sempre estão juntos. expressões de u m mesmo conteúdo racional, que se apre-
senta a cada vez em formas desigualmente acabadas ou
Mediação (médiation) [Vermittlung]- Literalmente, aqui- "efetivas". D e certo m o d o , o termo deve ser entendido
lo que se põe no meio (Mitte), e portanto serve de inter- mais em u m sentido físico (como quando se fala do "mo-
mediário no desenvolvimento de u m processo. Para Hegel, m e n t o " de uma força) do que em u m sentido temporal
a condição para que u m conteúdo racional se torne "efe- (um instante).
tivo" é que ele se submeta à prova da mediação, quer di-
zer; que se interponha, entre a sua apresentação imediata A i n d a não (pas encore) [noch nicht] - Essa fórmula apa-
(literalmente, ainda não mediada) e o m o m e n t o em que rentemente banal surge constantemente na linguagem de
ele está completamente desenvolvido, u m tal termo m é - Hegel, exprimindo a relação de u m "momento" anterior,
dio. Essa mediação é uma prova, um trabalho, porque faz d e n t r o do desenvolvimento de u m "processo", com os
intervir u m a negatividade "imanente", que divide, dila- m o m e n t o s que devem suceder a ele. O que aparece em
156 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY

primeiro lugar, sob u m a forma imediata, no início de u m


tal desenvolvimento, já é aquilo que se apresentará em LEITURAS COMPLEMENTARES
seguida, através das realizações mais elevadas, mais racio-
nais, mas que aqui ainda não atingiu o seu desenvolvi-
mento "efetivo". O conteúdo racional de u m a noção ou Para completar a leitura dos Princípios da filosofia
de u m a forma histórica depende da proporção entre esse do direito de Hegel, o melhor mesmo é prolongá-la pelo
"já" e esse "ainda não", que fixa seu lugar no desenvolvi- estudo do próprio texto completo (do qual só propuse-
mento do "processo" no interior do qual ela surge. Por mos aqui excertos significativos), bem como pela leitura
meio da figura do "ainda não", cada manifestação ulteri- de outras obras suas que desenvolvem os mesmos proble-
or do Espírito aparece como que à espera de uma mani- mas sob outros ângulos; muito mais do que pela leitura
festação ulterior que a "ultrapasse", e da qual ela carrega de obras dedicadas ao pensamento de Hegel.
dentro dela própria, de maneira "imanente", a necessida- Primeiramente, algumas indicações sobre as edições
de e a promessa. A filosofia de Hegel é uma filosofia do deste texto na língua original alemã: há uma grande edi-
"noch nicht", do "ainda não". ção "crítica" da Filosofia do direito, a de Karl Heinz Ilting
(em seis volumes) publicada por Fromann-Holboog. En-
P r o c e s s o (processus, procès) [Fortgang, Prozess] - contram-se aí os diferentes estágios dos cursos de Hegel
Literalmente, é a marcha avante do Espírito que progride sobre a filosofia do direito, cuja edição em forma de livro
na direção da realização efetiva de si mesmo, através de feita em 1821 constitui u m m o m e n t o maior — e até hoje
seu próprio desenvolvimento imanente, passando portanto é base para as traduções modernas —, mas igualmente da-
pelas etapas intermediárias que são necessárias para que tado, isto é, condicionado por u m certo número de fato-
ele atinja finalmente essa meta, cuja exigência carrega em res políticos importantes, bem descritos pelo editor e m
si mesmo. Segundo Marx e Engels, a grande inovação fi- seus diferentes prefácios.
losófica de Hegel consiste em ter ele substituído a consi-
H á outras versões alemãs, notadamente o Tomo VII
deração de coisas dadas e fixadas de uma vez por todas na
das Obras Completas, chamadas Jubilàums Ausgabe, e
sua identidade abstrata, pela consideração de processos
editadas por H e r m a n n Glockner.
animados por esse movimento imanente que as realiza
A edição dita de Hoffmeister é publicada pela Felix
concretamente. Para Hegel, a razão e o Espírito são es-
Meiner Verlag ( u m a variante verde na RFA e u m a varian-
sencialmente processos, de o n d e ambos auferem sua
te marron na PE)A).
necessidade.
Existem várias edições de bolso, entre as quais, a
mais completa é a de H e l m u t Reichelt (Frankfurt, Berlim,

í
158 JEAN-PIERRE LEFEBVRE & PIERRE MACHEREY LEITURAS C O M P LEM ENTARES 159

m
Viena, 1972), publicada pelas Edições Ullstein (Ulstein que ela apresenta problemas de leitura e exige u m apren-
Buch N r 2929). dizado particular.
E m francês, duas traduções dos Princípios são en- Por fim, é preciso ressaltar que Marx, provavelmen-
contráveis atualmente: te em 1843, empreendeu u m comentário do texto de H e -
gel sobre o Estado, que foi traduzido para o francês sob o
• a de A. Kaan, reeditada na Coleção Idées das Éditions
título Crítica do direito político hegeliano (tradução de Ba-
Gallimard;
raquin, publicada pelas Éditions Sociales) ou Crítica do
• a de R. Derathé e J.-R Frick, publicada nas Éditions Vrin, Estado hegeliano (tradução francesa de Papaioannou, pu-
mais precisa, mais completa (comportando os adendos blicada na Coleção 10/18). Este comentário oferece u m
que não são dados na outra tradução), e mais bem apre- interesse enorme, pois esclarece ao mesmo tempo a signi-
sentada. ficação histórica do pensamento de Hegel e a formação
Por outro lado, a seção da Enciclopédia das ciências da concepção marxista sobre o direito e sobre o Estado.
filosóficas dedicada ao Espírito objetivo dá uma outra ex-
posição, mais concisa do conteúdo desses Princípios. O
texto completo da Enciclopédia, em sua terceira e última
versão, foi traduzido em francês por M. de Gandillac e
publicado pelas Éditions Gallimard.
Se deixarmos de lado os escritos de juventude de
Hegel, que põem questões muito particulares de interpre-
tação, poderemos ler também;
• a Introdução das Lições sobre a filosofia da história, co-
nhecida sob o título de "A Razão na história" (tradução
francesa de Papaioannou, publicada na coleção de bolso
10/18);
• Os Escritos políticos de Hegel (cuja tradução francesa foi
publicada nas Éditions C h a m p Libre);
• A Fenomenologia do espírito (tradução francesa feita por
Jean Hyppolite, e publicada nas Éditions Aubier) com-
porta numerosas passagens q u e reforçam a reflexão <
hegeliana sobre o direito; mas é preciso também dizer «

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