Cada uma das peças – seja ela bidimensional ou tridimensional, por [e em] si, possui
uma identidade autónoma, que transfigurou os materiais de base ou os procedimentos
interventivos sobre eles; ou/e a convencional forma de os interpelar, quer as
substâncias, quer o proceder de Arte.
Ana Fernandes interfere no destino primeiro das coisas: escolhe-as, trata-as, cura-as e
outorga-lhes densidade societária e poética, num mesmo gesto intencionalizado.
A lucidez, clarividência e naturalidade visceral com que a sua inteligência se move nos
territórios das coisas que parecem não ter sentido, surpreende no processo, quanto no
resultado das obras que nos apresenta.
A atuação artística de Ana Fernandes pauta-se pela coerência, fixada nas suas
certezas, agarrada à terra, elemento que metamorfoseia as suas efabulações
antropomórficas, vegetais e zoomórficas aqui em causa, olhando as obras que
integram esta exposição.
O ar é leve, todavia os tecidos que a artista estende e fixa, imobilizam-se, contrariando
os ciclos e dinamismos que as gerações impõem. Nos produtos têxteis reside a
história de quem os habitou: voluptuosos e pobres; angustiados e histriónicos;
sedutores e introspetivos. Nos tecidos permanecem as marcas, as células mínimas de
quem os habitou, mesmo após terem partido da terra, do ar, do fogo e da água.
Mas a terra é fértil. Todavia clama por que se cumpram princípios de austeridade e
exiguidade, que as palavras, as morfologias geometrizadas e os lagartos sejam
traçados com precisão cirúrgica…Entranham-se e deslizam, já se sabe. Atingem-nos,
havendo que destaca-los e autorizando-lhes relacionalidades inesperadas. Toda uma
história de sentidos concatenados, entre as indexações mais efetivas e as residuais
que se ramificam até se tornarem tão finas quanto as linhas de uma caligrafia bordada,
de caracteres tipográficos ou de grids de fios industriais finos, quase impercetíveis.
No caso de Ana Fernandes, agregam exotismos industriais, pois estes mecanismos
poéticos – quase inconscientes na receção estética - cresceram a partir de junções
heterotípicas.
Cheiram a terra no ar e em suas entranhas; pairam sobre as águas paradas e
fluídas; fogem do fogo: são lagartos.
As palavras descodificam-se mas isso nem sempre é preciso. Podem manter-se numa
condição de inominado e incompreensível que potencialize a imaginação dos
espectadores. Sabem-se em condição de serem desocultadas mais tarde ou mais
cedo, ultrapassando os seus âmbitos de significação mais literais e realojadas em
materiais surpreendentes. Assim como a figura do lagarto que fala com palavras
alojadas em tecidos metamórficos.
O lagarto é uma entidade simbólica; é arquetípico e mítico. Seduz ou suscita abjeção
nas pessoas, causa repúdio intrínseco ou provoca uma viagem a histórias de infância.
Eis que sabemos que os lagartos veem muito bem e gostam de ser acariciados
como se fossem crocodilos chiques.