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P,

rofessor universitário,
poeta, editor e tradutor,
Gabriel Perissé apresenta-nos
suas reflexões e experiências
no trato com as palavras.

Gabriel Perissé Ler, Pensar e Escrever


Seu livro é como o balanço c o
resumo de mais de dez anos de
pesquisa e trabalho, que se
concretizou na criação da Escola
dc Escritores em 1994, uma bem-
sucedida iniciativa do Projeto
Literário Mosaico, a primeira
ONG literária do país, da qual é
um dos fundadores e atual
Coordenador- Geral.

ISBN 85-86127-77-9

9 78 5 8 S 1 2 77 7
9
nL^V’ J -
■u

oc^er, pensar e escrever são três


ações “triviais" que se complementam.
Quem lê pensa melhore escreve com
mais espontaneidade. Quem pensa es-
creve melhor e lê com mais profundi-
dade. Quem escreve lê melhorepensa
com mais intensidade.
Neste livro, o leitor não terá recei-
tas mágicas ou macetes descartáveis que
o “libertem” da responsabilidade de
crescer intelectualmente. Terá, porém (e
com vantagem), a experiência de
encontrar-se com uma linguagem
energética, solitária, capaz de ensinar-
lhe que ler, pensar e escrever são ações
simultâneas ao próprio existir.
Livro escrito não somente no papel.
mas também na carne. E por isso sua
leitura compromete, provoca, estimula,
irrita, comove. Certamente pede a cada
pessoa que dê o melhor de si, numa
verdadeira aprendizagem.
Para estabelecer contato com o autor
e sua Escola de Escritores, ligue para
(011) 270-53.09 ou envie um e-mail:
perisse@uol.com.br
© 2004, by Autor
Coordenação Editorial Henrique Villibor Flory Editor, Projeto Gráfico e Capo
Aroldo José Abreu Pinlo Diretora Administrativa Luciana Ap. WoIffZiniermann
ilustrações de Capa Foto-monlagein com Retrato de rapa: com lim, de Jean-
Baptiste Petronneau. e Retrato de Alphonse Leroy, de Jaques-Louis David
Editoração Eletrônica Rejane Rosa Revisão Lctizia Zim Antunes Oados
Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Biblioteca
de F.C.L. - Assis - UNESP)
Perissé, Gabriel
P446L Ler, Pensar e Escrever / Gabriel Perissé. - 4.ed. Sõo Paulo: Arle &
Ciência, 2004. - (Coleção Elementos de Criação Literária).
ISBN 85-86)27-77-9 p.
96
1.Leitura. 2.Comunicação escrito. 3.Redoçõo- Expressividode.
4.Redoçào-Criatividade. 5.Redaçâo-Estilo. 6.Linguagem e lógico.
CDD - 808.0469 401
028
Índice para catálogo sistemático:
(.Redação: Português 808.0469
2. Comunicação escrita: Personalidade
3. Linguagem c lógica 401
4. Leitura: Reflexão 028
5. Arte de escrever:
Português 808.0469

Editora Arte & Ciência Rua Treze de Maio, 71 - Bela


Vista São Paulo-SP-CEP 01327-000 Tel/fax: (011) 3231-
5868 - (011) 3257-5871 Internet:
http://www.arteciencia.com.br
índice
Introdução • Por que você está lendo «te livro?.................................................... 5
[. O Lugar da Leitura
Ler é Bom?................................................................................................ 7
O Vulcão Interior .................................................................................... 16
Ler ou Não Ser ........................................................................................ 22
Lista de Autores e Obras......................................................................... 31
II. A Formação Intelectual
O Ponto de Interrogação ......................................................................... 39
Quem Sabe o Quê? ................................................................................. 51
O Cotidiano, a Filosofia e a Nostalgia do Sagrado ................................ 58
III. Escrever para Escrever
A Técnica Pessoal ................................................................................... 71
A Odisséia do Rascunho ......................................................................... 77
A Convicção Que Inspira........................................................................ 86
ïï
Introdução
Por que você está lendo este livro?

Comecemos pelas conclusões:


- para escrever bem é preciso não querer escrever bem;
- para pensar muito é preciso não querer ser totalmente lógico;
- para ler tudo é preciso não querer ler tudo.
Se você quer escrever, pensar e ler bem provavelmente já procurou
cercar-se de todos os conselhos e regras possíveis: seja conciso, faça um
curso de leitura dinâmica, leia os clássicos, odeie os chavões, evite
períodos longos, recorra aos paralelismos, seja claro, seja criativo, use o
lado direito do cérebro, seja objetivo, leia tudo, ponha em cada parágrafo
uma idéia só, utilize exemplos, escolha um título surpreendente, faça um
levantamento de idéias, leia muito, questione tudo, formule o objetivo que
deve orientar o seu texto, não repita palavras, evite a escolha de palavras
pomposas e artificiais, cite dados estatísticos, enriqueça o vocabulário, seja
isento, leia muito, seja coerente, seja persuasivo, busque relações de causa
e efeito, evite gírias e palavrões, evite generalizações...
Por favor, esqueça tudo isso. Esqueça, pelo menos por enquanto,
todos esses mandamentos sobre o que “é recomendável” e o que “não
convém” , sobre o que é “estilo” e o que não é. Tudo isso é mais ou menos
verdadeiro, mas você não abriu este livro para aprender a escrever bem, ler
tudo ou pensar como um gênio.
A única coisa que você quer (se consigo traduzir o seu desejo ao
5
Ler, Pensar e Escrever

abrir um livro intitulado LER, PENSAR E ESCREVER) é crescer humana


e culturalmente. Mas, para consegui-lo, ler um ou dezenas de livros sobre
métodos de leitura, doutrinas filosóficas ou técnicas de redação é muito
pouco. Toda uma vida escolar e todo um curso universitário parecem às
vezes insuficientes.
Para redigir cartas de amor ou comerciais, contos, crônicas, rela-
tórios, ensaios, romances, monografias, dissertações, reportagens, poemas,
páginas de um diário ou mesmo um simples bilhete é preciso, antes de
mais nada, ter uma coisa muito pessoal a dizer. E é isso o que nenhum
livro do mundo pode suprir: a personalidade de quem pensa e escreve. A
sua personalidade.
Este livro tem a preocupação exclusiva de motivá-lo ou motivá-la a
pensar por conta própria, a ler um pouco melhor e, como fruto, como
decorrência natural, como subproduto, escrever com precisão e esponta-
neidade.
Como você já pode deduzir, não proponho aqui nenhuma saída fá-
cil, nenhuma solução miraculosa para nada. Se você quiser enfrentar as
próximas páginas, saiba que terá diante de si perguntas, paradoxos, desa-
fios.
Você está lendo este livro simplesmente porque quer ser e expres-
sar o que você é.

6
I
0 Lugar da leitura
Ler é bom?

'om? Ler é bom demais. Ler é ótimo. Ler é mais do que


necessário. Enriquecedor. Imprescindível...
Mas a verdade é que talvez você só leia “de vez em quando”. Ou
até leia com certa freqüência, mas gostaria de ler melhor, ou de ler mais
num país em que se costuma dizer que as pessoas lêem muito pouco,
falam mal e escrevem pior ainda.
Diante do desinteresse mais ou menos generalizado pelo livro (que
não é só um problema seu, ou meu, ou brasileiro, e sim um problema
mundial), cuja raiz está na educação familiar e escolar, nós, professores,
em desespero de causa, costumamos cometer um erro fatal. Obrigamos os
jovens a lerem Iaiá Garcia de Machado, Iracema de Alencar, Triste fim de
Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, O Cortiço de Aluísio, ou um outro
romance-cortiço qualquer, ou um romance açucarado ou, pior ainda, o
último best-seller, com os seus conhecidos ingredientes de muito sangue,
sexo e agora esoterismo. Democraticamente, impomos a todos que leiam o
mesmo livro e, na prova, respondam (quase) da mesma forma.
Resultado: fazemos justamente o contrário do que queríamos. Tor-
namos o ato de ler um dever desagradável, irritante, e convertemos o livro
num símbolo do constrangimento, da cobrança e do fracasso. Geramos,
assim, pessoas complexadas, novos analfabetos funcionais que, na

7
* r frase do poeta gaúcho Mário P e n s a r e E“são
L e r , Quintana, s c r e vos
e r que aprenderam a ler e não
lêem”, e completo: são os que aprenderam a escrever e não escrevem; são
os que pensam que pensam, e não pensam tanto.
Todos os professores trabalham com a maior boa vontade, sem
dúvida, pois ansiamos fazer entender aos jovens que o hábito de ler é meio
caminho andado para uma pessoa ser intelectual e socialmente saudável e,
em todas as áreas, um profissional completo. O fato, no entanto, é que
muitos dos que alcançam e concluem o curso superior continuam alheios
ou até avessos aos livros. Para o resto da vida, só lerão, “de vez em
quando”: manuais técnicos, o caderno de esportes do jornal, a revista
mensal ilustrada, qualquer coisa em que o interesse imediato pelo assunto
supere a barreira de uma incapacidade quase física para acompanhar
textos exigentes e substanciais.
Ou será que nós, professores, e pais, e jornalistas, e promotores da
cultura, não os motivamos realmente a ler?
De qualquer forma, não terá sentido forçar alguém a fazer algo,
mesmo que seja algo maravilhoso e fundamental para a sua felicidade. O
que posso e devo fazer é expor à pessoa os motivos racionais em que se
baseiam meus conselhos, motivos que, se quiser, ela transformará em
idéias claras, idéias que, graças a uma vontade firme, se traduzirão em
ações responsáveis, e essas, finalmente, num hábito arraigado.
Por que vale a pena adquirir o hábito de ler? Uma primeira resposta
é que os livros fornecem bastante matéria intelectual e emocional. As
idéias e os sentimentos não caem do céu nem brotam no jardim. Ler é
alimentar-se espiritualmente, é adquirir aquela inquietação interior - bem
como uma série de convicções a indescritível riqueza íntima de quem está
atento à vida, de quem carrega consigo a vontade de conhecer e amar
infinitamente.
Mas desde agora faço uma ressalva. Se os livros são importantís-
simos para a aquisição de uma cultura humanista e de um “estofo”, não
são os únicos meios nem devem ser encarados como A Solução Exclusiva.
É preciso, entre outras coisas, que convivamos com pessoas que saibam
conversar. “Papear” sobre os mil e um temas da vida com colegas e
amigos razoavelmente cultos e que utilizem bem da linguagem exercita-
nos o raciocínio e potência a nossa capacidade de entender e, como con

8
seqüência da reciprocidade Gintrínseca
a b r i e l P e rnuma
i s s é conversa, de fazer-nos en-
tender.
O cinema é outra possibilidade de crescimento cultural. Filmes
como O feitiço do tempo (Groundhog Day), que reflete, à Frank Capra,
sobre o valor de 24 horas bem vividas; O jardim secreto da cineasta polo-
nesa Agnieszka Holland, delicadíssima fábula sobre o mundo infantil; A
Bela e a Fera da Walt Disney, um desenho animado impecável; A festa de
Babette, filme franco-dinamarquês sobre a felicidade humana; ou como
Tempos de glória (Glory), que nos fala da nobreza e do compromisso a um
ideal - são todos obras-primas que nos aprimoram enquanto seres
humanos.
Contudo, as redações do vestibular e os textos, documentos e cartas
nas relações sociais e de trabalho mostram-nos à saciedade que há muito o
que consertar, e por todos os lados. Multidões de estudantes e profissionais
sentem-se perplexos na hora de redigir, ou de falarem público, sobre um
assunto acessível. E sofrem bastante. Tenho visto de perto este sofrimento,
que se torna crônico quando nós, professores (tantas vezes igualmente
submetidos a injustiças que nos desanimam), reclamamos da sociedade
consumista, criticamos a subcultura reinante, ameaçamos os alunos
preguiçosos, anatematizamos as telenovelas (no que, aliás, estamos
cobertos de razão).
Bom, digamos isso ou aquilo, a realidade é que não temos a fórmula
mágica de como sair desse beco sem saída, do qual só os próprios
interessados poderão escapar, se tomarem a decisão séria de investir no
auto-aperfeiçoamento intelectual, na auto-educação, recorrendo, sobretudo
(e agora volto a enfatizar a nossa questão), a uma leitura constante e bem
assimilada.
Às vezes penso que o melhor mesmo seria proibir expressamente
que as pessoas lessem, em primeiro lugar os jovens, o que levaria todos
nós a ler por conta própria. Porque parece que o proibido sempre atraiu o
ser humano, e, desde o começo do mundo, foi o estopim de muitas curi-
osidades. Contou um humorista que Deus, na sua primeira conversa com
Adão, disse-lhe: “Meu filho, você pode comer os frutos de todas as árvores
do Éden, só de uma delas é que é proibido”. E imediatamente Adão se
agitou: “Proibido? Proibido? Onde está, onde?”

9
Ler, Pensar e Escrever

0 certo, porém, é que de nada adiantará a qualquer um de nós,


escrevamos/falemos mal ou menos mal, sentir-se culpado por não ler tanto
ou tão bem quanto gostaria e, como decorrência quase fatal, por não
escrever e falar com mais fluidez, com mais criatividade, com mais segu-
rança. Além de compreendermos os motivos razoáveis que justifiquem um
esforço por se tornar um bom leitor e uma pessoa que se comunique
agradavelmente, é necessário que se faça uma descoberta íntima,
intransferível. A descoberta do prazer da leitura.
Se existe gente que gasta mais dinheiro com refrigerantes do que
com livros, é pelo simples fato de que gosta mais de refrigerante, de que
sente um grande prazer em bebê-lo. As crianças que, desde os primeiros
anos de vida, se habituam a manusear livros infantis coloridos e ouvem
histórias inventadas pelos pais e avós; que, mais tarde, lêem aventuras
cujos protagonistas são crianças da sua mesma idade; que, com o tempo,
conhecem autores estimulantes como Michael Ende, Monteiro Lobato,
C. S. Lewis, Hans Christian Andersen, Mark Twain, Júlio Veme, e
tantos outros; essas pessoas sentem um imenso prazer na leitura, porque
experimentaram esse prazer de modo adequado às etapas da sua vida, e em
doses certas, até o ponto de tomarem consciência de que, juntamente com
o prazer que oferece, a leitura transmite raciocínios, faz germinar idéias,
ensina silenciosamente a escrever e a falar com clareza, estimula a
imaginação, amadurece a sensibilidade etc.
Se por algum motivo não tivemos a sorte de percorrer esse suave
plano inclinado, e subitamente fomos obrigados a ler autores que nada nos
diziam, criando em nós uma verdadeira alergia aos livros, a possível
solução, para já, é tentar descobrir, sem medo de nos decepcionar, uma
leitura que de verdade nos faça sentir prazer, um envolvente prazer espi-
ritual.
Prazer que se produz em nós quando deparamos com um texto que
tem o sabor da vida. Lembro-me sempre do conselho de ítalo Calvino que
insistia na necessidade de procurarmos os nossos “clássicos pessoais”,
livros que lemos e relemos, não por obrigação, mas por amor e por prazer.
Essa descoberta personalíssima da leitura nunca será tardia. Seja
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quando for, o importante é ter a coragem de investir tempo, mesmo que
apenas uns singelos dez minutos diários, para desfrutar de um livro que
realmente apaixone.
Há, sem dúvida, casos de pessoas cujo temperamento ativo e “ati-
Gabriel Periísé

rado” faz rejeitar a leitura como uma lamentável perda de tempo. São
pessoas que preferem viver uma aventura real a ler uma inventada, e,
adeptos convictos da linha praticista, aprendem vendo ou ouvindo mais do
que lendo. A sua decorrente dificuldade para escrever é muitas vezes
compensada pela “ginga”, pela simpatia ou por uma habilidade puramente
técnica. Enfim, embora isso não justifique o desprezo aos livros, felizmente
nem tudo no mundo dependerá de conhecermos Machado de Assis ou La
Rochefoucauld.
Quem vê a leitura como um meio de conhecimento real do mundo e
de si mesmo, sabe, experimenta na came que a leitura bem feita deflagra
um complexo exercício interior de difícil descrição. Ao ler, ponho em ação
os sentimentos, a vontade, a memória, a imaginação, a inteligência. Nasce
dentro de mim uma agitação bem organizada, como a dos formigueiros e
das colméias. As palavras são verdadeiras embaixatrizes da realidade.
Fisicamente distante de um vulcão, trago-o para perto, para dentro de mim
quando leio a palavra “vulcão”. Aparentemente absorto do mundo e
distante de todos, o leitor, na verdade, está fugindo em direção ao mundo,
está se unindo a todos.
A fome de conhecer e de amar através da leitura manifesta-se cla-
ramente quando recorremos ao dicionário, o “pai dos inteligentes”, a fim de
descobrir ou ampliar a definição de palavras desconhecidas e, portanto,
abraçar novas facetas da realidade e da humanidade, abraçá-las e deixar
que elas nos abracem.
Mas para abraçar o máximo de realidades veiculadas pelas palavras
é necessário um esforço adicional: concentrar-se.
Uma leitura dispersiva, esta sim é uma pura perda de tempo. Con-
centrar-se pressupõe abrir o livro com a disposição de dedicar-se à leitura.
Dizem, em tom de brincadeira, que D. Pedro II lia muito bem
porque o fazia com os cinco sentidos. Com a vista, naturalmente; com o

12
Ler, Pensor e Escrever

tato, segurando o livro; com a audição, ouvindo o barulho das


páginas ao serem folheadas; com o olfato, sentindo o cheiro da tinta
impressa; e com o paladar, quando molhava o dedo indicador na língua
para virar as páginas com mais facilidade...
O cúmulo da leitura dispersiva é fazer como aquele que vai ler para
pegar no sono. As regras dessa arte são muito simples: “Meta-se na cama
numa posição confortável, certifique-se de que a luz é insuficiente, de
modo a causar ligeira fadiga ocular, escolha um livro que seja tremen-
damente difícil ou tremendamente maçante - de qualquer forma, um que
realmente pouco lhe- iinpürte-ler-eu-flãe—e-estaddarminHn m minutos. Os
peritos em repousar com um livro nas mãos não precisam esperar o
anoitecer. Basta-lhes uma cadeira confortável na biblioteca a qualquer
hora”.1
E, falando em dispersão, lembro-me que não foi uma só vez que
presenciei (e até participei) do seguinte diálogo:
- O que você anda lendo atualmente?
- Estou lendo um livro legal!
- Ah, é? E como se chama?
- Como se chama? Quer dizer... o título dele?
- Isso, o título.
- Esqueci...
- Mas quem é o autor?
- Ah, o autor é... é... Como é mesmo o nome do autor?
_ É brasileiro?
- É. Acho que é... Escreve legal...
_ Você não lembra do autor nem do título?
- Olha, é um livro dessa largura... e tem capa verde... Mas é
legal!
Se a cor da capa e o tamanho são as únicas referências do livro
retidas pelo distraído leitor, será que ele está realmente aproveitando a
leitura?
Concentração. E concentração que se concretize numa atividade
13
Ler, Pensar e Escrever

dialogante. A leitura bem feita é uma inteligente e apaixonada conversa


com o autor. É lamentável ver como às vezes aceitamos passivamente,
apaticamente, tudo quanto os livros nos dizem. Ler com atenção, a rigor,
significa compreender. E compreender significa também interpretar,
discernir, captar em profundidade, discordar, ampliar...
Sendo práticos: o melhor, quase diria “o único”, processo inteli-
gente e apaixonado de leitura - já comprovado na vida de tantos intelec-
tuais e “ratos de biblioteca” - consiste em ler com um lápis ou uma caneta
na mão. Em duas palavras: lê bem quem escreve enquanto lê.
Tudo o que numa leitura nos agrade (ou mesmo o que nos incomo-
de) merece ser transcrito ou resumido numa folha à parte. Há pessoas que
preferem sublinhar trechos no próprio livro e/ou escrever nas suas mar-
gens. Os dois métodos são bons, contanto que, no segundo caso, o livro
seja da exclusiva propriedade do leitor, e que, no primeiro, as anotações
sejam guardadas ordenadamente, de modo que se possam realizar dese-
jáveis reieituras.
No filme 84, Charing Cross Road, intitulado no Brasil Nunca te vi,
sempre te amei, que se baseia na obra de mesmo nome da norte-
americana Helene Hanff, a protagonista se deleita em ler livros antigos, e
gosta especialmente daqueles em que ficaram registradas as impressões de
leitura dos donos anteriores. Já se trata aqui de um curioso diálogo a três,
ou a quatro!
O motivo de tudo isso está à vista. A nossa memória é limitada.
Com o passar do tempo, teremos apenas uma vaga lembrança do que
lemos ou das idéias que uma leitura nos suscitou. A saída é, laboriosa e
humildemente, anotar. Anotar uma frase que confirma algo que já havía-
mos constatado diretamente na vida; anotar aquela citação que exprime
bem o que pensávamos mas nunca tínhamos conseguido pôr em palavras;
anotar para aplaudir um verso bem construído, para criticar uma opinião,
para pensar mais tarde com calma.
Ninguém que se dedique de tal forma poderá reclamar do tedium
vitae, do tédio da vida, da náusea ontológica, da solidão. Combatendo na
raiz a menor manifestação de apatia existencial através de um sistemático
esforço de ler bem, de pensar o que foi lido, cada um de nós terá
recursos de sobra para quebrar as próprias indiferenças e desânimos cuja
fonte é o vazio de idéias, o deserto de raciocínios, a ausência de desafios
14
Gabriel Perissé

intelectuais.
A leitura consciente, empenhada, reflexiva, desperta a vida do li-
vro, aciona toda aquela fecundidade que o autor nos legou ao concluir o
seu trabalho e que permanece ali, nas páginas impressas, como uma Bela
Adormecida a aguardar o beijo revitalizador. Como definiu um teórico da
estética, a leitura autêntica tira “a obra da sua aparente imobilidade para
devolver-lhe a sua pulsação”.2 Ao mesmo tempo que revitalizamos o
livro, este nos revitaliza também!

Ao terminarmos uma leitura feita com lápis ou caneta à mão, esta-


remos de posse de vários conceitos, perguntas e respostas, informações e
suspeitas, dúvidas e certezas, estaremos, enfim, sentindo uma vibrante
inquietação e uma secreta satisfação da inteligência e das emoções que,
bem orientadas, farão que sejamos capazes de falar e de escrever com
mais facilidade e convicção.
Os famosos “brancos” serão cada vez mais raros. E quando nos
faltar a “inspiração”, não precisaremos retornar às enrugadas musas ro-
mânticas, que no mais das vezes acabam sugerindo os mesmíssimos lu-
garès-comuns. Bastará relembrarmos a passagem de um livro que nos
chamou a atenção e foi devidamente destacada ou recorrer a uma das
tantas idéias e impressões que estarão no nosso arquivo, à espera de um
desenvolvimento.
O historiador Paul Johnson já repetiu em muitas entrevistas que
quem gosta de escrever, ou precisa escrever, ou vive do que escreve, deve
estar repleto, mais ainda, transbordante de idéias. E daí a importância de
se fazer, não demasiadas, mas seletas e atentas leituras. É preciso ler -
continuo transmitindo o seu pensamento - para adquirir informação e para
manter em dia a habilidade com as palavras. Todos os escritores têm os
seus estimulantes. Os dele, dizia, eram a Bíblia, Bacon, Milton, Hobbes,
Swift e Hazlitt. Livros geram outros livros.
Curiosamente (mas no fundo faz muito sentido), existe na língua
inglesa uma expressão sugestiva, closed book, que significa “um assunto
do qual alguém não sabe nada". Por exemplo: “Genética é um closed
book, é um livro fechado, é um campo desconhecido para mim”. Através
desta metonímia, em que menciono a causa (a não-leitura) no lugar do
efeito (a ignorância), vê-se o valor central do livro na nossa formação.

15
Ler, Pensar e Escrever

O próprio lorde Bacon antes mencionado era um leitor cuidadoso e


sistemático. Ao morrer, deixou alguns manuscritos com esse título:
“Idéias repentinas que escrevi, a fim de utilizá-las oportunamente”. Não
acho que seria errado imaginar que foram inspirações nascidas entre uma
leitura e outra.
No entanto, conheço outro tipo de bom leitor que dispensa todo
esse esforço de ler-escrever. Certamente por ser dono de uma memória
mais viva, ou mais bem treinada, ele consegue reter das suas leituras o que
lhe interessa, e chega a saber de cor trechos inteiros de literatura, como o
escritor Gerardo Mello Mourão, que vi uma vez recitar vários tercetos da
Divina Comédia, e em italiano.

16
O vulcão interior

—p --------------------------------------------------------------------------------------------------------
Ji. ara compreender melhor um livro lenho uma sugestão muito
simples: ler duas vezes.
Pode parecer quase uma injúria recomendar a alguém que “gaste” o
seu contado e precioso tempo relendo um livro (ou bons trechos dele), mas
reitero que não há outro caminho, caso se queira realmente ler em
profundidade.
Guimarães Rosa falava dos “analfabetos para as entrelinhas”, que,
acrescento, geralmente andam à cata de facilidades, de resumos, de téc-
nicas milagrosas, de truques infalíveis. Não raramente são adeptos da
leitura dinâmica, atalho pelo qual esperam devorar e ainda por cima en-
tender num piscar de olhos um livro de duzentas, trezentas páginas.
Gabriel Perissé

A leitura deve ser lenta e sossegada. E, mesmo assim, se o livro


vale a pena, só numa segunda leitura teremos captado sutilezas e mensa-
gens fundamentais que, no primeiro contato, nem nos passaram pela ca-
beça.
Na verdade, cada livro que encontramos é uma possível nova ami-
zade, uma amizade entre dois seres: o autor (escondido e revelado nas
páginas que compôs) e o leitor. O leitor vasculhará o livro e, simultanea-
mente, o livro entrará na consciência, no coração do leitor. Leitor e autor
rirão juntos, chorarão abraçados, compreenderão melhor o incompreen-
sível enigma do mundo, ficarão admirados com o sempre imprevisível ser
humano.
Precisamos, portanto, de tempo, de calma e de paciência para dei-
16
xar essa amizade nascer, crescer e fluir, para deixar-nos impregnar pelo que
cada livro nos diz, os seus segredos e mistérios. Clarice Lispector falava da
alegria de ter um livro “para se ficar com ele, comendo-o, dormindo-o”.
Essa convivência com o livro levar-nos-á a ler um poema em voz
alta, a saborear a música verbal de um Gonçalves Dias, a interpretar o
personagem de uma peça de teatro e até a reescrever e complementar uma
história com a nossa própria imaginação.
Quero enfatizar que não é suficiente ler por ler. Ler para dizer que se
lê. Há pessoas que lêem bastante, mas nisso estacionam, como tam- bém há
pessoas que almoçam e jantam muito bem e não têm um organismo apto
para assimilar o alimento. Refiro-me àquele possível amigo nosso que,
numa conversa sobre qualquer assunto, lembra: “Ah, lá em casa tem um
livro que fala sobre isso”, ou: “Outro dia, li um livro que tratava desse
tema”, e ponto final.
Além de procurarmos armazenar idéias e sentimentos, lemos para
criticá-los, e formular alternativas, ou para endossá-los, incluindo-os como
próprios no quadro das nossas experiências afetivas e das nossas opiniões
pessoais. E o principal modo de conseguir estes dois objetivos é in-
terromper a leitura várias vezes para pensar, querer e sentir.
Aliás, podemos definir a leitura proveitosa como a leitura que jus-
tamente favorece o pensar, o querer e o sentir, que estimula, que inspira,
que provoca a inteligência, a vontade e a sensibilidade. O leitor que lê com

18
Gabriel Perissé

empenho total de si mesmo localizará os trechos nucleares do livro, aos


quais retornará em outras duas, três, quatro ocasiões, a vida inteira, a fim de
compreendê-los a fundo, penetrando-lhes a essência.
No início do terceiro ato da peça Henrique V, de Shakespeare, o coro
dirige-se aos espectadores e motiva-os a trabalhar, a agir:

[...] Imaginem estar vendo O rei bem


apetrechado no porto de Hampton /.../.
Brinquem com a sua fantasia /.../,
[...] Oh, pensem agora Que pararam na praia
{...].
Prendam as suas mentes à popa dos navios

19
Ler, Pensar e Escrever

Suponham que o embaixador vohou da França [...},


E completem nossa cena com as suas mentes.

É o que todo artista parece esperar de nós - participação,


companheirismo, trabalho: work, work your thougths.
Esta agitação interior contrasta harmonicamente com a paz externa,
com o estar sentado e ter um livro às mãos. Contraste necessário, único
modo de dar uma chance à erupção desse vulcão interior que tantas vezes
sepultamos nas correrias do dia-a-dia.
Sem dúvida alguma, no entanto, existe também uma leitura amena,
feita para descansar interna e externamente, para deixar o tempo correr, ou
mesmo com a intenção direta de fazer esquecer todo e qualquer problema, e
distrair-se. Neste caso, uma boa história em quadrinhos, um romance
policial bem concebido, umas crônicas divertidas dão conta do recado.
Desse tipo de leitura não há muito mais o que dizer. Sendo realmente
salutar, basta aproveitá-la. Recorrendo de novo à metáfora da alimentação,
essa leitura é aquele sorvete, aquele docinho que, sem excessos, adoça e
refresca a vida.
Contudo, sem cair em extremismos, temos é de investir nas refei-
ções fortes. G saber assimilá-las.
Tudo começa no próprio modo de segurar um livro. Afinal, trata- se
de uma nova amizade, quem sabe eterna. O modo como apertamos
firmemente a mão de alguém já não demonstra a simpatia inicial, a dis-
posição de estabelecer boas relações? Pois o mesmo acontece com o pri-
meiro "cumprimento” que fazemos a um livro. A leitura do título, do nome
do autor, do texto da orelha (se houver), uma olhada no índice, num
parágrafo escolhido ao acaso... enfim, toda essa aproximação é o primeiro
passo de um provavelmente longo e proveitoso relacionamento.
Em se falando de amizades, os próprios livros já lidos podem su-
gerir-nos expressamente autores e obras com que será muito possível que
nos identifiquemos. Étiene Gilson estuda Dante, Dante apresenta-nos
Virgílio; Jorge Luis Borges fala de Chesterton, Chesterton sugere Chaucer;
Murilo Mendes cita Pascal, Pascal alude a Sócrates, que só se pode co-
nhecer através de Platão... e nessas múltiplas indicações vamos formando
o nosso círculo de amigos íntimos - poetas, dramaturgos, filósofos,
20
Gabriel Perissé

psicólogos etc.
Neste sentido, vale ainda uma observação. Talvez, nas nossas bus-
cas, deparemos com um livro difícil que, se não for por inaptidão do autor
(ou por incompetência do tradutor, em caso de livro estrangeiro), será
difícil exatamente por ser superior a nós. E não há nisso nada de mau. Se
começo a ler e não consigo terminar um livro como Presenças reais, de
George Steiner, ou A Educação sentimental, de Julián Marías, o máximo
que pode acontecer é eu reconhecer honestamente que ainda não tenho
cacife para entendê-los de todo.
Tal descoberta já representa, em si mesma, um valioso passo de
sabedoria. Não foi uma tentativa inútil. Não entender também pode ser
uma boa lição. O que, sim, ajuda é procurar aqueles autores que são apenas
um pouco superiores a nós, de modo que progridamos sem problemas, seja
na leitura de romances, seja na de aforismos ou ensaios.
Afora a preocupação de ler obras adequadas à nossa situação exis-
tencial (etária, psicológica, cultural) e de ler bem, concentrando-se, para
aprender ou para se distrair, sempre com prazer (ou pelo menos com o
prazer de quem cumpre um dever) - afora essa preocupação, devemos
esquecer o resto. Refiro-me especialmente àquele dogma, por ninguém
definido mas por muitos observado, de que temos de ler um livro de cada
vez, de cabo a rabo, nunca, jamais pulando páginas, e muito menos desis-
tindo da leitura. Conheci inúmeros seguidores dessa lei que, entusiasmados
marinheiros de primeira viagem, embarcaram num Os Buddenbrook, de
Thomas Mann, ou num A cidadela, de Saint-Éxupéry, e cinqüenta páginas
depois já estavam encalhados para sempre, sem ânimo de ir em frente e
sem coragem de abandonar o navio.
Ora, ler um livro não é casar-se. (Como casar-se não é como ler um
livro...) Ninguém precisa levar uma leitura até o fim, embora seja de um
clássico, ou até por isso mesmo, uma vez que os clássicos não são mero
jornal, e mais vale ler e entender duas linhas de D. Quixote a ler (e às
vezes nem entender) todas as notícias de um ano sobre política ou
economia. Também se pode pular as páginas do livro que for, quantas se
quiser, c ler primeiro o final do romance, enfim: liberdade!

Do mesmo modo, ninguém precisa ficar compromissado com um


único livro. Pode-se ler simultaneamente dois, três livros, com objetivos

21
Ler, Penior e Escrever

diferentes, em diferentes momentos do dia: ler uma biografia no ônibus,


pela manhã, prosseguir um pouco mais num livro de filosofia naqueles 15
minutos após o almoço, e ir traçando um romance à noite, ao invés de ver
a TV. (Diga-se de passagem, a maioria dos programas da TV induzem-nos
muito mais a adequar-nos a estereótipos do que a pensarmos as coisas).
Logicamente, não tenciono criar aqui um novo dogma: se alguém
quer ler um só livro de cada vez, passo a passo, linha a linha, fielmente,
ainda que o livro se mostre estafante ou inconveniente, poderá fazê-lo em
paz. Mas tenhamos claro, muito claro, que o livro está a nosso serviço, a
serviço da nossa auto-educação.
Ler é uma arte e, como toda a arte, requer do seu artista uma sábia
flexibilidade, a capacidade de utilizar os meios de acordo com a finalidade
primordial a ser alcançada. No caso, leio para crescer. Diante de um livro
que se toma obstáculo da aprendizagem, que, na metade da leitura,
decepciona por qualquer motivo, ou que se toma contraproducente e pre-
judicial, devo tomar a decisão mais acertada: largá-lo. Poderei retomá-lo
no futuro, quem sabe? No momento, porém, estarei agindo em concor-
dância com os fins que tenho em vista.
Tudo isso não exclui o esforço, até mesmo heróico, de concluir
uma leitura exigente, para não dizer desagradável, mas que tenho consci-
ência de ser basilar para a minha formação. Ao contrário de um obstáculo
paralisante, certos livros são um desafio necessário para a continuidade do
nosso desenvolvimento como leitores e como gente que pensa, desafio do
qual fugir seria realmente retroceder. Para ficar num único exemplo, uma
pessoa que queira analisar com radicalidade o ser humano enquanto
“animal político” deverá, cedo ou tarde, ler a mais conhecida obra de
Thomas More: Utopia.
Em suma, penso que devemos abordar e, sem nenhum trauma,
rejeitar muitos livros, e ao mesmo tempo trazer sempre perto de nós um
livro (ou mais de um) que de fato nos motive a pensar, a imaginar, a

22
Gabriel Ferisse

sentir, a desejar, a pôr em ação a nossa interioridade. Um livro que


leremos na sala de espera do dentista, na estação do metrô, ou mesmo no
banheiro. Livro que emprestaremos para alguém, livro que promoveremos
como pudermos, livro que fará parte da nossa pessoal biografia. O
essencial é encontrá-lo e incorporá-lo.
Ler ou não ser

JL jLarte de ler bem gera em nós, com o tempo, uma segunda


natureza. Ao nosso “eu” acrescentam-se e mesclam-se contribuições vivas
de outras cabeças e corações humanos. Assimilando, digerindo estas
contribuições, estaremos nos auto-educando em vista de um aperfeiçoa-
mento pessoal que, por sua vez, se refletirá nas nossas ações, e, dentre
elas, em tudo aquilo que dizemos e escrevemos.
Na biblioteca particular de João Guimarães Rosa encontrou-se um
exemplar de Devoirs ("Deveres”), escrito pelo pensador francês Antoine
D. Sertillanges, com vários trechos sublinhados.5 Eis um deles: “O ser que
recebemos ao nascer não é definitivo; é embrionário, plástico”. Ora, lendo
o romance Grande sertão: veredas, vamos deparar com esta mesma idéia,
ficcionalizada,fetraduzida, reformulada:
“Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as
pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que
elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade maior”. 4
Comprova-se claramente que a leitura daquele livro influenciou o
autor mineiro de tal modo que uma das passagens que o impressionou, e
foi por ele grifada a fim de poder reencontrá-la e nela meditar, tornou-se
conatural ao escritor e aflorou espontaneamente quando produzia o seu
próprio texto.
O mesmo acontece conosco, imperceptivelmente. Lendo, estamos
apostando na construção de nós mesmos e, por conseguinte, também na
nossa expressão verbal e escrita. Se alguém me pergunta como poderá
melhorar os textos que escreve e a sua comunicação oral, respondo que i
só o conseguirá se melhorar o seu próprio “eu”, que é a fonte daquilo mesmo que
escreve e diz.
A falta de leitura, em contrapartida, contribui para uma espécie de
primarismo mental e emocional que, não há dúvida, pode ser- e muitas vezes é -
23
prevenido e superado pela experiência de uma vida repleta de boas amizades, de
diálogos interessantes, de vivências profundas. Há pessoas que se conduzem com
sabedoria e equilíbrio, e que chegam a um estágio de amadurecimento existencial
por vias que não incluem necessariamente o contato (pelo menos direto) com bons
livros.
Porém, não esqueçamos que a leitura e um diálogo profundo c uma intensa
experiência de vida, na medida em que põe o leitor no interior de “realidades”, de
“ambientes”, de “idéias” e de “pessoas” - criados ou recriados pelo cronista ou pelo
memorialista, enfim, pelo autor que esteja sendo lido.
Quem, entre outros livros, leu A revolução dos bichos, de George Orwell,
notará ter saído um pouco diferente (para melhor) desta leitura. O modo de George
Orwell encarar a vida atuará decisivamente sobre o modo de o seu leitor ver o
mundo.
A explicação para esta influência tão decisiva é que não conhecemos as
coisas que nos rodeiam de uma forma simplesmente epidérmica. Conhecemos por
assimilação, assimilamos o que nos é entregue ao olhar, ao tato, aos ouvidos, e o
tomamos nosso pela abstração, que é este poder inato de captar a essência das
realidades.
Etimologicamente, “assimilar" significa que eu me tomo semelhante, símil,
àquilo com que travo conhecimento. Não é à toa que na linguagem corrente se diz:
“Eu me identifiquei com esta pessoa, com este romance, com esta pintura”. Sim,
ocorre uma fusão espiritual entre aquilo que conhecemos (as imagens, os
sentimentos, os conceitos...) e nós mesmos. E, nesta união, modificamo-nos um pou-
co, somos de certa maneira alterados - sem perdermos a nossa identidade pessoal, é
óbvio. Entre mim e o livro dá-se uma comunhão, em função da qual fico impregnado
da “alma” do livro, que, por sua vez, a recebeu do “eu” do autor.
Outro exemplo: quem lê poesia talvez não aprenda muito, no sen-
tido de acumular informações “sérias”, coisa que se obtém com êxito
atravcs dos compêndios de história ou das revistas de economia. Mas a
verdade é que, graças à poesia, o leitor ascende a uma nova compreensão
da realidade, talvez difícil de expressar, embora certamente enriquecedora,
humanizante. Leiamos este poema de Adélia Prado:

Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,

24
.......... ... -mat que limpe os peixes. ------------------- -------------------------
Eu não. A qualquer hora da noite me
levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e
salgar.
Ê ião bom, só a gente sozinhos na
cozinha, de vez em quando os cotovelos
se esbarram, ele fala coisas como "este
foi difícil"
“prateou no ar dando rabanadas" e faz o
gesio com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira
vez atravessa a cozinha como um rio
profundo.
Por fun, os peixes na travessa, vamos
dormir.
Coisas prateadas espocam: somos noivo e
noiva.5

Ler e reler este poema é penetrar no mistério do amor conjugal, é


adquirir um novo enfoque desta realidade, produzido e difundido pela
maestria verbal de uma mulher sensível. Por isso, posso também dizer que
a poesia de fato ensina muito, e até mais eficazmente quando não se
apresenta como didática, professoral.
Já se definiu o homem como um ser que nasceu para resolver pro-
blemas. E o primeiro problema que precisamos resolver é justamente este:
Quais são os nossos problemas cruciais? Em que vale a pena pensar? O
que é preciso aprender?
Gobiiel Perissè
Podemos obter algumas respostas consultando os grandes pensa-
dores e ficcionistas através da leitura das suas obras. “Conversando” com
Sócrates, participando dos seus diálogos, atravessando os séculos para
ouvi-lo; conversando com Homero, Cícero, S. Agostinho, Dante,
Shakespeare, Cervantes e com tantos outros (sem excluir os nossos con-

25
temporâneos), conseguirei adquirir esta sabedoria: saber o que realmente
necessito saber. Ler, Pensar e Escrever

Lendo o meu amigo Confúcio, aprendo que “sem conhecer a força


das palavras é impossível conhecer os homens” e dele ouço igualmente
essa recomendação ao imperador da China: “Muda as palavras e mudarás o
império”. Ou... em outras palavras, é crucial preocupar-se com o problema
da linguagem. E quem se refere à linguagem refere-se também ao amor, a
Deus, à verdade, à moral, ao sofrimento, à morte, à beleza, à justiça etc.
Problemas estes que não se resolvem facilmente; problemas que
nós, aliás, precisamos antes de tudo dimensionar e equacionar na sua
devida transcendência - e só este reconhecimento, o de como estes pro-
blemas e questões são vitais, já é em si um bom início, um sinal de autên-
tico amadurecimento.
Allan Bloom, no seu O declínio da cultura ocidental6, queixa-se da
falta de profundidade e altitude intelectual dos muitos jovens universitários
que conheceu. A título de exemplo, conta que, perguntando aos alunos o
que é o mal, obteve certa vez a resposta unânime e i medi ati sta: “Hitler”.
Com efeito, Hitler não passa de uma referência histórica, é aqui apenas
uma imagem ou uma metáfora das crueldades do século XX, não uma
definição e, muito menos, uma explicação razoável, por mais modesta que
esta possa ser.
Lendo George Orwell, Adélia Prado, Confúcio, Allan Bloom, trans-
formo-me de algum modo, sem deixar de ser eu mesmo, em pessoas que,
por talento, vocação e esforço viram muito e exprimiram com felicidade o
que viram.
A partir de um dado momento, através da leitura, passo a exercer, a
crítica política de Orwell, a experimentara pungente intuição de Adélia, a
participar da sabedoria de Confúcio e a compartilhar da revolta intelectual
de Allan Bloom. Sendo eu mesmo, sou mais do que sou. Na realida-
de, tomo-me melhor do que sou, sendo mais eu mesmo, isto é, sendo mais
humano.
Sei que, em geral, critica-se a falta de leitura pelos seus prejuízos
imediatamente visíveis: pela incapacidade de se fixar as formas ortográ-
ficas das palavras, porque nunca são lidas - escreve-se então “adevogado”,
“excessão”, “femenino” ou “escassês” pela incoerência gramatical (que
revela uma incoerência lógica), como nas frases tantas vezes ouvidas:
“Veio os homem”, “Isso é para mim fazer”, “Você quer que eu faço?”, e
outras do gênero; pelo desconhecimento da boa literatura e de dados cul-
turais básicos; por um vocabulário pobre, que limita e atrofia o próprio
pensamento; ou até mesmo pela dificuldade
26 de determinar a dose correta
de um remédio infantil usando uma tabela de peso e altura da criança.
Sem tomar a leitura o 1111 mandamento da lei de Deus, quero res-
saltar, contudo, o que de mais prejudicial pode acontecer com alguém que
não tem hábito de ler: a sua pobreza e a sua insegurança existenciais. Certa
livraria caracterizou muito bem essa deficiência através do slogan “Ler ou
não ser”.
O leitor assíduo e dedicado vai tomando posse da herança humana
que se transmite através do livro. Quem muito lê vai reunindo em si mais
lembranças e conhecimentos do que se tivesse mil anos de idade. Vai se
universalizando no tempo, e também no espaço. Todo o animal que vem
ao mundo é o primeiro e o único animal, na medida em que traz gravado
no seu instinto tudo o que pode ser. O homem não. Cada nova pessoa a
surgir no mundo precisa voltar-se para a tradição, para os seus antepassa-
dos, precisa recuperar para si mesma tudo o que de bom, verdadeiro e belo
os seres humanos já conquistaram.
Aristóteles, porta-voz de tantos outros “arquivos de humanidade”,
dizia: “Serás feliz se tiveres muitos amigos”. Os livros são “cartas” de
pessoas amigas que precisamos ler para crescer em humanidade. A nova
sabedoria já está em inúmeros livros antigos, e em muitos livros novos
reencontramos a antiga sabedoria, renovada.
Por isso, parece-me pouquíssimo convincente a desculpa de que
não há tempo para ler. Na realidade, ler é multiplicar a própria idade, é
ganhar tempo, é expandir-se para todos os tempos, é ser mais. Quinze
minutos diários de uma boa leitura, pelo menos no começo, são suficien-

27
Cobriel Perissé

tes para impedir marasmos intelectuais e para bombardear a


descrença nos valores da vida que, no fundo, radica na ignorância desses
mesmos valores.
Sempre haverá tempo para ler, se eu quiser ler. Obviamente, em
vista das incontáveis solicitações do cotidiano, o tempo pessoal para a
leitura tornou-se curto e, portanto, ainda mais valioso. Mas é fácil deduzir,
levando em consideração os argumentos que apresentei acima, como é
lucrativo “arrancar” tempo do nosso horário para nos dedicarmos a ler o
que realmente contribua para a nossa auto-educação, para o nosso auto-
aperfeiçoamento.
Temos diante de nós essa aparente contradição: lê-se pouco mas
publicam-se hoje, por ano, milhares e milhares de livros novos em todo o
mundo, sem falar das reedições. Uma explicação é que, apesar da dimi-
nuição do analfabetismo, numericamente há mais não-leitores do que
antes. Por outro lado, proporcionalmente, aumentou a quantidade de
leitores, ainda que muitos deles não sejam os devoradores de livros com
que as editoras e livrarias sonham. Aumentou igualmente o número de
pessoas que publicam seus textos, ainda que sejam poucas em relação ao
total de pessoas que escrevem. E, de quebra, hoje em dia é mais
tecnicamente viável e mais barato editar livros do que no passado.
Como se conduzir diante desta enxurrada de títulos e da nossa já
conhecida e lamentada falta de tempo? Realizar uma inteligente seleção. A
minha primeira sugestão, neste sentido, é não se impressionar com a lista
dos “mais vendidos”, divulgada pela imprensa, muitas vezes com-
prometida com as modas descartáveis ou com interesses meramente co-
merciais.
Não faz muito tempo, um dos livros mais “lidos” era o engenhoso
Olho mágico, que não tinha uma letra sequer, mas no qual se podiam ver,
recorrendo a uma ginástica ótica, belos desenhos tridimensionais escon-
didos em imagens produzidas por computador. Afora esses casos inofen-
sivos, porém, várias das obras mais cultuadas são extremamente superfi-
ciais e difundem pseudo-idéias em filosofia, ciência, história, religião e
moral, ou são romances carregados de violência e erotismo. Aliás, neste
último ponto, o poeta Rilke era implacável e apontava como maus profis-
sionais os escritores que “escrevem como machos ou fêmeas no cio”.
Em 1991, para citar um exemplo drástico, surgiu no topo da relação
28
Gabriel Perissé

de livros mais vendidos no caderno literário do The New York Times um


manual de suicídio. 0 autor, anos antes, já tinha vendido 140 mil
exemplares de outro livro seu, Deixe-me morrer antes que eu acorde, e,
provavelmente empolgado pelo sucesso, decidiu escrever o manual que
ensina a pôr em prática o que ele chama, eufemisticamente, "auto-liber-
tação”. Ilustrado com uma tabela de dosagem letal de diversas drogas,
oferece instruções práticas sobre asfixia com um saco plástico, morte pela
fome e outras técnicas. Um ótimo guia, não só para doentes termi- nais
desesperados, mas também para adolescentes em crise e assassinos
iniciantes...
Não se sabe em que medida o livro aparece na lista dos mais ven-
didos porque é espontaneamente mais procurado, ou se acaba sendo mais
procurado porque é mais difundido pela mídia. De qualquer modo, mesmo
que um tipo de livro seja desejado ansiosamente pelo público, os escritores,
editores, professores e jornalistas devem atuar com a responsabilidade que
deles se espera. Em outros termos: devem oferecer ao leitor livros cujo
valor intrínseco justifique pelo menos o preço da compra.
Independentemente disso - uma vez que seria ingenuidade esperar
que os produtores e difusores do livro atuassem dentro de parâmetros de
puro interesse intelectual e artístico sem caírem nunca no afã de lucros cada
leitor deve ter a liberdade de realizar a sua própria autocensura. Atitude que
requer lucidez e trabalho, pois sofremos a ação de uma outra censura,
externa, tácita, camuflada e quase inatacável: nem todos, é evidente, mas
muitos, muitos bons livros, ou não são editados ou, se editados, são
privados de um justo espaço nos meios de divulgação impressos e
eletrônicos.
Logo, quem quer ler os melhores livros precisa procurar com afin-
co, pesquisar, consultar pessoas de confiança, conhecer as publicações de
cada editora, ler com olho crítico e judicioso. Não poderá engolir o
primeiro livro que lhe surja pela frente, por mais atraente que seja a capa,
por mais famoso que seja o autor. Nem tudo o que cai na rede é peixe. Nem
tudo o que reluz é ouro.
Mas, felizmente, ainda existe muito ouro a ser garimpado e muito
peixe a ser pescado. Se nos guiarmos por este lema: "Quero ler livros que
me façam livre”, poderemos desfrutar de ótimas leituras, adquirir uma
riqueza existencial impagável e, a par disso, a desenvoltura com os ins-
trumentos gramaticais e o domínio de vocabulário para escrever e conversar

29
com harmonia, coerência e clareza.
Usando um neologismo de Guimarães Rosa, o leitor responsável
espera encontrar nos livros o “verivérbio”, o verbo verdadeiro, a palavra
autêntica que lhe transmita a herança da experiência vital de homens e
mulheres que buscaram e buscam os valores e critérios humanizantes, na
ficção, na poesia, na história, no pensamento, e por aí vai. _____________
Sei que se trata de um tema delicado, mas o fato é que não poucas
vezes perdemos o nosso precioso tempo com livros fracos e confusos que,
conseqüentemente, nos enfraquecem como leitores e nos confundem como
seres humanos. Porque a leitura realmente influencia. Não sejamos
simplórios: existem influências culturais que nos diminuem.
Lembro-me do recém-falecido escritor Emil M. Cioran, incorrigível
pessimista, que escolhia para as suas obras títulos como: Nos cumes do
desespero, A tentação de existir e Da inconveniência de ter nascido.
E, de vez em quando, como era de prever, alguma pessoa lhe escrevia
dizendo que, graças a algum dos seus livros, resolvera suicidar-se. Cioran
então se inquietava, apressando-se a escrever uma cartà ao admirador para
explicar-lhe que a vida sem dúvida não serve para nada, mas que apesar
disso o leitor não precisava ser tão coerente assim...
Ao invés de sair com uma tocha acesa à procura de livros a serem
queimados, penso que muito mais produtivo é promover os livros que têm
demonstrado enobrecer as pessoas e reformar (na medida do possível) as
sociedades. Assim, além de obras a que já aludi e ainda vou aludir ao longo
deste livro, indico-lhes agora uma lista pessoal de títulos (não só literários
e tanto antigos como atuais), com brevíssimos comentários e, quando eu
conhecer, com o nome da editora que facilite a localização.
Insisto em que é uma lista pessoal, porque alguém poderia perceber
a ausência indesculpável de algum autor ou título que ainda não li ou que
preferi não recomendar. Por outro lado, não incluo dezenas de nomes,
mesmo consagrados, pelo simples motivo de que outros foram lembrados
no seu lugar, ou faltou espaço para acrescentá-los.

30
Ler, Pensar e Escrever

Ocorrerá que o leitor interessado em algumas dessas leituras deva


sair em campo, percorrendo livrarias e sebos, visitando bibliotecas públicas
ou dos seus amigos, o que certamente valorizará ainda mais o livro quando
finalmente encontrado.
Lista de autores e obras

Mortimer Adler. Como ler um livro. Agir. (Há uma reedição pela
Guanabara.)
Inspirador, vale como companheiro para qualquer leitor.
Daniel Pennac. Como um romance. Rocco.
Ajuda quem quer aprender a ler e a quem quer motivar outros a ler.
Othon M. Garcia. Comunicação em prosa moderna. FGV.
O que há de melhor atualmente para quem quer aprender a escrever.
Edmundo H. Dreher. Saber pensar. GRD/Editora Universitária
Champagnat.
. Existe um filósofo dentro de você. Comece a conhecê-lo.
Miguel de Cervantes. D. Quixote.
Etemo. As aventuras inesquecíveis de dois amigos tão diferentes
entre si. Indicado para os sonhadores, que se tomarão mais realistas,
e para os realistas, que se tomarão mais sonhadores.
William Shakespeare. Ricardo III, Henrique V, Romeu e Julieta e
Hamlet.
É difícil ler teatro. Mas com um pouco de atenção para identificar
que personagens estão falando, entra-se em contato com uma
poderosa força criadora.
Sófocles. Prometeu acorrentado, Édipo-rei eAntígona.
Insubstituíveis, imperdíveis, definitivas.
Molière. O misantropo.
Genialidade em ação.
Jonatham Swift. As viagens de Gulliver.
Através de uma história fantástica, o autor capta características
marcantes da natureza humana. Indicado para os que não gostam de
advogados.
- J. R. Tolkien. O senhor dos anéis. Martins Fontes.
ler, Pensot e Escrever

A imaginação em alta rotação. Para quem gosta de começar e não


parar mais de ler.
- Geofrey Chaucer. Os contos da cantuária. T.A. Queiroz.
Clássico da literatura inglesa, numa excelente tradução que
preserva a contundência e a argúcia da obra.

Exigente, conta o drama de um compositor que deseja criar a


música insuperável. Aconselhável para quem já leu Fausto, de
Goethe.
- Edgar A. Poe. Contos.
Um mestre e um monstro sagrado a ser devorado.
- Júlio Veme. A volta ao mundo em oitenta dias.
Não só esta, mas todas as obras do escritor francês incitam a
imaginação.
- C.S. Lewis. O grande abismo. Os quatro amores, O problema do
sofrimento. Mundo cristão.
Cada vez mais conhecido pelo público brasileiro, é considerado um
dos maiores escritores da Inglaterra neste século.
- G. K. Chesterton. 0 homem que foi quinta-feira e Ortodoxia.
Jornalista inglês, polemista, romancista, pensador do século XX.
- Jorge Luis Borges. O Aleph.
Contista sagaz, labiríntico, desafiante.
- Lewis Carrol. As aventuras de Alice. Summus Editorial.
Outro clássico, sem o qual o mundo parece incompleto.
- William Thackeray. O livro dos esnobes. L&PM.
Uma obra de arte da ironia inglesa.
- Henrik Stangerup. O homem que queria ser culpado. Nórdica.
Um romance realmente novo, em busca da felicidade complexa.
- Fiodor Dostoievsky. O idiota.
Um escritor atormentado. Seus escritos parecem estar com febre,
32
r

Gabriel Perissé
e por isso requerem leitores bem preparados.
- Leon Tolstoi. A morte de Ivan Illitch.
Emocionante história de um homem que se vê diante da doença, da
solidão e da morte.
- Evelyn Waugh. Furo!. Cia das Letras.
Com humor sutil, retrata o mundo jornalístico nos seus bastidores.
- Michael Ende. História sem fim e Manu, a menina que sabia ouvir.
Duas histórias cativantes de um autor que soube entrar pela porta da
fantasia.
- Alexandre Manzoni. Os noivos.
Clássico da literatura italiana.
- Saint-Exupéry. O pequeno príncipe. Agir.
Ainda, sempre, para crianças, e sobretudo para adultos.
- Moris West. As sandálias do pescador.
Uma história bem contada. Nada mais, mas também nada menos.
- Dino Buzzati. O deserto dos tártaros.
O Kafka italiano em plena forma. Para quem não tem medo de
decepcionar-se.
- Kafka. O castelo, Metamorfose e O processo.
Para entender quando alguém diz que este mundo tornou-se
kafkiano.
- Oscar Wilde. O retrato de Dorian Gray. Abril Cultural.
O aterrorizante trajeto existencial de um homem.
- George Orwell. 1984.
Uma história que repete e prenuncia outras histórias. Para quem
ama a liberdade.
- Ariano Suassuna. O auto da compadecida.
Vale a pena ler. E reler.
- Mário Palmério. Vila dos Confins e Chapadão do Bugre.
Duas obras imperdíveis, escritas com paixão.
- João Guimarães Rosa. Sagarana e Grande sertão: veredas. Nova
Fronteira.
Criador audacioso da literatura brasileira, cuja forma literária
33
Gobriel Perissé

sofisticada ressuma a percepção dos dramas humanos.


- José de Alencar. Lucíola. Ática.
Um livro tipicamente romântico, em que o amor e a pureza, as
paixões e os interesses mesquinhos se articulam no estilo clássico
do escritor nordestino.
- José J. Veiga. A hora dos ruminantes.
Realismo fantástico brasileiro.
- Murilo Rubião. Contos.
Outro realista fantástico brasileiro.
- Orígenes Lessa. O feijão e o sonho.
Pequena obra-prima sobre a contínua “briga” entre os poetas e as
pessoas práticas.
- Maria José Dupré. Éramos seis. Ática.
Obra repleta de humanismo. Para quem quer chorar.
- Gustavo Corção. Lições de abismo. Agir.
Um dos dez melhores romances brasileiros, na opinião de Oswald
de Andrade, na altura do seu lançamento, na década de 40.
- Clarice Lispector. A hora da estrela. Nova Fronteira.
Pungente, mostra a grandeza escondida de cada pessoa humana na
figura de uma nordestina que nasceu “sem anjo da guarda”.
- Gerard Manley Hopkins. Poemas. Cia. das Letras.
Poeta de grande personalidade e intuições delicadíssimas, numa
tradução excelente.
- Emily Dickinson. Uma centena de poemas. T.A. Queiroz.
Poeta norte-americana cuja sensibilidade tomou-se mundialmente
conhecida apesar de sua discrição.
- João da Cruz. Poemas.
Um dos maiores poetas já nascidos, capaz de unir o simbolismo
radical dos versos com um racionalismo imbatível.
- Fernando Pessoa. Poesia.
Genial, contraditório, polifacético.
- Mário Quintana. Poesia.
Falecido recentemente, Mário Quintana permanece como o poeta
34
da simplicidade complexa.
- Carlos Drummond dc Andrade. Poesia.
Apesar do pessimismo auto-corrosivo que percorre boa parte dos
seus poemas é, sem dúvida, o maior poeta brasileiro.
- Adélia Prado. Poesia. Siciliano.
Ler, Pensar e Escrever

Grande poeta do cotidiano, das coisas simples, e dos sentimentos


quase insuportáveis.
- Platão/Sócrates. Diálogos.
A inteligência, o argumento, a origem da mente ocidental.
- Aristóteles. Metafísica.
Para resgatar um tempo e uma mentalidade em que a filosofia
ousava.
- Agostinho de Hipona. Confissões e A vida feliz. Paulus.
Os tormentos, a culpa, o arrependimento, a alegria, as descobertas
intelectuais e espirituais de um homem inesquecível e, da sua
autoria, a felicidade na visão platônico-cristã.
- Raimundo Lúlio. Livro do amigo e do amado. Loyola.
Pensamentos poéticos e místicos do escritor catalão da Idade
Média.
- Pico delia Mirandola. A dignidade do homem. GRD.
O Renascimento na sua pureza e vitalidade, uma defesa apaixonada
do ser humano.
- Teresa d’Ávila. Castelo interior e Poemas.
Mística e realista, feminina, profunda, inimitável.
- Pascal. Pensamentos.
Um clássico da filosofia ocidental.
- André Frossard. Deus em questões. Quadrante.
Falecido em 1995, o conhecido jornalista francês deixou-nos essa
obra extremamente atual e provocativa.
- Julián Marías. A felicidade humana. Livraria Duas Cidades.
Pensador espanhol contemporâneo, cujo mérito é rever com
originalidade os temas da filosofia de sempre.
- Viktor Frankl. Sede de sentido. Quadrante.
35
Conferência sobre a logoterapia, método psicanalítico que interessa
a filósofos, médicos, sociólogos e teólogos.
- João Paulo II. Cruzando o limiar da esperança. Francisco Alves.
Sintetiza o pensamento do papa que, com a perspectiva histórica,
será reconhecido como um dos maiores que a Igreja teve.
- Jostein Gaarder. O mundo de Sofia. Cia. das Letras.
O ovo de colombo, a história da filosofia contada com simplicidade
e originalidade.
Étienne Souriau. Correspondência das artes. Cultrix/Edusp.
----- Necessário para todo&os que-pensam, admiram ou produzem ai te.
Gobriel Perissé

- Luigi Pareyson. Os problemas da estética. Martins Fontes.


Aborda com lucidez os principais problemas teóricos relacionados
com a arte.
- George Steiner. Presenças reais.
Um livro instigante sobre a cultura e a arte contemporâneas. Faz
pensar.
- T.S. Eliot. Notas para uma definição de cultura. Perspectiva; e De
poesia e poetas. Brasiliense.
Essas duas obras são um bom começo de conversa com o poeta
norte-americano, que expõe aqui as suas opiniões de pensador e
crítico literário.
- Ezra Pound. A arte da poesia. Cultrix/Edusp.
Onze ensaios sobre a poesia, que vence as forças da rotina.
- Rainer Maria Rilke. Cartas a um jovem poeta.
Lições informais para os poetas e para quem ama a arte de escrever.
- Werner Jaeger. Paidéia. Martins Fontes/Editora Universidade de
Brasília.
Obra fundamental para quem quer conhecer a formação do homem
grego e refletir sobre a cultura ocidental.
- Jacob Burkhardt. A cultura do Renascimento na Itália. Cia. das Letras.
Erudição acessível.
- E. H. Gombrich. A história da arte. Guanabara.
Para quem gosta de pensar a arte.
- Hugo Friedrich. Estrutura da lírica moderna. Livraria Duas Cidades.
Básico para compreender os meandros da poesia moderna.
- Mário Curtis Giordanni. História da antigüidade oriental, História da
Grécia, História de Roma, História do Império Bizantino, História
dos Reinos Bárbaros I-Il, História do Mundo Feudal, História do
Mundo Árabe, História da África. Vozes.
Uma introdução modesta mas abrangente e criteriosa da história
universal.
- Jerôme Carcopino. Roma no apogeu do Império. Cia. das Letras.
A Nova Iorque da Antigüidade, com as suas belezas e misérias.

0 clímax da cristandade medieval e o início da sua decadência, num misto de grandeza e


de traição.
- Régine Pernoud. Idade Média: o que não nos ensinaram.
Um show de sensatez.
- João Bernardino Gonzaga A inquisição em seu mundo. Marques
Ler, Pensar e Escrever

Saraiva.
Observa do ponto de vista-jurídico o fenômeno que mais
escandalizou na história.
- J. Huizinga. O declínio da Idade Média. Verbo.
Obra única sobre este período histórico.
- Paul Johnson. Tempos modernos. Instituto Liberal.
Análise da realidade que vivemos e não percebemos. Indicado para
os que se sentem alienados. (

- Dominique La Pierre. Muito além do amor. Salamandra.


Um cântico à doação de si e uma reportagem sobre o descobrimento
do vírus da Aids.
- Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. José Olympio.
Para conhecer o país em que vivemos.
- Joseph Hoffner. Doutrina social da Igreja. Loyola.
Um livro de referência com as soluções propostas pela Igreja
católica para os problemas sociais da humanidade.
- Thomas More. Utopia.
Livro para quem sabe que sonhar não paga imposto...
- Raymond Aron. O ópio dos intelectuais.
37
Apesar da queda do “muro”, continua sendo uma leitura oportuna para
pensar o marxismo com inteligência.
- Henri-Ircnée Marrou. História da Educação na Antigüidade. EPU.
Se é para aprender, que aprendamos com um mestre.
- Maria Montessori. Criança, Mente absorvente e Montessori em família.
Nórdica.
Um modo de educar.
- Luiz Jean Lauand. O que é uma universidade?. Perspectiva.
' Uma visão filosófica do papel e da missão da universidade.
- Anônimo. Meditações sobre os 22 arcanos do tarô. Paulinas.
Uma interpretação original e desconcertante.
- Cormac Burke. Amor e casamento. Quadrante.
Ensaios sobre sexo, filhos, divórcio, aborto, família, que defendem
abertamente a dignidade mais radical do ser humano: a capacidade de
comprometer-se e de ser fiel.
- Michel Schooyans. O aborto: aspectos políticos. Marques Saraiva.
Esclarece, denuncia e incomoda.
- José Ortega y Gasset. A rebelião das massas. Martins Fontes.
Referencial básico para filósofos e sociólogos que estudam o século
XX.
- E. F. Schumacher. O negócio é ser pequeno. Zahar Editores.
Um estilo de pensar e de viver. Livro imperdível para os economistas.

Notas
(1) Mortimer J. Adler. A arte de ler. Rio de Janeiro, Agir, pág. 54.
(2) Luigi Pareyson. Os problemas da estética. São Paulo, Martins Fontes,
1984, pág. 155.
(3) Cf. Suzi Frankl Sperber. Caos e cosmos. Leituras de Guimarães Rosa.
São Paulo, Duas Cidades, 1976.
1
(4) 14 cd.. Rio de Janeiro, José Olympio, 1980. págs. 20 e 21.
(5) Em Poesia reunida. 31 ed., São Paulo, Siciliano, 1991, pág. 252.
(6) 2* cd., São Paulo. Best Sellcr. 1989.
38

II
A formação intelectual
O ponto de integração

Os otimisias podem errar; os pessimistas já começam errando”,


disse-me alguém.
Gostaria de poder copiar este aforismo repleto de bom senso no alto de
cada uma das próximas páginas. Porque a maior parte do crescimento cultural
que você (professor ou aluno, leitor contumaz ou bissexto) queira adquirir
dependerá de que possua essa atitude primordial: o otimismo, a confiança de
poder aprender muito, a firme determinação de familiarizar-se com as
melhores leituras, de pensar com perspicácia e agudeza, de conversar e
escrever agradavelmente.
Uma boa formação intelectual consiste em quê? Em construir um
sistema de convicções, um elenco de certezas comprovadas, um quadro de
Ler, Pensar e Escrever

opiniões fundamentadas na realidade, um organismo de verdades genuínas


pessoalmente assumidas. Em suma, consiste em pensar por conta própria.
Paradoxalmente, para pensar por conta própria é preciso pensar e
repensar o que os outros já pensaram, saber o que os outros sabem. E o
caminho mais fácil para chegar a esse conhecimento prévio é perguntar,
perguntar aos familiares, aos mestres, aos amigos, aos livros. Perguntar.
“Quem pergunta quer saber; quem não pergunta quer errar”, dizia P'
Antonio Vieira. Quem não pergunta é porque, em princípio, já deve

39.
Ler, Pensar e Escrever

saber tudo. E quem pensa que sabe tudo... nada sabe. Por muito que sai-
bamos, e por muitas verdades verdadeiras que conheçamos, nunca sabe-
mos tudo. Nem aquilo que pensamos saber é suficiente, porque a realidade
é polifacética, many-sided, surpreendente, dinâmica, complexa. Sempre
reserva recantos e até mesmo continentes desconhecidos.
Perguntar é um sinal de otimismo. É a esperança de ouvir respostas
certas. Se eu perguntar, a alguém que saiba responder, com quantos anos
morreu George Washington, saberei que com 67 anos. Se eu perguntar, a
um bom astrônomo, em que data foi descoberto o planeta Urano, saberei
que em 13 de março de 1781. Quem pergunta aprende, rapta Nãn é à toa,
talvez, que o ponto de interrogação assemelha-se a um anzol: Parece
simbolizar este anseio de fisgar uma verdade palpitante.
Carlos Drummond de Andrade, num artigo escrito para o Jornal do
Brasil em 20 de agosto de 1973, fez uma pequena antologia de perguntas
que têm perseguido o homem através dos séculos. Seleciono algumas, com
os seus respectivos autores:
Sêneca: Porque razão ninguém confessa seus próprios vícios?
Pilatos: Que é a verdade?
São Bernardo: Que te aproveitam as coisas que escreveste,
leste ou ouviste, se não leres e entenderes a ti mesmo?
Machado de Assis: Por que não nasci eu um simples vaga-
lume?
Gauguin: De onde vimos, quem somos, para onde vamos?
Rilke: Afinal, se eu gritasse, quem entre as coortes dos anjos
me escutaria?
Perguntar é um excelente exercício intelectual. Para uma pessoa
recuperar-se de uma paralisia não é recomendável que repouse, mas que
aprenda a mover-se de novo. Para pensar, precisamos mover-nos intelec-
tualmente, sair de nós mesmos, investigar a realidade.
Escrito num tapume, li certa vez: “Se você está tranqüilo é porque
está mal informado”. O filósofo anônimo tinha razão. Se não sentimos
inquietações intelectuais, curiosidade, se estamos conformados, se não
temos dúvidas a resolver, então somos vítimas de uma tranqüilidade pato-
40
Gobnel Pemsê
ler, Penjor e Estrever

lógica, de uma grande apatia, que gera grandes ignorâncias, e grandes


fracassos existenciais.
Quem não pergunta não quer saber. Na linguagem popular, é co-
mum ouvirmos alguém chamando outro de ‘‘ignorante” por este ter feito
algo de errado. É que os braços fazem o que a cabeça concebe. E o não-
saber desemboca em ações equivocadas.
Começa a pensar quem começa a perguntar. E perguntar dá traba-
lho. Supõe abrir-se para a realidade, e para as outras pessoas. Supõe estar
atento às infindáveis respostas. Nem toda a resposta é verdadeira, sem
HilviHa F. pnr issn f.xigr.-spi mais-irahalhn: deve.mos avaliar tHrift-ft-
qwv- ouvimos, em busca do que realmente satisfaça a nossa vontade de
saber. Se formos persistentes, acabaremos descobrindo por que não
nascemos; um simples inseto, de onde vimos, que é a verdade.
Uma atitude cética, porém, uma desconfiança sistemática, uma
posição fechada com relação às respostas inviabilizam o crescimento in-
telectual. Quem não acredita que haverá respostas, por que continua fa-
zendo perguntas? O pessimismo da inteligência não será um suicídio in-
telectual? E por que às vezes usamos a nossa inteligência para pensar
menos, e pior?
O poeta Mário Quintana dizia, em tom sério mas de brincadeira,
que algumas pessoas entram na igreja para não rezar. Na mesma linha de
raciocínio, podemos dizer que algumas pessoas entram na escola para não
estudar, ou entram numa empresa para não trabalhar, ou ingressam no
serviço público para não servir o público, ou estudam filosofia para não
fazer filosofia, ou são animais racionais e não pensam.
Pensar é usar a inteligência. Inteligência vem da palavra latina
intus-legere, ler (legere) dentro (intus). Dentro do quê? Dentro da reali-
dade.
A realidade é o que está aí, na nossa frente. Mas a realidade adora
ficar de costas, como lembrava Chesterton, e é preciso realizar um certo
esforço para ver o seu rosto. Este esforço é perguntar, pensar, refletir.
A acomodação mental gera a acomodação existencial, que por sua
vez provoca a acomodação gramatical, vocabular, argumentativa e criativa.
Quem escreve sem contéudo é porque não o tem. Um texto confuso
41
foi escrito por uma pessoa confusa. Um texto superficial foi escrito por
uma pessoa superficial. Levante a mão quem se considera superficial! Eu a
levanto. Oscar Wilde afirmava que reconhecer-se superficial já é ser um
pouco mais profundo.
“Viva primeiro e pense depois”, afirma o antigo adágio. Podemos
plagiá-lo: primeiro viva, pense, e depois escreva. Escrever é reunir pala-
vras, organizar idéias. Só uma personalidade forte e uma inteligência ativa
podem escrever com vigor, reunir sob a ponta da caneta, ou na tela do
computador, as idéias, os mundos, as situações, as imagens, a vida.
Escrever é reunir a vida nas palavras. Escrevemos aquilo que con-
seguimos pensar através da experiência pessoal. O esquimó tem pelo
menos seis palavras diferentes para designar o gelo. Um pintor sabe dife-
renciar e nomear vários azuis, vários vermelhos. Quem conhece mais a
realidade adquire mais palavras para indicá-la e identificar os seus matizes,
a sua complexidade.
Pensar não é criar a realidade, é lê-la por dentro. (Ler um livro, por
outro lado, é pensar a realidade.) E pensar leva à expressão, na medida em
que o esforço de ver a realidade nos obriga a defini-la para nós mesmos
usando as nossas próprias palavras, construindo definições, frases,
raciocínios. Espontaneamente já o fazemos. Mas não basta pensar
espontaneamente, comodamente, automaticamente.
Para pensar mais e melhor é preciso querer.
Infinitas vezes, todavia, deixamo-nos afogar em pensamentos ro-
tineiros, em pseudo-saberes, em frases feitas, em lugares-comuns que não
têm fundamento na realidade e, mais tarde, traduzem-se na nossa própria
perplexidade diante da folha de papel em branco.
“A esperança é a última que morre”, diz-se. Mas se a esperança
morre, então não era esperança. A esperança «5o morre, a esperança é o
que nos faz viver, é a certeza de que tudo no fim dará certo, mesmo com a
morte.
‘Tempo é dinheiro”. No entanto, ganhar muito dinheiro é perda de
tempo, pois não se aproveitam as melhores coisas da vida, que não custam
dinheiro mas tomam tempo: as amizades profundas, a contemplação da
natureza, os momentos de silêncio reflexivo...
42
“As aparências enganam”. Mas, ao contrário, somos nós que nos
enganamos ao ver as aparências, somos nós que talvez nos precipitamos e
não vemos todas as aparências. As aparências não enganam, porque o que
aparece é o que vemos, e o que vemos é o que nos leva às verdades.
“Penso, logo existo”. Mas eu só penso porque antes existo!
“A verdade é relativa”. Mas essa frase seria também muito relativa,
Ler, Pensor e Estrever

como toda a verdade, se a verdade fosse realmente relativa. Isto é, a frase


“a verdade é relativa” é uma grande verdade relativa. Logo, se formos até
as últimas conseqüências, existem verdades absolutas.
Cabe-nos essa tarefa: estrangular lugares-comu^s. .-sses lugares-
comuns que tomam os nossos textos insossos, as nossas conversas e pen-
samentos inconsistentes, vazios, sem substância. Cabe-nos descobrir onde
está o conhecimento.
E o conhecimento está muito perto de nós: está incorporado nas
palavras. Mas não é necessário conhecer todas as palavras do mundo. O
aprofundamento numa só palavra, perguntar o que ela significa, pode ser
mais enriquecedor do que ouvir mil palavras de um telejomal, do que ler
mil livros sofregamente, do que registrar mil informações no computador.
Muitas pessoas se sentem culpadas por não saberem o bastante.
Têm vergonha de confessar a sua ignorância sobre a Internet, sobre a
Bolsa de valores ou sobre a situação no Oriente Médio. A ignorância se
manifesta, vem o nervosismo, e com isso não conseguem expressar nem
absorver mais nada.
Cercados de informações confusas, entrecruzadas, labirínticas,
sentimo-nos zonzos, paramos de pensar. Para vermos o que muitas vezes
se passa dentro da nossa cabeça, basta ligar a TV e assistir a essa sucessão
caótica de imagens, de temas fantásticos e de enfoques contraditórios, em
propagandas, programas e telejomais. Resultado: somos envolvidos pela
banalização de tudo, porque tudo passa a ter a mesma importância, ou a
mesma “desimportância”, seja uma guerra, seja uma piada, seja uma
partida de futebol, seja uma decisão política, seja um novo apartamento,
seja um novo presidente, seja uma previsão metereológica...
A maioria das informações velozes e parciais que os meios de
comunicação fazem jorrar sobre nós, esse acúmulo absurdo de dados que
armazenamos diariamente, tudo isso para pouco serve. Sabemos muitas
coisas mas sabemos muito pouco.
Há excesso de informações e carência de formação. Excesso de
dados e ausência de assimilação. Excesso de imagens e diminuição de
conceitos. Excesso de mensagens e desaparecimento de reflexão.
A saída é querer construir uma personalidade reflexiva, que se
sustente em hábitos intelectuais bem arraigados, e construir uma hierarquia
de valores, um sistema de convicções. Um bom hábito intelectual que

44
Ler, Pensor e Estrever

sugiro a todos é estrangular lugares-comuns, do qual já tivemos uma


demonstração parágrafos atrás. Outro hábito é captar a essência das nala-
vras, compreender a riqueza que subsiste em cada uma delas, experimentar
o seu suco como quem chupa uma laranja. Saber e seritir o sabor das
coisas, nas palavras.
Para tomar posse das coisas reais, uma só palavra é com freqüência
mais útil do que uma arma. Mergulhando no significado de uma palavra,
emergimos na própria realidade. Muitas vezes descobriremos que as
palavras que os homens falam dizem mais do que os homens pensam.
“Infantil", por exemplo, significa etimologicamente aquele que
ainda não sabe falar, o infante, o não (in) falante (fans). Uma pessoa
infantilizada não sabe o que diz, é ainda uma criança, está ainda por ser
criada, ou então foi mal criada.
O lingüista Émile Benveniste lembrava que é com a palavra que o
homem assimila, perpetua e transforma a cultura. Cultura é cultivo da
própria alma, da própria inteligência, da própria memória, da própria vida.
Quando seguimos a pista da origem e da história de uma palavra,
ou, mais ainda, quando compreendemos a amplitude de uma palavra, re-
entramos no mundo, redescobrimos a realidade da qual ela proveio e que
ela ainda carrega consigo. Recebi certa vez uma redação com o título “O
dia em que mais senti fome”. Escrevia a moça:
“Quanto mais me aprofundo no significado da palavra «fome»,
mais deixo na superfície a descrição de jantares animados entre amigos e
familiares, de suculentos assados, de apetitosos cozidos, de sobremesas
deliciosas, de saborosos vinhos, de frutas da época, ou até mesmo dos
simples lanches de bar, onde batemos um «papinho» com os amigos, para
entrar no mundo mágico do ser humano. Este ser carente por nature-
za, repleto de dúvidas (quem sou eu? de onde vim? para quê? aonde vou?),
faminto de idéias.”
Esse trecho da redação toca o nervo do nosso problema. O texto
está a serviço da metáfora “fome de idéias”. Metáfora significa levar a
palavra mais longe, e foi o que a autora fez, distinguindo em si mesma uma
fome mais profunda, menos fisiológica e mais filosófica.
Conhecer o que uma palavra significa na sua radicalidade traz lu-
cidez. Precisamos perguntar o que significam as palavras com que depa-
ramos. Perguntar, perguntar uma e cem vezes. O ultrapassado Karl Marx,

45
Ler, Pensar e Escrever

numa das suas raras intuições metafísicas, dizia que a humanidade só faz a
si mesma perguntas que considera capaz de ver respondidas. E, de fato,
cada um encontra as respostas, os conhecimentos, a sabedoria, na medida
em que ousa perguntar.
Perguntas sérias, decisivas. Perguntas sobre o que significam pa-
lavras-chaves da vida e da convivência: beleza, liberdade, amor, verdade,
história, vício, Deus, sociedade, razão, justiça...
Não precisamos desesperar-nos diante do excesso de informações.
Não há urgência de estarmos informados sobre tudo. É impossível, e
desgastante, estar “por dentro” de todos os principais acontecimentos
locais, nacionais, internacionais; econômicos e políticos; esportivos, ci-
entíficos e artísticos. É impossível e para essa impossibilidade não há
solução. E o que não tem solução solucionado está.
Proponho algo bem mais viável: conhecer a realidade investigando
até o fundo as palavras disponíveis. Imediatamente lembraremos o
empoeirado dicionário, o “pai dos inteligentes”. A ele iremos recorrer para
iniciar um esforço de germinação e de concatenação dos conceitos. O
dicionário oferece apenas uma primeira abordagem das palavras. O
trabalho de aprofundamento e de compreensão será prioritariamente nosso.
Retomando um pouco mais o tema da leitura, volto a insistir: ler já
é pensar. As palavras vêm carregadas de insinuações, de sugestões, de
realidade. Quem lê e compreende o que lê descobre a realidade. Não é à
toa que o fundador da revista multinacional Playboy tenha enviado um dia
aos seus editores a “democrática” norma: “Na Playboy é proibido falar de
crianças, de prisões, de desgraças, de velhos, de doenças, mas
45
acima de tudo é rigorosamente proibido falar da morte”. Só nesse expurgo
vocabular, a revista descartou quase tudo o que existe, criando para o seu
leitor um mundo totalmente artificial. O seu aparente exibicionismo
esconde, arbitrariamente, a realidade nua c crua.
Para estarmos atualizados precisamos 1er. Ler o jornal? Sim, mas
com cuidado. A pressa em informar faz do jornalista muitas vezes um
comunicador de verdades mutiladas.
Sem abandonar os jornais, um bom critério para selecionar os temas
sempre atuais, e sempre reais, é descobrir os temas inatuais, os que sempre
interessaram e sempre interessam. “ Youcatt find ali lhe new ideas tn lhe
old books”, repetia Chesterton. Você poderá encontrar todas as novas
Ler, Pensar e Escrever

idéias nos livros antigos. As vozes do passado já responderam por


antecipação a muitas perguntas que devemos continuar reformulando
pessoalmente.
Quando um leitor reencontra os antepassados e folheia os seus
escritos toma-se mais atualizado e mais sábio. Começa a sentir uma fome
súbita e irresistível de leitura, de conhecimento, de reflexão. Amparado
pelo dicionário (ou pelos dicionários, incluindo um de etimologia, sempre
muito estimulante), descobrirá em cada palavra uma porta para o mundo,
para si mesmo, para os outros. E será conduzido a uma visão mais
globalizante de tudo.
O passado é aquilo que não passou. É aquilo que permanece em
forma de influência, de lembrança, de conselho, de saudade, de lição.
Convém conhecer os erros característicos de outras épocas, para não re-
peti-los; os acertos característicos, para imitá-los. Os livros antigos, e
alguns novos também, trazem essas palavras iluminadas, que como
archotes mostram os meandros da vida, no meio da escuridão.
Nada mais retrógrado do que isolar-se do passado. Aliás, a única
coisa que realmente existe é o passado, porque o presente é fugaz e o
futuro está por vir, é o porvir, literalmente.
Um pensamento paralisador que deve ser combatido a todo custo é
o que isola as épocas umas das outras. O passado é diferente do presente,
sem dúvida, mas nele já estávamos, como embriões. A minha vida passada
é a minha profecia, diz um autor. Os filhos já estavam nos pais. O
pensamento que nos isola das outras épocas também nos isola dos
46
outros seres humanos. Costuma-se dizer: “Cada época tem a sua verdade,
cada um tem a sua verdade". Será? Não lhe parece que esse lugar- comum
fomenta o mutismo, a indiferença, o medo de perguntar o que o outro
pensa? Se cada época tem a “sua” verdade e cada pessoa tem a “sua”
verdade, então é o ponto final. Terminou o diálogo. Cessou a troca. E
exatamente nesse momento cessam também a mudança e o progresso.
O otimismo de buscar as mesmas verdades (que podem ser ditas e
reditas das maneiras mais criativas) é a base da sobrevivência e do de-
senvolvimento do ser humano. Quem se isola com as “suas” verdades, com
as “suas” palavras, condena-se à solidão. Quem já não quer aprender e
recusa-se a ensinar está optando pelo suicídio e pelo genocídio intelectual.
Quem já decidiu que a realidade do amor e a correspondente palavra
Gabriel Perissé

“amor” não têm um sentido amplíssimo, universal, válido para os


“antigos” e para os “modernos” - e válido para todos os “modemos”- , está
querendo a divisão, o desentendimento, o isolacionismo. E quando um
corpo se divide internamente vem a podridão.
"Numa sociedade que começa a corromper-se, dizia Octavio Paz, a
primeira coisa que apodrece é a linguagem”.
O dono de uma linguagem em farrapos, desconexa, incoerente e
vazia não tem nada a dizer, porque, ainda que pense saber muito, nada
sabe.
Mas sem esquecer o dicionário, fica a sugestão: por que não
consultá-lo mais, e até mesmo ir lendo alguns verbetes, por pura curiosi-
dade?
E por que não perguntarmos mais coisas a mais pessoas? Por que
não perguntarmos mais coisas a nós mesmos? Ou à própria realidade? Ah,
sim, porque existe uma realidade extra-mental, fora de mim, que preciso
descobrir, que quer falar-me uma série de coisas. A realidade está a/:

O olho que tu vês


Não é olho porque tu o vês.
É olho porque te vê.
(Antonio Machado)
As coisas não existem porque eu chego a conhecê-las. Ao
contrário: eu as conheço porque elas existem. Conheço-as se pergunto por
elas.
Clarice Lispector não só fazia perguntas mas até pensava que
era uma pergunta. Num dos seus textos, perguntava:

Quem fez a primeira pergunta?


Quem fez o mundo?
Se foi Deus, quem fez Deus?
Por que dois e dois são quatro?
-------------- Quem disse u piinwira pakivm?
Quem chorou pela primeira vez?
Por que o Sol é quente?

48
Ler, Pensar e Escrever

Por que a Lua é fria?


Por que o pulmão respira?
Por que se morre?
Por que se ama?
Por que se odeia?
Quem fez a primeira cadeira?
Por que se lava roupa?
Por que se tem seios?
Por que se tem leite?
Por que há o som ?
Por que há o silêncio?'

E assim por diante, porque as perguntas se desdobram em outras,


como: “Por que escrevo? Por que Cristo morreu na cruz? Por que minto?
Por que digo a verdade?”
Existe toda uma realidade com a sua própria consistência que
independe de nós. Se eu não nascesse, mesmo assim a água congelaria a 0
grau e os rios desembocariam no mar.
Perguntamos, além disso, a respeito dessa realidade que existe
em nós, dentro de nós, que somos nós. Realidade igualmente objetiva: nós
mesmos nos surpreendemos com o fato de sermos o que somos, um ser
48
concreto, real, imprevisível, muitas vezes estranho. “De perto ninguém é
normal”, brincava Caetano Veloso numa das suas músicas.
“Conheça-se a si mesmo”, eis uma antiga recomendação filosófica,
sempre atual. Mas talvez sejamos pessoas que só se conhecem super-
ficialmente. Talvez só nos conheçamos “turisticamente”. Talvez uma
pessoa conheça as suas praias, os seus coqueiros, o céu azul... Mas ainda
não penetrou na mata, no profundo de si mesmo, onde deparará com ani-
mais ferozes, plantas venenosas, cavernas, pântanos, e também com ca-
choeiras belíssimas e pássaros de canto inesquecível.
Dentro ou fora de nós, o fato é que há coisas por conhecer. E o
instrumento é a pergunta.
Perguntar.
Mas perguntar a quem possa responder. Temos uma carência con-
tínua de conversas ricas, de um diálogo realmente esclarecedor, um diá-
logo em que até nós mesmos, num dado momento, demos as respostas
ler, Pensar e Escrever

certas. É comum que uma conversa seja ocasião para que descubramos
aquilo que antes já pensávamos.
Inegavelmente, cada um tem e terá o seu ponto de vista. E diferen-
tes pontos de vista, quando defrontados, podem e com muita freqüência
geram divergências, incompreensões, mal-entendidos. E é mais proble-
mático ainda conversar sobre os assuntos que, afinal, são os que realmente
valem a pena. Há sempre o risco de que uma visão parcial das coisas acabe
deturpando a realidade, e o risco ainda mais terrível de que, no auge de
uma discussão, percamos de vista o nosso próprio ponto de vista!
Por outro lado, qualquer ponto de vista é limitado, é também um
ponto de cegueira. Ou seja: não vemos certos aspectos da realidade quan-
do só vemos outros aspectos da mesma realidade. Talvez eu não veja a
beleza da matemática porque só tenho olhos para a beleza da literatura.
Talvez eu não veja a beleza do basquetebol porque só consigo ver a beleza
da esgrima.

Conversar é permitir que os pontos de vista se iluminem mutua-


mente e que outras facetas da realidade ganhem um novo brilho. Essas
outras facetas estavam até então veladas para os interlocutores por causa de
alguma desinformação, de algum preconceito ou, em certos casos, até
por causa de resistências temperamentais e psicológicas.
Numa conversa, é habitual também que se encontrem contradições
entre uma visão e outra do mundo. Uma contradição é uma contradição,
isto é: uma afirmação e uma negação simultâneas sobre alguma coisa,
observada sob um mesmo aspecto.
A palavra "subir”, por exemplo, como palavra da língua portuguesa,
não significa sofrer. Significa um monte de coisas que estão em contradição
com sofrer. Porém, como palavra da língua francesa, "subir" significa
sofrer, mas não significa ir de baixo para cima.
Vejamos. Haverá uma contradição se eu disser que, em português,
“subir” significa sofrer e ir para cima. Haverá uma outra contradição se eu
disser que, em francês, “subir" significa elevar-se a um lugar mais alto e
sofrer. Sob um mesmo aspecto (no caso, escolhendo uma das duas línguas),
a palavra “subir” não pode ter os dois significados ao mesmo tempo. A
contradição será resolvida se, estudando melhor, percebermos os sentidos

50
corretos da mesma palavra em cada um dos idiomas.
Pois é, contradições existem para serem esclarecidas. Mas para que
esse importantíssimo ponto fique ainda mais patente, vamos comentá- lo no
bloco seguinte.
Quem sabe o quê?

ma coisa não pode ser algo e ao mesmo tempo não ser esse
algo sob um mesmo aspecto. Este é o enunciado do princípio da não-
contradição, que se baseia no mais imediato e simples senso comum.
Basear-se no senso comum é a característica daquele grupo de verdades
inquestionáveis como “a linha reta não é curva”, “o todo é maior do que a
parte”, “todas as pessoas vão morrer um dia”, “do nada nada vem” ou
“ninguém dá aquilo que não tem” - verdades tão óbvias que nem nos
damos ao trabalho de formulá-las, e com as quais vivemos, e com as quais
contamos sempre em tudo o que fazemos.
Certamente, podemos negar essas obviedades. Num dado momento
posso dizer que um hipopótomo é um rato, que a lua é feita de queijo ou
que eu não sou eu. Posso fazê-lo no sentido de que posso tudo, mesmo
dizer loucuras, embora, para os mais realistas, o único louco autentica-
mente louco seja aquele que rasga dinheiro. Também poderei dizer essas
“loucuras” se eu for poeta, mas da poesia falarei mais adiante, e veremos
que ela é, sim, uma demonstração de sanidade mental.
Pois bem. Aqueles truísmos, óbvios ululantes, estão à nossa mão.
Não é tão difícil assim conhecer verdades. Pelo menos para quem se
encontra lúcido. Não é difícil aceitar que “nada existe na inteligência que
não tenha estado antes nos sentidos, exceto a própria inteligência”, como
definia o filósofo e matemático Leibniz. E, partindo dessa base de verda-
des que todos podem ver e aceitar, é possível ir atingindo novas verdades...
Ah, mas é aí que explodem os problemas e os dilemas. À medida
que continuamos a fazer as nossas perguntas e pesquisas, vamos detec-
tando, e especialmente em questões fundamentais, que nem todo o mundo
concorda que uma coisa é o que o outro disse que é. Surgem inteipre-
tações variadas e opiniões discrepantes. Surgem definições diferentes para
o que é certo e errado, belo e feio, justo e injusto, verdadeiro e falso.
Não concordo com quem diz, neste caso, que devemos deixar cada

51
Gobtiel Perissé

um “na sua”: cada macaco no seu galho. Ao contrário. Cada um deve “sair
da sua”. Cada um deve tentar conhecer a árvore inteira. Com mais trabalho
e pertinácia, tenho certeza de que muitas vezes acabaremos por constatar
que duas definições sobre uma mesma coisa (depois, é claro, de algumas
aparadelas) eram complementares. Que duas verdades inicial-
e vermelha e
dizer que não, que a mesma bandeira é branca, tomam-se uma só verdade,
mais ampla e mais perfeita, quando compreendemos que é em parte branca
e em parte vermelha.
Evidentemente, nem todas as questões são tão fáceis de solucionar
como no caso da bandeira japonesa. Os temas radicais da vida, que
atormentam e perseguem um ser humano durante a existência, são justa-
mente esses que mais discussões provocam. Não desprezemos, além do
mais, esse grau maior ou menor de miopia intelectual com que todos nós
nascemos e em virtude do qual ninguém pode considerar-se um vidente
infalível.
No entanto, baseando-me naquele otimismo de que falava atrás,
penso que é pelo fato mesmo de serem mais radicais e vitais que esses
temas precisam ser discutidos até que se chegue a algumas conclusões
satisfatórias.
As coisas são o que são, embora seja difícil saber exatamente o que
são. Mas o que é mais difícil é também, nesta altura, mais necessário. Este
é, em pouquíssimas palavras, o drama do pensamento. Se quisermos pensar
mais teremos de viver este drama como protagonistas que querem
perguntar tudo.
Se você chegou até este ponto do livro é porque, imagino, concorda
com o fato de que o nosso destino consiste em fazer perguntas, e perguntas
vitais, e de preferência perguntas fundamentais às pessoas certas, capazes
de dar respostas corretas ou, pelo menos, orientações adequadas.
E aqui reside o elemento principal do drama do pensamento: Quem
é capaz de dar-me respostas verdadeiras? Quem sabe as verdades, matéria-
prima indispensável para podermos continuar pensando? Quem poderá
contagiar-me com as verdades que, estando realmente de acordo com a
realidade, provocam um prazer intelectual indescritível? Sim, o
pensamento só funciona bem quando amamos as verdades. E de verdades
conhecidas, partiremos em busca de outras verdades ainda desconhecidas.
Quem pensa que pensar é apenas ficar pensando nas próprias dúvidas,
52
Gobtiel Perissé

infelizmente, pensa que está pensando...


Aprender a pensar pressupõe aderir a alguns mestres, a algumas
vozes humanas que nos transmitam verdades seguras, convincentes,
apaixonantes, motivantes; mestres, gigantes em cujos ombros possamos
erguer-nos e ver ainda mais longe.
No início da vida de cada um, esses mestres comumente são os
próprios pais. Depois, outros parentes, os professores, os líderes religiosos
e tantas pessoas vão aparecendo ao longo da nossa biografia, trazendo
palavras que nos comunicam conhecimentos, ciência, certezas. Nessas
vozes nós confiamos, e tendemos a aceitar tudo o que dizem, sem
preconceitos. E isso é normal. Como também será normal que, com o
tempo, tenhamos uma ou outra decepção, ao descobrirmos que alguma
dessas vozes não era confiável, ou que era confiável somente em parte.
Porque pode acontecer que o meu professor de História tenha con-
tado só um lado da história... Ou que aquela minha tia tenha transmitido
umas noções religiosas um tanto amargas... Ou que aquele amigo da escola
tenha me ensinado uma virtude que na realidade vim a saber que era um
vício...
Seja como for, e levando em conta as limitações dos nossos mestres
(e as nossas também, como alunos), entramos na adolescência com um
repertório de conceitos, de princípios, de diretrizes. Um repertório
incompleto, na totalidade dos casos, pois ainda lhe falta uma contribuição
indispensável e insubstituível: a nossa própria experiência vital.
A propósito, outro matemático e filósofo, Blaise Pascal, dizia que as
pessoas só se convencem com os seus próprios argumentos. E é uma
verdade: só estamos realmente convictos de algo quando somos capazes de
defendê-lo com as nossas próprias unhas, e com as nossas próprias

53
Ler, Pensor e Escrever

palavras, é claro. Não basta rcccbcr lições. Cabe-nos a interminável


tarefa de estudá-las, assimilá-las, torná-las carne da nossa carne.
Em última análise, pelo menos hipoteticamente, cada um de nós
hoje poderia fazer a extensa lista das coisas que sabe. Coisas que, na sua
maioria, só aprendemos por acreditar nos outros. Sei que Pequim é a
capital da China com a mesma certeza com que sei que a minha mãe é a
minha mãe. Sei que assim é porque eu quis depositar minha fé nas pessoas
que sabem e dizem que Pequim é a capital da China (pois nunca estive lá),
e na minha mãe, que sabe que eu sou o seu filho (uma vez que não me
lembro do meu nascimento).
Nessa lista, há também coisas que aprendemos sozinhos, com a
própria realidade, vivendo. Coisas que verificamos, isto é, que pessoal-
mente comprovamos serem verdadeiras. Em não poucas dessas verdades
enfim tocadas talvez já acreditássemos antes, e a verificação veio sim-
plesmente ratificá-las, corroborá-las. Outras delas talvez tenham substi-
tuído ou corrigido falsas verdades ou verdades incompletas que aprende-
mos apenas de ouvido.
Com essa lista não concluída, e sempre sujeita a grandes ou pe-
quenas modificações, vamos pelo mundo afora, querendo dar certo como
seres humanos: estar legitimamente com a razão.
Você já reparou? Todo o mundo gosta e quer estar com a razão.
Hitler e Buda, eu e você, Cristóvão Colombo e Nero - todos queremos estar
com a razão. Queremos, em outras palavras, saber o que as coisas
realmente são, provar que o sabemos e viver em harmonia com este saber.
Mas será que sabemos mesmo? Será que eu já sei tudo o que eu
poderia saber? Será que estamos com toda a razão? Será que estou 100%
com a razão em tudo o que eu sei? Por isso é importante fazer e continuar a
fazer as perguntas certas às pessoas certas, àquelas pessoas que sabem que
sabem que sabem. As pessoas sábias.
Mas quem sabe o que eu quero saber? Quem é o sábio que me :
ajudará a ser sábio? Porque o modo mais prático de chegar a ser sábio é
imitar um sábio. Resta-nos, portanto, a grande esperança de encontrar um
ou vários sábios para poder imitá-los. Onde estão eles? Carregam as
54
suas credenciais? Como ter certeza de ter encontrado um autêntico sábio?
Em princípio, um sábio deveria ser facilmente identificável, numa
ler, fensat e Escrever

escola, numa faculdade, atuando como professor, escrevendo livros, fa-


lando na televisão, orientando discípulos. No entanto, de uma coisa já
podemos estar certos: existem numerosos falsos sábios que aparentam ser
o que não são, embora pareçam ser realmente autênticos sábios. Es-
forçam-se, querem parecer sábios porque, precisamente, ser sábio é ótimo,
é motivo de grande prazer e segurança.
Todo o mundo, no fundo do coração, anseia saber. Todos os ho-
mens desejam saber, dizia Aristóteles na entrada do seu livro sobre a
Metafísica. Saber ao máximo. Saber tudo. Saber cm plenitude.
Há quem pareça ser sábio e na verdade não é. Ou é somente um
pouco sábio. Mas arvora-se em ser muito sábio, e não consegue responder
bem às nossas inquietantes perguntas. É aquele “sábio” que não sabe, e
que não sabe que não sabe. Aliás, esta é a grande tentação de quem quer
saber, de quem quer ter uma boa preparação intelectual: a tentação, o risco
de ser um ignorante inconsciente, e pretensioso, um mero sabichão.
A nós, que somos aprendizes de sábios (e sabemos que não sabe-
mos, como ensinava o mestre Sócrates), cabe o trabalho de encontrar os
nossos modelos e verificar se sabem mesmo.
Conta-se a piada de um homem que não era propriamente um
cumpridor dos seus deveres. Batia na mulher, nos filhos, embriagava-se
diariamente, vivia pulando de emprego. Até que um dia morreu. E de
repente, no velório, entrou um amigo do defunto. E passou a discursar,
elogiando o “marido exemplar”, o “pai amoroso”, o “cidadão impecável”,
o “trabalhador infatigável” que o mundo acabara de perder. Viran- do-se
então para o filho mais velho, cochichou a viúva: "Filho, vai ver se é o teu
pai mesmo que está lá no caixão”.
Verificar. Ver se é verdadeira, ou meio verdadeira, ou 20% verda-
deira, ou 1% verdadeira cada afirmação que ouvimos e lemos. Com este
exercício, estaremos a ponto de encontrar as pessoas sábias, ou pelo menos
verdades isoladas que um menos sábio já sabia...
Agora, o mais decisivo e surpreendente nessa busca incansável,
além de irmos detectando a realidade, é que nós mesmos estaremos nos
tornando sábios, como a viúva da piada.
Verificar é perguntar. É encontrar verdades, onde quer que estejam.
Logicamente, pressupõe-se aqui uma abertura para a realidade, uma

56
Gabriel Perissè

sensibilidade para deixar que a verdade apareça na sua transparência e


luminosidade. As verdades estão aí, ao nosso alcance. E o perigo é
rechaçá- las com a nossa inconsciência mais ou menos culpável. Como na
história do monge e do barco, você conhece?
Um certo monge (depois da Idade Média, para quebrar o estereó-
tipo) decidiu construir um barco. Encerrou-se no seu mosteiro e durante
semanas calculou as proporções do barco, escolheu o tipo de madeira a ser
utilizado, a altura do mastro, o tamanho das velas - e no pátio do mosteiro
terminou de montar o barco. Finalmente, levou-o até a praia, e colocou-o
na água. Mas assim que entrou no mar o barco foi a pique. Decepcionado,
perplexo, transtornado, o monge começou a gritar: “O mar está errado! O
mar está errado!”
O monge não aceitou a realidade, embora ela tenha se mostrado de
modo tão patente. Ele, sim, é que estava equivocado.
Ouvir e ter muitas idéias é ótimo, mas nem todas navegam. Algu-
mas das idéias que aprendemos, ou que nós mesmos construímos, já vêm
“furadas”. E a honestidade intelectual consiste em aceitar que elas nau-
fraguem, em saber perdê-las, em saber reconhecer que estavam erradas.
Saber é saber, através da pesquisa, da pergunta, do raciocínio pa-
ciente, da análise da linguagem, da apreciação da arte, da reflexão, do
auto-conhecimento, do estudo, das conversas inteligentes - saber é saber as
verdades que funcionam, que iluminam, que nos fazem dar certo como
seres humanos.
Mas que verdades são essas? O que sabe aquele que é um autêntico
sábio?
Bom, estamos aqui com duas perguntas realmente terríveis, e que
exigiriam um outro livro só para tentar respondê-las. Que exigiriam de
mim e de você uma liberdade intelectual e uma coragem que talvez não
possuamos ainda. Digo isso porque, de fato, como em todas as épocas,
será sempre arriscado (e fascinante) chegar a responder essas duas
“perguntinhas”.
Para efeitos didáticos, porque ainda teremos de conversar sobre o
ato de escrever, vamos distinguir simplesmente, bem por alto, três tipos de
assuntos em que todos queremos estar com a razão, isto é, nos quais o que
queremos é ser possuídos, ousaria dizer amorosamente possuídos pelas
verdades: os assuntos práticos, os assuntos filosóficos e os assuntos

57
ler, fensat e Escrever

religiosos.

58
o
A filosofia e a

C^^hamo cotidiano o vastíssimo âmbito das coisas concretas, das


verdades eminentemente funcionais. A lei da gravidade contém uma
verdade inquebrantável, inquestionável, basta ver como somos puxados
para baixo pelo planeta terra. cotidiano,
Todo o nosso dia-a-dia está
nostalgia do sagrado
mergulhado nessas verdades,
verdades com que estamos habituados e que transmitimos
espontaneamente, sem palavras, aos nossos filhos. Os homens e as
mulheres andam sobre as duas pemas (quando as têm), e comem com a
boca (se há o que comer)-, e respiram pelo nariz (quando não está entupi-
do), e não devem se jogar da janela (se ela estiver numa altura suficiente-
mente grande), e assim por diante.
As verdades práticas costumam ter esse caráter de evidência física, e
nelas estamos agarrados, com toda a força do nosso instinto de
sobrevivência.
Ultrapassando essas primeiras e imediatas verdades práticas, existem
outras que nascem com o crescimento científico e civilizacional. São
verdades que se diversificam de acordo com a história, que se multiplicam
de acordo com o progresso humano, e com as quais uma pessoa sente-se
apta para enfrentar a vida e obter sucessos como um indivíduo adaptado a
um certo esquema mental e social. Saber dirigir um carro, saber vender um
objeto, saber falar uma língua estrangeira são conhecimentos carregados de
inumeráveis pequenas verdades que asseguram a locomoção, a
comunicação, a alimentação, o desenvolvimento de um ser humano.
Gabriel Perissé

Já estou incluindo nesses assuntos práticos todo o universo das


convenções preestabelecidas, dessas verdades localizadas num determinado
tempo c num determinado espaço, que podem caducar e caducam, que
podem não ser e de fato não são verdades em outros lugares, mas que em
princípio precisam ser reconhecidas e obedecidas onde e enquanto estão
vigentes.
Penso, por exemplo, na verdade de que hoje, na Inglaterra, o mo-
torista dirige do lado direito do carro, ao contrário do que acontece no
Brasil. Podemos enumerar muitíssimas dessas verdades que vão sendo
estabelecidas para uma boa (ou às vezes não tão boa) ordem das coisas.
Num prédio, pode ser verdade que uma vez por mês os moradores se
reúnam com o seu síndico para discutirem sobre a administração do imóvel.
Eis uma verdade factual, localizada, delimitada, que no caso não é
imutável, embora possa continuar existindo até o fim dos tempos. Tanto
não é imutável que, neste mesmo prédio poderá deixar de ser uma verdade,
quando um novo síndico resolver marcar reuniões quinzenais.
Espero que você não se sinta subestimado(a) com toda essa lenga-
lenga tão palmar, tão evidente. Estou simplesmente dizendo o óbvio: pão é
pão, queijo é queijo. Espero não o (a) estar-ofendendo porque tenho certeza
de que você saberá melhor do que eu todas essas verdades com relação aos
assuntos práticos.
Faço apenas uma última observação antes de prosseguir. Nesse
campo das verdades práticas, como parece claro, todas elas acarretam uma
pena para aqueles que não as cumprem. Algumas penas são irrisórias e
mesmo desprezíveis, como receber um ínfimo desconto no salário pelos
dois minutos de atraso na entrada do serviço num dia daquele mês. Outras
são mais graves e dispendiosas, como ter de pagar uma multa pela
ultrapassagem do sinal vermelho. Outras são mais sérias e até fatais, como
morrer estatelado no chão por jogar-se de um avião sem pára- quedas.
Essas penas são o contrapeso da alegria que geralmente sentimos
quando estamos dominados pelas verdades práticas, quando sabemos e
atuamos livremente conforme esse saber. Neste momento em que escrevo 110
computador, por exemplo, sinto a alegria leve de estar tocando as
59
Ler, Penjoí e [screver

tccias certas, de conseguir comunicar o meu pensamento aos leitores que


imagino por trás da teia.
Mas uma pessoa normal não se contenta com as verdades do coti-
diano. Quer mais. Anseia. Pergunta. Deseja saber. Deseja saber pelo menos
de onde vem esse desejo de saber mais. Pergunta-se e pergunta aos outros
como funciona a inteligência, como poderemos viver melhor em sociedade,
em que podemos melhorar como seres humanos, a razão por que
morremos, e o que há além da morte, e o que é o amor, e como vencer o
sofrimento, e como apreciar a beleza etc.
Bem dizia Aristóteles: quem quiser negar a filosofia terá de fazer
nlosofia para negá-la.
Somos seres pensantes, e quando o pensamento voa um pouco acima
dos assuntos práticos ingressa no mundo da filosofia, dos porquês mais
profundos, da teoria.
Com a decadência cultural, costuma vir também o medo de pensar, o
medo de teorizar. Começa-se a dizer que o que importa é a prática c não o
blablablá da teoria. Que a teoria é pura perda de tempo. Que as questões
teóricas são pura “enrolação”. E que a filosofia é inútil.
E nada mais errado. Aliás, a própria idéia de que a teoria é pura
perda de tempo é uma idéia, ou seja, pertence a uma teoria, compõe uma
teoria cujo nome é pragmatismo, uma teoria que comete o grande equívoco
de julgar todas as coisas pela sua eficácia externa. Entre os pragmáticos
mais radicais, verdadeiro é tudo aquilo que faz o barulho de muitas moedas
de ouro dentro do bolso.
O pragmatismo não está intrinsecamente equivocado pelo simples
fato de ser uma teoria como outra qualquer, mas justamente por ser uma
teoria que desvaloriza a capacidade de o homem teorizar, de o homem se
preocupar com as realidades invisíveis, com valores vitais que até signi-
ficam renúncia às riquezas, como a honestidade, em não poucos casos.
É verdade que muitos filósofos - e não só os filósofos profissionais,
mas todas as pessoas que gostam de pensar em profundidade - costumam
ter algumas dificuldades para se adaptar a um mundo regido pela técnica ou
pelos critérios em que a ação ocupa o primeiro lugar. Há as exceções, como
sempre, mas o fato é que pensar filosoficamente exige um certo
distanciamento das necessidades práticas. Não por aversão a essas
necessidades, tantas delas imperiosas, indispensáveis, mas, por incrível que
pareça, porque para descer ao chão da prática precisamos subir a montanha

60
Gabriel Perissè

da teoria.
“Sejamos práticos, façamos uma teoria", costumava dizer-me um
professor de Metafísica. Se ocorrem teorias doentias, que afastam da re-
alidade, que até negam a realidade, que negam o próprio pensamento, que
negam o próprio ser humano, a culpa logicamente não é do pensamento em
si, mas do ilustre pensador.
Prefiro pensar que serei legitimamente prático se souber pensar com
acerto e decidir com coerência a ação que devo realizar. Serei sau-
davelmente teórico se agir de acordo com a realidade e pensá-la de tal
modo que encontre as verdades da vida.
A prática é um “saber fazer”, mas a teoria é um “saber saber fazer”.
É a consciência. É o domínio intelectual. É possuir formação intelectual. É
interiorizar critérios de ação justa. É conhecer as leis constitutivas da
realidade.
Volto a insistir naquele princípio: nullus dat quod non habet. Nin-
guém dá aquilo que não tem. Ninguém poderá falar bem se não souber o
que vai dizer. Ninguém viverá bem se não souber o que é viver. Ninguém
poderá escrever bem se não tiver pensado coisas “escrevíveis”.
Quem pensa mais, quem constrói teorias válidas, é mais sensível à
realidade, e mais prático.
Existem muitas teorias incorretas e inviáveis? Sim, mas não deve-
mos chamá-las de teorias. Não são teorias na medida em que não podem
ser postas em prática. Uma teoria impraticável não é teoria, é um equívoco.
Quem pensa que 2 mais 2 é igual a 5 não será um bom comerciante. É até
fácil montar teorias fajutas, mas o que interessa é possuir teorias- práticas.
Em suma, há pessoas que alimentam uma falsa teoria a respeito do
que seja a teoria. E, por isso, desprezam o próprio pensamento, des-
prezando a filosofia, desprezando a sua própria capacidade de pensar.
Desprezando, sem saber, a si mesmas. Talvez desprezem a teoria porque
imaginam que ela seja um fim em si mesma, que teorizar seria pensar
infinitamente, dando voltas sobre o próprio pensamento e o próprio um-
bigo até o desaparecimento do próprio pensar, e do umbigo. Mas não é
assim: teorizar é, na sua essência, pensar no núcleo das coisas reais bara
poder agir com sensatez e equilíbrio. v
Filosoficamente falando, teorizar é tomar decisões intelectuais que
orientarão o nosso próprio pensamento e a nossa própria conduta. E talvez
a mais importante pergunta, a pergunta que nos levará a tomar essa

61
ler, Pensar e Escrever

decisão, seja a seguinte: podemos conhecer verdades reais, não só no que


diz respeito aos assuntos práticos, mas também no campo das evidências
intelectuais? Ou, com outras palavras: posso atingir verdades sobre a
minha vida no que ela tem de mais íntimo e impalpável (verdades contudo
fundamentais), verdades sobre a liberdade, sobre o amor, sobre a se-
xualidade, sobre a morte, sobre a felicidade, sobre a alma humana, sobre a
justiça, sobre a linguagem, sobre a minha própria capacidade de conhecer
verdades?
Se a resposta for “sim”, poderemos ir em frente, e continuar pen-
sando e descobrindo novas verdades. Se a resposta for "não”, se a única :
verdade é que não devemos perder tempo com a filosofia, então, por um
mínimo de coerência, deveríamos abandonar tudo isso, fechar os livros e ir
embora.
Este primeiro gesto de coerência consigo mesmo é definidor. Só
poderá pensar em assuntos filosóficos quem estiver convicto de que vale a
pena pensá-los, de que, por pior que seja a vida, sempre se pode dar um
passo à frente. Ou, como dizia Montaigne, que também se pode dar um
passo à frente quando se está à beira do precipício: dar um passo para trás!
Fazer filosofia é dar um passo para trás, é retomar as velhas e
mesmas perguntas que sempre atormentaram todos os homens, é voltar a
ser aquela criança perguntona que pergunta porque realmente quer saber.
Saber é saber o sabor da verdade. Um sabor forte, diga-se de pas-
sagem. Saber é saborear o que as coisas são, essa maravilhosa e inebriante
(e também dolorosa) realidade de que existem coisas reais, de que existem
pessoas ao invés de não existir nada.
Bom, não iremos aqui fazer filosofia, embora já a estejamos fa-
zendo e continuemos ao longo do livro no mesmo diapasão. Ficará para
uma outra oportunidade, no entanto, pensarmos detidamente, filosofica-

62
Gabriel Perissé

mente, em tantas outras coisas a serem pensadas. Entre elas, o


empolgante tema da ética, que está intimamente unido ao saber.
Entendamos, por ora, que é sensato pensar filosoficamente, teorizar.
E que tudo começa em saber fazer as perguntas profundas às pessoas
profundas para obter respostas profundas. Enriquecidos então, poderemos
ler com aproveitamento, falar com segurança e conteúdo, escrever com
elegância e consistência.
Paralelamente aos assuntos filosóficos, existe todo um tema que com
eles se relaciona, mas que possui o seu próprio âmbito: o tema da religião.
Depois de vencidos tantos tabus nas últimas décadas da história
ocidental, há pessoas que criaram um novo tabu, o de falar sobre Deus, fé
ou religião (re-ligação entre o homem e a divindade).
Mas, cá entre nós, todo o mundo gosta, no fundo, de poder falar
sobre Deus, fé e religião. Religião neste sentido: o mistério de estar vivo, a
existência e a ação do Criador, as profundidades da culpa, o perdão infinito,
a virtude, o que acontece depois da morte etc. Admito que sejam assuntos
dos quais também se possa falar filosoficamente, e são mesmo. No entanto,
é quando se faz uma opção religiosa que esses temas ganham maior
colorido, o colorido da fé.
A fé num Deus, numa Força onipotente que organiza o universo e
nos protege, está mais ou menos presente na vida de todas as pessoas. É um
dom alcançável por todos, prescinde de diploma universitário, de co-
nhecimento das línguas estrangeiras, está à disposição do mais simples e
humilde dos mortais. Ou melhor, são os mortais mais simples e humildes
que geralmente demonstram uma fé gigantesca, invejável.
Há pessoas que não praticam a religião dos seus pais porque não
querem parecer “infantis”, ou "crédulos”, ou associar-se a uma instituição
religiosa. Dizem, contudo, que têm a sua religião, uma religião pessoal, um
modo individual de relacionamento com Deus. Discorrem mais ou menos
assim: ‘Tenho minhas próprias idéias e atitudes religiosas. Dentre todas as
religiões que conheço, em nenhuma delas estarei à vontade. Tenho um jeito
pessoal de encarar a realidade divina. A minha maneira de conviver com
Deus, por outro lado, não seria aceita pelos credos e códigos morais das
diferentes confissões. Prefiro a minha religião pesso-
ai, construída com as minhas próprias mãos. Prefiro fazer a minha oração
pessoal, com as minhas próprias palavras”.

63
Ler, Pensnr e Escrever

Perfeito, mas eu gostaria de dizer apenas que toda a religião é


pessoal na medida em que só pessoas têm religião. Ser pessoa implica um
relacionamento pessoal com o Ser Pessoal por excelência, do qual
recebemos a nossa condição de pessoas.
Não vem ao caso, agora, entrarmos no embrenhado e maravilhoso
tema das verdades religiosas. Quero simplesmente falar de dois fenômenos
editoriais recentes que refletem com vivacidade como os assuntos religiosos
continuam na ordem do dia. _________________________________ ___
O primeiro fenômeno é Paulo Coelho - escritor hoje tão conhecido
no continente americano quanto Gabriel Garcia Márquez ou Jorge Amado.
Seus romances já venderam 4 milhões de exemplares no Brasil desde 1987,
e foram traduzidos em mais de vinte idiomas, alcançando fãs espalhados
por 45 países, cerca de quinhentos mil só na França. O autor avalia que os
seus livros já lhe renderam US$ 5 milhões.
Por que esse êxito?
Porque ele atingiu a veia das nossas carências: a nostalgia do so-
brenatural.
No auge da crise da modernidade em que mergulhamos (todo o
século XX é esta crise), os jovens e os não tão jovens anseiam por retomar
ao mundo mágico, mundo das revelações, repleto de anjos dispostos em
hierarquias luminosas que nos dão uma certeza: o milagre é possível, apesar
do materialismo reinante.
Já nos idos de 1930, Nicolau Berdiaev apontava para o fim da era
antropocêntrica, da era moderna. O homem auto-suficiente, gerado pelo
Renascimento, tomou-se uma “paixão inútil”, como concluía Sartre. Temos
agora o saldo negativo na ponta do lápis: duas guerras mundiais, a falência
econômica e ideológica do comunismo (que prometera o paraíso terrestre),
a violência urbana desenfreada, a poluição, a pandemia da Aids e um clima
de depressão generalizada.
Estará então tudo perdido? Não, ainda temos Paulo Coelho, que aliás
não escreve para a reduzida elite intelectual. O seu leitor típico é sobretudo
aquele que quase nada pede de uma leitura, e pode ser en- contrado tanto
entre mocinhas que trabalham nos salões de beleza como entre
vestibulandos e altos executivos.
Paulo Coelho escreve de modo trivial, trivial até demais, como prova
uma frase que sozinha faria Napoleão Mendes de Almeida gemer, - colhida

64
kaWve\ íetmt

exatamente assim na 54a edição (1991) de O Diário de um mago: “Ali


estava eu, vivendo na realidade o que a ficção seria inverossímel” (pág.
176). .
Paulo Coelho nos dá simultaneamente um pouco de fé e lazer. Ele é
uma alternativa para o nosso vazio: “Consegui", ele próprio afirma, “fazer
com que gente que nunca havia entrado em livrarias - e que nunca havia
lido um livro até o final - terminasse por ler e comentar o que eu
escrevia”(0 Globo, 23.09.1990).
Sim, acertou na mosca. E por isso deu certo, pelo menos por en-
quanto. Não sei se ele conhece este provérbio africano: “O coração do
homem não se satisfaz com pouco... nem com muito”, mas o fato é que,
mesmo de leve, atingiu esse coração, comunicando-se através de uma
linguagem acessível, sugestiva, com uma certa dose de criatividade. Diálo-
go nunca moralista ou dogmático. Ele afaga a nossa carência de sagrado e
de infinito, o seu charme new age vem ao encontro da sede de
transcendência e de metafísica que, no Brasil e no mundo, tem sido (mal)
saciada em esoterísmos, novas seitas e livros dos mais estranhos e, para
dizer a verdade, bastante superficiais.
Sem nenhuma sombra de fanatismo, o que o antigo companheiro
musical de Raul Seixas pretende é promover o “crescimento espiritual”
dos leitores (baseio-me na sua entrevista ao O Estado de Sâo Paulo,
12.12.1992), que se resume num voltar-se para si mesmo, “não no sentido
egoísta, mas no sentido de procurar a transformação por meio da cultura”.
É freqüente deparar com pessoas que se apóiam no autor para enfrentar a
luta da vida. Um barbeiro meu conhecido, por exemplo, atribui seus
avanços profissionais à força de vontade que os escritos de Paulo Coelho
lhe infundiram.
O segundo fenômeno editorial é um outro Paulo: João Paulo II, sem
dúvida um dos homens mais visados e ouvidos do século, ponto de
referência moral e testemunha de verdades esquecidas num momento em
que nos queixamos da falta de respeito à vida, da falta de ética, de soli-
dariedade, de líderes e de idéias renovadoras. A Time o escolheu como o
homem do ano de 1994, pela sua visão da humanidade e os seus contínuos
e enérgicos apelos à esperança e à sensatez.
O seu Cruzando o limiar da esperança tornou-se um best-scllercm
doze países assim que foi publicado, em 1994, e já conquistou mais de um
65
ter, Pensor e Escrever

milhão e setecentos mil leitores só nos Estados Unidos. Tudo isso


pressupõe uma operação editorial das mais ambiciosas. A tiragem inicial
de 5 milhões de exemplares (hoje já esgotada) está sendo ampliada para
vinte milhões, conforme anunciou o italiano Leonardo Mondadori (dono
da segunda maior editora européia), que detém os direitos mundiais da
obra, traduzida rapidamente nas línguas mais importantes, incluindo-se o
árabe, o russo e o chinês. O dinheiro arrecadado na venda deste livro foi
destinado pelo Papa para entidades que continuam socorrendo as vítimas
da guerra na Bósnia.
O inconformismo e o radical otimismo de João Paulo II não fazem
nenhuma concessão ao politicamente correto. Respondendo com desen-
voltura a 35 questões apresentadas pelo jornalista Vittorio Messori, o Papa
reafirma, com a sua conhecida tenacidade, concepções que muitos setores
intelectuais e da mídia rejeitam.
Uma dessas concepções basilares é que o eclipse de Deus provoca o
eclipse do homem, que a morte de Deus redunda na morte do homem, e
que, por conseguinte, o homem de hoje sente medo - medo de si mesmo,
do mundo, dos outros homens, dos poderes da tecnologia, dos sistemas
políticos opressivos etc. - porque não cultiva o único temor válido, o temor
filial a Deus, princípio da sabedoria, disposição de obediência ao Amor,
temor criativo, diz o Papa, que gera homens e mulheres conscientes da sua
origem divina, santos, verdadeiros cristãos, “aos quais pertence
definitivamente o futuro do mundo” (pág. 209).
Se por um lado João Paulo II, tal como Paulo Coelho, identificou o
núcleo da nossa carência fundamental, carência religiosa (de ordem
intelectual e afetiva), o faz no entanto sem a menor ambigüidade ou ânsia
de agradar. Sua mensagem à humanidade, em parte angustiada por mil
sofrimentos, em parte narcotizada pela opulência, é a da fé em Deus Cri-
ador que se revela plenamente em Jesus Cristo, único mediador entre o céu
e a terra.
Essa fé concretiza-se numa conduta orientada pelos dez manda-
mentos e pelo bom senso, no amor incondicionado a Cristo, perfeito Deus e
perfeito homem, e numa adesão fiel ao mistério da Igreja católica, cujas
“dimensões espirituais, místicas, são muito maiores do que consigam
demonstrar todas as estatísticas sociológicas” (pág. 140).

66
Gobriel Perissé

O poeta, dramaturgo e teólogo Karol Wojtyla, que fala em sintonia


com os dois mil anos de cristianismo (e com as culturas greco-latina,
hebraica e eslava), defende uma antropologia que não despreza nada do
humano e não diminui em nada o divino. A sua linguagem, de fato, não é
coloquial, e requer do leitor a coragem de segui-lo num raciocínio pode-
roso, em que se notam uma originalidade e uma consistência nascidas de
intuições agudas, da reflexão assídua, bem como da leitura atenta do
Evangelho, de grandes sábios - Agostinho, Tomás de Aquino, João da Cruz
-, e de pensadores de hoje como Emmanuel Levinas, Mircea Eliade e
Martin Buber.
Contudo, nem esse pesado arsenal impediu o sucesso de vendas.
Como constatou um terceiro Paulo, Paulo Francis, o livro “é um ovo de
Colombo, uma exposição simples, inteligente, sem exigir especialização
teológica, tolerante de outros credos, e que põe inúmeros pontos nos ii
sobre o catolicismo”(0 Estado de São Paulo, 15.01.1995).
Como eu dizia, são dois recentes fenômenos editoriais inegáveis
que só podem ser compreendidos se aceitarmos essa realidade: a voraci-
dade mundial de palavras e ações que privilegiem o mistério, o sagrado e o
religioso. Há um pedido mudo para que se revalorizem atitudes de ado-
ração, oração, ascese, humildade. No fundo, cada um de nós quer a chance
de descobrir a sua dignidade mais profunda: a de estar aberto para o eterno.
Dignidade essa que os poetas captam muito bem, e aqui pretendo
cumprir a promessa que fiz de falar um pouco de poesia.
Numa entrevista ao O Estado de São Paulo em 22 de julho de
1995, Jorge Amado (com 83 anos) expressava sentimentos dolorosos,
típicos de pessoas que renunciaram a pensar religiosamente.
Dizia ele: “Amo viver, tenho amor à vida, que me deu mais do que
pedi e mereci. E, por isso mesmo, a velhice me pesa de forma terrível. [...]
Tive um enfarte, cuido-me para não ter outro. Não tenho medo da
morte, mas a idéia dc morrer não me agrada de nenhuma forma, pois
gostaria de viver muitos anos mais. Tenho imensa curiosidade pelo que vai
acontecer no mundo e no universo. Sei que com a morte tudo acaba, e é a
idéia de acabar que não me agrada”.
Aqui, como contraponto a esse pessimismo envolto em perplexi-
dade e resignação, vai muito bem lembrar o aforismo do espiritualista
Guimarães Rosa: “Se nós viemos do nada, é lógico que iremos para o

67
ter, Pensor e Escrever

tudo!”
A lógica poética nas suas mais altas realizações abre o homem
pnrn a cita própria transgandânr.ia pnrnn-<HrfyrWifl qiwluntn piiu-inrtr-
mos. A imensa curiosidade que Jorge Amado sente, e não deveria sufocar,
é um sinal dessa insaciabilidade que, por sua vez, indica a existência, pelo
menos hipotética, de que existe uma fonte que a pode saciar. A poesia
vislumbra essa fonte.
Um homem sem poesia está vazio. Pode estar inchado de mil in-
formações entrelaçadas, de idéias mais ou menos coerentes, mas está
vazio, está cheio desse “vazio que inchou por estar vazio”, como escreve
João Cabral de Melo Neto num poema. O vazio inchado dos pragmatistas,
dos niilistas, dos relativistas, dos materialistas, dos pessimistas, que no
fundo descrêem e desvalorizam o que há de mais fundamental na vida, a
própria vida na sua gratuidade, na sua beleza e na sua dramaticidade.
“Viver é depor”, dizia o poeta Carlos Nejar, definindo sintetica-
mente o que a vida é, entre outras infinitas coisas: um julgamento. Somos
julgados pela própria vida, que nos comunica a mensagem secreta, o
sentido misterioso, o inexplicável que tudo explica.
Toda a pessoa pode (e deve, no meu entender) abrir-se para a po-
esia, que é a manifestação da linguagem no seu ritmo essencial, cativante,
inquietante, insinuante, musical, plurissignifícativo, revelador,
convocador, provocador. Manifestação da e através da linguagem de uma
presença real, de uma Palavra, de uma Resposta.
Em princípio, poesia jamais cansa. Jamais cansa quando é autên-
tica, já que existe muita poesia falsa. Aliás, é pelo fato mesmo de ser a
intuição poética algo tão cativante que surgem muitas falsificações. Só se
falsifica o que tem valor. Só vale a pena tentar falsificar obras de um
Picasso ou dc um Leonardo da Vinci.

68
Gabriel Périsse

Poesia verdadeira jamais cansa. S. João da Cruz compôs uma es-


trofe no seu poema Noche oscura que é uma pérola:

Oh! noite que me guiaste.


Oh! noite mais amável que a atvoratla!
Oh! noite que juntaste Amado com
antada.
Amada já no Amado transformada!

Tão simples, tão rico e tão eterno. Diz tudo, embora ainda deixe
tudo por dizer.
0 poeta intimimanente pergunta e capta uma centelha da Resposta.
Lúcio Cardoso registrava no seu diário: “Escrevo - e minha mão segue
quase automaticamente as linhas do papel. Escrevo - e meu coração pulsa.
Por que escrevo? Infindável é o número de vezes que já fiz a mesma
pergunta e sempre encontrei a mesma resposta. Escrevo apenas porque em
mim alguma coisa não quer morrer e grita pela sobrevivência”. 2
Quem vive num clima de poesia - que não gera necessariamente
uma anomalia sócio-política, nem deriva de ou provoca um estado de
loucura -, quem vive num clima de poesia verdadeira tem, isso sim, um
certo “grau de loucura” que, examinado com atenção, é lucidez e sensatez.
O homem apoético, o homem incapaz de ver o invisível (no visível)
acostuma-se com tudo. Uma criança nasceu? Normal. Alguém morreu?
Natural. Não tem a flexibilidade do espanto, não se surpreende com o que
há de misterioso no que aparenta ser mais rotineiro.
Para penetrar nesse clima poético precisamos conviver com os
poetas. Arnaldo Antunes, que ainda não é um poeta genial, mas tem um
trabalho interessante, publicou no seu Psia1 (livro sem os números das
páginas e sem índice) um poema de perguntas e respostas das quais esco-
lho algumas:

- Qual o olho que vê melhor?


- O do ciclope.
- Deus existe?
- Eu também.

69
ler, Pensar e Escrever

- O que não cabe na cabeça?


- A cabeça.
- Por que as suas respostas são sempre mais curtas que minhas
perguntas?
- Porque sim.
- Qual o olho que vê melhor?
- O que não duvida.
- Qual o comprimento do como do diabo?
- Só Deus sabe.

São, como dizia, ccntelhas, que brilham e desaparecem, iluminan-


do-nos momentaneamente no meio da nossa escuridão. São breves ins-
tantes de prazer emocional e intelectual que nos tomam mais sensíveis,
mais perguntadores, e mais dispostos a pensar, verdade que Lupicínio
Rodrigues capturou em poucas palavras:

O pensamento parece uma coisa à-toa, mas como é que a gente


voa quando começa a pensar.

Notas
(1) A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, pág.
575 e segs.
(2) 07.05.1950 - Diário completo. Rio de Janeiro, José Olympio/INL,
1970.
(3) 2a edição, São Paulo, Editora Expressão, 1987.

70
III
Escrever para escrever
A técnica pessoal

— ara aprender a escrever é preciso escrever. E, para escrever,


cada pessoa deve procurar, encontrar e ir sempre aperfeiçoando uma téc-
nica pessoal que a ajude a explorar e exprimir os seus talentos, a sua
personalidade, as suas idéias, os seus sentimentos, tudo o que aprendeu,
tudo o que é.
Essa técnica geralmente está baseada, precedida e justificada por
uma teoria, pessoal também, a respeito da tarefa própria de quem escreve,
dos objetivos a serem alcançados nessa tarefa e do público visado. Em
outras palavras: “Por que e para quem eu quero escrever?” é a dupla
pergunta que, respondida, trará em si boa parte do estímulo necessário
para aprender como escrever.
De qualquer maneira, seja qual for a resposta, é certo também que a
pessoa deverá estar disposta a trabalhar, a treinar. A palavra “treinar” vem
do verbo francês trainer, que significa arrastar-se pelo chão, progredir
lentamente, mas depois ir cm frente com rapidez, deslizando como um
trenó (palavra que vem também daquele verbo). Treinar é trabalhar
continuamente, esforçar-se sem cessar para adquirir a rapidez e a espon-
taneidade.
Treinar com sucesso é determinar para si mesmo(a) certos limites e
barreiras que, superados, darão maior flexibilidade, mais agilidade a quem
os superou. É como o corredor que treina carregando uma mochila
de dez quilos. No dia da competição, livre desse peso, estará mais leve e
corrcrá mais velozmente.
O escritor inglês Graham Greene, por exemplo, estabelecia para si

71
ler, Pensor e Escrever

mesmo a norma de escrever apenas 200 palavras por dia, e assim con-
seguiu escrever mais de 30 livros na vida. Alberto Moravia, italiano, desde
os 16 anos de idade decidiu que escreveria todas as manhãs, das 8 às 12
horas, dedicando o resto do dia a outras atividades. Nélida Pinon contava
certa vez que ela também marca um horário para começar a escrever,
estabelecendo um prazo limite, depois do qual pára, esteja em que ponto
estiver do texto. E se mais tarde vem alguma “inspiração” recusa-se a
escrever, nem sequer a anota.
São exemplos da autodisciplina, que nasce de uma profunda res-
ponsabilidade, que nasce da convicção de ter algo importante a dizer, algo
cuja importância motiva e legitima o esforço, o exercício continuado.
Não se aprende a escrever com um golpe de mágica. Não há tru-
ques nem milagres. A autodisciplina é a marca dos bons escritores. Ainda
que você talvez não ambicione tanto, mais cedo ou mais tarde descobrirá
que o treino diário, com todas as dificuldades que traz consigo, é o
caminho necessário para quem quer escrever com mais desenvoltura.
Para escrever, e escrever um pouco melhor a cada dia, é preciso
superar-se todos os dias, vencendo limites, obstáculos, obedecendo a re-
gras escolhidas pessoalmente, tudo isso com a finalidade de modelar um
estilo característico, de plasmar unia conduta verbal, de configurar um
perfil de linguagem próprio, de expressar com a originalidade possível
(sempre limitada, porque os gênios são poucos e eles mesmos copiaram
outros...) as tendências intelectuais, afetivas e até mesmo físicas.
Cada pessoa pode criar o seu próprio rito para escrever, para pen-
sar, para trazer à tona, em palavras, a sua personalidade.
Alguns escrevem à máquina, outros no computador, outros sempre
com lápis; uns descarregam mais de mil palavras em meia hora, e depois
corrigem o texto durante semanas; outros entregam-se ao paciente trabalho
de selecionar meia dúzia de palavras ao longo de todo um dia; há pessoas
que acordam mais cedo para pensar e escrever, como o faziam Descartes e
Rui Barbosa; outvos resolvem escrever sem usar a letra “a”
• 72
ou a partícula “que”, o que os obriga a uma ascese desafiante; outros, como
Oscar Wilde, gastam uma manhã inteira para colocarem uma vírgula c toda
uma tarde para tirá-la; outros ainda, como Flaubert, levam oito dias para
escrever oito linhas c ainda se sentem na fase do rascunho; Machado de
Assis criava mentalmente trechos enormes de romances, contos, poemas, e
só depois os transcrevia.
ler, Pensar e Escrever

Tais esforços, feitos em momentos escolhidos, em circunstâncias


concretas, inventando meios diferentes de auto-expressão, devem trazer
sempre o selo da continuidade. E é graças a essa continuidade que se atrai a
inspiração. _________________________________
Os poetas e os profetas não esperam comodamente o sopro do
espírito, o sussurro das musas ou as torrentes do inconsciente. Vão buscá-
los, abrem o peito para agasalhá-los, provocam a sua vinda. Mesmo os
sonhos são depois submetidos à consciência, ao trabalho, ao modelamento.
Os próprios sonhos são a manifestação, na clave da ilogicidade, de expe-
riências antes vividas voluntariamente.
Toda a conquista de uma técnica pessoal requer um trabalho de
insistente revisão. Um escritor pode escrever rápido, mas depois terá de ser
lento em sucessivas releituras e nas correções do seu texto. La Bruyère
levou 10 anos para escrever Caracières e mais 10 para revisá-los. Escrever
também é riscar: Chateaubriand poliu e repoliu as suas Memórias durante
30 anos.Tolstoi reescreveu Guerra e paz 7 vezes. Anatole France
costumava fazer cerca de 8 revisões em cada página. Jorge Luis Borges,
conversando com Susan Sontag, revelou: ‘Tudo o que publico, por im-
perfeito que pareça, pressupõe 10 ou 15 revisões anteriores”.
Ou seja: quem quiser adquirir um estilo pessoal deverá lutar apai-
xonadamente contra a própria preguiça e contra uma improvisação que é o
oposto da espontaneidade.
Não digo que se deva cair num perfeccionismo angustiante, como o
do polêmico erudito Paul-Louis Courier, que fazia mais de 10 rascunhos
para escrever uma só carta. O perfeccionismo é o caminho mais ; curto em
direção ao fracasso. Após um empenho razoável para escrever algo, é
preciso abandonar esse trabalho e partir para outro, procurando aprender
com os erros cometidos. Ter alguém a quem entregar uma carta, um
relatório, um romance é indispensável para que a técnica pessoal não
se transforme numa obsessão infernal. Paul Valéry, um caso típico, só
sabia que um poema seu estava pronto quando o editor o levava para
publicar.
Um dos vários modos práticos de vencer a preguiça é escrever um
diário. Diariamente, escreve-se um parágrafo, uma linha, ou pelo menos
uma palavra. Os escritores da Antigüidade diziam: nulla dies sine linea,

74
Gabriel Perissé

nenhum dia sem uma linha. O diário toma-se um confidente c a sucessão


dos dias um apelo a continuar escrevendo sem olhar para trás.
Treinar, trabalhar, trabalhar, treinar. Para escrever é preciso escre-
ver. Para criar uma técnica pessoal, um estilo pessoal, precisamos empe-
nhar-nos, dar à luz o que nós somos, dia a dia.
E escrever com paixão. Tendo em vista o esforço que se exige de
quem quer adquirir uma técnica pessoal para escrever, é imprescindível
apaixonar-se pelo trabalho, mais ainda: apaixonar-se pela vida, que tam-
bém é uma tarefa.
Escrever e viver, aliás, são trabalhos que conveigem, que se con-
fundem. O melhor plano para o futuro é continuar vivendo, e quem escreve
vive mais intensamente, prolonga a sua vida em outras mentes, amplia o
raio de ação das suas experiências e percepções. Perguntaram a Isaac
Asimov o que faria se soubesse que morreria em 24 horas. Ele respondeu:
“Bateria à máquina de escrever mais rápido”.
Técnica e paixão. Esforço e ideal. Treino e êxtase. Provavelmente
nem eu nem o leitor seremos escritores geniais. Rubens Figueiredo, ro-
mancista brasileiro contemporâneo, disse certa vez, ao lhe perguntarem
sobre o sucesso literário: “Por melhor que seja o resultado do seu trabalho
e por mais que as pessoas venham a elogiar com entusiasmo o que você
fez, não há qualquer razão para ficar convencido. Basta ir à Biblioteca
Nacional, olhar para cima, para os lados, para baixo. Você vai ver aquelas
estantes com milhões de livros e vai ter uma idéia de quanto você vale e
uma sensação de como você vai acabar”(0 Globo, 23.07.1990).
No entanto, não custa nada desejar e lutar para fazer o melhor. Sem
ilusões, não custa nada (e custa!) querer ser um bom escritor, ou senão uma
simples pessoa que saiba transmitir para o papel essas captações da
realidade que todos nós fazemos, em maior ou menor grau.
Não é preciso ser um Dostoievsky, um Sófocles, um Shakespearc
para deixar no mundo algum registro escrito de verdades existenciais,
verdades que pertencem ao patrimônio humano, sobre o amor, a morte, o
ciúme, a fé, o medo, o destino, a dor, a alegria.
Repitamos a pergunta que mencionei no começo: “Por que e para
quem eu quero escrever?”
Em primeiro lugar, penso que todas as pessoas querem estar com a

75
ler, Pensar e Escrever

razão e difundir o que acreditam ser verdadeiro. Estou errado?


Penso também que todas as pessoas, assim como desejam ser feli-
zes, desejam fazer outras pessoas felizes. Parece-me o mais saudável.
Então, por que eu escrevo? Para quem? Escrevo para todas as pes-
soas, porque quero dizer-lhes verdades e fazê-las felizes com este saber.
Quero escrever um texto bom que faça bem. Este é um ideal, que apaixona,
que sustenta o trabalho prolongado, que dá esperança.
Mas eu escrevo também para descobrir as minhas verdades, os
meus lemas (e dilemas), as minhas ambições, que me puxarão para frente,
que me farão sair de mim mesmo, que me farão superar o que sou. E,
sobretudo, que serão uma resposta pessoal a esse chamado que vem de
longe ou de perto - de dentro e de fora de nós. Clarice Lispcctor notava
bem que há “escritores que só se põem a escrever quando têm um livro
todo na cabeça. Eu não. Vou me seguindo. Não sei no que vai dar. E depois
vou descobrindo o que é que eu queria”.'
Escrevo para dizer verdades, que me farão feliz e farão outras pes-
soas felizes, mesmo que sejam verdades dolorosas, dilacerantes.
E então, cativado por esse desejo, pela busca desse prazer c dessa
dor, tomarei a decisão de ser mais disciplinado, de escrever para forjar c
descobrir o meu método pessoal, o meu “eu” em forma de texto.
Na mesma entrevista que acabei de citar, Clarice confidenciava:
“Tive que descobrir meu método sozinha. [...] Me ocorriam idéias e cu
sempre dizia: «Tá bem. Amanhã de manhã eu escrevo». Sem perccbcr que,
em mim, fundo e forma é uma coisa só. Já vem a frase feita. Enquanto eu
deixava «para amanhã», continuava o desespero toda a manhã diante do
papel em branco. E a idéia? Não tinha mais. Então resolvi tomar nota de
tudo que me ocorria”.2
Escrever é conhecer-se. Conhecer-se é transcender-se. Transcen-
der-se é aproximar-se dos outros, comunicar-lhes verdades, sentimentos,
inquietações, permanecer nos outros através da palavra, perpetuar-se nos
outros.
Tal ambição supõe e impõe um ritmo de trabalho. E esse ritmo
traduz-se em rasgar muito papel, em reescrever muito, em recomeçar várias
vezes. Só a ambição de estender aos outros a nossa ponte: a palavra, e
através dessa ponte acompanhar os outros na sua solidão e na sua
esperança, só esta ambição justifica e intensifica a concentração, a reali-

76
zação de tais e tais tarefas, a leitura sistemática, a consulta aos dicionári-
os, o estudo-da gramátjearfrebservação-dtentardo mündo, dos seres h~u-
manos, o desenvolvimento de idéias latentes, de imagens, sonhos, frases...
Penso que todos os que escrevem poderiam segredar: “Escrevo para
amar e ser amado”. O que, diga-se de passagem, é a definição de felicidade
mais sintética que se conhece, dada por S. Agostinho: amare et amari -
amar e ser amado.
Mas para ser feliz e para fazer feliz (aliás, as duas coisas se impli-
cam e se reclamam) é preciso lutar. Apaixonadamente.
A odisséia do rascunho

^ __ 'onta-se a piada do pirata inglês que, aprisionado pelo pirata


francês, disse antes de ser amordaçado:
- Vocês, franceses, lutam apenas por dinheiro! Nós, ingleses,
lutamos pela honra!
- É - retrucou o pirata francês -, cada um luta por aquilo que não
tem.
Quem escreve apaixonadamente, em busca das palavras que bri-
lham, que atraem, que impressionam, que transmitem e conservam ver-
dades e sentimentos, no fundo busca o que não tem: a própria felicidade
decorrente da vida vivida em intensidade. Por não termos a felicidade
plena, nós a amamos e buscamos incessantemente. E, escrevendo, lutamos
para pôr em palavras esse amor autêntico, que é garantia de sobrevivência,
de imortalidade, tanto de quem escreve como de quem lê o escrito: "Toi,
que j’aime, tu ne mourras pas\”, exclamava Gabriel Marcel: “Você, a
quem amo, você jamais morrerá”.
As Academias de Letras, onde os imortais se reúnem, são um sím-
bolo desse desejo universal de permanecer para sempre. “O que me co-
move é morrer”, externava Darcy Ribeiro numa intrevista ao Jornal do
Brasil em 10 de setembro de 1988. “Deveria ser eterno. A imortalidade,
não a da Academia, mas a de fato, seria ótima”.
Até o fim da vida, o homem luta para dizer as últimas palavras, a
sua mais íntima emoção, a sua declaração de amor à vida, o seu desejo de
não morrer para sempre, o seu último pedido, respeitabilíssimo. O seu
ler. Pensar e Escrever

testamento. Goethe pedia mais luz. O cardeal Newman repetia o nome de


77
um dos seus grandes amigos: “William”. Balzac chamava pelo personagem
médico que criara nos seus romances.
“Nós vivemos, a cada dia, desde que nascemos, tentando dizer as
últimas palavras. São as palavras essenciais. Queremos dizer alguma coisa,
balbuciar! O que c a arte, se não a necessidade de dizer as últimas
palavras?”confessava Otto Lara Rezende em O Globo, 26.02.1989.
Queremos dizer, escrever as palavras importantes, definidoras e
autodefmidoras. E isto, volto a dizer, isto que é luta pelo amor - pelo amor
à vida, aos outros e a si mesmo -, requer trabalho. John Kenneth Galbraith,
em suas Crônicas de um eterno liberal, expõe o seu método de escrever e
a sua visão de mundo, ele que, como o todo o pensador, também quer
deixar aos homens palavras fortes e inesquecíveis:
“A questão da revisão está intimamente unida à da inspiração. Pode
ser que haja escritores inspirados para quem o primeiro esboço saia
perfeito. Mas qualquer pessoa que não seja um Milton legítimo deve pre-
sumir que o primeiro esboço seja uma coisa muito primitiva. A razão é
muito simples: escrever é um trabalho difícil. Ralph D. Paine, gerente da
Fortune no meu tempo, costumava dizer que quem afirmasse que escrever
era fácil era um mau redator ou um mentiroso congênito [...]. Assim, todos
os primeiros esboços têm falhas profundas decorrentes da necessidade de
combinar a composição com o pensamento. Cada uma das versões
seguintes é menos exigente nesse aspecto; portanto, pode ser mais bem
escrita. Chega uma hora em que a revisão é só para que haja uma mudança,
quando se está tão cansado das mesmas palavras que qualquer coisa
diferente nos parece melhor. Mesmo aí, porém, pode ser que seja realmente
melhor”.3
Quem está habituado a escrever sabe que só em certos dias
(raríssimos) acordamos tocados pela varinha de condão. Sentimos então
uma intimidade com as verdades cósmicas, uma estranha facilidade para
pensar e expressar-nos. No entanto, são também momentos passageiros. E
o perigo é ficar à espera de novos momentos como esses.
Escrever é um trabalho manual, e se não “se põe a mão na massa"
não há inspiração que resolva o problema da nossa preguiça. O que se deve
fazer é ir para a máquina de escrever ou para o teclado do computador, ou

78
para o papel e a caneta simplesmente, todos os dias, e começar a
escrever, mesmo sem garantia de sucesso.
O amor é exigente, nunca está satisfeito. E quem não é exigente nessa
tarefa de amor que é escrever, quem diz que escrever é fácil, que é questão de
aplicar meia dúzia dc regras, que basta coordenar alguns “macetes”, essa
pessoa ainda não sabe o que é amar. E o que é escrever.
“À medida que você vai vivendo, vai Ficando mais exigente consigo
mesmo, no sentido literário. Escrever hoje para mim e mais difícil do que
quando eu tinha 20 anos. Às vezes eu embatuco diante de uma carta mais
complexa [...]. Abgar Renault cita sempre uma frase dc Joubert que diz: «Para
escrever bem são precisas uma facilidade natural e uma dificuldade
adquirida». E isso mesmo. Quanto mais consciência você tem do valor da
palavra, mais você fica exigente no emprego delas”.4
Essa auto-exigência se traduz em trabalho, e trabalho contínuo, e
trabalho lento. A invenção, a criatividade, se conquista passo a passo: escolhe-
se o tema, algo que interesse a mim, e também a todo o mundo, e fazem-se
pesquisas, e tomam-se notas, e coletam-se documentos, c ouvem-se outras
pessoas, e vêem-se fotos, e preparam-se rascunhos, e as situações, as frases, as
imagens, as expressões comcçam a se organizar na cabeça.
Esse trabalho criativo apóia-se, afinal, num profundo otimismo, num
“sim" à vida. Podemos afirmar sem hesitação que há dois tipos de escritores -
os escritores que dizem “sim” à vida e os que dizem “não” à vida. Há os que
amam a vida, as pessoas, as flores, os animais, as crianças, e têm muito a
dizer. E há os que receiam, os que se afastam da exuberância das coisas vivas.
O bom criador diz “sim” à vida, e vê nesta afirmativa uma atitude
profunda, metafísica, que justifica também o amor às palavras, que são um
meio de o homem recriar, de retrabalharos elementos já existentes na Criação.
Somos filhos do Autor, do Escritor de tudo, do Criador, e a nossa criação
participa das forças da vida, da alegria, da realidade. Escrever é uma fuga...
para a realidade.
Amar as palavras, as palavras que exprimem realmente a realidade, é
amar a própria realidade. E é sinal de vitalidade pessoal. O pintor James Ensor
cantou um hino às palavras, palavras sensíveis aos nossos sofrimentos,
palavras coloridas, sutis, espinhosas, discretas, amargas,
79
doces, lastimosas, perversas, festivas, tempestuosas, estridentes, sábias,
ler, Pensor e Escrever

chuvosas, chorosas, de todos os perfumes.


Trabalho e paixão, esforço e sentimento, exercício e clareza de
idéias. A forma de começar é lançar-se diretamente na odisséia do rascu-
nho, deixar as palavras virem, sem medo de escrever besteira, sem medo
de repetir expressões, e espalhar diante de si mesmo o conteúdo da própria
bagagem cultural e vivencial encapsulada nas palavras.
Depois: reler, selecionar, extirpar, corrigir. Pensar é organizar. Com
que idéia eu poderia começar? Não haverá aqui uma possibilidade de
desenvolver ontrns rar.inrínins'? QIIP livrn -ftevarin rnnwhftr-pftra-rnirê -----------------
quecer o texto? Posso incluir um trocadilho, uma citação, um exemplo
vivo? Como concluir? Qual a minha verdadeira opinião a respeito dessa
questão? Com que idéia posso cativar o leitor para sempre?
O rascunho não é lógico. Devo mexer nele, virá-lo e revirá-lo,
riscar palavras, acrescentar outras, trazer o primeiro parágrafo para o meio,
trazer o último para o alto, usar de uma saudável auto-crítica.
A seguir, vale a pena deixar o texto “descansando” dentro de uma
gaveta. Deixar que a poeira assente. Deixá-lo fermentar durante um, dois,
três dias. Para retomá-lo então, e ver com mais calma o que há de bom, de
aperfeiçoável, ou até de ridículo nele. Continuar trabalhando. E, se for o
caso, repetir a operação de guardá-lo e resgatá-lo várias vezes.
Outra sugestão é ir fazendo o “teste da voz alta” e constatar se a
“música” do texto é agradável, se há ritmo, se as palavras soam bem, se há
harmonia. Um amigo que tenha um bom ouvido pode ajudar nesse
momento.
Escrever é isso: um esforço de criação, uma aventura, um processo
de elaboração do caos, uma evolução do rascunho à formulação mais
perfeita possível.
À medida que do rascunho naturalmente confuso vai nascendo um
escrito mais nítido, vamos também descobrindo o nosso nome mais pro-
fundo. Porque somos aquilo que escrevemos. Somos as palavras que es-
colhemos. Somos o nosso rascunho, e o nosso estilo. Melhorar o nosso
estilo pressupõe melhorar o que somos. Se formos melhores, melhorare-
mos os nossos textos, o nosso estilo.
80
É fascinante perceber no rascunho o esboço inicial que já reflete a
nossa identidade, e constatar no texto final, quando bem trabalhado, escrito
Gobriel Perissé

com sangue, a nossa própria fotografia.


Escrever é conhecer-se. Podemos descobrir que somos superficiais,
se o que escrevemos é superficial. Que somos desorganizados, ou
emotivos, ou fleugmáticos, ou imaginativos, ou intuitivos, ou práticos, ou
irônicos, ou misantropos, ou cruéis, ou amorfos, ou coléricos, ou fanáticos,
ou céticos, ou cínicos, ou altruístas.
Doris Lessing contava a sua experiência numa conversa com bra-
sileiros: “Aprendi muito sobre mim mesma vendo que tipo de persona-
gem eu crio nos meus romances. De repente, me falo: «Nossa Senhora, de
novo apareceu essa idéia, esse personagem chato aconteceu de novo!»
Então a gente está ali dentro’YO Estado de São Paulo, Caderno 2,
29.04.87).
As aparências não enganam. Aquilo e o modo como escrevemos
somos nós. É a partir desta constatação objetiva, feita sobre o rascunho e
sobre o trabalho que nele se realiza, que podemos aperfeiçoar-nos e aper-
feiçoar o próprio estilo. O escritor argentino Adolfo Bioy Casares falava
sobre esse tema: “Lembro-me que, quando comecei a escrever, escrevia
muito mal - meus primeiros seis livros estão entre os piores da literatura
mundial estava sempre embaralhando teorias literárias. Um dia, deixei essa
preocupação de lado, e passei a escrever de acordo com minhas
convicções, permitindo que cada texto encontrasse suas regras(0 Estado de
São Paulo, Caderno 2, 29.04.87).
Escrevemos como somos. (Como realmente somos, porque o maior
pecado é não aceitar ser o que sou, ainda que eu sempre possa aperfeiçoar-
me.) Escrever como os outros dizem que se deve escrever é trair-se (ainda
que eu possa imitá-los voluntariamente). As virtudes da nossa escrita são
as virtudes da nossa personalidade. Os defeitos da nossa personalidade são
os defeitos da nossa escrita. O que fazemos quando não escrevemos
reflete-se no modo como escrevemos. O que pensamos, o que olhamos, o
que ouvimos, o que lemos, aquilo em que acreditamos, tudo isto se reflete
no modo como escrevemos.
Mário Quintana contava que, quando menino, trabalhou na farmá-
cia do pai durante cinco anos:

82
Ler, Pensar e Escrever

“Era um trabalho de grande responsabilidade e que me foi muito


útil. Naquele tempo os farmacêuticos aviavam receitas. Naturalmente o
meu pai me passava as coisas que não tinham muito perigo, porque eu era
guri. Eu fazia soluções que, se colocasse um pouco mais ou um pouco
menos dos ingredientes, não fariam mal ao doente. O que acontecia é que o
remédio ficava turvo depois. Mas eu era bem consciente. E atribuo a esse
cuidado que eu tinha com a medida exata, o cuidado que tenho com a
forma dos meus versos. Atribuo o cuidado extremo com a forma da poesia
de Carlos Drummond de Andrade à sua habilidade métrica, pois ele
estudou farmácia. Assim como Alberto de Oliveira, que também era
farmacêutico e outro dos nossos grandes parnasianos, mestre de uma arte
poética no Brasil”.1
O nosso exercício profissional determina boa parte do nosso estilo,
do nosso vocabulário, das nossas metáforas. Por sermos engenheiros, ou
por sermos sapateiros, ou por sermos pintores, ou por sermos médicos, ou
por sermos bancários, escreveremos de modos diferentes. Desde o
rascunho até o ponto final do trabalho estarão impressos ali os nossos
hábitos profissionais, o nosso ponto de vista profissional. A nossa profis-
são confunde-se com o nosso ser. E o nosso ser manifesta-se no nosso
escrever, nas nossas palavras, parágrafos, e até na pontuação que usamos.
Como diz um antigo adágio: qualis aliquis est, talis externe apparet
- tal como alguém é, assim aparece aos olhos dos outros.
Naquilo que escrevemos surgimos, conhecidos e desconhecidos,
,feios e bonitos, simpáticos e desagradáveis. O estilo é a nossa confissão
inconsciente. Se queremos aperfeiçoar-nos, e aperfeiçoá-lo, então é preciso
adquirir uma virtude que possuem os autênticos escritores e da qual
igualmente falava Mário Quintana:
“Eu nunca escrevi uma vírgula que não fosse confessional. Quando
o camarada faz uma coisa cavada, por encomenda, não dá. Tem que ser um
sentimento absolutamente sincero. Se não sentir nada, não deve escrever.
Eu tenho tido períodos de deserto. Não vem nada e eu não escrevo”.6
No entanto, a sinceridade radical não se contenta com a apatia -
sabe que sempre há algo a dizer, mesmo quando, à primeira vista, “não
vem nada”:
“Não vem nada e eu não escrevo. Digo: «Puxa, a lagoa secou e só
ficou o jacaré». Mas depois, de repente, vem aquela coisa, aquele
Ler, Penior e Eitrever

relâmpago, aquelejlapt, o santo baixou. A gente (em que ajudar o santo,


que puxá-lo pelos pés. O Paul Valéry, poeta francês, dizia a mesma coisa
de outro jeito: que os deuses nos dão o primeiro verso, e os outros a gente é
que tem que arranjar”.7
E este esforço, se deve ser feito, pode ser feito à hora que for, como
no caso do mesmo Mário Quintana: “Escrevo da meia-noite em diante, até
as três ou quatro horas. Às vezes, a poesia vem nas ocasiões mais
impróprias e eu tomo nota do relâmpago num papelzinho; outras vezes, me
esqueço pelo caminho. Se não esqueço, escrevo à noite, no silêncio”. 8
Portanto, começar a escrever escrevendo um rascunho. Expor-se
neste rascunho, e nele ir esculpindo aquilo mesmo que somos, as nossas
preferências e limitações, o nosso perfil, os nossos vulcões. Lançar-se na
odisséia do rascunho, para, como Ulisses, entre desafios e sofrimentos,
conquistar o próprio Ulisses.
Escrever com este amor à vida, com esta sede de descobrir a própria
personalidade, com esta vontade de melhorar como pessoa, torna-se uma
necessidade vital. Escrever torna-se um modo privilegiado e agudíssimo de
sentir-se vivo.
É possível encontrar a alegria através das palavras - na escrita.
Escrever é semelhante a rezar, porque atinge os pontos mais recônditos e
profundos do ser do escritor e, mais tarde, dos leitores. É um grito lançado
contra a vulgaridade, o pessimismo, a banalidade, o vazio. Antonio 4
Carlos Villaça comentava: “Es
Talvez um pragmatista sorria ao ler essas declarações patéticas.
“Ninguém morre se for impedido de escrever”, dirá ele. “Só morre quem é
impedido de comer”. Mas o poeta e tradutor José Paulo Paes oferece uma
explicação para tudo isso: |
"A verdade é que se eu não pudesse escrever meus poemas, meus

i
ensaios, minha vida perderia talvez aquilo que possa justificá-la, não aos
olhos dos outros, mas aos meus próprios olhos. Há um poeta que aprecio,
Paul Eluard, que gostava de usar a expressão «razão de viver». É freqüente
na sua poesia isso de procurar a razão das coisas... «raison de vivre». Eu
hoje tenho na literatura, no exercício da criação literária, a minha razão de
viver” (Jornal da Tarde, 06.06.87).
Murilo Rubião disse numa entrevista: “Um escritor mais velho,
84
Ler, Penior e Eitrever

quando pára de escrever, é porque está próximo do fim. Por isso é que eu
reescrevo sempre. Para esticar a vida mais um pouco” (O Estado de São
Paulo, Caderno 2,20.09.87).
A técnica pessoal, o fervor do trabalho, é conseqüência direta do
ideal que uma pessoa escolhe, e que lhe preenche todas as veias - poéti-
cas e sangüíneas. Ideal que, por paradoxal que pareça, só descobrimos no
momento em que ele é “acionado” no próprio ato de escrever.
Escrevemos com esta necessidade também: saber por que e como
escrevemos, para redescobrirmos o ideal que sempre nos supera e atrai
para mais longe e mais alto. O piauiense Esdras do Nascimento dá a sua
versão dessa descoberta:
“Escrevo partindo de uma idéia geral, sem saber aonde chegarei,
numa aventura semelhante à dos antigos navegadores, que se propunham a
descoberta de novas terras, que talvez nem existissem. Os percalços da
viagem serviam para manter vivo o interesse do percurso e valorizar a
descoberta. Escrever um texto de ficção, para mim, é como andar por
caminhos desconhecidos, atravessando desertos, repousando à sombra de
árvores, em raros oásis, enfrentando miragens e mistérios, sofrendo fome e
sede no calor do meio-dia e desfrutando, às vezes, a tranqüilidade, a beleza
e a suave brisa do anoitecer” (Jornal do Érasil, Suplemento Idéias,
28.05.88).
Quando nos lançamos nesta aventura de descoberta do mundo, dos
outros, e do próprio “eu”, somos semelhantes a idealistas, como Cristóvão
Colombo que, na sua ardente busca do que havia a oeste da Europa,
parecia impulsionado por um chicote invisível. É como diz o escritor e
médico Moacyr Scliar: “Escrevo porque não tenho outro remédio. Não
tenho outra forma de expressão. Se pudesse escolher, talvez não escolhesse
escrever. De qualquer maneira, existe satisfação quando, algumas vezes, a
gente consegue vencer a luta tenaz contra as palavras. Ou quan-

85
Gabriel Perissè

do a gente constata a reação que nossos livros desfrutam em leitores


sensíveis” (Jornal do Brasil, Suplemento Idéias, 21.05.88).
Caminhante, não há caminho-“se hace camino ai andar", cantava
o poeta espanhol Antonio Machado. No caminho da obtenção do próprio
estilo está em jogo a necessidade existencial de viver intensamente, de
fazer desabrochar o que se é, de potenciar ao máximo a capacidade de
expressar-se. Mas o caminho é pessoal, ainda não está aberto, exige a
coragem de criá-lo à força dos próprios passos, golpe a golpe, verso a
verso, linha a linha, palavra a palavra.
A convicção que inspira

! JL-j'1 screvcr e escrever e escrever é o único modo de aprender a


escrever, de despertar o escritor que cada um é, obviamente dentro das
suas circunstâncias e limitações.
Tocar e degustar o idioma em busca de um “idioma pessoal”, isso é
escrever. Toque e degustação que, como já cansei de repetir (e você, de
ler) resume-se em trabalhar. E para reenfatizar o dito, trago o conselho -
exagerado e radical como o próprio escultor era, e as suas obras o denun-
ciavam - de Auguste Rodin: “Não contem com a inspiração. Ela não
existe. As únicas qualidades do artista são prudência, atenção, sinceridade,
vontade. Cumpram a sua tarefa como operários honrados”. 9
O esforço necessário para escrever bem não deve ser usado para
escrever bem. Deve dirigir-se antes à aquisição da força intelectual, ima-
ginativa e afetiva que, esta sim, fará a pessoa capaz de transformar a
linguagem de todos, a língua de um país, o patrimônio verbal comum, em
idioma pessoal, em estilo próprio.
Esta força operativa, que nasce do “eu” como um todo, vencerá a
distância entre o que se deve escrever (a carta, o romance, a redação, o
testamento, o poema, o relatório, a monografia, o relato de uma viagem, a
autobiografia etc.) c aquilo do qual se vai tirar a matéria para escrever, ou
seja, o próprio idioma.
No idioma, nas palavras disponíveis, está latente o que se pode
dizer e o que se é. Resta ao usuário do idioma vir e trabalhar. Trabalhar
com o otimismo de um criador, com a disposição de “pôr a mão na mas-
Gabriel Perissé

sa”. A “massa” do escultor é o mármore, o barro. A “massa” do pintor são


as cores. A “massa” do dançarino é o seu próprio corpo. A “massa” de
quem escreve é a linguagem.
Assim como o pintor precisa sujar-se com as tintas e o dançarino
suar nos seus exercícios, assim também o escritor deve lutar para adquirir
intimidade com a linguagem e descobrir-lhe as potencialidades. Porque a
linguagem é quase todo-poderosa: distrai, informa, eleva, avilta, exalta,
deprime, transforma, alegra, salva, condena etc., etc.
A palavra não cria as coisas do nada. Mas retira, sim, as coisas da
sombra, do esquecimento, do exílio, ou do passado, ou do futuro. As
palavras são embaixadoras da realidade. Elas trazem para o nosso meio
todo o universo. Trazem reinos, vulcões, aves exóticas, estrelas do céu,
flores de aromas impensáveis, anjos, demônios. Falamos a palavra, e o
universo responde ao chamado, e os mortos ressuscitam, e nós mesmos nos
iluminamos.
Uma imensa responsabilidade pesa sobre quem conhece e utiliza a
força da palavra. Se o escritor não for uma pessoa equilibrada pode, por
exemplo, usar as palavras com o único objetivo de relatar (e com isso
intensificar) os seus reumatismos psicológicos, os seus vitimismos des-
truidores, as suas fantasias eróticas, os seus ressentimentos e angústias
egocêntricas, as suas crises muitas vezes cultivadas pelo narcisismo. Uma
pessoa, mesmo sem saber escrever, pode até matar outras com o poder da
palavra. Basta, por exemplo, ir a um cinema lotado e, no momento mais
emocionante do filme, gritar uma mentira: “Fogo! Fogo!” (Você já ima-
gina o que acontecerá.)
Devemos ser honrados operários da palavra, pensando no leitor,
querendo oferecer-lhe o melhor de nós mesmos, um texto que valha a pena
e o tempo de ser lido. E as únicas coisas que valem a pena e o tempo de
serem ditas e lidas são as verdades. E para dizê-las é necessário ama-
durecer, estudar, meditar, ter a coragem, o bom gosto e a criatividade de
encontrá-las e transmiti-las.
As verdades estão nas palavras. As mentiras também. Ou as pala-
vras corporificam o “amor” entre o que pensamos que determinada reali-
dade é e aquilo que essa realidade é de fato - e, nesse caso, trata-se de uma
verdade -, ou as palavras corporificam o “ódio” entre o que pensa-
mos e aquilo que realmente é - e, aqui, trata-se de uma mentira, de uma
87
Ler, Pensor e Estrever

verdadeira mentira.
Intimidade com a linguagem significa garimpar nas palavras, nas
frases, nas expressões aquilo que é. O diamante, porém, não está na palma
da mão. É preciso cavar. É preciso selecionar. É preciso estar atento.
Não é honesto (ou pelo menos inteligente) fazer aquilo que alguém
dizia, brincando, a respeito de um jornalista: que ele separava o joio do
trigo... e publicava o joio. Temos, ao contrário, de adquirir forças e cultivar
critérios para distinguir a mentira da verdade, a moeda falsificada da
moeda verdadeira, a palavra certa da palavra errada. __________________
MarkTwain usava esta metáfora precisa: a diferença entre a palavra
certa e a palavra errada é a mesma diferença entre o relâmpago e o
vagalume.
Ao falar em linguagem, permito-me não entrar nos meandros da
“linguagem animal”, que tanto fascina alguns estudiosos, “linguagem” no
sentido de código de comunicação entre as abelhas, as formigas, os
golfinhos, os pássaros. Evito toda essa discussão porque a linguagem
humana me parece muito mais interessante e complexa. Aliás, constatamos
que os homens podem imitar os animais com perfeição, ao passo que os
animais não conseguem imitar os homens, exceto o papagaio e o macaco
(rudimentarmente), seres que usamos como símbolos de pessoas a quem
falta criatividade e capacidade de pensar por conta própria.
Acho bem mais produtivo trabalhar a partir da linguagem que está
ao nosso alcance, com as suas heranças, com as suas patologias, com as
suas idiossincrasias e tesouros.
A tarefa de quem escreve é preencher a distância existente entre o
que se vai escrever e a língua usada por ele e os leitores. Tal distância deve
ser vencida, primeiramente, pela ação do pensamento. Pensar já é falar.
Falamos conosco mesmos, simulando a presença de um interlocutor. Pode-
se até detectar um movimento modesto, mas real, de todo o nosso aparelho
fonador enquanto estamos pensando. E, não raro, pensamos também em
voz alta, externando para nós mesmos as palavras carregadas de idéias.
Tal distância entre a língua que temos e o texto que ainda não temos
será preenchida com pensamentos que traduzam a realidade.
Gabriel Perissé

Pensamentos que, por outro lado, encontrarei “encaixotados” nas palavras


que lerei num bom livro, que ouvirei de uma pessoa sábia, que procurarei
num dicionário. Pensar é sempre pensar com palavras. A intimidade com a
realidade requer a intimidade com as palavras, que a designam. E vice-
versa. Lendo, estou investindo nos meus textos. Pensando, já estou
escrevendo os meus textos. Catão, no século I a.C., dava esse conselho
precioso: “Rem tene, verba sequentui3' - estude, domine um assunto, e as
palavras virão a seguir.
Pensar já é começar a escrever. Já é lidar com as palavras que
apontam e definem realidades que vejo e quero que os meus leitores ve-
jam e amem.
Como entender bem, por exemplo, esta sensação de alegria mistu-
rada com auto-insatisfação que experimentei ao ver o carro novo de um
amigo, sem que isso, com absoluta certeza, tenha sido um movimento de'
inveja? Compreenderei melhor essa minha sensação, e saberei transmiti- la
com mais fidelidade, se conhecer a palavra que lhe corresponde: emu-
lação, cuja origem etimológica significa querer imitar alguém sem a menor
sombra de ressentimento.
Uma escassa intimidade com a linguagem reflete-se no uso de
palavras vagas, que serviriam para inumeráveis realidades semelhantes.
Um caso extremo é o abuso da palavra “coisa”, palavra-ônibus por exce-
lência em que entra tudo, palavra indefinida, palavra “lotada” de sentidos
que se confundem e anulam-se. Coisa é tudo e não é nada.
O cuidado em usar as palavras apropriadas requer atenção, con-
centração, conhecimento da realidade, senso de oportunidade e de pro-
porção: o cavalo sua, o homem transpira e aquela senhora sente um insu-
portável calor. O fenômeno é o mesmo nos três casos, mas é mais ade-
quado atribuir a cada ser palavras compatíveis com o seu status existen-
cial.
Conta-se que no primeiro escrutínio do julgamento de Sócrates a
maioria dos juizes o condenou à morte. Antes da segunda e definitiva
votação, o filósofo podia defender-se. Voltando-se para os que o absolvi-
am, exclamou: “Juizes...”; e para os que o condenavam: “Atenienses...”
Pelo simples falo de que só merece chamar-se juiz quem julga acertada-
mente.
Um texto claro, objetivo, coerente, nasce de uma reflexão pausada,
89
ler, Pensar e Escrever

de um raciocínio sereno, livre da colonização intelectual que a televisão e


outros meios de comunicação (quando mal utilizados) querem im- por-nos.
Um texto obscuro, cm que as palavras ocultam mais do que escla-
recem, nasce de um pensamento confuso, pontilhado de contradições,
repleto de idéias acumuladas apressadamente e não verificadas na reali-
dade. Um texto mal construído equivale a e eclode de um pensamento
inexato. E um pensamento inexato sobrevive numa cabeça cujo dono teme
definir-se: diz “sim” ao panteísmo, mas também diz "sim” ao deísmo;
defende o aborto, que matará um ser irrefutavelmente inocente, e combate
a pena de morte, que mataria um possível culpado; precisa guardar um
segredo e ao primeiro que vê conta-lhe o segredo, pedindo que “não o
espalhe para ninguém"; apregoa ser muito objetivo e concorda com a frase
“a verdade é relativa”, dogma que (a história o demonstra amplamente)
deu e dá pé a tantas arbitrariedades e injustiças.
É como dizia Flaubert: “O estilo é simplesmente o modo de pensar
[...]. O estilo encontra-se tanto sob as palavras como nas palavras”.
Escrevemos aquilo que pensamos e do modo como pensamos.
O meu modo de escrever é o lugar onde vou pôr o adjetivo, é o grau
de ironia das minhas palavras, são as minhas obsessões verbais, meus
vocábulos prediletos, é o ritmo das minhas frases, é a extensão dos
parágrafos, são os autores que cito (e o que cito dos autores), são as
imagens que utilizo (ou a falta de imagens), é, em síntese, a minha perso-
nalidade, os meus vícios e virtudes plasmados no texto.
Um estilo pessoal, criado e mantido por uma técnica pessoal, é (ou
deve ser) ao mesmo tempo único, inconfundível, mas também inteligível
para todos. Um estilo que se fundamentasse na invenção hermética de
palavras inacessíveis estaria condenado à solidão e à escravidão do
absurdo. E o autor juntamente. Liberdade é dizer as mesmas idéias de
sempre com sempre nova originalidade. É ser igual a todos no geral e ser
diferente - em tudo -, no particular. É ser reconhecido por todos sem ser
confundido com ninguém. É falar dos temas que interessam a todos, como
lembrava Ionesco: “Quando falo da morte todos me compreendem”; é ser
capaz de destacar-se da multidão impessoal com uma frase fantástica,
como fazia Chesterton - “o louco é aquele que perdeu tudo, exceto a
razão”. E romper as rotinas do senso comum sem perder o rumo do bom
senso.

90
«s
Gabriel Perisié

Mas além de pensar com clareza, bom senso e liberdade necessi-


tamos dar um segundo passo, que na verdade é simultâneo: praticar as boas
regras do idioma, escrever gramaticalmente.
Sem o domínio da índole e dos recursos do idioma, privamo-nos do
uso eficaz deste meio comunicativo, persuasivo e cognoscitivo.
Dificultamos o próprio pensamento, por falta de instrumentos como a
conjugação verbal, a ortografia, a pontuação, a crase, as preposições, as
conjunções etc.
“Eu nuncasube conjugar verbo”, confidenciava-me um amigo, que
era advogado. E essa falha, por incrível que pareça, era um obstáculo à sua
compreensão de realidades da vida que, à primeira vista, nada tinham a ver
com a gramática.
Sim, é bom estudar uma gramática. Mas mais importante é captar a
gramática na leitura de bons autores. Aliás, é exatamente ao trabalho dos
bons autores que os gramáticos se reportam para dizer o que é reco-
mendável ou não, o que é certo ou menos certo. Por isso, ainda que não se
deva desprezar os ensinamentos de um gramático, é bem mais agradável
ler a gramática pelas mãos de um bom escritor.
Mas além dos bons escritores nacionais que devemos procurar, cabe
a sugestão de também procurar bons autores estrangeiros, com a condição
de que tenham recebido uma boa tradução brasileira.
Neste sentido, diga-se de passagem, a própria arte de traduzir é um
bom treino para escrever melhor. O tradutor encarna o autor inglês,
francês, russo, japonês, e escreve como ele escreveria no nosso idioma. Se
a tradução está bem feita nem parece tradução. O leitor jura estar diante de
um texto escrito originariamente em português. Ser um bom tradutor
facilita o caminho para tornar-se um bom escritor.
Sabemos que estamos melhorando como escritores quando, pau-
latinamente, as palavras que usamos passam a ter um significado cada vez
mais preciso, tendo em mira a nossa experiência com a realidade, c quando
o tom do que dizemos torna-se cada vez mais pessoal, tendo em
mira a nossa experiência com as palavras que correspondem às idéias que
temos da realidade.
O escritor experiente está perdidamente comprometido com as
palavras, que pode amar e odiar. Está vitalmente ligado a todas as palavras
que conhece, uma vez que elas trazem à sua memória todo um mundo de
situações significativas que o marcaram profundamente.
91
Gabriel Perissé

Aprender a escrever e aprender a viver são ações simultâneas. Es-


crevemos no papel, mas também na nossa própria carne. Somos nossos
próprios biógrafos. Temos necessidade de aumentar a nossa afinidade com
a vida, e com as palavras que a corporificam, que a tomam matéria
integrante-da-nossd pessoal consciência
Sou o intérprete e o historiador da minha própria vida. Avalio a
massa dinâmica do meu passado que me impele para a vertigem do futuro.
Estou no leme da minha vida e ao mesmo tempo sou por ela guiado.
Oriento-me de acordo com os meus valores, e... com os meus anti-valores.
Sou livre para dirigir, com maior ou menor dificuldade, os impulsos
condicionantes do meu passado, da minha formação cultural, da minha
herança genética etc. E tudo isso transforma-se em palavra, em palavra
mental - vocal, e depois, se quisermos, em palavra escrita.
O estilo pessoal é o resultado do modo como configuramos a nossa
vida e manifesta-se até no que há de mais físico nos textos, como o número
de palavras, a extensão das frases, dos parágrafos e assim por diante.
Tomemos o parágrafo como exemplo. O parágrafo, em princípio,
existe para dizermos uma coisa de cada vez naquele trecho do texto. Cri-
amos um intervalo entre um parágrafo e outro a fim de facilitar a vida do
leitor, que é limitado e precisa deglutir o que escrevemos pouco a pouco,
pedaço a pedaço.
Internamente, por outro lado, o parágrafo obedece a um ritmo ade-
quado à inteligência, que geralmente apresenta três partes: um enunciado,
um desenvolvimento e um resumo. É o chamado parágrafo lapidar, que foi
esculpido como uma pequena estátua, com proporções adequadas c arestas
bem aparadas.
Mas nenhum parágrafo é igual a outro. Sobretudo, nenhum pará-
grafo de um escritor é igual ao de outro escritor. Também aqui interferem
o talento, a preparação, o gosto, a sensibilidade e a lucidez de cada um.
Por falta de lucidez do seu “escultor”, um parágrafo pode esconder
aquilo de que o autor quereria falar. Penso num parágrafo hermético, que
não fosse uma oferta, um presente para o leitor, que tratasse de três
assuntos ao mesmo tempo, que aludisse demais a muitas coisas, que ge-
rasse confusão, que fosse, enfim, deselegante.
O parágrafo bem escrito é uma pequena obra-prima que exige de-
dicação e simplicidade. E preciso trabalhá-lo no sentido de tirar as palavras
que sobram, as idéias que atravancam, os excessos que desorientam.

92
Gabriel Perissé
que o trabalha.
Pode parecer um tanto misterioso - e de fato é -, mas um conjunto
de parágrafos elegantes, cujo ritmo seja agradável e cuja lógica interna
caminhe sem (demasiados) solavancos, uma série orgânica e organizada de
parágrafos, que constitua depois todo um texto capaz de conquistar o leitor,
nasce naturalmente de uma pessoa que escreva com convicção, com uma
convicção inspiradora.
Salvador Dali repetia sem pestanejar que “a inspiração só se con-
quista pela violência e o duro trabalho de todos os dias”. Assim como só o
bom jogador (de futebol, de xadrez etc.) tem sorte, assim também só o bom
escritor tem inspiração. Só o escritor que pensa muito escreve rápido.
O escritor que se preocupa em pensar com clareza e realismo sabe
intuitivamente que o que normalmente justifica um parágrafo, e o próprio
texto, é a última frase escrita. É muitas vezes aquele fecho oportuno,
sintetizador, que torna visível para o leitor a idéia principal do autor. Um
parágrafo ou um texto sobre a morte que terminasse com essas palavras:
“Há amores feios, mas todas as mortes são belas, gloriosas, angelicais”
(estou voltando a citar Dali) infundiria no leitor uma reverência, uma
alegria, uma clarividência. Mas para chegar a essa formulação final ne-
cessita-se do empenho de arrancá-la do que temos de mais nosso: as nossas
convicções.
Um homem emotivamente sensível não será forçosamente um bom
escritor. Poderá ser um mero superficial. Não bastam as emoções. É preciso
saber dizer as palavras contundentes, carregadas de certeza, de pensa-

93
Ler, Pensar e Escrever

mentos que mergulhem as suas raízes na realidade, e que logo a


seguir provoquem o raciocínio do leitor, remexam na sua memória,
estabeleçam uma adesão (ou uma animada divergência) entre leitor e autor.
Talvez você não concorde com o que Jean Baudrillard disse numa
entrevista: "Não gosto dos ecologistas. A maioria deles tem uma visão
simplista da natureza, uma visão adocicada e pueril. Cometem um erro
fundamental: tratam a natureza como se fosse um sujeito com quem po-
deriam tratar de igual para igual. Mas ela não é sujeito, é objeto. Não há
contrato natural possível, pois um contrato só se faz entre dois sujeitos" (O
Estado de São Paulo, 20.06.1992). De qualquer modo, você tem de
reconhecer que a convicção com que ele fala, seleciona e impulsiona as
suas palavras não nos deixa indiferentes.
As convicções, ao contrário das dúvidas doentiamente cultivadas,
ampliam o vocabulário, enriquecem, imprimem no que se escreve uma
certa agressividade positiva, a tão conhecida ênfase que se opõe à mono-
tonia estreita, sem sal, resignada.
Ter e expressar as suas convicções é o papel do escritor que sempre
espera encontrar um leitor, um ouvinte, um amigo. O meu leitor, a
princípio, poderá ser o professor, o chefe, os componentes de uma banca
examinadora, os colegas do trabalho, a mulher, o marido, os filhos, o
editor... Mais amplamente, serão os leitores de um jornal, os leitores de um
país, você e a humanidade inteira.
Sejam muitos ou poucos, os meus leitores devem ser conquistados.
Devo fazê-los meus amigos, ainda que comigo discordem.
Como conquistar uma amizade? É uma arte requintada. É toda a
construção de um estilo solidário, simpático, inesquecível, provocador,
contagiante. E compreensivo. Isto é: por mais convicto que eu esteja devo
deixar sempre uma porta aberta para as pessoas que pensam de modo
diferente. Viva a liberdade! Essa porta aberta é um certo “tirar a
importância” das palavras que, no entanto, têm toda a importância do
mundo...
O autor deve estar disposto a defender as suas idéias com unhas e
dentes, mas com um sorriso nos lábios. E (por que não?) sempre disposto a
repensar os seus valores e conceitos se a realidade falar mais alto.
94
p

Gabriel Perisiè
Escrever, seja o que for, é de algum modo escrever uma carta pes-
soal que quer convencer, que quer ser guardada e relida. E que, por isso
mesmo, traz consigo um leve nervosismo, próprio de qualquer pessoa que
está empenhada em dizer as suas verdades.
Aristóteles afirmava que o modo de começar a convencer alguém é
conquistar a sua simpatia. Dizer verdades (mesmo que parciais) requer a
habilidade de tomá-las amáveis. Persuadir (mesmo de uma verdade
objetiva verificadíssima) exige também a capacidade de criar um clima
agradável, propício à concordância. Como diz um ditado oriental, “quem
não sabe sorrir não deve abrir uma loja”. Quem, por exemplo, estiver
convencido de que uma cópia xerox de uma cópia xerox fica melhor do
que uma cópia xerox feita de um original (se é que isso é verdade) deve
estar preparado para “vender” a sua verdade com todos os argumentos, os
racionais, sim, mas também com os argumentos que captem a boa vontade
do leitor.
Escrever com bom humor, com leveza, trazendo exemplos, citações
interessantes, imagens atraentes, sem sobrecarregar o leitor, sem impor
nada, é o melhor modo de convencê-lo. O leitor é, em princípio, aquela
pessoa que espera de nós um pouco de felicidade, de surpresa, de
inteligência, e o nosso papel, como aprendizes de escritores, é
corresponder a essa expectativa.
Quem é o meu leitor? O meu leitor é aquela pessoa que merece ser
bem tratada, e que merece ler o que tenho de mais pessoal, as minhas
convicções e os meus sentimentos, a minha dor e o meu protesto, a minha
solidão e a minha alegria.
Escrever é dar-se no papel aos outros, dar o melhor de si, o melhor
possível. Porque o meu leitor, ainda que seja um só, é o MEU LEITOR,
está “perdendo” o seu tempo comigo, e não tenho o direito de enganá-lo ou
decepcioná-lo. Escrever acarreta esta responsabilidade, que por sua vez
gera o grande desejo de nunca satisfazer-se com o grau de perfeição a que
se chegou.
Na verdade, espero eu mesmo ter conseguido fazer neste livro so-
bre LER, PENSAR e ESCREVER o que nele recomendo. Ter conseguido
que você, agora, queira ler mais, pensar melhor e escrever continuamente.
Para ser melhor. Esta será a minha única recompensa.
Notas
95
(1) Em “Dezembro sem Clarice”, entrevista a Affonso Romano de
Sant’Anna e Marina Colasanti. Revista Escrita, ano III, n.27,1978,
pág. 24.
(2) Idem, pág. 21.
(3) “Escrever e datilografar”, em Crônicas. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1980,314-315.].
(4) Carlos Drummond de Andrade, em entrevista à Leia, agosto de 1985,
n. 82, pág. 23.
(5) Leia, outubro de~Hfô57H7M, pag. u. '
(6) Idem, pág. 14.
(7) Idem.
(8) Idem.
(9) El arte. Buenos Aires, El Ateneo, 1943, pág. 22.
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