rofessor universitário,
poeta, editor e tradutor,
Gabriel Perissé apresenta-nos
suas reflexões e experiências
no trato com as palavras.
ISBN 85-86127-77-9
9 78 5 8 S 1 2 77 7
9
nL^V’ J -
■u
6
I
0 Lugar da leitura
Ler é bom?
7
* r frase do poeta gaúcho Mário P e n s a r e E“são
L e r , Quintana, s c r e vos
e r que aprenderam a ler e não
lêem”, e completo: são os que aprenderam a escrever e não escrevem; são
os que pensam que pensam, e não pensam tanto.
Todos os professores trabalham com a maior boa vontade, sem
dúvida, pois ansiamos fazer entender aos jovens que o hábito de ler é meio
caminho andado para uma pessoa ser intelectual e socialmente saudável e,
em todas as áreas, um profissional completo. O fato, no entanto, é que
muitos dos que alcançam e concluem o curso superior continuam alheios
ou até avessos aos livros. Para o resto da vida, só lerão, “de vez em
quando”: manuais técnicos, o caderno de esportes do jornal, a revista
mensal ilustrada, qualquer coisa em que o interesse imediato pelo assunto
supere a barreira de uma incapacidade quase física para acompanhar
textos exigentes e substanciais.
Ou será que nós, professores, e pais, e jornalistas, e promotores da
cultura, não os motivamos realmente a ler?
De qualquer forma, não terá sentido forçar alguém a fazer algo,
mesmo que seja algo maravilhoso e fundamental para a sua felicidade. O
que posso e devo fazer é expor à pessoa os motivos racionais em que se
baseiam meus conselhos, motivos que, se quiser, ela transformará em
idéias claras, idéias que, graças a uma vontade firme, se traduzirão em
ações responsáveis, e essas, finalmente, num hábito arraigado.
Por que vale a pena adquirir o hábito de ler? Uma primeira resposta
é que os livros fornecem bastante matéria intelectual e emocional. As
idéias e os sentimentos não caem do céu nem brotam no jardim. Ler é
alimentar-se espiritualmente, é adquirir aquela inquietação interior - bem
como uma série de convicções a indescritível riqueza íntima de quem está
atento à vida, de quem carrega consigo a vontade de conhecer e amar
infinitamente.
Mas desde agora faço uma ressalva. Se os livros são importantís-
simos para a aquisição de uma cultura humanista e de um “estofo”, não
são os únicos meios nem devem ser encarados como A Solução Exclusiva.
É preciso, entre outras coisas, que convivamos com pessoas que saibam
conversar. “Papear” sobre os mil e um temas da vida com colegas e
amigos razoavelmente cultos e que utilizem bem da linguagem exercita-
nos o raciocínio e potência a nossa capacidade de entender e, como con
8
seqüência da reciprocidade Gintrínseca
a b r i e l P e rnuma
i s s é conversa, de fazer-nos en-
tender.
O cinema é outra possibilidade de crescimento cultural. Filmes
como O feitiço do tempo (Groundhog Day), que reflete, à Frank Capra,
sobre o valor de 24 horas bem vividas; O jardim secreto da cineasta polo-
nesa Agnieszka Holland, delicadíssima fábula sobre o mundo infantil; A
Bela e a Fera da Walt Disney, um desenho animado impecável; A festa de
Babette, filme franco-dinamarquês sobre a felicidade humana; ou como
Tempos de glória (Glory), que nos fala da nobreza e do compromisso a um
ideal - são todos obras-primas que nos aprimoram enquanto seres
humanos.
Contudo, as redações do vestibular e os textos, documentos e cartas
nas relações sociais e de trabalho mostram-nos à saciedade que há muito o
que consertar, e por todos os lados. Multidões de estudantes e profissionais
sentem-se perplexos na hora de redigir, ou de falarem público, sobre um
assunto acessível. E sofrem bastante. Tenho visto de perto este sofrimento,
que se torna crônico quando nós, professores (tantas vezes igualmente
submetidos a injustiças que nos desanimam), reclamamos da sociedade
consumista, criticamos a subcultura reinante, ameaçamos os alunos
preguiçosos, anatematizamos as telenovelas (no que, aliás, estamos
cobertos de razão).
Bom, digamos isso ou aquilo, a realidade é que não temos a fórmula
mágica de como sair desse beco sem saída, do qual só os próprios
interessados poderão escapar, se tomarem a decisão séria de investir no
auto-aperfeiçoamento intelectual, na auto-educação, recorrendo, sobretudo
(e agora volto a enfatizar a nossa questão), a uma leitura constante e bem
assimilada.
Às vezes penso que o melhor mesmo seria proibir expressamente
que as pessoas lessem, em primeiro lugar os jovens, o que levaria todos
nós a ler por conta própria. Porque parece que o proibido sempre atraiu o
ser humano, e, desde o começo do mundo, foi o estopim de muitas curi-
osidades. Contou um humorista que Deus, na sua primeira conversa com
Adão, disse-lhe: “Meu filho, você pode comer os frutos de todas as árvores
do Éden, só de uma delas é que é proibido”. E imediatamente Adão se
agitou: “Proibido? Proibido? Onde está, onde?”
9
Ler, Pensar e Escrever
rado” faz rejeitar a leitura como uma lamentável perda de tempo. São
pessoas que preferem viver uma aventura real a ler uma inventada, e,
adeptos convictos da linha praticista, aprendem vendo ou ouvindo mais do
que lendo. A sua decorrente dificuldade para escrever é muitas vezes
compensada pela “ginga”, pela simpatia ou por uma habilidade puramente
técnica. Enfim, embora isso não justifique o desprezo aos livros, felizmente
nem tudo no mundo dependerá de conhecermos Machado de Assis ou La
Rochefoucauld.
Quem vê a leitura como um meio de conhecimento real do mundo e
de si mesmo, sabe, experimenta na came que a leitura bem feita deflagra
um complexo exercício interior de difícil descrição. Ao ler, ponho em ação
os sentimentos, a vontade, a memória, a imaginação, a inteligência. Nasce
dentro de mim uma agitação bem organizada, como a dos formigueiros e
das colméias. As palavras são verdadeiras embaixatrizes da realidade.
Fisicamente distante de um vulcão, trago-o para perto, para dentro de mim
quando leio a palavra “vulcão”. Aparentemente absorto do mundo e
distante de todos, o leitor, na verdade, está fugindo em direção ao mundo,
está se unindo a todos.
A fome de conhecer e de amar através da leitura manifesta-se cla-
ramente quando recorremos ao dicionário, o “pai dos inteligentes”, a fim de
descobrir ou ampliar a definição de palavras desconhecidas e, portanto,
abraçar novas facetas da realidade e da humanidade, abraçá-las e deixar
que elas nos abracem.
Mas para abraçar o máximo de realidades veiculadas pelas palavras
é necessário um esforço adicional: concentrar-se.
Uma leitura dispersiva, esta sim é uma pura perda de tempo. Con-
centrar-se pressupõe abrir o livro com a disposição de dedicar-se à leitura.
Dizem, em tom de brincadeira, que D. Pedro II lia muito bem
porque o fazia com os cinco sentidos. Com a vista, naturalmente; com o
12
Ler, Pensor e Escrever
intelectuais.
A leitura consciente, empenhada, reflexiva, desperta a vida do li-
vro, aciona toda aquela fecundidade que o autor nos legou ao concluir o
seu trabalho e que permanece ali, nas páginas impressas, como uma Bela
Adormecida a aguardar o beijo revitalizador. Como definiu um teórico da
estética, a leitura autêntica tira “a obra da sua aparente imobilidade para
devolver-lhe a sua pulsação”.2 Ao mesmo tempo que revitalizamos o
livro, este nos revitaliza também!
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Ler, Pensar e Escrever
16
O vulcão interior
—p --------------------------------------------------------------------------------------------------------
Ji. ara compreender melhor um livro lenho uma sugestão muito
simples: ler duas vezes.
Pode parecer quase uma injúria recomendar a alguém que “gaste” o
seu contado e precioso tempo relendo um livro (ou bons trechos dele), mas
reitero que não há outro caminho, caso se queira realmente ler em
profundidade.
Guimarães Rosa falava dos “analfabetos para as entrelinhas”, que,
acrescento, geralmente andam à cata de facilidades, de resumos, de téc-
nicas milagrosas, de truques infalíveis. Não raramente são adeptos da
leitura dinâmica, atalho pelo qual esperam devorar e ainda por cima en-
tender num piscar de olhos um livro de duzentas, trezentas páginas.
Gabriel Perissé
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Gabriel Perissé
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Ler, Pensar e Escrever
psicólogos etc.
Neste sentido, vale ainda uma observação. Talvez, nas nossas bus-
cas, deparemos com um livro difícil que, se não for por inaptidão do autor
(ou por incompetência do tradutor, em caso de livro estrangeiro), será
difícil exatamente por ser superior a nós. E não há nisso nada de mau. Se
começo a ler e não consigo terminar um livro como Presenças reais, de
George Steiner, ou A Educação sentimental, de Julián Marías, o máximo
que pode acontecer é eu reconhecer honestamente que ainda não tenho
cacife para entendê-los de todo.
Tal descoberta já representa, em si mesma, um valioso passo de
sabedoria. Não foi uma tentativa inútil. Não entender também pode ser
uma boa lição. O que, sim, ajuda é procurar aqueles autores que são apenas
um pouco superiores a nós, de modo que progridamos sem problemas, seja
na leitura de romances, seja na de aforismos ou ensaios.
Afora a preocupação de ler obras adequadas à nossa situação exis-
tencial (etária, psicológica, cultural) e de ler bem, concentrando-se, para
aprender ou para se distrair, sempre com prazer (ou pelo menos com o
prazer de quem cumpre um dever) - afora essa preocupação, devemos
esquecer o resto. Refiro-me especialmente àquele dogma, por ninguém
definido mas por muitos observado, de que temos de ler um livro de cada
vez, de cabo a rabo, nunca, jamais pulando páginas, e muito menos desis-
tindo da leitura. Conheci inúmeros seguidores dessa lei que, entusiasmados
marinheiros de primeira viagem, embarcaram num Os Buddenbrook, de
Thomas Mann, ou num A cidadela, de Saint-Éxupéry, e cinqüenta páginas
depois já estavam encalhados para sempre, sem ânimo de ir em frente e
sem coragem de abandonar o navio.
Ora, ler um livro não é casar-se. (Como casar-se não é como ler um
livro...) Ninguém precisa levar uma leitura até o fim, embora seja de um
clássico, ou até por isso mesmo, uma vez que os clássicos não são mero
jornal, e mais vale ler e entender duas linhas de D. Quixote a ler (e às
vezes nem entender) todas as notícias de um ano sobre política ou
economia. Também se pode pular as páginas do livro que for, quantas se
quiser, c ler primeiro o final do romance, enfim: liberdade!
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Ler, Penior e Escrever
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Gabriel Ferisse
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
24
.......... ... -mat que limpe os peixes. ------------------- -------------------------
Eu não. A qualquer hora da noite me
levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e
salgar.
Ê ião bom, só a gente sozinhos na
cozinha, de vez em quando os cotovelos
se esbarram, ele fala coisas como "este
foi difícil"
“prateou no ar dando rabanadas" e faz o
gesio com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira
vez atravessa a cozinha como um rio
profundo.
Por fun, os peixes na travessa, vamos
dormir.
Coisas prateadas espocam: somos noivo e
noiva.5
25
temporâneos), conseguirei adquirir esta sabedoria: saber o que realmente
necessito saber. Ler, Pensar e Escrever
27
Cobriel Perissé
29
com harmonia, coerência e clareza.
Usando um neologismo de Guimarães Rosa, o leitor responsável
espera encontrar nos livros o “verivérbio”, o verbo verdadeiro, a palavra
autêntica que lhe transmita a herança da experiência vital de homens e
mulheres que buscaram e buscam os valores e critérios humanizantes, na
ficção, na poesia, na história, no pensamento, e por aí vai. _____________
Sei que se trata de um tema delicado, mas o fato é que não poucas
vezes perdemos o nosso precioso tempo com livros fracos e confusos que,
conseqüentemente, nos enfraquecem como leitores e nos confundem como
seres humanos. Porque a leitura realmente influencia. Não sejamos
simplórios: existem influências culturais que nos diminuem.
Lembro-me do recém-falecido escritor Emil M. Cioran, incorrigível
pessimista, que escolhia para as suas obras títulos como: Nos cumes do
desespero, A tentação de existir e Da inconveniência de ter nascido.
E, de vez em quando, como era de prever, alguma pessoa lhe escrevia
dizendo que, graças a algum dos seus livros, resolvera suicidar-se. Cioran
então se inquietava, apressando-se a escrever uma cartà ao admirador para
explicar-lhe que a vida sem dúvida não serve para nada, mas que apesar
disso o leitor não precisava ser tão coerente assim...
Ao invés de sair com uma tocha acesa à procura de livros a serem
queimados, penso que muito mais produtivo é promover os livros que têm
demonstrado enobrecer as pessoas e reformar (na medida do possível) as
sociedades. Assim, além de obras a que já aludi e ainda vou aludir ao longo
deste livro, indico-lhes agora uma lista pessoal de títulos (não só literários
e tanto antigos como atuais), com brevíssimos comentários e, quando eu
conhecer, com o nome da editora que facilite a localização.
Insisto em que é uma lista pessoal, porque alguém poderia perceber
a ausência indesculpável de algum autor ou título que ainda não li ou que
preferi não recomendar. Por outro lado, não incluo dezenas de nomes,
mesmo consagrados, pelo simples motivo de que outros foram lembrados
no seu lugar, ou faltou espaço para acrescentá-los.
30
Ler, Pensar e Escrever
Mortimer Adler. Como ler um livro. Agir. (Há uma reedição pela
Guanabara.)
Inspirador, vale como companheiro para qualquer leitor.
Daniel Pennac. Como um romance. Rocco.
Ajuda quem quer aprender a ler e a quem quer motivar outros a ler.
Othon M. Garcia. Comunicação em prosa moderna. FGV.
O que há de melhor atualmente para quem quer aprender a escrever.
Edmundo H. Dreher. Saber pensar. GRD/Editora Universitária
Champagnat.
. Existe um filósofo dentro de você. Comece a conhecê-lo.
Miguel de Cervantes. D. Quixote.
Etemo. As aventuras inesquecíveis de dois amigos tão diferentes
entre si. Indicado para os sonhadores, que se tomarão mais realistas,
e para os realistas, que se tomarão mais sonhadores.
William Shakespeare. Ricardo III, Henrique V, Romeu e Julieta e
Hamlet.
É difícil ler teatro. Mas com um pouco de atenção para identificar
que personagens estão falando, entra-se em contato com uma
poderosa força criadora.
Sófocles. Prometeu acorrentado, Édipo-rei eAntígona.
Insubstituíveis, imperdíveis, definitivas.
Molière. O misantropo.
Genialidade em ação.
Jonatham Swift. As viagens de Gulliver.
Através de uma história fantástica, o autor capta características
marcantes da natureza humana. Indicado para os que não gostam de
advogados.
- J. R. Tolkien. O senhor dos anéis. Martins Fontes.
ler, Pensot e Escrever
Gabriel Perissé
e por isso requerem leitores bem preparados.
- Leon Tolstoi. A morte de Ivan Illitch.
Emocionante história de um homem que se vê diante da doença, da
solidão e da morte.
- Evelyn Waugh. Furo!. Cia das Letras.
Com humor sutil, retrata o mundo jornalístico nos seus bastidores.
- Michael Ende. História sem fim e Manu, a menina que sabia ouvir.
Duas histórias cativantes de um autor que soube entrar pela porta da
fantasia.
- Alexandre Manzoni. Os noivos.
Clássico da literatura italiana.
- Saint-Exupéry. O pequeno príncipe. Agir.
Ainda, sempre, para crianças, e sobretudo para adultos.
- Moris West. As sandálias do pescador.
Uma história bem contada. Nada mais, mas também nada menos.
- Dino Buzzati. O deserto dos tártaros.
O Kafka italiano em plena forma. Para quem não tem medo de
decepcionar-se.
- Kafka. O castelo, Metamorfose e O processo.
Para entender quando alguém diz que este mundo tornou-se
kafkiano.
- Oscar Wilde. O retrato de Dorian Gray. Abril Cultural.
O aterrorizante trajeto existencial de um homem.
- George Orwell. 1984.
Uma história que repete e prenuncia outras histórias. Para quem
ama a liberdade.
- Ariano Suassuna. O auto da compadecida.
Vale a pena ler. E reler.
- Mário Palmério. Vila dos Confins e Chapadão do Bugre.
Duas obras imperdíveis, escritas com paixão.
- João Guimarães Rosa. Sagarana e Grande sertão: veredas. Nova
Fronteira.
Criador audacioso da literatura brasileira, cuja forma literária
33
Gobriel Perissé
Saraiva.
Observa do ponto de vista-jurídico o fenômeno que mais
escandalizou na história.
- J. Huizinga. O declínio da Idade Média. Verbo.
Obra única sobre este período histórico.
- Paul Johnson. Tempos modernos. Instituto Liberal.
Análise da realidade que vivemos e não percebemos. Indicado para
os que se sentem alienados. (
Notas
(1) Mortimer J. Adler. A arte de ler. Rio de Janeiro, Agir, pág. 54.
(2) Luigi Pareyson. Os problemas da estética. São Paulo, Martins Fontes,
1984, pág. 155.
(3) Cf. Suzi Frankl Sperber. Caos e cosmos. Leituras de Guimarães Rosa.
São Paulo, Duas Cidades, 1976.
1
(4) 14 cd.. Rio de Janeiro, José Olympio, 1980. págs. 20 e 21.
(5) Em Poesia reunida. 31 ed., São Paulo, Siciliano, 1991, pág. 252.
(6) 2* cd., São Paulo. Best Sellcr. 1989.
38
II
A formação intelectual
O ponto de integração
39.
Ler, Pensar e Escrever
saber tudo. E quem pensa que sabe tudo... nada sabe. Por muito que sai-
bamos, e por muitas verdades verdadeiras que conheçamos, nunca sabe-
mos tudo. Nem aquilo que pensamos saber é suficiente, porque a realidade
é polifacética, many-sided, surpreendente, dinâmica, complexa. Sempre
reserva recantos e até mesmo continentes desconhecidos.
Perguntar é um sinal de otimismo. É a esperança de ouvir respostas
certas. Se eu perguntar, a alguém que saiba responder, com quantos anos
morreu George Washington, saberei que com 67 anos. Se eu perguntar, a
um bom astrônomo, em que data foi descoberto o planeta Urano, saberei
que em 13 de março de 1781. Quem pergunta aprende, rapta Nãn é à toa,
talvez, que o ponto de interrogação assemelha-se a um anzol: Parece
simbolizar este anseio de fisgar uma verdade palpitante.
Carlos Drummond de Andrade, num artigo escrito para o Jornal do
Brasil em 20 de agosto de 1973, fez uma pequena antologia de perguntas
que têm perseguido o homem através dos séculos. Seleciono algumas, com
os seus respectivos autores:
Sêneca: Porque razão ninguém confessa seus próprios vícios?
Pilatos: Que é a verdade?
São Bernardo: Que te aproveitam as coisas que escreveste,
leste ou ouviste, se não leres e entenderes a ti mesmo?
Machado de Assis: Por que não nasci eu um simples vaga-
lume?
Gauguin: De onde vimos, quem somos, para onde vamos?
Rilke: Afinal, se eu gritasse, quem entre as coortes dos anjos
me escutaria?
Perguntar é um excelente exercício intelectual. Para uma pessoa
recuperar-se de uma paralisia não é recomendável que repouse, mas que
aprenda a mover-se de novo. Para pensar, precisamos mover-nos intelec-
tualmente, sair de nós mesmos, investigar a realidade.
Escrito num tapume, li certa vez: “Se você está tranqüilo é porque
está mal informado”. O filósofo anônimo tinha razão. Se não sentimos
inquietações intelectuais, curiosidade, se estamos conformados, se não
temos dúvidas a resolver, então somos vítimas de uma tranqüilidade pato-
40
Gobnel Pemsê
ler, Penjor e Estrever
44
Ler, Pensor e Estrever
45
Ler, Pensar e Escrever
numa das suas raras intuições metafísicas, dizia que a humanidade só faz a
si mesma perguntas que considera capaz de ver respondidas. E, de fato,
cada um encontra as respostas, os conhecimentos, a sabedoria, na medida
em que ousa perguntar.
Perguntas sérias, decisivas. Perguntas sobre o que significam pa-
lavras-chaves da vida e da convivência: beleza, liberdade, amor, verdade,
história, vício, Deus, sociedade, razão, justiça...
Não precisamos desesperar-nos diante do excesso de informações.
Não há urgência de estarmos informados sobre tudo. É impossível, e
desgastante, estar “por dentro” de todos os principais acontecimentos
locais, nacionais, internacionais; econômicos e políticos; esportivos, ci-
entíficos e artísticos. É impossível e para essa impossibilidade não há
solução. E o que não tem solução solucionado está.
Proponho algo bem mais viável: conhecer a realidade investigando
até o fundo as palavras disponíveis. Imediatamente lembraremos o
empoeirado dicionário, o “pai dos inteligentes”. A ele iremos recorrer para
iniciar um esforço de germinação e de concatenação dos conceitos. O
dicionário oferece apenas uma primeira abordagem das palavras. O
trabalho de aprofundamento e de compreensão será prioritariamente nosso.
Retomando um pouco mais o tema da leitura, volto a insistir: ler já
é pensar. As palavras vêm carregadas de insinuações, de sugestões, de
realidade. Quem lê e compreende o que lê descobre a realidade. Não é à
toa que o fundador da revista multinacional Playboy tenha enviado um dia
aos seus editores a “democrática” norma: “Na Playboy é proibido falar de
crianças, de prisões, de desgraças, de velhos, de doenças, mas
45
acima de tudo é rigorosamente proibido falar da morte”. Só nesse expurgo
vocabular, a revista descartou quase tudo o que existe, criando para o seu
leitor um mundo totalmente artificial. O seu aparente exibicionismo
esconde, arbitrariamente, a realidade nua c crua.
Para estarmos atualizados precisamos 1er. Ler o jornal? Sim, mas
com cuidado. A pressa em informar faz do jornalista muitas vezes um
comunicador de verdades mutiladas.
Sem abandonar os jornais, um bom critério para selecionar os temas
sempre atuais, e sempre reais, é descobrir os temas inatuais, os que sempre
interessaram e sempre interessam. “ Youcatt find ali lhe new ideas tn lhe
old books”, repetia Chesterton. Você poderá encontrar todas as novas
Ler, Pensar e Escrever
48
Ler, Pensar e Escrever
certas. É comum que uma conversa seja ocasião para que descubramos
aquilo que antes já pensávamos.
Inegavelmente, cada um tem e terá o seu ponto de vista. E diferen-
tes pontos de vista, quando defrontados, podem e com muita freqüência
geram divergências, incompreensões, mal-entendidos. E é mais proble-
mático ainda conversar sobre os assuntos que, afinal, são os que realmente
valem a pena. Há sempre o risco de que uma visão parcial das coisas acabe
deturpando a realidade, e o risco ainda mais terrível de que, no auge de
uma discussão, percamos de vista o nosso próprio ponto de vista!
Por outro lado, qualquer ponto de vista é limitado, é também um
ponto de cegueira. Ou seja: não vemos certos aspectos da realidade quan-
do só vemos outros aspectos da mesma realidade. Talvez eu não veja a
beleza da matemática porque só tenho olhos para a beleza da literatura.
Talvez eu não veja a beleza do basquetebol porque só consigo ver a beleza
da esgrima.
50
corretos da mesma palavra em cada um dos idiomas.
Pois é, contradições existem para serem esclarecidas. Mas para que
esse importantíssimo ponto fique ainda mais patente, vamos comentá- lo no
bloco seguinte.
Quem sabe o quê?
ma coisa não pode ser algo e ao mesmo tempo não ser esse
algo sob um mesmo aspecto. Este é o enunciado do princípio da não-
contradição, que se baseia no mais imediato e simples senso comum.
Basear-se no senso comum é a característica daquele grupo de verdades
inquestionáveis como “a linha reta não é curva”, “o todo é maior do que a
parte”, “todas as pessoas vão morrer um dia”, “do nada nada vem” ou
“ninguém dá aquilo que não tem” - verdades tão óbvias que nem nos
damos ao trabalho de formulá-las, e com as quais vivemos, e com as quais
contamos sempre em tudo o que fazemos.
Certamente, podemos negar essas obviedades. Num dado momento
posso dizer que um hipopótomo é um rato, que a lua é feita de queijo ou
que eu não sou eu. Posso fazê-lo no sentido de que posso tudo, mesmo
dizer loucuras, embora, para os mais realistas, o único louco autentica-
mente louco seja aquele que rasga dinheiro. Também poderei dizer essas
“loucuras” se eu for poeta, mas da poesia falarei mais adiante, e veremos
que ela é, sim, uma demonstração de sanidade mental.
Pois bem. Aqueles truísmos, óbvios ululantes, estão à nossa mão.
Não é tão difícil assim conhecer verdades. Pelo menos para quem se
encontra lúcido. Não é difícil aceitar que “nada existe na inteligência que
não tenha estado antes nos sentidos, exceto a própria inteligência”, como
definia o filósofo e matemático Leibniz. E, partindo dessa base de verda-
des que todos podem ver e aceitar, é possível ir atingindo novas verdades...
Ah, mas é aí que explodem os problemas e os dilemas. À medida
que continuamos a fazer as nossas perguntas e pesquisas, vamos detec-
tando, e especialmente em questões fundamentais, que nem todo o mundo
concorda que uma coisa é o que o outro disse que é. Surgem inteipre-
tações variadas e opiniões discrepantes. Surgem definições diferentes para
o que é certo e errado, belo e feio, justo e injusto, verdadeiro e falso.
Não concordo com quem diz, neste caso, que devemos deixar cada
51
Gobtiel Perissé
um “na sua”: cada macaco no seu galho. Ao contrário. Cada um deve “sair
da sua”. Cada um deve tentar conhecer a árvore inteira. Com mais trabalho
e pertinácia, tenho certeza de que muitas vezes acabaremos por constatar
que duas definições sobre uma mesma coisa (depois, é claro, de algumas
aparadelas) eram complementares. Que duas verdades inicial-
e vermelha e
dizer que não, que a mesma bandeira é branca, tomam-se uma só verdade,
mais ampla e mais perfeita, quando compreendemos que é em parte branca
e em parte vermelha.
Evidentemente, nem todas as questões são tão fáceis de solucionar
como no caso da bandeira japonesa. Os temas radicais da vida, que
atormentam e perseguem um ser humano durante a existência, são justa-
mente esses que mais discussões provocam. Não desprezemos, além do
mais, esse grau maior ou menor de miopia intelectual com que todos nós
nascemos e em virtude do qual ninguém pode considerar-se um vidente
infalível.
No entanto, baseando-me naquele otimismo de que falava atrás,
penso que é pelo fato mesmo de serem mais radicais e vitais que esses
temas precisam ser discutidos até que se chegue a algumas conclusões
satisfatórias.
As coisas são o que são, embora seja difícil saber exatamente o que
são. Mas o que é mais difícil é também, nesta altura, mais necessário. Este
é, em pouquíssimas palavras, o drama do pensamento. Se quisermos pensar
mais teremos de viver este drama como protagonistas que querem
perguntar tudo.
Se você chegou até este ponto do livro é porque, imagino, concorda
com o fato de que o nosso destino consiste em fazer perguntas, e perguntas
vitais, e de preferência perguntas fundamentais às pessoas certas, capazes
de dar respostas corretas ou, pelo menos, orientações adequadas.
E aqui reside o elemento principal do drama do pensamento: Quem
é capaz de dar-me respostas verdadeiras? Quem sabe as verdades, matéria-
prima indispensável para podermos continuar pensando? Quem poderá
contagiar-me com as verdades que, estando realmente de acordo com a
realidade, provocam um prazer intelectual indescritível? Sim, o
pensamento só funciona bem quando amamos as verdades. E de verdades
conhecidas, partiremos em busca de outras verdades ainda desconhecidas.
Quem pensa que pensar é apenas ficar pensando nas próprias dúvidas,
52
Gobtiel Perissé
53
Ler, Pensor e Escrever
56
Gabriel Perissè
57
ler, fensat e Escrever
religiosos.
58
o
A filosofia e a
60
Gabriel Perissè
da teoria.
“Sejamos práticos, façamos uma teoria", costumava dizer-me um
professor de Metafísica. Se ocorrem teorias doentias, que afastam da re-
alidade, que até negam a realidade, que negam o próprio pensamento, que
negam o próprio ser humano, a culpa logicamente não é do pensamento em
si, mas do ilustre pensador.
Prefiro pensar que serei legitimamente prático se souber pensar com
acerto e decidir com coerência a ação que devo realizar. Serei sau-
davelmente teórico se agir de acordo com a realidade e pensá-la de tal
modo que encontre as verdades da vida.
A prática é um “saber fazer”, mas a teoria é um “saber saber fazer”.
É a consciência. É o domínio intelectual. É possuir formação intelectual. É
interiorizar critérios de ação justa. É conhecer as leis constitutivas da
realidade.
Volto a insistir naquele princípio: nullus dat quod non habet. Nin-
guém dá aquilo que não tem. Ninguém poderá falar bem se não souber o
que vai dizer. Ninguém viverá bem se não souber o que é viver. Ninguém
poderá escrever bem se não tiver pensado coisas “escrevíveis”.
Quem pensa mais, quem constrói teorias válidas, é mais sensível à
realidade, e mais prático.
Existem muitas teorias incorretas e inviáveis? Sim, mas não deve-
mos chamá-las de teorias. Não são teorias na medida em que não podem
ser postas em prática. Uma teoria impraticável não é teoria, é um equívoco.
Quem pensa que 2 mais 2 é igual a 5 não será um bom comerciante. É até
fácil montar teorias fajutas, mas o que interessa é possuir teorias- práticas.
Em suma, há pessoas que alimentam uma falsa teoria a respeito do
que seja a teoria. E, por isso, desprezam o próprio pensamento, des-
prezando a filosofia, desprezando a sua própria capacidade de pensar.
Desprezando, sem saber, a si mesmas. Talvez desprezem a teoria porque
imaginam que ela seja um fim em si mesma, que teorizar seria pensar
infinitamente, dando voltas sobre o próprio pensamento e o próprio um-
bigo até o desaparecimento do próprio pensar, e do umbigo. Mas não é
assim: teorizar é, na sua essência, pensar no núcleo das coisas reais bara
poder agir com sensatez e equilíbrio. v
Filosoficamente falando, teorizar é tomar decisões intelectuais que
orientarão o nosso próprio pensamento e a nossa própria conduta. E talvez
a mais importante pergunta, a pergunta que nos levará a tomar essa
61
ler, Pensar e Escrever
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Gabriel Perissé
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Ler, Pensnr e Escrever
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kaWve\ íetmt
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Gobriel Perissé
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ter, Pensor e Escrever
tudo!”
A lógica poética nas suas mais altas realizações abre o homem
pnrn a cita própria transgandânr.ia pnrnn-<HrfyrWifl qiwluntn piiu-inrtr-
mos. A imensa curiosidade que Jorge Amado sente, e não deveria sufocar,
é um sinal dessa insaciabilidade que, por sua vez, indica a existência, pelo
menos hipotética, de que existe uma fonte que a pode saciar. A poesia
vislumbra essa fonte.
Um homem sem poesia está vazio. Pode estar inchado de mil in-
formações entrelaçadas, de idéias mais ou menos coerentes, mas está
vazio, está cheio desse “vazio que inchou por estar vazio”, como escreve
João Cabral de Melo Neto num poema. O vazio inchado dos pragmatistas,
dos niilistas, dos relativistas, dos materialistas, dos pessimistas, que no
fundo descrêem e desvalorizam o que há de mais fundamental na vida, a
própria vida na sua gratuidade, na sua beleza e na sua dramaticidade.
“Viver é depor”, dizia o poeta Carlos Nejar, definindo sintetica-
mente o que a vida é, entre outras infinitas coisas: um julgamento. Somos
julgados pela própria vida, que nos comunica a mensagem secreta, o
sentido misterioso, o inexplicável que tudo explica.
Toda a pessoa pode (e deve, no meu entender) abrir-se para a po-
esia, que é a manifestação da linguagem no seu ritmo essencial, cativante,
inquietante, insinuante, musical, plurissignifícativo, revelador,
convocador, provocador. Manifestação da e através da linguagem de uma
presença real, de uma Palavra, de uma Resposta.
Em princípio, poesia jamais cansa. Jamais cansa quando é autên-
tica, já que existe muita poesia falsa. Aliás, é pelo fato mesmo de ser a
intuição poética algo tão cativante que surgem muitas falsificações. Só se
falsifica o que tem valor. Só vale a pena tentar falsificar obras de um
Picasso ou dc um Leonardo da Vinci.
68
Gabriel Périsse
Tão simples, tão rico e tão eterno. Diz tudo, embora ainda deixe
tudo por dizer.
0 poeta intimimanente pergunta e capta uma centelha da Resposta.
Lúcio Cardoso registrava no seu diário: “Escrevo - e minha mão segue
quase automaticamente as linhas do papel. Escrevo - e meu coração pulsa.
Por que escrevo? Infindável é o número de vezes que já fiz a mesma
pergunta e sempre encontrei a mesma resposta. Escrevo apenas porque em
mim alguma coisa não quer morrer e grita pela sobrevivência”. 2
Quem vive num clima de poesia - que não gera necessariamente
uma anomalia sócio-política, nem deriva de ou provoca um estado de
loucura -, quem vive num clima de poesia verdadeira tem, isso sim, um
certo “grau de loucura” que, examinado com atenção, é lucidez e sensatez.
O homem apoético, o homem incapaz de ver o invisível (no visível)
acostuma-se com tudo. Uma criança nasceu? Normal. Alguém morreu?
Natural. Não tem a flexibilidade do espanto, não se surpreende com o que
há de misterioso no que aparenta ser mais rotineiro.
Para penetrar nesse clima poético precisamos conviver com os
poetas. Arnaldo Antunes, que ainda não é um poeta genial, mas tem um
trabalho interessante, publicou no seu Psia1 (livro sem os números das
páginas e sem índice) um poema de perguntas e respostas das quais esco-
lho algumas:
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ler, Pensar e Escrever
Notas
(1) A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, pág.
575 e segs.
(2) 07.05.1950 - Diário completo. Rio de Janeiro, José Olympio/INL,
1970.
(3) 2a edição, São Paulo, Editora Expressão, 1987.
70
III
Escrever para escrever
A técnica pessoal
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ler, Pensor e Escrever
mesmo a norma de escrever apenas 200 palavras por dia, e assim con-
seguiu escrever mais de 30 livros na vida. Alberto Moravia, italiano, desde
os 16 anos de idade decidiu que escreveria todas as manhãs, das 8 às 12
horas, dedicando o resto do dia a outras atividades. Nélida Pinon contava
certa vez que ela também marca um horário para começar a escrever,
estabelecendo um prazo limite, depois do qual pára, esteja em que ponto
estiver do texto. E se mais tarde vem alguma “inspiração” recusa-se a
escrever, nem sequer a anota.
São exemplos da autodisciplina, que nasce de uma profunda res-
ponsabilidade, que nasce da convicção de ter algo importante a dizer, algo
cuja importância motiva e legitima o esforço, o exercício continuado.
Não se aprende a escrever com um golpe de mágica. Não há tru-
ques nem milagres. A autodisciplina é a marca dos bons escritores. Ainda
que você talvez não ambicione tanto, mais cedo ou mais tarde descobrirá
que o treino diário, com todas as dificuldades que traz consigo, é o
caminho necessário para quem quer escrever com mais desenvoltura.
Para escrever, e escrever um pouco melhor a cada dia, é preciso
superar-se todos os dias, vencendo limites, obstáculos, obedecendo a re-
gras escolhidas pessoalmente, tudo isso com a finalidade de modelar um
estilo característico, de plasmar unia conduta verbal, de configurar um
perfil de linguagem próprio, de expressar com a originalidade possível
(sempre limitada, porque os gênios são poucos e eles mesmos copiaram
outros...) as tendências intelectuais, afetivas e até mesmo físicas.
Cada pessoa pode criar o seu próprio rito para escrever, para pen-
sar, para trazer à tona, em palavras, a sua personalidade.
Alguns escrevem à máquina, outros no computador, outros sempre
com lápis; uns descarregam mais de mil palavras em meia hora, e depois
corrigem o texto durante semanas; outros entregam-se ao paciente trabalho
de selecionar meia dúzia de palavras ao longo de todo um dia; há pessoas
que acordam mais cedo para pensar e escrever, como o faziam Descartes e
Rui Barbosa; outvos resolvem escrever sem usar a letra “a”
• 72
ou a partícula “que”, o que os obriga a uma ascese desafiante; outros, como
Oscar Wilde, gastam uma manhã inteira para colocarem uma vírgula c toda
uma tarde para tirá-la; outros ainda, como Flaubert, levam oito dias para
escrever oito linhas c ainda se sentem na fase do rascunho; Machado de
Assis criava mentalmente trechos enormes de romances, contos, poemas, e
só depois os transcrevia.
ler, Pensar e Escrever
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Gabriel Perissé
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ler, Pensar e Escrever
76
zação de tais e tais tarefas, a leitura sistemática, a consulta aos dicionári-
os, o estudo-da gramátjearfrebservação-dtentardo mündo, dos seres h~u-
manos, o desenvolvimento de idéias latentes, de imagens, sonhos, frases...
Penso que todos os que escrevem poderiam segredar: “Escrevo para
amar e ser amado”. O que, diga-se de passagem, é a definição de felicidade
mais sintética que se conhece, dada por S. Agostinho: amare et amari -
amar e ser amado.
Mas para ser feliz e para fazer feliz (aliás, as duas coisas se impli-
cam e se reclamam) é preciso lutar. Apaixonadamente.
A odisséia do rascunho
78
para o papel e a caneta simplesmente, todos os dias, e começar a
escrever, mesmo sem garantia de sucesso.
O amor é exigente, nunca está satisfeito. E quem não é exigente nessa
tarefa de amor que é escrever, quem diz que escrever é fácil, que é questão de
aplicar meia dúzia dc regras, que basta coordenar alguns “macetes”, essa
pessoa ainda não sabe o que é amar. E o que é escrever.
“À medida que você vai vivendo, vai Ficando mais exigente consigo
mesmo, no sentido literário. Escrever hoje para mim e mais difícil do que
quando eu tinha 20 anos. Às vezes eu embatuco diante de uma carta mais
complexa [...]. Abgar Renault cita sempre uma frase dc Joubert que diz: «Para
escrever bem são precisas uma facilidade natural e uma dificuldade
adquirida». E isso mesmo. Quanto mais consciência você tem do valor da
palavra, mais você fica exigente no emprego delas”.4
Essa auto-exigência se traduz em trabalho, e trabalho contínuo, e
trabalho lento. A invenção, a criatividade, se conquista passo a passo: escolhe-
se o tema, algo que interesse a mim, e também a todo o mundo, e fazem-se
pesquisas, e tomam-se notas, e coletam-se documentos, c ouvem-se outras
pessoas, e vêem-se fotos, e preparam-se rascunhos, e as situações, as frases, as
imagens, as expressões comcçam a se organizar na cabeça.
Esse trabalho criativo apóia-se, afinal, num profundo otimismo, num
“sim" à vida. Podemos afirmar sem hesitação que há dois tipos de escritores -
os escritores que dizem “sim” à vida e os que dizem “não” à vida. Há os que
amam a vida, as pessoas, as flores, os animais, as crianças, e têm muito a
dizer. E há os que receiam, os que se afastam da exuberância das coisas vivas.
O bom criador diz “sim” à vida, e vê nesta afirmativa uma atitude
profunda, metafísica, que justifica também o amor às palavras, que são um
meio de o homem recriar, de retrabalharos elementos já existentes na Criação.
Somos filhos do Autor, do Escritor de tudo, do Criador, e a nossa criação
participa das forças da vida, da alegria, da realidade. Escrever é uma fuga...
para a realidade.
Amar as palavras, as palavras que exprimem realmente a realidade, é
amar a própria realidade. E é sinal de vitalidade pessoal. O pintor James Ensor
cantou um hino às palavras, palavras sensíveis aos nossos sofrimentos,
palavras coloridas, sutis, espinhosas, discretas, amargas,
79
doces, lastimosas, perversas, festivas, tempestuosas, estridentes, sábias,
ler, Pensor e Escrever
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Ler, Pensar e Escrever
i
ensaios, minha vida perderia talvez aquilo que possa justificá-la, não aos
olhos dos outros, mas aos meus próprios olhos. Há um poeta que aprecio,
Paul Eluard, que gostava de usar a expressão «razão de viver». É freqüente
na sua poesia isso de procurar a razão das coisas... «raison de vivre». Eu
hoje tenho na literatura, no exercício da criação literária, a minha razão de
viver” (Jornal da Tarde, 06.06.87).
Murilo Rubião disse numa entrevista: “Um escritor mais velho,
84
Ler, Penior e Eitrever
quando pára de escrever, é porque está próximo do fim. Por isso é que eu
reescrevo sempre. Para esticar a vida mais um pouco” (O Estado de São
Paulo, Caderno 2,20.09.87).
A técnica pessoal, o fervor do trabalho, é conseqüência direta do
ideal que uma pessoa escolhe, e que lhe preenche todas as veias - poéti-
cas e sangüíneas. Ideal que, por paradoxal que pareça, só descobrimos no
momento em que ele é “acionado” no próprio ato de escrever.
Escrevemos com esta necessidade também: saber por que e como
escrevemos, para redescobrirmos o ideal que sempre nos supera e atrai
para mais longe e mais alto. O piauiense Esdras do Nascimento dá a sua
versão dessa descoberta:
“Escrevo partindo de uma idéia geral, sem saber aonde chegarei,
numa aventura semelhante à dos antigos navegadores, que se propunham a
descoberta de novas terras, que talvez nem existissem. Os percalços da
viagem serviam para manter vivo o interesse do percurso e valorizar a
descoberta. Escrever um texto de ficção, para mim, é como andar por
caminhos desconhecidos, atravessando desertos, repousando à sombra de
árvores, em raros oásis, enfrentando miragens e mistérios, sofrendo fome e
sede no calor do meio-dia e desfrutando, às vezes, a tranqüilidade, a beleza
e a suave brisa do anoitecer” (Jornal do Érasil, Suplemento Idéias,
28.05.88).
Quando nos lançamos nesta aventura de descoberta do mundo, dos
outros, e do próprio “eu”, somos semelhantes a idealistas, como Cristóvão
Colombo que, na sua ardente busca do que havia a oeste da Europa,
parecia impulsionado por um chicote invisível. É como diz o escritor e
médico Moacyr Scliar: “Escrevo porque não tenho outro remédio. Não
tenho outra forma de expressão. Se pudesse escolher, talvez não escolhesse
escrever. De qualquer maneira, existe satisfação quando, algumas vezes, a
gente consegue vencer a luta tenaz contra as palavras. Ou quan-
85
Gabriel Perissè
verdadeira mentira.
Intimidade com a linguagem significa garimpar nas palavras, nas
frases, nas expressões aquilo que é. O diamante, porém, não está na palma
da mão. É preciso cavar. É preciso selecionar. É preciso estar atento.
Não é honesto (ou pelo menos inteligente) fazer aquilo que alguém
dizia, brincando, a respeito de um jornalista: que ele separava o joio do
trigo... e publicava o joio. Temos, ao contrário, de adquirir forças e cultivar
critérios para distinguir a mentira da verdade, a moeda falsificada da
moeda verdadeira, a palavra certa da palavra errada. __________________
MarkTwain usava esta metáfora precisa: a diferença entre a palavra
certa e a palavra errada é a mesma diferença entre o relâmpago e o
vagalume.
Ao falar em linguagem, permito-me não entrar nos meandros da
“linguagem animal”, que tanto fascina alguns estudiosos, “linguagem” no
sentido de código de comunicação entre as abelhas, as formigas, os
golfinhos, os pássaros. Evito toda essa discussão porque a linguagem
humana me parece muito mais interessante e complexa. Aliás, constatamos
que os homens podem imitar os animais com perfeição, ao passo que os
animais não conseguem imitar os homens, exceto o papagaio e o macaco
(rudimentarmente), seres que usamos como símbolos de pessoas a quem
falta criatividade e capacidade de pensar por conta própria.
Acho bem mais produtivo trabalhar a partir da linguagem que está
ao nosso alcance, com as suas heranças, com as suas patologias, com as
suas idiossincrasias e tesouros.
A tarefa de quem escreve é preencher a distância existente entre o
que se vai escrever e a língua usada por ele e os leitores. Tal distância deve
ser vencida, primeiramente, pela ação do pensamento. Pensar já é falar.
Falamos conosco mesmos, simulando a presença de um interlocutor. Pode-
se até detectar um movimento modesto, mas real, de todo o nosso aparelho
fonador enquanto estamos pensando. E, não raro, pensamos também em
voz alta, externando para nós mesmos as palavras carregadas de idéias.
Tal distância entre a língua que temos e o texto que ainda não temos
será preenchida com pensamentos que traduzam a realidade.
Gabriel Perissé
90
«s
Gabriel Perisié
92
Gabriel Perissé
que o trabalha.
Pode parecer um tanto misterioso - e de fato é -, mas um conjunto
de parágrafos elegantes, cujo ritmo seja agradável e cuja lógica interna
caminhe sem (demasiados) solavancos, uma série orgânica e organizada de
parágrafos, que constitua depois todo um texto capaz de conquistar o leitor,
nasce naturalmente de uma pessoa que escreva com convicção, com uma
convicção inspiradora.
Salvador Dali repetia sem pestanejar que “a inspiração só se con-
quista pela violência e o duro trabalho de todos os dias”. Assim como só o
bom jogador (de futebol, de xadrez etc.) tem sorte, assim também só o bom
escritor tem inspiração. Só o escritor que pensa muito escreve rápido.
O escritor que se preocupa em pensar com clareza e realismo sabe
intuitivamente que o que normalmente justifica um parágrafo, e o próprio
texto, é a última frase escrita. É muitas vezes aquele fecho oportuno,
sintetizador, que torna visível para o leitor a idéia principal do autor. Um
parágrafo ou um texto sobre a morte que terminasse com essas palavras:
“Há amores feios, mas todas as mortes são belas, gloriosas, angelicais”
(estou voltando a citar Dali) infundiria no leitor uma reverência, uma
alegria, uma clarividência. Mas para chegar a essa formulação final ne-
cessita-se do empenho de arrancá-la do que temos de mais nosso: as nossas
convicções.
Um homem emotivamente sensível não será forçosamente um bom
escritor. Poderá ser um mero superficial. Não bastam as emoções. É preciso
saber dizer as palavras contundentes, carregadas de certeza, de pensa-
93
Ler, Pensar e Escrever
Gabriel Perisiè
Escrever, seja o que for, é de algum modo escrever uma carta pes-
soal que quer convencer, que quer ser guardada e relida. E que, por isso
mesmo, traz consigo um leve nervosismo, próprio de qualquer pessoa que
está empenhada em dizer as suas verdades.
Aristóteles afirmava que o modo de começar a convencer alguém é
conquistar a sua simpatia. Dizer verdades (mesmo que parciais) requer a
habilidade de tomá-las amáveis. Persuadir (mesmo de uma verdade
objetiva verificadíssima) exige também a capacidade de criar um clima
agradável, propício à concordância. Como diz um ditado oriental, “quem
não sabe sorrir não deve abrir uma loja”. Quem, por exemplo, estiver
convencido de que uma cópia xerox de uma cópia xerox fica melhor do
que uma cópia xerox feita de um original (se é que isso é verdade) deve
estar preparado para “vender” a sua verdade com todos os argumentos, os
racionais, sim, mas também com os argumentos que captem a boa vontade
do leitor.
Escrever com bom humor, com leveza, trazendo exemplos, citações
interessantes, imagens atraentes, sem sobrecarregar o leitor, sem impor
nada, é o melhor modo de convencê-lo. O leitor é, em princípio, aquela
pessoa que espera de nós um pouco de felicidade, de surpresa, de
inteligência, e o nosso papel, como aprendizes de escritores, é
corresponder a essa expectativa.
Quem é o meu leitor? O meu leitor é aquela pessoa que merece ser
bem tratada, e que merece ler o que tenho de mais pessoal, as minhas
convicções e os meus sentimentos, a minha dor e o meu protesto, a minha
solidão e a minha alegria.
Escrever é dar-se no papel aos outros, dar o melhor de si, o melhor
possível. Porque o meu leitor, ainda que seja um só, é o MEU LEITOR,
está “perdendo” o seu tempo comigo, e não tenho o direito de enganá-lo ou
decepcioná-lo. Escrever acarreta esta responsabilidade, que por sua vez
gera o grande desejo de nunca satisfazer-se com o grau de perfeição a que
se chegou.
Na verdade, espero eu mesmo ter conseguido fazer neste livro so-
bre LER, PENSAR e ESCREVER o que nele recomendo. Ter conseguido
que você, agora, queira ler mais, pensar melhor e escrever continuamente.
Para ser melhor. Esta será a minha única recompensa.
Notas
95
(1) Em “Dezembro sem Clarice”, entrevista a Affonso Romano de
Sant’Anna e Marina Colasanti. Revista Escrita, ano III, n.27,1978,
pág. 24.
(2) Idem, pág. 21.
(3) “Escrever e datilografar”, em Crônicas. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1980,314-315.].
(4) Carlos Drummond de Andrade, em entrevista à Leia, agosto de 1985,
n. 82, pág. 23.
(5) Leia, outubro de~Hfô57H7M, pag. u. '
(6) Idem, pág. 14.
(7) Idem.
(8) Idem.
(9) El arte. Buenos Aires, El Ateneo, 1943, pág. 22.
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