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Os Discursos Éticos de Freud

Os Discursos Éticos de Freud


Vincenzo Di Matteo
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Pernanbuco – UFPE. Professor do Departamento de
Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

Palavras-chaves: Moral – Ética – Cultura – Psicanálise.

Resumo: Pretende rastrear, no epistolário de Freud e em textos significativos de sua obra,


as considerações sobre o complexo fenômeno moral; assinalar as inflexões desse discurso
ético que, fundamentalmente, correspondem às várias reformulações de sua metapsicolo-
gia; finalizar com algumas conclusões que os textos analisados podem legitimar.

O título no plural se justifica por pia igualitária, pela forte ambivalência


duas razões fundamentais. A primeira diante do fenômeno da globalização. A
decorre do fato que existem ressonân- despeito de um provável ou proclama-
cias éticas diversas nas várias psicaná- do envelhecimento da psicanálise freu-
lises que surgiram a partir do freudis- diana (Marcuse, 1970), é necessário ou
mo; a segunda, que é possível assinalar pelo menos conveniente voltarmos aos
algumas inflexões também no próprio mitos trágicos de Édipo, Narciso, Eros,
discurso ético freudiano e que – grosso Ananke e Thanatos, assimilar este sa-
modo - correspondem às várias refor- ber trágico da psicanálise “para se atin-
mulações de sua metapsicologia. gir o limiar de uma nova Ética, que re-
“Se sempre voltamos a Freud” – es- nunciaríamos a derivar da obra de
creve Lacan (1988, p.51) – “é porque Freud por uma inferência imediata, mas
ele partiu de uma intuição inicial, cen- que seria longamente preparada pela
tral, que é de ordem ética”. É essa pro- instrução fundamentalmente não éti-
blemática que pretendo rastrear no ca da psicanálise” (Ricoeur, 1978. p.
epistolário de Freud e em alguns textos 136).
mais significativos de sua obra. Após
uma rápida explicitação dos termos- I. As Palavras e as Coisas:
chave, procedo à reconstrução genéti- Uma Explicitação dos Termos-Chave
ca dos discursos éticos de Freud. Ética ou Moral?
A razão que nos leva e retomá-los
é o novo quadro cultural em que vive- É difícil encontrar um consenso
mos, marcado pelo desencanto com o entre os próprios especialistas sobre o
racionalismo otimista da ilustração, referente a que remetem essas duas pa-
pelo luto decorrente da morte da uto- lavras, uma de origem grega (ethos) e
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outra latina (mos). Freud não chega em rece minar os pilares da liberdade e da
seus escritos a tematizar uma eventual consciência sobre os quais assentava a
diferenças entre os dois termos. Talvez, teoria e a prática ética do Ocidente.
pragmaticamente, assim como ele pro- Por outro lado e surpreendente-
cedeu, em sua época, com os termos mente por certos aspectos, Freud nos
civilização e cultura (Freud, 1927, responsabiliza pela escolha de nossas
p.16), pudéssemos menosprezar as di- neuroses (Freud, 1913) e até por nos-
ferenças semânticas e tomar os dois ter- sos sonhos (Freud, 1925). Nesse senti-
mos como sinônimos. De fato, tanto a do, pode-se inferir que a psicanálise
palavra ética quanto o termo moral di- tanto na sua teoria quanto na sua prá-
zem respeito às tentativas históricas – tica clínica é portadora, se não de uma
sempre precárias e provisórias – que as nova ética, pelo menos de um discurso
várias culturas empreendem para regu- crítico-descontrutivo com relação a
lar especialmente as relações sociais, certas crenças religiosas, filosóficas ou
visando uma vida boa e justa, tanto populares sobre as quais assentava a
para os indivíduos como para a comu- moral ocidental e, pelo menos indire-
nidade em seu todo. Todavia, se admi- tamente, de um discurso construtivo e
tirmos que a palavra ética evoca a ne- propositivo, aparentemente menos exi-
cessidade humana da Lei, de recriar no gente moralmente, mas mais honesto
mundo da cultura uma regularidade na medida em que leva a sério as ver-
instituída para viabilizar a convivência dades que a psicanálise ofereceu à nos-
humana, sem que isso implique ser fia- sa cultura para repensar sua moralida-
dora dos códigos morais que se cristali- de (ou imoralidade).
zam numa determinada comunidade Enfim, mesmo que Freud repita
histórica, então poderíamos falar de inúmeras vezes que a psicanálise não é
uma psicanálise freudiana que se colo- uma Weltanschauung (Freud, 1933b,
ca certamente do lado do desejo, mas p.193 ss.), ou que é compatível com
não contra a Lei, de uma psicanálise qualquer uma (Carta a Putnam de
que critica o moralismo, mas não a Éti- 8.7.1915), que não possui uma utopia,
ca ou pelo menos certa concepção de nem alimenta a ilusão da felicidade, a
Ética, como aparece claramente em O expressão ‘Ética da psicanálise’ também
Mal-Estar na Civilização. (Freud, 1930, pode ser justificada a partir do fato so-
p.167-168). cial que houve e há por parte de mui-
tos uma verdadeira e tríplice demanda
Ética da Psicanálise? que lhe é dirigida: a explicativa teóri-
ca, que veio ocupar o lugar das antigas
Essa expressão é pelo menos pro- religiões e de certas filosofias da exis-
blemática, se não ambígua. Ao situar- tência; a terapêutico-consoladora para
se no campo das ciências da natureza, aliviar a dor, a angústia e a responsabi-
a psicanálise somente poderá se ocupar lidade de existir; aquela ética para res-
do mundo do ‘é’; não o do ‘dever ser’ ponder às duas clássicas perguntas,
onde se inscrevem os vários discursos como devo viver, o que devo fazer? Mais
éticos do Ocidente. Ao acentuar o de- especificamente, o que fazer com os
terminismo do Inconsciente sobre a nossos desejos de vida e de morte dian-
Consciência, do Id e do Superego so- te das interdições de nossa cultura.
bre o Eu e ao considerar também esse As respostas a essas questões serão
último em boa parte inconsciente, pa- procuradas na obra freudiana. Mesmo
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assim, talvez não seja da ordem da sim- encontrado pouco de “bem” nas pes-
ples curiosidade e sim da conveniência soas. A maioria é, segundo minha
surpreender o Freud epistolar, o Freud experiência, canalha, quer pertença
enquanto homem, sobre o que ele pen- aberta ou disfarçadamente a esta,
sa da moral e da ética. àquela ou a nenhuma doutrina moral
(Carta a Oscar Pfister de 9.10.1918).
II. O Homem Freud e a Ética
Naturalmente, Freud não se consi-
São conhecidas as ambivalências dera um canalha. Numa carta a Put-
freudianas – para usar um termo politi- nam, agradecendo e comentando o li-
camente correto – com relação à filo- vro que lhe enviara – Human Motives
sofia em geral e à ética em particular. – nos revela sua autopercepção:
Numa carta ao Professor de Filosofia
Werner Achelis, que tinha escrito e [...] me considero um ser humano
enviado para Freud o texto “O proble- muito moral. [...] Creio que, quando
ma dos Sonhos: Ensaio Filosófico”, en- se trata de um sentimento de justiça e
contramos um depoimento sobre Filo- consideração pelos outros, para des-
sofia (metafísica) que nos deixa perple- gosto de fazer sofrer os outros ou de
xos, sem saber se é expressão de hones- tirar vantagem deles, posso equiparar-
tidade intelectual ou de simples ‘bra- me às melhores pessoas que conheci.
vata’. [...] Quando me pergunto por que
sempre aspirei a comportar-me hon-
Outros defeitos da minha natureza rosamente [...], então realmente não
sem dúvida me entristeceram e me fi- tenho resposta. [...] Na mocidade não
zeram sentir-me humilde; com a me- senti nenhuma aspiração ética espe-
tafísica é diferente: não só não tenho cial, e a conclusão de que eu sou me-
nenhum talento, mas tampouco ne- lhor do que outros não me dá nenhu-
nhum respeito por ela. Em segredo – ma satisfação reconhecível. [...] Por
não se pode dizer estas coisas em voz que eu e, incidentalmente, também os
alta – creio que um dia a metafísica meus seis filhos adultos somos obri-
será condenada como uma praga, gados a ser seres humanos inteiramen-
como um mau uso do pensamento, te decentes, para mim é inteiramen-
como uma sobrevivência do período te incompreensível (Freud, 1982,
da Weltanschauung religiosa (Car- p.359-360. Carta a Putnam de
ta de 30.1.1927. Freud, 1982, p.432). 8.7.1915).

É de esperar, portanto, que a mes- Alguns anos mais tarde, Freud pa-
ma hostilidade e indiferença mostrada rece ter encontrado uma razão pela
com relação à metafísica, a reencontre- obrigação da ‘decência’. Antes de cri-
mos com relação à Ética, enquanto fi- ticar duramente o mandamento do
losofia moral. Numa carta ao pastor amor ao próximo, em O Mal-Estar na
Pfister escreve: Civilização, numa carta a Romain Ro-
lland que apelida de ‘apóstolo do amor
[...] a ética não me diz respeito e o à humanidade’, assim se expressa:
senhor é pastor de almas. Não que-
bro muito a minha cabeça em relação Eu mesmo sempre advoguei o amor à
ao bem e ao mal, mas em geral tenho humanidade, não por sentimentalis-
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mos ou idealismo, mas por motivos onde nos deparamos com uma breve
sensatos, econômicos: porque, em face afirmação que, de uma maneira direta
dos nossos impulsos instintivos e do ou indireta, será retomada várias vezes
mundo como é, fui forçado a consi- nos escritos em que Freud aborda ques-
derar esse amor tão indispensável para tões ético-morais: “[...] o desamparo
a preservação da espécie humana inicial dos seres humanos é a fonte pri-
quanto, por exemplo, a tecnologia mordial de todos os motivos morais” (gri-
(Freud, 1982, p.420 Carta a Roma- fo do autor). (Freud, 1895a p.422)
in Rolland de 29.1.1926). Essa primeira intuição vai se arti-
culando inicialmente com a clínica dos
Numa outra cartinha endereçada começos e com a construção teórica do
ao mesmo destinatário, em 19.01.1930, ‘aparelho psíquico’ para dar conta dela,
Freud (1982, p.456-457) admite que “a conhecida como primeira tópica. Por
psicanálise também tem sua escala de essa descrição, que encontra sua primei-
valores, mas seu único objetivo é a har- ra descrição psicológica no cap. VII da
monia enaltecida do Ego, que se espe- Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900)
ra que consiga ser o intermediário entre e culmina com o artigo metapsicoló-
as exigências da vida instintiva (o “Id”) gico sobre O Inconsciente (Freud,
e as do mundo exterior, entre, portan- 1915a), há, antes de tudo, um descen-
to, a realidade interna e externa”. tramento do sujeito da consciência e do
Por esses breves depoimentos, é le- eu para o inconsciente, o que evoca
gítimo inferir que se há uma preocupa- uma divisão do sujeito de caráter estru-
ção ética que perpassa a obra freudia- tural porque se encontra não apenas na
na, ela não deve ser procurada no ho- experiência da psicopatologia (neuro-
mem Freud, mas em sua prática clíni- ses), mas também na atividade psíqui-
ca. É o confronto com o sofrimento
ca do homem normal (sonhos e atos
humano, especialmente de tipo neuró-
falhos).
tico, que o leva a tornar-se um advoga-
Nessa primeira tópica, porém, o
do de defesa de seus clientes diante da
descentramento ainda não é tão radi-
cultura, ao mesmo tempo em que os
cal, porque afinal o conflito se dava
responsabiliza pela sua neurose. O dis-
entre as pulsões sexuais reguladas pelo
curso ético, portanto, se articula sem-
princípio de prazer e as pulsões do eu,
pre e necessariamente com a questão
do sujeito na sua relação com a cultu- de autopreservação, regidas pelo prin-
ra. Se isso for verdade, é possível espe- cípio de realidade. Essas pulsões possu-
rar que, na medida em que vai se radi- em certa autonomia com relação às se-
calizando o descentramento do sujeito xuais para garantir a manutenção do
operado pela psicanálise, será possível indivíduo. Fome e amor seriam na lin-
assinalar as repercussões na esfera ética guagem dos poetas os representantes
tanto individual quanto coletiva. dessas duas forças em conflito. Desde o
início, portanto, a neurose revela um
III. As Inflexões no Discurso Freudi- conflito “massivamente de ordem mo-
ano sobre o Sujeito e a Ética ral” (Lacan, 1988, p.49). A oposição
Da Clínica dos Começos à Moral princípio do prazer x princípio de rea-
Sexual ‘Civilizada’ lidade, processo primário x processo
secundário é menos “da ordem da psi-
A preocupação com o tema da éti- cologia do que da ordem da experiên-
ca já se encontra no Projeto (1895a) cia propriamente ética” (Ibidem, p.49).
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Segundo Lacan (1988, p.51), na evo- tado por uma sexualidade polimorfa que
lução da metapsicologia freudiana se o domina e pela cultura com suas exi-
encontra “o rastro de uma elaboração gências, ideais e interdições exageradas,
que reflete um pensamento ético”. sendo cada um de nós a resultante des-
Será sua prática clínica, porém, que se jogo de forças. Todavia, é inegável
o levará a denunciar a responsabilida- que, nesta fase do desenvolvimento do
de e a incoerência da cultura ao exigir seu pensamento, Freud é animado por
de seus membros uma moral sexual in- um mitigado otimismo quanto à possi-
compatível com a estrutura e o funcio- bilidade de transformação dos neuróti-
namento do psiquismo humano. A crí- cos e da própria cultura. Se inicialmente
tica, já presente nos escritos do final do colocou como objetivo do tratamento
século XIX (Freud, 1898), encontra sua psicanalítico transformar um ‘sofrimen-
forma mais acabada no texto de 1908, to histérico em infelicidade comum’
Moral Sexual ‘Civilizada’ e Doença Ner- (Freud, 1895b, p.362-363), na primei-
vosa Moderna, quando confronta as ra década do séc. XX, de uma forma
exigências morais da cultura com a his- mais propositiva considera a terapia
tória da sexualidade descrita alguns psicanalítica como um instrumento para
anos antes nos Três Ensaios sobre a Se- tornar um número satisfatoriamente
xualidade (Freud, 1905). Critica o ex- grande de pacientes ‘aptos para a exis-
cessivo moralismo que normatiza a tência’, para uma vida mais produtiva,
polimorfia da sexualidade humana, mas prazerosa e tolerante, sem estigmatizar
não aponta alternativas concretas em os sintomas como doenças (Freud,
nome da ‘jovem ciência’ psicanalítica. 1904, p.261).
O texto se encerra um pouco abrupta- Essa visão ‘otimista’, porém, não
mente, não reconhecendo ao médico vai demorar em se alterar quando Freud
a atribuição de propor reformas, mas se defrontar, em Totem e Tabu (Freud,
apenas de defender a necessidade de 1913), com o assassinado do Pai da
tais reformas, considerando que a ‘mo- horda primitiva, mito fundador da mo-
ral sexual civilizada’ é responsável pelo ral, religião e sociedade.
aumento da ‘doença nervosa moderna’
(Freud, 1908, p.208). Totem e Tabu:
No entanto, é exatamente o ‘amor O Nascimento da Ética
à verdade’ psicanalítica que leva Freud
a propor indiretamente uma nova éti- Com este livro, há certa inflexão
ca sexual, aparentemente menos ele- no pensamento ético de Freud, mesmo
vada na medida em que sugere que os que o referencial teórico com o qual
indivíduos seriam mais saudáveis se trabalha seja fundamentalmente o mes-
lhes fosse possível ser ‘menos bons’, mo: o recurso ao modelo onírico-neu-
mas certamente mais honesta (Freud, rótico (recalque) e ao modelo filoge-
1908, p.197). Não estaríamos conde- nético, na realidade, um único e mes-
nados a escolher apenas entre desejo mo modelo, considerando que também
insatisfeito, infidelidade, neurose, per- para Freud a ontogênese repete a filo-
versão e hipocrisia. O amor à verdade gênese.
e o zelo reformador nos podem liber- Para Freud, o complexo de Édipo,
tar. vivenciado no nível da fantasia pelo
É verdade que o sujeito freudiano indivíduo empírico, foi de fato consu-
está duplamente descentrado e assujei- mado na origem da humanidade – pelo
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menos parcialmente – no tocante ao narcísica. Finalmente, retomando as


parricídio. Os filhos assassinos, porém, idéias desenvolvidas em Totem e Tabu,
arrependidos, acabam divinizando o Pai nos diz que o indivíduo na multidão ou
e assumindo o tabu do incesto e do grupos regride, de alguma maneira, a um
parricídio, dando origem, portanto, à modelo infantil e arcaico de funciona-
moral e à sociedade humana. Por cer- mento, na medida em que o homem é
tos aspectos, Totem e Tabu projeta so- “um animal de horda, uma criatura in-
bre toda a história da cultura a sombra dividual numa horda conduzida por um
sinistra da experiência de um mal-es- chefe” (Freud, 1921, p.154).
tar, de um negativo de difícil transposi- Se isso for verdade, o ser social do
ção: crime (parricídio); castigo (culpa); homem é vivido na massa como uma
renúncia cultural. Por outros, uma luz espécie de sonho acordado. Há uma
de esperança. Graça aos mecanismos de vida libidinal que regride às experiên-
recalque e de sublimação, poderá neu- cias arcaicas do indivíduo (infância) e
tralizar as forças eróticas e agressivas e da espécie (filogênese). Pai da horda
canalizá-las para o bem do sujeito e da originária, Pai da infância, Líder aca-
própria comunidade. Torna-se, dessa bam se sobrepondo, se confundindo e
maneira, a guardiã e fiadora da Ética. nos infantilizando. Há um desejo que
O pacto civilizatório entre os ir- perpassa os grupos e que é um desejo
mãos parricidas, porém, é frágil porque de servidão voluntária. A multidão, dirá
persiste o desejo de ocupar o lugar in- Freud, é ávida, tem “sede de autorida-
terditado do pai assassinado. Desejo que de” e, conseqüentemente, de submis-
se torna mais perigoso para a cultura são.
quando coincidir com a demanda de Diante do poder sedutor, quase hip-
proteção dos outros. Tema que Freud nótico, do líder e das massas, ‘depósito
vai retomar alguns anos mais tarde em herdado da filogênese da libido huma-
Psicologia de Grupo e Análise do Ego na’, parece que não há como pensar a
(Freud, 1921). liberdade, a singularidade e a respon-
sabilidade ética. Todavia, à massa ou
A Ilusão nas Massas: ao indivíduo enredado no seu desejo
A Difícil Tarefa Ética ilusório, Freud contrapõe uma singula-
ridade animada pelo inconformismo.
Nesse ‘pequeno livro’, Freud tenta Mesmo que cada indivíduo seja a re-
explicar psicanaliticamente as altera- sultante de numerosas ‘mentes grupais’,
ções que ocorrem no indivíduo quan- sempre pode “também elevar-se sobre
do entra a fazer parte de um grupo, da elas, na medida em que possui um frag-
massa ou da sociedade e a responsabili- mento de independência e originalida-
dade ética dos sujeitos parece diluir-se de” (Freud, 1921, p.163).
perigosamente. Na realidade, a despeito dessas pa-
A tese defendida é que a transfor- lavras inequívocas, a grande maioria dos
mação psíquica do indivíduo na massa seres humanos não passaria de um ani-
é produto de uma redução do narcisis- mal de horda, mostrando a dificuldade
mo de cada um dos membros em fun- de realmente aceder a um mundo de
ção da instalação do mesmo líder como singularidade, de escolhas éticas e, por-
‘ideal do eu’ e do vínculo amoroso que tanto, de responsabilidade. Resta-nos
se estabelece entre os pares, funcionan- o dilema dos porcos-espinhos, retoma-
do como compensação pela renúncia do de Schopenhauer: morrer de frio ou
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espetar-se pela necessária proximidade afirmar “que devemos as mais belas flo-
(Freud, 1921, p.128 e nota 1). O laço rações de nosso amor à reação contra o
social e ético entre os homens é neces- impulso hostil que sentimos dentro de
sário pelo desamparo individual e gru- nós” (Freud, 1915b, p.338).
pal diante da insensibilidade do mun- É inegável, porém, que a pulsão de
do, mas dolorido, porque nada garante morte, tematizada em Além do Princí-
que o grupo humano consiga encon- pio do Prazer (Freud, 1920), irá ter suas
trar um equilíbrio entre exigências de repercussões no campo da ética, tor-
felicidade individual e exigências co- nando ainda mais difícil o ideal de uma
munitárias. vida boa com os outros. O descentra-
mento do sujeito se radicaliza. A nova
Ética, Guerra e Morte pulsão, desvinculada do conceito de
representação, torna-se mais marcada
A eclosão da primeira guerra mun- pela força muda e bruta, deixando o
dial surpreendeu a todos e, pelo menos sujeito ainda mais desamparado diante
em parte, também ao homem Freud, do Id. Essa nova teoria das pulsões, de
pela barbárie individual e das nações fato, é acompanhada da reformulação
em conflito. Em seu texto Reflexões para do aparelho psíquico conhecida como
os Tempos de Guerra e Morte (1915b), segunda tópica: O ego e o id (Freud,
contemporâneo, portanto, da primeira 1923). É com esse referencial teórico
grande síntese dos artigos metapsicoló- que repensará o fenômeno da cultura e
gicos, analisa psicanaliticamente a da ética (1930), bem como os objetivos
grande ‘desilusão’ gerada pela guerra. da ‘cura’ psicanalítica (1937).
A psicanálise o convenceu que ‘a es-
sência mais profunda da natureza hu- A Luta dos Gigantes
mana’ consiste de pulsões primitivas,
tais como as egoístas e de crueldade, Sobre o discurso ético no famoso
que buscam sua satisfação. Podem até texto de 1930 – O Mal-Estar na Cultu-
ser domesticadas, de alguma maneira, ra – permito-me remeter o leitor a um
por um fator interno, como o erotismo, artigo anterior (Matteo, 1998). Limi-
capaz de transformar os instintos ego- to-me, aqui, a retomar a tese central
ístas em sociais; por outro externo, de Freud. O mal-estar decorreria das
como a educação, visto que civilização proibições da cultura ao incesto, à se-
só foi possível pela renúncia à satisfa- xualidade polimorfa e perversa e das
ção instintual de seus integrantes. Es- restrições à própria sexualidade genital,
sas pulsões, porém, são imperecíveis. O de fato mais tolerada do que permitida.
indivíduo ‘civilizado’ pode a eles regre- Mais do que isso, o mal-estar é o preço
dir em determinadas circunstâncias. O que é necessário pagar para que a civi-
‘poderoso’ mandamento ético ‘não lização se torne possível e se desenvol-
matarás’ só pode ser entendido a partir va. Decorre de um sentimento de cul-
de seu impulso inverso, igualmente pa inconsciente, filho de nossa agressi-
poderoso. vidade que a cultura, pelo superego cul-
A crença nessa imbricação de amor tural, consegue colocar a serviço de
e ódio não leva Freud a um pessimismo Eros, devolvendo-a contra o próprio
ético. Acredita que a ‘Natureza’ con- indivíduo.
segue manter certa hegemonia do amor A felicidade não está inscrita nos
sobre o ódio e que talvez pudéssemos planos da criação. O destino do homem
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está mais próximo da infelicidade, cu- nas ajuda o sujeito a conviver com seu
jas causas devem ser procuradas num intransponível desamparo e a literal-
mundo sem Providência, numa cultu- mente inventar um estilo de vida con-
ra sem tolerância e na natureza das pró- dizente com a singularidade do seu de-
prias pulsões sem satisfação plena pos- sejo.
sível. Seria então a proposta ética de ins-
Sem deuses, abandonados ao de- piração freudiana ao mesmo tempo
samparo fundamental que caracteriza a apaziguadora e cínica, na medida em
existência humana, é no campo da éti- que parece insinuar que o ser humano
ca que se trava a batalha decisiva da é assim mesmo e que não há muito que
civilização. A ética é a tentativa tera- fazer; individualista, por responsabili-
pêutica de lidar com o ponto mais do- zar o homem pela sua neurose e as saí-
loroso dela, o das relações entre seres das singulares que deve inventar; polí-
humanos. Mas Freud se recusa a apon- tico-reformista por clamar por reformas
tar saídas ou levantar-se como um pro- culturais no campo das exigências mo-
feta diante de seus semelhantes. Cada rais que levem efetivamente em conta
um terá que encontrar sua própria sal- as limitações do psíquico humano; po-
vação para enfrentar a dureza da vida lítico-revolucionária ao propor uma
e ninguém pode garantir que Eros leve ética fundada no desejo e não mais na
a melhor sobre Thanatos. racionalidade?
Essa visão não conduz Freud a uma Sem a pretensão de responder dog-
revolta metafísica ou a uma cansada maticamente a essas perguntas, a título
resignação. Não é um asceta, nem um de conclusão apresento algumas con-
moralista, nem um anárquico. Entre a clusões que me parecem plausíveis
lei e o desejo, coloca-se em defesa do
desejo, mas não contra a lei. Sugere, IV. Concluindo e Resumindo
porém, que haja uma diminuição da ri-
gidez do superego cultural e, conse- Se o Freud epistolar parece mais
qüentemente, das exigências éticas ocupado em viver eticamente do que
para que se tornem mais compatíveis refletir sobre o complexo fenômeno
com a realidade do psiquismo humano. moral, sua obra psicanalítica é perpas-
Parodiando uma célebre frase dele – sada de ponta a ponta por uma inquie-
onde havia Id deve advir Ego (Freud, tação ética.
1933a, p.102), poderíamos resumir a Não há, porém, ‘um’ discurso éti-
proposta freudiana em onde havia supe- co freudiano sistemático e linear. Há
rego cultural deve advir o ego. mais um pluralismo de discursos que co-
Quanto ao discurso clínico, den- existem, não se contradizem ‘funda-
tro dessa nova rede conceitual Freud mentalmente’ e estão sintonizadas, ‘ge-
repensa a dimensão de cura em psica- ralmente’, com as sucessivas reformu-
nálise em Análise Terminável e Intermi- lações de sua metapsicologia. Daí as
nável (1937). A prática psicanalítica várias interpretações possíveis.
não se inscreve num projeto terapêuti- Para a psicanálise freudiana não
co de caráter científico, inspirado no existe uma ética originária inscrita no
paradigma da medicina; nem num pro- coração do homem. A problemática
jeto de salvação de natureza e inspira- ética surge na medida em que o sujeito
ção religiosa. Sem promessas de cura e pode e deve ser pensado sempre den-
certezas para oferecer, a psicanálise ape- tro do campo da cultura. Nesse senti-
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do, a ‘gênese’ ou ‘as fontes’ da moral passes entre pulsão e cultura são estru-
são duas: uma relacionada com o in- turais e não conjunturais, o que revela
transponível desamparo infantil e sua a intransponível situação de desampa-
dependência das vontades dos pais re- ro psíquico em que se encontra o sujei-
ais, educadores, figuras de autoridade, to num mundo sem deus e assujeitado
os quais não passariam de uma reatua- às exigências da Cultura.
lização da vontade do pai primevo. A Mesmo com todas as limitações da
segunda, da necessidade ‘racional’ de liberdade do sujeito (determinismo do
prescrições para regular a existência e inconsciente, forças pulsionais incon-
convivência humana, “pela necessida- troláveis, exigências culturais excessi-
de de delimitar os direitos das socieda- vas), a psicanálise freudiana não é fia-
des contra o indivíduo, os direitos do dora de uma moral conformista. O Ego
indivíduo contra a sociedade e dos in- ‘deve’ advir onde havia Id ou Supere-
divíduos uns contra os outros” (1939, go, o que coloca a psicanálise na se-
p.145). qüela do pensamento iluminista: cren-
Nessas duas fontes, é possível re- ça na autonomia da razão para investi-
conhecer: primeiro, a tradição religio- gar o mundo da physis e do ethos; a rei-
sa judaico-cristã do Ocidente funda- vindicação do indivíduo ao prazer e à
mentada sobre a moral heterônima do felicidade, a despeito e à revelia das
Pai, a consciência moral, o sentimento exigências morais da tradição e da co-
de culpa que – na concepção de Freud letividade; a crença no universalismo
– inicialmente, é “apenas um medo da da natureza humana. Essas não são ape-
perda do amor, uma ansiedade ‘social’” nas as características da Ética da mo-
(Freud, 1930, p.148); segundo, a tradi- dernidade, mas também da Ética freu-
ção filogenética do pacto de irmãos e a diana (Rouanet, 1993, p.96ss) .
filosófico-racionalista que postula uma Instruído, porém, pela psicanálise,
moral autônoma, nascida do ‘intelec- suspeita que o racionalismo, o indivi-
to’, da ‘razão’, do ‘espírito científico’ dualismo e o universalismo da ilustra-
nos quais Freud (1933b, p.208) depo- ção são apenas uma aposta. Não é um
sitava “nossa maior esperança para que novo Moisés portador de um novo de-
[...] possa, com o decorrer do tempo, cálogo. Propositalmente não se apre-
estabelecer seu domínio sobre a vida sentou como um profeta, mas como um
mental do homem”. Na realidade, as pensador que nos força a pensar e,
duas fontes e as duas tradições estão quem sabe, a não perder a esperança
intimamente relacionadas, sendo que no deus Logos, ou no divino Eros, ou
a primeira é mais arcaica. A razão pela qualquer outro nome com o qual se
qual ainda hoje o problema ético “nos queira caracterizar o esforço sobre-hu-
parece tão grandioso [...], tão misteri- mano de construir e reconstruir um
oso, e, de modo místico, tão auto-evi- mundo ético, mesmo sabendo que a
dente, deve essas características à sua dialética Lei - Desejo não possa ser su-
vinculação com a religião, à sua origem pra-assumida e apaziguada nem na es-
na vontade do pai” (Freud, 1939, fera individual nem na coletiva.
p.145). Enfim, a despeito de certo pessimis-
O ‘mal-estar’ dos indivíduos, quan- mo teórico, que se radicaliza com a in-
do não a neurose, a doença, a hipocri- trodução da pulsão de morte, como uma
sia, a revolta, em outras palavras, o con- pulsão originária e autônoma, é inegá-
flito ético decorre do fato que os im- vel que há certa proposta ética que
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Os Discursos Éticos de Freud

pode ser inferida da psicanálise freudi- (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução, v. XIV
ana e que aponta para alguns ideais e (1915a) O inconsciente, v. XIV
(1915b) Reflexões para os tempos de guerra e mor-
concomitantes dificuldades: o ideal da
te, v. XIV
autenticidade e a dificuldade de ultra- (1920) Além do princípio do prazer, v. XVIII
passar a distância entre saber e verda- (1921) Psicologia das massas e análise do eu, v.
de; o ideal da independência e a difi- XVIII
culdade de ultrapassar o arcaísmo de (1923) O ego e o id, v. XIX
(1925) A responsabilidade moral pelo conteúdo
nossa infância; o ideal da capacidade
dos sonhos
de amar e a dificuldade de lidar com a (1927) O futuro de uma ilusão, v. XXI
‘errância’ do desejo; o ideal de justiça (1930) O mal-estar na civilização, v. XXI
– “a primeira exigência da civilização” (1933a) Conf. XXXI das Novas conferências
(Freud, 1930, p.116) – e a interferên- introdutórias sobre psicanálise: A dissecção da
personalidade psíquica, v. XXII
cia do egoísmo e da pulsão de morte
(1933b) Conf. XXXV das Novas conferências
que nos habita. introdutórias sobre psicanálise: A questão de
uma Weltanschauung, v. XXII
(1937) Análise terminável e interminável, v. XXIII
Keywords (1939) Moisés e o monoteísmo, v. XXIII.
(1982) Correspondência de Amor e outras cartas.
Moral – Ethic – Culture – Psychoanalysis.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982
LACAN, Jacques. O seminári,. livro VII:. A ética
Abstract da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988
The article intends to trace, in Freud´s MARCUSE, H. O envelhecimento da psicaná-
correspondence and significative texts of lise. In: REICH, W.; FROMM, E.; MARCUSE,
H.; BERGLER, E. ROHEIM, G. Psicanálise e so-
his work, considerations about the com-
ciedade. Lisboa: Editorial Presença, 1970
plex moral phenomenon; sign up the in- MATTEO, Vincenzo Di. O discurso ético em O
flexions of this ethic speech which, funda- Mal-Estar na Civilização. Perspectiva Filosófica,
mentally, corresponds to the various re- Recife, Depto. de Filosofia da UFPE, v.5, n.10,
formulations of his metapsychology; fina- p.19 - 46, 1998
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações.
lize with some conclusions that the
Rio de Janeiro: Imago, 1978
analyzed texts may legitimate. ROUANET, Sergio Paulo. O mal-estar na mo-
dernidade: ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993

Bibliografia
Endereço para Correspondência:
FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Rua Des. Martins Pereira, 165
Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago. 52050–220 – Recife – PE
(1895a) Projeto para uma psicologia científica, v. I
(1895b) Estudos sobre a histeria, v. II Convite feito em março de 2006
(1898) A sexualidade na etiologia das neuroses, v. III
(1900) A Interpretação dos sonhos, v.IV e V
(1904) O método psicanalítico de Freud, v. VII
(1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,
v.VII
(1908) Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa
moderna, v. IX
(1913) Totem e tabu, v. XIII
(1913) A disposição à neurose obsessiva. Uma
contribuição ao problema da escolha da neuros,
v. XII

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