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Os manuscritos de Saussure sobre as lendas estão divididos em três lotes: 8 cadernos, 383 folhas (BGE
Ms. fr. 3958/1 a 8), 10 cadernos, 228 folhas (BGE Ms. fr. 3959/1 a 10) e 228 folhas avulsas (BGE Ms. fr.
3959/11). Há apenas edições parciais desse material. Uma das mais completas é a de Turpin (2003).
representa um momento decisivo na história da Linguística como ciência. “Ele
permanece, enfim, ainda hoje, um texto de introdução à Linguística nos inúmeros cursos
universitários no mundo inteiro” (COLOMBAT, FOURNIER e PUECH, 2010, p. 25)2.
Algumas reservas ao trabalho de Bally e de Sechehaye como uma reconstrução,
baseada em fontes heterogêneas e fragmentadas, do pensamento de Saussure, foram
mesmo apresentadas por alguns dos seus antigos alunos, mas permaneceram sem eco
durante muito tempo (BOUQUET, 2010). Os trabalhos críticos de Godel, Engler e De
Mauro, a partir de fontes manuscritas, principalmente os cadernos dos alunos, começaram
também a mostrar alguns problemas relacionados à reinterpretação e à apropriação do
pensamento saussuriano apresentado por ele mesmo.
Em 1996, durante trabalhos na antiga residência da família Saussure em Genebra,
foi encontrado um conjunto de folhas manuscritas pelo próprio Saussure. Esse material,
doado à Biblioteca de Genebra, integrou outras obras já existentes e foi publicado como
Escritos de linguística geral (SAUSSURE, 2002). A partir daí, começou a se desenvolver
uma revisão fundamental de muitos pontos abordados no CLG e consequentemente da
imagem que até então se tinha de Saussure. Instaura-se um intenso debate, diríamos até
uma grande polêmica, envolvendo o CLG e o conjunto das fontes manuscritas.
Eugenio Coseriu não conquistou a mesma celebridade de Saussure, mas não deixa
de ser menos importante para o pensamento linguístico moderno. Ele nasceu em 1921,
numa pequena cidade romena chamada Mihileni. Depois de seus estudos na Romênia e
Itália, ele se tornou professor de Linguístca Geral e indo-europeia, na Universidade de
Montevidéu. Em 1963, é nomeado professor de linguística romana e geral, em Tübingen,
Alemanha. Durante os anos 70, a escola coseriana de Tübingen tornou-se uma das mais
prestigiosas em linguística românica, exercendo uma grande influência, principalmente
no domínio da linguística geral e da filosofia da linguagem.
Seu interesse pela linguística nasceu do amor pelas línguas e suas literaturas
durante os anos em que estudou filologia românica e eslava em Roma. Ele aprendeu
muitas línguas, porque queria ler os textos literários na língua original. Ele dominou o
romeno, o italiano, o espanhol, as línguas eslavas, o alemão, o inglês, o grego, e, já na
velhice, ainda aprendeu japonês (KABATEK, 2004).
Coseriu desenvolveu os princípios fundamentais de sua teoria da linguagem com
base ainda na linguística estrutural, mas dominou quase todas as áreas temáticas da
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Texto original em francês. Tradução nossa.
linguística geral e uma quantidade notável de estudos filológicos de línguas particulares.
Não se trata de uma afirmação exagerada, nem de retórica elogiosa. A lista de suas
publicações abrange quase todos os setores da linguística: a filosofia da linguagem, a
teoria da linguagem, a metodologia da linguística, a fonologia, a teoria gramatical, a
semântica, a linguística de texto, a dialetologia, a sociolinguística, a estilística, a história
da teoria da tradução, a política linguística, a história da linguística. A extensão temática
de sua obra é uma manifestação externa de sua concepção pessoal acerca do que é a
linguagem e a própria linguística. A proposta de Coseriu visava compreender toda a
realidade da língua e integrá-la sistematicamente em um modelo epistemológico
funcional.
Segundo Kabatek (2004), Coseriu é frenquetemente visto como um puro
estruturalista, porque boa parte de sua obra fundamental, principalmente a dos anos 50,
provém de um confronto com as ideias de Saussure (as ideias presentes no CLG, talvez
seja bom frisar). No entanto, Kabatek assinala que os trabalhos de Coseriu sempre
seguiram dois tipos de objetivos.
De um lado, o de levar a sério a linguística estruturalista em toda sua extensão,
ou seja, recobrir todos os domínios da língua; de outro lado, o de mostrar seus
limites, pois, para Coseriu, o estruturalismo oferece apenas uma visão parcial da
linguagem, deixando entre parênteses uma série de fatos (excluídos pelas
célebres “sete distinções”) para alcançar seu objeto. O dever da “linguística
integral” é, então, ir também para além do estruturalismo e reintegrar tudo o que
ele exclui. (KABATEK, 2004, p, 487)3
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Texto original em francês. Tradução nossa.
pressuposto de que diferentes línguas podem referir-se a uma mesma realidade e o fazem
de forma diferenciada. A segunda propriedade que Coseriu atribui ao nível universal da
linguagem é a faculdade universal de falar, não determinada historicamente. “Trata-se de
um saber falar que não coincide simplesmente com o saber falar alemão, francês etc., mas
que vale para toda língua e para todo falar” (COSERIU, 2007, p. 131)4. O segundo nível
autônomo do falar é o nível histórico das línguas. Cada língua particular dispõe de um
léxico estruturado de forma diferente, possui sua própria gramática e seu sistema
fonológico.
Para sustentar a autonomia do nível dos textos em relação ao nível universal e ao
nível histórico das línguas, Coseriu assinala, principalmente, o fato de que as regras da
língua podem ser suspensas no texto sem provocar rejeição, e de que os textos são
influenciados pelos universos de discurso - o que não acontece com as línguas - e têm
tradições particulares, diferentes das tradições das línguas históricas.
Coseriu procura formular os princípios de uma Linguística do Texto consistente
com essa concepção dos níveis da linguagem. Como os três níveis são considerados
autônomos, a Linguística do Texto está associada ao terceiro nível, o nível individual, e
é caracterizada como uma Linguística do sentido, que objetiva a hermenêutica do sentido
dos textos e se fundamenta em uma teoria da interpretação. Ao adotar essa posição,
Coseriu tem clareza de que sua concepção de Linguística do Texto é consideravelmente
diferente dos trabalhos dominantes na área, mas faz questão de enfatizar que é a
“verdadeira” e “própria” Linguística do Texto. (COSERIU, 2007, p. 156).
Nessa proposta, Coseriu distingue, portanto, dois conceitos de texto: o texto como
nível autônomo da linguagem e o texto como nível de estruturação idiomática, superior à
oração, ao sintagma, à palavra e aos elementos mínimos portadores de significado.
Consequentemente, o autor também delineia duas formas de Linguística do Texto, para
ele, cientificamente legítimas: a que concebe o texto como nível da linguagem em geral
e a que concebe o texto como um nível de estruturação das línguas. Ambas as
modalidades não são nem contrárias nem excludentes, mas complementares e integradas,
pois se encontram em distintos planos do linguístico: o propriamente idiomático e o
individual.
Inicialmente, dois tipos de linguística de texto podem ser distinguidos. O
objetivo do primeiro são os textos como um nível autônomo da linguagem,
independente da língua em que se expressa. Essa linguística do texto seria a
linguística do texto propriamente dita (...). O segundo tipo de linguística do texto
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As citações originais de Coseriu (2007) estão em espanhol. Tradução nossa.
toma como objeto o texto enquanto nível de estruturação idiomática. Por isso, e
também em benefício da clareza terminológica, se denominará gramática do
texto ou gramática trans-oracional (também análise trans-oracional ou
transfrástica) (COSERIU, 2007, p. 116-17).
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Paralelamente à proposta de Coseriu, a noção de uma gramática do texto foi o ponto de partida de alguns
pesquisadores que buscaram estudar estruturas transfrásticas, tais como cadeias referenciais e relações entre
orações. Naturalmente, a motivação desses estudos, diferente da de Coseriu, foi a constatação de que
existiam fenômenos linguísticos cuja explicação no nível da oração não era suficiente. Daí surgiu o
postulado teórico de que é o texto, e não a oração, a unidade básica da língua. Desenvolveu-se, portanto,
uma série de estudos teóricos com o objetivo de descrever e explicar os princípios universais e as regras
específicas subjacentes à constituição do texto. Blühdorn e Andrade (2005) apresentam um balanço da
situação dessa “Linguística Textual” na Alemanha e no Brasil em que fazem uma boa retrospectiva da
questão do surgimento das gramáticas textuais. Um “estado da arte” dos estudos do texto no contexto
francês é também apresentado por Adam (2010).
sentido. A teoria hermenêutica deve considerar que o sentido dos textos, assim como o
sentido das frases, não é simplesmente a soma do sentido de suas partes.
Para Coseriu, portanto, a busca do sentido da novela Dom Quixote deve partir da
articulação hierárquica do sentido das diversas partes. A instabilidade dos nomes é um
entre os vários fatores que contribuem para o sentido, e deve ser compreendida em sua
conexão com as demais características do texto. O sentido resulta da análise integrada do
sentido de partes do texto: os nomes dos personagens são instáveis, o entusiasmo de Dom
Quixote ao falar da liberdade, a atividade de Dom Quixote de libertar várias personagens,
o governo de Sancho Pança.
A conclusão, após o levantamento dessas características, é a de que Dom Quixote
é “um poema sobre a liberdade” (COSERIU, 2007, p. 269). No conjunto do texto, a
instabilidade dos nomes pode também ser interpretada como um momento de liberdade:
as pessoas são livres para nomear as coisas e todo nome corresponde a uma forma
determinada de ver as coisas. A parte trágica reside no fato de que as possibilidades de
luta pela liberdade são limitadas, ligadas à demência do herói, e abandonadas quando ele
é vencido e curado da loucura.
Em Saussure, não há explicitamente alusão a uma perspectiva teórica de
abordagem textual6. Se há alguma, ela é apenas inferida nas análises que ele desenvolveu
sobre as lendas e os anagramas. Segundo Rastier (2009), essas análises “testemunham um
verdadeiro pensamento da textualidade” (2009, p. 18), “buscam as normas de composição
das lendas, a compreensão das suas transformações gerais, sem neglicenciar o problema
das suas raízes históricas, pelo viés da sua relação com a linguística externa” (2009, p.
21). Para Rastier, a textualidade corresponde a uma relação semiótica fundamental e é um
dos eixos dos estudos textuais, “que relaciona a palavra, a passagem, o texto e o
corpus” (2009, p. 21)7.
De fato, a leitura dos manuscritos de Saussure sobre as lendas não deixa dúvida
de que estamos diante de uma análise textual.
A teoria das cenas parece se aproximar da teoria dos motivos, porque nos dois
casos arranja-se um texto dado de alguma forma com o que o cerca. (Ms. fr.
3959/2 - TURPIN, 2003, p. 408).
Sem dúvida, há aqui uma verdadeira confusão de termos ou de ideias sobre o
que constitui o documento. Porque um documento é em geral um texto, imagina-
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Sobre algumas interpretações dessa atividade de Saussure, ler Pinheiro (2014)
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Citações originais em francês. Tradução nossa.
se que isso não é fazer uma operação anti-crítica de decidir o que deve ser
comparado de um texto a outro. (Ms. fr. 3959/11 - TURPIN, 2003, p. 426).8
É evidente também que Saussure não aborda o texto como nível de estruturação
idiomática, ou seja, não há indícios nos manuscritos de questões relativas a regras de
constituição idiomática das lendas. Não há, ao menos de maneira explícita, um tipo de
aproximação da análise de Saussure com as pesquisas sobre os elementos de que dispõe
uma língua particular para a construção do texto legendário. De fato, não se trata de uma
abordagem do texto tal como é desenvolvida pela Gramática Textual ou por algumas
correntes da Linguística Textual contemporânea. Ao contrário, parece que Saussure
aborda o texto da lenda como tal, independente de uma língua particular.
Um assunto bastante recorrente nos manuscritos é a relação entre a lenda e os
eventos históricos. Saussure assinala que não há critérios para comprovar a
correspondência direta entre lenda e história, apesar das consideráveis coincidências.
Além disso, a identificação dessas relações seria importante apenas para o historiador,
não para o analista da lenda.
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Os excertos do manuscrito de Saussure editado por Turpin (2003) estão em francês. Tradução nossa.
- A identidade de um símbolo nunca pode ser fixa a partir do instante em que ele
é símbolo, ou seja quando é vertido na massa social que fixa a cada instante o
seu valor. (Ms. fr. 3958/4 – TURPIN, 2003, p. 367).
Uma personagem, por exemplo, é a soma das características atribuídas pela lenda.
Cada uma dessas características pode ser passada de uma personagem a outra, até ao
ponto de se desfazer qualquer possibilidade de identificação. Em outras palavras, a
personagem não é mais que uma associação de traços combinados. Assim, a instabilidade
dos nomes das personagens é um dos fatos, entre outros, que deve ser compreendido por
meio da conexão com as demais características da lenda importantes para a interpretação
do sentido.
Entre um estado de uma lenda e o que toma o seu lugar em trezentos quatrocentos
anos de distância, não há ao contrário nenhum elemento fixo, ou destinado a ser
fixo. Nem uma personagem: (Ms. fr. 3959/11 – TURPIN, 2003, p. 428)
Ao buscar entender as condições de surgimento, circulação e estabilização das
lendas Saussure parece destacar a importância do que é singular na linguagem. Nesse
sentido, é possível interpretar essa análise como uma tentativa de também desenvolver
uma hermenêutica do sentido dos textos.
4. Conclusão
Referências bibliográficas
ADAM, Jean-Michel. L’émergence de la Linguistique Textuelle en France: entre
perspective fonctionnelle de la phrase, grammaires et linguistiques du texte et du discours.
Investigações, vol. 23, n. 2, 2010, 11-47.
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Texto original em francês. Nós realizamos a tradução.
BRONCKART, Jean-Paul, BULEA, Ecaterina & BOTA, Cristian. Pour um réexamen du
projet saussurien. In: ______ (éds). Le projet de Ferdinand de Saussure. Genève, Droz,
2010, p. 07-21.
KABATEK, Johannes. Eugenio Coseriu (1921-2002). Estudis Romànics. Vol. 26, 2004,
p. 484-488.
PINHEIRO, Clemilton Lopes. Les études de Saussure sur les légendes: un rapide parcours
à travers quelques interprétations. In: 4o. Congrès Mondial de Linguistique Française,
2014, Berlin. Actes - 4o. Congrès Mondial de Linguistique Française. Paris: EDP
Sciences, v. 8, 2014, p. 479-490.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1978.
SAUSSURE, Ferdinand. de. Écrits de linguistique générale. Édition par Bouquet, S. et
Engler, R. Paris: Gallimard, 2002.