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FICHA TÉCNICA

TÍTULO: Refúgio
AUTORIA: R. A. Salvatore
EDITOR: Luís Corte Real
Esta edição © 2015 Edições Saída de Emergência
Título original Book III of the Dark Elf Trilogy © 1991 TSR, Inc.
Publicado originalmente nos EUA por TSR, Inc., 1991
TRADUÇÃO: Mário Matos
REVISÃO: Sofia Dias
DESIGN DA CAPA: Saída de Emergência
ILUSTRAÇÃO DA CAPA: Todd Lockwood
1.ª EDIÇÃO: Março, 2015
ISBN: 978-989-637-755-7
EDIÇÕES SAÍDA DE EMERGÊNCIA
R. Adelino Mendes n.º 152, Quinta do Choupal, 2765-082
S. Pedro do Estoril, Portugal
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MAPA
P RELÚDIO

O elfo negro estava sentado na encosta da montanha desolada, observando ansiosamente enquanto a
linha vermelha subia sobre o horizonte oriental. Esta seria, talvez, a sua centésima alvorada, e sabia
bem o ardor que a luz crescente iria provocar-lhe nos olhos cor de alfazema — olhos que sempre
tinham conhecido apenas a escuridão do Subescuro, durante mais de quatro décadas.
O drow não virou costas, porém, quando o aro superior do Sol flamejante cresceu sobre o
horizonte. Aceitou a luz como o seu purgatório, como uma dor necessária se queria seguir o caminho
que escolhera para se tornar uma criatura do mundo da superfície.
Fumo cinzento ondulou diante da cara de pele escura do drow. Sabia o que isso significava,
mesmo sem olhar para baixo. O seu piwafwi, a capa mágica de drow que tantas vezes, no Subescuro,
o tinha protegido de olhares inimigos, sucumbira finalmente à luz do dia. A magia da capa começara
a desvanecer-se semanas antes, e o próprio tecido estava simplesmente a desfazer-se. Grandes
buracos tinham aparecido no lugar de pedaços da veste que se tinham dissolvido, e o drow encolhia
os braços o mais que podia para tentar resgatar o que restava.
Mas sabia que isso não faria nenhuma diferença; a capa estava condenada a desfazer-se neste
mundo tão diferente daquele onde tinha sido criada. O drow agarrava-se-lhe desesperadamente,
vendo-a de certa forma como uma analogia da sua própria sorte.
O Sol subiu mais alto e as lágrimas começaram a correr dos olhos semicerrados do drow. Já não
conseguia ver o fumo; não conseguia ver nada, a não ser o brilho ofuscante daquela terrível bola de
fogo. Mesmo assim, manteve-se sentado e a observar a alvorada.
Para sobreviver, tinha de se adaptar.
Empurrou o dedo grande do pé dolorosamente contra uma saliência de rocha e concentrou a
atenção longe dos olhos. Pensou no que as suas botas finamente trabalhadas se tinham tornado, e
sabia que também elas em breve se dissolveriam.
E a seguir? As cimitarras, talvez? Desapareceriam também aquelas armas drow magnificas que o
tinham apoiado em tantas batalhas? Inconscientemente, o drow meteu uma mão na bolsa, à procura da
maravilhosa estatueta, tão perfeita em todos os pormenores, que usava para convocar o felino. A
solidez da estatueta tranquilizou-o nesse momento de dúvida; mas, se também ela tinha sido criada
por elfos negros, imbuída da magia tão particular dos seus domínios, poderia igualmente perder
Guenhwyvar em breve?
— Que criatura desgraçada me tornei — lamentou-se o drow na sua língua nativa. Interrogou-se,
não pela primeira vez, e decerto não pela última, acerca da sabedoria da sua decisão de deixar o
Subescuro, de renegar o mundo da sua própria gente.
A cabeça latejava-lhe; o suor escorria-lhe para os olhos, aumentando o ardor. O Sol continuava a
subir e o drow não conseguia já suportá-lo. Levantou-se e dirigiu-se para a pequena caverna que
escolhera como lar; e, mais uma vez, levou uma mão distraída à estatueta da pantera.
O piwafwi caía-lhe dos ombros em farrapos, servindo de fraca protecção contra os ventos gélidos
da montanha. Não havia ventos no Subescuro, a não ser as ligeiras correntes de ar que se erguiam dos
lagos de magma, e não havia frio, a não ser no toque gélido de algum monstro não-vivo. Este mundo
da superfície, que o drow conhecia havia alguns meses, mostrava muitas diferenças, muitas variáveis
— e muitas vezes acreditava que seriam demasiadas.
Drizzt Do’Urden não se renderia. O Subescuro era o mundo dos seus, da sua família, e nessa
escuridão nunca encontraria descanso. Seguindo as exigências dos seus princípios, atacara Lolth, a
Rainha Aranha, a divindade malévola que o seu povo reverenciava acima da própria vida. Os elfos
negros, a família de Drizzt, não perdoariam as suas blasfémias, e o Subescuro não tinha buracos
suficientemente fundos para fugir ao seu longo alcance.
Mesmo que Drizzt acreditasse que o Sol o dissolveria a ele também, tal como estava a dissolver-
lhe as botas e o precioso piwafwi, mesmo que se tornasse algo quase insubstancial, como o fumo
cinzento arrastado pela brisa gelada da montanha, manteria os princípios e a dignidade, esses
elementos que tinham tornado a sua vida digna de ser vivida.
Drizzt retirou o que restava da capa e atirou-a para um abismo profundo. O vento frio era cortante
contra a sua testa perlada de gotas de suor, mas o drow caminhou a direito e orgulhoso, com o queixo
erguido e os olhos de alfazema bem abertos.
Este era o destino que escolhera.

Ao longo da encosta de outra montanha, não muito longe dali, outra criatura observava o nascer do
Sol. Também Ulgulu deixara o seu local de origem, os sujos e fumarentos labirintos que marcavam o
plano de Gehenna; mas este monstro não viera de sua livre vontade. Era o destino de Ulgulu, a sua
pena, crescer neste mundo até ter conquistado força suficiente para regressar a casa.
A especialidade de Ulgulu era o assassinato, alimentando-se da força vital dos mortais indefesos
que o rodeavam. Estava agora prestes a atingir a maturidade: era enorme, e forte e terrível.
Cada matança deixava-o mais forte.
Queimava-me os olhos e fazia doer cada parte do meu corpo. Destruiu o meu piwafwi e as
minhas botas, roubou a magia da minha armadura e enfraqueceu as minhas leais
cimitarras. Mesmo assim, todos os dias, sem falhar, lá estava eu, sentado no meu sítio, no
meu banco dos réus, à espera da chegada da alvorada.
Chegava até mim todos os dias de formas paradoxais. O ardor não podia ser negado, mas
também não podia desmentir a beleza do espectáculo. As cores logo antes do nascer do Sol
arrebatavam a minha alma de uma forma que nenhum padrão de emanações de calor do
Subescuro alguma vez poderia fazer. Inicialmente pensei que o meu fascínio se devesse à
estranheza da cena, mas mesmo agora, tantos anos passados, sinto o coração bater com
força perante o subtil clarear que anuncia a alvorada.
Sei agora que o meu tempo debaixo do Sol — a minha penitência diária — era mais do
que um mero desejo de me adaptar aos usos do mundo da superfície. O sol tornou-se o
símbolo da diferença entre o Subescuro e a minha nova casa. A sociedade de que eu tinha
fugido, esse mundo de acordos secretos e conspirações traiçoeiras, não poderia existir nos
espaços abertos sob a luz do dia.
Este sol, apesar de toda a angústia que me trazia fisicamente, acabou por representar a
minha renúncia a esse outro mundo mais negro. Esses raios de luz reveladora reforçaram
os meus princípios tão seguramente como enfraqueceram os artigos mágicos criados pelos
drow.
À luz do Sol, o piwafwi, a capa defensiva que derrotava olhares penetrantes, a veste
preferida de assassinos e ladrões, tornou-se apenas um pedaço esfarrapado de tecido sem
valor.

— Drizzt Do’Urden
Drizzt rastejou para lá dos arbustos protectores e da pedra lisa que davam para a caverna que agora
lhe servia de lar. Sabia que alguma coisa tinha passado por ali recentemente — muito recentemente.
Não havia rastos visíveis, mas o odor era intenso.
Guenhwyvar andava em círculos por sobre as rochas acima da entrada da caverna. A visão da
pantera dava ao drow uma certa medida de tranquilidade. Drizzt habituara-se a confiar
implicitamente na pantera e sabia que o felino expulsaria quaisquer inimigos que estivessem
escondidos a tentar uma emboscada. Desapareceu na entrada escura e sorriu ao ouvir Guenhwyvar
descer atrás dele, vigilante.
Parou atrás de uma rocha logo à entrada, deixando que os olhos se ajustassem à escuridão. O Sol
ainda brilhava, embora já começasse a descer rapidamente no céu a ocidente, mas a caverna estava
muito mais escura — suficientemente escura para Drizzt deixar a visão reverter para o espectro
infra-vermelho. Assim que esse ajustamento ficou completo, localizou o intruso. O brilho visível de
uma fonte de calor, de uma criatura viva, emanava por detrás de uma rocha mais ao fundo na caverna.
Drizzt descontraiu-se consideravelmente. Guenhwyvar estava agora apenas a alguns passos dele e,
considerando o tamanho da rocha, o intruso não podia ser um animal muito grande.
Mesmo assim, Drizzt crescera no Subescuro, onde todas as criaturas vivas, independentemente do
tamanho, eram temidas e consideradas perigosas. Fez sinal a Guenhwyvar para ficar em posição
junto à saída e avançou acocorado para poder ver melhor o intruso.
Nunca vira um animal como aquele. Parecia semelhante a um gato, mas a cabeça era muito menor e
muito mais afunilada. No total, não deveria pesar mais de uns dois ou três quilos. Esse facto, a cauda
peluda e a pelagem espessa indicavam que se tratava mais de um animal oportunista do que de um
predador temível. Estava agora a vasculhar um monte de comida, aparentemente inconsciente da
presença do drow.
— Descontrai-te Guenhwyvar — disse Drizzt calmamente, voltando a embainhar as cimitarras.
Deu um passo para diante, aproximando-se do intruso para o ver melhor, embora mantendo uma
distância de precaução, para não o assustar, pensando que talvez tivesse encontrado outro
companheiro. Se conseguisse ganhar a confiança daquele animal…
O pequeno animal virou-se abruptamente ao ouvir as palavras de Drizzt, com as pernas dianteiras
curtas no ar e encostando-se subitamente contra a parede.
— Tem calma — disse Drizzt suavemente, desta vez para o intruso. — Não te farei mal.
Deu mais um passo e a criatura bufou e começou a andar às voltas, com as pequenas patas a bater
com força no chão.
Drizzt quase se riu alto, pensando que a criatura queria empurrar-se contra a parede de pedra até
desaparecer nela. Guenhwyvar aproximou-se então, e a sua súbita perturbação fez desaparecer o
sorriso do rosto do drow.
A cauda do animal ergueu-se; Drizzt notou, na penumbra, que tinha uma risca branca bem definida
ao longo do dorso. Guenhwyvar encolheu-se e virou-se para fugir, mas era tarde demais…
Cerca de uma hora mais tarde, Drizzt e Guenhwyvar caminhavam pelos trilhos mais inferiores da
montanha, em busca de um novo lar. Tinham recolhido tudo o que fora possível recolher, embora não
fosse muito. Guenhwyvar mantinha uma boa distância mais ao lado de Drizzt. A proximidade tornava
o fedor ainda pior.
Drizzt aguentou tudo com estoicismo, embora o fedor do seu próprio corpo tornasse aquela lição
um pouco mais pungente do que teria gostado. Não sabia o nome do pequeno animal, evidentemente,
mas tinha fixado vivamente a sua aparência. Da próxima vez que encontrasse uma doninha, seria mais
cuidadoso.
— Lá se vai a ideia de novos companheiros neste mundo estranho — murmurou Drizzt para
consigo. Não era a primeira vez que o drow expressava estas preocupações. Sabia muito pouco
acerca da superfície, e menos ainda das criaturas que ali viviam. Os seus últimos meses tinham sido
passados dentro e em redor da pequena caverna, com apenas algumas expedições ocasionais até às
regiões mais abaixo, e mais populosas. Aí, enquanto procurava comida, vira alguns animais,
geralmente à distância, e observara até alguns humanos. Ainda não reunira, porém, a coragem para
abandonar o esconderijo e saudar os vizinhos, receando a potencial rejeição e sabendo que não tinha
mais nenhum sítio para onde fugir.
O som de água a correr levou o drow e a pantera até um riacho de águas rápidas. Drizzt procurou
imediatamente uma sombra protectora e começou a despir a armadura e as roupas, enquanto
Guenhwyvar descia o riacho para pescar um pouco. O som da pantera a chapinhar na água fez nascer
um sorriso no rosto severo do drow. Nessa noite jantariam bem.
Abriu a fivela do cinturão e deitou as armas ao lado da cota de malha. De facto, sentia-se
vulnerável sem armadura e sem armas — no Subescuro, nunca as deixaria tão longe do seu alcance
—, mas tinham passado muitos meses desde que precisara delas pela última vez. Olhou para as
cimitarras e foi inundado pelas recordações agridoces da última vez em que as tinha usado.
Dessa vez, combatera com Zaknafein, com o seu pai e mentor, e melhor amigo. Apenas Drizzt
sobrevivera ao encontro. O lendário mestre de armas desaparecera, mas o triunfo nesse combate
pertencia tanto a Zaknafein como a Drizzt, pois não fora realmente Zaknafein quem viera em
perseguição de Drizzt sobre a ponte de pedra acima do lago de ácido. Fora o espírito-espectro de
Zaknafein, sob o controlo da sua mãe, a Matrona Malice. Esta procurara a vingança contra o filho
devido à renúncia deste a Lolth e à caótica sociedade drow em geral. Drizzt passara mais de trinta
anos em Menzoberranzan, mas nunca aceitara os usos malévolos e cruéis que eram a norma na cidade
drow. Fora um embaraço constante para a Casa Do’Urden, apesar da sua considerável destreza com
as armas. Quando fugira da cidade para viver exilado na selva do Subescuro, colocara a sua mãe e
alta-sacerdotisa longe do favor de Lolth.
Assim, a Matrona Malice Do’Urden convocara o espírito-espectro de Zaknafein, o mestre de
armas que sacrificara a Lolth, e enviara aquela coisa morta-viva em perseguição do filho. Porém,
Malice errara nos cálculos, porque permanecera no corpo do espírito-espectro o suficiente da alma
de Zaknafein para se negar a atacar Drizzt. No momento em que Zaknafein conseguira resistir ao
controlo de Malice, soltara um urro de triunfo e mergulhara no lago de ácido.
— Meu pai… — murmurou Drizzt, ganhando forças com essas simples palavras.
Fora bem-sucedido onde Zaknafein falhara; renegara os usos malévolos dos drow, os mesmos em
que Zaknafein ficara aprisionado durante séculos, agindo como um peão nos jogos de poder da
Matrona Malice. Desse falhanço e desse destino final de Zaknafein, o jovem Drizzt retirara forças; da
vitória de Zaknafein na caverna do ácido, Drizzt recolhera determinação. Ignorara a teia de mentiras
que os seus antigos mestres da Academia de Menzoberranzan tinham tecido e viera para a superfície
para começar uma nova vida.
Drizzt estremeceu quando entrou na água gelada. No Subescuro sempre conhecera temperaturas
quase constantes e uma escuridão perene. Aqui, porém, o mundo surpreendia-o a cada momento. Já
notara que os períodos de luz diurna e de escuridão não eram constantes; o Sol punha-se mais cedo a
cada dia que passava e a temperatura — que parecia mudar de hora para hora — descera
continuamente durante as últimas semanas. Mesmo durante esses períodos de luz e de escuridão
havia inconsistências. Algumas noites eram visitadas por uma orbe que brilhava como prata, e alguns
dias mostravam-se cinzentos, em vez de cobertos por uma cúpula de azul brilhante.
Apesar de tudo isso, Drizzt sentia-se, na maior parte do tempo, confortável com a sua decisão de
vir para este mundo desconhecido. Olhando agora para as suas armas e armadura, caídas na sombra a
uns metros de onde se banhava, tinha de admitir que a superfície, apesar de toda a sua estranheza,
proporcionava mais paz do que qualquer lugar do Subescuro alguma vez poderia proporcionar.
Drizzt estava agora na selva, apesar da sua calma. Passara quatro meses à superfície e continuava
sozinho, à excepção da altura em que podia convocar o seu companheiro felino mágico. Agora, quase
nu, apenas com as calças esfarrapadas, com os olhos a arder devido ao borrifo da doninha, o sentido
do odor perdido e aprisionado dentro da nuvem do seu próprio fedor pungente, com o apurado
sentido da audição abafado pelo ruído da água a correr, o drow estava de facto vulnerável.
— Que triste figura devo ter — riu-se, correndo os dedos magros pela cabeleira branca e espessa.
Quando voltou a olhar para o equipamento, porém, esse pensamento desapareceu rapidamente. Cinco
formas possantes examinavam os seus pertences e mostravam claramente não se importar nada com a
aparência esfarrapada do elfo negro.
Drizzt examinou a pele acinzentada e os focinhos negros daquelas figuras humanóides com rostos
de cão e dois metros de altura; mas observou mais especialmente as espadas e lanças que agora
apontavam para ele. Conhecia aquele tipo de monstros, pois vira criaturas semelhantes a servir de
escravos em Menzoberranzan. Nesta situação, porém, os gnolls pareciam muito diferentes, mais
ameaçadores do que Drizzt se lembrava deles.
Ponderou brevemente dar uma corrida até às cimitarras, mas pôs de lado essa ideia, sabendo que
uma lança o trespassaria antes que conseguisse chegar lá perto. O maior de entre o bando de gnolls,
um gigante de dois metros e meio, com cabelo vermelho, olhou para Drizzt por um longo momento,
depois olhou para o equipamento, e depois voltou a olhar para ele.
— Que estás tu a pensar? — murmurou Drizzt. Sabia realmente muito pouco acerca dos gnolls. Na
Academia de Menzoberranzan fora-lhe ensinado que os gnolls eram uma raça goblinóide, malévola,
imprevisível e muito perigosa. Mas também lhe fora dito o mesmo acerca dos elfos da superfície e
dos humanos — e, aliás, agora que pensava nisso, fora-lhe dito o mesmo acerca de quase todas as
raças que não fossem drow. Drizzt quase se riu em voz alta, apesar da situação delicada em que
estava. Ironicamente, a raça que mais merecia essa qualificação de maldade e de imprevisibilidade
era a dos próprios drow!
Os gnolls não se mexeram mais e não deram quaisquer ordens. Drizzt compreendeu a hesitação
deles perante a visão de um elfo negro, e soube que tinha de aproveitar esse receio natural da parte
deles, se queria ter alguma hipótese. Fazendo apelo às capacidades inatas da sua herança mágica,
Drizzt agitou uma mão negra e desenhou chamas púrpura em volta de cada um dos gnolls.
Um dos animais caiu imediatamente no chão, como Drizzt esperara, mas os outros estacaram a um
sinal da mão estendida do líder, mais experiente. Olhavam em volta, nervosamente, aparentemente
indagando-se acerca da sensatez de prosseguir com aquele encontro. O chefe dos gnolls, porém, já
vira aqueles fogos feéricos inofensivos, numa luta com um ranger drow azarado — e agora morto. E
sabia o que aquilo era.
Drizzt ficou tenso, na expectativa, e tentou decidir qual o gesto seguinte.
O chefe dos gnolls olhou em volta, para os seus companheiros, como se a estudar até que ponto
estavam rodeados pelas chamas bruxuleantes. A avaliar pela perfeição do encantamento, aquele
drow não era um vulgar campónio — ou pelo menos, era isso que Drizzt esperava que o chefe dos
gnolls estivesse a pensar.
Descontraiu-se um pouco quando o chefe dos gnolls baixou a ponta da lança para o chão e fez sinal
aos outros para fazerem o mesmo. O gnoll resmungou depois uma enxurrada de palavras que ao drow
soaram como uma algaraviada. Vendo a óbvia incompreensão de Drizzt, o gnoll disse qualquer coisa
na língua gutural dos duendes.
Drizzt compreendia essa linguagem, mas o dialecto do gnoll era tão estranho que apenas conseguiu
decifrar algumas palavras, entre as quais «amigo» e «chefe».
Cautelosamente, Drizzt deu um passo em direcção à margem do riacho. Os gnolls recuaram,
deixando o caminho livre até aos seus pertences. Deu mais um passo cauteloso e depois foi ganhando
confiança quando viu que havia uma silhueta escura de felino nos arbustos, a pouca distância. A uma
ordem sua, Guenhwyvar, num único salto, abater-se-ia sobre o bando de gnolls.
— Tu e eu caminhamos juntos? — perguntou Drizzt ao chefe dos gnolls, usando a linguagem dos
duendes e tentando simular o dialecto da criatura.
O gnoll respondeu com um rugido atabalhoado, e a única coisa que Drizzt pensou ter percebido foi
a última palavra da pergunta: «…aliado?».
Drizzt fez que sim com a cabeça, lentamente, esperando ter compreendido toda a intenção da
criatura.
— Aliado! — rosnou o gnoll, e todos os seus companheiros riram aliviados e deram palmadas nas
costas uns dos outros. Drizzt chegou então perto do seu equipamento e colocou imediatamente o
cinturão com as cimitarras. Vendo os gnolls distraídos, o drow olhou rapidamente para Guenhwyvar
e fez-lhe sinal na direcção do trilho mais adiante, por entre a vegetação.
Com agilidade e silenciosamente, Guenhwyvar tomou uma nova posição. Não havia necessidade
de revelar imediatamente todos os seus segredos, considerou Drizzt. Pelo menos até ter percebido
verdadeiramente as intenções dos seus novos companheiros.
Caminhou ao lado dos gnolls pelos trilhos mais inferiores e serpenteantes da encosta da montanha.
Os gnolls mantinham-se afastados, de ambos os lados de Drizzt, fosse por respeito a ele e à
reputação da sua raça ou por qualquer outra razão; não podia saber. Mais provavelmente, suspeitava
Drizzt, manteriam a distância simplesmente por causa do fedor, que o banho pouco fizera para
diminuir.
O chefe gnoll dirigia-se a Drizzt de vez em quando, acentuando as suas palavras excitadas com
uma piscadela de olho manhosa ou com um esfregar das mãos grossas e sapudas. Drizzt não fazia
ideia do que o gnoll estava a dizer, mas presumiu, pelos estalos que este dava com a língua, que o
estava a levar a alguma espécie de festim.
Drizzt depressa descobriu o destino do bando, porque avistara muitas vezes, dos cumes das
montanhas, as luzes de uma pequena comunidade agrícola humana no vale. Não podia fazer ideia
nenhuma acerca da relação entre os gnolls e os humanos agricultores, mas pressentiu que não seria
uma relação amigável. Quando se aproximaram da aldeia, os gnolls assumiram posições defensivas,
avançaram a coberto de arbustos e mantinham-se o mais possível nas sombras. O crepúsculo estava a
aproximar-se rapidamente enquanto o bando abria caminho em redor da área central da aldeia, para
se concentrar numa casa mais isolada, a oeste.
O chefe dos gnolls sussurrou para Drizzt, dizendo cada palavra lentamente, para que o drow o
entendesse.
— Uma família — disse. — Três homens, duas mulheres…
— Uma mulher jovem — acrescentou outro, excitado.
O chefe gnoll riu-se.
— E três jovens machos — concluiu.
Drizzt compreendia agora o objectivo da expedição, e o ar surpreendido e de interrogação no seu
rosto levou o chefe gnoll a confirmar-lho para além de qualquer dúvida.
— Inimigos — declarou o chefe.
Drizzt, que quase nada sabia acerca de ambas as raças, estava num dilema. Os gnolls eram
salteadores — isso era evidente — e tencionavam atacar aquela casa assim que a luz do dia
desaparecesse. Drizzt não tinha nenhuma intenção de se lhes juntar no combate, até ter muito mais
informação relativamente à natureza do conflito.
— Inimigos? — perguntou.
O chefe gnoll franziu o sobrolho, mostrando uma aparente consternação. Despejou um chorrilho de
palavras quase incompreensíveis de onde Drizzt julgou ter percebido «humanos… fracos…
escravos». Todos os gnolls perceberam o súbito desconforto de Drizzt e começaram a deitar as mãos
às armas e a olhar uns para os outros nervosamente.
— Três homens… — disse Drizzt.
O gnoll espetou a lança selvaticamente no chão.
— Matar mais velho! Apanhar os dois!
— E mulheres?
O sorriso aberto na cara do gnoll respondeu à pergunta para além de qualquer dúvida, e Drizzt
começava a compreender em que posição estava neste conflito.
— E as crianças?
Olhou para o chefe gnoll directamente e disse cada palavra bem marcadamente. Não podia haver
mal entendidos. A sua última pergunta confirmava tudo, pois ainda que Drizzt conseguisse aceitar a
selvajaria típica entre inimigos mortais, nunca poderia esquecer a vez em que tinha participado num
raide semelhante. Nesse dia, salvara uma criança elfo, escondera-a debaixo do corpo da mãe para a
abrigar da ira dos seus companheiros drow. De todos os muitos males que Drizzt já testemunhara, o
assassinato de crianças fora o pior.
O gnoll empurrou a lança de novo contra o chão, com o rosto canino contorcendo-se numa alegria
malévola.
— Não me parece — disse simplesmente Drizzt, com o fogo a brilhar nos olhos cor de alfazema.
De repente, os gnolls perceberam que, sem saberem como, as cimitarras tinham aparecido nas
mãos de Drizzt.
O focinho do chefe gnoll franziu-se de novo, mas desta vez numa expressão de confusão. Tentou
levantar a lança, para se defender, sem saber o que aquele estranho drow faria a seguir, mas já era
demasiado tarde.
A corrida de Drizzt era demasiado ágil. Antes que a lança do gnoll sequer se mexesse, já o drow
mergulhava com as cimitarras em riste. Os outros quatro gnolls observaram estupefactos enquanto as
lâminas de Drizzt rodopiavam duas vezes, rasgando a garganta do poderoso chefe. O gnoll gigante
caiu para trás em silêncio, agarrando futilmente o pescoço.
Um gnoll mais ao lado foi o primeiro a reagir, erguendo a lança e carregando contra Drizzt. O ágil
drow desviou com facilidade o ataque frontal, mas teve o cuidado de não fazer o gnoll perder o
balanço. Enquanto a grande criatura passava por ele, lançada, Drizzt rolou pondo-se ao seu lado e
pontapeou-a nos tornozelos. Perdido o equilíbrio, o gnoll estatelou-se, mergulhando a ponta da lança
no peito de um dos companheiros.
O gnoll puxou a arma para trás, mas esta estava bem enterrada, com a ponta serrilhada bem presa
nos ossos do outro gnoll. O gnoll não estava nada preocupado com o seu companheiro moribundo; a
única coisa que queria era a sua arma. Puxava e sacudia a lança, e praguejava e rugia perante as
expressões agonizantes do companheiro — até que uma cimitarra se lhe enterrou no crânio.
Outro gnoll, vendo o drow distraído e pensando que seria mais sensato atacar este adversário à
distância, ergueu a lança para a atirar. O braço subiu, mas antes que a arma começasse sequer a
avançar, Guenhwyvar carregou sobre ele e ambos rebolaram para longe. O gnoll dava fortes murros
nos flancos musculosos da pantera, mas as garras afiadas de Guenhwyvar eram muito mais eficientes.
Na fracção de segundo que Drizzt demorou a desviar o olhar dos três gnolls mortos aos seus pés, já o
quarto do bando estava morto debaixo da grande pantera. O quinto fugira.
Guenhwyvar soltou-se do teimoso abraço do gnoll morto. Os músculos elegantes do felino ficaram
em tensão, ansiosamente à espera da ordem. Drizzt observou a carnificina à sua volta, o sangue nas
cimitarras e as horríveis expressões nos rostos dos mortos. Queria deixar as coisas ficar por ali, pois
percebera que tinha entrado numa situação que ia para além da sua experiência, que cruzara os
caminhos de duas raças das quais sabia muito pouco. Após um momento de ponderação, porém, a
única ideia que se mantinha na mente do drow era a promessa sorridente do chefe gnoll de morte
para as crianças humanas. Havia demasiado em risco.
Drizzt virou-se para Guenhwyvar, com a voz mais determinada do que resignada:
— Apanha-o.

O gnoll tropeçava por entre os arbustos, olhando em volta ansiosamente, enquanto imaginava
silhuetas negras por detrás de cada pedra ou de cada árvore.
— Drow! — rosnava repetidamente, usando a palavra como uma espécie de encorajamento
enquanto fugia. — Drow! Drow!
Ofegante, o gnoll chegou a uma fila de árvores que se estendia entre duas paredes altas de pedra
nua. Tropeçou num tronco caído e magoou as costelas ao embater numa pedra coberta de musgo. Mas
essas dores menores não iriam abrandar a assustada criatura, de modo algum. O gnoll sabia que
estava a ser perseguido, sentia uma presença a rondar nas sombras, sempre no limite de onde
alcançava o seu olhar.
Quando estava a chegar perto do fim da fila de árvores, envoltas numa escuridão cada vez mais
cerrada, o gnoll deparou com um par de olhos amarelos faiscantes a olharem para ele. O gnoll vira o
seu companheiro que fora abatido pela pantera e podia adivinhar o que estava agora a bloquear-lhe o
caminho.
Os gnolls eram monstros cobardes, mas eram capazes de combater com uma tenacidade
surpreendente, quando encurralados. Assim acontecia agora. Percebendo que não tinha por onde fugir
— pois evidentemente não podia voltar para trás em direcção ao elfo negro — o gnoll rosnou e
ergueu a pesada lança.
Ouviu um restolhar, um baque surdo e um guincho de dor quando a lança atingiu algo. Os olhos
amarelos afastaram-se por um momento, e depois uma silhueta correu para uma árvore. Movia-se
rente ao chão, quase como um felino, mas o gnoll percebeu logo que o seu alvo não era uma pantera.
Quando o animal ferido chegou à árvore, olhou para trás e o gnoll reconheceu-o claramente.
— Texugo — rosnou o gnoll. E riu-se. — Estava a fugir de um texugo!
O gnoll abanou a cabeça e afastou o sorriso com um suspiro profundo. A visão do texugo dera-lhe
uma certa dose de alívio, mas não podia esquecer-se do que tinha acontecido mais atrás. Agora, tinha
de regressar ao seu antro, para relatar a Ulgulu, o seu gigantesco amo duende, a sua criatura-deus,
tudo acerca do drow.
Deu um passo em frente para recuperar a lança, e depois parou subitamente, sentindo movimento
atrás de si. Lentamente, virou a cabeça. Conseguia ver o seu próprio ombro e uma rocha coberta de
musgo mais atrás.
Ficou imóvel. Nada se movia atrás dele, não vinha um único som de entre as árvores, mas a besta
sabia que alguma coisa estava lá atrás. A respiração do goblinóide era agora entrecortada; as mãos
gordas abriam-se e fechavam-se ao lado do corpo.
O gnoll rodou rapidamente e rugiu, mas o urro de raiva transformou-se num grito de horror quando
trezentos quilos de pantera saltaram de uma árvore para cima dele.
O impacto fez o gnoll estatelar-se, mas não era uma criatura fraca. Ignorando as dores excruciantes
das cruéis garras da pantera, o gnoll agarrou a cabeça de Guenhwyvar e manteve as maxilas mortais
afastadas, tentando impedi-las de encontrar o seu pescoço.
Durante quase um minuto, o gnoll debateu-se, com os braços a fraquejar sob a pressão dos
poderosos músculos do pescoço da pantera. Foi então que a cabeça do felino desceu e Guenhwyvar
encontrou um ponto onde agarrar. Dentes enormes fecharam-se sobre o pescoço do gnoll e abafaram
a respiração da criatura condenada.
O gnoll agitou-se e sacudiu-se freneticamente; conseguindo mesmo rebolar para cima da pantera.
Guenhwyvar manteve-se impassível, despreocupada. As maxilas mantinham-se bem cerradas.
Ao fim de uns minutos, a agitação cessou.
Drizzt deixou a visão reverter para o espectro infra-vermelho, usando a visão nocturna que podia ver
gradações de calor tão claramente como via os objectos à luz do dia. Aos seus olhos, as cimitarras
brilhavam agora ofuscantemente com o calor do sangue fresco, e os corpos trespassados dos gnolls
mortos espalhavam o calor no ar.
Tentou desviar o olhar, tentou observar o trilho por onde Guenhwyvar seguira em perseguição do
quinto gnoll, mas, cada vez que o fazia, o olhar voltava a recair sobre gnolls mortos e sobre as
espadas ensanguentadas.
— Que fiz eu? — interrogou-se em voz alta.
De facto, não sabia. Os gnolls tinham falado em chacinar crianças, ideia que despertara a raiva no
seu interior. Mas o que sabia ele do conflito entre os gnolls e os humanos da aldeia? Poderiam os
humanos, mesmo as crianças humanas, ser monstros? Talvez eles tivessem atacado a aldeia dos
gnolls e tivessem matado sem piedade. Talvez os gnolls tivessem apenas querido retaliar porque não
tinham outra escolha, porque tinham de se defender.
Drizzt afastou-se da cena macabra em busca de Guenhwyvar, esperando conseguir chegar perto da
pantera antes que o quinto gnoll fosse morto. Se conseguisse encontrar o gnoll e capturá-lo, talvez
pudesse ter algumas respostas para as perguntas que desesperadamente precisava de ver
respondidas. Movia-se por passadas largas e elegantes, mal fazendo um ruído enquanto deslizava por
entre os arbustos ao longo do trilho. Encontrou facilmente sinais da passagem do gnoll, e viu, para
seu receio, que Guenhwyvar também tinha encontrado essa pista. Quando finalmente chegou à fila de
árvores, já esperava que a sua busca estivesse perto do final. Mesmo assim, o coração de Drizzt
abateu-se quando viu o felino reclinado junto da última vítima.
Guenhwyvar olhou para Drizzt com curiosidade enquanto este se aproximava, vendo os passos
obviamente agitados do drow.
— Que fizemos nós, Guenhwyvar? — murmurou Drizzt. A pantera inclinou a cabeça como se não
estivesse a perceber. — Quem sou eu para fazer juízos? — prosseguiu Drizzt, falando mais para si
mesmo do que para o felino. Afastou-se de Guenhwyvar e do gnoll morto e foi até um arbusto
frondoso, onde podia limpar o sangue das espadas. — Os gnolls não me atacaram a mim; e tinham-
me à sua mercê quando deram comigo no riacho. E eu retribui-lhes matando-os…
Drizzt rodou para ficar de frente para Guenhwyvar enquanto proclamava estas palavras, como se
esperasse que a pantera o censurasse de alguma forma, o condenasse e assim justificasse a sua culpa.
Guenhwyvar não se tinha movido um centímetro e não sabia de nada; e os seus grandes olhos,
brilhando num amarelo esverdeado no meio da noite, não perscrutavam Drizzt, nem o recriminavam
de forma alguma pelas suas acções.
Drizzt ia começar a protestar, querendo sublinhar a sua sensação de culpa, mas a aceitação calma
de Guenhwyvar não se deixou abalar. Quando tinham vivido sozinhos na selva do Subescuro, quando
Drizzt se perdera a si mesmo cedendo às tentações selvagens que tornavam a matança um prazer,
Guenhwyvar chegara por vezes a desobedecer-lhe, e regressara até ao seu Plano Astral, certa vez,
sem sua licença. Agora, no entanto, a pantera não mostrava sinais de se ir embora ou de
desapontamento. Guenhwyvar levantou-se, sacudiu o pó e as folhas secas da pelagem elegante e
negra e avançou para se encostar a Drizzt.
Gradualmente, Drizzt descontraiu-se. Limpou de novo as cimitarras, desta vez com ervas grossas,
e depois voltou a embainhá-las. Por fim, pousou uma mão agradecida na enorme cabeça de
Guenhwyvar.
— As palavras deles denunciaram a sua maldade — murmurou o drow, para se tranquilizar. — As
intenções deles forçaram-me às minhas acções.
As palavras não tinham muita convicção, mas, nesse momento, Drizzt tinha de acreditar nelas.
Respirou fundo para se acalmar e olhou para dentro, para procurar a força que sabia de que ia
precisar. Percebendo depois que Guenhwyvar estava ao seu lado havia já bastante tempo e precisava
de regressar ao Plano Astral para descansar, meteu a mão na pequena bolsa que tinha ao lado.
Antes que Drizzt retirasse a estatueta de ónix da bolsa, porém, uma pata da pantera ergueu-se e
sacudiu-lhe a mão. Drizzt olhou intrigado para Guenhwyvar, e o felino encostou-se a ele
pesadamente, quase o fazendo cair.
— Meu leal amigo — disse Drizzt, percebendo que o felino queria ficar junto dele, preocupado.
Tirou a mão da bolsa e caiu sobre um joelho, dando a Guenhwyvar um forte abraço. Depois, ambos
se afastaram do cadáver do gnoll, caminhando lado a lado.
Drizzt não dormiu nessa noite, mas ficou a ver as estrelas e a interrogar-se. Guenhwyvar sentia a
ansiedade dele e manteve-se perto desde o momento em que a Lua apareceu e até voltar a
desaparecer; e quando Drizzt avançou para saudar o novo dia, Guenhwyvar caminhou ao seu lado,
lenta e cansadamente. Encontraram um pico rochoso na colina e recostaram-se para ver o espectáculo
ardente.
Lá em baixo, as últimas luzes desapareciam das janelas da aldeia de agricultores. O céu a leste
tornou-se cor-de-rosa, depois púrpura; mas Drizzt deu consigo distraído. O seu olhar regressava
constantemente às casas agrícolas lá mais em baixo; a sua mente tentava reconstituir as rotinas
daquela comunidade desconhecida e tentava encontrar nisso alguma justificação para os
acontecimentos do dia anterior.
Os humanos eram agricultores, isso Drizzt já sabia, e também trabalhadores diligentes, pois muitos
deles já estavam lá fora a tratar das suas terras. Embora esses factos fossem promissores, Drizzt,
mesmo assim, não podia presumir nada acerca do comportamento da raça humana em geral.
Foi então que tomou uma decisão, enquanto a luz do dia começava a espalhar-se, iluminando as
estruturas de madeira da aldeia e os vastos campos de cereais.
— Tenho de aprender mais, Guenhwyvar — disse suavemente. — Se eu… Se nós vamos ficar
neste mundo, temos de compreender os usos dos nossos vizinhos.
Abanou a cabeça em concordância com as suas próprias palavras. Já ficara provado,
dolorosamente provado, que não poderia permanecer como observador neutral das coisas que se
passavam na superfície. Drizzt era frequentemente levado a entrar em acção pela sua consciência,
uma força que não tinha maneira de contrariar. No entanto, sabendo tão pouco acerca das raças que
habitavam na região, a sua consciência poderia facilmente fazê-lo cair em erro. Poderia causar danos
a inocentes, assim anulando os próprios princípios de que queria ser o campeão.
Semicerrou os olhos para enfrentar a luz da manhã, vasculhando a aldeia distante em busca de
alguma sugestão de uma resposta.
— Irei até lá — disse para a pantera. — Irei até lá, e observarei e aprenderei.
Guenhwyvar manteve-se sentada em silêncio todo o tempo. Se a pantera aprovava ou desaprovava,
ou sequer se entendia as intenções de Drizzt, não saberia dizer. Desta vez, porém, Guenhwyvar não
fez nenhum gesto de protesto quando Drizzt pegou na estatueta de ónix. Uns momentos mais tarde, a
grande pantera corria pelo túnel planar até ao seu lar astral, e Drizzt avançava pelos trilhos que iam
dar à aldeia humana e às suas respostas. Só parou uma vez, junto ao corpo do gnoll morto, para
recolher a capa da criatura. Estremeceu perante o seu gesto de pilhagem, mas a noite fria recordara-
lhe que a perda do seu piwafwi poderia vir a ser grave.
Até esse momento, o conhecimento que Drizzt tinha dos humanos e da sua sociedade era
severamente limitado. Bem no fundo das entranhas do Subescuro, os elfos negros tinham pouca
comunicação, ou interesse em tê-la, com os da superfície. A única vez em que Drizzt ouvira falar de
humanos em Menzoberranzan fora durante os anos de estudo na Academia, nos seis meses que
passara em Sorcere, a escola de magia. Os mestres drow tinham avisado os alunos contra o uso da
magia «da forma como um humano faria», dando a entender uma perigosa falta de cuidado,
geralmente associada com essa raça de vida muito mais curta.
«Os magos humanos», diziam os mestres, «não têm menos ambições do que os magos drow; mas
enquanto um drow pode demorar cinco séculos a atingir o seu objectivo, um humano apenas tem umas
curtas décadas».
Drizzt trouxera as implicações dessa afirmação consigo durante bons anos, e especialmente
durante os últimos meses, desde que olhara para a aldeia humana quase diariamente. Se todos os
humanos, e não apenas os magos, fossem tão ambiciosos como tantos dos drow — fanáticos capazes
de passar a maior parte de um milénio a tentar atingir os seus objectivos — seriam consumidos por
uma teimosia próxima da histeria? Ou talvez, esperava Drizzt, as histórias que tinha ouvido acerca
dos humanos na Academia fossem apenas mais algumas das típicas mentiras que envolviam aquela
sociedade numa teia de intrigas e paranóia. Talvez os humanos tabelassem os seus objectivos por
níveis mais razoáveis e encontrassem alegria e satisfação nos pequenos prazeres dos curtos dias das
suas existências.
Drizzt só encontrara um humano, uma vez, nas suas viagens pelo Subescuro. Esse homem, um
mago, comportara-se de forma irracional, imprevisível, e derradeiramente perigosa. O mago
transformara um amigo de Drizzt, um pech, pequena e inofensiva criatura humanóide, num monstro
horrível. Quando Drizzt e os seus companheiros tinham ido tentar reverter o processo na torre do
mago, tinham sido recebidos com uma explosão de raios. No fim de tudo, o humano tinha sido morto
e o amigo de Drizzt, Clacker, acabara entregue ao seu tormento.
Drizzt ficara com uma amarga sensação de vazio, com esse exemplo de um homem que parecia
confirmar a verdade dos avisos dos mestres. Por isso, era com passos cautelosos que agora
caminhava em direcção à aldeia humana, com cada passo carregado do receio crescente de que
tivesse errado ao matar os gnolls.
Decidiu observar a mesma casa isolada do lado ocidental da aldeia que os gnolls tinham
seleccionado para o seu raide. Era uma longa e baixa estrutura de troncos de madeira com uma única
porta e várias janelas fechadas. Um alpendre corria ao longo da frente. Mais ao lado havia um
celeiro, com a altura de dois andares, com portas largas e altas que permitiam a entrada de uma
grande carroça. Vedações de vários tamanhos e tipos marcavam o eirado logo ao lado, muitas delas
contendo galinhas ou porcos, uma enclausurando uma cabra, e outras vedando zonas de filas muito
direitas de verduras que Drizzt desconhecia.
O eirado era flanqueado por campos de três lados, mas as traseiras da casa ficavam perto da
vegetação densa das encostas da montanha e de grandes rochedos. Drizzt enfiou-se por debaixo dos
ramos mais baixos de um pinheiro, junto ao canto de trás da casa, que lhe permitia ver quase todo o
eirado.
Os três homens adultos da casa — três gerações, supôs Drizzt, avaliando pela aparência —
trabalhavam nos campos, demasiado longe das árvores para que conseguisse ver muitos pormenores.
Mais perto da casa, porém, havia quatro crianças; uma filha que estava quase a tornar-se mulher e
três rapazes mais jovens, que tratavam dos seus assuntos calmamente, tratando das galinhas e dos
porcos e cortando as ervas daninhas das hortas. Trabalharam separadamente e com o mínimo de
interacção durante a maior parte da manhã, e Drizzt pouco aprendeu sobre as suas relações
familiares. Quando uma mulher possante, com o mesmo cabelo cor de palha que todos os cinco
jovens, saiu para o alpendre e fez soar um enorme sino, pareceu que toda a alma que tinha estado
aprisionada dentro dos trabalhadores se soltou de repente, para além de qualquer controlo.
Aos saltos e aos gritos, os três rapazes começaram a correr para a casa, parando apenas um
momento para atirarem vegetais murchos à irmã mais velha. Inicialmente, Drizzt pensou que aquele
bombardeamento fosse apenas o prelúdio para um conflito mais sério, mas a jovem retaliou na
mesma moeda, e todos riam; Drizzt percebeu que era uma brincadeira.
Um momento mais tarde, o mais jovem dos homens que andavam nos campos, provavelmente um
irmão mais velho, entrou rapidamente no eirado, gritando e brandindo uma gadanha de aço. A jovem
rapariga gritou encorajando o novo aliado e os três rapazes correram para o alpendre. Mas o homem
era rápido e agarrou o que tinha ficado mais para trás com um braço forte, e lançou-o imediatamente
para o outro lado da vedação dos porcos.
E durante todo esse tempo, a mulher com o sino abanava apenas a cabeça, impotente, lançando um
interminável e exasperado resmungo. Uma mulher mais velha, de cabelos grisalhos e muito magra,
veio pôr-se ao lado dela, brandindo ameaçadoramente uma colher de pau. Aparentemente satisfeito,
o jovem pôs um braço por cima dos ombros da rapariga e seguiram os dois primeiros rapazes para
dentro de casa. O rapazito que restava saiu da lama e ia segui-los, mas a colher de pau manteve-o à
distância.
Drizzt não conseguia perceber uma palavra do que estavam a dizer, evidentemente, mas calculou
que a mulher não deixaria o mais pequeno entrar em casa enquanto não se limpasse e secasse. O
irrequieto rapaz resmungou qualquer coisa para as costas da mulher da colher de pau enquanto esta
entrava em casa, mas escolheu mal o momento.
Os dois outros homens, um deles com uma barba espessa e grisalha e o outro sem barba,
regressavam do campo e apareceram atrás do rapaz enquanto este resmungava. Lá foi o rapaz de
novo pelo ar, aterrando mais uma vez na lama dos porcos. Felicitando-se animadamente pelo seu
feito, os dois homens entraram em casa, perante os aplausos de todos os outros. O rapazito
encharcado limitava-se agora a resmungar sozinho e atirava água para a cara de um porco que se
tinha aproximado para ver o que se passava.
Drizzt observava isto tudo com um crescente entusiasmo. Nada vira de conclusivo, mas os gestos
brincalhões da família e mesmo a aceitação resignada do vencido da brincadeira deram-lhe motivos
para se sentir encorajado. Sentiu um espírito de comunidade naquele grupo, com todos os membros a
trabalharem para o mesmo objectivo. Se esta quinta fosse uma imagem de toda a aldeia, então esse
lugar seria decerto muito mais semelhante a Blingdenstone, a cidade comunal dos gnomos das
profundezas, do que a Menzoberranzan.
A tarde correu praticamente da mesma forma como a manhã, com uma mistura de trabalho e
diversão evidente por toda a quinta. A família recolhia cedo e apagava as luzes pouco depois do pôr-
do-sol, e Drizzt recolheu para a vegetação mais densa da colina para ponderar sobre as suas
observações.
Continuava a não poder ter a certeza de nada, mas dormiu mais sossegado nesse noite, sem ser
perturbado por dúvidas persistentes quanto aos gnolls mortos.

Durante três dias, o drow manteve-se nas sombras por detrás da quinta, a observar a família a
trabalhar e a divertir-se. A união entre todo o grupo tornou-se cada vez mais evidente, e sempre que
surgia uma verdadeira briga entre os mais jovens, o adulto que estivesse mais perto intervinha
imediatamente e mediava o conflito até a um nível de razoabilidade. Invariavelmente, os contendores
estavam de novo a brincar juntos daí a pouco tempo.
Todas as dúvidas tinham agora abandonado Drizzt.
— Cuidado com as minhas lâminas, salteadores — murmurou para a montanha silenciosa, certa
noite.
O jovem drow renegado decidira que se quaisquer gnolls ou duendes — ou criaturas de qualquer
outra raça que fosse — tentassem carregar sobre aquela família de agricultores teriam de primeiro se
ver com as cimitarras rodopiantes de Drizzt Do’Urden.
Drizzt sabia o risco que corria ao observar a família daquela quinta. Se os agricultores dessem
com ele — o que era uma possibilidade bastante forte — decerto entrariam em pânico. Neste ponto
da sua vida, porém, Drizzt estava disposto a correr esse risco. Uma parte dele era capaz até de
desejar ser descoberto
Cedo na manhã do quarto dia, antes de o Sol ter encontrado o caminho para o céu de oriente,
Drizzt iniciou a sua patrulha diária, percorrendo as colinas e bosques que rodeavam a casa isolada.
Quando o drow regressou ao seu esconderijo, o dia de trabalho na quinta já estava bem avançado.
Sentou-se confortavelmente num tufo de musgo e espreitou por entre as sombras o brilho do dia sem
nuvens.
Menos de uma hora depois, uma figura solitária escapuliu-se da casa e veio na direcção de Drizzt.
Era o mais novo dos rapazes, o louro que parecia passar tanto tempo dentro da cerca dos porcos
como fora dela, e geralmente não por sua própria vontade.
Drizzt deslizou para trás de um tronco que estava por perto, sem saber as intenções do rapaz.
Depressa percebeu que ele não o vira, porque entrou na vegetação espessa, olhou por cima do ombro
para a casa, murmurando qualquer coisa com desdém, e dirigiu-se para a mata, assobiando o tempo
todo. Drizzt percebeu que o rapaz estava a fugir às suas tarefas, e quase aplaudiu a atitude ousada.
No entanto, não estava muito seguro da sensatez do rapaz em aventurar-se assim para longe de casa,
num terreno tão perigoso. Não poderia ter mais de dez anos; parecia magro e delicado, com uns olhos
azuis e inocentes a espreitar por entre caracóis de âmbar.
Drizzt esperou alguns momentos, para dar ao rapaz um bom avanço e para ver se vinha alguém a
segui-lo, e depois seguiu o mesmo trilho, deixando que o assobio o guiasse.
O rapaz avançava resolutamente para longe da casa, em direcção à montanha, e Drizzt seguia uns
cem passos atrás dele, determinado a mantê-lo fora de perigo.
Nos túneis sombrios do Subescuro, Drizzt poderia estar a andar logo atrás do rapazito — ou atrás
de um duende ou do que quer que fosse — e não ser descoberto até dar uma palmadinha no ombro do
perseguido. Mas em apenas meia hora desta perseguição, as mudanças de direcção e de velocidade
ao longo do trilho, juntamente com o facto de o assobio ter terminado, disseram a Drizzt que o rapaz
sabia que estava a ser seguido.
Interrogando-se se o rapaz teria sentido a presença de uma terceira criatura, Drizzt convocou
Guenhwyvar por meio da estatueta de ónix e mandou a pantera numa manobra de flanco. Depois,
recomeçou a avançar com passos cautelosos.
Um momento depois, quando a voz da criança se ouviu num grito de aflição, o drow sacou as
cimitarras e deixou de lado todas as precauções. Não conseguia perceber nenhuma das palavras do
rapaz, mas o tom desesperado era suficientemente claro.
— Guenhwyvar! — chamou Drizzt, tentando trazer a pantera de volta para seu lado.
Mas não podia parar e ficar à espera do felino, e prosseguiu em frente.
O trilho avançava agora por uma subida íngreme, saía das árvores subitamente e terminava num
amplo fosso, com uns bons seis metros de largura. Um simples tronco de árvore deitado atravessava
o fosso, e desse tronco, perto do outro lado, estava o rapaz pendurado. Os olhos abriram-se-lhe
muito perante a visão do elfo de pele de ébano, com as cimitarras nas mãos. Gaguejou algumas
palavras que Drizzt não conseguiu perceber.
Uma sensação de culpa invadiu Drizzt, perante a visão do rapaz em perigo; este apenas tinha
acabado naquela situação devido à sua perseguição. O fosso não era muito profundo; tinha quase
tanto de fundo como de largo; mas uma queda acabaria em cima de rochas pontiagudas e de cascalho.
Inicialmente, Drizzt hesitou, apanhado desprevenido pelo encontro inesperado e pelas suas
inevitáveis implicações; mas depois o drow pôs rapidamente os seus próprios problemas de lado.
Voltou a embainhar as cimitarras e, cruzando os braços sobre o peito, num sinal drow de paz,
colocou um pé sobre o tronco.
O rapaz tinha outras intenções. Assim que recuperou do choque de ver um estranho elfo, fez-se
balançar até uma saliência de pedra do outro lado do fosso, em frente a Drizzt, e empurrou o tronco
do apoio. Drizzt recuou rapidamente do tronco enquanto este se precipitava no fosso. Percebeu então
que o rapaz nunca estivera realmente em perigo, mas fingira os apuros para fazer aparecer o seu
perseguidor. E, presumiu Drizzt, se o perseguidor tivesse sido alguém da família do rapaz, como este
decerto tinha pensado, a situação de perigo teria certamente afastado qualquer ideia de castigo.
Agora era Drizzt quem estava numa situação de perigo. Tinha sido descoberto. Tentou pensar numa
forma de comunicar com o rapaz, de explicar a sua presença e evitar que ele se assustasse. Mas o
rapaz não esperou por nenhuma explicação. De olhos muito abertos e presa do terror, escalou a
parede de pedra — por um caminho que obviamente conhecia bem — e correu para dentro da
vegetação espessa.
Drizzt olhou em volta, impotente.
— Espera! — gritou na língua drow, embora soubesse que o rapaz não entenderia, e que não
pararia, mesmo que entendesse.
Uma silhueta negra de felino surgiu por detrás de Drizzt e saltou no ar, atravessando com
facilidade o fosso. Guenhwyvar aterrou com suavidade do outro lado e desapareceu entre a
vegetação.
— Guenhwyvar! — gritou Drizzt, tentando fazer parar a pantera. Não fazia ideia de como o felino
reagiria à criança. Tanto quanto Drizzt sabia, a pantera só vira humanos uma vez, e fora o mago que
os companheiros de Drizzt tinham acabado por matar. Olhou em volta, procurando alguma maneira de
os seguir. Podia descer pela parede do fosso, atravessar o fundo e depois subir a parede oposta, mas
isso demoraria demasiado.
Correu uns passos para trás, e depois correu em direcção ao fosso e saltou no ar, recorrendo aos
seus poderes inatos de levitação enquanto o fazia. Sentiu-se verdadeiramente aliviado quando sentiu
o corpo a libertar-se da força da gravidade. Não usava o seu poder de levitação desde que viera para
o mundo da superfície. Esse encantamento não tinha nenhuma utilidade para um drow escondido sob
o céu aberto. Gradualmente, o balanço inicial de Drizzt levou-o até perto do outro lado do fosso.
Começou a concentrar-se em descer suavemente até à pedra, mas o encantamento terminou
abruptamente e caiu com força. Ignorou as equimoses no joelho e as perguntas sobre porque razão o
encantamento tinha falhado, e começou a subir rapidamente, chamando desesperadamente
Guenhwyvar, para a fazer parar.
Ficou aliviado quando encontrou o felino. Guenhwyvar estava calmamente sentado numa clareira,
com uma pata assente descontraidamente sobre o rapaz, colando-o ao chão de cara para baixo. A
criança estava outra vez aos gritos — de socorro, presumiu Drizzt —, mas parecia não estar ferida.
— Vem, Guenhwyvar — disse Drizzt calmamente, em voz baixa. — Deixa a criança em paz.
Guenhwyvar bocejou longamente e obedeceu, avançando lentamente pela clareira até chegar ao
lado do seu amo.
O rapaz manteve-se deitado por um longo momento. Depois, reunindo toda a sua coragem, moveu-
se subitamente, pondo-se de pé num salto e virando-se para enfrentar o elfo negro e a pantera. Os
olhos pareciam ainda mais arregalados do que antes, quase numa caricatura de terror, quase saltando
da cara agora suja de terra.
— O que és tu? — perguntou o rapaz na língua comum dos humanos.
Drizzt abriu muito os braços, para indicar que não compreendia.
Num impulso súbito, apontou um dedo para o peito e respondeu:
— Drizzt Do’Urden.
Reparou que o rapaz estava a mover-se lentamente, colocando dissimuladamente um pé atrás do
outro, e depois pondo o segundo ao lado do anterior. Drizzt não ficou surpreendido — e desta vez
assegurou-se de que mantinha Guenhwyvar à vista — quando o rapaz fez meia volta e desatou a
correr, gritando a cada passo:
— Socorro! É um drizzit!!
Drizzt olhou para Guenhwyvar e encolheu os ombros, e o felino pareceu responder da mesma
forma.
Nathak, um duende de braços longos, seguia o seu caminho lentamente pelo declive íngreme de
rocha, com cada passo pesado de receios. O duende tinha de relatar o seu achado — cinco gnolls
mortos não eram coisa que se pudesse ignorar —, mas a desafortunada criatura duvidava seriamente
de que Ulgulu ou Kempfana aceitassem bem essas notícias. Mas, fosse como fosse, que opções tinha
Nathak? Poderia fugir, correr pelo outro lado da montanha e enfiar-se na floresta. Mas isso parecia
uma alternativa ainda mais desesperada, pois o duende conhecia bem o gosto que Ulgulu tinha pela
vingança. O grande senhor de pele púrpura conseguia arrancar uma árvore do chão apenas com as
mãos nuas, era capaz de arrancar mãos-cheias de pedra das paredes da caverna, e era capaz de
rasgar prontamente a garganta de um duende desertor.
Cada passo que Nathak dava provocava-lhe um arrepio, enquanto passava pelos arbustos que
escondiam a pequena entrada do complexo de grutas do seu senhor.
— Já era tempo de estares de volta — rosnou um dos dois duendes que estavam nessa antecâmara.
— Já andavas fora há dois dias!
Nathak limitou-se a acenar com a cabeça e a respirar fundo.
— Que tens a dizer? — perguntou o terceiro duende. — Encontraste os gnolls?
A cara de Nathak empalideceu, e nenhuma quantidade de ar inspirado profundamente podia aliviar
o esgar de medo da cara do duende.
— Ulgulu está aí? — perguntou receosamente.
Os dois guardas duendes olharam com curiosidade um para o outro, e depois olharam de novo
para Nathak.
— Encontrou os gnolls — notou um deles, adivinhando o problema. — Gnolls mortos.
— Ulgulu não vai ficar nada satisfeito — acrescentou o outro. E afastaram-se, com um deles a
levantar a pesada cortina que separava a antecâmara da sala de audiências.
Nathak hesitou e começou a olhar para trás, como que a reconsiderar toda a sua decisão. Talvez a
fuga fosse preferível, pensou. Os guardas duendes agarraram o companheiro e empurraram-no
bruscamente para a sala de audiências, cruzando as lanças atrás dele, para impedirem qualquer
hipótese de retirada.
Nathak conseguiu reunir algum sangue frio e compostura quando viu que era Kempfana, e não
Ulgulu, que estava sentado na grande cadeira do outro lado da sala. Kempfana ganhara a reputação,
entre os duendes inferiores, de ser o mais calmo dos dois irmãos reinantes, ainda que também ele
tivesse já devorado impulsivamente demasiados dos seus servidores para poder ser respeitado
saudavelmente por estes. Kempfana mal notou a entrada de Nathak, conversando animadamente com
Lagerbottoms, o gordo gigante das montanhas que anteriormente reclamara a caverna como sua.
Nathak arrastou os pés pela sala, atraindo sobre si os olhares do gigante das montanhas e do
enorme goblinóide cor de púrpura, quase do tamanho do gigante.
— Sim, Nathak — encorajou Kempfana, calando os protestos que o gigante das montanhas ia
começar com um simples gesto sacudido da mão. — Que tens a relatar?
— Eu… eu… — gaguejou Nathak.
Os grandes olhos de Kempfana brilharam subitamente com um tom laranja, num sinal claro de
perigosa animosidade.
— Eu encontrei os gnolls! — despejou de uma vez Nathak. — Mortos. Chacinados.
Lagerbottoms soltou um rugido grave e ameaçador, mas Kempfana agarrou-lhe um braço com
força, lembrando-lhe quem mandava ali.
— Mortos? — perguntou o duende de pele púrpura calmamente.
Nathak assentiu com a cabeça.
Kempfana lamentou a perda de escravos tão valiosos, mas os pensamentos do barghest whelp,
nesse momento, estavam mais concentrados na inevitavelmente volátil reacção do irmão a estas
notícias. E Kempfana não precisou de esperar muito.
— Mortos! — ouviu-se o rugido, tão forte que quase abria rachas na rocha. Todos os três monstros
na caverna se encolheram instintivamente e se chegaram para o lado, mesmo a tempo de verem uma
enorme pedra, que era a porta tosca para outra sala, a voar pelo ar e a deslizar depois pelo chão.
— Ulgulu! — guinchou Nathak. E o pequeno duende caiu de cara para baixo no chão, sem se
atrever a olhar.
A enorme criatura goblinóide de pele púrpura entrou de rompante na sala de audiências, com os
olhos a faiscar a laranja. Três grandes passadas puseram Ulgulu mesmo ao lado do gigante das
montanhas, e Lagerbottoms pareceu de repente muito pequeno e vulnerável.
— Mortos! — rugiu de novo Ulgulu, enraivecido. Dado que a sua tribo de duendes tinha vindo a
reduzir-se — uns mortos pelos humanos da aldeia ou por outros monstros, outros comidos por Ulgulu
durante os seus habituais ataques de fúria —, o pequeno bando de gnolls tornara-se a principal força
de captura do antro.
Kempfana lançou um olhar retorcido ao irmão maior. Tinham vindo juntos para o Plano Material,
dois barghest whelps, para comerem e crescerem. Ulgulu tinha prontamente reclamado o predomínio,
devorando as mais fortes das vítimas e, assim, tornando-se maior e mais forte. Pela cor da pele de
Ulgulu, e pelo seu simples tamanho e força, era evidente que o whelp poderia em breve regressar aos
grandes vales de Gehenna.
Kempfana ansiava por esse dia. Quando Ulgulu se fosse, seria ele a reinar; comeria e ficaria mais
forte e então também ele poderia escapulir-se deste período interminável de caça neste maldito
plano, e poderia regressar para competir entre os barghests no seu adequado plano de existência.
— Mortos — rugiu Ulgulu mais uma vez. — Levanta-te, maldito duende, e diz-me como! Quem fez
isso aos meus gnolls?
Nathak encolheu-se por mais um minuto, mas depois conseguiu pôr-se de joelhos.
— Não sei — choramingou o duende. — Os gnolls estão mortos, trespassados e retalhados.
Ulgulu recuou nos calcanhares dos seus pés enormes e macios. Os gnolls tinham saído para atacar
uma quinta, com ordens para regressarem com o agricultor e o filho mais velho. Essas duas robustas
refeições humanas teriam fortalecido o grande barghest consideravelmente, levando até, talvez,
Ulgulu ao nível de maturidade necessário para poder regressar a Gehenna.
Agora, à luz do relato de Nathak, Ulgulu teria de enviar Lagerbottoms, ou talvez de ir ele mesmo, e
a visão do gigante ou do monstro de pele púrpura poderia levar a aldeia humana a acções
organizadas e perigosas.
— Tephanis! — rugiu Ulgulu subitamente.
Ao fundo, na parede mais distante, frente ao local onde Ulgulu fizera a sua entrada retumbante, uma
pequena pedrinha saiu do sítio e caiu. A queda era de apenas uns centímetros, mas quando a pedra
chegou ao chão um esguio duende veloz já tinha saído da pequena reentrância que usava como quarto,
atravessara os três metros da sala de audiências e correra para o lado de Ulgulu, para se sentar
confortavelmente sobre o imenso ombro do barghest.
— Chamaste-me! Chamaste-me, pois, meu senhor! — soprava Tephanis muito rapidamente. Os
outros nem sequer se tinham ainda apercebido de que o duende veloz de sessenta centímetros tinha
entrado na sala. Kempfana virou-se, sacudindo a cabeça espantado.
Ulgulu riu-se com estrépito; gostava tanto de ver o espectáculo de Tephanis, seu mais apreciado
servo… Tephanis era um quickling, um duende veloz diminuto que se movia numa dimensão que
transcendia o conceito normal de tempo. Possuindo energia imparável e uma agilidade que
envergonharia o mais experiente ladrão halfling, os quicklings conseguiam desempenhar muitas
tarefas que nenhuma outra raça poderia sequer tentar. Ulgulu tornara-se amigo de Tephanis logo no
início da sua estada no Plano Material — Tephanis era o único de entre os diversos residentes do
antro sobre quem o barghest não clamava domínio — e essa ligação dera ao jovem whelp uma
vantagem clara sobre o irmão. Com Tephanis a sondar em busca de novas vítimas potenciais, Ulgulu
sabia exactamente quais devorar e quais deixar para Kempfana, e sabia exactamente como vencer
contra aqueles aventureiros mais fortes do que ele.
— Caro Tephanis — ronronou Ulgulu numa estranha espécie de som arranhado. — Nathak, o
pobre Nathak — e o duende não deixou de perceber as implicações daquela menção — informou-me
de que os meus gnolls encontraram um desastre.
— E-tu-queres-que-eu-vá-ver-o-que-lhes-aconteceu, meu-senhor — respondeu Tephanis. Ulgulu
precisou de um momento para decifrar a cadeia quase ininteligível de palavras, e depois assentiu
vivamente com a cabeça. — É-para, já-meu-mestre. Volto-já.
Ulgulu sentiu um leve estremecer no ombro esquerdo, mas quando ele, ou qualquer outro, percebeu
o que Tephanis tinha dito, a pesada cortina que separava a sala de audiências da antecâmara já
estava a regressar à sua posição normal de novo. Um dos duendes espreitou lá para dentro por
apenas um momento, para ver se Kempfana ou Ulgulu o tinham chamado, e depois regressou à sua
posição, pensando que o movimento da cortina fosse apenas um golpe de ar.
Ulgulu rugiu de novo numa gargalhada estrepitosa; Kempfana lançou-lhe um olhar enojado. Odiava
o duende veloz e tê-lo-ia morto havia muito tempo, não fora o facto de não poder ignorar os
benefícios potenciais e presumindo que Tephanis trabalharia para ele quando Ulgulu regressasse a
Gehenna.
Nathak começou a recuar, pé ante pé, pretendendo retirar-se silenciosamente da sala. Ulgulu fê-lo
parar com um olhar.
— O teu relatório prestou-me bom serviço — começou o barghest. Nathak descontraiu-se, mas
apenas durante o momento que a grande mão de Ulgulu demorou a avançar, apanhar o duende pela
garganta e levantá-lo do chão. — Mas ter-me-ia servido melhor se tivesses tido o cuidado de
descobrir o que aconteceu aos meus gnolls!
Nathak ficou estonteado e quase desmaiou, e quando quase metade do seu corpo já estava enfiado
na boca esfaimada de Ulgulu, desejou que tivesse mesmo desmaiado.

— Esfrega o rabo, alivia a dor. Se paras ela volta. Esfrega o rabo, alivia a dor. Se paras ela volta —
repetia Liam Thistledown continuamente. Era uma litania para esquecer a sensação de ardor por
baixo dos calções, uma litania que o traquinas Liam conhecia bem demais. Mas desta vez era
diferente, com Liam a admitir realmente, para si mesmo, ao fim de algum tempo, que se tinha
escapulido às suas tarefas. — Mas o drizzit é verdade — resmungava desafiadoramente Liam.
Como que em resposta a esta declaração, a porta da cabana abriu-se apenas uma nesga e Shawno,
o segundo irmão mais novo a seguir a Liam, e Eleni, a única irmã, entraram.
— Desta vez, arranjaste-a bonita — troçou Eleni na sua melhor voz de irmã mais velha. — Já não
bastava fugires às tuas tarefas quando há tanto trabalho para fazer, e ainda vens com essas invenções!
— O drizzit é verdade — protestou Liam, não apreciando nada os ares maternais de Eleni. Liam
conseguia arranjar sarilhos suficientes com os pais, não precisava ainda dos conselhos sábios, a
posteriori, de Eleni. — Era preto como a bigorna do Connor e tinha um leão igualmente preto.
— Calados, vocês dois — avisou Shawno. — Se o pai descobre que estamos aqui fora a falar
disso, levamos umas vergastadas, todos nós.
— Drizzit… — suspirou Eleni, em tom de dúvida.
— É verdade! — protestou Liam demasiado alto e recebendo em resposta uma bofetada de
Shawno. Viraram-se os três, com os rostos muito corados, quando a porta se abriu completamente.
— Entra para aqui! — sussurrou asperamente Eleni, agarrando Flanny, que era um pouco mais
velho que Shawno, mas três anos mais novo que ela, pelo colarinho e puxando-o para dentro da
cabana. Shawno, que era sempre o que mais se preocupava com tudo, meteu rapidamente a cabeça lá
fora, para se certificar de que não estava ninguém a vê-los, e depois fechou a porta com cuidado.
— Não devias estar a espiar-nos! — ralhou Eleni.
— Como soubeste que eu estava lá fora? — retorquiu Flanny. — Vim só para me meter aqui com o
minorca — olhou para Liam, retorceu os lábios e agitou os dedos ameaçadoramente no ar. —
Cuidado! Cuidado! — cantarolava. — Sou o drizzit e venho comer rapazinhos!
Liam virou-lhe costas, mas Shawno não estava assim tão impressionado.
— Ora, cala-te! — disse para Flanny, dando ênfase às palavras com um carolo na cabeça do
irmão.
Flanny virou-se para retaliar, mas Eleni pôs-se entre os dois.
— Parem com isso! — gritou Eleni, tão alto que os quatro irmãos Thistledown levaram
imediatamente um dedo aos lábios para dizer:
— Chiu!
— O drizzit é verdade — protestou Liam mais uma vez. — Posso provar isso, se não tiverem
demasiado medo!
Os três irmãos olharam para ele com curiosidade. Era um grande traquinas, sabiam-no bem, mas
que teria ele a ganhar com isto? O pai não tinha acreditado nele, e isso era a única coisa que
importava, no que dizia respeito ao castigo. Porém, Liam continuava a jurar a pés juntos, e o tom com
que o fazia dizia-lhes a todos que havia alguma substância por detrás da afirmação.
— Como podes tu provar o drizzit? — perguntou Flanny.
— Amanhã não temos tarefas — respondeu Liam. — Iremos à montanha apanhar mirtilos.
— A mãe e o pai nunca nos deixam ir — atalhou Eleni.
— Mas se fosses tu, ele acreditava! — respondeu Liam excitadamente, suscitando um novo coro
de «chius».
— Não acredito em ti — respondeu Eleni calmamente. — Estás sempre a inventar coisas, sempre
a arranjar sarilhos e depois a mentir para te escapares.
Liam cruzou os pequenos braços sobre o peito e bateu com um pé impacientemente perante o
imparável fio lógico da irmã.
— Mas vais acreditar em mim — rosnou Liam —, se conseguires que o Connor também venha!
— Ah, faz isso! — pediu Flanny a Eleni, embora Shawno, pensando nas possíveis consequências,
abanasse a cabeça.
— Suponhamos que vamos, então, à montanha… — disse Eleni para Liam, incentivando-o a
continuar e revelando assim a sua concordância.
Liam sorriu de orelha a orelha e pôs um joelho no chão, reunindo um monte de serradura onde
pudesse desenhar um mapa aproximado da área onde tinha encontrado o drizzit. O plano era simples:
usar Eleni, que andaria casualmente a apanhar mirtilos, como isco. Os quatro irmãos segui-la-iam em
segredo e ficariam a observar enquanto ela fingiria ter torcido um tornozelo, ou algo assim. Os gritos
de aflição tinham feito aparecer o drizzit da primeira vez; decerto com uma bonita rapariguinha como
isco o drizzit voltaria a aparecer.
Eleni hesitou perante esta ideia, nada entusiasmada com a ideia de ser usada como isco.
— Mas se não acreditas em mim, de qualquer maneira… — notou Liam rapidamente. O sorriso
inevitável, completado por um buraco no sítio onde um dente tinha sido partido, mostrou que a
teimosia de Eleni a tinha encurralado.
— Pronto, eu faço isso, então! — inchou Eleni. — E não acredito no teu drizzit, Liam
Thistledown! Mas se o leão for real, e se eu for mordida, garanto que te trato da saúde!
E com isto, Eleni virou costas e saiu da cabana.
Liam e Flanny cuspiram nas mãos e depois olharam desafiadores para Shawno, até este vencer os
seus receios. Depois, os três irmãos uniram as mãos numa palmada triunfante e húmida. Quaisquer
desentendimentos entre eles pareciam sempre desaparecer assim que um deles conseguia encontrar
maneira de incomodar Eleni.
Nenhum deles falou a Connor acerca da planeada caça ao drizzit. Em vez disso, Eleni relembrou-
lhe os muitos favores que ele lhe devia e prometeu-lhe que consideraria essa dívida paga
integralmente — mas só depois de Liam ter concordado assumir essa dívida caso não encontrassem o
drizzit —, se Connor os levasse a todos a apanhar mirtilos.
Connor resmungou e hesitou, protestando com uma égua que precisava de ser ferrada, mas nunca
conseguia resistir aos olhos azuis da irmã e ao seu sorriso encantador; e a promessa dela de liquidar
a dívida considerável dele convenceu-o. Com a bênção dos pais, Connor levou os irmãos
Thistledown para as montanhas, com baldes nas mãos deles e uma espada rudimentar pendurada no
cinturão dele.

Drizzt percebeu a artimanha que estava a ser preparada muito antes sequer de a jovem filha do
agricultor avançar sozinha para o silvado onde havia mirtilos. Viu, também, os quatro rapazes
Thistledown, agachados nas sombras de um grupo de plátanos próximos, com Connor brandindo uma
espada rudimentar com não muita perícia.
O mais novo trouxera-os até ali, Drizzt sabia disso. No dia anterior, o drow vira o rapazito a ser
arrastado para a cabana. Os gritos de «drizzit!» tinham-se feito ouvir entre cada açoite, pelo menos
inicialmente. Agora, o teimoso rapaz tinha de provar a sua história mirabolante.
A apanhadora de mirtilos parou subitamente, depois caiu e gritou. Drizzt reconheceu no grito de
«socorro!» o mesmo apelo que o rapaz de cabelo cor de areia tinha usado na véspera, e um sorriso
rasgou-se-lhe no rosto negro. Pela forma ridícula como a rapariga tinha caído, Drizzt percebeu a
artimanha. A rapariga não estava magoada; estava simplesmente a chamar pelo drizzit.
Com um incrédulo abanar da sua espessa cabeleira branca, Drizzt começou a afastar-se, mas um
impulso súbito fê-lo parar. Voltou a olhar para a faixa de silvas dos mirtilos, onde a rapariga estava
sentada a massajar o tornozelo, ao mesmo tempo que olhava em volta nervosamente, e de vez em
quando para trás, para onde os irmãos estavam escondidos. Algo retesou os nervos de Drizzt nesse
momento; um impulso a que não poderia resistir. Quanto tempo tinha estado sozinho, vagueando sem
companhia? Ansiava por Belwar nesses momentos, pelo svirfnebli que o tinha acompanhado durante
tantos momentos difíceis na selva do Subescuro. Ansiava por Zaknafein, seu pai e seu amigo. Ver a
interacção entre aqueles irmãos que se estimavam era mais do que Drizzt Do’Urden conseguia
aguentar.
Chegara o momento de Drizzt Do’Urden conhecer os seus vizinhos.
Puxou o capuz da capa exageradamente grande de gnoll por cima da cabeça, embora a peça
esfarrapada pouco fizesse para esconder a verdade da sua herança, e avançou pelo terreno. Esperava
que, se conseguisse pelo menos contrariar a reacção inicial da rapariga quando o visse, pudesse
encontrar alguma maneira de comunicar com ela. Essas esperanças eram, no mínimo, optimistas.
— O drizzit! — murmurou Eleni, quase sem fôlego, quando o viu a aproximar-se. Queria gritar
bem alto, mas não tinha ar. Queria fugir, mas o terror mantinha-a imóvel.
De entre as árvores, Liam falou em lugar dela:
— O drizzit! — gritou o rapaz. — Eu bem vos disse! Eu bem disse!
Olhou para os irmãos, e Flanny e Shawno estavam a ter a esperada reacção de excitação. A cara
de Connor, porém, mostrava uma expressão de tão profundo horror que bastou a Liam olhar uma vez
para lhe retirar toda a alegria.
— Pelos deuses! — murmurou o filho mais velho Thistledown.
Connor tinha já feito algumas expedições com o pai e fora treinado para detectar inimigos. Olhou
para os três confusos irmãos e murmurou uma única palavra que nada explicava aos inexperientes
rapazes:
— Drow!
Drizzt parou a uns dez passos da rapariga assustada, que era a primeira fêmea humana que jamais
vira de perto, e estudou-a. Eleni era bonita, pelos padrões de qualquer raça, com uns grandes olhos
suaves, com as faces marcadas por covinhas e uma pele macia e dourada. Drizzt sabia que não
haveria ali nenhum combate. Sorriu para Eleni e cruzou os braços gentilmente sobre o peito.
— Drizzt — corrigiu, apontando para o peito. Um movimento mais ao lado fê-lo virar-se.
— Foge, Eleni! — gritou Connor Thistledown, brandindo a espada e carregando sobre o drow. —
É um elfo negro! Um drow! Foge, pela tua vida!
De tudo o que Connor gritou, Drizzt apenas percebeu a palavra «drow». A atitude e intenções do
jovem, porém, não podiam ser mal interpretadas, porque Connor carregava a direito entre ele e
Eleni, com a espada apontada a Drizzt. Eleni conseguiu pôr-se de pé atrás do irmão, mas não fugiu
como lhe tinha sido dito para fazer. Também ela já ouvira falar dos elfos negros, e não deixaria
Connor enfrentar um deles sozinho.
— Vai-te embora, elfo negro — rugiu Connor. — Sou experiente no manejo da espada e muito
mais forte do que tu.
Drizzt estendeu as mãos, impotente, sem perceber uma única palavra.
— Volta para trás! — gritava Connor.
Num impulso, Drizzt tentou responder no código silencioso drow, uma intricada linguagem de
gestos das mãos e expressões faciais.
— Está a lançar um encantamento! — gritou Eleni, mergulhando entre as silvas. Connor rugiu e
avançou.
Antes que Connor percebesse sequer o que estava a acontecer, Drizzt agarrou-o pelo antebraço,
usou a outra mão para torcer o pulso do rapaz e retirar-lhe a espada, fez rodopiar a arma rudimentar
por cima da cabeça de Connor por três vezes, depois fê-la saltar da mão magra e entregou-a de novo,
com o punho voltado para a frente.
Drizzt abriu os braços e sorriu. Nos usos drow, essa demonstração de superioridade sem provocar
ferimentos no oponente demonstrava sempre um desejo de amizade. Para o filho mais velho do
agricultor Bartholomew Thistledown, a exibição estonteante do drow apenas inspirara terror.
Connor ficou quieto, de boca aberta, por um longo momento. A espada caiu-lhe da mão, mas nem
deu por isso; as calças, molhadas, caíram-lhe até às coxas, mas ele nem deu por isso.
Um grito irrompeu de algures no fundo de Connor. Agarrou Eleni , que se lhe uniu no grito, e
correram de volta para as árvores, para se unirem aos outros, e depois fugiram para mais longe,
correndo sem parar até entrarem pela porta de casa.
Drizzt foi deixado ali, com o sorriso a apagar-se do rosto, de braços abertos, sozinho no meio de
um silvado de mirtilos.

Um par de olhos estonteantemente rápidos observara a cena no silvado com algo mais do que um
mero interesse casual. A inesperada aparição de um elfo negro, e especialmente de um elfo negro
com uma capa de gnoll, respondera a muitas perguntas de Tephanis. O quickling já tinha examinado
os cadáveres dos gnolls, mas os ferimentos destes não se enquadravam com as armas rudimentares
geralmente usadas pelos simples aldeões. Vendo as duas magníficas cimitarras que o elfo negro
trazia à cinta e a facilidade com que tinha desarmado o rapaz da aldeia, Tephanis soube a verdade.
O rasto de poeira deixado pelo quickling teria confundido os melhores rangers dos Reinos.
Tephanis, que nunca era um duende vulgar, ziguezagueou pelos trilhos da montanha, fazendo círculos
em volta de algumas árvores, subindo e descendo outras, e de uma maneira geral duplicando o
trajecto, ou mesmo triplicando-o. A distância nunca o preocupava; já estava diante do whelp de pele
púrpura antes que Drizzt, ponderando as implicações daquele desastroso encontro, tivesse deixado o
silvado.
A perspectiva do agricultor Bartholomew Thistledown mudou consideravelmente quando Connor,
seu filho mais velho, definiu o «drizzit» de Liam como um elfo negro. Thistledown passara todos os
seus quarenta e cinco anos em Maldobar, uma aldeia a setenta quilómetros a montante do Rio do Orc
Morto, a norte de Sundabar. O pai de Bartholomew vivera ali, e o pai dele antes dele. Em todo esse
tempo, as únicas notícias que qualquer agricultor Thistledown tivera alguma vez acerca de elfos
negros fora a lenda de um alegado raide drow a um pequeno acampamento de elfos selvagens, a uns
cento e cinquenta quilómetros mais a norte, em Coldwood. Esse raide, se é que chegara a ser
perpetrado pelos drow, ocorrera mais de uma década antes.
A falta de experiência pessoal com a raça drow não fazia diminuir os receios do agricultor
Thistledown ao ouvir os filhos a contarem a história do encontro no silvado. Connor e Eleni, duas
fontes de confiança e com idade suficiente para se manterem lúcidos num momento de crise, tinham
visto o elfo de perto, e não tinham dúvidas quanto à cor da sua pele.
— A única coisa que eu não consigo perceber bem — disse Bartholomew a Benson Delmo, o
gordo e alegre presidente da câmara de Maldobar, e a outros agricultores reunidos em sua casa nessa
noite — é porque razão este drow deixou as crianças fugirem. Não sou especialista nos usos dos
elfos negros, mas ouvi falar o suficiente deles para esperar um tipo de atitude diferente.
— Talvez Connor se tenha saído melhor no seu ataque do que ele próprio acreditou — sugeriu
Delmo, com algum tacto. Todos tinham ouvido a história de como Connor tinha sido desarmado.
Liam e os outros filhos Thistledown, excepto o pobre Connor, evidentemente, gostavam
especialmente de contar repetidamente essa parte da história.
Por muito que apreciasse o voto de confiança do presidente da câmara, Connor abanou a cabeça
enfaticamente perante essa ideia.
— Ele derrotou-me completamente — admitiu. — Talvez eu tenha ficado demasiado espantado
quando o vi, mas ele derrotou-me; sem dificuldade.
— O que não é fácil — acrescentou Bartholomew, calando quaisquer murmúrios jocosos por parte
da pequena assembleia. — Todos já vimos Connor a combater. Ainda no último inverno derrotou
três duendes e os lobos em que cavalgavam!
— Calma, meu bom Thistledown — interveio o presidente. — Não temos dúvidas das proezas do
teu filho.
— Eu tenho dúvidas acerca de verdade do inimigo! — atalhou Roddy McGristle, um homem do
tamanho de um urso e com tanto pêlo como ele, e que era o mais experiente em combate de entre
todos eles. Roddy passara mais tempo nas montanhas do que a tratar da sua quinta, trabalho recente
de que não gostava particularmente, e sempre que alguém oferecia uma recompensa por umas orelhas
de orc, Roddy recolhia invariavelmente a maior parte dos prémios, que eram muitas vezes mais
avultados do que a riqueza de toda a aldeia junta. — Baixa a crista — disse Roddy para Connor
quando este começou a levantar-se, com um protesto veemente pronto a sair. — Eu sei o que tu dizes
que viste, e acredito que viste o que dizes. Mas chamaste-lhe drow, e esse nome implica muito mais
do que imaginas. Se fosse um drow o que encontraste, calculo que tu e os teus irmãos estariam agora
mortos nesse silvado. Não, não creio que fosse um drow; mas há outras coisas nessas montanhas que
poderiam fazer o que disseste que este fez.
— Quais? — perguntou Bartholomew, carrancudo, não apreciando as dúvidas que Roddy lançara
sobre a história do filho. Bartholomew não gostava muito de Roddy, aliás. O agricultor Thistledown
mantinha uma família respeitável, e sempre que o rude e espalhafatoso Roddy McGristle ia visitá-lo,
isso exigia a Bartholomew e à mulher muitos dias a relembrar aos filhos, e especialmente a Liam, o
comportamento correcto que deveriam ter.
Roddy limitou-se a encolher os ombros, não se ofendendo com o tom de Bartholomew.
— Duende, troll… Pode até ter sido algum elfo da floresta que apanhou demasiado sol…
O riso de Roddy no final desta última declaração espalhou-se a todo o grupo, aliviando a tensão.
— Então, como havemos de saber ao certo? — interrogou Delmo.
— Saberemos quando o encontrarmos — propôs Roddy. — Amanhã de manhã… — e apontou
para todos os homens sentados à volta da mesa de Bartholomew — saímos e veremos o que
pudermos ver.
Considerando a improvisada reunião como terminada, Roddy bateu com as mãos abertas na mesa e
pôs-se de pé. Olhou para trás antes de chegar à porta e lançou uma piscadela de olho e um sorriso
sem dentes para o grupo.
— E, meus rapazes — disse —, não se esqueçam das vossas armas!
A gargalhada de Roddy ficou com o resto do grupo até muito depois de o rude homem das
montanhas já ter partido.
— Podíamos chamar um ranger — sugeriu um dos outros agricultores, esperançado, enquanto o
grupo começava a desfazer-se. — Ouvi dizer que há um em Sundabar, uma das irmãs de Lady
Alustriel.
— É um bocadinho cedo para isso — respondeu o presidente Delmo, apagando todos os sorrisos
optimistas.
— Alguma vez será demasiado cedo, quando se trata de um elfo negro? — interveio rapidamente
Bartholomew.
O presidente encolheu os ombros.
— Vamos com McGristle — respondeu. — Se alguém consegue encontrar alguma verdade na
montanha, é ele — e virou-se para Connor com delicadeza. — Acredito na tua história, Connor.
Acredito sinceramente. Mas temos de ter a certeza antes de pedirmos a ajuda de alguém tão ilustre
como uma irmã da Senhora de Silverymoon.
O presidente e os restantes agricultores partiram, deixando Bartholomew, o pai deste, Markhe, e
Connor cabisbaixos, num estado de espírito que sugeria ao mesmo tempo raiva e vergonha.
Bartholomew deu uma palmadinha nas costas do filho, sem duvidar dele.

Numa caverna no alto da montanha, Ulgulu e Kempfana tinham também passado uma noite de
preocupações devido ao aparecimento do elfo negro.
— Se é um drow, tem de ser um aventureiro experiente — disse Kempfana ao irmão. — Talvez
suficientemente experiente para levar Ulgulu à maturidade.
— E de regresso a Gehenna! — concluiu Ulgulu. — Desejas tão ardentemente ver-me partir!
— Também tu anseias pelo dia em que possas regressar aos nossos vales fumarentos —
relembrou-lhe Kempfana.
Ulgulu rosnou, mas não respondeu. O aparecimento de um elfo negro suscitava muitas
considerações e receios que iam para além da simples afirmação lógica de Kempfana. Os barghests,
como todas as criaturas inteligentes em quase todos os planos de existência, conheciam os drow e
mantinham um saudável respeito por essa raça. Embora um drow pudesse não ser grande problema,
Ulgulu sabia que um grupo de combate de elfos negros, ou talvez mesmo um exército inteiro,
poderiam ser desastrosos. Os whelps não eram invulneráveis. A aldeia humana proporcionara alvos
fáceis para os barghest whelps, e assim poderia continuar por mais algum tempo, se Ulgulu e
Kempfana fossem cuidadosos nos seus ataques. Mas se um bando de elfos negros aparecesse, essas
caçadas fáceis poderiam desaparecer muito rapidamente.
— Temos de tratar do drow — notou Kempfana. — Se é um batedor, não pode regressar para
levar informações.
Ulgulu lançou um olhar gélido para o irmão, e depois chamou o seu quickling.
— Tephanis — gritou. E o quickling já estava no ombro dele antes mesmo que terminasse a
palavra.
— Precisas-que-eu-vá-matar-o-drow-meu-senhor — respondeu o quickling. — Percebo-o-que-
precisas-que-eu-faça!
— Não! — gritou imediatamente Ulgulu, percebendo que o quickling pretendia partir
imediatamente. Tephanis já ia a chegar à porta quando Ulgulu ainda estava a terminar a palavra, mas
regressou rapidamente para o ombro dele, antes mesmo que o último som do grito se dissipasse.
— Não — disse outra vez Ulgulu, agora mais calmamente. — Pode haver vantagens no
aparecimento do elfo negro.
Kempfana percebeu o sorriso malévolo de Ulgulu e as suas intenções.
— Um novo inimigo para a gente da aldeia — raciocinou o whelp mais pequeno. — Um novo
inimigo para encobrir as matanças de Ulgulu?
— Todas as coisas podem ser transformadas em vantagens — respondeu malevolamente o
barghest whelp de pele púrpura. — Até mesmo o aparecimento de um elfo negro — acrescentou
depois para Tephanis.
— Desejas-saber-mais-sobre-o-drow-meu-senhor — disparou Tephanis excitadamente.
— Está sozinho? — perguntou Ulgulu. — Será o batedor de um grupo maior, como receamos, ou
será um guerreiro isolado? Que intenções tem ele em relação à gente da aldeia?
— Podia-ter-morto-as-crianças — insistiu Tephanis. — Suponho-que–deseje-amizade-com-eles.
— Eu sei — rosnou Ulgulu. — Já me sublinhaste isso antes. Agora vai e descobre mais! Preciso
de mais do que as tuas suposições, Tephanis, e segundo todas as indicações, as acções de um drow
raramente sugerem as suas verdadeiras intenções.
Tephanis deslizou do ombro de Ulgulu e fez uma pausa, esperando por mais instruções.
— Na verdade, caro Tephanis… — ronronou Ulgulu. — Vê se consegues apossar-te de uma das
armas do drow e trazer-ma. Mostrar-se-ia útil… — mas calou-se quando se apercebeu do ligeiro
abanar da cortina que fechava a sala.
— É mesmo um pequeno duende muito excitado — notou Kempfana.
— Mas tem a sua utilidade — respondeu Ulgulu.
E Kempfana teve de concordar.

Drizzt viu-os vir na sua direcção, a um quilómetro e meio. Dez agricultores armados seguiam o
jovem que tinha encontrado no silvado no dia anterior. Embora conversassem e trocassem piadas, o
passo que usavam era determinado e as armas estavam bem à vista, e obviamente prontas a ser postas
em acção. Ainda mais insidioso, e caminhando mais ao lado do grupo, vinha um homem de peito
largo e rosto sombrio, envolto em peles grossas, brandindo um machado finamente trabalhado e
conduzindo dois grandes cães amarelos presos por grossas correntes.
Drizzt queria estabelecer mais contactos com os aldeões, queria ardentemente prosseguir os
eventos que colocara em marcha no dia anterior e saber se teria, finalmente, encontrado um lugar a
que pudesse chamar seu lar, mas este encontro que se aproximava, percebeu logo, não seria a ocasião
para tais objectivos. Se os agricultores o encontrassem, haveria decerto sarilhos, e embora não
estivesse muito preocupado com a sua própria segurança contra aquele bando desajeitado, mesmo
tendo em conta o caçador de rosto sombrio, receava, isso sim, que algum dos agricultores ficasse
ferido.
Drizzt decidiu que a sua missão nesse dia era evitar o grupo e negar-se à curiosidade deles. O
drow conhecia a diversão perfeita para atingir esse objectivo. Colocou a estatueta de ónix no chão e
convocou Guenhwyvar.
Um ligeiro silvo mais ao lado, seguido de um restolhar da vegetação, distraiu o drow por apenas
um instante enquanto a habitual névoa rodopiava em volta da estatueta. Mas não viu nada de perigoso
a aproximar-se, e rapidamente esqueceu o assunto. Tinha problemas mais urgentes, pensou.
Quando Guenhwyvar chegou, Drizzt e o felino desceram o trilho para lá do silvado, que era por
onde supunha que os agricultores começariam a busca. O plano era simples: deixaria os agricultores
andar por ali por algum tempo, deixaria o filho do agricultor contar mais uma vez a sua história no
local. Então, Guenhwyvar apareceria junto ao silvado e levaria o grupo a entrar numa perseguição
fútil. A pantera de pelagem negra poderia lançar algumas dúvidas sobre a história do rapaz;
possivelmente, os homens mais velhos presumiriam que as crianças tinham encontrado o felino, e não
um elfo negro, e que as suas imaginações tinham fornecido os restantes pormenores. Era uma aposta,
mas, pelo menos, Guenhwyvar poderia lançar algumas dúvidas sobre a existência do elfo negro e
afastaria o grupo de caça de Drizzt por algum tempo.
Os agricultores chegaram ao silvado no momento esperado, com alguns deles de rosto sombrio e
prontos para combater, mas com a maioria do grupo a conversar descontraidamente e a rir.
Encontraram a espada perdida de Connor e Drizzt viu, abanando a cabeça, o filho do agricultor a
reencenar os acontecimentos da véspera. Notou também que o possante caçador do grande machado,
que ouvia a história sem parecer muito convencido, rodeava o grupo com os seus cães, apontando
para vários pontos no terreno e incitando os cães a farejar. Drizzt não tinha nenhuma experiência de
lidar com cães, mas sabia que muitas criaturas tinham sentidos superiores e que podiam ser usadas
como auxiliares numa caçada.
— Vai, Guenhwyvar — murmurou Drizzt, não querendo esperar até que os cães apanhassem um
rasto claro.
A grande pantera desceu silenciosamente o trilho e tomou posição numa das árvores do mesmo
grupo onde os rapazes se tinham escondido na véspera. O súbito rugido de Guenhwyvar calou as
conversas do grupo instantaneamente, e todas as cabeças se voltaram para as árvores.
A pantera saltou para o silvado, passou mesmo à frente dos humanos estupefactos, e saiu disparada
em direcção às rochas íngremes da montanha. Os agricultores recompuseram-se e começaram a
perseguição, chamando o homem dos cães para que tomasse a dianteira. Depressa todo o grupo, com
os cães a ladrar freneticamente, se afastou dali, e Drizzt desceu para o grupo de árvores junto ao
silvado, para ponderar nos acontecimentos do dia e o melhor rumo a tomar a seguir.
Pensou que havia um ruído como um silvo a segui-lo, mas descartou o assunto pensando que se
trataria de algum insecto.

Pelas atitudes confusas dos cães, não demorou muito para que Roddy McGristle percebesse que a
pantera não era a mesma criatura que deixara um rasto no silvado. Além disso, Roddy percebeu que
os seus companheiros desajeitados, e especialmente o obeso presidente da câmara, mesmo com a sua
ajuda, tinham poucas hipóteses de apanhar o grande felino; a pantera podia saltar por cima de ravinas
que os agricultores demorariam muitos minutos a atravessar.
— Sigam! — disse para o resto do grupo. — Persigam essa coisa por este trilho. Vou levar os
meus cães para o outro lado e cortar-lhe o caminho. Empurrem-no para mim!
Os agricultores gritaram em concordância e afastaram-se, e Roddy puxou as correntes dos cães e
fê-los virar.
Os cães, treinados para caçar, queriam prosseguir, mas o amo tinha outro percurso em mente.
Vários pensamentos preocupavam Roddy nesse momento. Andava naquelas montanhas havia trinta
anos, mas nunca vira ou ouvira falar de um felino assim. Além disso, embora a pantera pudesse já ter
facilmente deixado os seus perseguidores para trás, parecia aparecer sempre bem à vista e não muito
longe, como se estivesse a incitar os agricultores a segui-la. Roddy sabia reconhecer uma manobra
de diversão quando a via, e tinha uma boa suspeita de onde poderia estar a esconder-se o verdadeiro
perpetrador. Fez calar os cães e regressou pelo mesmo caminho por onde tinha vindo, em direcção
ao silvado.

Drizzt estava encostado a uma árvore, sob as sombras da densa copa, e interrogava-se sobre como
poderia voltar a expor-se perante os agricultores sem causar mais pânico entre eles. Durante os dias
que passara a observar a família de agricultores convencera-se de que poderia encontrar um lugar
entre os humanos, deste ou de qualquer outro lugar, se apenas os conseguisse convencer de que as
suas intenções não eram perigosas.
Um silvo ao seu lado distraiu-o subitamente dessas cogitações. Desembainhou rapidamente as
cimitarras e depois qualquer coisa passou por ele como um relâmpago, demasiado rápida para que
pudesse reagir. Gritou com uma súbita dor no pulso, e uma cimitarra foi-lhe retirada. Confuso, olhou
para a ferida, esperando ver uma seta cravada bem fundo na carne.
Mas a ferida era limpa e não havia lá nada. Uma risada aguda fê-lo virar-se para a direita. Ali
estava o duende veloz, com a cimitarra de Drizzt descontraidamente pendurada de um ombro, quase a
tocar no chão ao lado da diminuta criatura, e com um punhal a pingar sangue na outra mão.
Drizzt ficou muito quieto, a tentar adivinhar o movimento seguinte daquela coisa. Nunca vira um
quickling, ou sequer ouvira falar daquelas invulgares criaturas, mas já fazia alguma ideia da
vantagem do seu rápido oponente. Mas antes que o drow conseguisse formar algum plano para
derrotar o quickling, outro inimigo apareceu.
Drizzt soube, assim que ouviu o ladrar, que o seu grito de dor o tinha denunciado. O primeiro dos
possantes cães de Roddy McGristle apareceu entre os arbustos, carregando a direito contra o drow.
O segundo, poucos passos atrás do primeiro, saltou direito à garganta de Drizzt.
Desta vez, porém, Drizzt foi mais rápido. Rodopiou a cimitarra que lhe restava, golpeando a
cabeça do primeiro cão e batendo-lhe no crânio. Sem hesitações, atirou-se para trás, invertendo a
posição da espada e colocando-a acima da cara, em linha com o cão que vinha pelo ar na sua
direcção. O punho da cimitarra apoiou-se com força contra o tronco da árvore e o cão, incapaz de
parar o salto, foi embater contra a lâmina, empalando-se pela garganta e peito. O impacto fez saltar a
cimitarra da mão de Drizzt, e cão e espada caíram num arbusto ao lado da árvore.
Drizzt mal tinha ainda recuperado quando Roddy apareceu de rompante.
— Mataste os meus cães! — rugiu o grande homem da montanha, lançando Bleeder, o seu enorme
machado, em direcção à cabeça do drow. O golpe foi espantosamente rápido, mas Drizzt conseguiu
desviar-se para o lado. O drow não conseguia perceber uma palavra da torrente de imprecações de
McGristle, e percebeu que o exaltado homem não entenderia nenhuma palavra sua, nem qualquer
explicação que tentasse propor.
Ferido e desarmado, a única defesa de Drizzt era continuar a esquivar-se. Um novo golpe quase o
apanhou, cortando até o manto de gnoll. Mas encolheu a barriga e o machado raspou levemente pela
cota de malha. Dançou para um lado, em direcção a um pequeno grupo de árvores mais pequenas,
onde julgava que a sua maior agilidade lhe daria alguma vantagem. Tinha de tentar cansar o
enraivecido humano, ou pelo menos levá-lo a reconsiderar o seu brutal ataque. Mas a ira de
McGristle não esmorecia. Carregava a direito contra Drizzt, rosnando e golpeando com o machado a
cada passo.
Drizzt via agora os inconvenientes do seu plano. Embora se pudesse manter afastado do corpo
possante de McGristle, metendo-se entre as árvores muito juntas umas das outras, o machado dele
conseguia picar entre as árvores com grande rapidez.
A poderosa arma surgiu de lado, ao nível dos ombros. Drizzt deixou-se cair no chão
desesperadamente, escapando por pouco à morte. McGristle não pôde abrandar o golpe a tempo e a
pesada e fortemente encantada arma embateu contra o tronco de um plátano jovem, abatendo a
árvore.
O ângulo fechado do tronco abatido prendeu o machado de Roddy. Este rosnava e tentava arrancar
a arma do tronco, mas não se apercebeu do perigo senão no último momento. Conseguiu afastar-se do
peso do tronco em queda, mas ficou soterrado sob a copa da árvore. Os ramos arranharam-lhe a cara
e a cabeça, formando uma teia à sua volta e pregando-o ao chão.
— Maldito sejas, drow! — rugiu McGristle, sacudindo-se futilmente na sua prisão natural.
Drizzt rastejou para longe, ainda agarrando o pulso ferido. Encontrou a cimitarra que lhe restava,
enterrada até ao punho no infeliz animal. Essa visão pesou a Drizzt; sabia bem o valor dos animais
companheiros. Demorou vários instantes, de coração partido, a puxar a espada do corpo do cão,
instantes que se tornaram ainda mais dramáticos porque o outro cão, que estava apenas atordoado,
começava a mexer-se de novo.
— Maldito sejas, drow! — rugiu McGristle de novo.
Drizzt percebeu a referência à sua herança genética, e podia adivinhar o resto. Queria ajudar o
homem caído, pensando que poderia abrir caminho a uma comunicação algo mais civilizada, mas não
lhe pareceu que o cão que estava a acordar estivesse tão disposto a iniciar uma conversa. Dando uma
olhadela em volta, à procura do duende que dera origem a tudo aquilo, Drizzt arrastou-se para longe
dali e fugiu para a montanha.

— Devíamos ter apanhado aquela coisa! — resmungava Bartholomew Thistledown enquanto o grupo
regressava ao silvado. — Se McGristle tivesse estado onde disse que iria estar, teríamos apanhado
de certeza o felino! Mas afinal onde anda aquele líder de matilha?
Um rugido de «drow! drow!» vindo dos plátanos respondeu à pergunta de Bartholomew. Os
agricultores acorreram, para encontrarem Roddy ainda colado ao chão pela árvore tombada.
— Maldito drow! — queixava-se Roddy. — Matou o meu cão! Maldito drow!
Assim que ficou livre da árvore deitou a mão ao ouvido esquerdo, mas descobriu que a orelha já
lá não estava.
— Maldito drow! — rugiu de novo.
Connor Thistledown deixou toda a gente ver bem o orgulho que lhe regressava perante a
confirmação da sua história, tantas vezes posta em causa. Mas o mais velho dos filhos Thistledown
era o único contente com a inesperada proclamação de Roddy McGristle. Os outros agricultores
eram mais velhos do que Connor; percebiam as sinistras implicações de terem um elfo negro nas
imediações.
Benson Delmo, limpando o suor da testa, não escondeu a forma como recebia esta notícia. Virou-
se imediatamente para o agricultor ao seu lado, um homem mais novo conhecido pelas suas proezas a
criar e a montar cavalos.
— Vai a Sundabar — comandou o presidente da câmara. — Arranja-nos um ranger,
imediatamente!
Em poucos minutos, Roddy foi libertado da árvore. Nessa altura, o cão ferido já tinha regressado
para junto dele, mas saber que um dos seus valiosos cães tinha sobrevivido pouco fez para acalmar o
rude homem.
— Maldito drow! — rugiu Roddy provavelmente pela milésima vez, limpando o sangue da cara.
— Vou apanhar um maldito drow!
Deu ênfase às palavras lançando Bleeder, com uma só mão, para o tronco de outro plátano
próximo, quase fazendo cair também essa árvore.
Os guardas duendes saltaram para os lados quando o poderoso Ulgulu abriu a cortina e saiu do
complexo de grutas. O ar livre e cortante da noite na montanha soube bem ao barghest, e melhor
ainda quando pensou na tarefa que tinha por diante. Olhou para a cimitarra que Tephanis trouxera, e a
arma bem trabalhada pareceu pequena na enorme mão de pele escura de Ulgulu.
Ulgulu deixou cair a arma, desgostado. Não queria usá-la nessa noite; o barghest queria pôr as
suas próprias armas mortíferas — garras e dentes — em acção, saborear as suas vítimas e devorar-
lhes a essência da vida, para se poder tornar mais forte. Ulgulu era, no entanto, uma criatura
inteligente — e o seu lado racional depressa se impôs aos instintos básicos que tanto ansiavam pelo
sabor do sangue. Havia uma finalidade no trabalho dessa noite, um método que prometia maiores
ganhos e a eliminação da ameaça muito real que o aparecimento do elfo negro trouxera.
Com um rugido gutural, pequeno protesto das suas ânsias mais profundas, o barghest apanhou a
cimitarra outra vez e desceu a encosta da montanha, cobrindo grandes distâncias com cada passo. O
monstro parou junto à beira de uma ravina, onde um único trilho descia serpenteando ao longo da
face do penhasco. Levaria muitos minutos a seguir aquele trilho perigoso.
Mas Ulgulu estava faminto.
A consciência de Ulgulu recolheu sobre si mesma, concentrando-se naquele ponto do seu ser que
flutuava com energia mágica. Não era uma criatura do Plano Material, e as criaturas extra-planares
traziam inevitavelmente consigo poderes que pareceriam mágicos às criaturas do plano anfitrião.
Os olhos de Ulgulu brilhavam a laranja com a excitação quando emergiu do transe alguns instantes
depois. Espreitou para a ravina, vendo um ponto plano no solo mais em baixo, a talvez uns
quatrocentos metros de distância.
Uma porta multicolorida e faiscante apareceu diante dele, pairando no ar logo à frente da ravina. O
riso de Ulgulu soava mais como um rugido; abriu a porta e deparou, logo do outro lado, com o local
que visualizara antes. Avançou, saltando a distância material até ao fundo da ravina com um único
passo extra-dimensional.
Continuou a avançar, descendo a montanha em direcção à aldeia humana. Corria excitadamente,
desejoso de pôr em acção as engrenagens do seu plano cruel.
Enquanto o barghest se aproximava das colinas mais baixas da montanha, voltou a encontrar esse
recanto mágico da sua mente. Os passos de Ulgulu abrandaram, e depois a criatura parou por
completo, sacudindo-se espasmodicamente e murmurando algo indecifrável. Havia ossos a estalar
enquanto se uniam, pele que se deformava e retorcia, escurecendo até ficar quase preta.
Quando Ulgulu recomeçou a caminhar, os seus passos — os passos de um elfo negro — já não
eram tão largos como antes.

Bartholomew Thistledown estava sentado junto do pai, Markhe, e do filho mais velho, nessa noite, na
cozinha da quinta isolada a oeste de Maldobar. A mulher e a mãe de Bartholomew tinham ido ao
celeiro recolher os animais para a noite, e os quatro filhos mais novos estavam nas suas camas, no
pequeno quarto ao lado da cozinha.
Numa noite normal, o resto da família Thistledown, todas as três gerações, também já estaria a
ressonar aconchegadamente nas suas camas. Mas Bartholomew receava que muitas noites haveriam
ainda de passar antes que alguma normalidade regressasse à sua pacífica quinta. Um elfo negro fora
avistado na área, e embora Bartholomew não estivesse convencido de que esse estranho tivesse más
intenções — porque o drow poderia facilmente ter morto Connor e os irmãos — sabia que o
aparecimento do drow causaria agitação em Maldobar durante bastante tempo.
— Podíamos regressar para a aldeia — propôs Connor. — Arranjar-nos-iam um lugar para ficar,
e toda a Maldobar estaria do nosso lado.
— Do nosso lado? — respondeu Bartholomew com sarcasmo. — E iam deixar as suas quintas
todos os dias para virem aqui ajudar-nos a manter o trabalho em dia? Qual deles, achas tu, seria
capaz de vir até aqui, todas as noites, para tratar dos animais?
A cabeça de Connor caiu perante a resposta do pai. Levou uma mão ao punho da espada, para
lembrar a si mesmo que já não era uma criança. Mesmo assim, ficou silenciosamente agradecido pela
mão que o avô lhe colocou sobre o ombro.
— Tens de pensar, rapaz, antes de dizeres essas coisas — prosseguiu Bartholomew, com um tom
que se ia amenizando à medida que se apercebia do efeito profundo que as suas palavras bruscas
tinham causado no filho. — A quinta é o sangue das nossas veias, a única coisa que importa.
— Podíamos pelo menos mandar os mais pequenos… — propôs Markhe. — O rapaz tem razão em
recear, com um elfo negro a andar por aí.
Bartholomew virou costas e deixou cair o queixo resignadamente sobre uma mão. Detestava a
ideia de separar a família. A família era a fonte da sua força, como sempre fora durante cinco
gerações de Thistledowns, e mais para trás ainda. No entanto, aqui estava Bartholomew a censurar
Connor, embora o rapaz tivesse falado apenas em prol do bem da família.
— Devia ter pensado melhor, pai — ouviu Connor a murmurar, e soube que o seu próprio orgulho
não poderia manter-se perante a consciência da dor de Connor. — Desculpa.
— Não precisas de pedir desculpas — respondeu Bartholomew, voltando-se de novo para os
outros. — Quem deve pedir desculpa sou eu. Estamos todos com os nervos à flor da pele por causa
deste elfo negro. A tua ideia estava certa, Connor. Estamos demasiado isolados aqui para estarmos
em segurança.
Como em resposta, ouviu-se um forte estalido de madeira a quebrar e um grito abafado veio de
fora da casa, da direcção do celeiro. Nesse único momento horrível, Bartholomew Thistledown
percebeu que deveria ter tomado aquela decisão mais cedo, enquanto a luz do dia ainda dava à
família alguma protecção.
Connor foi o primeiro a reagir, correndo para a porta e abrindo-a. O eirado defronte da porta
estava mortalmente silencioso, e nem o trinado de uma cigarra perturbava aquela cena surrealista.
Uma Lua silenciosa pairava no céu, lançando longas e sinistras sombras de cada árvore e cada cerca.
Connor olhou, sem se atrever a respirar, durante um segundo que pareceu durar uma hora.
A porta do celeiro deu mais um estalido e caiu dos gonzos. Um elfo negro avançou daí em
direcção à casa.
Connor fechou a porta e encostou-se a ela, precisando daquele apoio tangível.
— A mãe… — murmurou para os rostos estupefactos do pai e do avô. — O drow…
Os Thistledown mais velhos hesitaram, com as mentes num turbilhão de mil ideias horríveis.
Saltaram em simultâneo dos seus lugares, Bartholomew para ir buscar a sua arma e Markhe
avançando para Connor e para a porta.
Essa acção súbita libertou Connor da sua paralisia. Puxou da espada e abriu a porta, tencionando
sair e enfrentar o intruso.
Um único impulso das suas poderosas pernas trouxera Ulgulu directamente até à porta da casa.
Connor carregou para fora da porta às cegas, embatendo na criatura — que tinha a aparência de um
magro drow — e caiu para trás, atónito, para a cozinha. Antes que qualquer um dos homens pudesse
reagir, a cimitarra abatera-se no alto da cabeça de Connor com toda a força do barghest que a
empunhava, quase abrindo o jovem ao meio de alto a baixo.
Ulgulu entrou na cozinha sem oposição. Viu o homem mais velho — o inimigo restante mais fraco
— a avançar para ele, e convocou a sua natureza mágica para derrotar esse ataque. Uma onda de
emoções abateu-se sobre Markhe Thistledown, uma onda de desespero e de terror tão grandes que
não podia lutar contra ela. A boca enrugada abriu-se-lhe num grito surdo e Markhe cambaleou para
trás, contra uma parede, lançando as mãos ao peito, impotente.
O ataque de Bartholomew Thistledown trazia consigo a força de uma raiva indómita. O agricultor
rugia e lançava sons ininteligíveis enquanto avançava com uma forquilha em direcção ao intruso que
lhe matara o filho.
A silhueta esguia assumida pelo barghest não diminuíra a força gigantesca de Ulgulu. Quando os
dentes da forquilha se aproximaram do peito da criatura, Ulgulu agarrou simplesmente com uma mão
o cabo da alfaia. Bartholomew estacou de repente, com a outra ponta da arma a pressionar agora
contra o seu estômago, tirando-lhe o fôlego.
Talvez Markhe o tenha visto a avançar, ou talvez o idoso Thistledown estivesse demasiado
dilacerado pela dor e pela angústia para perceber alguma coisa do que se estava a passar na cozinha.
Ulgulu dirigiu-se a ele e abriu bem a boca. Queria devorar o velho, banquetear-se com a força de
vida deste homem, tal como se tinha banqueteado com a mulher mais nova no celeiro. Ulgulu
lamentara essa sua atitude no celeiro assim que o êxtase da matança se dissipara. De novo o lado
racional do barghest tomou o lugar das necessidades mais básicas. Com um rugido frustrado, Ulgulu
enfiou a cimitarra no peito de Markhe, pondo fim ao sofrimento do velho.
Olhou em volta, para apreciar o seu sinistro trabalho, lamentando não se ter banqueteado com os
agricultores mais jovens e fortes, mas lembrando a si mesmo os ganhos superiores que as suas acções
nessa noite viriam a proporcionar. Um grito confuso fê-lo avançar para o quarto ao lado, onde as
crianças dormiam.

Drizzt desceu das montanhas no dia seguinte, hesitante. O pulso latejava-lhe no local onde o duende o
tinha esfaqueado, mas a ferida estava limpa e tinha confiança em que acabaria por sarar. Agachou-se
num arbusto da colina logo atrás da casa dos Thistledown, pronto para tentar outro encontro com as
crianças. Drizzt já vira demasiado da comunidade humana, e passara já demasiado tempo sozinho,
para agora desistir. Era aqui que pretendia fazer o seu lar, se conseguisse ultrapassar as óbvias
barreiras do preconceito, bem evidentes no homem possante com os cães ferozes.
Do ângulo em que se encontrava, não conseguia ver a porta destruída do celeiro, e tudo parecia
estar como devia na quinta, à luz fraca da alvorada.
No entanto, os agricultores não saíram quando o Sol nasceu, enquanto sempre os vira sair a essa
hora. Um galo cantou e vários animais deram sinais de vida, no celeiro, mas a casa continuava em
silêncio. Drizzt sabia que isto era invulgar, mas pensou que o encontro do dia anterior nas montanhas
talvez tivesse levado os agricultores a esconder-se. Talvez a família tivesse abandonado a quinta
completamente, procurando abrigo no aglomerado maior de casas da aldeia. Estes pensamentos
pesavam fortemente a Drizzt; mais uma vez, tinha perturbado as vidas dos que o rodeavam
simplesmente por ter mostrado a cara. Recordou-se de Blingdenstone, a cidade dos gnomos
svirfnebli, e do tumulto e do potencial perigo que o seu aparecimento tinha provocado.
O dia solarengo clareou, mas uma brisa fria descia das montanhas. Nem uma pessoa apareceu no
eirado diante da casa, nem dentro dela, tanto quanto Drizzt conseguia perceber. O drow observava
tudo, cada vez mais preocupado a cada segundo que passava.
Um silvo familiar distraiu-o das suas cogitações. Sacou a cimitarra que lhe restava e olhou em
volta. Desejava poder chamar Guenhwyvar, mas ainda não tinha passado tempo suficiente desde a
última vez que a chamara. A pantera precisava de descansar no seu lar astral durante mais um dia
antes de ter forças suficientes para voltar a caminhar ao lado de Drizzt. Não vendo nada perto de si,
deslocou-se para entre os troncos de duas grandes árvores, numa posição mais defensável contra a
velocidade estonteante do duende.
O silvo desapareceu daí a um instante, e o duende veloz não se via em lado nenhum. Drizzt passou
o resto desse dia movimentando-se entre aqueles arbustos, colocando armadilhas e cavando
pequenos fossos. Se ele e o duende tivessem de se enfrentar de novo, o drow estava determinado a
que o resultado do confronto fosse diferente, desta vez.
As sombras cada vez mais longas e o céu avermelhado a oeste voltaram a chamar a atenção de
Drizzt para a quinta dos Thistledown. Não havia luzes acesas dentro da casa.
Estava cada vez mais preocupado. O regresso daquele malévolo duende recordara-lhe vivamente
os perigos daquela região, e com a inactividade continuada da quinta, um receio começou a crescer
nele, ganhou raízes e rapidamente se tornou uma sensação de terror.
O crepúsculo transformou-se em noite. A Lua subiu no céu e prosseguiu a sua viagem para leste.
Nenhuma luz se acendera ainda na casa dos Thistledown, e não vinha um único som das janelas
escuras.
Drizzt deslizou para fora dos arbustos e atravessou a correr o pequeno terreno das traseiras. Não
tinha intenção de se aproximar da casa; desejava apenas ver o que podia descobrir. Talvez os
cavalos e a pequena carroça do agricultor não estivessem lá, o que comprovaria a suposição que
fizera de que a família fora à procura de abrigo na aldeia.
Quando virou a esquina e viu a porta do celeiro destruída, soube instintivamente que estava
enganado. Os seus receios cresciam a cada passo que dava. Espreitou pela porta do celeiro e não
ficou surpreendido ao ver a carroça no centro e os estábulos cheios de cavalos.
Ao lado da carroça, no entanto, estava caída a mulher mais velha, coberta de sangue. Drizzt
aproximou-se e viu imediatamente que estava morta, assassinada por uma arma afiada. Os seus
pensamentos lembraram-lhe imediatamente o malévolo duende e a sua própria cimitarra roubada.
Quando encontrou o outro cadáver, atrás da carroça, soube que um outro monstro qualquer, algo mais
malévolo e poderoso, estava implicado nisto. Drizzt não conseguiu sequer identificar esse segundo
corpo, meio devorado.
Correu do celeiro para a casa, desdenhando todas as precauções. Encontrou os corpos dos homens
Thistledown na cozinha e, para seu derradeiro horror, as crianças ainda deitadas nas suas camas, mas
demasiado quietas. Ondas de repulsa assolaram o drow quando olhou melhor para os jovens corpos.
A palavra «drizzit» ecoou-lhe dolorosamente na cabeça, perante a visão de um rapazito de cabelos
cor de areia.
O tumulto das emoções de Drizzt era demasiado forte. Tapou os ouvidos, tentando não ouvir mais
aquela maldita palavra, «drizzit!», mas esta ecoava interminavelmente, lembrando-lhe tudo,
perseguindo-o.
Haverá alguma coisa em todo o mundo que pese mais sobre os ombros de uma pessoa do
que a culpa? Senti esse fardo muitas vezes, transportei-o comigo durante longas
caminhadas, por estradas intermináveis.
A culpa assemelha-se a uma espada de dois gumes. De um lado, corta pela justiça,
impondo uma moralidade prática àqueles que a receiem. A culpa, consequência da
consciência, é o que separa as pessoas boas das más. Perante uma situação que prometa
ganhos, a maioria dos drow podem matar-se uns aos outros, sejam familiares ou não, e
prosseguem o seu caminho sem qualquer fardo emocional. O assassino drow pode recear a
retribuição, mas não derramará uma lágrima pela sua vítima.
Para os humanos — e para os elfos da superfície, e para todas as outras raças mais
bondosas — o sofrimento imposto pela consciência é geralmente superior a quaisquer
ameaças exteriores. Alguns concluiriam por isso que a culpa — a consciência — é a
diferença primordial entre as diversas raças dos Reinos. Nesse aspecto, a culpa deve ser
considerada uma força positiva.
Mas há um outro lado dessa emoção pesada. A consciência nem sempre adere ao juízo
racional. A culpa é sempre um fardo auto-imposto, mas nem sempre é imposto com justiça.
Assim foi para mim na minha viagem de Menzoberranzan para Icewind Dale. Trazia
comigo, de Menzoberranzan, a culpa pela morte de Zaknafein, meu pai, sacrificado em meu
lugar. Levei até Blingdenstone a culpa por Belwar Dissengulp, o svirfnebli que o meu
irmão mutilara. Ao longo dos muitos caminhos, surgiram muitos outros fardos: Clacker,
morto pelo monstro que me procurava a mim; os gnolls, chacinados pela minha própria
mão; e os agricultores — a maior dor de todas — essa simples família assassinada pelo
barghest whelp.
Racionalmente, sabia que a culpa não era minha, que essas acções estavam para lá da
minha capacidade de acção, ou, em certos casos, como acontecera com os gnolls, até agira
correctamente. Mas a racionalidade é fraca defesa contra o peso da culpa.
Com o tempo, incentivado pela confiança de amigos leais, vi-me livre de alguns desses
fardos. Outros permanecem, e permanecerão para sempre. Aceito isto como inevitável, e
uso esses fardos para me guiarem nos meus passos futuros.
Esse, creio, é o verdadeiro propósito da consciência.

— Drizzt Do’Urden
— Oh, já basta, Fret! — disse a mulher alta para o anão vestido com uma túnica branca e com barbas
igualmente claras, sacudindo as mãos dele para longe. Correu os dedos pelo cabelo negro e espesso,
despenteando-o consideravelmente.
— Tss, tss — respondeu o anão, levando imediatamente as mãos de novo até ao ponto manchado
da capa da mulher. Esfregava freneticamente, mas a agitação constante da ranger impedia-o de fazer
muito. — Ora, senhora Falconhand, creio que faria bem em consultar uns quantos livros sobre boas
maneiras.
— Acabo de chegar de Silverymoon — respondeu Dove Falconhand indignada, piscando um olho
para Gabriel, o outro guerreiro presente na sala, e que era um homem alto e de rosto severo. — Uma
pessoa tem tendência a sujar-se um pouco na estrada.
— Há quase uma semana! — protestou o anão. — Foste ao banquete de ontem à noite com esta
mesma capa!
O anão reparou então que, na sua tentativa frenética de limpar a capa de Dove, sujara a sua própria
túnica de seda, e essa catástrofe desviou-lhe as atenções da ranger.
— Querido Fret… — prosseguiu Dove, lambendo um dedo e esfregando-o descontraidamente na
nódoa da capa. — És o mais invulgar dos servos.
O rosto do anão ficou vermelho como uma beterraba e bateu com um pequeno chinelo no chão de
ladrilhos.
— Servo? — bufou. — Deixe que lhe diga…
— Diz lá! — riu-se Dove.
— Sou o mais completo… Um dos mais completos sábios do norte! A minha tese relativa à devida
etiqueta em banquetes inter-radiais…
— Ou a falta da devida etiqueta… — não pôde deixar de interromper Gabriel. O anão virou-se
para ele, indignado. — Pelo menos no que diz respeito a anões — terminou o alto guerreiro com um
inocente encolher de ombros.
O anão tremia visivelmente e os seus chinelos faziam uma dança de respeito sobre o chão.
— Oh, querido Fret — propôs Dove, pousando uma mão reconfortante no ombro do anão e
deixando-a depois correr pela barba amarela e perfeitamente aparada.
— Fred! — retorquiu o anão secamente, afastando a mão da ranger. — Fredegar!
Dove e Gabriel olharam um para o outro por um breve momento de cumplicidade, e depois
gritaram ambos a alcunha do anão, numa explosão de risos:
— Rebenta-pedras!
— Fredegar Molha-a-Pena seria mais correcto! — acrescentou Gabriel. Um olhar para o anão
irado disse ao homem que já estava para lá da hora de se ir embora, e por isso pegou na trouxa e saiu
apressadamente da sala, fazendo apenas uma pausa para lançar uma piscadela de olho final a Dove.
— Só queria ajudar! — O anão enfiou as mãos nuns bolsos incrivelmente fundos e deixou cair a
cabeça para a frente.
— E ajudaste! — gritou Dove, reconfortando-o.
— Quero dizer… Tens uma audiência com Helm Anão-amigo — prosseguiu Fret, recuperando
algum orgulho. — Uma pessoa deve estar bem limpa quando vai ver o Senhor de Sundabar.
— De facto, assim é — concordou Dove prontamente. — Mas tudo o que tenho para vestir é o que
está à tua frente, querido Fret, sujo e manchado das estradas. Receio que não farei muito boa figura
perante o Senhor de Sundabar. Ele e a minha irmã tornaram-se tão amigos… — foi a vez de Dove
fingir um ponto vulnerável. E embora a sua espada tivesse transformado muitos gigantes em comida
para abutres, a forte ranger sabia jogar este jogo melhor do que ninguém. — Que hei-de eu fazer? —
inclinou a cabeça num gesto de curiosidade enquanto olhava para o anão. — Talvez… — sugeriu. —
Se ao menos…
A cara de Fret começou a iluminar-se perante a sugestão.
— Não… — disse Dove com um suspiro. — Não poderia nunca impor-te uma coisa dessas.
Fret saltitava literalmente de alegria, batendo as mãos grossas.
— Podes, sim, Senhora Falconhand! Podes sim!
Dove mordeu o lábio para conter outra risada enquanto o excitado anão deslizava para fora da
sala. Embora se metesse muitas vezes com ele, Dove admitia prontamente que adorava o pequeno
anão. Fret passara muitos anos em Silverymoon, onde reinava a sua irmã, e fizera muitas
contribuições para a famosa biblioteca que lá existia. Fret era, de facto, um sábio bem conhecido,
famoso pelas suas extensas investigações sobre os costumes das diversas raças, tanto boas, como
más, e era especialista em assuntos semi-humanos. Era também um compositor refinado. Quantas
vezes, interrogou-se Dove com sincera humildade, cavalgara por um trilho de montanha assobiando
uma alegre melodia composta por aquele mesmo anão?
— Querido Fret… — sussurrou a ranger baixinho quando o anão regressou, com um vestido de
seda dobrado sobre um braço… Dobrado cuidadosamente para não tocar no chão. E com várias
peças de joalharia e um par de sapatos na outra mão. Trazia ainda uma dúzia de alfinetes a sair de
entre os lábios cerrados, e uma fita métrica pendurada de uma orelha.
Dove escondeu o sorriso e decidiu conceder ao anão esta batalha. Entraria com leveza na sala de
audiências de Helm Anão-amigo, com um vestido de seda, a verdadeira imagem de uma dama, com o
diminuto sábio inchando de orgulho ao seu lado.
Durante esse tempo todo, já sabia que os sapatos lhe apertariam os pés e que o vestido arranjaria
maneira de lhe fazer comichão nalgum ponto onde não poderia coçar. Mas eram os deveres da
Estação, pensava Dove enquanto olhava para o vestido e para os acessórios. Olhou para o rosto
radiante de Fret e percebeu que valia a pena todo aquele trabalho.
Eram também os deveres da amizade, pensou.

O agricultor cavalgara a direito durante mais de um dia; o avistamento de um elfo negro tinha muitas
vezes esse efeito em simples aldeões. Levara dois cavalos de Maldobar; um deles, deixara-o já
havia uma boa porção de quilómetros mais atrás, a meio caminho entre as duas cidades. Se tivesse
sorte, encontraria o animal de boa saúde quando regressasse. O segundo cavalo, o seu prezado
garanhão, começava a mostrar sinais de cansaço. Mesmo assim, o aldeão inclinava-se sobre a sela,
incitando o cavalo a prosseguir. As tochas das patrulhas nocturnas de Sundabar, bem no alto das
espessas muralhas da cidade, estavam já à vista.
— Pára e diz quem és! — chegou-lhe o grito formal do capitão da guarda dos portões quando o
cavaleiro se aproximou, meia hora mais tarde.

Dove apoiou-se em Fret para se equilibrar, enquanto seguiam o servo de Helm Anão-amigo pelo
longo e decorado corredor até à sala de audiências. A ranger era capaz de atravessar uma ponte de
cordas sem corrimãos, era capaz de disparar o arco com uma pontaria letal montada num cavalo a
galope, era capaz de trepar uma árvore vestida com uma armadura completa, de espada e escudo nas
mãos. Mas não era capaz, apesar de toda a sua experiência e agilidade, de dominar os sapatos
elegantes que Fret lhe enfiara à força nos pés.
— E este vestido… — sussurrou Dove exasperada, sabendo que a veste nada prática se rasgaria
em seis ou sete pontos diferentes se precisasse de rodopiar a espada enquanto a usava. Aliás, bastar-
lhe-ia respirar demasiado profundamente para que tudo se rasgasse.
Fret levantou os olhos para ela, magoado.
— Este vestido é certamente o mais belo… — recomeçou Dove, com cuidado para não provocar
mais um acesso de ira no anão, muito composto. — A sério: não consigo encontrar palavras
adequadas para expressar a minha gratidão, querido Fret.
Os olhos cinzentos do anão brilharam intensamente, ainda que não tivesse bem a certeza se
acreditava nas palavras dela. Fosse como fosse, Fret considerou que Dove se importava o suficiente
com ele para aceitar as suas sugestões, e esse facto era tudo o que lhe importava.
— Peço mil perdões, minha senhora — ouviu-se uma voz vinda de trás. — Toda a gente se voltou
para trás, para ver o capitão da guarda da noite, com um agricultor ao lado, a avançar rapidamente
pelo corredor.
— Meu bom capitão! — protestou Fret, perante a violação do protocolo. — Se desejas uma
audiência com a Senhora, tens de te apresentar à entrada. Depois, só depois, e só se o Senhor o
permitir, poderás…
Dove pousou uma mão no ombro do anão, para o calar. Reconhecia bem a urgência gravada nos
rostos dos homens, uma expressão que a aventureira heroína vira já muitas vezes.
— Prossiga, capitão — disse Dove. Para apaziguar Fret, acrescentou: — Temos alguns instantes
antes da nossa audiência O Senhor Helm não terá de esperar por nós.
O aldeão avançou com ousadia.
— Mil perdões, Senhora… — começou a dizer, com o chapéu nervosamente nas mãos. — Sou
apenas um agricultor de Maldobar, uma pequena aldeia a norte de…
— Conheço Maldobar — garantiu-lhe Dove. — Muitas vezes já vi a localidade do alto das
montanhas. Uma bela e forte comunidade — o agricultor ficou radiante com a descrição de Dove. —
Nenhum mal aconteceu a Maldobar, espero?
— Ainda não, Senhora — respondeu o aldeão. — Mas avistámos sarilhos, sem sombra de dúvida
— fez uma pausa e olhou para o capitão, em busca de apoio. — Drow.
— Quantos? — perguntou Dove.
— Apenas um, que tenhamos visto. Receamos que seja um batedor, ou um espião, mas coisa boa
não anda a fazer, de certeza.
Dove assentiu com a cabeça.
— Quem o viu?
— Primeiro, crianças — respondeu o aldeão, suscitando um suspiro de Fret e levando-o a
recomeçar a bater com o pequeno pé no chão.
— Crianças? — desdenhou o anão.
A determinação do agricultor não vacilou.
— E depois McGristle também o viu — disse, olhando directamente para Dove. — E McGristle já
viu muita coisa!
— O que é um McGristle? — bufou Fret.
— Roddy McGristle — respondeu Dove, com algum azedume, antes que o agricultor respondesse.
— Um bem conhecido caçador de recompensas.
— O drow matou um dos cães de Roddy — acrescentou o homem excitadamente. — E quase
matou Roddy! Fez-lhe cair uma árvore em cima! Roddy até perdeu uma orelha nessa refrega!
Dove não percebeu do que estava o agricultor a falar, mas, na verdade, também não precisava. Um
elfo negro fora visto e confirmado na região, e esse simples facto bastava para pôr a ranger em
acção. Descalçou os sapatos elegantes e entregou-os a Fret, e depois disse a um dos servos para ir
imediatamente à procura dos seus companheiros de viagem, e a outro para transmitir ao Senhor de
Sundabar as suas mais profundas desculpas.
— Mas… Senhora Falconhand! — gritou Fret.
— Não há tempo para delicadezas — respondeu Dove, e Fret pôde perceber na óbvia excitação
dela que não estava muito desagradada por cancelar o encontro com Helm. Já estava a contorcer-se,
tentando abrir o fecho do vestido magnífico.
— A tua irmã não vai gostar disto — resmungou Fret bem alto, sobrepondo-se ao bater do pé no
chão.
— A minha irmã arrumou as bagagens há muito tempo — retorquiu Dove —, mas as minhas ainda
têm fresco o pó das estradas.
— Lá isso… — resmungou o anão em concordância, mas não em aprovação.
— Pretende então vir? — perguntou o agricultor, esperançoso.
— Evidentemente — respondeu Dove. — Nenhum ranger digno desse nome ignoraria o
avistamento de um elfo negro! Eu e os meus três companheiros partiremos para Maldobar esta noite
mesmo, mas peço-te que fiques aqui, bom aldeão. Cavalgaste muito tempo, isso é óbvio, e precisas
de descansar — Dove olhou em volta com curiosidade por um momento, e depois levou um dedo aos
lábios cerrados.
— O que foi? — perguntou o amuado Anão.
O rosto de Dove iluminou-se quando o seu olhar caiu sobre Fret.
— Tenho pouca experiência em matéria de elfos negros — começou a dizer. — E os meus
companheiros, tanto quanto sei, nunca lidaram com um deles — o sorriso cada vez mais aberto de
Dove fez Fret recuar. — Anda lá, querido Fret — ronronou Dove ao ouvido do anão. Com os pés nus
a baterem no chão sonoramente, conduziu Fret, o capitão e o aldeão de Maldobar pelo corredor até à
sala de audiências de Helm.
Fret ficou confuso — e esperançado, por um momento — com a súbita mudança de direcção de
Dove. Assim que ela começou a falar com Helm, amo de Fret, pedindo desculpas pela perturbação
inesperada e pedindo a Helm que mandasse consigo alguém que pudesse ajudar na missão a
Maldobar, o anão começou a compreender.

Quando o Sol abriu caminho até ao horizonte de leste, na manhã seguinte, o grupo de Dove, que
incluía um arqueiro elfo e dois poderosos guerreiros humanos, já cavalgara mais de quinze
quilómetros desde os portões de Sundabar.
— Umpf! — resmungou Fret quando a luz começou a aumentar de intensidade. Cavalgava um
potente pónei Adbar ao lado de Dove. — Vê só como a lama já me sujou as minhas requintadas
roupas! Vai ser decerto o fim de nós todos! Morrerei sujo numa estrada esquecida por toda a gente!
— Escreve uma canção acerca disso — sugeriu Dove, retribuindo os sorrisos dos outros três
cavaleiros. — A «Balada dos Cinco Aventureiros Sufocados de Riso», assim deverá chamar-se!
O olhar zangado de Fret durou apenas o momento que demorou a lembrar-se de que Helm Anão-
amigo, o próprio senhor de Sundabar, o tinha mandado acompanhar a expedição.
Na mesma manhã em que o grupo de Dove partiu pela estrada para Maldobar, Drizzt iniciou a sua
própria viagem. O horror inicial da sinistra descoberta da véspera não diminuíra, e o drow receava
que nunca o fizesse. Mas outra emoção entrara-lhe agora na mente. Nada podia fazer pelos inocentes
agricultores e pelos seus filhos, a não ser vingar as suas mortes. Esse pensamento não era muito
agradável para Drizzt; deixara para trás o Subescuro e toda a sua selvajaria — ou, pelo menos, assim
esperara. Mas com as imagens da carnificina tão horrivelmente claras na sua mente, e isolado como
estava, só podia olhar para a sua cimitarra em busca de justiça.
Tomou duas precauções antes de partir em perseguição do assassino. Primeiro, deslizou de novo
até à quinta, até às traseiras da casa, onde os agricultores tinham posto um arado avariado. A lâmina
de metal era pesada, mas o determinado drow içou-a e levou-a consigo sem sequer pensar duas vezes
no desconforto.
Depois, convocou Guenhwyvar. Assim que a pantera chegou e notou a expressão desgostada de
Drizzt, colocou-se imediatamente em posição de alerta. Guenhwyvar já andava com Drizzt havia
tempo suficiente para reconhecer aquela expressão e para acreditar que entrariam em combate antes
que regressasse ao seu lar astral.
Partiram antes do alvorecer, com Guenhwyvar a seguir com facilidade o rasto do barghest, tal
como Ulgulu já esperava. O passo que levavam era lento, com Drizzt a penar sob o peso do arado,
mas constante, e assim que Drizzt captou o som de um silvo distante, soube que tinha feito bem em
trazer aquela alfaia desajeitada.
De qualquer forma, o resto da manhã passou sem incidentes. O trilho levava os companheiros até
uma ravina rochosa e ao sopé de um penhasco alto e irregular. Drizzt receava ter de trepar aquele
penhasco — deixando o arado para trás —, mas depressa notou um trilho estreito que serpenteava
pela encosta acima. O caminho ascendente mantinha-se pouco inclinado, pois ziguezagueava pela
face do penhasco, mas tinha muitas curvas perigosas e esquinas que tinham de ser feitas às cegas.
Querendo usar o terreno em sua vantagem, Drizzt enviou Guenhwyvar bem à frente e avançou depois
sozinho, arrastando o arado e sentindo-se vulnerável na face aberta do penhasco.
Essa sensação nada fez para aplacar o fogo que ardia lentamente nos olhos de alfazema de Drizzt.
Um fogo que se via claramente a brilhar por debaixo do capuz da capa de gnoll.
Quando a visão da ravina que espreitava ao seu lado enervava o drow, bastava-lhe lembrar-se dos
agricultores chacinados. Pouco depois, quando ouviu o já esperado silvo vindo de algures mais
abaixo no trilho, limitou-se a sorrir.
O silvo depressa se aproximou, vindo de trás. Drizzt encostou-se à parede de rocha e
desembainhou a cimitarra, avaliando cuidadosamente o tempo que o duende veloz demorava a
aproximar-se.
Tephanis surgiu subitamente ao lado dele, com o pequeno punhal avançando à procura de uma
aberta nos golpes defensivos da cimitarra. Daí a um instante, o duende desapareceu, avançando para
lá de Drizzt, mas marcara um ponto, pois ferira-o num ombro.
Drizzt inspeccionou o ferimento e assentiu com a cabeça, com ar grave, aceitando o ferimento
como uma mera inconveniência menor. Sabia que não conseguiria derrotar aqueles ataques rápidos
como relâmpagos, e também sabia que permitir aquele primeiro golpe fora um passo necessário para
a derradeira vitória. Um rugido mais acima no trilho voltou a colocá-lo em alerta. Guenhwyvar
encontrara o duende e, com as suas garras rápidas, capazes de igualar a velocidade do quickling,
decerto obrigara aquela coisa a voltar para trás.
Drizzt encostou-se de novo à parede de pedra, seguindo o silvo que se aproximava. Mesmo no
momento em que o duende surgia na esquina, Drizzt saltou para a frente dele no trilho estreito, com a
cimitarra pronta. A outra mão do drow dava menos nas vistas e segurava um pesado objecto
metálico, pronta a colocá-lo de forma a fechar a passagem.
O veloz duende recuou para a parede, capaz de evitar com facilidade a cimitarra. Mas ao
concentrar-se unicamente no alvo, o duende não reparou na outra mão do drow.
Drizzt mal conseguia ver os movimentos do duende, mas um súbito «bongue!» e fortes vibrações
na sua mão enquanto a criatura esbarrava contra o arado fizeram aparecer um sorriso satisfeito nos
seus lábios. Deixou cair o arado e apanhou o duende inconsciente pela garganta, mantendo-o bem
firme no chão. Guenhwyvar surgiu à esquina nesse momento, enquanto o duende começava a sacudir
a tontura da sua cabeça angulosa, com as longas e pontiagudas orelhas quase a cair para o outro lado
da cabeça a cada movimento que fazia.
— Que criatura és tu? — perguntou Drizzt na língua dos duendes, a linguagem que resultara com os
gnolls. Para sua surpresa, descobriu que o duende o entendia, embora a resposta muito aguda viesse
demasiado rápida para que percebesse alguma coisa.
Deu ao duende um abanão para o calar, e depois rugiu:
— Uma palavra de cada vez! Como te chamas?
— Tephanis! — respondeu o duende, indignado. Tephanis conseguia mover as pernas cem vezes
por segundo, mas isso não lhe servia de nada enquanto estava pendurado no ar. Olhou para baixo,
para o estreito trilho e viu o pequeno punhal caído junto do arado.
A cimitarra de Drizzt aproximou-se dele perigosamente.
— Mataste os agricultores? — perguntou secamente. Quase lhe desferiu um golpe quando ouviu a
gargalhadinha de resposta do duende.
— Não — respondeu Tephanis rapidamente.
— Então quem foi?
— Ulgulu! — afirmou o duende. Apontou para o topo do trilho e despejou uma enxurrada de
palavras excitadas. Drizzt conseguiu apenas perceber algumas: «Ulgulu… à espera… jantar» eram as
mais perturbantes.
Drizzt não sabia realmente o que fazer com o duende capturado. Tephanis era simplesmente
demasiado rápido para que pudesse lidar com ele devidamente. Olhou para Guenhwyvar, que estava
sentado descontraidamente apenas alguns metros adiante, mas a pantera limitou-se a bocejar e
espreguiçar-se.
Drizzt estava prestes a fazer outra pergunta, para tentar perceber como se enquadrava Tephanis em
todo aquele cenário, mas o atrevido duende achou que já tinha suportado o suficiente daquele
encontro. Com as mãos a mexerem-se demasiado depressa para que Drizzt pudesse reagir, chegou a
uma bota, tirou de lá outra faca e golpeou-o no pulso já ferido.
Desta vez, o atrevido duende subestimara o oponente. Drizzt não conseguiria igualar a velocidade
do duende, nem sequer conseguia seguir com o olhar o pequeno punhal. Mas, apesar de as feridas
serem dolorosas, estava demasiado cheio de raiva para se dar conta disso. Limitou-se a apertar o
duende com mais força e aproximou ainda mais a cimitarra. Mesmo com tão pouca mobilidade,
Tephanis foi suficientemente rápido e ágil para se desviar do golpe, rindo-se alto enquanto o fazia.
Depois ripostou, cravando um golpe ainda mais fundo no antebraço de Drizzt. Por fim, o drow
decidiu-se por uma táctica que Tephanis não poderia contrariar, e que lhe retiraria toda a vantagem.
Bateu com a criatura contra a parede de pedra e depois atirou-a, semi-desmaiada, para o fundo da
ravina.

Algum tempo depois, Drizzt e Guenhwyvar estavam agachados nos arbustos na base de uma parede
de pedra íngreme. No alto, por detrás de arbustos e ramagens cuidadosamente colocados, havia uma
gruta e, de vez em quando, ouviam-se vozes de duendes. Ao lado da gruta, do lado do terreno que
continuava a subir, havia depois um abismo. Para lá da gruta, a montanha subia num ângulo ainda
mais elevado. Os trilhos, embora por vezes fossem raros na pedra nua, tinham levado Drizzt e
Guenhwyvar até àquele local; não poderia haver dúvidas de que o monstro que tinha chacinado os
agricultores estava naquela gruta.
Drizzt lutou de novo contra a sua decisão de vingar essas mortes. Teria preferido uma justiça mais
civilizada, um tribunal com leis. Mas que havia de fazer? Certamente não podia regressar para junto
dos aldeões humanos para contar as suas suspeitas, nem recorrer a mais ninguém. Agachado nos
arbustos, voltou a pensar nos agricultores, no rapaz de cabelos cor de areia, na bonita rapariga, quase
uma mulher, e no jovem rapaz que desarmara no silvado. Lutou com força por manter a respiração
estável. No selvagem Subescuro cedera por vezes às suas pressões instintivas, ao lado mais negro de
si mesmo que lutava com uma eficiência mortal e cruel, e conseguia sentir esse alter-ego a crescer
dentro de si mais uma vez. Inicialmente, tentou sublimar a raiva, mas depois lembrou-se das lições
que tinha aprendido. Este lado negro era uma parte dele, um instrumento de sobrevivência, e não era
completamente mau.
Era necessário.
Compreendia, no entanto, a sua desvantagem nesta situação. Não fazia ideia de quantos inimigos
encontraria, ou sequer de que tipo de monstros se trataria. Ouvia duendes, mas a matança na quinta
indicava-lhe que havia alguma coisa mais poderosa implicada. O bom senso de Drizzt disse-lhe para
ficar quieto e vigiar, para saber mais acerca dos seus inimigos.
Mas outro momento breve de recordações, e de novo a cena de matança na quinta, atiraram esse
bom senso para um canto. Com a cimitarra numa mão e o punhal do duende na outra, Drizzt subiu a
colina rochosa. Não abrandou quando chegou perto da gruta, mas simplesmente abriu caminho pelos
arbustos e entrou de rompante.
Guenhwyvar hesitou e observou-o, mais atrás, confundida pela táctica tão inusitada do drow.
Tephanis sentiu o ar frio a afagar-lhe a cara e pensou por um momento que estava a desfrutar de um
sonho agradável. O duende acordou rapidamente da sua ilusão e percebeu que estava a aproximar-se
rapidamente do chão. Felizmente, não estava muito longe da parede rochosa. Pôs as mãos e os pés a
agitar-se freneticamente, suficientemente rápidos para produzir um som de silvo constante, e raspou
pela parede de rocha para abrandar a velocidade da descida. Entretanto, começou os encantamentos
de levitação, que era talvez a única coisa que o poderia salvar.
Alguns segundos agonizantes passaram antes que o duende sentisse o corpo a flutuar devido ao
encantamento. Caiu pesadamente no chão, mas percebeu que os ferimentos eram pouco graves.
Tephanis manteve-se relativamente lento e sacudiu-se. O seu primeiro pensamento foi ir avisar
Ulgulu da aproximação do drow, mas reconsiderou imediatamente. Não conseguiria levitar até lá
acima a tempo de avisar o barghest, e só havia um trilho até à gruta — que era onde estava o drow.
Tephanis não tinha vontade nenhuma de voltar a enfrentá-lo.

Ulgulu não tentara cobrir os seus rastos. O elfo negro cumprira tudo conforme o barghest queria.
Agora, planeava fazer de Drizzt uma refeição; uma refeição que lhe traria a maturidade e lhe
permitiria regressar a Gehenna.
Os dois guardas duendes de Ulgulu não ficaram nada surpreendidos perante a entrada de Drizzt.
Ulgulu já os avisara de que deveriam esperar a chegada do drow e simplesmente atrasá-lo na
antecâmara até que o barghest pudesse vir tratar dele. Os duendes pararam a conversa abruptamente,
colocaram as lanças em cruz diante da cortina e incharam os peitos ossudos, seguindo tontamente as
instruções do chefe enquanto Drizzt se aproximava.
— Ninguém pode entrar… — começou a dizer um deles, mas depois, com um único golpe da
cimitarra de Drizzt, o duende e o seu companheiro caíram agarrados às gargantas rasgadas. A
barreira das lanças desapareceu e Drizzt nem sequer abrandou o passo enquanto atravessava a
barreira.
No meio da antecâmara, o drow viu o inimigo. Com a pele púrpura e de tamanho gigantesco, o
barghest esperava de braços cruzados e com um sorriso confiante e malévolo.
Drizzt lançou o punhal e carregou logo atrás dele. Esse lançamento salvou-lhe a vida, porque
quando o punhal passou inofensivamente pelo corpo do seu oponente, Drizzt percebeu a armadilha.
Seguiu em frente, porém, incapaz de contrariar o balanço que levava, e a cimitarra atravessou a
imagem sem encontrar nada que pudesse cortar.
O verdadeiro barghest estava atrás do trono de pedra ao fundo da sala. Usando outro poder do seu
considerável repertório mágico, Kempfana enviara uma imagem sua para o centro da sala, para
manter o drow no lugar.
Os instintos de Drizzt disseram-lhe imediatamente que tinha sido enganado. Aquilo que tinha à
frente não era um monstro real, mas uma aparição destinada a mantê-lo em campo aberto e
vulnerável. A sala estava escassamente mobilada, e nada havia por perto que proporcionasse abrigo.
Ulgulu, levitando por cima do drow, desceu rapidamente, parando suavemente atrás dele. O plano
era perfeito e o alvo estava mesmo no sítio.
Drizzt, com os músculos e os reflexos treinados e habituados a lutar na perfeição, sentiu a
presença e mergulhou para frente, para a imagem, enquanto Ulgulu desferia um pesado murro. A
enorme mão do barghest apenas apanhou alguns cabelos de Drizzt, mas isso bastou para quase lhe
arrancar a cabeça.
Drizzt deu meia volta ao corpo enquanto mergulhava, rebolando até se pôr de pé outra vez, mas
agora de frente para Ulgulu. Deparou com um monstro ainda maior do que o da imagem, mas isso em
nada intimidava o enraivecido drow. Como uma corda esticada ao máximo, Drizzt disparou
imediatamente em direcção ao barghest. Quando Ulgulu ainda mal recuperara do seu inesperado
falhanço, a cimitarra solitária de Drizzt já o tinha trespassado três vezes no estômago e recortado um
buraco bem definido debaixo do queixo.
O barghest rugiu de raiva, mas não estava ferido com demasiada gravidade, pois a arma de fabrico
drow de Drizzt perdera a maior parte da sua magia durante o tempo de permanência na superfície, e
só armas mágicas — como as garras e presas de Guenhwyvar — poderiam verdadeiramente ferir
com gravidade uma criatura de Gehenna.
A grande pantera abateu-se sobre a nuca de Ulgulu com força suficiente para o fazer cair de cara
no chão. Nunca Ulgulu sentira uma dor como a que as garras de Guenhwyvar lhe provocavam agora
na cabeça.
Drizzt avançava para se juntar a Guenhwyvar, quando ouviu um restolhar vindo do fundo da sala.
Kempfana avançou de detrás do trono, rugindo o seu protesto.
Era a vez de Drizzt usar alguma magia. Lançou um globo de escuridão para o caminho do barghest
de pele escarlate, e depois mergulhou ele próprio para dentro desse globo, pondo-se de gatas.
Incapaz de abrandar, Kempfana entrou no globo rugindo, tropeçou no drow enroscado — batendo-lhe
com força suficiente para lhe expulsar todo o ar dos pulmões — e caiu pesadamente do outro lado do
globo de escuridão.
Kempfana abanou a cabeça para clarear as ideias e pousou as grandes mãos no chão, para se
voltar a levantar. Num ápice, Drizzt estava sobre as costas do barghest, golpeando selvaticamente
com a cimitarra. O sangue empapava o cabelo de Kempfana quando conseguiu por fim sacudir o
drow de cima dele. Pôs-se de pé, cambaleando, e virou-se para enfrentar o drow.

Do ouro lado da sala, Ulgulu rastejava, rebolava e contorcia-se. A pantera era demasiado rápida e
demasiado ágil para os contragolpes pesados do gigante. Uma dúzia de golpes profundos rasgavam-
lhe a cara e agora Guenhwyvar tinha os dentes cravados na nuca do gigante, e as quatro patas
arranhando-lhe as costas.
Ulgulu ainda tinha, porém, outra opção. Os ossos rangeram e estalaram, a cara ferida de Ulgulu
tornou-se um focinho alongado cheio de malévolos dentes carnívoros. Pelagem espessa começou a
surgir por todo o corpo do gigante, evitando os ataques das garras de Guenhwyvar. Os braços
enfraquecidos transformaram-se em patas ágeis.
Guenhwyvar lutava agora com um lobo gigantesco, e a vantagem da pantera terminara rapidamente.

Kempfana avançava agora cautelosamente, mostrando a Drizzt o devido respeito.


— Mataste-os todos — disse Drizzt na língua de duende, mas com a voz tão completamente gelada
que fez o barghest estacar.
Kempfana não era uma criatura estúpida. O barghest reconheceu a raiva explosiva daquele drow e
sentira a mordedura feroz da cimitarra. Percebeu que era melhor não avançar de caras, por isso fez
apelo mais uma vez aos seus dotes do outro mundo. No piscar de um olho ardendo em tom laranja, o
barghest de pele escarlate desapareceu, entrando numa porta extra-dimensional e reaparecendo atrás
de Drizzt.
Assim que Kempfana desapareceu, Drizzt saltou instintivamente para o lado. O golpe vindo de trás
chegou rápido, porém, abatendo-se nas costas do drow e lançando-o pela sala. Drizzt abateu-se com
força contra a base de uma parede e pôs-se de joelhos, ofegante, quase sem conseguir respirar.
Kempfana avançou a direito, desta vez: o drow largara a cimitarra a meio da sala, demasiado
longe para a poder recuperar a tempo.

O grande barghest-lobo, quase com o dobro do tamanho de Guenhwyvar, rebolou e pôs-se por cima
da pantera. Grandes mandíbulas atacavam perto da garganta e do focinho da pantera, e Guenhwyvar
debatia-se selvaticamente para as manter afastadas. Guenhwyvar não podia esperar vencer o lobo. A
única vantagem que mantinha era a da agilidade. Como uma flecha negra, Guenhwyvar disparou de
debaixo do lobo e em direcção à cortina.
Ulgulu uivou e foi em sua perseguição, rasgando a cortina e carregando em direcção à luz do
crepúsculo.
Guenhwyvar saiu da gruta no momento em que Ulgulu rasgava a cortina, girou instantaneamente e
saltou a direito para cima, para a parede íngreme por cima da gruta. Quando o grande lobo saiu, a
pantera voltou a abater-se sobre ele e recomeçou os golpes e arranhões.

— Quem matou os agricultores foi Ulgulu, não fui eu — rosnava Kempfana enquanto se aproximava.
Deu um pontapé à cimitarra, lançando-a para o outro lado da sala. — Ulgulu quer-te a ti. Quer quem
lhe matou os gnolls. Mas vou ser eu a matar-te, guerreiro drow. Vou banquetear-me com a tua força
vital, para poder ganhar mais força!
Drizzt ainda estava a tentar recuperar o fôlego, e mal ouvia estas palavras. Os únicos pensamentos
que lhe ocorriam eram as imagens dos agricultores mortos, imagens que lhe davam coragem. O
barghest aproximou-se mais e Drizzt lançou um olhar feroz, um olhar fixo e determinado, em nada
diminuído pela situação obviamente desesperada em que o drow se encontrava.
Kempfana hesitou perante aqueles olhos semicerrados, que ardiam de ira, e esse atraso deu a
Drizzt todo o tempo de que precisava. Já lutara contra monstros gigantes, e especialmente com
horrores de garras. As cimitarras de Drizzt tinham sempre terminado esses combates, mas para os
ataques iniciais usara sempre e apenas o seu corpo. A dor que sentia nas costas não era suficiente
para apagar a raiva crescente. Correu para longe da parede, mantendo-se agachado, e mergulhou
entre as pernas de Kempfana, girando e agarrando-se atrás de um joelho do monstro.
Kempfana, despreocupado, inclinou-se para agarrar o fugidio drow. Drizzt esquivou-se das mãos
do gigante o tempo suficiente para encontrar um ponto de apoio. Mesmo assim, Kempfana continuava
a considerar os ataques como meros incómodos menores. Quando Drizzt o fez desequilibrar-se,
Kempfana deixou-se cair, pensando que conseguiria esmagar o pequeno elfo. Mais uma vez, o drow
foi demasiado rápido para o barghest. Deslizou de debaixo do gigante em queda, pôs os pés de novo
no chão e correu para o lado oposto da sala.
— Não, não vais apanhá-la! — uivou Kempfana, rastejando e depois correndo em perseguição de
Drizzt. No momento em que Drizzt apanhava a cimitarra, os braços gigantescos de Kempfana
envolveram-no e levantaram-no facilmente do chão.
— Vou esmagar-te e trincar-te! — rugia Kempfana; e, de facto, Drizzt ouviu uma das suas costelas
a estalar. Tentou contorcer-se de forma a ficar de frente para o inimigo, mas depois desistiu da ideia,
concentrando-se, em vez disso, em libertar de novo a espada.
Mais uma costela cedeu; os grandes braços de Kempfana apertavam cada vez mais. O barghest não
queria, porém, simplesmente matar o drow, apercebendo-se dos grandes ganhos em matéria de
maturidade que poderia obter devorando um inimigo tão poderoso, alimentando-se da força vital de
Drizzt.
— Trincar-te, drow! — ria-se o gigante. — Festim!
Drizzt agarrou a cimitarra com as duas mãos, com uma força inspirada pelas imagens da quinta.
Conseguiu libertar a arma e fê-la girar por cima da cabeça. A lâmina mergulhou na boca escancarada
de Kempfana e cravou-se-lhe na garganta.
Drizzt fê-la rodar e voltar a rodar.
Kempfana sacudia-se freneticamente e os músculos e articulações de Drizzt quase se desfizeram
com o esforço. O drow encontrara porém o ponto onde se concentrar, que era o punho da cimitarra, e
continuou a agitá-lo e a girá-lo.
Kempfana caiu pesadamente, gorgolejando, e rebolou para Drizzt, tentando esmagá-lo. A dor
começou a deixar o drow semi-inconsciente.
— Não! — gritou, agarrando-se à imagem do rapaz de cabelos cor de areia, chacinado na cama.
Continuou a sacudir e a rodar a cimitarra. O gorgolejar continuava, com um som de ar a atravessar
uma torrente de sangue em que o gigante se afogava. Drizzt soube que a batalha estava ganha quando
a criatura por cima dele parou de se mexer.
Queria apenas encolher-se e recuperar a respiração, mas disse a si mesmo que ainda não estava
acabado. Rastejou de debaixo do monstro, limpou o sangue, o seu sangue, dos lábios, libertou a
cimitarra da boca de Kempfana, sem cerimónias, e apanhou o punhal.
Sabia que as feridas eram graves, e que poderiam mesmo ser fatais se não tratasse delas
imediatamente. A respiração continuava a vir-lhe com dificuldade, em soluços sanguinolentos. Mas
nada disso o preocupava, porque Ulgulu, o monstro que tinha morto os agricultores, ainda vivia.

Guenhwyvar saltou das costas do lobo gigante, encontrando de novo um poiso instável na encosta
íngreme por cima da gruta. Ulgulu girou, rugindo, e saltou para a pantera, deitando as garras às
pedras num esforço por chegar mais acima.
Guenhwyvar saltou por cima do barghest-lobo, girou imediatamente e atacou Ulgulu nos quartos
traseiros. O lobo rodou, mas Guenhwyvar saltou, aterrando de novo no declive por cima da gruta.
Este jogo de toca e foge durou vários momentos, com Guenhwyvar a atacar e depois a fugir. Por fim,
porém, o lobo antecipou-se às esquivas da pantera. Ulgulu agarrou a enorme pantera com as suas
mandíbulas maciças. Guenhwyvar contorceu-se e escapou-se, mas aproximou-se da profunda ravina.
Ulgulu pairou sobre o felino, bloqueando qualquer escapatória.
Drizzt saiu da gruta quando o grande lobo avançava, empurrando Guenhwyvar para trás. Pequenas
pedras escorregavam e caíam para a ravina; as pernas traseiras da pantera escorregavam e voltavam
depois a firmar-se, tentando encontrar chão firme. Nem mesmo a poderosa Guenhwyvar seria capaz
de resistir ao peso e à força do barghest–lobo, e Drizzt sabia disso.
Viu imediatamente que não conseguiria afastar o grande lobo de Guenhwyvar a tempo. Pegou na
estatueta de ónix e lançou-a para perto dos oponentes.
— Vai-te, Guenhwyvar! — comandou.
Guenhwyvar não abandonaria, normalmente, o amigo num momento de tão grande perigo, mas a
pantera percebeu o que Drizzt tinha em mente. Ulgulu avançou com toda a força, empurrando
Guenhwyvar do sítio com determinação.
Mas daí a um instante, estava apenas a empurrar nuvens de fumo intangível. Ulgulu atirou-se para a
frente e agitou-se selvaticamente, atirando mais pedras e a estatueta de ónix para a ravina.
Desequilibrado, o lobo não se conseguiu segurar, e depois caiu também.
Os ossos voltaram a estalar, e a pelagem de lobo tornou-se rala; Ulgulu não poderia pôr em acção
uma levitação enquanto estivesse na forma de lobo. Desesperado, o barghest concentrou-se,
procurando reverter para a sua forma natural. O focinho de lobo recolheu até ficar um rosto de
feições planas. As patas engrossaram e transformaram-se de novo em braços.
Contudo, a criatura semi-reconstituída não conseguiu acabar, abatendo-se na pedra.
Drizzt saiu do trilho diante da ravina e entrou em levitação, descendo lentamente e junto à parede
de pedra. Tal como antes já acontecera, o encantamento de levitação terminou antes do habitual.
Drizzt tentou agarrar-se e rebolou durante os últimos três metros da queda, parando abruptamente no
fundo rochoso. Viu o barghest num estertor a apenas alguns centímetros dele e tentou pôr-se em
posição de defesa, mas a escuridão apoderou-se dele.

Drizzt não podia saber quantas horas tinham passado, quando um rugido estrepitoso o acordou, algum
tempo depois. Estava agora escuro e a noite estava enevoada. Lentamente, as recordações do
recontro regressaram ao confuso e ferido drow. Para seu alívio, viu que Ulgulu ainda estava caído na
pedra ao lado dele, metade duende e metade lobo, e obviamente bem morto.
Um segundo rugido, junto da gruta, fez o drow virar-se para o trilho lá em cima. Lá estava
Lagerbottoms, o gigante das montanhas, que regressava de uma expedição de caça e mostrava o seu
ultraje pelo espectáculo que encontrara.
Drizzt soube, assim que conseguiu pôr-se em pé, que não poderia lutar outra vez nesse dia.
Procurou à sua volta por algum tempo, encontrou a estatueta de ónix, e meteu-a na bolsa. Não estava
muito preocupado com Guenhwyvar. Já vira a pantera passar por coisas piores: apanhada na
explosão de uma varinha mágica, puxada para o Plano da Terra por um elementar enraivecido, até
mesmo caída num lago de ácido borbulhante. A estatueta parecia não ter danos, e Drizzt estava certo
de que Guenhwyvar estaria agora a descansar confortavelmente no seu lar astral.
Drizzt, contudo, não se podia dar ao luxo de descansar. O gigante já tinha começado a abrir
caminho pela encosta rochosa. Com um olhar final a Ulgulu, saboreou a sensação da vingança, mas
esta pouco fazia para diminuir as memórias dilacerantes e amargas dos agricultores chacinados.
Partiu, entrando pela floresta das montanhas, fugindo do gigante e da culpa.
Mais do que um dia passara já, desde o massacre, quando o primeiro dos vizinhos dos Thistledowns
se dispôs a ir até à quinta isolada. O fedor da morte alertou o agricultor visitante para a carnificina
antes mesmo que olhasse para dentro da casa ou do celeiro.
Regressou daí a meia hora com o presidente Delmo e vários outros agricultores armados ao seu
lado. Caminharam pela casa dos Thistledown e pelos campos cautelosamente, pondo pedaços de
pano na cara para abafar o odor terrível.
— Quem poderia fazer uma coisa destas? — perguntava o presidente da câmara. Como que em
resposta, um dos agricultores saiu do quarto e entrou na cozinha, segurando uma cimitarra partida nas
mãos.
— Uma arma drow? — perguntou o agricultor. — Devíamos chamar McGristle.
Delmo hesitou. Esperava o grupo vindo de Sundabar, que devia estar a chegar a qualquer
momento, e sentia que a famosa ranger Dove Falconhand seria mais capaz de lidar com a situação do
que o volátil e incontrolável homem das montanhas.
No entanto, o debate não chegou sequer a começar, porque o uivo de um cão alertou todos os que
ali estavam de que McGristle chegara. O homem rude e sujo entrou na cozinha lentamente, com um
lado do rosto terrivelmente marcado por ferimentos e manchado de sangue castanho e seco.
— Arma drow! — disse logo, reconhecendo a cimitarra com toda a clareza. — A mesma que ele
usou contra mim!
— A ranger chegará em breve — começou a dizer Delmo. Mas McGristle mal o ouviu. Caminhou
pela sala e foi até ao quarto, ao lado, tocando rudemente nos corpos com a ponta do pé e inclinando-
se para inspeccionar alguns pormenores.
— Vi os rastos lá fora — declarou subitamente. — Dois grupos de rastos, parece-me.
— O drow tem um aliado — raciocinou o presidente. — Mais uma razão para esperarmos pelo
grupo que vem de Sundabar.
— Bah, nem sequer sabes se eles vêm mesmo! — desdenhou McGristle. — Tenho de ir atrás do
drow agora mesmo, enquanto o rasto ainda está fresco para o nariz do meu cão!
Vários dos agricultores reunidos sacudiram as cabeças em concordância — até Delmo lhes
relembrar prudentemente o que poderiam vir a encontrar.
— Um único drow venceu-te, McGristle — disse o presidente. — Agora julgas que são dois, até
mesmo mais, talvez, e vamos contigo à caça deles?
— Falta de sorte, foi o que foi. Isso é que me venceu! — retorquiu Roddy. Olhou em volta,
apelando aos agora menos entusiasmados agricultores. — Tinha quase apanhado aquele drow! Tinha-
o mesmo onde queria!
Os agricultores remexiam-se nervosamente e murmuravam uns para os outros enquanto o
presidente agarrava Roddy por um braço e o levava para um canto da cozinha.
— Espera um dia — implorou Delmo. — As nossas hipóteses serão muito maiores se a ranger
chegar.
Roddy não pareceu convencido.
— A minha guerra, compete-me a mim combatê-la — rosnou. — Matou o meu cão e deixou-me
desfigurado.
— Queres apanhá-lo, e tê-lo-ás — prometeu o presidente —, mas pode haver mais coisas em jogo
do que o teu cão ou o teu orgulho!
O rosto de Roddy contorceu-se sombriamente, mas o presidente estava decidido. Se havia de facto
um grupo de guerreiros drow na área, toda a Maldobar estava em perigo iminente. A melhor defesa
do pequeno grupo de residentes até que chegasse ajuda de Sundabar era a união, e essa defesa
falharia se Roddy levasse um grupo de homens — combatentes que já eram escassos — numa
perseguição pelas montanhas. Mas Benson Delmo era suficientemente astuto para saber que não
podia apelar a Roddy nestes termos. Embora o homem da montanha já permanecesse em Maldobar
havia uns dois anos, era, essencialmente, um forasteiro, e não devia lealdade à cidade.
Roddy virou costas, decidindo que a reunião estava terminada, mas o presidente segurou-lhe um
braço ousadamente e fê-lo virar-se de novo para trás. O cão de Roddy mostrou os dentes e rosnou,
mas essa ameaça foi de pouca monta para o homem gordo, tendo em conta o riso desdenhoso que
Roddy lhe lançou.
— Terás o drow — disse o presidente rapidamente —, mas espera pela ajuda de Sundabar, peço-
te — e depois mudou para termos que Roddy poderia realmente apreciar. — Sou um homem de não
poucos recursos, McGristle, e eras um caçador de prémios antes de vires para aqui, e ainda és, julgo
eu — a expressão de Roddy alterou-se subitamente, de ultrajado para curioso. — Espera pela ajuda,
e depois vai apanhar o drow — o presidente fez uma pausa, ponderando a oferta que ia fazer. Não
tinha realmente nenhuma experiência deste tipo de coisas e, embora não quisesse errar muito por
baixo e estragar o interesse que tinha despertado, também não queria sobrecarregar a sua bolsa mais
do que o estritamente necessário. — Dou mil peças de ouro pela cabeça do drow.
Roddy jogara este jogo muitas vezes. Escondeu bem o seu regozijo; a oferta do presidente era
cinco vezes o normal, e ele teria ido atrás do drow, de qualquer forma, com ou sem recompensa.
— Duas mil! — rosnou o homem da montanha sem se descompor, suspeitando que muito mais
poderia ser extorquido em troca dos seus trabalhos. O presidente balouçou sobre os calcanhares, mas
lembrou a si mesmo, por várias vezes, que a própria existência da sua vila poderia estar em perigo.
— E nem menos um tostão! — acrescentou Roddy, cruzando os braços musculados sobre o peito.
— Espera pela Senhora Falconhand — disse Delmo num fio de voz. — E terás as tuas duas mil
peças de ouro.

Durante toda a noite, Lagerbottoms seguiu o rasto do drow ferido. O maciço gigante da montanha
ainda não estava bem certo acerca de como se sentia em relação à morte de Ulgulu e de Kempfana,
os senhores que tinham roubado o seu lar e a sua vida. Embora Lagerbottom receasse qualquer
inimigo que conseguisse derrotar aqueles dois, o gigante sabia que o drow estava gravemente ferido.
Drizzt percebeu que estava a ser seguido, mas pouco podia fazer para apagar os rastos. Uma perna,
magoada durante a descida aos trambolhões até à ravina, arrastava-se dolorosamente e Drizzt fazia
tudo o que podia para se conseguir manter à distância do gigante. Quando chegou o amanhecer,
límpido e claro, soube que a sua desvantagem tinha aumentado. Não poderia esperar escapar ao
gigante da montanha durante o longo período de luz diurna.
O rasto entrava num pequeno grupo de árvores de vários tamanhos, que nasciam onde quer que
encontrassem uma falha entre os numerosos rochedos. Drizzt tencionava passar a direito — não via
outra opção senão continuar a fugir —, mas enquanto estava encostado a uma das árvores maiores,
procurando recuperar o fôlego, ocorreu-lhe uma ideia. Os ramos das árvores pendiam soltos, macios
e semelhantes a cordas.
Olhou para trás, para o trilho. Lá mais atrás, e atravessando uma zona de pedra nua, o incansável
gigante da montanha avançava pesadamente. Drizzt pegou na cimitarra com o único braço que parecia
ainda funcionar e cortou o ramo mais longo que conseguiu encontrar. Depois, procurou uma rocha
adequada.
O gigante chegou às árvores meia hora depois, com a enorme maça que trazia a balançar na ponta
de um braço possante. Lagerbottoms parou abruptamente quando o drow apareceu por detrás de uma
árvore, bloqueando-lhe o caminho.
Drizzt quase suspirou de alívio quando o gigante parou exactamente na área em que o queria.
Receara que o grande monstro seguisse simplesmente em frente e o varresse do caminho, porque,
ferido como estava, Drizzt pouca resistência poderia ter oferecido. Aproveitando o momento de
hesitação do monstro, gritou «alto!» na língua dos duendes e pôs em acção um simples encantamento,
rodeando o gigante de chamas inofensivas que brilhavam a azul.
Lagerbottoms remexeu-se desconfortavelmente, mas não deu nenhum passo em direcção àquele
estranho e perigoso inimigo. Drizzt olhou para os pés irrequietos do monstro com um interesse mais
do que casual.
— Porque me estás a seguir? — perguntou Drizzt. — Desejas juntar-te aos outros no sono da
morte?
Lagerbottoms correu a língua gorda pelos lábios secos. Até aqui, este encontro não estava a
decorrer como esperara. Agora, o gigante pensava mais para além daquelas pressões instintivas que
o tinham levado até ali e tentava considerar as suas opções. Ulgulu e Kempfana estavam mortos.
Lagerbottoms tinha de novo a sua caverna só para si. Mas os gnolls e os duendes também tinham
desaparecido, e aquele irritante pequeno duende já não aparecia havia bastante tempo. Um súbito
pensamento ocorreu ao gigante.
— Amigos? — perguntou, esperançoso.
Embora aliviado por ver que o combate poderia ainda ser evitado, Drizzt estava bastante céptico
em relação à proposta. O bando de gnolls propusera a mesma coisa, com efeitos desastrosos, e este
gigante estava obviamente ligado aos outros monstros que acabara de matar, os mesmos que tinham
chacinado a família da quinta.
— Amigos para que finalidade? — perguntou Drizzt, desconfiado, mas esperando, contra toda a
razoabilidade, que pudesse vir a descobrir nesta criatura motivações derivadas de alguns princípios,
e não apenas da ânsia de sangue.
— Matar… — respondeu Lagerbottoms, como se a resposta fosse óbvia.
Drizzt fez um sorriso de desdém e abanou a cabeça numa recusa irritada, com a cabeleira branca a
sacudir-se violentamente. Agarrou a cimitarra, mal se importando se o pé do gigante estava no centro
do laço da sua armadilha.
— Matar-te a ti! — gritou Lagerbottoms, vendo a súbita alteração do drow. E o gigante ergueu a
maça e deu um grande passo em frente, um passo encurtado pelo ramo parecido com uma liana que se
enrolara fortemente ao seu tornozelo.
Drizzt conteve o desejo de saltar para frente, relembrando a si mesmo que a armadilha já tinha
sido posta em acção, e relembrando também que na sua presente condição teria grande dificuldade
em sobreviver contra um tão formidável oponente.
Lagerbottoms olhou para baixo, para o laço, e rugiu de ultraje. O ramo não era realmente uma
corda a sério e o nó não estava muito apertado. Se tivesse simplesmente estendido a mão, o gigante
poderia facilmente ter libertado o pé do laço. Os gigantes das montanhas, porém, não eram
conhecidos propriamente pela sua inteligência.
— Matar-te! — gritou o gigante mais uma vez, puxando com força o ramo que o prendia. Impelida
pela força considerável do puxão de Lagerbottoms, a grande rocha atada à outra ponta do ramo, por
detrás do gigante, caiu para a frente, atravessou a vegetação e foi direita às costas dele.
Lagerbottoms começara a gritar uma terceira vez, mas a ameaça saiu apenas como um sopro de ar
comprimido. A pesada maça caiu no chão e o gigante, agarrando a zona dos rins, caiu sobre um
joelho.
Drizzt hesitou por um momento, sem saber se havia de fugir ou acabar com o monstro. Não receava
por si; o gigante não viria atrás dele tão depressa. Mas não podia esquecer a expressão sombria do
gigante quando este dissera que poderiam matar juntos.
— Quantas mais famílias chacinarás? — perguntou Drizzt na língua drow. Lagerbottoms não
conseguia perceber nada daquela língua. Limitou-se a resmungar e a sorrir desdenhoso, apesar da dor
ardente. — Quantas? — perguntou Drizzt mais uma vez, com a mão crispada sobre o punho da
cimitarra, e com os olhos semicerrados ameaçadoramente.
Avançou com força e decididamente.

Para grande alívio de Benson Delmo, o grupo de Sundabar — Dove Falconhand, os seus três
companheiros guerreiros e Fret, o anão sábio — chegou nesse mesmo dia, mais tarde. O presidente
ofereceu ao grupo comida e aposentos para descansar, mas assim que Dove ouviu o relato do
massacre na quinta dos Thistledown, ela e os companheiros partiram para lá imediatamente, com o
presidente, Roddy McGristle e vários outros agricultores curiosos a segui-los de perto.
Dove ficou claramente desapontada quando chegou à quinta isolada. Uma centena de rastos de
pegadas diferentes obscurecia pistas importantes, e muitas coisas dentro da casa, e até mesmo os
corpos, tinham sido remexidas e tiradas do lugar. Mesmo assim, Dove e os seus experientes
companheiros moviam-se metodicamente, tentando decifrar o que podiam a partir daquele cenário
sinistro.
— Que gente tonta! — resmungou Fret para os agricultores quando Dove e os outros acabaram as
suas investigações. — Ajudaram os nossos inimigos!
Vários dos agricultores, e até mesmo o presidente, olharam em volta, desconfortáveis, perante a
censura, mas Roddy rosnou para o anão. Dove interveio rapidamente.
— A vossa presença aqui anteriormente apagou algumas pistas — explicou Dove calmamente ao
presidente, enquanto se interpunha prudentemente entre Fret e o rude homem das montanhas. Dove já
ouvira muitas histórias de McGristle, e a reputação dele não era de ser previsível ou calmo.
— Não sabíamos… — tentou explicar o presidente.
— Claro que não — respondeu Dove. — Reagiram como qualquer outra pessoa teria feito.
— Qualquer outro novato — notou Fret.
— Cala a boca — rosnou McGristle. E o cão fez o mesmo.
— Acalme-se, cavalheiro — pediu Dove. — Temos demasiados inimigos fora da aldeia e não
precisamos de mais um cá dentro.
— Novato? — desdenhou McGristle. — Cacei uns cem homens, e sei o suficiente sobre este
maldito drow para o apanhar.
— E sabemos se foi o drow? — perguntou Dove, duvidando genuinamente.
— Arma drow… — respondeu Roddy secamente, apontando para a cara marcada por golpes. —
Vi-a bem de perto!
Uma rápida observação das feridas na cara do homem das montanhas disse a Dove que a cimitarra
de gume limpo não poderia ter causado aquilo; mas a ranger deixou passar isso, não vendo
vantagens em prosseguir a discussão.
— E rastos de drow — insistiu Roddy. — As pegadas correspondem às que ficaram no silvado
onde vimos o drow!
O olhar de Dove levou todos a olharem para o celeiro.
— Algo muito forte rebentou com aquela porta — raciocinou. — E a mulher mais nova que lá está
não foi morta por um elfo negro.
Roddy manteve-se impassível.
— O drow tem um animal de estimação — insistiu. — Uma grande pantera negra. Um maldito gato
enorme!
Dove continuava duvidosa. Não vira pegadas que correspondessem às patas de uma pantera, e a
forma como uma parte da mulher tinha sido devorada, com ossos e tudo, não se enquadrava com
nenhuma conhecimento que tivesse sobre grandes felinos. Mas manteve os seus pensamentos para
consigo, percebendo que o rude homem das montanhas não queria enigmas que perturbassem as suas
conclusões já assentes.
— Ora bem, eu cá já estou farto deste lugar. Vamos mas é seguir as pistas — insistiu Roddy. — O
meu cão já tem uma pista suficientemente forte!
Dove lançou um olhar preocupado ao presidente, que desviou os olhos, embaraçado.
— Roddy McGristle deve ir convosco — explicou Delmo, quase incapaz de dizer as palavras de
forma inteligível, e desejando não ter feito aquele acordo sob pressão com Roddy. Vendo a calma e
profissionalismo da ranger e dos seus companheiros, tão drasticamente opostos ao violento
temperamento de Roddy, o presidente considerava agora que seria muito melhor que Dove e o seu
grupo tratassem da situação à sua maneira. Mas um acordo era um acordo. — Será a única pessoa de
Maldobar a unir-se ao vosso grupo — prosseguiu Delmo. — É um caçador experiente e conhece esta
área melhor do que ninguém.
Mais uma vez, Dove acedeu, perante a incredulidade de Fret.
— A noite está quase a chegar — disse Dove. Depois, acrescentou olhando fixamente para
McGristle: — Partiremos ao alvorecer.
— O drow já leva um avanço demasiado grande! — protestou Roddy. — Devíamos ir já atrás
dele!
— Estás a presumir que o drow esteja a fugir — respondeu Dove, sempre calmamente, mas desta
vez com um tom severo na voz. — Quantos homens mortos presumiram a mesma coisa acerca dos
seus inimigos? — desta vez, Roddy, perplexo, não gritou uma resposta. — O drow, ou o grupo drow,
pode estar escondido nas redondezas. Gostarias de dar com ele inesperadamente, McGristle?
Gostarias de combater contra elfos negros na escuridão da noite?
Roddy limitou-se a abrir as mãos em sinal de rendição, rosnou e afastou-se, com o cão a segui-lo
de perto.
O presidente ofereceu a Dove e ao seu grupo acomodação em sua própria casa, mas a ranger e os
companheiros preferiram ficar na quinta dos Thistledown. Dove sorriu enquanto os agricultores se
afastavam, e Roddy montou o seu acampamento a pouca distância, obviamente para a manter debaixo
de olho. Dove interrogou-se sobre quanto teria McGristle a ganhar com tudo isto, e suspeitou que
havia ali muito mais do que simples vingança por um rosto desfigurado e uma orelha perdida.
— Vais mesmo deixar que aquele brutamontes venha connosco? — perguntou Fret mais tarde,
quando ele, Dove e Gabriel estavam reunidos em volta da fogueira acesa na quinta. O arqueiro elfo e
outro membro do grupo estavam de sentinela a vigiar o perímetro.
— A aldeia é deles, querido Fret — explicou Dove. — E não posso negar que McGristle conheça
melhor a região.
— Mas é tão sujo — resmungou o anão.
Dove e Gabriel trocaram sorrisos, e Fret, percebendo que não chegaria a lado nenhum com aquela
discussão, desenrolou a sua esteira e deitou-se, virando costas aos outros ostensivamente.
— Bom velho Molha-a-Pena… — murmurou Gabriel. Mas notou que o sorriso de Dove pouco
fazia para ocultar a genuína preocupação na cara da ranger. — Tens algum problema, Senhora
Falconhand? — perguntou.
Dove encolheu os ombros.
— Algumas coisas não se encaixam na ordem natural, neste cenário — começou Dove.
— Não foi uma pantera que matou aquela mulher do celeiro — disse Gabriel, que também notara
algumas discrepâncias.
— E nenhum drow matou o agricultor, o que se chamava Bartholomew, na cozinha — prosseguiu
Dove. — A vara que lhe partiu o pescoço quase se partiu ao meio. Só um gigante teria tanta força.
— Magia? — perguntou Gabriel.
Dove encolheu os ombros mais uma vez.
— A magia drow costuma ser mais subtil do que isso, segundo o nosso sábio — respondeu,
olhando para Fret, que já estava a ressonar sonoramente. — E mais completa. Fret não crê que tenha
sido magia drow a matar Bartholomew ou a mulher, ou a destruir a porta do celeiro. E há outro
mistério no que diz respeito aos rastos deixados.
— Há dois conjuntos — disse Gabriel. — E feitos com quase um dia de diferença.
— E com profundidades diferentes — acrescentou Dove. — Um conjunto, o segundo, pode bem
ser, de facto, de um elfo negro, mas o outro, o do assassino, é demasiado profundo para ser dos
passos de um elfo negro.
— Algum agente do drow? — propôs Gabriel. Alguma criatura conjurada dos planos inferiores,
talvez? Poderia o elfo negro ter regressado no dia seguinte para inspeccionar a obra do seu monstro?
Desta vez, Gabriel uniu-se a Dove num encolher de ombros intrigado.
— Haveremos de descobrir — disse Dove.
Gabriel acendeu o cachimbo e Dove deixou-se dormitar.

— Ó, senhor! Meu senhor! — lamentava-se Tephanis, vendo a grotesca forma do desconjuntado e


semi-transformado barghest.
O quickling não se importava assim tanto com Ulgulu ou com o irmão, mas as mortes de ambos
tinham algumas severas implicações para os caminhos futuros do duende. Tephanis tinha-se unido ao
grupo de Ulgulu por benefício mútuo. Antes de o barghest aparecer, o pequeno duende veloz passara
os seus dias sozinho, roubando quando podia nas aldeias vizinhas. Tinha-se saído bem, mas a sua
vida era solitária e pouco excitante.
Ulgulu viera mudar tudo isso. O exército do barghest dava protecção e companhia, e Ulgulu, que
estava sempre a arquitectar novas e maquiavélicas matanças, dera a Tephanis incontáveis missões
importantes.
Agora, o quickling tinha de se afastar de tudo isso, porque Ulgulu estava morto, e Kempfana estava
morto, e nada que Tephanis pudesse fazer mudaria esses simples factos.
— Lagerbottoms? — interrogou-se o quickling subitamente.
Pensou que o gigante da montanha, que era o único membro do antro que faltava, poderia vir a ser
um bom companheiro. Tephanis viu os rastos do gigante suficientemente claros, afastando-se da gruta
e entrando para o meio das montanhas. Bateu as mãos excitadamente, talvez uma centena de vezes
num único segundo, e depois partiu, correndo a grande velocidade para encontrar um novo amigo.

Lá bem no alto das montanhas, Drizzt Do’Urden olhava para as luzes de Maldobar uma última vez.
Desde que descera dos cumes depois do seu desagradável encontro com a doninha, o drow
descobrira um mundo de selvajaria quase igual à do reino da escuridão que deixara para trás.
Quaisquer esperanças que Drizzt tivesse nutrido durante os seus dias a observar a família de
agricultores tinham agora desaparecido, esmagadas sob o peso da culpa e das imagens tenebrosas da
carnificina, que sabia que o perseguiriam para sempre.
A dor física do drow diminuíra um pouco; conseguia agora respirar fundo, embora o esforço por
fazê-lo lhe doesse agudamente, e os golpes nas pernas e nos braços tinham sarado. Sobreviveria.
Olhando para baixo, para Maldobar, mais um local a que nunca poderia chamar seu lar, Drizzt
interrogou-se se isso seria realmente uma coisa boa.
— O que é? — perguntou Fret, movimentando-se cautelosamente por trás das dobras da capa verde
de Dove.
Dove, e até mesmo Roddy, também avançavam cuidadosamente, pois embora a criatura parecesse
morta, nunca tinham visto nada igual. Parecia ser uma mutação estranha, gigantesca, meio duende,
meio lobo.
Ganharam coragem à medida que se aproximavam do corpo, convencidos de que estava mesmo
morto. Dove inclinou-se e bateu-lhe com a espada.
— Está morto há mais de um dia, calculo — declarou.
— Mas o que é? — perguntou de novo Fret.
— Um monstro cruzado — resmungou Roddy.
Dove inspeccionou mais de perto a criatura e as suas estranhas articulações. Reparou também nas
muitas feridas provocadas naquela coisa: feridas de garras, como as que poderiam ser causadas pelo
arranhar de um grande felino.
— Algum monstro que muda de forma — supôs Gabriel, que mantinha a área circundante sob
vigilância.
Dove assentiu.
— Mataram-no a meio de uma transição.
— Nunca ouvi falar de duendes magos — protestou Roddy.
— Ah, sim — começou Fret, alisando as mangas da sua túnica delicada. — Houve, evidentemente,
Grubby o Insensato, pretenso arquimago que…
Um assobio vindo de cima interrompeu o anão. Mais acima nas rochas estava Kellindil, o arqueiro
elfo, esbracejando.
— Há mais aqui em cima — gritou o elfo quando olharam para ele. — Dois duendes e um gigante
de pele escarlate, como eu nunca vi!
Dove examinou a ravina. Calculou que conseguiria escalá-la, mas um olhar para o pobre Fret
disse-lhe que teriam de dar a volta pelo trilho, num percurso de quase dois quilómetros.
— Ficas aqui — disse Dove a Gabriel.
O homem de feições severas assentiu e foi colocar-se numa posição defensiva por entre alguns
rochedos, enquanto Dove, Roddy e Fret começaram o caminho pelo trilho.
A meio do caminho pelo trilho serpenteante que circundava a ravina, encontraram Darda, o outro
guerreiro do grupo. Era um homem baixo e musculado. Estava a cofiar as barbas espessas e
examinava o que parecia ser um arado.
— Isso é dos Thistledown! — gritou Roddy. — Vi-o na quinta, onde estava guardado à espera de
ser arranjado.
— Mas porque terá vindo aqui parar? — perguntou Dove.
— E porque estará manchado de sangue? — acrescentou Darda, mostrando as manchas de sangue
no lado côncavo do arado. O guerreiro olhou para a ravina, e depois de novo para o arado. —
Alguma infeliz criatura bateu nisto com força — supôs. — E depois mergulhou na ravina.
Todos os olhares se concentraram em Dove, enquanto a ranger afastava os cabelos da cara,
apoiava o queixo na mão delicada, mas calejada, e tentava deslindar este novo enigma. As pistas,
porém, eram demasiado escassas, e daí a pouco Dove sacudiu as mãos, exasperada, e recomeçou a
caminhada pelo trilho. O caminho alargava e terminava numa zona plana mais acima, mas Dove
voltou para trás, para o local que ficava mesmo por cima de onde estava Gabriel. O guerreiro viu-a
imediatamente e o aceno dele disse à ranger que estava tudo em ordem lá em baixo.
— Venham — incitou Kellindil, levando o grupo até à caverna.
Algumas respostas surgiram claramente a Dove assim que olhou para a carnificina no interior da
caverna.
— Barghest whelp! — gritou Fret, olhando para o cadáver gigantesco com pele escarlate.
— Barghest? — perguntou Roddy, perplexo.
— Claro — respondeu Fret. — Isso explica o lobo gigante lá de baixo.
— Apanhado a meio da transição — raciocinou Darda. — Os muitos ferimentos e a queda no chão
de rocha apanharam-no antes que completasse a transição.
— Barghest? — perguntou de novo Roddy, desta vez irritadamente, não apreciando ser deixado de
fora de uma discussão que não conseguia compreender.
— Uma criatura de outro plano de existência — explicou Fret. — De Gehenna, diz-se. Os
barghests mandam os seus whelps para outros planos, por vezes para o nosso, para se alimentarem e
crescerem — fez uma pausa para pensar. — Para se alimentarem… — repetiu, com um tom
revelador para os outros.
— A mulher do celeiro! — disse Dove simplesmente.
Os membros do grupo de Dove acenaram com as cabeças em concordância perante esta súbita
revelação, mas McGristle, sempre de ar sombrio, agarrava-se teimosamente à sua teoria inicial.
— Foi o drow que os matou! — rosnou.
— Tens aí a cimitarra quebrada? — perguntou Dove.
Roddy retirou a espada de debaixo de uma das muitas camadas das suas vestes de peles.
Dove pegou na arma e baixou-se para examinar o barghest morto. A lâmina correspondia
inegavelmente às feridas do monstro morto, e especialmente à ferida fatal na garganta do barghest.
— Disseste que o drow manejava uma destas — notou Dove para Roddy enquanto erguia a
cimitarra.
— Quem disse isso foi o presidente — corrigiu Roddy —, baseando-se na história do filho dos
Thistledown. Quando vi o drow… — pegou na arma de novo — só tinha uma destas; a que usou para
matar o clã Thistledown!
Roddy não mencionou, propositadamente, que o drow, embora usando apenas uma cimitarra, tinha
bainhas para duas no cinturão.
Dove abanou a cabeça, duvidando daquela teoria.
— O drow matou este barghest — disse. — Os ferimentos correspondem com esse tipo de lâmina,
com a lâmina irmã dessa que tens aí, suponho. E se vires bem os duendes na sala anterior, verás que
as gargantas deles foram cortadas por uma cimitarra semelhante a essa, também.
— Tal como os ferimentos dos Thistledown — insistiu Roddy.
Dove achou melhor calar as suas suposições, mas Fret, que detestava o grande homem rude, fez
eco dos pensamentos de todos excepto Roddy McGristle.
— Foram mortos pelo barghest — afirmou o anão, relembrando os dois conjuntos de rastos junto
da quinta. — Um barghest que assumiu a forma de um drow!
Roddy olhou para Fret com raiva e Dove lançou ao anão um olhar com que pretendia dizer-lhe
para se calar. Mas Fret interpretou mal o olhar da ranger, pensando que fosse de admiração pelos
seus dotes de dedução, e prosseguiu orgulhosamente:
— Isso explica os dois conjuntos de rastos, um mais profundo, deixado pelo bar…
— Mas então e a criatura no fundo da ravina? — interrompeu Darda, de mais acima, percebendo o
desejo de Dove de calar Fret. — Poderão as feridas dele corresponder também à lâmina da
cimitarra?
Dove reflectiu por um momento e arranjou maneira de subtilmente fazer um aceno de
agradecimento a Darda.
— Algumas, possivelmente — respondeu. — Mas é mais provável que o barghest tenha sido
morto pela pantera — e olhou directamente para Roddy.
— Pelo felino que dizes que o drow tem como animal de estimação.
Roddy deu um pontapé no barghest morto.
— Foi o drow que matou o clã Thistledown! — rugiu.
Roddy perdera um cão e uma orelha por causa do elfo negro, e não aceitaria nenhuma conclusão
que diminuísse as hipóteses de reclamar as duas mil peças de ouro que o presidente de Maldobar
tinha prometido como recompensa.
Um chamamento vindo de fora da caverna terminou a discussão — e tanto Dove como Roddy
ficaram satisfeitos por isso.
Depois de ter conduzido o grupo até ao antro, Kellindil ficara lá fora, seguindo algumas outras
pistas que encontrara.
— Uma pegada de uma bota — explicou o elfo, apontando para uma pequena faixa de musgo,
quando os outros saíram. — E ali… — apontou para uns riscos na pedra, sinais claros de uma
refrega.
— Creio que o drow seguiu até à beira da ravina — explicou Kellindil. — E depois para lá,
talvez em perseguição do barghest e da pantera… Se bem que, a partir daí, esteja apenas a supor.
Após um momento a examinar o rasto que Kellindil reconstituíra, Dove e Darda, e até Roddy,
concordaram com essa suposição.
— Devemos regressar à ravina — sugeriu Dove. — Talvez encontremos um rasto para lá do fundo
pedregoso da ravina, que nos leve a respostas mais claras.
Roddy coçou as crostas que cobriam as feridas da cara e lançou a Dove um olhar de desdém que
lhe mostrou as suas emoções. Roddy não se ralava nada com as prometidas «respostas mais claras»
da ranger, porque já tinha chegado a todas as conclusões que lhe importavam, muito tempo antes.
Roddy estava determinado — acima de tudo o resto — a trazer de volta a cabeça do elfo negro.
Dove Falconhand não estava assim tão certa acerca da identidade do assassino. Muitas perguntas
se mantinham sem resposta para ela e para o resto do seu grupo. Porque não tinha o drow morto as
crianças Thistledown quando o tinham encontrado antes, na montanha? Se a história que Connor
contara ao presidente era verdadeira, então porque tinha o drow devolvido a arma ao rapaz? Dove
estava firmemente convencida de que o barghest, e não o drow, tinha chacinado a família
Thistledown; mas porque tinha o drow, aparentemente, perseguido o grupo dos barghest?
Estaria o drow conluiado com os barghest, e teria essa aliança azedado mais tarde? Mais
intrigante ainda, para a ranger — cuja missão de vida era proteger os civis na guerra interminável
entre as raças boas e os monstros —, era se o drow teria procurado o barghest para vingar a chacina
da quinta. Dove suspeitava de que isso era verdade, mas não conseguia entender a motivação do
drow. Teria o barghest, ao matar aquela família, posto os habitantes de Maldobar em alerta,
arruinando assim um planeado raide drow?
Mais uma vez, as peças não se encaixavam. Se os elfos negros estivessem a planear um raide
contra Maldobar, então decerto nenhum deles se revelaria antes disso. Algo no fundo de Dove lhe
dizia que este drow solitário agira sozinho, e fora vingar os agricultores chacinados. Sacudiu a ideia
com um encolher de ombros, atribuindo-a ao seu optimismo, e relembrou a si mesma que os elfos
negros raramente eram mencionados por gestos tão dignos de um ranger.
Quando os cinco chegaram ao final da descida do trilho e regressaram diante do grande cadáver
do barghest, Gabriel já tinha encontrado o rasto que se adentrava nas montanhas. Havia dois
conjuntos de rastos evidentes: os do drow, e outros mais recentes, de uma criatura gigante, bípede.
Possivelmente, de um terceiro barghest.
— Que aconteceu à pantera? — perguntou Fret, sentindo-se um pouco excitado com a sua primeira
expedição em muitos anos.
Dove riu-se alto e abanou a cabeça, desconcertada. Cada resposta parecia trazer consigo mais uma
série de perguntas.

Drizzt continuou a deslocar-se durante a noite, fugindo, como fizera durante tantos anos, de mais uma
realidade sombria. Não tinha morto os agricultores — na verdade, salvara-os até do bando de gnolls
—, mas estavam mortos. Drizzt não podia esquecer esse facto. Entrara nas vidas deles, de sua livre
vontade, e agora estavam mortos.
Na segunda noite depois do encontro com o gigante das montanhas, Drizzt viu uma fogueira
distante, muito longe entre os trilhos serpenteantes da montanha, na direcção do antro dos barghest.
Sabendo que essa visão tinha de ser mais do que uma simples coincidência, o drow convocou
Guenhwyvar para junto de si, e depois enviou a pantera para observar mais de perto.
Incansavelmente, a grande pantera correu, com a silhueta elegante e negra invisível entre as
sombras da noite, enquanto cobria rapidamente a distância até ao acampamento.

Dove e Gabriel descansavam, descontraídos, junto à fogueira, divertidos com o contínuo frenesim de
Fret, que estava atarefado a limpar as vestes com uma escova e não parava de resmungar.
Roddy mantinha-se metido consigo mesmo, do outro lado, cautelosamente aninhado num recesso
entre uma árvore caída e um grande rochedo, com o cão aninhado aos pés.
— Ah, raios para esta sujidade! — resmungava Fret. — Nunca, mas nunca mais vou conseguir
limpar estas vestes! Vou ter de comprar outras — e olhou para Dove, que estava a tentar, sem
sucesso, manter uma expressão séria. — Ri-te, se te dá prazer, Senhora Falconhand — avisou o anão.
— Mas o custo disto sairá do teu bolso, não duvides!
— Triste dia, quando uma pessoa tem de comprar vestes a um anão… — interveio Gabriel. E, com
estas palavras, Dove desatou a rir.
— Riam-se! Riam-se, vá! — disse Fret de novo, enquanto esfregava ainda com mais força, até a
escova esgaçar o tecido, abrindo um buraco. — Raios e mais raios! — praguejou, atirando depois
com a escova para o chão.
— Calem a boca! — admoestou Roddy, matando a diversão. — Pretendem chamar o drow até
aqui?
O olhar que Gabriel lançou a Roddy não deixou dúvidas, mas Dove percebeu que a admoestação
do homem das montanhas, embora em termos nada educados, era sensata.
— Vamos descansar, Gabriel — disse a ranger ao companheiro. — Darda e Kellindil estarão de
regresso não tarda muito, e será a nossa vez de ficar de guarda. Calculo que o nosso caminho amanhã
não seja menos cansativo que o de hoje… — olhou para Fret e piscou o olho. — E não menos sujo…
Gabriel encolheu os ombros, pendurou o cachimbo no canto da boca e cruzou as mãos atrás da
cabeça. Esta era a vida de que ele e todos os seus companheiros de aventura gostavam; dormir sob as
estrelas com a música do vento das montanhas soprando nos ouvidos.
Fret, porém, remexia-se e contorcia-se no chão duro, resmungando e rosnando enquanto mudava de
uma posição desconfortável para outra.
Gabriel não precisava de olhar para Dove para saber que ela partilhava o seu sorriso. Nem
precisava de olhar para Roddy para saber que o homem da montanha estava a fumegar de raiva com
aquele barulho contínuo. O barulho parecia sem dúvida negligenciável aos ouvidos de um anão
habituado a viver na cidade, mas soava bem evidente para os mais acostumados às estradas.
Um assobio no meio da escuridão ouviu-se ao mesmo tempo que os pêlos do cão de Roddy se
eriçaram e começou a ladrar.
Dove e Gabriel levantaram-se imediatamente e, um segundo depois, já estavam do outro lado do
acampamento, deslocando-se pelo perímetro da fogueira em direcção ao chamamento de Darda.
Roddy, trazendo o cão consigo, também deslizava em redor da grande rocha, mantendo-se escondido
da luz directa, para que os olhos se ajustassem à escuridão.
Fret, demasiado ocupado com o seu próprio desconforto, notou finalmente as movimentações.
— Que foi? — perguntou o anão, curioso. — Que foi?
Após uma breve e sussurrada conversa com Darda, Dove e Gabriel separaram-se, rodeando o
acampamento em direcções opostas, para se assegurarem da integridade do perímetro.
— A árvore — ouviu Dove sussurrar, agachando-se de imediato. Daí a pouco, avistou Roddy, bem
escondido entre a rocha e uns arbustos. Também o grande homem tinha a arma pronta, e a outra mão
segurava o focinho do cão com força, impedindo o animal de fazer barulho.
Dove seguiu o aceno de Roddy e avançou para os ramos abertos de um olmo solitário.
Inicialmente, a ranger não conseguia ver nada de invulgar entre as ramagens, mas depois viu o súbito
flamejar de uns olhos amarelos de felino.
— A pantera do drow — sussurrou Dove.
Roddy acenou em concordância. Ficaram muito quietos a observar, sabendo que o mais leve
movimento poderia alertar o felino. Uns segundos depois, Gabriel reuniu-se-lhes, assumindo posição
silenciosamente e seguindo os olhares deles para o ponto mais escuro da árvore. Todos percebiam
que o tempo era seu aliado; nesse mesmo momento, Darda e Kellindil estavam, sem dúvida, a tomar
posições.
A armadilha que estavam a montar teria certamente apanhado Guenhwyvar, mas, daí a pouco, o
anão saiu ruidosamente do acampamento, tropeçando em Roddy. O homem da montanha quase caiu, e
enquanto lançava a mão que empunhava a arma instintivamente para a frente, para se equilibrar, o
cão libertou-se, começando a ladrar freneticamente.
Como uma flecha negra, a pantera saltou da árvore e desapareceu na noite. Mas a sorte não estava
do lado de Guenhwyvar, porque passou mesmo em frente à posição de Kellindil, e o arqueiro de
olhos bem treinados viu-a claramente.
Kellindil ouvira os latidos e os gritos à distância, no acampamento, mas não tinha maneira de
saber o que se passara. Qualquer hesitação que tivesse, porém, desapareceu assim que uma voz
exclamou claramente:
— Matem essa coisa assassina! — era a voz de Roddy.
Pensando então que a pantera ou o seu companheiro drow tinham atacado o acampamento,
Kellindil lançou uma flecha. O dardo encantado enterrou-se profundamente no flanco de
Guenhwyvar, enquanto a pantera passava por perto.
Depois, ouviu-se a voz de Dove, contrariando Roddy:
— Não! — gritava a ranger. — A pantera nada fez que mereça a nossa ira!
Kellindil correu no rasto da pantera. Com os seus olhos sensíveis de elfo a observar no espectro
infravermelho, viu claramente o calor do sangue que salpicava a área para onde disparara e que
deixara um rasto que se afastava do acampamento.
Dove e os outros chegaram junto dele um instante depois. As feições de Kellindil, sempre bem
delineadas e belas, pareciam agora angulosas, enquanto olhava iradamente para Roddy.
— Fizeste-me disparar sem razão, McGristle — disse irritadamente. — Devido às tuas palavras,
disparei contra uma criatura que não merecia uma flecha! Aviso-te uma vez, e uma única vez, para
não voltares a fazer isto!
Após um olhar final para mostrar ao homem das montanhas até que ponto as palavras eram para
levar a sério, Kellindil avançou seguindo o rasto de sangue.
Havia um fogo ardente no fundo de Roddy, mas forçou-se a apagá-lo, compreendendo que estava
sozinho contra aquele quarteto formidável e o anão com a mania da limpeza. Mas deixou o olhar
recair sobre Fret, sabendo que nenhum dos outros poderia discordar da sua admoestação:
— Mantém a boca fechada quando o perigo se aproxima! — rosnou para Fret. — E as tuas botas
malcheirosas longe de mim!
Fret olhou em volta, incrédulo, enquanto o grupo começava a avançar atrás de Kellindil.
— Malcheirosas? — perguntou em voz alta. E olhou para baixo, magoado, para as suas botas
impecavelmente engraxadas. — Malcheirosas! — disse de novo para Dove, que parou para lhe
oferecer um sorriso de conforto. — Sujas pelas costas dele, isso sim!

Guenhwyvar coxeou até junto de Drizzt, pouco depois de os primeiros raios da manhã começarem a
espreitar por cima das montanhas de leste. Drizzt abanou a cabeça, impotente, quase sem se mostrar
surpreendido pela flecha que saía do flanco de Guenhwyvar. Relutantemente, mas sabendo que esse
seria o rumo adequado, pegou no punhal que tinha tirado ao quickling e usou-o para retirar a flecha.
Guenhwyvar uivava baixinho durante esse procedimento, mas manteve-se quieta e não ofereceu
resistência. Depois, embora quisesse manter Guenhwyvar ao seu lado, Drizzt permitiu que a pantera
regressasse ao seu plano astral, onde a ferida sararia mais depressa. A flecha dissera ao drow tudo o
que precisava de saber acerca dos seus perseguidores, e acreditava que viria a precisar da pantera
muito em breve. Pôs-se sobre um rochedo e espreitou através da neblina matinal para os trilhos mais
abaixo, à espera de ver a aproximação de mais um novo inimigo.
Nada viu, evidentemente; mesmo ferida, Guenhwyvar ganhara facilmente uma boa distância dos
seus perseguidores e, para um homem ou algum ser semelhante, o acampamento estava a muitas horas
de viagem.
Mas haveriam de vir, sabia disso, e haveriam de forçá-lo a mais uma batalha que não desejava.
Olhou em volta, interrogando-se sobre que armadilhas poderia armar para eles, que vantagens
poderia ter quando o recontro se desse cara a cara, como sempre parecia acabar por acontecer.
As recordações do seu último encontro com humanos, do homem com o cão e dos outros
agricultores fizeram Drizzt alterar subitamente a sua linha de raciocínio. Dessa vez, a batalha fora
originada pela incompreensão, uma barreira que agora duvidava de que alguma vez viesse a
conseguir vencer. Não tivera, dessa vez, qualquer vontade de lutar contra os humanos, e também
agora não a tinha, apesar do ferimento de Guenhwyvar.
A luz do dia começava a crescer e o drow, ainda ferido, embora tivesse descansado nessa noite,
queria encontrar um buraco escuro e confortável. Mas não se podia dar ao luxo de se atrasar, se
queria manter-se distanciado da batalha que se avizinhava.
— Até onde me seguirão vocês? — murmurou para a brisa do alvorecer. E acrescentou, num tom
sombrio, mas determinado: — Teremos de ver….
— A pantera encontrou o drow — concluiu Dove, depois de ela e os companheiros terem passado
algum tempo a inspeccionar a região perto do rochedo onde Drizzt estivera. A flecha de Kellindil
estava caída no chão, partida, mais ou menos no mesmo local onde terminavam os rastos da pantera.
— E depois desapareceu.
— Assim parece — concordou Gabriel, coçando a cabeça e olhando para o intrigante rasto.
— Gato do inferno! — rosnou McGristle. — Voltou para o seu sujo antro!
Fret queria perguntar se ele estava a falar da sua própria casa, mas, sensatamente, manteve os
pensamentos para consigo.
Os outros também deixaram passar os comentários do homem da montanha. Não tinham respostas
para aquele enigma, e a conclusão de Roddy era tão boa como qualquer outra que pudessem propor.
A pantera ferida e o rasto de sangue fresco desapareciam ali, mas o cão de Roddy depressa apanhou
o rasto de Drizzt. Ladrando excitadamente, o cão conduziu-os, e Dove e Kellindil, ambos bons
pisteiros, encontravam frequentemente indícios que confirmavam a direcção seguida.
Os rastos seguiam ao longo da encosta da montanha, mergulhavam depois entre arvoredo muito
cerrado, e prosseguiam por uma extensão de pedra nua, terminando abruptamente noutra ravina. O
cão de Roddy avançou até à beira da ravina e deu mesmo um primeiro passo pela encosta rochosa e
íngreme.
— Maldita magia drow! — resmungou Roddy. Olhou em volta e bateu com punho cerrado na
própria perna, calculando que demoraria muitas horas a rodear aquela parede de pedra.
— A luz está a desaparecer — disse Dove. — Montamos acampamento aqui e procuraremos outro
caminho pela manhã.
Gabriel e Fret concordaram com um aceno de cabeça, mas Roddy discordou.
— O rasto agora ainda está fresco! — argumentou o homem da montanha. — Devíamos pelo
menos levar o cão até lá abaixo e recuperar o rasto, antes de dormir!
— Isso pode demorar horas… — começou Fret a protestar, mas Dove fez calar o anão.
— Venham — pediu a ranger aos outros, e caminhou para oeste, para onde o chão começava a
inclinar-se numa descida íngreme, mas que se podia usar.
Dove não concordava com o raciocínio de Roddy, mas não queria mais discussões com o
representante nomeado por Maldobar.
No fundo da ravina encontraram apenas mais enigmas. Roddy incitou o cão em várias direcções,
mas este não encontrava nenhum rasto do fugidio drow. Ao fim de muitos minutos de contemplação, a
verdade relampejou na mente de Dove e o sorriso dela revelou tudo aos seus outros companheiros
experientes.
— Trocou-nos as voltas! — riu-se Gabriel, adivinhando a origem do sorriso de Dove. — Trouxe-
nos até à ravina, sabendo que presumiríamos que usaria alguma magia para descer para aqui!
— Que estão para aí a dizer? — perguntou Roddy zangado, embora o caçador experiente que era
tivesse já percebido perfeitamente o que se tinha passado.
— Quer dizer que vamos ter de subir isto tudo outra vez? — perguntou Fret, num lamento.
Dove riu-se outra vez, mas ficou séria rapidamente quando olhou para Roddy e disse:
— Amanhã de manhã.
Desta vez, o homem da montanha não objectou.
Quando a manhã seguinte rompeu, o grupo já tinha subido a ravina e Roddy e o cão já tinham
apanhado de novo o rasto de Drizzt, que regressava para o mesmo rochedo onde antes o tinham
apanhado. O truque fora bastante simples, mas a mesma pergunta incomodava todos os experientes
patrulheiros: como se tinha afastado o drow do seu próprio rasto para confundir completamente o
cão? Quando chegaram de novo ao arvoredo denso, Dove soube que a resposta estava ali. Acenou
para Kellindil, que já estava a deixar cair a mochila pesada. O elegante elfo agarrou-se a um ramo
baixo e trepou a uma árvore, saltando depois dessa para as outras, à procura de possíveis caminhos
que o drow pudesse ter tomado. Os ramos de muitas das árvores cruzavam-se e, por isso, as opções
eram muitas, mas, ao fim de algum tempo, Kellindil conduziu Roddy e o cão correctamente ao novo
rasto, que saía do arvoredo e fazia uma curva novamente para a encosta da montanha, mas de novo na
direcção de Maldobar.
— A aldeia! — exclamou um perturbado Fret. Mas os outros não pareciam preocupados.
— Não, não foi para a aldeia — respondeu Roddy, demasiado intrigado para usar o seu tom irado
habitual. Como caçador de prémios, Roddy apreciava sempre um bom oponente, pelo menos durante
a perseguição. — Para o rio — explicou, pensando que agora tinha descoberto as intenções de
Drizzt. — O drow vai em direcção ao rio, para seguir por ele e sair depois, sem deixar rasto, em
direcção às terras mais inóspitas.
— O drow é um hábil adversário — notou Darda, concordando de bom grado com a conclusão de
Roddy.
— E agora leva-nos pelo menos um dia de avanço — acrescentou Gabriel.
Quando o suspiro desanimado de Fret finalmente se dissipou, Dove deu ao anão alguma esperança.
— Não receies — disse-lhe. — Estamos bem fornecidos, mas o drow não. Terá de parar para
arranjar alimento, enquanto nós poderemos continuar.
— Só dormiremos quando for mesmo necessário! — interveio Roddy, determinado a não ser
atrasado pelos outros membros do grupo. — E só por curtos períodos!
Fret suspirou sonoramente mais uma vez.
— E começaremos a racionar os mantimentos desde já — acrescentou Dove, tanto para aplacar
Roddy, como por pensar que seria prudente fazê-lo. — Já vai ser suficientemente difícil recuperar o
avanço do drow. Não quero mais atrasos.
— Racionamento! — resmungou Fret. Suspirou uma terceira vez e pousou uma mão reconfortante
sobre o estômago. Como ansiava por se ver de novo no seu arrumado quarto no castelo de Helm, em
Sundabar!

A única intenção de Drizzt era prosseguir cada vez mais para o interior das montanhas até que o
grupo que o perseguia perdesse o ânimo e desistisse da perseguição. Manteve as suas tácticas para
confundir as pistas, voltando para trás muitas vezes e usando depois as árvores para recomeçar um
novo rasto numa direcção completamente diferente. Muitos cursos de água nas montanhas
proporcionavam barreiras adicionais ao faro do cão de Roddy, mas os seus perseguidores não eram
novatos, e o cão era um excelente pisteiro. Não só o grupo se mantinha sempre no seu rasto, como na
verdade acabaria por encurtar a distância que os separava dentro de poucos dias.
Drizzt continuava a acreditar que poderia escapar-lhes, mas a contínua proximidade do grupo
perseguidor trazia-lhe outras preocupações, mais subtis. Nada fizera para merecer uma perseguição
tão teimosa; vingara até as mortes da família de agricultores. E, apesar da sua irada decisão de que
partiria sozinho, de que não voltaria a colocar ninguém em perigo, conhecera a solidão como única
companhia durante demasiados anos. Não conseguia deixar de olhar por cima do ombro, mas por
curiosidade, não por medo, e a ânsia de companhia não diminuía.
Por fim, Drizzt não conseguiu conter a sua curiosidade relativamente ao grupo que o perseguia.
Essa curiosidade, percebeu enquanto estudava as figuras que se moviam no acampamento numa noite
escura, poderia bem vir a ser a sua derrota. Mesmo assim, a consciência desse facto e o
arrependimento chegaram demasiado tarde para que o drow pudesse fazer alguma coisa. As suas
necessidades tinham-no arrastado de regresso, e agora o acampamento dos seus perseguidores estava
a apenas vinte metros de distância.
As brincadeiras entre Dove, Gabriel e Fret faziam estremecer o coração de Drizzt, embora não
conseguisse perceber as palavras deles. Mas qualquer desejo que o drow sentisse de ir até ao
acampamento era refreado sempre que Roddy e o seu cão feroz passavam diante da luz. Aqueles dois
nunca admitiriam uma pausa para ouvir quaisquer explicações, Drizzt sabia isso.
O grupo colocara dois vigias, um deles elfo e o outro um humano muito alto. Drizzt passara perto
do humano, calculando que este não fosse tão capaz de ver na escuridão como o elfo. Agora, porém,
o drow, de novo contrariando todas as precauções, caminhava até ao outro lado do acampamento, em
direcção ao outro sentinela.
Só uma vez, antes, Drizzt encontrara os seus primos da superfície. E fora um encontro desastroso.
O grupo de assalto de que ele fora o batedor chacinara todos os membros do grupo de elfos da
superfície, excepto uma jovem criança, que Drizzt conseguira esconder. Levado por essas
recordações tenebrosas, Drizzt precisava de ver um elfo novamente; um elfo vivo e vigoroso.
A primeira indicação que Kellindil teve de que mais alguém andava na sua área surgiu quando um
pequeno punhal lhe passou a assobiar pelo peito, cortando de um golpe a corda do arco. O elfo
virou-se imediatamente e olhou para os olhos cor de alfazema do drow. Drizzt estava a apenas alguns
passos de distância.
O brilho vermelho nos olhos de Kellindil mostrava que estava a ver Drizzt no espectro infra-
vermelho. O drow cruzou as mãos sobre o peito, no gesto de paz do Subescuro.
— Finalmente encontramo-nos, primo de pele negra — murmurou Kellindil secamente na língua
drow, com a voz marcada por uma ira evidente e com os olhos brilhantes semicerrando-se
perigosamente. Rápido como um gato, Kellindil sacou de uma espada finamente trabalhada, cujo
gume rebrilhava como uma chama vermelha.
Drizzt ficou espantado e esperançado quando viu que o elfo falava a sua língua, bem como pelo
simples facto de ele não ter falado suficientemente alto para alertar o resto do grupo. O elfo da
superfície era do tamanho de Drizzt e tinha uma compleição igualmente magra, mas os olhos eram
mais amendoados e a cabeleira dourada não era tão longa, nem tão espessa como a de Drizzt.
— Sou Drizzt Do’Urden — começou a dizer Drizzt, hesitante.
— Não me interessa nada saber o teu nome! — disparou Kellindil em resposta. — És um drow.
Basta-me saber isso! Anda lá, drow! Vejamos então quem é mais forte!
Drizzt ainda não desembainhara a espada, e não tinha nenhuma intenção de o fazer.
— Não tenho nenhum desejo de lutar contigo… — a voz de Drizzt esmoreceu à medida que se
apercebia de que as suas palavras eram inúteis perante o ódio intenso que o elfo da superfície
mostrava.
Drizzt queria explicar tudo ao elfo, contar a sua história toda e ser defendido por outra voz que não
a sua. Se ao menos outro ser — e especialmente um elfo da superfície — soubesse das suas
provações e concordasse com as suas decisões, e concordasse que Drizzt agira correctamente ao
longo da sua vida, apesar de todos os horrores, então a culpa deixaria de lhe pesar tanto sobre os
ombros. Se ao menos conseguisse encontrar aceitação entre aqueles que tanto odiavam — tal como
ele próprio odiava — os usos do seu povo de pele negra, então Drizzt Do’Urden ficaria em paz.
Mas a espada do elfo da superfície não se virou para o chão nem um centímetro, nem o esgar de
ódio abrandou no seu rosto branco, mais acostumado a sorrir.
Drizzt não encontraria ali aceitação, nem agora, nem provavelmente jamais. Teria de ser para
sempre incompreendido?, indagou-se. Ou estaria, talvez, a avaliar mal os que o rodeavam, atribuindo
aos humanos e a este elfo mais rectidão do que mereciam?
Essas eram duas ideias perturbadoras com que Drizzt teria de lidar noutro dia, porque a paciência
de Kellindil estava a chegar ao fim. O elfo avançou para o drow com a ponta da espada a abrir
caminho.
Drizzt não ficou surpreendido — como poderia ficar? Saltou para trás, afastando-se do alcance
imediato da espada, e apelou à sua magia inata, largando um globo de escuridão contra o elfo que
avançava.
Não sendo novato em matéria de magia, Kellindil percebeu o truque. O elfo mudou de direcção,
mergulhando atrás do globo de escuridão e aparecendo do outro lado, de espada em riste.
Os olhos cor de alfazema tinham desaparecido.
— Drow! — chamou Kellindil em voz alta; e os restantes do acampamento puseram-se de
imediato em movimento. O cão de Roddy começou a uivar, e esse uivo ameaçador seguiu Drizzt de
regresso às montanhas, condenando-o ao perpétuo exílio.
Kellindil estava encostado a uma árvore, alerta, mas não demasiado preocupado por o drow ainda
estar naquela área. Drizzt não poderia saber isso nesse momento, mas as suas palavras e os seus
actos posteriores — como fugir, em vez de lutar — tinham de facto criado um pouco de dúvida na
mente, não tão teimosamente fechada, do bondoso elfo.

— Perderá a vantagem que tem assim que alvorecer — disse Dove, esperançada, após várias horas
de tentativas vãs de se manterem perto de Drizzt. Estavam agora num vale em forma de tigela, e o
rasto do drow apontava para o lado mais distante, para uma subida bastante íngreme.
Fret, quase arrasado pela exaustão, ao lado de Dove, respondeu rapidamente:
— Vantagem? — olhou para a encosta da montanha e abanou a cabeça. — Cairemos todos de
cansaço antes que consigamos encontrar esse drow dos infernos!
— Se não conseguirmos manter-nos a passo com ele, mais vale cairmos mortos! — desdenhou
Roddy. — Não vamos deixar esse maldito drow escapar-se, desta vez!
Mas não foi Fret, e sim outro elemento do grupo, a primeira baixa inesperada. Uma grande rocha
abateu-se, rebolando por entre o grupo subitamente, e batendo no ombro de Darda com força
suficiente para o fazer voar e rodopiar no ar. Não teve sequer tempo para gritar, antes de cair da cara
no chão.
Dove agarrou em Fret e rolou para trás de outro rochedo próximo, e Gabriel e Roddy fizeram o
mesmo. Outra pedra, e depois várias outras, abateram-se naquela zona.
— Avalanche? — perguntou o estupefacto anão quando recuperou do choque.
Dove, demasiado preocupada com Darda, não se deu ao trabalho de responder, embora soubesse a
verdade acerca da situação em que estavam e soubesse que não era uma avalanche.
— Está vivo! — gritou Gabriel, por trás da rocha que o protegera, a uns metros de Dove. Mais
uma pedra rolou pela área, falhando por pouco a cabeça de Darda.
— Raios — resmungou Dove. Espreitou por cima da rocha que a protegia, observando a colina e
os rochedos mais perto do sopé. — Agora, Kellindil — murmurou para si própria. — Faz-nos ganhar
algum tempo.
Como que em resposta, o som do arco do elfo, já reparado, foi seguido por um distante rugido.
Dove e Gabriel olharam um para o outro e sorriram.
— Gigantes das rochas! — gritou Roddy, reconhecendo o timbre profundo e arranhado da voz que
rugira.
Dove agachou-se e esperou, com as costas contra a rocha e a bolsa aberta na mão. Não houve mais
pedras a deslizar para aquela área, mas, em vez disso, começaram a ouvir-se estrondos muito fortes
bem mais acima, perto da posição de Kellindil. Dove correu até perto de Darda e virou o homem
com cuidado.
— Esta doeu um bocadinho… — murmurou Darda, esforçando-se por sorrir perante o seu óbvio
eufemismo.
— Não fales — respondeu Dove, procurando um frasco de poção dentro da bolsa. Mas a ranger
esgotara o seu tempo. Os gigantes, vendo-a em campo aberto, recomeçaram o ataque à zona mais
abaixo.
— Regressa para trás da rocha! — gritou Gabriel. Dove enfiou um braço por debaixo do ombro do
homem caído, para o apoiar, enquanto este, tropeçando a cada passo, avançava para a rocha.
— Depressa! Depressa! — gritava Fret, observando-os ansiosamente, com as costas contra a
grande rocha.
Dove inclinou-se por cima de Darda subitamente, fazendo-o ficar deitado no chão enquanto um
pedregulho passava a assobiar mesmo por cima das cabeças de ambos.
Fret começou a roer as unhas, e depois apercebeu-se do que estava a fazer e parou, com um ar
desgostado.
— Mas despachem-se! — voltou a gritar para os amigos. Outra pedra abateu-se ali perto;
demasiado perto.
Mesmo antes de Darda e Dove chegarem junto de Fret, uma pedra aterrou em cheio contra o outro
lado da rocha que o protegia. Fret, que tinha as costas contra a rocha, foi cuspido dali, deixando livre
o caminho para os companheiros que se arrastavam. Dove colocou Darda atrás do rochedo, e depois
virou-se, pensando que teria de voltar a sair dali para ir buscar o anão caído.
Mas Fret já estava de novo em pé, praguejando e resmungando, e mais preocupado com um novo
buraco nas suas belas vestes do que com qualquer dano físico.
— Volta para aqui! — gritou-lhe Dove.
— Diabos levem estes estúpidos gigantes! — foi a única coisa que Fret respondeu, batendo os pés
com força enquanto regressava para o rochedo, com os punhos cerrados apoiados nas ancas.
A barragem de pedras continuou, tanto mais acima, como na área onde se encontrava o grupo.
Depois, Kellindil avançou, deslizando até à rocha ao lado de Roddy e do cão.
— Gigantes das rochas — explicou o elfo. — Pelo menos uma dúzia deles — e apontou para uma
falésia a meio da montanha.
— Foi o drow que nos preparou esta armadilha — rosnou Roddy, batendo com o punho na pedra.
Kellindil não estava convencido disso, mas calou-se.

Lá no alto, sobre a saliência rochosa, Drizzt observava a batalha a decorrer. Passara por aquela zona
mais baixa uma hora antes, antes do alvorecer. Na escuridão, os gigantes emboscados não tinham
sido obstáculo para o furtivo elfo; Drizzt passara pelas linhas deles sem grandes dificuldades.
Agora, semicerrando os olhos devido à luz da manhã, interrogava-se acerca do seu próximo passo.
Quando passara pelos gigantes, percebera bem que os seus perseguidores iriam encontrar problemas.
Deveria ter tentado arranjar maneira de os avisar? Ou deveria ter-se afastado daquela região,
levando os humanos e o elfo para fora daquele caminho?
Mais uma vez, Drizzt não compreendia onde se encaixava nos usos deste novo mundo, estranho e
brutal.
— Eles que se desenvencilhem — disse por fim, virando-se para partir.
Olhou por cima do ombro uma última vez e reparou que alguns dos gigantes estavam a deslocar-se.
Um grupo mantinha-se no alto da falésia, lançando sobre o vale uma chuva aparentemente inesgotável
de pedras, enquanto outros dois grupos, um à esquerda e outro à direita, avançavam num movimento
para cercar o grupo encurralado lá em baixo.
Drizzt sabia que os seus perseguidores não escapariam. Assim que os gigantes os tivessem
flanqueado, não teria nenhuma protecção contra o fogo cruzado.
Algo se acendeu dentro do drow nesse momento — as mesmas emoções que o tinham levado a
entrar em acção contra o bando dos gnolls. Não poderia ter a certeza, mas tal como acontecera com
os gnolls e com os seus planos para atacar a quinta, Drizzt suspeitava de que os gigantes eram os
maus neste combate.
Outros pensamentos apaziguaram um pouco o esgar determinado de Drizzt; recordações de
crianças humanas a brincarem na quinta, do rapaz de cabelos cor de areia a mergulhar na lama dos
porcos.
Drizzt deixou cair a estatueta de ónix no chão.
— Vem, Guenhwyvar — ordenou. — Somos precisos ali.

— Estamos a ser flanqueados! — rugiu Roddy McGristle, vendo os grupos de gigantes a


movimentarem-se pelos trilhos mais acima.
Dove, Gabriel e Kellindil olharam uns para os outros e em redor, em busca de alguma escapatória.
Tinham lutado contra gigantes muitas vezes, nas suas viagens, juntos ou noutros grupos. Sempre, nas
vezes anteriores, tinham avançado para a batalha com ousadia, felizes por livrarem o mundo de mais
uns quantos monstros quezilentos. Desta vez, porém, todos suspeitavam de que o resultado poderia
bem ser diferente. Os gigantes das rochas eram, confirmadamente, os melhores lançadores de pedras
de todos os Reinos, e um único tiro certeiro podia matar o mais forte dos homens. Além disso,
Darda, embora vivo, não poderia fugir, e nenhum dos outros tinha qualquer intenção de o deixar para
trás.
— Foge, homem da montanha — disse Kellindil a Roddy. — Não nos deves nada.
Roddy olhou para o elfo, incrédulo.
— Eu não sou de fugir, elfo! — rugiu. — Seja do que for.
Kellindil acenou com a cabeça e preparou uma flecha.
— Se eles se põem dos lados, estamos condenados — explicou Dove a Fret. — Peço-te que me
perdoes, querido Fret. Não devia ter-te tirado de casa.
Fret encolheu os ombros. Meteu uma mão no bolso e retirou de lá um martelo pequeno, mas
maciço. Dove sorriu quando o viu, pensando em como o martelo parecia estranho na mão macia e
tratada do anão, mais acostumada a segurar numa pena.

No topo da falésia, Drizzt e Guenhwyvar seguiam como sombras o movimento do grupo de gigantes
das rochas que tentava rodear o grupo encurralado pelo flanco esquerdo. Drizzt estava determinado a
ajudar os humanos, mas não tinha a certeza de até que ponto poderia ser eficaz contra aqueles quatro
gigantes armados. No entanto, calculou que, com Guenhwyvar ao seu lado, poderia encontrar alguma
maneira de distrair o grupo de gigantes durante o tempo suficiente para que o grupo encurralado
pudesse escapar dali.
O vale estendia-se e alargava mais adiante, e Drizzt percebeu que o grupo de gigantes que
manobrava na direcção oposta, pelo flanco direito do grupo emboscado, estaria provavelmente
demasiado longe para o alcance das pedras.
— Vem, minha amiga — murmurou Drizzt para a pantera, desembainhando a cimitarra e
começando a descer pela pedra irregular. Um momento depois, porém, assim que avistou o terreno
que estava mesmo à frente do bando de gigantes, agarrou Guenhwyvar pelo pescoço e levou a pantera
de regresso ao topo da falésia.
Ali, o solo era irregular, mas inegavelmente estável. Logo adiante, no entanto, grandes rochas e
centenas de pedras menores e soltas estavam espalhadas pelo chão muito íngreme. Drizzt não tinha
assim tanta experiência sobre a dinâmica de uma encosta montanhosa, mas até ele podia ver que a
paisagem à sua frente, instável e inclinada, estava à beira do colapso.
O drow e o felino correram para cima, de novo ganhando altura em relação ao bando de gigantes.
Estes estavam quase em posição, e alguns tinham até começado a atirar pedras ao grupo encurralado.
Drizzt foi até um pedregulho enorme e começou a empurrá-lo, fazendo-o começar a mover-se. As
tácticas de Guenhwyvar foram bem menos subtis. A pantera atacou descendo a encosta, fazendo
saltar pedras a cada grande passada, e saltando depois de uma rocha para outra, deixando-as para
trás quando estas começavam a resvalar.
Os pedregulhos balouçavam e começavam a cair. Pedras mais pequenas deslizavam por entre eles,
acrescentando ainda mais impacto. Drizzt, concentrado na acção, correu para o centro da avalanche
em formação, atirando pedras, empurrando outras — fazendo tudo o que podia para dar mais impulso
à derrocada. Daí a pouco, o próprio chão debaixo dos pés do elfo negro estava a resvalar e toda
aquela secção da encosta parecia estar a deslizar.
Guenhwyvar acelerou, diante da avalanche, como um farol sinalizando o fim para os gigantes
surpresos. A pantera saltou por cima deles, mas apenas repararam nela momentaneamente, porque
toneladas de rochas rodopiavam rapidamente e abatiam-se sobre eles.
Drizzt soube que estava em apuros; não era, nem de longe, tão rápido ou ágil como Guenhwyvar, e
não podia esperar adiantar-se à derrocada, ou sair da frente dela. Saltou bem alto, de uma pequena
elevação, e convocou um encantamento de levitação ao mesmo tempo que o fazia.
Lutou com força para manter a concentração, apesar do esforço. O encantamento já lhe falhara
duas vezes, antes desta, e se desta vez não conseguisse mantê-lo, se caísse de novo para o meio das
pedras, sabia que morreria.
Apesar da sua determinação, Drizzt sentia-se cada vez mais pesado no ar. Agitou os braços
futilmente, procurando reunir a energia mágica que lhe vinha de dentro do corpo — mas estava a
cair.

— Os únicos que nos podem acertar são os que estão em frente! — gritou Roddy, enquanto um
pedregulho se abatia inofensivamente a pouca distância do flanco direito. — Os da direita estão
demasiado longe para nos alcançarem, e os da esquerda…
Dove seguiu a lógica de Roddy, bem como o olhar dele para a nuvem de poeira que se formava
por cima da derrocada de pedras no flanco esquerdo. Olhou fixa e longamente para as rochas que
caíam, e para aquilo que poderia bem ser uma silhueta de elfo envolta numa capa. Quando voltou a
olhar para Gabriel, soube que também ele tinha visto o drow.
— Temos de ir, agora! — disse Dove para o elfo.
Kellindil acenou com a cabeça e saltou para o lado da rocha que lhe servia de barreira, com o
arco retesado.
— Depressa! — acrescentou Gabriel. — Antes que o grupo da direita volte a ter alcance
suficiente.
O arco de Kellindil fez um som seco uma vez, e depois outra. Mais adiante, um gigante uivou de
dor.
— Fica aqui com Darda — pediu Dove a Fret. Depois, ela, Gabriel e Roddy — mantendo o cão
bem preso pela trela — saíram rapidamente dos abrigos e carregaram contra os gigantes à sua frente.
Corriam de uma rocha para outra, abrindo caminho aos ziguezagues, para impedir os gigantes de
preverem os seus movimentos. Durante esse tempo, as flechas de Kellindil assobiavam por cima
deles, mantendo os gigantes mais preocupados com abrigar-se do que com atirar mais pedras.
Fendas profundas marcavam a encosta da montanha nas zonas mais inferiores, e ofereciam
protecção, mas também fizeram os três combatentes separarem-se. E também não conseguiam ver os
gigantes; mas sabiam a direcção aproximada e cada um escolheu o melhor caminho que pôde.
Fazendo uma curva apertada entre duas grandes pedras, Roddy saltou sobre um dos gigantes. O
homem da montanha libertou imediatamente o cão e o feroz animal atacou destemidamente e saltou
alto, quase chegando à cintura do monstro de três metros de altura.
Surpreendido pelo súbito ataque, o gigante largou a enorme moca e apanhou o cão em pleno ar.
Teria esmagado o atrevido rafeiro num instante, mas Bleeder, o terrível machado de Roddy,
enterrou-se-lhe numa coxa com toda a força que o homem da montanha conseguira reunir. O gigante
cambaleou e o cão de Roddy, sacudindo-se, libertou-se e trepou, mordendo e arranhando a cara e o
pescoço do gigante. Mais em baixo, Roddy dava machadadas, abatendo o gigante como se este fosse
uma árvore.

Meio a flutuar, meio a dançar por cima das pedras que resvalavam, Drizzt seguia a avalanche. Viu
um gigante aparecer, cambaleando, do meio de toda aquela comoção, para dar de caras com
Guenhwyvar. Ferido e estupefacto, o gigante caiu como uma saca.
Drizzt não tinha tempo para saborear o sucesso do seu plano desesperado. O encantamento de
levitação mantinha-se, embora fraco, deixando-o suficientemente leve para poder continuar a saltar
por cima das pedras. Mas, mesmo por cima do grosso da derrocada, havia pedras a saltar
pesadamente na direcção do drow e a poeira sufocava-o e fazia-lhe arder os olhos sensíveis. Quase
cego, conseguiu ainda avistar um ponto que poderia oferecer algum abrigo, mas a única maneira de lá
conseguir chegar seria parar o encantamento de levitação e correr.
Outra pedra roçou por Drizzt, quase o fazendo rodopiar em pleno ar. Conseguia sentir o
encantamento a desvanecer-se e sabia que só teria aquela oportunidade. Recuperou o equilíbrio e
atingiu o chão já a correr.
Rebolou, esquivou-se, e saiu a correr. Uma pedra bateu-lhe no joelho da perna já ferida, fazendo-o
cair. Mas depressa estava a rebolar de novo, tentando chegar, fosse de que maneira fosse, à
segurança do abrigo.
Perdeu o impulso demasiado longe do local. Voltou a pôr-se de pé, com intenções de correr a
distância final, mas não tinha força na perna e esta cedeu imediatamente, deixando-o exposto e
desorientado.
Sentiu o impacto nas costas e pensou que a sua vida tinha chegado ao fim. Um momento depois,
estonteado, percebeu que, sem saber como, tinha ido parar atrás da saliência e que estava soterrado
por qualquer coisa — mas não eram pedras, nem terra.
Guenhwyvar estava em cima do seu amo, protegendo-o até a última das rochas rolantes parar.

A partir do ponto onde as fendas na encosta davam lugar a terreno mais aberto, Dove e Gabriel
ficaram de novo à vista um do outro. Notaram movimento mesmo em frente, por detrás de uma parede
de pedras soltas empilhadas, com três metros de altura e uns quatro de comprimento.
Um gigante apareceu por cima da parede, rugindo com raiva e segurando uma pedra acima da
cabeça, pronta a atirar. O monstro tinha várias flechas cravadas no pescoço e no peito, mas parecia
não se importar com isso.
O tiro seguinte de Kellindil, porém, chamou definitivamente a atenção do monstro, porque o elfo
acertou-lhe com uma seta mesmo em cheio no cotovelo. O gigante uivou e agarrou o braço,
aparentemente esquecendo a pedra, que lhe caiu imediatamente em cima da cabeça com um baque
surdo. O monstro ficou muito quieto, embrutecido, e mais duas flechas foram cravar-se-lhe na cara.
Balouçou por um momento, e depois abateu-se numa nuvem de pó.
Dove e Gabriel trocaram um sorriso rápido, mostrando o seu agradecimento pela destreza do
arqueiro elfo, e depois prosseguiram o ataque, correndo cada um para um lado da parede de pedras.
Dove apanhou um gigante de surpresa, logo ao virar da esquina. O monstro levou a mão para a
moca, mas a espada de Dove foi na mesma direcção e cortou-lhe a mão de um só golpe. Os gigantes
das rochas eram oponentes formidáveis, com punhos que podiam enfiar uma pessoa pela terra dentro,
e com uma pele quase tão dura como a rocha que lhes dava o nome. Mas ferido, surpreendido e sem a
sua moca, o monstro não era adversário à altura da ágil ranger. Dove saltou para cima da parede de
pedras, o que a deixou à altura da cara do gigante, e pôs a espada a trabalhar metodicamente.
Com dois golpes, o gigante ficou cego. O terceiro golpe, num movimento ágil de varrimento
lateral, desenhou um sorriso na garganta do monstro. Depois, Dove pôs-se na defensiva, esquivando-
se e contrariando os gestos desesperados do gigante moribundo.
Gabriel não teve tanta sorte como a companheira. O gigante que restava não estava perto da
esquina da parede de pedras empilhadas. Embora Gabriel tivesse surpreendido o monstro ao
aparecer correndo para ele, este teve tempo — e uma pedra à mão — para reagir.
Gabriel levantou a espada para desviar o míssil, e esse gesto salvou-lhe a vida. A pedra fez a
espada saltar-lhe da mão e, mesmo assim, ainda veio com força suficiente para deitar Gabriel ao
chão. Gabriel era um veterano experiente, e a principal razão por que ainda estava vivo depois de
tantas batalhas era o facto de que sabia quando devia retirar. Recompôs-se nesse momento doloroso
e conseguiu pôr-se de pé; depois, correu de volta para trás da parede.
O gigante, com a pesada moca na mão, veio logo atrás. Uma flecha deu-lhe as boas vindas assim
que deu a curva por detrás da parede de pedras, mas limitou-se a arrancar a seta como se não fosse
mais do que um ligeiro incómodo e avançou para o guerreiro.
Gabriel estava também a ficar sem espaço. Tentou regressar aos trilhos, mas o gigante cortou-lhe a
passagem, aprisionando-o numa pequena área delimitada por grandes rochedos. Gabriel puxou do
seu punhal e amaldiçoou a má sorte.
Nesta altura, Dove já se tinha desembaraçado do seu gigante e corria pelo lado de trás da parede
de pedras. Viu imediatamente Gabriel e o outro gigante.
Gabriel também viu a ranger, mas limitou-se a encolher os ombros, como a pedir desculpa,
sabendo que Dove não poderia chegar a tempo de o salvar.
O gigante deu mais um passo, determinado a esmagar aquele homem intrometido, mas depois
ouviu-se um estalido seco e o monstro parou subitamente. Os olhos do gigante dardejaram em redor
de uma forma estranha por um momento ou dois, e depois caiu aos pés de Gabriel, morto.
Gabriel olhou para o lado, para o topo da parede rochosa, e quase se riu alto.
O martelo de Fret não era uma arma grande — a cabeça tinha apenas três ou quatro centímetros de
largura —, mas era uma coisa sólida e, num único golpe, o anão assestara-o directamente no espesso
crânio do monstro.
Dove aproximou-se, embainhado a espada, igualmente perplexa. Olhando para as expressões
espantadas de ambos, Fret não ficou nada divertido.
— Sou um anão. Qual é o espanto? — atirou-lhes, cruzando os braços, indignado. Esse gesto levou
o martelo, sujo de miolos, a entrar em contacto com as vestes de Fret, e o anão perdeu as estribeiras,
num acesso de pânico. Molhou os dedos gordos nos lábios e limpou a nódoa sinistra, mas depois
olhou para a mistela que tinha nos dedos com ainda mais horror.
Dove e Gabriel riram-se então bem alto.
— Fica sabendo que vais pagar por uma túnica nova! — ralhou Fret para Dove. — Ah, podes ter a
certeza que vais!
Um grito mais ao lado interrompeu-lhes esse alívio momentâneo. Os quatro gigantes que restavam,
tendo visto os companheiros soterrados sob uma avalanche, e o resto de grupo abatido com tanta
eficiência, tinham perdido o interesse pela emboscada e tinham fugido.
Atrás deles seguiam Roddy McGistle e o cão a ladrar.

Um único gigante tinha escapado à avalanche e às terríveis garras da pantera. Corria agora
desesperado pela encosta, procurando atingir um ponto mais elevado.
Drizzt mandou Guenhwyvar em sua perseguição, e depois encontrou um pau para lhe servir de
bengala e conseguiu pôr-se de pé. Magoado, sujo e ainda a sarar as feridas da batalha com os
barghest — e agora mais algumas derivadas desta recente corrida montanha abaixo —, começou a
afastar-se. Contudo, um movimento no fundo da encosta chamou-lhe a atenção e fê-lo parar. Virou-se
para enfrentar o elfo e, mais precisamente, a flecha pronta no arco.
Drizzt olhou em volta, mas não tinha onde se esconder. Poderia colocar um globo de escuridão
algures entre ele e o elfo, talvez… Mas percebeu que o arqueiro experiente, tendo já a seta apontada,
não falharia, nem mesmo com esse obstáculo. Endireitou os ombros e virou-se lentamente,
enfrentando o elfo de caras e orgulhosamente.
Kellindil aliviou a pressão na corda do arco e recolheu a flecha. Também ele vira a silhueta
envolta numa capa, deslizando por cima da derrocada.
— Os outros estão já junto de Darda — disse Dove, chegando nesse momento junto do elfo. — E
McGristle foi atrás dos…
Kellindil não respondeu, nem olhou para a ranger. Fez um ligeiro aceno, dirigindo o olhar de
Dove pela colina até à silhueta escura do drow, que se movia de novo em direcção ao cume da
montanha.
— Deixa-o ir — disse Dove. — Esse nunca foi nosso inimigo.
— Custa-me deixar partir um drow em liberdade — respondeu Kellindil.
— Também a mim — concordou Dove. — Mas temo mais as consequências se McGristle o
encontrar.
— Regressaremos a Maldobar e livrar-nos-emos desse homem — propôs Kellindil. — Depois, tu
e os outros poderão regressar a Sundabar para a vossa audiência. Tenho parentes nestas montanhas;
juntos, eles e eu estaremos de sobreaviso quanto ao nosso amigo de pele de ébano, e trataremos de
que não cause danos.
— De acordo — disse Dove. Virou-se e começou a afastar-se; e Kellindil, não precisando de mais
incentivos, fez o mesmo.
Mas o elfo parou para olhar para trás uma última vez. Meteu a mão na mochila e retirou de lá um
frasco. Depois, pensando melhor, retirou também outro objecto, desta vez do cinturão, e deixou-o
cair no chão, junto ao frasco. Satisfeito, virou-se então e seguiu a ranger.

Na altura em que Roddy McGristle regressava da sua desenfreada e inútil perseguição, Dove e os
outros já tinham arrumado tudo e estavam a preparar-se para partir.
— Vamos outra vez atrás do drow! — exclamou Roddy. — Ganhou algum tempo, mas aproximar-
nos-emos em breve.
— O drow foi-se — disse Dove secamente. — Não o perseguiremos mais.
O rosto de McGristle contorceu-se num esgar de incredulidade, e pareceu estar a ponto de
explodir.
— Darda precisa muito de descansar! — gritou-lhe Dove, sem recuar um milímetro. — Kellindil
está quase sem flechas, e estamos quase sem provisões.
— Pois eu não esquecerei assim tão facilmente os Thistledown! — declarou Roddy.
— Nem o drow os esqueceu — interveio Kellindil.
— Os Thistledown já foram vingados — acrescentou Dove —, e sabes bem disso, McGristle. Não
foi o drow quem os matou; mas foi sem dúvida nenhuma ele quem matou os assassinos deles!
Roddy riu-se sarcasticamente e virou costas. Era um caçador de prémios experiente e, por isso,
também um investigador experiente. Já chegara, evidentemente, a essa verdade havia muito tempo;
mas não podia ignorar a cicatriz que tinha agora na cara, nem a perda de uma orelha — e muito
menos a avultada recompensa oferecida pela cabeça do drow.
Dove percebeu esse raciocínio silencioso de Roddy.
— O povo de Maldobar não estará assim tão desejoso de ver a cabeça do drow quando souber a
verdade acerca do massacre — disse a ranger. — E também não terá tanta vontade de pagar, creio.
Roddy lançou-lhe um olhar intenso, mas não podia contrapor nada à lógica dela. Quando o grupo
de Dove avançou pelo trilho de regresso a Maldobar, Roddy McGristle seguiu com eles.

Drizzt voltou a descer da montanha nesse mesmo dia, mais tarde, à procura de qualquer coisa que lhe
dissesse onde andavam os seus perseguidores. Encontrou o frasco de Kellindil e aproximou-se dele
cautelosamente; depois, descontraiu-se quando reparou no outro objecto caído ao lado do frasco —
era o pequeno punhal do duende veloz, o mesmo que tinha usado para cortar a corda do arco do elfo,
no primeiro encontro de ambos.
O líquido do frasco cheirava a doce e o drow, com a garganta ainda seca devido à poeira das
rochas, bebeu um gole de bom grado. Uns arrepios percorreram-lhe o corpo, refrescando-o e
revitalizando-o. Mal comera durante vários dias, mas a força que tinha abandonado o seu corpo,
agora emagrecido, regressou de súbito numa onda explosiva. A perna magoada ficou dormente por
um momento, e sentiu que também ela, agora, estava a ficar mais forte.
Uma onda de entorpecimento invadiu-o, e arrastou-se para a sombra de um rochedo próximo onde
se sentou para descansar.
Quando acordou, o céu estava escuro e cheio de estrelas, e sentia-se muito melhor. Até mesmo a
perna, tão magoada pela descida com a avalanche, já suportava de novo o seu peso. Drizzt sabia
quem tinha deixado o frasco e o punhal, e agora que compreendia a natureza da poção regeneradora,
a confusão e indecisão eram ainda maiores.
Para todos os variados povos do mundo, nada está tão longe do seu alcance, sendo no
entanto tão profundamente pessoal e orientador, como o conceito de deus. A minha
experiência na minha terra mostrou-me poucos desses seres sobrenaturais que escapassem
à influência da divindade malévola drow, a Rainha Aranha, Lolth.
Depois de ter testemunhado a crueldade das maquinações de Lolth, não estava muito
disposto a abraçar o conceito de qualquer deus, de qualquer ser que pudesse ditar dessa
forma os códigos de comportamento e os preceitos de uma sociedade inteira. Não é a
moralidade uma força interior? E, se é, os princípios precisarão então de ser ditados ou
sentidos?
Daí se segue a pergunta sobre os próprios deuses: são estas entidades nomeadas como
tal, na verdade, seres reais, ou serão manifestações de crenças partilhadas? Serão os elfos
negros maus porque seguem os preceitos da Rainha Aranha, ou será Lolth o culminar da
conduta naturalmente malévola dos drow?
De igual forma, quando os bárbaros de Icewind Dale avançam pela tundra para a guerra,
gritando o nome de Tempus, Senhor das Batalhas, estarão a seguir os preceitos de Tempus,
ou será Tempus meramente o nome idealizado que dão às suas acções?
A isto não posso responder, nem, acabei por compreender, mais ninguém pode, por mais
sonoramente que possam — especialmente os sacerdotes de certos deuses — argumentar
em contrário. No fim de tudo, para desgosto derradeiro de um pregador, a escolha de um
deus é uma escolha pessoal, e o alinhamento com um ser está de acordo com o código
interior de princípios de cada um. Um missionário poderá coagir e enganar aqueles que
pretende tornar prosélitos, mas nenhum ser racional pode verdadeiramente seguir
determinadas ordens de qualquer figura divina, se essas ordens foram contrárias às suas
próprias convicções. Nem eu, Drizzt Do’Urden, nem o meu pai, Zaknafein, poderíamos
jamais tornar-nos discípulos da Rainha Aranha. E Wulfgar de Icewind Dale, meu amigo de
anos mais tardios, ainda que possa ainda agora clamar ao deus da batalha, não agrada a
essa entidade chamada Tempus a não ser naquelas ocasiões em que coloca o seu poderoso
martelo de guerra em acção.
Os deuses dos Reinos são muitos e variados — ou são muitos e variados os nomes e
entidades atribuídos ao mesmo ser.
Não sei — nem me importa — qual das duas é a verdade.

— Drizzt Do’Urden
Drizzt seguiu o seu caminho por entre as montanhas rochosas e imponentes durante muitos dias,
aumentando a distância entre ele e a aldeia dos agricultores — e as recordações terríveis — tanta
quanto podia. A decisão de fugir não fora consciente; se Drizzt estivesse menos cerceado nas suas
opções, poderia ter visto a caridade nas ofertas do elfo, a poção regeneradora e o punhal devolvido,
como uma possível pista para uma futura relação.
Mas as recordações de Maldobar e a culpa que pesava sobre os ombros do drow não seriam tão
facilmente postas para trás. A aldeia dos agricultores tornara-se simplesmente mais uma paragem na
busca por um lar, uma busca que acreditava cada vez mais que se revelaria fútil. Drizzt interrogava-
se como poderia sequer aproximar-se da próxima aldeia que lhe surgisse no caminho. O potencial
para uma tragédia tinha sido deixado bem claro diante dos seus olhos. Não parou para considerar que
a presença dos barghest podia ter sido apenas uma circunstância invulgar e que, talvez, na ausência
de tais inimigos, o seu encontro poderia ter tido outros resultados.
Neste ponto baixo da sua vida, todos os pensamentos de Drizzt estavam concentrados numa única
palavra que ecoava interminavelmente na sua cabeça e que lhe trespassava o coração: «drizzit».
O caminho de Drizzt acabou por levá-lo a uma vasto desfiladeiro entre as montanhas e a uma
íngreme ravina envolta na neblina de um rio tumultuoso lá mais em baixo. O ar tinha vindo a
arrefecer, coisa que Drizzt não compreendia, e o vapor e a humidade sabiam-lhe bem. Abriu caminho
descendo pela ravina rochosa, uma caminhada que lhe levou a maior parte do dia, e foi dar à margem
de um rio que caía numa cascata.
Drizzt já vira rios no Subescuro, mas nenhum que se comparasse com este. O Rauvin saltava por
cima das pedras, lançando borrifos no ar. Corria agitado em volta de grandes penhascos, espraiava-
se num manto branco por cima de extensões de outras pedras menores, e lançava-se subitamente em
quedas com cinco vezes a altura do drow. Drizzt estava fascinado por esta visão e pelo ruído, mas,
mais do que isso, viu também as possibilidades deste local como santuário. Muitos nichos
acompanhavam o percurso do rio, havia pequenos lagos onde a água se afastara da corrente forte do
braço principal. Aí se reuniam os peixes que vinham descansar dos seus esforços contra a forte
corrente.
Essa visão suscitou um rugido do estômago de Drizzt. Ajoelhou-se junto de um charco, com a mão
pronta a atacar. Precisou de muitas tentativas até perceber a refracção da luz através da água, mas era
rápido e suficientemente inteligente para aprender as regras do jogo. A mão mergulhou subitamente e
regressou segurando firmemente uma truta de trinta centímetros.
Atirou o peixe para longe da água, deixando-o a saltitar nas pedras, e daí a pouco apanhava outro.
Comeria bem, nesta noite, pela primeira vez desde que fugira da região da aldeia dos agricultores, e
tinha água fresca e limpa para matar a sede.
Este local era chamado Desfiladeiro do Orc Morto por aqueles que conheciam a região. O nome
era, no entanto, um pouco erróneo, porque embora centenas de orcs tivessem de facto morrido neste
vale rochoso em numerosas batalhas contra legiões de humanos, muitos milhares viviam ainda ali,
escondidos nas muitas grutas das montanhas, prontos a atacar os intrusos. Poucas pessoas ali iam —
e nenhuma que estivesse na plena posse de todas as suas faculdades.
Para o ingénuo Drizzt, com aquela fonte acessível de comida e água e aquela neblina confortável
para afastar o ar surpreendentemente cada vez mais frio, o desfiladeiro parecia o local perfeito para
se instalar.
O drow passava os dias acolitado nas sombras protectoras das muitas rochas e pequenas grutas,
preferindo pescar e colher alimentos durante as horas escuras da noite. Não via esse estilo de vida
nocturno como um regresso a qualquer coisa que tivesse sido noutros tempos. Quando saíra do
Subescuro, decidira que viveria entre os habitantes da superfície como um habitante da superfície, e
assim, dera-se a muito trabalho para se aclimatar ao sol do dia. Agora, já não acalentava tais ilusões.
Escolhera as noites para as suas actividades porque eram menos dolorosas para os seus olhos
sensíveis e porque sabia que quanto menos a sua cimitarra estivesse exposta ao sol, mais tempo
reteria a sua magia.
Não demorou muito, no entanto, a perceber porque razão os habitantes da superfície preferiam a
luz do dia. Sob os raios quentes do sol, o ar ainda era tolerável, ainda que um pouco fresco. Mas,
durante a noite, Drizzt descobriu que tinha frequentemente de se abrigar da brisa cortante que descia
dos pontos mais altos do desfiladeiro banhado na neblina. O inverno estava a aproximar-se
rapidamente das terras do norte, mas o drow, criado no mundo sem estações do Subescuro, não podia
saber disso.
Numa dessas noites, com o vento a soprar numa nortada brutal que deixava dormentes as mãos do
drow, Drizzt chegou a uma conclusão importante. Mesmo com Guenhwyvar ao seu lado, encolhido
debaixo de uma cavidade na rocha, Drizzt sentia uma dor cada vez mais severa nas suas
extremidades. O alvorecer ainda estava a muitas horas de distância, e interrogou-se seriamente se
conseguiria sobreviver para ver o nascer do Sol.
— Demasiado frio, Guenhwyvar — disse com a voz a tremer, enquanto batia os dentes. —
Demasiado frio.
Exercitou os músculos e mexeu-se vigorosamente, tentando reactivar a circulação perdida. Depois,
preparou-se mentalmente, pensando de momentos no passado em que se sentira quente, tentando
derrotar o desespero e enganar o próprio corpo para que este esquecesse o frio. Um único
pensamento se destacava claramente — uma recordação das cozinhas da Academia de
Menzoberranzan. No sempre quente Subescuro, Drizzt nunca considerara sequer o fogo como fonte de
aquecimento. Antes, sempre vira o fogo como mera forma de cozinhar, meio para produzir luz ou
arma ofensiva. Agora, assumia uma importância muito maior para o drow. Enquanto os ventos
continuavam a soprar cada vez mais frios, Drizzt apercebeu-se, para seu horror, que só o calor de
uma fogueira o poderia manter vivo.
Olhou em redor à procura de combustível. No Subescuro algumas vezes queimara pés de
cogumelos, mas na superfície não havia cogumelos que crescessem o suficiente para isso. Havia, no
entanto, plantas, e árvores que cresciam ainda mais do que os fungos do Subescuro.
— Arranja-me… braços de… — gaguejou para Guenhwyvar, sem saber nenhuma palavra para
designar madeira ou árvores. A pantera olhou para ele com curiosidade.
— Fogo… — implorou Drizzt. E tentou levantar-se, mas descobriu que tinha as pernas e os pés
dormentes.
Então, a pantera percebeu. Guenhwyvar uivou uma vez e saiu a correr para o meio da noite. O
grande felino quase tropeçou numa grande pilha de ramos e folhagem que tinha sido preparada — por
quem, não sabia — logo à saída do seu refúgio. Drizzt, demasiado preocupado com sobreviver nesse
momento, nem estranhou o regresso súbito do felino.
Tentou, sem sucesso, fazer fogo durante muitos minutos, batendo com o punhal contra uma pedra.
Por fim, percebeu que o vento impedia a faísca de pegar, e por isso deslocou os objectos para uma
área mais recolhida. Agora, as pernas doíam-lhe, e até a saliva lhe congelava nos lábios e no queixo.
Depois, por fim, uma faísca pegou na pilha de ramagem seca. Drizzt soprou cuidadosamente a
pequena chama, colocando as mãos em concha para impedir que o vento soprasse com demasiada
força.

— As chamas já pegaram — disse um elfo para um companheiro.


Kellindil acenou com a cabeça gravemente, ainda sem ter a certeza se ele e os seus companheiros
elfos tinham feito bem em ajudar o drow. Kellindil regressara logo de Maldobar, enquanto Dove e os
outros tinham partido para Sundabar, e encontrara uma pequena comunidade de elfos, a sua gente, que
vivia nas montanhas próximas do Desfiladeiro do Orc Morto. Com a ajuda experiente deles,
Kellindil teve pouca dificuldade em localizar o drow, e juntos, ele e os outros elfos o tinham
observado com curiosidade ao longo das últimas semanas.
O estilo de vida inócuo de Drizzt não tinha, contudo, afastado todas as dúvidas do elfo
preocupado. Afinal de contas, Drizzt era um drow, de pele escura à vista e de coração negro por
reputação.
Mesmo assim, Kellindil deu um suspiro de alívio quando também ele notou o ténue brilho do fogo
à distância. O drow não morreria gelado; Kellindil acreditava que este drow não merecia esse
destino.

Depois da refeição, mais tarde nessa noite, Drizzt encostou-se a Guenhwyvar — a pantera aceitou de
bom grado essa partilha de calor corporal — e olhou para as estrelas, brilhando fortemente no ar
frio.
— Lembras-te de Menzoberranzan? — perguntou a Guenhwyvar. — Lembras-te de quando nos
conhecemos?
Se Guenhwyvar o compreendeu, não deu qualquer sinal. Com um bocejo, rolou contra Drizzt e
deitou a cabeça entre as duas grandes patas estendidas.
Drizzt sorriu e acariciou com força a orelha da pantera. Conhecera Guenhwyvar em Sorcere, a
escola de magia da Academia, quando a pantera estava na posse de Masoj Hun’ett, o único drow que
Drizzt alguma vez matara. Tentou propositadamente não pensar nesse incidente agora; com o fogo a
arder vivamente, a aquecer-lhe os dedos, esta não era uma noite para recordações desagradáveis.
Apesar dos muitos horrores que tinha enfrentado na sua cidade natal, Drizzt também encontrara nela
alguns prazeres e aprendera muitas lições úteis. Até Masoj lhe ensinara coisas que agora ajudavam
mais do que alguma vez supusera. Olhando de novo para as chamas que crepitavam, Drizzt divertiu-
se a pensar que, se não tivessem sido os seus deveres de aprendiz a acender velas, nem sequer teria
sabido como acender uma fogueira. Inegavelmente, esse conhecimento tinha-o salvo de uma morte
gelada.
O sorriso de Drizzt durou pouco, enquanto os seus pensamentos prosseguiam por estas linhas. Não
muitos meses depois dessas lições particularmente úteis, Drizzt tinha sido forçado a matar Masoj.
Recostou-se de novo e suspirou. Sem ter nenhum perigo, nem nenhuma companhia para o
confundir, aparentemente iminente, este era, talvez, o tempo mais simples da sua vida, mas nunca as
complexidades da sua existência o tinham tão completamente esmagado.
Foi acordado da sua tranquilidade um momento depois, quando uma grande ave, uma coruja com
penas eriçadas e semelhantes a chifres sobre a cabeça redonda, voou rapidamente por cima dele.
Drizzt riu-se perante a sua própria incapacidade para se descontrair; no segundo que demorara a
reconhecer a ave como inofensiva, pusera-se de pé e desembainhara a cimitarra e o punhal.
Guenhwyvar também tinha reagido à aproximação da ave, mas de uma forma muito diferente. Com
Drizzt subitamente de pé e fora do seu caminho, a pantera rebolou para mais perto do fogo,
espreguiçou-se languidamente e bocejou de novo.

A coruja pairava no ar silenciosamente, vogando sobre brisas invisíveis, subindo juntamente com o
vapor que vinha do vale do rio, do lado oposto àquele por onde Drizzt tinha inicialmente descido. A
ave prosseguiu rapidamente, pelo meio da noite, até uma área densamente arborizada numa encosta,
acabando por pousar numa ponte de corda e madeira construída entre os ramos mais altos de três das
árvores. Depois de alguns momentos a recompor-se, a ave fez soar um pequeno sino prateado preso à
ponte, precisamente para essas ocasiões.
Pouco depois, voltou a fazer soar o sino.
— Já vou — ouviu-se uma voz mais abaixo. — Tem paciência, Hooter. Deixa um velho cego
deslocar-se a um ritmo que lhe seja conveniente!
Como se tivesse compreendido e apreciasse este jogo, a coruja fez soar o sino mais uma vez.
Um homem idoso com um enorme e hirsuto bigode cinzento e olhos brancos apareceu na ponte.
Saltitava e avançava em direcção à ave. Montolio fora em tempos um ranger de grande fama, que
agora vivia os seus anos finais — por sua própria escolha — isolado nas montanhas e rodeado pelas
criaturas que mais amava (e não contava com humanos, elfos, anões ou qualquer outra raça
inteligente entre essas). Apesar da idade considerável, Montolio continuava a ser alto e mantinha-se
muito direito, embora os anos tivessem deixado as suas marcas no eremita, deformando-lhe uma mão
de tal forma que se assemelhava a uma garra da ave de que agora se aproximava.
— Paciência, Hooter — resmungava repetidamente. Alguém que o observasse, a avançar
agilmente por aquela ponte um tanto traiçoeira, nunca adivinharia que era cego, e aqueles que
conheciam Montolio nunca o descreveriam dessa forma. Em vez disso, diriam possivelmente que os
olhos dele não funcionavam, mas acrescentariam rapidamente que também não precisava que
funcionassem. Com a sua destreza e sabedoria, e com os seus muitos amigos animais, o velho ranger
«via» mais do mundo que o rodeava do que a maioria dos que tinham a visão normal.
Montolio estendeu um braço, e a grande coruja saltou prontamente para ele, encontrando
cuidadosamente o sítio correcto para pousar na pesada manga de couro do homem.
— Viste o drow? — perguntou Montolio.
A coruja respondeu com um pio, e depois lançou-se numa complicada série de pios e gritos, que
Montolio recebeu avaliando em todos os pormenores. Com a ajuda dos seus amigos, e
particularmente desta coruja bastante tagarela, o ranger tinha vindo a vigiar o drow desde havia
vários dias, curioso pelo facto de um elfo negro se aventurar no vale. Inicialmente, Montolio
presumira que o drow estaria de alguma forma ligado a Graul, o chefe dos orcs da região; mas, à
medida que o tempo ia passando, o ranger começara a ter outras suspeitas.
— Bom sinal — disse Montolio quando a coruja lhe garantiu que o drow ainda não tinha
estabelecido contacto com as tribos de orcs. Graul já era suficientemente mau sem ter aliados tão
poderosos como os elfos negros!
Mesmo assim, o ranger não conseguia perceber por que razão os orcs não tinham ainda ido ter
com o drow. Talvez ainda não o tivessem detectado: o drow dera-se a muito trabalho para se manter
discreto, não acendendo fogos (até essa mesma noite) e saindo apenas depois do pôr-do-sol. Mais
provável, supôs Montolio depois de considerar melhor o assunto, era que os orcs ainda não tivessem
reunido a coragem necessária para estabelecer o contacto.
Fosse como fosse, todo este episódio estava a mostrar-se uma bem-vinda diversão para o ranger
enquanto tratava das suas rotinas diárias, que agora eram principalmente a preparação da casa para o
inverno que se aproximava. Não receava o aparecimento do drow. Montolio não receava quase nada,
aliás — e se o drow e os orcs não eram aliados, o conflito que haveria de resultar seria interessante
de observar.
— Faz-me um favor — disse o ranger para aplacar a coruja irrequieta. — Vai caçar uns ratos! —
a coruja esvoaçou imediatamente, fez um círculo por debaixo da ponte e depois outro por cima dela,
e desapareceu na noite. — Tem apenas o cuidado de não comer nenhum dos ratos que coloquei a
observar o drow! — disse Montolio para a ave; depois riu-se, sacudiu os cabelos desgrenhados, e
regressou para a escada no extremo da ponte. Esperou, enquanto descia, poder em breve voltar a
colocar o cinturão com a espada e descobrir que assuntos poderia aquele elfo negro ter a tratar na
região.
O velho ranger desejou depois isso por várias vezes.

As rajadas de vento outonais depressa deram lugar ao assalto do Inverno. Drizzt não demorou muito
a perceber o significado das nuvens cinzentas, mas, desta vez, quando a tempestade se abateu, sob a
forma de neve, e não de chuva, o drow ficou verdadeiramente espantado. Já vira as manchas brancas
ao longo dos cumes das montanhas, mas nunca subira o suficiente para as inspeccionar e presumira
simplesmente que fosse a cor das pedras. Agora, via os flocos brancos a cair sobre o vale;
desapareciam na corrente do rio, mas acumulavam-se sobre as rochas.
Enquanto a neve começava a aumentar e as nuvens se mantinham baixas no céu, Drizzt chegou a
uma conclusão aterradora. Chamou rapidamente Guenhwyvar.
— Temos de encontrar abrigo — explicou à pantera. Guenhwyvar regressara ao seu lar astral
apenas no dia anterior. — E temos de o encher de lenha para as nossas fogueiras.
Várias grutas salpicavam a encosta do vale desse lado do rio. Drizzt encontrou uma, não só
profunda e escura, mas também abrigada do vento cortante por uma elevação rochosa. Entrou,
fazendo uma pausa logo à entrada, para permitir que os olhos se adaptassem ao escuro depois do
brilho ofuscante da neve.
O chão da gruta era irregular e o tecto não era alto. Grandes pedregulhos estavam espalhados por
toda a parte e, mais a um lado, perto de uma dessas pedras, Drizzt reparou num ponto mais escuro,
que indicava uma segunda câmara. Pousou a braçada de lenha que trazia e começou a dirigir-se para
lá, mas depois parou subitamente, quando ele e Guenhwyvar sentiram uma presença.
Drizzt desembainhou a cimitarra, deslizou até à pedra e espreitou para trás dela. Com a visão de
infra-vermelhos, o outro habitante da gruta, uma bola de calor consideravelmente maior do que
Drizzt, não foi difícil de detectar. Drizzt soube imediatamente o que era, embora não tivesse um nome
para o designar. Já vira aquela criatura à distância várias vezes, e observara-a enquanto ela
apanhava eficientemente peixes do rio — com uma velocidade espantosa, tendo em conta o seu
tamanho.
Fosse qual fosse o seu nome, Drizzt não tinha vontade nenhuma de lutar contra aquela criatura pela
posse da gruta; havia mais grutas na área, e mais fáceis de reclamar.
O grande urso castanho, no entanto, parecia ter outras ideias. A criatura mexeu-se subitamente e
ergueu-se sobre as patas traseiras, com um rugido a ecoar na gruta e com as garras e os dentes bem
visíveis.
Guenhwyvar, a entidade astral da pantera, reconheceu o urso como um inimigo ancestral, e um
inimigo que os felinos sensatos tinham o cuidado de evitar. Contudo, a corajosa pantera saltou para a
frente de Drizzt, disposta a enfrentar a criatura maior do que ela para que o seu amo pudesse fugir.
— Não, Guenhwyvar! — comandou Drizzt. E agarrou o felino e voltou a colocar-se à frente.
O urso, mais um dos muitos amigos de Montolio, não fez nenhum movimento para atacar, mas
manteve a posição com ferocidade, não apreciando a interrupção do seu muito esperado sono de
hibernação.
Drizzt sentia ali qualquer coisa que não conseguia explicar — não propriamente uma amizade pelo
urso, mas uma estranha compreensão do ponto de vista da criatura. Sentiu-se um pouco tolo quando
embainhou a espada, mas não podia negar a empatia que sentia, quase como se estivesse a ver a
situação pelos olhos do urso.
Cautelosamente, avançou mais uns passos, até ver o urso completamente. Este parecia
surpreendido, mas, lentamente, baixou as patas, e a expressão feroz do rugido tornou-se uma
expressão que Drizzt interpretou como de curiosidade.
Drizzt meteu lentamente a mão na bolsa e retirou de lá um peixe que estava a guardar para o jantar.
Atirou-o para o urso, que o farejou rapidamente e depois o engoliu com uma dentada voraz.
Seguiu-se mais um longo momento de observação mútua, mas a tensão desaparecera. O urso soltou
um arroto, voltou a deitar-se, e daí a pouco estava a ressonar prazenteiramente.
Drizzt olhou para Guenhwyvar e encolheu os ombros, sem fazer ideia de como tinha conseguido
comunicar tão profundamente com o animal. A pantera tinha também compreendido, aparentemente,
as conotações daquele encontro, porque os seus pêlos já não estavam eriçados.
Durante o resto do tempo que Drizzt passou na gruta, teve o cuidado, sempre que tinha comida de
sobra, de deixar um pedaço junto do urso adormecido. Por vezes, especialmente quando Drizzt
deixava um peixe perto dele, o urso farejava e acordava apenas o suficiente para engoli-lo. Mais
frequentemente, porém, o animal ignorava simplesmente a comida, ressonando compassadamente e
sonhando com mel e bagas e ursas, e tudo o mais que fosse com que os ursos sonhavam.

— Arranjou guarida junto de Bluster? — espantou-se Montolio quando soube, por intermédio de
Hooter, que o drow e o urso partilhavam agora a gruta. Montolio quase caiu — e teria decerto caído,
se não estivesse tão perto de um tronco de árvore que o apoiou. O velho ranger ficou ali encostado,
estupefacto, cofiando o bigode e coçando a cabeça. Conhecia o urso havia muitos anos, e nem mesmo
ele tinha a certeza de que poderia partilhar um espaço com ele. Bluster era uma criatura facilmente
excitável, como muitos dos estúpidos orcs de Graul tinham aprendido ao longo dos anos.
— Calculo que Bluster esteja demasiado cansado para discussões — raciocinou Montolio; mas
sabia que havia ali mais alguma coisa. Se um orc ou um duende tivessem entrado na gruta, Bluster tê-
los-ia morto sem hesitações. E, no entanto, o drow e a sua pantera lá estavam, dia após dia,
acendendo fogueiras na câmara mais exterior, enquanto Bluster ressonava pacatamente na câmara
mais interior.
Como ranger que era, e conhecendo muitos outros rangers, Montolio vira e ouvira falar de muitas
coisas bem mais estranhas. No entanto, até esse momento, sempre considerara a capacidade inata de
ligação aos animais selvagens como domínio exclusivo dos elfos da superfície, dos duendes, dos
halflings e dos humanos que estivessem bem habituados aos usos das florestas.
— Como pode um elfo negro conhecer um urso? — perguntou Montolio em voz alta, continuando a
coçar a cabeça. O ranger considerou duas possibilidades: ou havia mais coisas da raça drow que ele
não conhecia, ou este elfo negro não era igual aos outros da sua raça. Dado o comportamento já de si
estranho do elfo, Montolio optou pela segunda hipótese, embora tivesse enorme vontade de descobrir
se assim era mesmo. Mas a sua investigação do assunto teria de esperar. As primeiras neves já
tinham caído, e o ranger sabia que as próximas não demorariam muito a vir. Nas montanhas em redor
do Desfiladeiro do Orc Morto, pouco havia que se mexesse quando as neves começavam.

Guenhwyvar viria a mostrar-se a salvação de Drizzt ao longo das semanas seguintes. Nos momentos
em que Guenhwyvar andava pelo Plano Material, a pantera saía para as neves geladas e profundas
continuamente, para caçar e, mais importante ainda, para trazer de volta lenha para a fogueira.
Mesmo assim, as coisas não eram fáceis para o drow deslocado do seu ambiente. Todos os dias
Drizzt tinha de descer até ao rio e quebrar o gelo que se formava nas lagunas mais calmas, que eram
os pesqueiros do drow, ao longo das margens. Não era uma grande caminhada, mas depressa a neve
se tornou muito profunda e traiçoeira, deslizando frequentemente pelas encostas atrás dele para o
soterrar num abraço gelado. Por várias vezes Drizzt teve de regressar cambaleando para a gruta, já
sem sentir as mãos e as pernas. Depressa aprendeu a deixar a fogueira bem acesa antes de sair,
porque quando regressava já não tinha forças para pegar no punhal e na pedra para fazer saltar uma
faísca.
Mesmo quando o estômago de Drizzt estava cheio e se via rodeado pelo brilho do fogo e pela
pelagem de Guenhwyvar, sentia-se frio e completamente miserável. Pela primeira vez em muitas
semanas, o drow questionava a sua decisão de deixar o Subescuro e, à medida que o desespero
crescia, questionava até a decisão de ter saído de Menzoberranzan.
— Não há dúvida de que sou um desgraçado sem casa — queixava-se muitas vezes nesses não
raros momentos de auto-comiseração. — E vou decerto morrer aqui, frio e só.
Drizzt não fazia ideia do que se estava a passar no estranho mundo que o rodeava. Regressaria
alguma vez o calor que encontrara quando pela primeira vez chegara ao mundo da superfície? Ou
seria isto alguma forma de maldição cruel, talvez dirigida contra ele pelos seus poderosos inimigos
em Menzoberranzan? Esta confusão levou Drizzt a um perturbante dilema: deveria permanecer na
gruta e tentar esperar que a tempestade passasse (pois que outra coisa podia chamar à estação do
Inverno?). Ou deveria sair do vale do rio e procurar um clima mais quente?
Teria acabado por partir, e a caminhada pelas montanhas tê-lo-ia sem dúvida morto, mas notou
outro evento coincidente com o clima agreste. As horas de luz diurna tinham-se reduzido e as horas
de escuridão tinham aumentado. Acabaria o Sol por desaparecer completamente, envolvendo a
superfície numa escuridão eterna e num frio eterno? Drizzt duvidava dessa possibilidade e, por isso,
usando um pouco de areia e um frasco vazio que trazia na bolsa, começou a medir o tempo de luz e o
tempo de escuridão.
As suas esperanças desapareciam de cada vez que os cálculos lhe mostravam o pôr-do-Sol mais
cedo, e, à medida que estação avançava, assim aumentava o desespero do drow. A saúde começava
também a faltar-lhe. Estava, de facto, uma desgraça, magro e sempre a tremer, quando começou a
notar a alteração da estação — o solstício de Inverno. Mal podia acreditar nas suas medições — que
não eram muito precisas —, mas ao longo dos dias seguintes não pôde negar o que a areia que caía
lhe ia dizendo.
Os dias estavam a ficar mais longos.
A esperança do drow regressou. Suspeitara de uma variação sazonal desde que os primeiros
ventos frios tinham soprado, meses antes. Observara o urso a pescar mais empenhadamente à medida
que o tempo piorava, e agora acreditava que a criatura previra o frio e tinha amontoado gorduras
para passar esse tempo a dormir.
Essa crença, e as descobertas acerca da luz do dia, convenceram Drizzt de que a sua desolação
gelada não perduraria.
O solstício, porém, não trouxe nenhum alívio imediato. Os ventos sopravam ainda mais fortes, e a
neve continuava a acumular-se. Mas Drizzt reconquistara a sua determinação, e seria preciso mais do
que um Inverno para derrotar o indómito drow.
Então, aconteceu — quase de um dia para o outro, ao que parecia. A neve recuou, o rio corria
mais livre de gelos, e o vento mudou, trazendo ar mais quente. Drizzt sentiu um pico de vitalidade e
de esperança, uma libertação da tristeza e da culpa que não conseguia explicar. Não conseguia
perceber que ânsias o tinham tomado, não tinha um nome, nem um conceito para isso, mas foi
completamente arrebatado pela Primavera, tal como todas as criaturas naturais do mundo da
superfície.
Uma manhã, enquanto Drizzt terminava a refeição e se preparava para dormir, o seu companheiro
de gruta havia tanto tempo adormecido saiu pacatamente da câmara mais recuada, notoriamente mais
magro, mas mesmo assim assaz formidável. Drizzt observou o urso cuidadosamente, interrogando-se
se deveria convocar Guenhwyvar ou desembainhar a cimitarra. O urso, contudo, não lhe prestou
atenção. Passou a direito por ele, parou para farejar a pedra que Drizzt usara como prato, depois
lambeu-a, e finalmente saiu para a quente luz do sol, parando apenas à saída da gruta para bocejar e
se espreguiçar tão profundamente que Drizzt percebeu que o sono de Inverno do animal tinha
terminado. Compreendeu também que a gruta começaria rapidamente a ficar demasiado
movimentada, com o animal perigoso a entrar e a sair, e decidiu que, com este tempo mais ameno,
talvez não valesse a pena lutar por aquela gruta.
Drizzt partiu antes de o urso regressar, mas, para delícia do animal, deixou ficar uma última
refeição de peixe. Em breve Drizzt estava a instalar-se numa gruta menos funda e menos protegida,
algumas centenas de metros mais adiante.
O Inverno desapareceu tão depressa como tinha chegado. A neve recuava diariamente e o vento do
sul trazia ar que não vinha frio. Drizzt depressa se habituou a uma rotina confortável; o maior
problema que enfrentava era o brilho do sol durante o dia, aumentado pelo reflexo da neve que ainda
cobria o chão. O drow adaptara-se bastante bem ao sol nos primeiros meses à superfície,
deslocando-se — e até lutando — à luz do dia. Agora, contudo, com a neve branca a reflectir a luz
forte para a sua cara, Drizzt mal se conseguia aventurar no exterior.
Só saía à noite e deixava o dia ao urso e às outras criaturas. Não estava grandemente preocupado;
acreditava que a neve em breve desapareceria, e poderia regressar à vida mais fácil dos últimos dias
antes do Inverno.
Bem alimentado, descansado, e sob a luz suave de uma Lua brilhante e cativante, certa noite,
Drizzt olhou para o outro lado do rio, para a parede mais distante do vale.
— O que há ali em cima? — murmurou para si mesmo. Embora o rio corresse com força, devido
ao degelo da neve, antes, nessa noite, Drizzt encontrara um possível caminho para o atravessar, por
uma série de grandes pedras pouco espaçadas que se erguiam acima do nível da água.
A noite ainda era jovem; a Lua não estava ainda a meio do percurso no céu. Impregnado do
encantamento e do espírito tão típicos da estação, decidiu ir espreitar. Deslizou até à margem do rio
e saltou com agilidade e facilidade para as pedras. Para um homem ou para um orc — ou para a
maioria das outras raças do mundo — atravessar passando por cima das pedras molhadas,
escorregadias e muitas vezes afastadas umas das outras, poderia parecer demasiado difícil e
traiçoeiro para que sequer tentassem fazê-lo, mas o ágil drow fazia-o sem dificuldades.
Chegou à outra margem a correr, saltando por cima de rochas ou desviando-se de outras sem
preocupação ou receios. Como teria sido diferente a sua atitude se soubesse que estava agora nos
domínios do vale pertencentes a Graul, o grande chefe dos orcs!

Um patrulha orc detectou o drow saltitante antes que este chegasse a meio da subida da encosta do
vale. Os orcs já tinham visto o drow antes, nos momentos em que Drizzt estava a pescar no rio.
Receoso dos elfos negros, Graul mandara os seus peões manter a distância, pensando que a neve
mandaria embora dali o intruso. Mas o Inverno tinha passado e este drow solitário continuava por
ali, e agora até tinha atravessado o rio.
Graul esfregou as mãos de dedos gordos nervosamente uma na outra quando lhe deram as notícias.
O grande orc reconfortou-se um pouco com o pensamento de que o drow estava sozinho e não fazia
parte de um bando maior. Podia ser um batedor ou um renegado; Graul não podia saber ao certo, e as
implicações de qualquer das duas hipóteses não agradavam ao chefe dos orcs. Se era um batedor,
mais elfos negros se poderiam seguir; e se era um renegado, poderia ver os orcs como possíveis
aliados.
Graul já era chefe do bando havia muitos anos, o que era um tempo invulgarmente longo entre os
caóticos orcs. O grande orc sobrevivera por não correr riscos, e também não pretendia corrê-los
agora. Um elfo negro poderia usurpar a liderança da tribo, posição que Graul queria manter
avidamente. Não permitiria que isso acontecesse. Duas patrulhas de orcs saíram dos seus
esconderijos escuros, pouco depois, com ordens explícitas para matarem o drow.

Uma brisa fresca corria acima da encosta do vale, e a neve era mais espessa lá em cima, mas Drizzt
não se importou. Grandes áreas de arvoredo estendiam-se diante dele, escurecendo os vales entre as
montanhas e convidando-o, após um Inverno escondido numa gruta, a ir mais além e a explorar a
região.
Quase tinha percorrido já dois quilómetros quando percebeu pela primeira vez que estava a ser
perseguido. Não viu realmente nada, a não ser talvez uma sombra fugidia pelo canto do olho, mas os
seus sentidos intangíveis de guerreiro disseram-lho sem margem para dúvidas. Deslocou-se para o
lado, para uma colina íngreme, subiu passando por uma zona arborizada e correu para o ponto mais
elevado. Quando lá chegou, escorregou para detrás de um rochedo e virou-se para espreitar.
Sete silhuetas escuras, seis delas humanóides e uma de um grande cão, saíam detrás das árvores
que deixara para trás, seguindo o seu rasto cuidadosa e metodicamente. Daquela distância, Drizzt não
conseguia perceber a raça, embora suspeitasse de que seriam humanos. Olhou em redor, procurando
o melhor percurso de fuga, ou a melhor área para montar uma defesa. Mal reparou que já tinha a
cimitarra numa mão e o punhal na outra. Quando se apercebeu de que tinha desembainhado as armas,
e de que o grupo que o perseguia estava a ficar desconfortavelmente perto dele, fez uma pausa e
ponderou.
Poderia enfrentar os seus perseguidores ali mesmo e abatê-los enquanto escalavam os últimos e
traiçoeiros metros da subida escorregadia.
— Não — rugiu Drizzt, afastando essa possibilidade assim que se lhe apresentou. Poderia atacar,
e provavelmente vencer, mas depois… que novo fardo teria de carregar desse encontro? Não queria
lutas, nem desejava nenhum contacto. Já carregava consigo toda a culpa que podia aguentar. Ouviu as
vozes dos perseguidores, em esforços guturais semelhantes aos da língua dos duendes.
— Orcs — murmurou o drow em surdina, associando a língua ao tamanho próximo do humano das
criaturas.
Esse reconhecimento nada fez, no entanto, para mudar a atitude do drow. Drizzt não gostava de
orcs — vira o suficiente daqueles seres malcheirosos em Menzoberranzan —, mas também não tinha
nenhuma razão, nenhuma justificação para combater com aquele bando. Virou costas, escolheu um
caminho, e acelerou pela noite.
A perseguição era encarniçada; os orcs estavam demasiado perto para que Drizzt conseguisse
livrar-se deles. Via um problema a avolumar-se, porque se os orcs eram hostis, e, avaliando pelos
rugidos e gritos, acreditava que assim era, então perdera a oportunidade de lutar contra eles em
terreno favorável. A Lua desaparecera já havia muito tempo e o céu tinha agora o tom azulado do
alvorecer. Os orcs não apreciavam a luz do dia, mas com o brilho da neve a toda a volta, Drizzt seria
praticamente impotente.
Teimosamente, o drow ignorou a opção de combater e tentou correr mais depressa que os
perseguidores, fazendo uma curva de regresso ao vale. Aí, cometeu o segundo erro, porque outro
bando de orcs, este acompanhado por um lobo e por uma figura muito maior, um gigante das rochas,
estava à sua espera.
O caminho tornava-se bastante plano, com um dos lados a descer muito íngreme por uma encosta
rochosa à esquerda do drow, e o outro subindo de forma igualmente íngreme e por terreno igualmente
rochoso, à sua direita. Drizzt sabia que os seus perseguidores não teriam grande dificuldade em
segui-lo num percurso tão pré-determinado, mas agora só podia confiar na velocidade, tentando
regressar à sua gruta defensável antes que o Sol brilhante aparecesse.
Um ganido avisou-o um momento antes que um lobo de pêlo eriçado, uma criatura chamada worg,
aparecesse por trás das rochas logo acima dele e lhe barrasse o caminho. O worg saltou para Drizzt,
com as maxilas procurando atingir-lhe a cabeça. Drizzt mergulhou, perante o assalto, e a cimitarra
surgiu-lhe na mão num relâmpago, rodopiando à frente para afastar o focinho voraz da criatura. O
worg caiu pesadamente atrás do drow, enquanto este se voltava, com a língua sacudindo-se
freneticamente perante o sangue que lhe saía da boca em golfadas.
Drizzt golpeou-o mais uma vez, abatendo-o, mas seis orcs avançaram a correr, brandindo lanças e
mocas. Drizzt virou-se para fugir, mas depois agachou-se de novo, mesmo a tempo, enquanto uma
pedra enorme voava por cima dele, acabando por deslizar pela encosta rochosa.
Sem hesitação, Drizzt chamou um globo de escuridão sobre a sua própria cabeça.
Os quatro orcs que vinham mais à frente mergulharam no globo sem sequer se aperceberem disso.
Os restantes dois camaradas estacaram, segurando nervosamente as lanças e olhando nervosamente
em redor. Nada conseguiam ver para dentro do globo de escuridão mágica, mas pelo retinir de
espadas e pelo baque das mocas, e pelos gritos enraivecidos que vinham de lá, parecia que havia um
exército inteiro a combater lá dentro. Depois, outro som saiu do meio da escuridão, um som de
rugido felino.
Os dois orcs recuaram, olhando por cima dos ombros e desejando que o gigante das rochas se
despachasse e chegasse junto deles. Um dos seus camaradas orcs, e depois outro, saiu do globo de
escuridão, gritando de horror; o primeiro passou a correr pelos seus espantados congéneres, mas o
segundo não chegou a poder fazê-lo.
Guenhwyvar manteve o infeliz bem preso e lançou-o ao chão, arrancando-lhe a vida.
A pantera quase não abrandou, saltando de novo e atacando um dos dois que esperavam, enquanto
este tentava desesperadamente afastar-se dela. Os que restavam ainda fora do globo fugiam
tropeçando uns nos outros e nas rochas, e Guenhwyvar, tendo terminado a segunda morte, saltou de
novo em perseguição.
Drizzt saiu do outro lado do globo sem um arranhão, com a cimitarra e o punhal a pingar sangue
orc. O gigante, enorme e de ombros quadrados, com pernas da grossura de troncos de árvore,
avançou para o enfrentar, e Drizzt nem hesitou. Saltou para uma grande rocha, e depois saltou da
rocha com a cimitarra apontada para a frente.
A agilidade e a velocidade do drow surpreenderam o gigante das rochas; o monstro nem sequer
chegou a ter tempo de levantar a mão ou erguer a moca para bloquear o ataque. Mas a sorte não
estava do lado de Drizzt, desta vez. A cimitarra, encantada com a magia do Subescuro, já vira
demasiada luz da superfície. Avançou contra a pele semelhante a pedra do gigante de três metros,
dobrou-se quase ao meio e depois quebrou pelo punho.
Drizzt cambaleou para trás, surpreendido pela primeira vez em que a sua arma de confiança o
traía.
O gigante rugiu e ergueu a moca, sorrindo malevolamente, até que uma forma escura surgiu à frente
da pretendida vítima e se abateu contra o seu peito, arranhando-o com quatro poderosas garras.
Guenhwyvar salvara Drizzt mais uma vez, mas o gigante estava longe de derrotado. Agitou a moca
e esbracejou até que a pantera se afastou. Guenhwyvar tentou rodar e regressar de imediato para a
refrega, mas aterrou mal e perdeu o ímpeto sobre a camada de neve. O felino deslizou e caiu, e por
fim conseguiu parar, sem se ferir, mas bem mais longe de Drizzt e da contenda.
Desta vez, o gigante não sorriu. Havia sangue a escorrer das dúzias de feridas que tinha no peito e
no rosto. Atrás dele, pelo trilho, vinha o outro grupo de orcs, liderado por um segundo worg que
ladrava ferozmente, e aproximavam-se depressa. Como qualquer outro guerreiro sensato e em tão
grande desvantagem, Drizzt virou-se e começou a correr.
Se os dois orcs que tinham fugido de Guenhwyvar tivessem voltado imediatamente para trás,
poderiam ter cortado o caminho ao drow. Os orcs, no entanto, nunca eram conhecidos pela bravura, e
esses dois já se tinham afastado muito e ainda corriam, sem sequer olharem para trás.
Drizzt acelerou pelo caminho descendente, procurando alguma forma de descer e reencontrar-se
com a pantera. Mas a encosta íngreme não tinha nenhum local promissor, porque teria de escolher o
caminho lentamente e cuidadosamente, e sem dúvida com um gigante a atirar-lhe pedregulhos. Subir
parecia igualmente fútil, com o monstro tão próximo, e por isso o drow limitou-se a continuar a
correr ao longo do trilho, esperando que não terminasse tão depressa.
O Sol espreitava já por cima do horizonte de leste, o que era mais um problema — e, subitamente,
apenas mais um de entre muitos — para o desesperado drow.
Percebendo que a sorte se virara contra ele, Drizzt soube, mesmo antes de ter dobrado a esquina
mais pronunciada do trilho, que chegara ao fim de um percurso. Uma derrocada tinha cortado o
trilho. Drizzt derrapou enquanto travava e tirou a mochila, sabendo que o tempo estava contra ele.
O bando de orcs liderado pelo worg aproximou-se do gigante, com ambos a ganharem confiança
com a presença do outro. Juntos, avançaram, com o feroz worg correndo para tomar a dianteira.
Depois de uma curva apertada, a criatura acelerou, tropeçando depois e tentando parar quando se
viu enredada subitamente numa corda. Os worgs não eram criaturas estúpidas, mas este não
compreendeu completamente as terríveis implicações de tudo aquilo quando o drow empurrou uma
grande rocha para lá da berma do trilho. Isto é: o worg não compreendeu até que a corda se retesou e
a pedra o puxou, levando-o a voar atrás dela.
A armadilha simples funcionara na perfeição, mas esta era a única vantagem que Drizzt podia
esperar ganhar. Atrás dele, o trilho estava completamente bloqueado e, de ambos os lados, a encosta
era demasiado íngreme para subir ou descer. Quando os orcs e o gigante apareceram depois da
curva, hesitantes depois de verem o worg iniciar uma viagem bastante atribulada encosta abaixo,
Drizzt enfrentou-os apenas com um punhal na mão.
O drow tentou parlamentar, usando a língua dos duendes, mas os orcs não quiseram ouvi-lo. Antes
que a primeira palavra saísse da boca de Drizzt, um deles já tinha atirado a lança.
A arma voou para o drow encadeado pelo sol como um borrão, mas vinha em arco e fora atirada
por uma criatura desajeitada. Drizzt desviou-se com facilidade e depois reagiu ao ataque com o seu
punhal. O orc conseguia ver melhor do que o drow, mas não era tão rápido. Recebeu o punhal em
cheio na garganta. Arquejando, o orc caiu, e o seu camarada mais próximo apanhou a faca e retirou-a,
não para salvar o outro orc, mas simplesmente para se apoderar de uma arma tão refinada.
Drizzt apanhou a lança tosca do orc e firmou os pés com força enquanto o gigante das rochas
avançava para ele.
Uma coruja deslizou pelo ar por cima do gigante e soltou um pio, mas sem conseguir distrair o
monstro determinado. Um momento depois, no entanto, o gigante cambaleou para a frente, atingido
pelo impacto de uma flecha que subitamente se lhe tinha cravado nas costas.
Drizzt viu a flecha ainda a vibrar, ornada de penas negras, enquanto o gigante se virava para trás.
O drow não se fez rogado à inesperada ajuda. Enterrou a lança com toda a sua força nas costas do
monstro.
O gigante ter-se-ia virado para responder, mas a coruja voltou a rodopiar por cima dele e piou de
novo; respondendo a essa deixa, outra flecha assobiou pelo ar, e esta enterrou-se no peito do gigante.
Novo pio da coruja, e nova flecha a encontrar o alvo.
Os orcs espantados olhavam em volta, em busca do atacante invisível, mas a claridade ofuscante
da manhã reflectida pela neve pouco ajudava os monstros nocturnos. O gigante, atingido no coração,
limitou-se a ficar parado com um olhar ausente, sem sequer se aperceber de que a sua vida estava a
chegar ao fim. O drow voltou a cravar-lhe a lança nas costas, mas esse gesto apenas serviu para fazer
o monstro cambalear para mais longe dele.
Os orcs olhavam uns para os outros e em redor, interrogando-se sobre por onde haveriam de fugir.
A estranha coruja voou de novo em círculo, desta vez por cima de um orc, e soltou o quarto pio. O
orc, compreendendo as consequências disso, sacudiu os braços e guinchou, e depois caiu silenciado
com a ponta de uma flecha a atravessar-lhe a cara.
Os quatro orcs restantes largaram tudo e fugiram, um pela encosta acima, outro correndo para trás
pelo mesmo caminho por onde tinham vindo, e dois correndo na direcção de Drizzt.
Um golpe ágil da lança fez com que a ponta romba desta se abatesse em cheio na cara de um dos
orcs; depois, Drizzt completou o movimento de rotação para desviar a ponta da lança do outro orc,
virando-a para o chão. O orc largou a arma, percebendo que não conseguiria levantá-la de novo a
tempo de parar o drow.

O orc que estava a subir a encosta compreendeu o seu destino quando a coruja se aproximou dele. A
aterrorizada criatura mergulhou para trás de uma rocha quando ouviu o piar da ave, mas, se fosse
mais esperta, teria percebido logo o seu erro. Pelo ângulo dos tiros que tinham atingido o gigante, o
arqueiro tinha de estar algures mais acima na encosta.
Uma flecha cravou-se na coxa do monstro enquanto se agachava, fazendo-o cair, contorcendo-se,
de costas. Com o orc a gritar e a debater-se, o arqueiro cego e invisível quase nem precisava dos
pios da coruja para assestar o tiro seguinte. Esse acertou no orc mesmo no peito e calou-o para
sempre.

Drizzt mudou de direcção imediatamente, atacando o segundo orc com a ponta romba da lança. Num
piscar de olhos, o drow inverteu a posição da lança e enfiou-a na garganta da criatura, empurrando-a
para cima até ao cérebro. O primeiro orc que Drizzt atacara estava a recuperar e abanava a cabeça
violentamente, tentando reorientar-se na batalha. Sentiu as mãos do drow a agarrarem a frente da sua
túnica suja de pele de urso, e depois sentiu o vento a bater-lhe na cara enquanto voava pelo ar e pela
encosta abaixo, seguindo o mesmo caminho que o worg anteriormente tinha feito.

Ouvindo os gritos dos companheiros moribundos, o orc que estava no trilho baixou a cabeça e
começou a correr, achando-se muito inteligente por seguir este caminho. Mas mudou de ideias
subitamente quando virou uma curva e deu de caras com as garras de uma grande pantera negra que o
esperava.

Drizzt encostou-se, exausto, a uma rocha, mantendo a lança pronta a atirar, enquanto a estranha coruja
voava de volta para a encosta. A coruja mantinha, porém, a uma certa distância, pousando uma dúzia
de passos mais adiante, numa formação rochosa que forçava o trilho a uma curva apertada.
Algum movimento mais acima chamou a atenção do drow. Mal conseguia ver, àquela luz forte que
quase o cegava, mas percebeu uma silhueta humanóide a avançar cautelosamente para ele.
A coruja levantou voo de novo, voando em círculos por cima do drow e piando, e Drizzt agachou-
se, alerta e tenso, enquanto o homem descia até uma posição atrás da formação rochosa. Mas
nenhuma flecha saiu a assobiar na direcção dos pios da coruja. Em vez disso, quem avançou foi o
arqueiro.
Era alto, muito direito e muito velho, com um grande bigode grisalho e cabelos longos quase
brancos. O mais curioso de tudo eram os olhos sem pupilas e de um branco leitoso. Se Drizzt não
tivesse observado a exibição de mestria com o arco, teria pensado que o homem era cego. Os
membros do velho pareciam também muito frágeis, mas Drizzt não deixou que as aparências o
iludissem. O experiente arqueiro manteve o pesado arco tenso e pronto a disparar, com uma flecha
firmemente em posição, e quase sem esforço aparente. O drow não precisava de olhar para muito
longe para ver a eficácia letal com que o humano conseguia pôr a arma em acção.
O velho disse qualquer coisa numa língua que Drizzt não conseguia compreender; depois falou
numa segunda língua, e por fim em língua de duende, que Drizzt conseguia entender.
— Quem és tu?
— Drizzt Do’Urden — respondeu Drizzt calmamente, ganhando alguma esperança pelo facto de,
pelo menos, conseguir comunicar com este adversário.
— Isso é um nome? — perguntou o velho. Depois riu-se e encolheu os ombros. — Seja o que for,
e sejas tu quem fores, e seja qual for a razão para estares aqui, tudo isso tem pouca importância.
A coruja, notando movimento, começou a piar e a esvoaçar freneticamente, mas era tarde demais
para o velho. Atrás dele, Guenhwyvar deslizou pela curva e chegou à distância de um salto fácil, de
orelhas baixas e dentes arreganhados.
Aparentemente inconsciente do perigo, o velho terminou o seu pensamento.
— És meu prisioneiro.
Guenhwyvar lançou um rugido longo e gutural, e o drow fez um grande sorriso.
— Não me parece — respondeu.
— Teu amigo? — perguntou o velho calmamente.
— Guenhwyvar — explicou Drizzt.
— Grande felino?
— Oh, sim — respondeu Drizzt.
O velho aliviou a tensão do arco e deixou a flecha deslizar lentamente, apontando para o chão.
Fechou os olhos, lançou a cabeça para trás e pareceu encerrar-se em si mesmo. Um momento depois,
Drizzt notou que as orelhas de Guenhwyvar se erguiam subitamente, e o drow percebeu que aquele
estranho humano estava, de alguma maneira, a fazer uma ligação telepática com a pantera.
— Bom gato, este — disse o homem um momento depois.
Guenhwyvar avançou — fazendo a coruja esvoaçar agitadamente — e passou descontraidamente
diante do homem, indo pôr-se ao lado de Drizzt.
Aparentemente, a pantera tinha abandonado quaisquer ideias de que o velho fosse inimigo.
Drizzt achou curiosas as acções de Guenhwyvar, vendo-as da mesma forma como vira o seu
acordo empático com o urso da gruta, na estação anterior.
— Bom gato — repetiu o homem.
Drizzt encostou-se à rocha e aliviou a força com que segurava a lança.
— Sou Montolio — explicou o homem orgulhosamente, como se esse nome devesse ter algum
grande significado para o drow. — Montolio DeBrouchee.
— Muito prazer e adeus — disse Drizzt secamente. — Se já acabámos a nossa reunião, podemos
seguir os nossos caminhos.
— Podemos — concordou Montolio. — Se ambos assim decidirmos.
— Devo considerar-me… Teu prisioneiro… De novo? — perguntou Drizzt com uma ponta de
sarcasmo na voz.
A sinceridade da gargalhada de Montolio que se seguiu fez aparecer um sorriso na cara do drow,
apesar do seu cinismo.
— Meu prisioneiro? — perguntou o velho com ar incrédulo. — Não, não, creio que esse assunto
ficou resolvido. Mas mataste uns quantos esbirros de Graul, hoje; um feito que o rei dos orcs há-de
querer ver vingado. Deixa-me oferecer-te um quarto no meu castelo. Os orcs não se aproximarão de
lá — mostrou um sorriso confiante e inclinou-se para Drizzt, para sussurrar: — Não se aproximarão
de mim, percebes? — E apontou para os seus estranhos olhos. — Acreditam que tenho magia má, por
causa da minha… — e debateu-se para encontrar a palavra que melhor transmitiria o pensamento,
mas a linguagem gutural era limitada e depressa se viu frustrado.
Drizzt reviu o decurso da batalha, e depois ficou de boca aberta, inegavelmente espantado, quando
percebeu a verdade do que estava ali à vista. O velho era mesmo cego! A coruja, a esvoaçar por
cima dos inimigos e a piar, era quem lhe dirigia os tiros. Drizzt olhou em volta para o gigante e para
os orcs mortos e não conseguia fechar a boca de espanto; o velho não falhara um tiro.
— Vens? — perguntou Montolio. — Gostaria de obter… — teve mais uma vez de procurar o
termo certo — Os propósitos… porque um elfo havia de viver um Inverno inteiro numa gruta com
Bluster, o urso.
Montolio irritou-se com a sua própria incapacidade para manter uma conversa com o drow, mas,
pelo contexto, Drizzt conseguia perceber bastante bem o que o velho queria dizer, descobrindo até o
significado de termos que não lhe eram familiares, como «inverno» e «urso».
— O rei dos orcs, Graul, tem mais mil guerreiros para enviar contra ti — anunciou Montolio,
sentindo que o drow estava com dificuldade em avaliar a sua proposta.
— Não irei contigo — declarou Drizzt por fim. O drow queria, na verdade, ir, e queria saber mais
coisas sobre este homem notável, mas demasiadas tragédias se tinham abatido sobre aqueles que se
tinham cruzado no seu caminho.
Um rugido em tom baixo de Guenhwyvar disse-lhe que a pantera não concordava com a decisão.
— Eu só trago sarilhos — tentou Drizzt explicar ao velho, à pantera e a si mesmo. — Farias
melhor, Montolio DeBrouchee, em manter-te longe de mim.
— Isso é uma ameaça?
— Um aviso… — respondeu Drizzt. — Se me receberes, se permitires sequer que esteja perto de
ti, então estarás condenado, como aconteceu com os agricultores da aldeia.
Montolio aguçou o ouvido perante a menção da distante aldeia de agricultores. Ouvira dizer que
uma família de Maldobar tinha sido brutalmente assassinada e que uma ranger, Dove Falconhand,
tinha sido chamada para ajudar.
— Não receio a desgraça — disse Montolio, forçando um sorriso. — Já passei por muitas… lutas,
Drizzt Do’Urden. Combati em dezenas de guerras sangrentas e passei um Inverno inteiro preso numa
encosta com uma perna partida. Matei um gigante apenas com um punhal e… fiz amizade com todos
os animais até à distância de cinco mil passos em qualquer direcção. Não receies por mim — e de
novo fez aquele sorriso matreiro, sabedor. — Mas também… — disse lentamente —, não é por mim
que receias.
Drizzt sentiu-se confundido e um pouco insultado.
— Receias por ti mesmo — prosseguiu Montolio, sem se deixar abalar. — Auto-comiseração?
Isso é uma coisa que não se adequa a alguém capaz das tuas proezas. Deita isso para trás e anda
comigo.
Se Montolio tivesse visto o esgar de desdém de Drizzt, teria adivinhado a resposta que vinha lá.
Mas Guenhwyvar viu-o, e a pantera embateu com força contra a perna do drow.
Pela reacção de Guenhwyvar, Montolio percebeu as intenções de Drizzt.
— O gato quer que venhas — declarou. — Será melhor do que uma gruta — prometeu. — E
melhor comida do que peixe meio cru.
Drizzt olhou para Guenhwyvar e a pantera voltou a dar-lhe um encontrão na perna, desta vez
acompanhando o gesto com um rugido mais forte e mais insistente.
Drizzt manteve-se impassível, relembrando a si mesmo vivamente as imagens de carnificina na
quinta, lá longe.
— Não irei — disse firmemente.
— Nesse caso, terei de te considerar inimigo, e meu prisioneiro! — rugiu Montolio, voltando a
pôr o arco em posição. — Desta vez, o teu gato não te ajudará, Drizzt Do’Urden! — Montolio
aproximou-se mais e murmurou: — O gato concorda comigo.
Era demasiado para Drizzt. Sabia que o velho não dispararia contra ele, mas o charme divertido
de Montolio depressa fez cair as defesas mentais do drow, apesar de consideráveis.
Aquilo que Montolio tinha descrito como um castelo revelou-se daí a pouco como uma série de
grutas de madeira construídas em volta das raízes de grandes árvores muito próximas umas das
outras. Paus entrecruzados aumentavam a protecção e ligavam de certa forma os abrigos uns aos
outros, e uma parede baixa de pedras empilhadas circundava todo o complexo. À medida que Drizzt
se aproximava do local, reparou em várias pontes de madeira e cordas, estendidas de umas árvores
para outras a diversas alturas, com escadas de corda para lhes aceder desde o chão e com arcos
montados firmemente a intervalos bastante regulares.
Mas o drow não se queixou por o castelo ser de madeira e terra. Passara três décadas em
Menzoberranzan a viver em maravilhosos castelos de pedra e rodeado por estruturas arquitectónicas
muito mais impressionantes, mas nenhuma delas parecia mais acolhedora do que o lar de Montolio.
Os pássaros chilreavam para dar as boas vindas quando o velho ranger se aproximava. Esquilos, e
até um guaxinim, saltitavam excitadamente por entre os ramos das árvores para se aproximarem dele
— embora mantivessem a distância quando reparavam que uma grande pantera acompanhava
Montolio.
— Tenho muitos aposentos — explicou Montolio. — Muitos cobertores e muita comida.
Montolio odiava a limitada língua dos duendes. Tinha tantas coisas que queria dizer ao drow, e
tantas que queria saber dele! Isso parecia impossível, para além de claramente entediante, numa
língua tão básica e tão negativa por natureza, que não fora concebida para pensamentos ou conceitos
complexos. A língua dos duendes tinha mais de uma centena de palavras para «matar» e para «ódio»,
mas nenhuma para emoções mais elevadas, como compaixão. A palavra duende para amizade podia
ser traduzida de forma a significar uma aliança militar ou servidão perante um duende mais forte, e
nenhuma dessas definições se enquadrava com as intenções de Montolio relativamente ao elfo negro
solitário.
A primeira tarefa era, portanto, decidiu o ranger, ensinar ao elfo a língua comum.
— Não podemos falar… — mas não havia palavra para «adequadamente» na língua dos duendes,
e por isso Montolio teve de improvisar — … bem… nesta língua — explicou a Drizzt —, mas há-de
servir enquanto te ensino a língua dos humanos; se desejares aprendê-la.
Drizzt manteve-se cauteloso na sua aceitação. Quando se afastara da aldeia dos agricultores,
decidira que o destino da sua vida seria tornar-se eremita e, até agora, saíra-se bastante bem —
melhor até do que esperara. A oferta era, porém, tentadora, e a um nível prático Drizzt sabia que
conhecer a língua comum da região poderia ajudá-lo a evitar sarilhos. O sorriso de Montolio quase
fez Drizzt sorrir também quando aceitou a oferta.
Hooter, a coruja, não parecia, contudo, tão satisfeita. Com o drow — ou, mais especificamente,
com a pantera do drow — por ali, a coruja passaria menos tempo no conforto das ramagens mais
baixas das árvores.
— Meu primo, Montolio DeBrouchee acolheu o drow! — gritou um elfo excitadamente para
Kellindil. Todo o grupo tinha andado no exterior à procura do rasto de Drizzt desde o início do
Inverno. Com o drow desaparecido do Desfiladeiro do Orc Morto, os elfos, e especialmente
Kellindil, receavam que tivesse havido sarilhos, e que o drow talvez se tivesse aliado a Graul e aos
seus esbirros.
Kellindil pôs-se de pé num salto, quase incapaz de aceitar as espantosas notícias. Sabia de
Montolio, o lendário, ainda que um pouco excêntrico, ranger. E sabia, também, que Montolio, com
todos os seus contactos animais, era capaz de avaliar os intrusos com bastante exactidão.
— Quando? Como? — perguntou Kellindil, quase sem saber por onde começar. Se o drow o tinha
confundido ao longo dos meses anteriores, agora deixava-o verdadeiramente boquiaberto.
— Há uma semana — respondeu o outro elfo. — Não sei como se deu, mas o drow anda agora
pelos domínios de Montolio, abertamente e com a pantera ao lado.
— E Montolio está…
O outro elfo interrompeu-o, percebendo para onde ia a preocupação de Kellindil.
— Montolio está ileso e em controlo da situação — assegurou a Kellindil. — Recebeu o drow de
livre vontade, ao que parece, e agora parece até que o velho ranger está a ensinar ao drow a língua
comum.
— Espantoso — foi tudo o que Kellindil conseguiu responder.
— Poderíamos montar um posto de vigia sobre o refúgio de Montolio — propôs o outro elfo. —
Se receias pela segurança do velho ranger…
— Não — respondeu Kellindil. — Não. O drow mostrou mais uma vez não ser inimigo. Suspeitei
das suas intenções amigáveis desde que o encontrei perto de Maldobar. Agora estou satisfeito.
Prossigamos com os nossos assuntos e deixemos o drow e o ranger tratarem dos deles.
O outro elfo acenou em concordância, mas uma criatura diminuta que estava à escuta do lado de
fora da tenda de Kellindil não estava tão certa disso.
Tephanis vinha ao acampamento dos elfos todas as noites, para lhes roubar comida e outras coisas
que o pudessem deixar mais confortável. O duende veloz ouvira falar do elfo negro uns dias antes,
quando os elfos tinham recomeçado a sua busca por Drizzt, e dera-se a grandes trabalhos para
escutar todas as conversas deles desde então, curioso acerca do paradeiro daquele que tinha
destruído Ulgulu e Kempfana.
Tephanis sacudiu a cabeça com as orelhas pontiagudas violentamente.
— Maldito-o-dia-em-que-aquele-regressou! — murmurou, soando vagamente como uma vespa
excitada. Depois, partiu a grande velocidade, com os pequenos pés mal tocando no chão. Tephanis
fizera outra amizade nos meses desde que Ulgulu fora derrotado; outro poderoso aliado que não
queria perder.
Daí a poucos minutos, encontrou Caroak, o grande lobo de pêlo prateado, no pico elevado a que
chamavam lar.
— O-drow-está-com-o-ranger — disparou Tephanis. E o amigo canino pareceu ter
compreendido. — Cuidado-com-este, digo-te-eu! Foi-ele-que-matou-os-meus-anteriores-senhores!
Mortos!
Caroak olhou para baixo, para a vasta extensão da montanha onde se encontrava o refúgio de
Montolio. O lobo do Inverno conhecia bem aquele lugar, e sabia também que devia manter-se
afastado dali. Montolio DeBrouchee era amigo de todo o tipo de animais, mas os lobos do Inverno
eram mais monstros do que animais, e não eram amigos de rangers.
Tephanis olhou igualmente para os domínios de Montolio, preocupado com a ideia de também
poder vir a ter de enfrentar o ardiloso drow. A simples ideia de encontrar mais uma vez aquele drow
fazia dores de cabeça ao pequeno duende (e a ferida do embate com o arado também nunca
desaparecera completamente).

Enquanto o Inverno se transformava em Primavera, ao longo das semanas seguintes, também a


relação entre Drizzt e Montolio se ia transformando em amizade. A língua comum da região não era
muito diferente da língua dos duendes, e era mais uma mudança de inflexão do que uma alteração
completa de palavras, e Drizzt apanhou o jeito rapidamente, aprendendo até a ler e a escrever.
Montolio mostrou-se um excelente professor e, à terceira semana, falava com Drizzt exclusivamente
na língua comum e resmungava impaciente cada vez que Drizzt voltava a usar a língua dos duendes
para se fazer entender.
Para Drizzt, estes eram tempos divertidos, tempos de viver sem preocupações e partilhando
prazeres. A colecção de livros de Montolio era extensa, e o drow viu-se embrenhado nas aventuras
da imaginação, nas lendas de dragões e nos relatos de batalhas épicas. Quaisquer dúvidas que Drizzt
pudesse ter tinham desaparecido havia muito, bem como as hesitações acerca de Montolio. O abrigo
no meio das árvores era, de facto, um castelo, e o velho ranger um anfitrião como nunca Drizzt
encontrara.
Drizzt aprendeu muitas outras coisas com Montolio durante essas primeiras semanas; lições
práticas que o ajudariam para o resto da vida. Montolio confirmara as suspeitas de Drizzt acerca das
mudanças climáticas das estações do ano, e até o ensinou a prever o tempo dia a dia, ao observar os
animais, o céu e os ventos.
Também nisso Drizzt se mostrava rápido a aprender, tal como Montolio esperara. Montolio nunca
teria acreditado em tal coisa até a ver pessoalmente, mas este drow invulgar possuía os modos de um
elfo da superfície, e talvez mesmo, até, o coração de um ranger.
— Como acalmaste o urso? — perguntou Montolio, um dia. Era uma pergunta que andava a
inquietá-lo desde o primeiro dia em que soubera que Drizzt e Bluster estavam a partilhar uma gruta.
Drizzt não sabia mesmo como responder, pois ainda não compreendera o que se passara nesse
encontro.
— Da mesma maneira como tu acalmaste Guenhwyvar quando nos conhecemos — acabou por
dizer.
O sorriso de Montolio disse-lhe que o velho compreendia melhor do que ele.
— Coração de ranger… — murmurou Montolio enquanto virava costas.
Com o seu ouvido apurado, Drizzt ouviu o comentário, mas não compreendeu completamente.
As lições de Drizzt avançavam cada vez mais rapidamente à medida que os dias passavam. Agora,
Montolio concentrava-se na vida que os rodeava, nos animais e nas plantas. Mostrou a Drizzt como
colher alimentos e como compreender as emoções dos animais simplesmente observando os
movimentos destes. O primeiro teste real veio pouco depois, quando Drizzt, afastando as ramagens
exteriores de uma silva carregada de bagas, encontrou a entrada para uma pequena toca e foi
imediatamente confrontado por um texugo zangado.
Hooter, pairando no céu por cima do local, lançou uma série de pios para alertar Montolio, e o
primeiro instinto do ranger foi ir ajudar o amigo drow. Os texugos eram possivelmente as mais
ferozes criaturas da região, até mais do que os orcs, e mais rápidos a irritar-se do que Bluster, o
urso, e sempre dispostos a tomar a ofensiva contra qualquer oponente, independentemente do seu
tamanho. Montolio conteve-se, porém, escutando Hooter a descrever continuamente a cena.
O primeiro instinto de Drizzt foi levar a mão ao punhal. O texugo recuou e mostrou os dentes e as
garras, chiando e soprando mil guinchos de ameaças.
Drizzt descontraiu-se e voltou mesmo a embainhar o punhal. De súbito, considerou o encontro do
ponto de vista do texugo; soube que o animal se sentia terrivelmente ameaçado. De algum modo,
Drizzt percebeu depois até que o texugo era uma fêmea que tinha escolhido aquela toca como local
para tratar da sua ninhada de crias, que estava para chegar.
O texugo parecia confundido pelos gestos deliberados do drow. Quase no final da gestação, a
mãe-texugo não queria lutar, e enquanto Drizzt voltava a colocar cuidadosamente as ramagens no seu
lugar para esconderem a toca, voltou a acalmar-se, farejou o ar para que depois pudesse recordar-se
do odor do elfo negro, e regressou para o fundo da toca.
Quando Drizzt se virou, deu com Montolio a sorrir e a aplaudir.
— Até um ranger teria dificuldade em acalmar um texugo zangado — explicou o velho ranger.
— Era uma fêmea e estava grávida — respondeu Drizzt. — Tinha menos vontade de lutar do que
eu.
— Como sabes tu isso? — perguntou Montolio, embora não duvidasse das percepções do drow.
Drizzt ia começar a responder, mas depois percebeu que não conseguia. Voltou a olhar para as
silvas, e depois para Montolio, impotente.
Montolio soltou uma gargalhada e regressou ao seu trabalho. Ele, que tinha seguido os usos da
deusa Mielikki durante tantos anos, sabia o que se estava a passar, mesmo que Drizzt não soubesse.
— O texugo podia ter-te esgatanhado todo, sabes? — disse o ranger secamente quando Drizzt se
pôs ao seu lado.
— Estava grávida — relembrou-lhe Drizzt — e não era um adversário assim tão grande.
O riso de Montolio troçou dele.
— Não tão grande? — repetiu o ranger. — Acredita em mim, Drizzt, haverias de preferir lutar
contra Bluster a lutar contra uma fêmea de texugo grávida!
Drizzt limitou-se a encolher os ombros, em resposta, sem argumentos para contrariar o homem
mais experiente.
— Julgas mesmo que essa faquinha teria sido defesa contra ela? — perguntou Montolio, querendo
agora levar a discussão numa direcção diferente.
Drizzt olhou para o punhal, o punhal que retirara ao duende veloz. Mais uma vez, não poderia
argumentar: a lâmina era, de facto, minúscula. Riu-se para si mesmo e de si mesmo.
— É tudo o que tenho, infelizmente — respondeu.
— Teremos de tratar disso — prometeu o ranger. E depois não disse mais nada sobre o assunto.
Montolio, apesar de toda a sua calma, conhecia bem os perigos daquela região montanhosa e
selvagem.
O ranger acabara por confiar em Drizzt sem nenhuma reserva.

Montolio chamou Drizzt pouco antes do pôr-do-sol e levou o drow até uma árvore muito larga, no
lado norte do seu castelo. Um grande buraco, quase uma caverna, abria-se na base da árvore,
astuciosamente escondido por arbustos e por um manto colorido de forma a assemelhar-se ao tronco
da árvore. Assim que Montolio afastou o manto, Drizzt percebeu o secretismo.
— Um arsenal? — perguntou, espantado.
— Agradam-te as cimitarras… — respondeu Montolio, lembrando-se da arma que Drizzt tinha
partido contra a pele do gigante das rochas. — Tenho aqui uma boa, também.
Rastejou para dentro do buraco e vasculhou por uns momentos; depois, regressou com uma bela
lâmina recurvada. Drizzt aproximou-se do buraco, para espreitar a maravilhosa exibição de armas,
enquanto o ranger saía. Montolio possuía uma grande variedade de armas, desde punhais
ornamentais a grandes machados e arcos, ligeiros ou pesados, tudo muito bem limpo e tratado
meticulosamente. Encostada à parede traseira do tronco escavado da árvore havia uma grande
variedade de lanças, incluindo uma em metal, com três metros de comprimento e com uma ponta
longa e aguçada, e com outras duas pontas menores saindo para os lados, perto da extremidade.
— Preferes um escudo? Ou talvez uma adaga, para a outra mão? — perguntou Montolio ao drow,
quando este, falando baixo para si próprio com sincera admiração, reapareceu. — Podes ficar com o
que quiseres, excepto o que tiver a coruja embrasonada. Esse escudo, espada e elmo são os meus.
Drizzt hesitou por um momento, tentando imaginar o ranger cego equipado dessa forma para um
combate corpo a corpo.
— Uma espada — disse por fim. — Ou outra cimitarra, se tiveres mais alguma.
Montolio olhou para ele com curiosidade.
— Duas lâminas longas para combater… — notou. — O mais provável seria enredares-te nas
duas, suponho.
— Não é um estilo de combate assim tão invulgar entre os drow — disse Drizzt.
Montolio encolheu os ombros, não duvidando, e voltou a entrar.
— Esta aqui é mais para exibição, receio… — disse quando regressou, trazendo uma cimitarra
fortemente ornamentada. — Podes usá-la, se quiseres, ou levar antes uma espada. Tenho diversas.
Drizzt pegou na cimitarra, para apreciar o peso e o equilíbrio. Era demasiado leve e talvez
também demasiado frágil. O drow decidiu, porém, ficar com ela, pensando que a lâmina recurvada
seria melhor complemento para a sua outra cimitarra do que uma espada direita e desajeitada.
— Cuidarei delas tão bem como tu cuidaste — prometeu Drizzt, compreendendo o quão grande era
a oferta do humano. — E usá-las-ei — acrescentou, sabendo o que Montolio realmente queria ouvir
— apenas quando tiver mesmo de as usar.
— Então, espero que nunca venhas a precisar delas, Drizzt Do’Urden — respondeu Montolio. —
Já vi a paz e já vi a guerra, e posso dizer-te que prefiro muito mais a primeira! Agora, vem, amigo.
Há muitas coisas mais que te quero mostrar.
Drizzt olhou para as cimitarras mais uma vez, e depois enfiou-as nas bainhas do cinturão e seguiu
Montolio.
Com o Verão a aproximar-se rapidamente e com tão agradável e excitante companhia, tanto o
mestre como o seu invulgar discípulo se encontravam de boa disposição, antecipando uma estação de
valiosas lições e de acontecimentos maravilhosos.

Como os seus sorrisos teriam sido bem mais raros, se soubessem que um certo rei orc, irritado com a
perda de dez soldados, dois worgs e um precioso gigante das rochas aliado, tinha os seus olhos
amarelos raiados de sangue assestados naquela região, em busca do drow. O grande orc começava a
interrogar-se se Drizzt teria regressado ao Subescuro, ou se se unira a outro grupo qualquer — talvez
a um dos pequenos bandos de elfos que sabia andarem por aquela região — ou até ao maldito ranger
cego, Montolio. Se o drow ainda estava naquela área, Graul queria encontrá-lo. O chefe orc não
corria riscos; e a simples presença do drow era um risco.
— Bem, já esperei o suficiente — disse Montolio com gravidade, certo dia, ao fim da tarde.
Sacudiu de novo o drow.
— Esperaste? — perguntou Drizzt, sacudindo o sono dos olhos.
— És um guerreiro ou um mago? — prosseguiu Montolio. — Ou ambos? Serás um desses tipos
com múltiplos talentos? Os elfos da superfície são conhecidos por isso.
A expressão de Drizzt revelava confusão.
— Não sou mago — disse, rindo-se.
— Estás a esconder-me coisas, não estás? — desdenhou Montolio, embora o sorriso constante
diminuísse o tom de desafio. Endireitou-se diante do quarto de Drizzt e cruzou os braços, desafiante,
sobre o peito. — Isso não me chega. Acolhi-te e, se és um mago, tenho de saber!
— Porque dizes isso? — perguntou o perplexo drow. — Onde raio foste…
— Foi Hooter que me disse! — disparou Montolio. Drizzt estava realmente confundido. — Na
luta, antes de nos conhecermos — explicou Montolio —, escureceste a área à tua volta e em volta de
alguns orcs. Não negues isso, mago. Hooter contou-me!
— Isso não foi nenhum encantamento de mago — protestou Drizzt, desarmado. — E não sou
nenhum mago.
— Não foi um encantamento? — repetiu Montolio. — Um truque, então? Pois bem… Mostra-me!
— Não é um truque — respondeu Drizzt. — É uma capacidade. Todos os drow, até mesmo os de
menor posição, conseguem criar globos de escuridão; não é uma coisa assim tão difícil.
Montolio considerou esta revelação por um momento. Não tinha nenhuma experiência de lidar com
elfos negros até Drizzt ter entrado na sua vida.
— E que outras dessas capacidades possuis?
— Fogo feérico — respondeu Drizzt. — É uma linha de…
— Conheço essa magia — disse Montolio. — É vulgarmente usada pelos sacerdotes das terras
florestais. E todos os drow conseguem fazer isso, também?
— Não sei — respondeu Drizzt com honestidade. — E também sou… ou era… capaz de levitar.
Só os nobres drow conseguem fazer isso. Receio que esse poder me tenha abandonado, ou que em
breve me abandone. Essa capacidade começou a falhar-me desde que vim para a superfície, tal como
o meu piwafwi, as minhas botas e as minhas cimitarras de fabrico drow me falharam.
— Tenta — propôs Montolio.
Drizzt concentrou-se por um longo momento. Começou a sentir-se a ficar mais leve, e depois
afastou-se do chão. Assim que subiu, porém, o peso regressou e caiu de novo sobre os calcanhares.
Não subira mais de uns dez centímetros.
— Impressionante — murmurou Montolio.
Drizzt limitou-se a rir e a sacudir a cabeleira branca.
— Já posso ir dormir outra vez? — perguntou, virando-se em direcção à esteira onde dormia.
Montolio tinha, no entanto, outras ideias. Viera ali para sondar mais profundamente o seu
companheiro, para descobrir os limites das capacidades de Drizzt, fossem de magia ou outras. Um
novo plano ocorreu ao ranger, mas tinha de o pôr em acção antes que o Sol se pusesse.
— Espera — instou. — Poderás descansar mais logo, depois do pôr-do-sol. Preciso de ti agora, e
das tuas «capacidades». Podes criar um globo de escuridão, ou tens de gastar algum tempo a chamar
o encantamento?
— Apenas uns segundos — respondeu Drizzt.
— Então, pega nas tuas armas e couraça — disse Montolio — e vem comigo. E despacha-te. Não
quero perder a vantagem da luz do dia.
Drizzt encolheu os ombros e vestiu-se, e depois seguiu o ranger até ao limite norte do complexo,
que era uma parte pouco usada dos domínios de Montolio.
Montolio pôs-se de joelhos e puxou Drizzt para baixo, ao seu lado, apontando para um pequeno
buraco de um lado de um monte de turfa.
— Um javali instalou-se aqui — explicou o velho ranger. — Não quero fazer-lhe mal, mas tenho
receio de me aproximar demasiado para estabelecer contacto com ele. Os javalis são, no mínimo,
imprevisíveis.
Passou um longo momento de silêncio. Drizzt interrogou-se se Montolio queria simplesmente
esperar que o javali saísse.
— Vai, avança — incitou o ranger.
Drizzt virou-se para ele, incrédulo, pensando que Montolio esperava que ele avançasse a direito e
saudasse o seu indesejado e imprevisível hóspede.
— Faz isso — prosseguiu o ranger. — Chama o teu globo de escuridão, mesmo em frente do
buraco, se não te importas.
Drizzt compreendeu então, e o seu suspiro de alívio fez Montolio morder o lábio, para esconder
um sorriso revelador. Pouco depois, a área diante do monte de turfa desapareceu na escuridão.
Montolio fez sinal a Drizzt para esperar mais atrás e avançou.
Drizzt ficou tenso, à escuta e a observar. Vários guinchos muito agudos ouviram-se de repente, e
depois Montolio gritou por ajuda. Drizzt saltou e avançou a direito, quase tropeçando na figura
prostrada do amigo.
O velho ranger resmungou e remexeu-se, e não correspondeu a nenhum pedido de silêncio de
Drizzt. Sem ouvir um javali em lado nenhum, Drizzt agachou-se para perceber o que tinha acontecido
ao amigo e estacou quando deu com Montolio encolhido, agarrando-se ao peito.
— Montolio! — quase gritou Drizzt, pensando que o velho ranger estivesse gravemente ferido.
Inclinou-se para falar directamente para a cara do ranger, e depois endireitou-se mais depressa do
que desejava enquanto o escudo de Montolio lhe batia de lado na cabeça.
— Sou eu, Drizzt! — gritou o drow, esfregando a equimose que se começava a desenvolver. Ouviu
Montolio a saltar para a sua frente, e depois ouviu a espada do ranger a ser desembainhada.
— Pois claro que és! — ria-se Montolio.
— Mas então… e o javali?
— Javali? — respondeu Montolio. — Não há javali nenhum, seu drow pateta. Nunca houve. Os
oponentes aqui somos nós dois. Chegou o momento para nos divertirmos um pouco!
Agora, Drizzt compreendia. Montolio manipulara-o, levando-o a usar o globo de escuridão,
apenas para eliminar a vantagem da visão de Drizzt. Montolio estava agora a desafiá-lo em pé de
igualdade.
— Com o lado rombo da espada! — respondeu Drizzt, disposto a entrar no jogo. Como Drizzt
gostara desse tipo de testes de destreza em Menzoberranzan, com Zaknafein!
— Pela tua vida! — retorquiu Montolio com uma gargalhada que lhe vinha das entranhas. O
ranger lançou a espada em arco, e a cimitarra de Drizzt desviou-a inofensivamente para o lado.
Drizzt contra-atacou com dois golpes curtos e rápidos mesmo ao centro, num ataque que teria
derrotado a maioria dos oponentes, mas que não fez mais do que fazer soar duas notas agudas contra
o escudo bem posicionado de Montolio. Certo agora da posição de Drizzt, o ranger carregou para a
frente, com o escudo diante dele.
Drizzt foi empurrado sobre os calcanhares antes de conseguir sair do caminho. A espada de
Montolio voltou a atacar de lado, e Drizzt bloqueou-a. O escudo do velho ranger voltou a bater a
direito, e Drizzt desviou-lhe o impulso, fincando os calcanhares teimosamente.
O ardiloso velho ranger ergueu então o escudo bem alto, desviando uma das lâminas, e retirando
com isso uma boa parte do ímpeto do drow, e depois mandou a espada a assobiar em direcção ao
flanco de Drizzt.
Drizzt pressentiu, de alguma forma, esse ataque. Saltou para trás, nas pontas dos pés, encolheu a
barriga e dobrou-se. Apesar de tudo, ainda sentiu a espada a passar muito perto.
Passou à ofensiva, lançando várias rotinas intricadas e astuciosas de ataque, que acreditava que
poderiam pôr fim à contenda. Montolio, porém, previu cada um dos ataques, porque todos os
esforços do drow foram rechaçados com o habitual som de cimitarras a embater no escudo. O ranger
avançou então e Drizzt ficou sob pressão. Não era novato em combate às cegas, mas Montolio vivia
todas as horas dos seus dias como cego, e funcionava tão bem e com tanta facilidade como a maioria
dos homens com visão perfeita.
Depressa Drizzt percebeu que não conseguiria vencer dentro do globo de escuridão. Pensou em
arrastar o velho ranger para fora do globo, mas depois a situação alterou-se bruscamente, quando a
escuridão se desvaneceu, esgotado o encantamento. Pensando que o jogo estava acabado, Drizzt
recuou uns passos, apalpando o terreno com os pés, em direcção à raiz de uma árvore.
Montolio considerou o seu oponente com curiosidade por um momento, notando a alteração na
atitude de combate; depois, avançou com força, e por baixo.
Drizzt considerou-se muito inteligente quando mergulhou de cabeça para o ranger, com a intenção
de rebolar e voltar a levantar-se por trás dele, para depois o atacar de um dos lados, enquanto o
confuso humano o procurasse, desorientado.
No entanto, não correu tudo como Drizzt esperava. O escudo de Montolio foi contra o rosto do
drow quando ia a meio caminho, e fê-lo uivar de dor e cair pesadamente. Quando finalmente
conseguiu sacudir a tontura, deu-se conta de que Montolio estava confortavelmente sentado nas suas
costas, com a espada pousada entre os seus ombros.
— Como… — começou Drizzt a perguntar.
A voz de Montolio era tão seca como nunca a ouvira.
— Subestimaste-me, drow! Consideraste-me cego e inofensivo. Não voltes a fazer isso!
Drizzt interrogou-se sinceramente, por um segundo, se Montolio iria matá-lo, tão irada era a voz
do ranger. Sabia que a sua condescendência o magoara, e percebeu então que Montolio DeBrouchee,
tão confiante e competente, era capaz de se aguentar perfeitamente. Pela primeira vez desde que
conhecera o velho ranger, Drizzt considerou o quanto deveria ter sido doloroso para o velho perder
a visão. Que mais, interrogou-se o drow, teria Montolio perdido?
— Foste tão óbvio — disse Montolio após uma breve pausa. — Eu a carregar em baixa, como
estava…
— Óbvio… Só se sentiste que o encantamento estava a terminar — respondeu Drizzt,
interrogando-se sobre até que ponto os olhos do ranger estariam verdadeiramente cegos. — Nunca
teria tentado a manobra na escuridão, sem os meus olhos para me guiarem; mas como podia um cego
saber que o encantamento tinha já desaparecido?
— Tu próprio mo disseste! — protestou Montolio, continuando a não dar nenhuma indicação de
querer sair de cima das costas de Drizzt. — Com a tua atitude! O súbito movimento dos teus pés,
demasiado ligeiro para ser feito em plena escuridão, e o teu suspiro, Drow! Esse suspiro traiu o teu
alívio, porque soubeste nesse momento que não serias capaz de me vencer sem a ajuda da tua visão.
Montolio levantou-se, mas o drow manteve-se deitado, digerindo aquelas revelações. Percebeu
como sabia pouco acerca deste companheiro, o quanto tomara por garantido muito do que dizia
respeito a Montolio.
— Vem daí — disse Montolio. — A primeira lição desta noite terminou. Foi valiosa, mas há
outras coisas que temos de fazer.
— Disseste que podia ir dormir — lembrou-lhe Drizzt.
— Porque pensei que fosses mais competente — respondeu imediatamente Montolio, lançando um
sorriso desdenhoso para o drow caído.

Enquanto Drizzt absorvia com avidez as muitas lições que Montolio lhe ia dando, nessa noite e em
muitas que se seguiram, o velho ranger reunia as suas próprias informações acerca do drow. O
trabalho de ambos concentrava-se sobretudo no presente, com Montolio a ensinar a Drizzt acerca do
mundo que o rodeava e como sobreviver nele. Invariavelmente, um ou outro, mas normalmente
Drizzt, deixava escapar um comentário qualquer acerca do passado. Tornou-se quase um jogo entre
os dois, mencionar um qualquer acontecimento distante no passado, mais para medir depois a
expressão de espanto do outro, do que para ilustrar algum ponto relevante. Montolio tinha algumas
histórias interessantes acerca dos seus muitos anos na estrada; histórias de batalhas aguerridas com
duendes e partidas divertidas que os geralmente muito sérios rangers pregavam uns aos outros.
Drizzt mantinha-se reservado acerca do seu passado, mas as suas histórias acerca de
Menzoberranzan, da sinistra e insidiosa Academia e das guerras selváticas que lançavam umas
famílias contra outras iam muito para além do que Montolio alguma vez poderia imaginar.
Por muito interessantes que fossem as histórias do drow, contudo, Montolio sabia que Drizzt
estava a conter-se, que trazia consigo um grande fardo sobre os ombros. O ranger não pressionou,
inicialmente. Manteve-se paciente, satisfeito por ver que ele e Drizzt partilhavam alguns princípios e
— como acabara por saber por meio das drásticas melhorias das capacidades do drow como ranger
— uma maneira semelhante de ver o mundo.
Uma noite, sob a luz prateada da Lua, Drizzt e Montolio descansavam recostados em cadeiras de
madeira que o ranger tinha construído lá bem no alto dos ramos de uma árvore. O brilho da Lua,
mergulhando e reaparecendo por detrás de nuvens soltas que passavam com rapidez, encantava o
drow.
Montolio não podia ver a Lua, evidentemente, mas o velho ranger, com Guenhwyvar
confortavelmente deitada por cima do seu colo, não estava a apreciar menos a noite fresca. Passava a
mão, distraidamente, pela pelagem espessa de Guenhwyvar, que lhe cobria o pescoço musculoso, e
escutava os muitos sons que a brisa trazia, o tagarelar de mil criaturas que o drow nem sequer
notava, embora o seu ouvido fosse mais apurado do que o de Montolio. O velho ranger ria-se de vez
em quando; uma vez, porque ouviu um rato do campo a guinchar iradamente contra uma coruja —
provavelmente, Hooter — por esta lhe interromper a refeição e o forçar a fugir para a toca.
Olhando para o ranger e para Guenhwyvar, tão confortáveis e aceitando-se mutuamente, Drizzt
sentiu a dor da amizade e do remorso.
— Talvez nunca devesse ter vindo para aqui — murmurou, voltando a olhar para a Lua.
— Porquê? — perguntou Montolio serenamente. — Não te agrada a minha comida? — o sorriso
do velho desarmou Drizzt, enquanto este se virava de novo para ele, sombrio.
— Queria dizer para a superfície — explicou Drizzt, conseguindo sorrir, apesar da sua
melancolia. — Por vezes, penso que a minha decisão foi um acto de egoísmo.
— A sobrevivência costuma ser assim — respondeu Montolio. — Eu próprio me senti assim
algumas vezes. Certa vez, fui forçado a enterrar a minha espada no coração de um homem. A dureza
do mundo traz consigo grandes remorsos, mas felizmente esse é um lamento passageiro, e certamente
não é coisa que se leve para o campo de batalha.
— Como eu desejaria que passasse… — respondeu Drizzt, mais para si mesmo do que para
Montolio.
Mas essa resposta tocou fundo em Montolio. Quanto mais ele e Drizzt se tinham tornado próximos,
mais o ranger partilhava o fardo desconhecido do drow. Drizzt era ainda jovem, pelos padrões
drow, mas já conhecia muito do mundo e tinha mais experiência de combate do que a maioria dos
soldados profissionais. Era inegável que alguém com a herança negra de Drizzt haveria sempre de
encontrar barreiras num mundo da superfície que não o aceitaria. Pelas estimativas de Montolio,
porém, Drizzt deveria ser capaz de ultrapassar essas barreiras e de viver uma vida longa e próspera,
dados os seus consideráveis talentos. O que seria, interrogava-se Montolio, que tanto pesava ao elfo?
Drizzt sofria mais do que sorria, e castigava-se mais do que deveria.
— Esse teu lamento é sincero? — perguntou-lhe Montolio. — A maioria deles não costuma ser,
sabes? A maioria dos fardos auto-impostos fundam-se em percepções erradas. Nós… pelo menos
nós, os de carácter sincero… julgamo-nos sempre de acordo com padrões mais severos do que
aqueles que esperamos que os outros sigam. É uma maldição, suponho, ou uma bênção, dependendo
do ponto de vista de cada um — virou o olhar cego na direcção de Drizzt: — Aceita isso como uma
bênção, meu amigo; como um chamamento interior que te leva a esforçares-te por alcançar o
inatingível.
— É uma bênção frustrante — respondeu Drizzt calmamente.
— Só se não parares para considerar os avanços que esse chamamento te trouxe — respondeu
rapidamente Montolio, como se já esperasse aquelas palavras do drow. — Aqueles que aspiram a
menos, conseguem menos. Disso não se pode duvidar. É melhor, creio, tentar agarrar as estrelas do
que ficar sentado desanimado por se saber que não se consegue agarrá-las — lançou a Drizzt o seu
típico sorriso amargo. — Ao menos, aquele que tenta agarrá-las sempre faz um bom exercício,
consegue uma boa vista e, quem sabe, talvez ainda apanhe uma maçã de um ramo baixo, para
compensar o esforço.
— E talvez também alguma flecha rasteira disparada por algum assaltante escondido — retorquiu
Drizzt com amargura.
Montolio virou a cabeça de novo, num sinal de impotência perante a corrente interminável de
pessimismo de Drizzt. Magoava-o profundamente ver o drow de bom coração tão desanimado.
— Pode ser, de facto — disse Montolio, um pouco mais bruscamente do que pretendia. — Mas a
perda da vida só é grande para aqueles que se arriscam a vivê-la! Que venha a flecha rasteira e
apanhe o visionário, digo-te eu. A sua morte não seria assim tão trágica!
Drizzt não podia negar a lógica, nem o consolo que o velho ranger lhe dava. Ao longo das
semanas, as filosofias simples de Montolio e a sua maneira de ver o mundo — de forma pragmática,
e no entanto cheia de exuberância jovial — tinham deixado Drizzt mais à vontade do que alguma vez
se sentira desde os seus primeiros dias de treino no ginásio de Zaknafein. Mas Drizzt também não
podia ignorar o tempo inegavelmente curto que esse conforto teria para viver. As palavras podiam
acalmar, mas não conseguiam apagar as recordações do passado, as vozes distantes do falecido
Zaknafein, do falecido Clacker, dos agricultores mortos. Um único eco mental da palavra «drizzit»
vencia facilmente muitas horas de conselhos bem-intencionados de Montolio.
— Chega desta conversa fiada — prosseguiu Montolio, parecendo perturbado. — Chamo-te
amigo, Drizzt Do’Urden, e espero que me chames assim também. Que espécie de amigo poderei eu
ser contra esse fardo que tanto sobrecarrega os teus ombros, a não ser que saiba mais acerca dele?
Sou teu amigo, ou não sou? A decisão é tua, mas se não sou, não vejo propósito em partilhar contigo
noites maravilhosas como esta ao teu lado. Conta-me, Drizzt, ou vai-te da minha casa!
Drizzt mal conseguia acreditar que Montolio, normalmente tão paciente e descontraído, o tivesse
posto tão entre a espada e a parede. A primeira reacção do drow foi fechar-se, construir uma parede
de raiva perante as presunções do velho ranger e agarrar-se àquilo que considerava pessoal. À
medida que os momentos iam passando, e Drizzt ultrapassava a surpresa inicial e se dava ao trabalho
de analisar melhor a declaração de Montolio, acabou por começar a perceber uma verdade básica
que desculpava essas presunções: ele e Montolio tinham-se tornado, de facto, amigos, sobretudo
devido aos esforços do ranger.
Montolio queria partilhar o passado de Drizzt, para que pudesse assim compreender e consolar o
seu novo amigo.
— Conheces Menzoberranzan, a cidade onde nasci, a cidade dos do meu sangue? — perguntou
Drizzt suavemente. Até dizer aquele nome lhe doía. — E sabes dos usos da minha gente, dos éditos
da Rainha Aranha?
A voz de Montolio era sombria quando respondeu:
— Fala-me disso, peço-te.
Drizzt assentiu com a cabeça — Montolio sentiu o movimento, embora não o pudesse ver — e
descontraiu-se, encostado à árvore. Olhou para a Lua, mas na verdade estava a olhar para lá dela. A
mente do drow vagueou de regresso às suas aventuras, de regresso ao caminho para Menzoberranzan,
para a Academia, e para a Casa Do’Urden. Manteve os pensamentos aí, por um momento, pairando
sobre as complexidades da vida familiar dos drow e sobre a simplicidade bem-vinda dos seus
tempos de treino com Zaknafein.
Montolio aguardou pacientemente, calculando que Drizzt estaria à procura de um ponto por onde
começar. Do que descobrira por meio dos comentários passageiros de Drizzt, a vida do drow fora
cheia de aventuras e de momentos turbulentos, e Montolio sabia que não seria fácil para ele, com o
seu domínio ainda limitado da língua comum, contar com exactidão tudo isso. Além disso, dados os
fardos, a culpa e os desgostos que o drow obviamente carregava consigo, Montolio suspeitava que
ele pudesse hesitar.
— Nasci num dia importante na história da minha família — começou Drizzt. — Nesse dia, a Casa
Do’Urden eliminou a Casa DeVir.
— Eliminou?
— Massacrou — explicou Drizzt. Os olhos cegos de Montolio nada revelavam, mas a expressão
do ranger era claramente de repulsa, tal como Drizzt esperara. Drizzt queria que o seu companheiro
percebesse as baixezas horríveis da sociedade drow, por isso acrescentou vincadamente: — E nesse
dia, também, o meu irmão Dinin trespassou com a sua espada o coração do nosso outro irmão,
Nalfein.
Um arrepio percorreu a espinha de Montolio, e o velho sacudiu a cabeça. Percebeu que estava
apenas a começar a compreender os fardos que Drizzt carregava consigo.
— São os costumes dos drow — disse Drizzt calmamente, com naturalidade, tentando transmitir a
atitude descontraída dos elfos negros relativamente ao assassinato. — Há uma estrutura rígida de
posições em Menzoberranzan. Para se subir nela, para se atingir uma posição mais elevada, seja
como indivíduo, seja como família, simplesmente eliminam-se os que estão mais acima.
Um ligeiro tremor na voz traiu a raiva de Drizzt. Montolio compreendeu claramente que o drow
não aceitava essas práticas malévolas, e nunca aceitara.
Drizzt prosseguiu com a sua história, contando-a completamente e com exactidão, pelo menos
relativamente aos mais de quarenta anos que passara no Subescuro. Contou sobre os seus dias sob a
tutela estrita da sua irmã Vierna, a limpar a capela da casa interminavelmente e a aprender a usar os
poderes inatos e o seu lugar na sociedade drow. Drizzt passou bastante tempo a explicar essa
peculiar estrutura social a Montolio; as hierarquias baseadas em posições estritas, e a hipocrisia da
«lei» drow, uma cruel fachada a proteger tenuemente a cidade do caos absoluto. O ranger estremecia
enquanto ouvia contar sobre as guerras de famílias. Eram conflitos brutais que não permitiam a
sobrevivência de nenhum nobre, nem sequer crianças. Montolio estremeceu ainda mais quando o
drow lhe falou da «justiça» drow, da destruição imposta à Casa que falhasse na tentativa de
erradicar outra família.
A história era menos sombria quando Drizzt começou a falar de Zaknafein, seu pai e melhor amigo.
Evidentemente, as recordações felizes do pai eram apenas um breve alívio, um prelúdio dos horrores
da queda de Zaknafein.
— A minha mãe matou o meu pai — explicou Drizzt sobriamente, com a dor profunda bem
evidente —, sacrificou-o a Lolth pelos meus crimes, e depois animou o corpo dele e mandou-o à
minha procura para me matar, para me punir por ter traído a família e a Rainha Aranha.
Demorou algum tempo para recomeçar, mas quando o fez falou de novo com sinceridade,
revelando mesmo as suas fraquezas nos seus tempos de isolamento no Subescuro. — Receei ter-me
perdido e aos meus princípios, ter cedido a um qualquer monstro instintivo, selvagem — disse
Drizzt, à beira do desespero. Mas depois, a onda emocional que tinha sido toda a sua existência
voltou a erguer-se, e um sorriso encontrou caminho para a cara do drow, enquanto contava os tempos
passados com Belwar, o muito honrado guarda-tocas svirfnebli, e com Clacker, o pech que tinha sido
polimorfado num horror de garras. Como era de esperar, o sorriso foi de pouca duração, pois a
história de Drizzt acabaria por levá-lo ao momento em que Clacker tombara às mãos do monstro não-
vivo da Matrona Malice. Mais um amigo que morrera por sua causa.
De forma apropriada, quando chegou à parte da história em que saía do Subescuro, o alvorecer
espreitou por detrás das montanhas de leste. Agora, Drizzt escolhia as palavras com mais cuidado,
ainda não pronto para divulgar a tragédia da família de agricultores, por receio de que Montolio o
julgasse e o culpasse, destruindo o elo recente que os unia. Racionalmente, Drizzt conseguia lembrar
a si mesmo que não matara os agricultores, e que até vingara as suas mortes, mas a culpa raramente
era uma emoção racional, e não podia simplesmente encontrar as palavras certas — ainda não.
Montolio, velho e sábio e com batedores animais por toda a região, sabia que Drizzt estava a
esconder alguma coisa. Quando se tinham encontrado pela primeira vez, o drow mencionara uma
família de agricultores morta, e Montolio ouvira falar de uma família massacrada na aldeia de
Maldobar. Montolio não acreditava nem por um segundo que Drizzt pudesse tê-lo feito, mas
suspeitou de que o drow estava de alguma maneira envolvido no caso. Mas não pressionou o amigo.
Drizzt tinha sido mais honesto, e mais completo, do que esperara, e o ranger estava confiante em que
o drow acabaria por colmatar as lacunas, a seu tempo.
— É uma boa história — disse por fim Montolio. — Passaste por mais em algumas décadas do
que a maioria dos elfos alguma vez passarão em trezentos anos. Mas as cicatrizes são poucas, e hão-
de sarar.
Drizzt não estava tão certo assim disso, e lançou-lhe um olhar lamentoso; Montolio só pôde
oferecer em troca uma palmadinha no ombro, enquanto se levantava para ir para a cama.

Drizzt ainda estava a dormir quando Montolio acordou Hooter e atou uma nota espessa a uma das
pernas da coruja. Hooter não estava muito agradada com as instruções do ranger; a viagem podia
durar uma semana, tempo valioso e aproveitável nesta altura, no auge da estação de caça aos ratos e
de acasalamento. Apesar de todos os pios em protesto, no entanto, a coruja não desobedeceria.
Hooter sacudiu as penas, apanhou o primeiro golpe de vento e deslizou sem esforço por sobre a
colina coberta de neve até ao desfiladeiro que a levaria até Maldobar — e para lá dela, até
Sundabar, se fosse preciso. Uma certa ranger de não pouca fama, irmã da Senhora de Silverymoon,
ainda andava pela região, conforme Montolio sabia por intermédio dos seus contactos animais — e
encarregara Hooter de a procurar.

— Mas-isto-nunca-acabará? — disse para consigo, num queixume, o duende veloz, enquanto via o
humano possante a atravessar o trilho. — Primeiro, o-incómodo-drow, e-agora-este-bruto! Nunca-
mais-me-verei-livre-destes-causadores-de-sarilhos?
Tephanis bateu na cabeça e com os pés no chão tão rapidamente que abriu um pequeno buraco por
onde se ia enfiando.
Lá em baixo, no trilho, o grande cão amarelo marcado de cicatrizes ladrava e arreganhava os
dentes, e Tephanis, percebendo que tinha feito demasiado barulho, correu num semi-circulo largo,
atravessando o trilho muito atrás do viajante e surgindo do outro lado. O cão amarelo, ainda a olhar
na direcção oposta, inclinou a cabeça e parou, confuso.
Drizzt e Montolio não disseram mais nada sobre a história do drow ao longo dos dias seguintes.
Drizzt remoía dolorosamente as recordações reacendidas e Montolio dava-lhe, com muito tacto, o
espaço de que precisava. Tratavam dos seus assuntos do dia-a-dia metodicamente, mais afastados, e
com menos entusiasmo, mas a distância era uma coisa passageira, e ambos sabiam disso.
Gradualmente, ambos se foram aproximando, deixando Drizzt com esperanças de ter encontrado
um amigo tão verdadeiro como Belwar, ou mesmo Zaknafein. Uma manhã, porém, o drow foi
acordado por uma voz que reconheceu demasiado bem, e soube que os seus tempos com Montolio
tinham chegado a um final clamoroso.
Rastejou para a parede de madeira que protegia a sua gruta escavada e espreitou.
— Elfo drow, Mooshie — estava Roddy McGristle a dizer, segurando uma cimitarra partida para
o velho ranger ver. O homem rude das montanhas, parecendo ainda maior devido às muitas camadas
de peles que vestia, estava sentado em cima de um pequeno, mas musculoso cavalo, junto à parede de
pedra que rodeava o domínio de Montolio. — Viste-o?
— Se o vi? — respondeu o ranger sarcasticamente, piscando exageradamente um olho leitoso.
Roddy não achou piada.
— Sabes bem o que quero dizer! — rosnou. — Já viste mais do que todos nós juntos, por isso não
me venhas fazer-te de tonto!
O cão de Roddy, mostrando uma feia cicatriz onde Drizzt o ferira, sentiu um odor familiar nesse
momento e começou a farejar excitadamente e a andar para trás e para diante ao longo dos caminhos
do complexo.
Drizzt mantinha-se agachado, em prontidão, com uma cimitarra numa mão e um olhar de horror e
de confusão no rosto. Não tinha nenhuma vontade de lutar — nem sequer queria ter de ferir o cão
mais uma vez.
— Chama o teu cão para junto de ti! — instou Montolio.
A curiosidade de McGristle era óbvia.
— Viste o elfo negro, Mooshie? — voltou a perguntar, desta vez cheio de suspeitas.
— Até posso ter visto — respondeu Montolio. Virou-se e lançou um assobio quase inaudível.
Imediatamente o cão de McGristle, ouvindo a ira evidente do ranger expressa em termos
inequívocos, meteu a cauda entre as pernas e deslizou cabisbaixo até junto do dono.
— Tenho uma ninhada de cachorros ali — mentiu iradamente o ranger. — Se o teu cão se
aproxima deles… — e deixou a ameaça pairar. Aparentemente, Roddy ficou impressionado. Lançou
um laço por cima da cabeça do cão e puxou-o com firmeza para perto dele. — Um drow, que deve
ser o mesmo, passou por aqui antes das primeiras neves — prosseguiu Montolio. — Não te vai ser
fácil apanhar esse elfo, caçador de prémios — e riu-se. — Teve sarilhos com Graul, pelo que sei, e
depois partiu de novo, de regresso à sua escura casa, suponho. Pretendes seguir o drow até ao
Subescuro? Decerto a tua reputação cresceria consideravelmente, caçador de prémios! Se bem que,
muito possivelmente, à custa da tua própria vida!
Drizzt descontraiu-se ao ouvir estas palavras; Montolio tinha mentido por ele! Podia ver bem que
o ranger não tinha McGristle em grande consideração e esse facto também o reconfortou. Depois,
Roddy retorquiu com veemência, expondo a história da tragédia de Maldobar de uma forma tosca e
distorcida que punha a amizade de Drizzt e Montolio à prova.
— O drow matou os Thistledowns! — rugiu Roddy perante o sorriso de escárnio de Montolio, que
desapareceu num piscar de olhos. — Chacinou-os! Ele e a pantera dele. Conhecias Bartholomew
Thistledown, ranger. Que vergonha falares tão ligeiramente acerca do assassino dele!
— O drow matou-os? — perguntou o ranger sombriamente.
Roddy exibiu mais uma vez a cimitarra partida.
— Retalhou-os! — rugiu. — Há um prémio de duas mil peças de ouro pela cabeça dele. Dou-te
quinhentas, se descobrires mais alguma coisa que me ajude.
— Não preciso do teu ouro — respondeu rapidamente Montolio.
— Mas precisas de ver o assassino ser apanhado, não? — disparou Roddy em resposta. — Não
choras as mortes do clã Thistledown, uma família das melhores que há?
A pausa seguinte de Montolio levou Drizzt a acreditar que o ranger o poderia denunciar. Decidiu
então que não fugiria, fosse qual fosse a decisão de Montolio. Poderia ignorar a ira do caçador de
prémios, mas não a do velho ranger. Se Montolio o acusasse, teria de o enfrentar e ser julgado por
ele.
— Triste dia! — murmurou Montolio. — Uma boa família, de facto. Apanha o drow, McGristle.
Seria o melhor prémio que alguma vez mereceste.
— Por onde começar? — perguntou Roddy calmamente, aparentemente pensando ter vencido a
resistência do ranger. Drizzt pensou o mesmo, especialmente quando Montolio se virou e olhou para
o centro do seu castelo.
— Já ouviste falar da Gruta de Morueme? — perguntou o ranger.
A expressão de McGristle alterou-se visivelmente perante a pergunta. A Gruta de Morueme, à
beira do grande deserto de Anauroch, era assim chamada devido à família de dragões azuis que lá
habitava.
— Duzentos quilómetros! — resmungou McGristle. — Passando pelas Nethers… Uma cadeia dura
de atravessar.
— O drow foi para lá, ou para perto, no início do Inverno — mentiu Montolio.
— O drow foi para junto dos dragões? — perguntou Roddy, surpreendido.
— O mais provável é que tenha ido para um buraco qualquer nessa região — respondeu Montolio.
— Os dragões de Morueme talvez o conheçam. Deverias inquirir por lá.
— Não sou assim tão dado a conversar com dragões — disse Roddy sombriamente. — Demasiado
arriscado… E mesmo ir até lá… Bem, é demasiado caro!
— Então, parece que Roddy McGristle falhou a sua primeira presa — disse Montolio. — Uma boa
tentativa, de qualquer forma, contra um fugitivo da categoria de um elfo negro.
Roddy puxou as rédeas do cavalo e fez o animal virar.
— Não apostes contra mim, Mooshie! — rosnou por cima do ombro. — Não deixarei este
escapar, nem que tenha de ir eu mesmo vasculhar todos os buracos das Nethers.
— Parece demasiado incómodo por duas mil peças de ouro… — retorquiu Montolio, não
parecendo impressionado.
— O drow matou o meu cão, roubou-me uma orelha e deixou-me esta cicatriz! — contrapôs
Roddy, apontando para a cara desfeita. O caçador de prémios percebeu depois a futilidade dos seus
gestos — porque era claro que o ranger não podia vê-lo — e virou costas, esporeando o cavalo para
fora do castelo de Montolio, sem se dignar a agradecer ao velho ranger.
— Nunca gostei deste tipo — explicou Montolio.
— A família Thistledown foi chacinada — admitiu Drizzt de caras.
Montolio assentiu com a cabeça.
— Sabias disso?
— Já sabia antes de cá chegares — respondeu o ranger. — Para ser sincero, inicialmente
interroguei-me se os terias morto.
— Não matei — disse Drizzt.
Montolio assentiu de novo.
Chegara o momento de Drizzt dar os pormenores acerca dos seus primeiros meses na superfície.
Toda a culpa regressou quando contou a batalha com o grupo dos gnolls, e depois regressou a dor,
centrada na palavra «drizzit», quando contou tudo sobre os Thistledown e a sua sinistra descoberta.
Montolio identificou o duende veloz como um quickling, mas não era capaz de explicar o duende
gigante, nem as criaturas-lobos que Drizzt combatera na caverna.
— Fizeste bem em matar os gnolls — disse o ranger depois de Drizzt acabar. — Liberta-te da
culpa por esse acto e deixa-o cair no esquecimento.
— Como podia eu saber? — disse Drizzt com sinceridade. — Apesar de toda a minha
aprendizagem em Menzoberranzan, ainda não consigo distinguir as mentiras da verdade.
— Tem sido uma viagem confusa — disse Montolio. E o sorriso sincero do velho aliviou
consideravelmente a tensão. — Anda, deixa-me contar-te sobre as raças, e da razão porque as tuas
cimitarras fizeram justiça quando abateram os gnolls.
Como ranger, Montolio dedicara a vida à luta interminável entre as raças boas — sendo os
membros destas proeminentes os humanos, elfos, anões, gnomos e halflings — e os malévolos
goblinóides e gigantes, que apenas viviam para destruir, como uma praga para os inocentes.
— Os orcs são os mais desprezados — explicou Montolio. — Por isso, agora contento-me com
manter Graul e os seus malcheirosos lacaios debaixo de olho… Olho de coruja, bem entendido…
Então, muita coisa mudou de perspectiva para Drizzt. O consolo inundou o drow, pois os seus
instintos tinham-se mostrado correctos e podia agora, pelo menos por algum tempo e até certo ponto,
ficar livre da culpa.
— E o caçador de prémios e outros como ele? — perguntou Drizzt. — Esses não parecem
encaixar-se tão bem nas tuas descrições das raças.
— Há bom e mau em todas as raças — explicou Montolio. — Falei apenas da conduta em geral, e
não duvido de que a conduta em geral dos goblinóides e dos gigantes seja malévola!
— Como podemos saber? — insistiu Drizzt.
— Basta ver as crianças — respondeu Montolio. — E prosseguiu explicando as diferenças bem
evidentes entre as crianças das raças boas e as crianças das raças malévolas. Drizzt ouviu-o, mas de
forma distante, sem precisar de mais esclarecimento. Parecia que tudo ia sempre dar às crianças.
Drizzt sentira-se melhor em relação às suas acções contra os gnolls quando observara as crianças
dos Thistledown a brincar. E em Menzoberranzan, no que parecia ter sido havia uma década atrás e
havia mil anos atrás ao mesmo tempo, o pai tinha expressado crenças semelhantes. «Serão todas as
crianças drow más?», interrogara-se Zaknafein. E ao longo de toda a sua conturbada vida, Zaknafein
fora assombrado pelos gritos das crianças moribundas, das crianças nobres drow apanhadas na luta
entre famílias rivais.
Seguiu-se um longo momento de silêncio, quando Montolio terminou, e com ambos os amigos a
precisarem de tempo para digerir as muitas revelações desse dia. Montolio soube que Drizzt estava
mais reconfortado quando o drow, muito inesperadamente, se virou para ele, sorriu abertamente, e de
repente mudou de assunto.
— Mooshie? — perguntou Drizzt, lembrando-se do nome que McGristle chamara a Montolio.
— Montolio DeBrouchee — riu-se o velho ranger, lançando uma grotesca piscadela de olho na
direcção do drow. — Mooshie para os amigos, e para aqueles que, como McGristle, se vêem em
apuros quando têm de dizer palavras maiores do que «cuspo», «urso», ou «matar».
— Mooshie… — murmurou Drizzt, rindo-se um pouco à custa de Montolio.
— Não tens nada mais para fazer, Drizzit? — resmungou o velho ranger.
Drizzt assentiu e começou a afastar-se ruidosamente. Desta vez, o som de «drizzit» não magoava.

— Gruta de Morueme! — resmungava Roddy. — Maldita Gruta de Morueme!


Uma fracção de segundo depois, um pequeno duende veloz sentou-se em cima da cabeça do cavalo
de Roddy, olhando fixamente para o espantado caçador de prémios. Tephanis espiara a troca de
palavras nos domínios de Montolio e amaldiçoara a sua sorte quando o ranger mandara o caçador de
prémios embora. Se Roddy pudesse apanhar Drizzt, pensava o quickling, sairiam ambos do seu
caminho, coisa que não lhe desagradava nada.
— Certamente não és tão estúpido que acredites no velho? — despejou rapidamente Tephanis.
— Anda cá! — gritou Roddy, tentando desajeitadamente agarrar o duende, que se limitou a saltar
para baixo, correr para trás, passando pelo cão estupefacto, e a subir de novo para aparecer atrás
dele. — Mas que diabo és tu? — rugiu o caçador de prémios. — Vê se ficas quieto!
— Sou amigo — disse Tephanis tão devagar quanto conseguiu.
Roddy espreitou-o cautelosamente por cima do ombro.
— Se queres o drow, estás a ir na direcção errada — disse o duende, com um sorriso manhoso.
Pouco depois, Roddy estava agachado no arvoredo mais elevado a sul do refúgio de Montolio e
observava o ranger e o seu convidado de pele escura a tratarem dos seus assuntos.
— Boa caça! — disse Tephanis, e depois desapareceu, regressando para junto de Caroak, o
grande lobo que cheirava melhor do que este humano.
Roddy, com os olhos fixos na cena distante, mal notou a partida do quickling.
— Vais pagar pelas tuas mentiras, ranger — resmungou entredentes. Um sorriso malévolo abriu-
se-lhe no rosto enquanto pensava numa maneira de chegar até aos dois companheiros. Seria uma
manobra delicada. Mas lidar com Graul era-o sempre.

O mensageiro de Montolio regressou dois dias depois com um bilhete de Dove Falconhand. Hooter
tentou relatar a resposta da ranger, mas a excitável coruja era completamente incapaz de transmitir
relatos tão longos e complicados. Confuso e sem mais nenhuma opção, Montolio entregou a carta a
Drizzt e disse ao drow para a ler alto, e depressa. Não sendo ainda capaz de ler com destreza, Drizzt
já tinha lido várias linhas do papel antes de perceber do que tratava. O bilhete relatava em pormenor
as conclusões de Dove sobre o que se tinha passado em Maldobar e durante a subsequente
perseguição. A versão de Dove andava perto da verdade, confirmando o que Drizzt contara e
nomeando os barghest whelps como os verdadeiros assassinos.
O alívio de Drizzt foi tão grande que mal conseguia articular as palavras enquanto o bilhete
prosseguia expressando o prazer e a gratidão de Dove por esse «drow merecedor de respeito» ter
sido acolhido pelo velho ranger.
— No fim, acabamos sempre por receber o que nos é devido, meu amigo — foi tudo o que
Montolio precisou de dizer.
Vejo agora a minha longa caminhada como uma busca da verdade — verdade no meu
próprio coração, no mundo à minha volta, e nas questões maiores de finalidade e da
existência. Como se define o bem e o mal?
Trazia comigo um código interno de moral, na minha caminhada, mas se nasci com ele ou
se me foi imbuído por Zaknafein — ou se simplesmente se desenvolveu a partir das minhas
percepções — é algo que nunca poderei saber. Esse código forçou-me a deixar
Menzoberranzan, pois embora não estivesse certo do que essas verdades poderiam ser,
sabia para além de qualquer dúvida que não as encontraria no domínio de Lolth.
Depois de muitos anos no Subescuro, fora de Menzoberranzan, e depois das minhas
primeiras e terríveis experiências no mundo da superfície, acabei por duvidar da existência
de qualquer verdade universal, e acabei por me interrogar se haveria, afinal, algum
sentido para esta vida. No mundo dos drow, a ambição era a única finalidade: a procura de
ganhos materiais que vinham com a subida da posição social. Mas mesmo então, isso
parecia-me coisa de somenos, e dificilmente uma razão para existir.
Agradeço-te, Montolio DeBrouchee, por me teres confirmado as minhas suspeitas.
Aprendi que a ambição daqueles que seguem preceitos egoístas não é mais do que um
desperdício caótico, um ganho finito que tem de ser seguido por perdas infinitas. Porque
há de facto uma harmonia no universo, um canto concordante de um bem comum. Para nos
unirmos a essa canção, temos de encontrar a harmonia interior, temos de encontrar as
notas que soam verdadeiras.
Há uma coisa a dizer acerca da verdade: as criaturas malévolas não conseguem cantar.

— Drizzt Do’Urden
As lições continuaram bastante bem. O velho ranger tinha aliviado notavelmente os consideráveis
fardos emocionais do drow, e Drizzt apanhou o jeito aos modos do mundo da superfície melhor do
que ninguém que Montolio alguma vez vira. Mas o ranger pressentia que alguma coisa ainda
incomodava o drow, embora não fizesse ideia do que fosse.
— Todos os humanos possuem um ouvido tão apurado? — perguntou-lhe Drizzt subitamente
enquanto arrastavam um enorme ramo que caíra para fora do complexo. — Ou o teu ouvido é uma
bênção, talvez para compensar a cegueira?
A frontalidade da pergunta surpreendeu Montolio apenas por um momento, o tempo que demorou a
perceber a frustração do drow, um mal-estar causado pela incapacidade de Drizzt compreender as
capacidades do velho.
— Ou será a tua cegueira, talvez, uma astúcia, um engodo que usas para obter vantagem? —
pressionou Drizzt, sem dar tréguas.
— E se for? — respondeu Montolio secamente.
— Se for, é uma boa astúcia, Montolio DeBrouchee — respondeu Drizzt. — Certamente que te
ajuda contra os teus inimigos… e contra os amigos também — as palavras soaram-lhe amargas, e
suspeitou de que estava a deixar o orgulho tomar conta dele.
— Não foste posto à prova em batalha muitas vezes — respondeu Montolio, reconhecendo a fonte
das frustrações do drow como sendo o recontro que ambos tinham tido. Se pudesse ver a expressão
de Drizzt nessa altura, esta ter-lhe-ia revelado muito. — Levas tudo demasiado a sério — prosseguiu
Montolio após um silêncio desconfortável. — Eu não te derrotei verdadeiramente.
— Deixaste-me caído e impotente.
— Foste tu mesmo que te derrotaste — explicou Montolio. — Sou realmente cego, mas não tão
impotente como poderias pensar. Subestimaste-me. E eu também sabia que o farias, embora mal
pudesse acreditar que fosses tão cego.
Drizzt parou subitamente, e Montolio parou de seguida, quando o peso do ramo aumentou
inesperadamente. O velho ranger abanou a cabeça e riu-se. Depois, puxou de um punhal, lançou-o ao
ar, rodopiando; de seguida, apanhou-o e, gritando «bétula!», cravou-o em cheio numa das poucas
bétulas no meio do arvoredo.
— Poderia um homem cego fazer isto? — perguntou retoricamente.
— Então, consegues ver — afirmou Drizzt.
— Claro que não — retorquiu rapidamente Montolio. — Os meus olhos não funcionam há cinco
anos. Mas também não sou cego, Drizzt, especialmente neste lugar a que chamo minha casa! E, no
entanto, julgaste-me cego — continuou o ranger, de novo com voz calma. — Na nossa luta, quando o
teu globo de escuridão acabou, julgaste que tinhas obtido vantagem. Será que pensaste que todas as
minhas acções, e acções eficazes, deixa que te diga, tanto na luta contra os orcs, como no nosso
combate, foram simplesmente preparados e ensaiados? Se eu fosse tão diminuído como Drizzt
Do’Urden acredita que sou, como poderia sobreviver mais um dia nestas montanhas?
— Eu não acreditei… — começou Drizzt a dizer. Mas o embaraço calou-o. Montolio falava
verdade, e Drizzt sabia disso. Tinha, pelo menos ao nível subconsciente, pensado que o ranger não
era um adversário completamente capaz, desde a primeira vez que se tinham encontrado. Sentia que
nunca tinha mostrado desrespeito pelo amigo; na verdade, tinha-o em grande consideração. Mas
presumira Montolio mais fraco do que era, e pensara que as limitações do ranger eram maiores do
que as suas.
— Acreditaste — corrigiu Montolio. — E perdoo-te isso. Tens o crédito de me teres tratado com
mais lealdade que qualquer outro que conheci, e mesmo aqueles que viajaram comigo durante
inúmeras campanhas. Agora, senta-te — pediu a Drizzt. — É a minha vez de te contar a minha
história, tal como tu me contaste a tua… Por onde hei-de começar? — interrogou-se, coçando o
queixo. Parecia-lhe tudo tão distante, agora, como outra vida que tivesse deixado para trás. Mas
mantinha uma ligação com esse passado: o seu treino como ranger da deusa Mielikki. Drizzt, que
estava a ser instruído da mesma forma por Montolio, compreenderia.
— Dei a minha vida à floresta, à ordem natural, numa idade muito jovem — começou Montolio. —
Aprendi, tal como comecei agora a ensinar-te, os hábitos do mundo selvagem, e cedo decidi que
defenderia essa perfeição, essa harmonia dos ciclos demasiado amplos e maravilhosos para serem
compreendidos. É por isso que tanto aprecio lutar contra orcs e outros do género. Como já antes te
disse, eles são os inimigos da ordem natural, os inimigos das árvores e dos animais, bem como dos
homens e das raças bondosas. Criaturas desgraçadas, todos eles, e não sinto culpa alguma quando os
abato!
Montolio passou depois muitas horas a contar algumas das suas campanhas, expedições em que
tinha agido sozinho ou como batedor de grandes exércitos. Contou a Drizzt sobre a sua própria
mestra, Dilamon, uma ranger tão hábil com o arco que nunca a vira falhar um tiro; nem uma vez, em
dez mil tiros.
— Morreu em combate — explicou Montolio —, a defender uma quinta de um bando de gigantes.
Mas não choremos pela Senhora Dilamon, porque nem um dos agricultores foi ferido e nem um dos
poucos gigantes que conseguiram arrastar-se dali para fora voltou a mostrar a feia cara na região!
A voz de Montolio baixou de tom quando chegou aos anos mais recentes. Falou dos
Rangewatchers, o seu último grupo de aventuras, e de como tinham entrado em batalha contra um
dragão vermelho que andava a atacar aldeias. O dragão fora morto, bem como três dos
Rangewatchers, e Montolio ficara com o rosto queimado.
— Os sacerdotes trataram-me bem — disse Montolio sombriamente. — Mal ficou uma cicatriz
como prova da minha dor — fez uma pausa e Drizzt viu, pela primeira vez desde que conhecera o
velho ranger, uma nuvem de dor a passar-lhe pelo rosto. — Mas não puderam fazer nada pelos meus
olhos. Essa lesão estava para além das capacidades deles.
— Vieste para aqui para morrer — disse Drizzt, com um tom mais acusador do que pretendera.
Montolio não refutou a afirmação.
— Resisti ao bafo de dragões, às lanças de orcs, à ira de homens maus e à cobiça daqueles que
são capazes de violar a terra para seu próprio lucro — disse o ranger. — Nenhuma dessas coisas
alguma vez me feriu tanto como a piedade. Até mesmo os meus companheiros Rangewatchers, que
tinham lutado ao meu lado tantas vezes, tinham pena de mim. Até mesmo tu tiveste.
— Eu não… — tentou Drizzt interromper.
— Tiveste, sim — retorquiu Montolio. — No nosso combate, achaste-te superior. Foi por isso que
perdeste! A força de um ranger é a sabedoria, Drizzt. Um ranger compreende-se a si mesmo, aos
seus inimigos e aos seus amigos. Pensaste que eu estava diminuído; caso contrário, nunca terias
tentado uma manobra tão precipitada como a de saltar para trás de mim. Mas eu compreendi-te e
antecipei-me ao teu movimento — e aquele sorriso matreiro brilhou-lhe mais uma vez no rosto. —
Ainda te dói a cabeça?
— Dói, sim — admitiu Drizzt, esfregando a equimose —, mas os meus pensamentos parecem estar
a ficar menos enevoados.
— Quanto à tua pergunta inicial — disse Montolio, satisfeito por ter explicado o seu ponto de
vista —, não há nada de excepcional no meu ouvido, nem em nenhum dos meus outros sentidos.
Apenas presto mais atenção ao que eles me dizem do que a maioria das outras pessoas, e guiam-me
bastante bem, como agora já percebeste. Na verdade, eu próprio desconhecia as capacidades dos
meus sentidos quando vim para aqui, e estás correcto no teu palpite quanto à razão porque vim. Sem
os meus olhos, pensei que era um homem morto, e queria morrer aqui, neste recanto que conhecera e
pelo qual me apaixonara antes, nas minhas viagens. Talvez tenha sido devido a Mielikki, a Senhora
da Floresta… Mas mais provavelmente por causa de Graul, um inimigo tão a jeito, que não foi
preciso muito tempo para mudar de intenções relativamente à minha própria vida. Encontrei aqui uma
finalidade, sozinho e diminuído — e nesses primeiros dias estava, de facto, diminuído. Com essa
finalidade veio também um renovar do significado da minha vida, e isso, por sua vez, levou-me a
perceber de novo os meus limites. Estou velho, agora, e cansado e cego. Se tivesse morrido há cinco
anos, como queria, teria morrido com a minha vida incompleta. Nunca teria sabido até onde podia ir.
Só na adversidade, para além de qualquer outra coisa que Montolio DeBrouchee pudesse ter
imaginado, conseguiria chegar a um tão profundo conhecimento de mim mesmo e da minha deusa.
Montolio parou para observar Drizzt. Ouvira um ligeiro movimento perante a menção da sua
deusa, e considerou-o como um movimento de desconforto. Querendo explorar essa revelação,
Montolio meteu a mão dentro da cota de malha e retirou de lá um pendente com a forma de uma
cabeça de unicórnio.
— Não é belo? — perguntou vincadamente.
Drizzt hesitou. O unicórnio era magnificamente trabalhado e de desenho maravilhoso, mas as
conotações de um pendente como aquele não assentavam com facilidade em Drizzt. Em
Menzoberranzan testemunhara toda a loucura que estava implícita em seguir os desígnios das
divindades, e não gostava nada do que vira.
— Quem é o teu deus, drow? — perguntou Montolio. Durante todas as semanas que tinham estado
juntos, nunca tinham realmente discutido religiões.
— Não tenho deuses — respondeu Drizzt ousadamente. — Nem quero ter.
Foi a vez de Montolio fazer uma pausa.
Drizzt levantou-se e afastou-se alguns passos.
— A minha gente segue Lolth — começou. — Ela, se não é a causa, é decerto a continuação da
maldade deles, tal como esse Gruumsh é para os orcs, e como outros deuses são para outras gentes.
Seguir um deus é uma loucura. Seguirei o meu coração, em vez disso.
O risinho calmo de Montolio retirou a força à proclamação de Drizzt.
— Tens um deus, Drizzt Do’Urden — disse o ranger.
— O meu deus é o meu coração — declarou Drizzt, voltando para perto dele.
— Tal como o meu.
— Chamas à tua deusa Mielikki — protestou Drizzt.
— E tu ainda não encontraste nome para o teu deus — retorquiu Montolio. — Isso não quer dizer
que não tenhas um. O teu deus é o teu coração; e o que te diz o teu coração?
— Não sei — admitiu Drizzt, depois de ponderar a perturbante questão.
— Pois então, pensa! — exclamou Montolio. — Que te disseram os teus instintos acerca do bando
de gnolls, ou dos agricultores de Maldobar? Lolth não é a tua divindade; isso é certo. Que deus ou
deusa se enquadra então com o coração de Drizzt Do’Urden? — Montolio quase conseguiu ouvir o
encolher de ombros do drow. — Não sabes? — perguntou. — Pois eu sei.
— Presumes muita coisa — respondeu Drizzt, ainda não convencido.
— Observo muito — disse Montolio com uma gargalhada. — O teu coração está junto do de
Guenhwyvar?
— Nunca duvidei desse facto — respondeu Drizzt com sinceridade.
— Pois Guenhwyvar segue Mielikki.
— Como podes saber isso? — argumentou Drizzt, ficando um pouco perturbado. Não se importava
com as presunções de Montolio acerca dele, mas considerava essa rotulagem como um ataque à
pantera. De alguma maneira, para Drizzt, Guenhwyvar parecia estar acima de deuses e de todas as
implicações de se seguir uma divindade.
— Como posso saber? — repetiu Montolio, incrédulo. — Foi o felino que mo disse,
evidentemente! Guenhwyvar é a entidade da pantera, uma criatura do domínio de Mielikki.
— Guenhwyvar não precisa das tuas etiquetas — retorquiu Drizzt irritado, avançando bruscamente
para se sentar de novo ao lado do ranger.
— Claro que não — concordou Montolio. — Mas isso não altera os factos. Não estás a
compreender, Drizzt Do’Urden. Cresceste no meio da perversão de uma divindade.
— E a tua é que é a verdadeira? — perguntou Drizzt sarcasticamente.
— São todas verdadeiras, e são todas uma só, receio bem — respondeu o ranger. Drizzt tinha de
concordar com a observação anterior de Montolio: não compreendia.
— Vês os deuses como divindades exteriores — tentou explicar Montolio. — Vê-los como seres
físicos a tentar controlar as nossas acções para os seus próprios fins, e por isso, tu, na tua teimosa
independência, rejeita-los. Mas eu digo-te que os deuses estão cá dentro, quer os tenhamos assumido
como nossos ou não. Seguiste Mielikki toda a tua vida, Drizzt. Simplesmente nunca tiveste um nome
para colocar no teu coração.
Subitamente, Drizzt viu-se mais intrigado do que céptico.
— O que sentiste quando saíste pela primeira vez do Subescuro? — perguntou Montolio. — Que
te disse o coração quando olhaste pela primeira vez para o sol ou para as estrelas, ou para o verde
das florestas?
Drizzt recordou esse dia distante, em que ele e a sua patrulha drow tinham saído do Subescuro
para atacar um grupo de elfos. Essas eram memórias dolorosas, mas dentro delas pairava uma
sensação de conforto, uma recordação de maravilhamento exultante perante a sensação do vento e
dos odores das flores acabadas de rebentar.
— E como conseguiste falar com Bluster? — continuou Montolio. — Isso não é um feito de
somenos, partilhar uma gruta com aquele urso! Admitas isso ou não, tens o coração de um ranger. E
um coração de ranger é um coração de Mielikki.
Uma conclusão tão formal trouxe consigo uma certa medida de dúvida a Drizzt.
— E o que exige a tua deusa? — perguntou, com o tom tenso de novo na voz. Começou a levantar-
se mais uma vez, mas Montolio bateu-lhe com uma mão na perna e segurou-o.
— O que exige? — riu-se o ranger. — Não sou nenhum missionário a espalhar belas palavras e a
impor regras de comportamento! Não acabei de te dizer que os deuses estão cá dentro? Conheces as
regras de Mielikki tão bem como eu. Tens vindo a segui-las toda a tua vida. Estou a dar-te um nome
para elas, apenas isso, e um ideal de comportamento personificado, um exemplo que poderás seguir
em momentos em que te afastes daquilo que sabes ser a verdade — e, com isto, Montolio pegou no
ramo e Drizzt seguiu-o.
Drizzt ponderou estas palavras por muito tempo. Não dormiu nesse dia, embora se mantivesse no
seu abrigo, a pensar.
— Quero saber mais da tua… da nossa… deusa — admitiu Drizzt na noite seguinte, quando
encontrou Montolio a preparar a ceia.
— E eu quero ensinar-te — respondeu o velho ranger.

Uma centena de pares de olhos amarelos e raiados de sangue começaram a olhar fixamente o humano
possante que avançava para o acampamento, mantendo o cão amarelo bem preso pela trela. Roddy
não gostava de ir até ali, ao forte do rei orc, Graul, mas não tencionava deixar o drow fugir desta
vez. Lidara com Graul por diversas vezes, ao longo dos anos mais recentes; o rei orc, com tantos
olhos postados nas montanhas, mostrara-se um aliado valioso, ainda que caro, em todas a caçadas de
Roddy.
Vários grandes orcs puseram-se intencionalmente no caminho de Roddy, provocando-o e atiçando
o cão. Sensatamente, o homem manteve o cão quieto, embora também ele quisesse atirar-se aos
malcheirosos orcs. Faziam este jogo sempre que Roddy lá ia, dando-lhe encontrões, cuspindo-lhe,
fazendo tudo o que podiam para provocar uma briga. Os orcs eram sempre muito corajosos quando
estavam em superioridade de cem para um.
O grupo inteiro pôs-se atrás de Roddy e seguiu-o de perto enquanto percorria os últimos cinquenta
metros, por uma rampa de pedra íngreme, até à entrada da gruta de Graul. Dois grandes orcs saltaram
da entrada, brandindo as lanças, para interceptarem o intruso.
— Porque vieste aqui? — perguntou um deles na sua língua nativa. E o outro estendeu a mão,
como se esperasse pagamento.
— Desta vez não há pagamento — respondeu Roddy, imitando perfeitamente o dialecto deles. —
Desta vez, é Graul que paga!
Os orcs olharam um para o outro, incrédulos, e depois viraram-se para Roddy e soltaram uns
rugidos que foram interrompidos subitamente por um orc ainda maior que saía da gruta.
Graul saiu e empurrou os guardas para os lados bruscamente, avançando até ficar com o focinho
húmido a apenas um centímetro do nariz de Roddy.
— Graul paga? — disse com desdém, com o hálito quase a fazer Roddy cair para trás.
O riso de Roddy foi apenas para servir de exibição perante os orcs menores mais próximos. Não
podia mostrar nenhuma fraqueza; como os cães ferozes, os orcs eram rápidos a atacar alguém que não
mostrasse firmeza contra eles.
— Tenho informações, rei Graul — disse o caçador de prémios com firmeza. — Informações que
Graul gostará de saber.
— Fala — ordenou-lhe Graul.
— Pagas? — perguntou Roddy, embora suspeitando de que estava a abusar da sorte.
— Fala! — rugiu Graul de novo. — Se as tuas palavras têm valor, Graul deixa-te viver.
Roddy lamentou-se silenciosamente, por lhe parecer que as coisas acabavam sempre desta forma
com Graul. Era difícil fazer algum acordo favorável com o malcheiroso chefe dos orcs, quando
estava rodeado por cem guerreiros armados. Mas manteve-se impassível. Não tinha ido ali por causa
de dinheiro — ainda que tivesse a esperança de poder conseguir algum —, mas sim por vingança.
Não atacaria Drizzt abertamente enquanto este estivesse com Mooshie. Naquelas montanhas, rodeado
pelos seus amigos animais, Mooshie era uma força formidável, e mesmo que Roddy conseguisse
passar por ele e chegar ao drow, os muitos aliados de Mooshie, veteranos como Dove Falconhand,
vingariam decerto essa acção.
— Há um elfo negro nos teus domínios, poderoso rei orc! — anunciou Roddy. Mas não obteve a
reacção de surpresa que esperava.
— Um renegado… — completou Grual.
— Sabias? — os olhos de Roddy traíram a sua incredulidade.
— O drow matou guerreiros de Graul — disse o chefe dos orcs sombriamente. Todos os orcs
reunidos começaram a bater com os pés e a cuspir, amaldiçoando o elfo negro.
— Mas então, porque vive ainda o elfo? — perguntou Roddy sem rodeios. Os olhos do caçador de
prémios estreitaram-se quando começou a suspeitar de que Graul não sabia o paradeiro do elfo.
Talvez, afinal, ainda tivesse algo para negociar.
— Os meus batedores não conseguem encontrá-lo! — rugiu Graul; e era a verdade. Mas qualquer
sinal de frustração que o rei orc mostrasse era um pedaço de teatro refinadamente ensaiado. Graul
sabia onde estava Drizzt, ainda que os seus batedores não soubessem.
— Eu encontrei-o! — gritou Roddy, e todos os orcs saltaram de júbilo e gritaram exultantes e
esfaimados. Graul ergueu os braços para os calar. Este era o momento crítico, conforme sabia.
Observou o grupo de orcs reunido, em busca do xamã da tribo, do líder espiritual, e encontrou o orc
com as vestes vermelhas a observar e a ouvir atentamente, tal como esperava.
Seguindo os conselhos do xamã, Graul evitara qualquer gesto contra Montolio durante todos
aqueles anos. O xamã acreditava que o aleijado que não era assim tão aleijado era um sinal de má
magia; e, seguindo os avisos do líder religioso, toda a tribo se acobardava quando Montolio estava
por perto. Mas ao aliar-se com o drow e, se Graul estivesse correcto, ao ajudar o drow a vencer a
batalha nas montanhas, Montolio metera-se onde não era chamado, violara o domínio dele. Agora
convencido de que o drow era, de facto, um renegado — porque não havia mais elfos negros na
região —, o rei orc estava apenas à espera de uma justificação para poder incitar os seus esbirros
numa acção contra o refúgio de Montolio. Roddy, conforme Graul percebia agora, poderia ser essa
justificação.
— Fala! — gritou Graul na cara de Roddy, para impedir qualquer pedido de dinheiro que o outro
estivesse a preparar.
— O drow vive com o ranger — respondeu Roddy. — Está instalado no refúgio do ranger cego!
Se Roddy esperava que essa afirmação inspirasse mais uma erupção de maldições e pragas, de
saltos e cuspidelas, ficou seriamente desapontado. A menção do ranger cego lançou uma nuvem
sombria sobre os orcs reunidos, e agora todos olhavam para o xamã, e depois para Graul, e depois
de novo para o xamã, em busca de orientação.
Era altura de Roddy colaborar na criação de uma conspiração, tal como tinha sido dito a Graul que
faria.
— Tens de ir apanhá-los! — gritou Roddy. — Não estão a…
Graul levantou os braços para calar a pequena multidão e Roddy.
— Foi o ranger cego que matou o gigante? — perguntou o rei orc manhosamente a Roddy. — E
ajudou o drow a matar os meus guerreiros?
Roddy, evidentemente, não fazia ideia do que estava Graul a falar, mas era suficientemente arguto
para perceber as intenções do rei orc.
— Foi! — declarou bem alto. — E agora o ranger cego e o drow conspiram contra todos vós!
Têm de os esmagar e vencer antes que venham eles vencer-vos! O ranger há-de trazer os seus
animais, e elfos, muitos elfos, e anões também, todos contra Graul!
A menção aos amigos de Montolio, especialmente aos elfos e aos anões, que o povo de Graul
odiava acima de tudo o resto no mundo, provocou expressões de raiva em todos os rostos e fez com
que vários orcs olhassem nervosamente por cima dos ombros, como se estivessem à espera de ver o
exército do ranger a cercar o terreno nesse mesmo momento.
Graul olhou fixamente para o xamã.
— Aquele-que-vê tem de abençoar o ataque! — respondeu o xamã à pergunta silenciosa. — Na
Lua Nova!
Graul assentiu, e o orc com as vestes vermelhas virou-se, reuniu alguns comuns ao seu lado e
começou os preparativos.
Graul meteu a mão numa bolsa e tirou de lá uma mão cheia de moedas de prata para Roddy. Este
não dera ao rei nenhuma informação que ele não tivesse já, mas a declaração do caçador de prémios
de que havia uma conspiração contra a tribo orc dera a Graul uma ajuda considerável nos esforços
por incitar o supersticioso xamã contra o ranger cego.
Roddy pegou no mísero pagamento sem se queixar, pensando que já era bom ter conseguido atingir
os seus fins, e virou-se para partir.
— Tu ficas — disse Graul subitamente nas costas de Roddy. A um gesto do rei, vários guardas
orcs avançaram para rodear o caçador de prémios. Roddy olhou para Graul com desconfiança.
— Como convidado — explicou o rei orc calmamente. — Junta-te ao combate.
Roddy não tinha grandes alternativas.
Graul dispensou os guardas e regressou à sua gruta sozinho. Os guardas orcs limitaram-se a
encolher os ombros e a rir um para o outro, sem nenhuma vontade de regressarem para a gruta e
encontrarem os convidados do rei — especialmente o grande lobo com pêlo prateado.
Quando Graul regressou ao seu antro, virou-se para falar com o seu outro convidado.
— Tinhas razão — disse Graul para o diminuto duende veloz.
— Sou-muito-bom-a-recolher-informação — orgulhou-se Tephanis. E depois acrescentou
silenciosamente: — E-a-criar-situações-favoráveis!
Tephanis achou-se muito esperto nesse momento, porque não só tinha informado Roddy de que o
drow estava no refúgio de Montolio, como depois arranjara maneira de o rei Graul e Roddy o
ajudarem. Graul não tinha nenhum afecto pelo ranger, como Tephanis sabia, e com a presença do
drow a servir de desculpa, Graul conseguiria finalmente persuadir o seu xamã a abençoar o ataque.
— Caroak ajudará nesta batalha? — perguntou Graul, olhando desconfiado para o grande e
imprevisível lobo prateado.
— Evidentemente — respondeu imediatamente Tephanis. — Também-é-do-nosso-interesse-ver-
esses-inimigos-destruídos!
Caroak, que compreendera cada palavra que os outros tinham dito, levantou-se e deslizou para
fora da gruta. Os guardas à entrada não tentaram bloquear-lhe o caminho.
— Caroak-incitará-os-worgs — explicou Tephanis. — Uma-força-poderosa-reunir-se-á-contra-
o-ranger-cego. Há-demasiado-tempo-que-é-inimigo-de-Caroak.
Graul assentiu e ruminou em silêncio sobre as semanas que se seguiriam. Se se pudesse ver livre
do ranger e do drow, o seu vale ficaria mais seguro do que tinha estado desde havia muitos anos —
desde a chegada de Montolio. O ranger raramente contactava pessoalmente com os orcs, mas Graul
sabia que eram os espiões animais do velho ranger que alertavam sempre as caravanas que por ali
passavam. Graul já não se recordava da última vez que os seus guerreiros tinham apanhado uma
caravana de surpresa, que era o seu método preferido. Mas se o ranger desaparecesse…
Com o Verão, pico da época de comércio, a aproximar-se rapidamente, os orcs teriam boas
caçadas nesse ano.
A única coisa de que Graul precisava agora era da confirmação do xamã, de que Aquele-que-vê, o
deus orc Gruumsch Zarolho, abençoasse o ataque.
A Lua Nova, tempo sagrado para os orcs e altura em que o xamã acreditava que conseguia obter o
favor do deus, estava a mais de duas semanas de distância. Ansioso e impaciente, Graul resmungava
contra essa demora, mas sabia que simplesmente teria de esperar. Graul, muito menos religioso do
que os outros julgavam, queria atacar fosse qual fosse a decisão do xamã, mas o ardiloso rei orc não
desafiaria abertamente o líder espiritual da tribo, a não ser que isso fosse absolutamente necessário.
A Lua Nova não estava assim tão distante, de qualquer forma, disse Graul para si mesmo. Depois,
ver-se-ia livre do ranger cego e do misterioso drow.
— Pareces preocupado — disse Drizzt a Montolio quando viu o ranger de pé numa das pontes de
corda, na manhã seguinte. Hooter estava pousada num ramo mais acima.
Montolio, perdido nos seus pensamentos, não respondeu imediatamente. Drizzt nada pensou sobre
isso. Encolheu os ombros e virou costas, respeitando a privacidade do ranger, e retirou a estatueta
de ónix do bolso.
— Guenhwyvar e eu vamos sair para uma pequena caçada — explicou por cima do ombro —,
antes que o Sol fique muito alto. Depois, vou descansar e a pantera passará o dia contigo.
Montolio continuava a não ouvir Drizzt, mas quando reparou que o drow estava a colocar a estátua
de ónix na ponte de corda, as palavras chegaram-lhe com mais clareza, e despertou das suas
contemplações.
— Espera — disse Montolio, estendendo uma mão. — Deixa a pantera descansar.
Drizzt não compreendeu.
— Guenhwyvar já está ausente há mais de um dia — disse.
— Poderemos precisar de Guenhwyvar para algo mais do que caçar, e dentro de pouco tempo —
começou Montolio a explicar. — Deixa-a descansar.
— Qual é o problema? — perguntou Drizzt, subitamente muito sério. — Que viu Hooter?
— A noite passada marcou o início da Lua Nova — disse Montolio. Drizzt, com a sua nova
compreensão acerca dos ciclos lunares, assentiu. — Um dia sagrado para os orcs — prosseguiu o
ranger. — O acampamento deles fica a quilómetros daqui, mas conseguia ouvir os gritos deles,
ontem à noite.
Mais uma vez, Drizzt assentiu, em sinal de compreensão:
— Ouvi os ecos dos cânticos, mas pensei que não fosse mais do que a voz do vento.
— Era o cântico dos orcs — garantiu-lhe Montolio. — Todos os meses, reúnem-se e uivam e
dançam freneticamente no seu típico estupor… Os orcs não precisam de poções para entrar nesse
estado, sabes? Não pensei nada de especial sobre isso, embora me parecessem um pouco mais
barulhentos que o habitual. Geralmente, não se consegue ouvi-los aqui. Um vento favorável… ou
desfavorável… devia estar a trazer o som até aqui, supus.
— Mas depois ficaste a saber que há mais do que isso… — presumiu Drizzt.
— Hooter também os ouviu — explicou Montolio. — Está sempre de vigia por mim, esta coruja
— e olhou para a ave. — Por isso voou até lá para espreitar.
Drizzt também olhou para a maravilhosa ave, muito inchada e orgulhosa, como se compreendesse
os elogios de Montolio. Apesar das graves preocupações do ranger, no entanto, Drizzt tinha de se
interrogar sobre até que ponto Montolio compreendia a coruja, e até que ponto a coruja compreendia
os acontecimentos à sua volta.
— Os orcs formaram um grupo de batalha — disse Montolio, cofiando a barba hirsuta. — Graul
acordou do longo Inverno com ideias de vingança, ao que parece.
— Como podes saber isso? — perguntou Drizzt. — Hooter consegue perceber as palavras deles?
— Não, claro que não! — respondeu Montolio, divertido com essa ideia.
— Então, como podes saber?
— Chegou uma matilha de worgs; isso pôde Hooter dizer-me — explicou o ranger. — Os orcs e
os worgs não são os melhores amigos, mas unem-se quando há sarilhos em preparação. A celebração
dos orcs foi frenética, ontem à noite, e com a presença dos worgs, poucas dúvidas podem restar.
— Há alguma aldeia por perto? — perguntou Drizzt.
— Nenhuma mais perto do que Malobar — respondeu Montolio. — Duvido de que os orcs fossem
tão longe, mas o degelo quase terminou e as caravanas começarão a atravessar o desfiladeiro, vindas
de Sundabar em direcção à Cidadela de Adbar, e em sentido oposto. Há-de haver uma a sair de
Sundabar, embora eu não acredite que Graul seja ousado o suficiente, ou estúpido o suficiente, para
atacar uma caravana de anões pesadamente armados vindos de Adbar.
— Quantos guerreiros tem o rei orc?
— Graul poderia reunir milhares, se se desse a esse trabalho e se se decidisse a fazê-lo — disse
Montolio. — Mas isso demoraria semanas, e Graul não é conhecido pela paciência. Além disso, não
teria trazido os worgs tão cedo, se estivesse a pensar esperar até reunir as suas legiões. Os orcs têm
uma certa tendência para desaparecer quando há worgs por perto, e os worgs têm tendência par se
tornar preguiçosos e engordar quando têm muitos orcs por perto, se me faço entender.
O arrepio de Drizzt mostrou que compreendia.
— Calculo que Graul tenha uma centena de guerreiros — prosseguiu Montolio. — Talvez uma
dúzia de worgs, segundo as contas de Hooter, e provavelmente um ou dois gigantes.
— Uma força considerável para atacar uma caravana — disse Drizzt; mas tanto ele como o ranger
tinham outras suspeitas em mente. Quando se tinham conhecido, dois meses antes, fora por causa de
Graul.
— Demorarão um ou dois dias a preparar-se — disse Montolio após uma pausa desconfortável.
— Hooter vigiá-los-á mais de perto esta noite, e chamarei também outros espiões.
— Eu irei fazer o reconhecimento — acrescentou Drizzt. Viu a preocupação a passar pelo rosto de
Montolio, mas ignorou-a rapidamente. — Muitas foram as vezes em que esses deveres recaíram
sobre mim, como batedor das patrulhas de Menzoberranzan — disse. — É uma tarefa em que me
sinto muito seguro, nada receies.
— Isso foi no Subescuro — lembrou-lhe Montolio.
— E a noite é assim tão diferente? — respondeu Drizzt, lançando uma piscadela de olho e um
sorriso reconfortante em direcção a Montolio. — Teremos as nossas respostas.
Drizzt desejou depois um bom dia a Montolio e foi descansar. O ranger ouviu os passos do amigo
a afastar-se, quase apenas um ligeiro restolhar por entre as árvores muito juntas, com sincera
admiração, e pensou que era um bom plano.
O dia passou devagar e sem tumulto para o ranger. Afadigou-se o mais que pôde a ponderar os
seus planos de defesa para o refúgio. Montolio nunca antes precisara de defender o seu domínio, a
não ser uma vez em que um bando de ladrões insensatos tinha tropeçado no local; mas passara muitas
horas a arquitectar e a testar diferentes estratégias, pensando que seria inevitável que um dia Graul se
haveria de cansar das suas intromissões e acabaria por ganhar coragem para atacar.
Se esse dia tinha chegado, Montolio estava confiante em que estaria preparado.
No entanto, pouco mais poderia fazer, por agora — as defesas não poderiam ser montadas antes de
ter a certeza das intenções de Graul — e o ranger achou essa espera interminável. Por fim, Hooter
informou-o de que o drow estava a acordar.
— Vou pôr-me a caminho, então — disse Drizzt assim que encontrou o ranger, e vendo o Sol a
pôr-se no horizonte. — Vejamos o que estão a planear os nossos inamistosos vizinhos.
— Tem cuidado, Drizzt — disse Montolio. E a genuína preocupação na voz do ranger tocou
Drizzt. — Graul pode ser um orc, mas é ardiloso. Pode bem estar à espera que um de nós vá espiá-
lo.
Drizzt empunhou as suas ainda pouco familiares cimitarras e fê-las girar, para ganhar confiança
nos seus movimentos. Depois, voltou a embainhá-las e meteu uma mão no bolso, reconfortando-se
com a presença da estatueta de ónix. Com uma palmadinha final no ombro do ranger, o batedor
partiu.
— Hooter estará por perto! — gritou Montolio atrás dele. — E outros amigos que talvez não
esperasses. Grita se te vires em sarilhos demasiado grandes para conseguires resolver sozinho!

A base dos orcs não foi difícil de localizar, marcada como estava por uma enorme fogueira brilhando
intensamente no céu nocturno. Drizzt viu as silhuetas, incluindo a de um gigante, dançando em volta
do fogo, e ouviu os uivos de grandes lobos — worgs, como lhes chamara Montolio. O acampamento
ficava numa pequena clareira rodeada por grandes abetos e paredes rochosas. Drizzt conseguia ouvir
bastante bem as vozes dos orcs, por isso decidiu não se aproximar demasiado. Escolheu uma grande
árvore e concentrou-se num ramo mais baixo, convocando a sua capacidade inata de levitação para
se elevar até lá.
O encantamento falhou completamente e Drizzt, não muito surpreendido por esse facto, embainhou
as cimitarras e trepou. O tronco da árvore abria-se em vários grandes ramos, alguns a mais de seis
metros de altura. O drow subiu até ao ramo mais alto e estava prestes a avançar ao longo dele
quando ouviu alguém a respirar profundamente. Cautelosamente, espreitou para o outro lado do
tronco.
No lado oposto ao seu, aninhado confortavelmente numa curva do tronco e noutro ramo, estava
reclinado um orc de sentinela, com as mãos cruzadas atrás da cabeça e uma expressão enfadada no
rosto. Aparentemente, a criatura não dera pela presença silenciosa do elfo negro, empoleirado a
menos de sessenta centímetros dele.
Drizzt agarrou o punho da cimitarra e depois, ganhando confiança em que a estúpida criatura
estava demasiado confortável para sequer olhar em volta, mudou de ideias e ignorou-a. Concentrou-
se, em vez disso, nos acontecimentos da clareira.
A linguagem orc era semelhante à dos duendes, em estrutura e inflexões, mas Drizzt, que também
não era muito versado na língua dos duendes, só conseguia perceber algumas palavras soltas. Os
orcs, no entanto, eram uma raça bastante demonstrativa. Dois modelos, efígies de um elfo negro e de
um humano magro e com bigode, mostraram a Drizzt as intenções do clã. O maior orc dos que ali
estavam, provavelmente o rei Graul, cuspia e praguejava contra os modelos. Depois, os soldados
orcs e os worgs atacaram-nos à vez, para grande gozo dos que observavam a cena, numa excitação
que se transformou em puro êxtase quando o gigante das rochas avançou e esmagou o elfo negro
fingido.
Tudo aquilo prosseguiu durante horas, e Drizzt suspeitou de que continuaria assim até de
madrugada. Graul e vários outros grandes orcs afastaram-se do grupo principal e começaram a riscar
o chão, aparentemente a delinear planos de batalha. Drizzt não podia esperar aproximar-se o
suficiente para perceber as conversas deles, e não tinha intenção de ficar na árvore com a luz
reveladora do alvorecer prestes a chegar.
Avaliou a sentinela orc do outro lado do tronco, que agora respirava profundamente, adormecida,
antes de começar a descer. Os orcs pretendiam atacar o refúgio de Montolio, sabia isso; não deveria
desferir agora o primeiro golpe?
A consciência de Drizzt traiu-o. Desceu da grande árvore e afastou-se dali, deixando o orc
entregue ao sono no conforto do seu poiso.

Montolio, com Hooter pousada no ombro, estava sentado numa das pontes de corda, à espera do
regresso de Drizzt.
— Vêm atacar-nos — declarou o velho ranger quando finalmente Drizzt regressou. — Graul tem
alguma vingança em mente, provavelmente por causa de um pequeno incidente em Rogee’s Bluff — e
apontou para oeste, para a alta escarpa onde ele e Drizzt se tinham conhecido.
— Tens algum refúgio seguro para alturas como esta? — perguntou Drizzt. — Os orcs virão esta
noite mesmo, creio. Quase uma centena, e com aliados poderosos.
— Fugir?! — exclamou Montolio. Pegou numa corda próxima e lançou-se para o chão, para
aterrar ao lado do drow, com Hooter agarrando-se à sua capa e deslizando junto com ele. — Fugir de
orcs? Não te disse que os orcs são o meu adversário favorito? Nada neste mundo me soa mais doce
do que o som de uma espada a cortar o estômago de um orc!
— Será que vale sequer a pena lembrar-te a desproporção das forças? — disse Drizzt, sorrindo
apesar da preocupação.
— Deverias lembrar isso a Graul! — riu-se Montolio. — O velho orc perdeu o juízo, ou ganhou
uma presunção desmedida, para vir agora, quando está em tão grande desvantagem!
A única resposta de Drizzt, a única resposta possível a uma declaração tão ousada, saiu sob a
forma de uma gargalhada.
— Mas também — prosseguiu Montolio, sem abrandar —, aposto um balde de trutas frescas e três
bons garanhões em como o velho Graul não virá meter-se na refrega. Ficará atrás das árvores, a ver e
a esfregar as mãos gordas, e quando arrasarmos as tropas dele será o primeiro a fugir! Nunca teve
coragem para combater a sério; pelo menos desde que se tornou rei. Está demasiado confortável na
sua posição, calculo, e tem demasiado a perder. Pois bem, retirar-lhe-emos um pouco da
sobranceria!
Mais uma vez, Drizzt não encontrou palavras para responder, e também não conseguiria parar de
rir perante o absurdo. Mesmo assim, tinha de admitir o efeito reconfortante e encorajador das
palavras de Montolio.
— Vai descansar um pouco — disse Montolio, coçando o queixo largo e olhando em volta, mais
uma vez avaliando as posições de defesa. — Vou começar os preparativos. Ficarás espantado,
garanto-te; acordo-te daqui a umas horas.
As últimas palavras que o drow ouviu enquanto se enfiava no seu refúgio puseram tudo em
perspectiva:
— Sim, Hooter, tenho estado à espera disto há muito tempo — dizia Montolio excitadamente. E
Drizzt não duvidou disso.

Tinha sido uma Primavera pacífica para Kellindil e os seus parentes elfos. Eram um grupo nómada,
correndo a região e arranjando abrigo onde calhasse encontrarem-no, em árvores ou em grutas. O
amor deles era pelo vasto mundo, dançando sob as estrelas, cantando em sintonia com os rios das
montanhas, caçando javalis no arvoredo espesso das encostas montanhosas.
Kellindil reconheceu o receio, emoção raramente vista entre aquele grupo despreocupado, no rosto
do primo, quando um elfo regressou ao acampamento, tarde numa noite.
Todos os outros se reuniram à volta dele.
— Os orcs estão agitados — explicou o elfo.
— Graul descobriu alguma caravana? — perguntou Kellindil.
O outro elfo abanou a cabeça e pareceu confundido.
— É demasiado cedo para as caravanas passarem por aqui — respondeu. — Graul tem outra coisa
em mente.
— O refúgio… — disseram vários elfos ao mesmo tempo. O grupo inteiro virou-se para Kellindil,
que parecia considerar o drow como sua responsabilidade.
— Não acredito que o drow estivesse conluiado com Graul — respondeu Kellindil à pergunta
muda dos outros. — Com todos os seus espiões, Montolio teria sabido disso. Se o drow é amigo do
ranger, então não é nosso inimigo.
— O refúgio de Montolio fica a muitos quilómetros daqui — disse um dos outros. — Se
quisermos ver melhor os movimentos do rei orc, e chegar a tempo de ajudar o velho ranger, teremos
de partir imediatamente.
Sem uma palavra de oposição, os elfos errantes reuniram os mantimentos necessários, pegaram
nos seus longos arcos e prepararam flechas adicionais. Poucos minutos depois, partiam, correndo
pelos bosques e pelos trilhos da montanha, não fazendo mais ruído do que uma brisa suave.

Drizzt acordou ao princípio da tarde, para deparar com uma visão espantosa. O dia escurecera, com
nuvens cinzentas, mas ainda parecia muito luminoso para o drow, enquanto saía do refúgio e se
espreguiçava. Mais acima, viu o ranger, rastejando pelos ramos mais altos de um delgado pinheiro.
Enquanto avançava, o peso fez a árvore inclinar-se, e o ranger desceu com leveza, dobrando o
pinheiro quase completamente. Assim que atingiu o solo, firmou os pés e passou uma corda em volta
de umas raízes grossas.
Enquanto esta cena se desenrolava diante dele, Drizzt percebeu que vários pinheiros tinham sido
dobrados desta forma, todos apontados para oeste e todos presos por cordas interligadas. Enquanto
escolhia cuidadosamente o caminho até perto de Montolio, Drizzt passou por uma rede, várias
armadilhas de cordas e uma corda particularmente perigosa, preparada com uma dúzia de lâminas de
duplo gume. Quando a armadilha fosse accionada e as árvores voltassem a endireitar-se, esta corda
seria esticada, para desgraça de quem estivesse junto dela.
— Drizzt? — perguntou Montolio, ouvindo os passos ligeiros. — Cuidado onde pões os pés,
agora. Não gostaria de ter de voltar a dobrar estas árvores todas, embora admita que até é divertido.
— Parece que tens os preparativos bastante avançados — disse Drizzt enquanto se aproximava do
ranger.
— Tenho estado à espera deste momento há muito tempo — respondeu Montolio. — Já travei esta
batalha cem vezes na minha cabeça, e sei o rumo que vai tomar — agachou-se e desenhou uma oval
alongada no chão, mais ou menos com a forma do refúgio. — Deixa-me mostrar-te — explicou,
enquanto desenhava a paisagem em redor do refúgio com tanto pormenor e exactidão que Drizzt
abanou a cabeça e olhou de novo para ele, para se certificar de que o ranger era mesmo cego.
O refúgio consistia em várias dezenas de árvores, que iam de norte para sul por uns cinquenta
metros, e menos de metade disso em largura. O terreno descia por uma encosta suave, mas bem
marcada, com o extremo norte mais baixo um bom meio tronco de árvore do que o extremo sul. Mais
para norte, o terreno era irregular e cheio de rochas, com salpicos de vegetação rasteira e súbitas
inclinações, atravessado por trilhos serpenteantes.
— A força principal deles virá de oeste — explicou Montolio, apontando para lá da parede de
pedras empilhadas e para um par de grupos de árvores muito juntas por entre as muitas elevações
rochosas e penhascos. — Só por ali poderão vir todos juntos.
Drizzt avaliou rapidamente a área circundante e não discordou. Do outro lado do refúgio, para
leste, o terreno era difícil e irregular. Um exército que atacasse dessa direcção avançaria para uma
área de ervas altas em fila única, e seria alvo fácil para o letal arco de Montolio. A sul, para lá do
refúgio, a encosta tornava-se mais íngreme, e era um local perfeito para lançadores de dardos e
arqueiros orcs, excepto pelo facto de que logo a seguir à elevação mais próxima havia uma ravina
abrupta, e ao lado dela uma parede rochosa quase impossível de escalar.
— Não teremos sarilhos a sul — prosseguiu Montolio, quase como se tivesse lido os pensamentos
de Drizzt. — E se vierem de norte, terão de correr pela colina acima para chegarem até nós. Mas eu
conheço Graul bem demais. Com uma proporção tão favorável, fará as suas hostes carregar a direito
por oeste, tentando esmagar-nos pelo número.
— Daí as árvores — notou Drizzt com admiração. — E a rede e a corda com lâminas.
— Ardiloso — disse Montolio, aplaudindo-se a si mesmo. — Mas lembra-te que tive cinco anos
para me preparar para isto. Agora, anda daí. As árvores são apenas o princípio. Tenho tarefas para ti
enquanto acabo as armadilhas das árvores.
Montolio levou Drizzt até outro abrigo secreto e tapado por um manto camuflado. Lá dentro havia
filas de peças metálicas estranhas, que pareciam garras de animais com uma longa barra de ferro a
prendê-las pela base.
— Armadilhas — explicou Montolio. — Os caçadores colocam-nas nas montanhas. Coisas
maldosas. Hooter tem um jeito especial para as detectar e eu recolho-as. Gostava de ter olhos para
ver as caras dos caçadores quando regressam uma semana depois! Esta aqui pertencia a Roddy
McGristle — prosseguiu o ranger, puxando a que estava mais perto. Pousou-a no chão e moveu os
pés cuidadosamente para abrir as mandíbulas do aparelho até estas ficarem na posição aberta. — Isto
há-de fazer parar um orc — disse, apanhando um pau e movendo-o até chegar à mola.
As mandíbulas de aço da armadilha fecharam-se num relâmpago, com a força do impacto a
quebrar o pau num golpe limpo e fazendo saltar a outra metade da mão de Montolio.
— Reuni uma boa colecção delas — disse Montolio sombriamente, fazendo uma careta perante o
som sinistro das mandíbulas de aço. — Nunca pensei vir a usá-las… são coisas malévolas. Mas
contra Graul e os dele, estas armadilhas poderão pelo menos emendar algum do mal que fizeram.
Drizzt não precisava de mais instruções. Tirou as armadilhas do esconderijo e levou-as para o
lado oeste, instalou-as e escondeu-as, prendendo as correntes que as seguravam uns metros mais
adiante. Colocou algumas logo a seguir à parede de pedra, também, pensando que a dor que
causariam aos primeiros orcs que passassem por cima da parede atrasaria decerto os que viriam
mais atrás.
Por essa altura, Montolio já tinha acabado as árvores; tinha dobrado e atado mais de uma dúzia
delas. Agora, o ranger estava numa ponte de cordas que corria de norte para sul, atando uma linha de
arcos ao longo dos suportes de oeste. Uma vez instalados e armados, Drizzt ou Montolio poderiam
simplesmente correr ao longo da linha, disparando-os enquanto avançavam.
Drizzt planeou ir ajudá-lo, mas antes ainda tinha outro truque em mente. Regressou ao esconderijo
das armas e trouxe de lá o pesado e longo pique de três pontas que vira antes. Encontrou uma raiz
grossa na zona onde planeava instalar-se e abriu um pequeno buraco por baixo dela. Deitou a arma
de aço e passou-a através da raiz, com apenas uns centímetros do cabo a saírem do buraco. Depois,
cobriu tudo com ervas e folhas.
Tinha acabado de fazer isso quando o velho ranger o chamou de novo.
— Aqui está o melhor de tudo — disse Montolio, exibindo um sorriso manhoso. Levou Drizzt até
um tronco aberto ao meio e escavado no interior, alisado a fogo e selado com alcatrão para impedir
fugas. — Um bom barco quando o rio está alto e lento — explicou. — E bom para guardar brandy de
Adbar — acrescentou com outro sorriso.
Drizzt, sem perceber, olhou-o com curiosidade. Montolio mostrara-lhe as suas barricas de bebidas
fortes mais de uma semana antes; era um presente que o ranger recebera por ter avisado uma
caravana de Sundabar das intenções de emboscada de Graul, mas o elfo negro não via onde estava a
vantagem de despejar a bebida num tronco escavado.
— O brandy de Adbar é uma bebida bem forte — explicou Montolio. — Arde com mais brilho do
que o mais refinado óleo.
Agora, Drizzt compreendia. Juntos, ele e Montolio levaram o tronco e colocaram-no no final da
única passagem de leste. Despejaram-lhe algum brandy e depois taparam-no com folhagem e ramos.
Quando regressaram à ponte de corda, Drizzt viu que Montolio já tinha feito os preparativos desse
lado. Um único arco estava montado virado para leste, com a flecha armada e com a ponta envolta
num trapo embebido em óleo. Perto, estavam pedras para fazer a faísca.
— Terás de ser tu a apontar — explicou Montolio. — Sem Hooter, não posso ter a certeza, e
mesmo com a ave, às vezes a minha pontaria vai demasiado acima.
A luz do dia estava quase a desaparecer, e a apurada visão nocturna de Drizzt depressa localizou o
tronco escavado. Montolio montara os suportes ao longo da ponte de cordas muito bem e, apenas
com essa finalidade em mente, e com apenas poucos ajustes, Drizzt deixou a arma apontada ao alvo.
Todas as principais defesas estavam prontas, e Drizzt e Montolio trataram de finalizar as suas
estratégias. De vez em quando, Hooter ou outra ave qualquer surgia, tagarelando as notícias ao
ranger. Uma delas chegou com a confirmação já esperada: o rei Graul e o seu bando estavam em
marcha.
— Podes chamar Guenhwyvar agora — disse Montolio. — Virão esta noite.
— São tolos — disse Drizzt. — A noite favorece-nos. Tu és cego e não precisas da luz do dia; e
eu prefiro certamente a escuridão.
A coruja piou novamente.
— O grupo principal virá de oeste — disse Montolio a Drizzt, com um sorriso satisfeito. — Como
eu tinha dito que haveria de ser. Dezenas de orcs e um gigante! Hooter está de olho noutro grupo mais
pequeno que se separou deste primeiro.
A menção do gigante fez um arrepio percorrer a espinha de Drizzt, mas tinha intenção de combater
este, e tinha um plano já montado.
— Quero atrair o gigante para mim — disse.
Montolio virou-se para ele com curiosidade.
— Veremos como se desenrola a batalha — propôs. — Só há um gigante. Ou tu ou eu o
apanharemos.
— Quero atrair o gigante para mim — disse de novo Drizzt, com mais determinação. Montolio não
podia ver o queixo empinado do drow, nem o fogo que ardia nos seus olhos de alfazema, mas não
poderia negar a firmeza da voz.
— Mangura bok woklok — disse. E sorriu outra vez, sabendo que a estranha frase apanhara o
drow desprevenido. — Mangura bok woklok — repetiu Montolio. — «Estúpido cabeça de pedra»,
traduzido à letra. Os gigantes das rochas odeiam esta frase; leva-os a atacar imediatamente, nunca
falha.
— Mangura bok woklok — disse Drizzt calmamente. Teria de se lembrar destas palavras.
Drizzt notou que Montolio parecia um pouco mais do que simplesmente apreensivo depois de Hooter,
que regressara com mais notícias, ter partido de novo.
— Notícias do grupo secundário de Graul? — inquiriu.
Montolio assentiu, com uma expressão sombria.
— Orcs montados em worgs… Apenas uma mão-cheia deles, a fazer um percurso em curva para
oeste.
Drizzt olhou para lá da parede de pedras, para a passagem protegida pelo tronco escavado com
brandy.
— Poderemos pará-los — disse.
Mas a expressão do ranger continuava a anunciar maus sinais.
— Outro grupo de worgs, umas duas dúzias ou mais, está a vir de sul — e Drizzt não deixou de
perceber o receio do ranger, enquanto este acrescentava: — Caroak vem a liderá-los. Nunca pensei
que esse se aliasse a Graul.
— Um gigante? — perguntou Drizzt.
— Não, um lobo do Inverno — respondeu Montolio. Ao ouvir estas palavras, as orelhas de
Guenhwyvar caíram e a pantera rugiu iradamente.
— A pantera sabe — disse Montolio quando Drizzt olhou para Guenhwyvar, espantado. — Um
lobo do Inverno é uma perversão da natureza, um atentado às criaturas que seguem a ordem natural e,
por isso, inimigo de Guenhwyvar.
A pantera negra rugiu de novo.
— É uma criatura muito grande — prosseguiu Montolio. — E demasiado esperta para um lobo. Já
me cruzei com Caroak antes. Ele sozinho dar-nos-ia a ambos muito que fazer! Com os worgs à sua
volta, e connosco ocupados a lutar com os orcs, é bem capaz de conseguir ganhar o dia.
Guenhwyvar rugiu pela terceira vez e raspou no chão com as grandes garras.
— Guenhwyvar tratará de Caroak — disse Drizzt.
Montolio aproximou-se da pantera e agarrou-a pelas orelhas, puxando o olhar de Guenhwyvar
para bem perto do seu rosto.
— Cuidado com o bafo do lobo — disse o ranger. — É um cone de gelo, que te gelará os
músculos até aos ossos. Já vi um gigante abatido por ele!
Montolio virou-se para Drizzt e soube que o drow tinha agora uma expressão mais preocupada.
— Guenhwyvar terá de o manter longe de nós até que consigamos rechaçar Graul e o seu grupo —
disse o ranger. — Depois, poderemos tratar de Caroak.
Largou as orelhas da pantera e acariciou-a com força sob o pescoço.
Guenhwyvar rugiu pela quarta vez e partiu para fora do refúgio, como uma flecha negra lançada
para o coração das trevas.

A força de ataque principal de Graul chegou, como era esperado, de oeste, uivando e gritando e
espezinhando os arbustos pelo caminho. As tropas aproximavam-se em dois grupos, um por cada um
dos densos aglomerados de árvores.
— Aponta para o grupo de sul! — gritou Montolio para Drizzt, em posição no arco da ponte de
cordas. — Temos amigos no outro!
Como que em confirmação da exortação do ranger, o aglomerado de árvores a norte encheu-se
subitamente de gritos de orcs que mais soavam como guinchos de pânico do que como gritos de
batalha. Um coro de rugidos guturais acompanhava esses guinchos. Bluster, o urso, acorrera à
chamada de Montolio, percebeu Drizzt, e pelos sons que vinham das árvores trouxera consigo
bastantes amigos.
Drizzt não ia perder tempo a abençoar a boa sorte que estavam a ter. Posicionou-se atrás do arco
mais próximo e deixou a contenda correr, enquanto os primeiros orcs apareciam saindo das árvores a
sul. O drow correu pela linha, largando os tiros em rápida sucessão. Lá de baixo, Montolio lançava
algumas flechas por cima da parede de pedras.
No súbito enxame de orcs, Drizzt não conseguia perceber quantos tiros tinham realmente acertado
no alvo, mas as flechas tinham efectivamente abrandado a carga dos orcs e provocado uma
debandada nas suas fileiras. Vários orcs caíram sobre as barrigas; uns quantos viraram costas e
correram de regresso às árvores. O grosso do grupo, no entanto, e mais alguns que acorriam vindos
do outro aglomerado de árvores, avançavam ainda.
Montolio disparou uma última vez, e depois procurou o caminho de regresso para trás do centro
das suas armadilhas de árvores dobradas, onde estaria protegido dos três lados por paredes de
madeira e por árvores. Com o arco numa mão, verificou a espada e depois esticou o braço para
agarrar uma corda do outro lado.
Drizzt viu o ranger a assumir a nova posição uns seis metros abaixo dele e mais para o lado, e
calculou que esta seria a sua última oportunidade. Viu um objecto pendendo sobre a cabeça de
Montolio e lançou-lhe um encantamento.
Os primeiros embates apenas tinham provocado um mínimo de caos nas fileiras de orcs atacantes,
mas as armadilhas mostraram ser mais eficazes. Primeiro um orc, depois outro, pisaram-nas, e os
seus gritos sobrepuseram-se ao coro de uivos de batalha. Quando os outros orcs viram a dor e a
angústia dos seus companheiros, abrandaram consideravelmente ou pararam por completo.
Com a agitação crescente no campo de batalha, Drizzt fez uma pausa e ponderou cuidadosamente o
seu tiro final. Reparou num grande orc finamente vestido que observava a cena a partir do arvoredo
mais próximo do lado norte. Soube que aquele era Graul, mas a sua atenção foi desviada
imediatamente pela figura que estava ao lado do rei orc.
— Raios! — resmungou o drow, reconhecendo McGristle. Agora estava dividido, e apontava o
arco para um lado e para o outro, entre os adversários. Queria disparar para Roddy, queria pôr fim
ao seu tormento pessoal, ali e agora mesmo. Mas Roddy não era um orc, e Drizzt deu consigo
enojado pelo pensamento de matar um humano. — O orc é o alvo mais importante — disse para si
mesmo, mais para se distrair do seu dilema profundo do que por qualquer outra razão.
Rapidamente, antes que pudesse reunir mais argumentos, apontou e disparou. A flecha assobiou
para longe e longamente, cravando-se no tronco de uma árvore apenas uns centímetros acima da
cabeça de Graul. Roddy agarrou rapidamente o rei orc e empurrou-o de volta para as sombras mais
escuras. Atrás deles apareceu um gigante das rochas a rugir, com uma enorme pedra na mão.
A pedra partiu ramos das árvores atrás de Drizzt, fazendo-as abanar, bem como à ponte de cordas.
Um segundo tiro seguiu-se de imediato, e este acertou em cheio num poste de apoio, fazendo abater a
metade frontal da ponte.
Drizzt vira o tiro a partir, mas ficou espantado e admirado pela pontaria inesperada, a tão grande
distância. Enquanto a metade frontal da ponte se abatia sob os seus pés, Drizzt saltou, agarrando-se
aos ramos. Quando finalmente se recompôs, estava diante de um novo problema. De leste vinham
orcs montados em worgs, com tochas nas mãos.
Drizzt olhou para a armadilha do tronco escavado, e depois para o arco apontado para ele. O arco,
e o poste que o sustinha, tinham sobrevivido ao impacto da pedra, mas o drow não poderia esperar
chegar até ele pela ponte em colapso.

Os chefes do grupo principal, agora atrás de Drizzt, chegaram então à parede de pedras. Por sorte, o
primeiro orc a passar por cima da parede aterrou sobre uma das armadilhas com dentes de aço, e os
companheiros não tiveram pressa em segui-lo.
Guenhwyvar saltava por entre as muitas rochas que marcavam a descida para o lado norte. A
pantera captou os primeiros gritos distantes de batalha lá atrás, no refúgio, mas escutou mais
atentamente os uivos da matilha de lobos que se aproximava. A pantera saltou para uma pequena
elevação e esperou.
Caroak, a enorme besta de pêlo prateado, liderava a carga. Concentrado no refúgio ainda distante,
a surpresa do lobo do Inverno foi total quando Guenhwyvar caiu sobre ele, rasgando e cortando
selvaticamente com as suas garras.
Tufos de pelagem prateada esvoaçavam pelo ar devido ao ataque. Uivando, Caroak mergulhou e
rebolou para um lado. Guenhwyvar saltitou por cima do lobo a rolar, como um lenhador poderia
saltitar sobre um tronco a rebolar, atacando e cortando a cada passo. Mas Caroak era um velho lobo
experiente, veterano de centenas de batalhas. Enquanto o monstro rolava de novo sobre as costas, um
sopro de gelo saiu em direcção à pantera.
Guenhwyvar desviou-se para o lado, para evitar o bafo gélido e o ataque de vários worgs. O bafo
gélido apanhou, no entanto, a pantera de um lado do rosto, deixando-lhe as mandíbulas dormentes.
Depois, a perseguição começou, com Guenhwyvar saltando em volta da matilha de lobos e de worgs
e do irado Caroak, que a seguiam pisando-lhe os calcanhares.

O tempo estava a esgotar-se para Drizzt e Montolio. Acima de tudo o resto, o drow sabia que tinha
de proteger o flanco traseiro. Em movimentos sincronizados, Drizzt descalçou as botas, pegou na
pedra com uma mão e colocou um pedaço de aço na boca, saltando para um ramo que o levaria até ao
arco.
Pôs-se em cima dele daí a pouco. Segurando-se com uma mão, bateu com a pedra com força. As
faíscas saltaram, chegando perto do alvo. Drizzt repetiu o gesto uma e outra vez, e por fim uma faísca
atingiu o trapo embebido em óleo que envolvia a ponta da flecha; era o suficiente para lhe pegar
fogo.
Mas agora o drow não estava com tanta sorte. Torcia-se e balouçava-se, mas não conseguia chegar
perto do gatilho.
Montolio nada conseguia ver, evidentemente, mas sabia o suficiente sobre a situação em geral.
Ouviu os worgs que se aproximavam pela parte de trás do refúgio e soube que os que estavam à
frente tinham passado pela parede de pedra. Lançou mais um tiro do arco para o denso aglomerado
de árvores dobradas, apenas para avaliar a pontaria, e depois soltou três fortes pios.
Em resposta, um bando de corujas desceu dos pinheiros, abatendo-se sobre os orcs ao longo da
parede de pedra. Tal como as armadilhas, as aves só podiam causar um mínimo de danos reais, mas
a confusão dava aos defensores algum tempo adicional.

Até ali, a única vantagem clara para os defensores vinha do aglomerado de árvores a norte, onde
Bluster e três dos seus mais chegados e maiores amigos ursos tinham abatido uma dúzia de orcs e
feito fugir mais de uma dezena, às cegas.
Um orc, ao fugir de um dos ursos, passou por uma árvore e quase deu de caras contra Bluster. O
orc ainda teve o sangue frio para carregar com a lança, mas não tinha força para a fazer trespassar a
pelagem dura do urso.
Bluster respondeu com um pesado varrimento dos braços que fez a cabeça do orc voar por entre as
árvores.
Outro grande urso andava por ali, com os grandes braços cruzados diante do peito. O único sinal
de que o urso estava a segurar em alguma coisa naquele abraço eram os pés do orc, que pontapeavam
o ar freneticamente sob a pelagem que o abraçava.
Bluster deparou com outro inimigo, mais pequeno e mais rápido do que um orc. O urso rugiu e
carregou, mas a diminuta criatura já tinha desaparecido quando chegou perto do sítio.
Tephanis não tinha nenhuma intenção de se unir à batalha. Viera com o grupo de norte, acima de
tudo, para se manter longe da vista de Graul, e planeara manter-se todo o tempo entre as árvores e
esperar pelo fim da refrega. Mas as árvores já não pareciam tão seguras assim; por isso, o duende
afastou-se dali velozmente, com a intenção de ir para o aglomerado de sul.
Mais ou menos a meio do caminho para o outro aglomerado de árvores, os planos do duende foram
gorados de novo. A velocidade pura quase o conseguiu fazer passar pela armadilha antes que as
mandíbulas de aço se fechassem, mas os dentes terríveis ainda lhe apanharam uma ponta de um pé. O
relâmpago de dor que se seguiu fê-lo ficar sem fôlego e deixou-o estonteado, caído de borco na erva.

Drizzt sabia como aquele pequeno fogo no meio da contenda seria revelador, por isso não ficou
muito surpreendido quando outra pedra lançada por um gigante se abateu ali perto com grande
estrondo. Acertou no ramo já em esforço onde Drizzt se encontrava e, com uma série de estalidos, o
ramo partiu-se.
Drizzt agarrou o arco com o pé enquanto caía, e soltou o gatilho imediatamente, antes que a arma
fosse desviada demasiado para o lado. Depois, manteve teimosamente a posição e ficou à espreita.
A flecha incendiária partiu para a escuridão, para lá da parede de pedra de leste. Deslizou rente
ao chão, deixando faíscas pelas ervas altas, e depois cravou-se no tronco cheio de brandy — mas do
lado de fora.
A primeira metade dos orcs montados em worgs conseguiu passar pela armadilha, mas os restantes
três não tiveram tanta sorte, passando mesmo no momento em que as chamas começavam a lamber o
interior do tronco. O brandy rugiu, ganhando vida, enquanto os orcs montados passavam por ele.
Worgs e orcs caíram no meio das ervas altas, iniciando novas bolsas de fogo.
Aqueles que já tinham passado viraram-se para trás abruptamente, perante a nova situação. Um orc
montado caiu pesadamente, abatendo-se sobre a sua própria tocha, e os outros dois mal se
conseguiram manter nas selas. Acima de tudo o resto, os worgs odiavam o fogo, e a visão de três dos
seus rebolando transformados em bolas de fogo pouco fez para fortalecer a sua determinação em
combate.

Guenhwyvar chegou a uma pequena área plana, dominada por uma única árvore. Quem estivesse a
observar a pantera teria piscado os olhos, incrédulo, perante a corrida da pantera pela árvore acima,
interrogando-se esta estava de facto na vertical, tão depressa a pantera a subiu.
O bando de worgs chegou daí a pouco, farejando e observando a toda a volta, certos de que o
felino estava no cimo da árvore, mas incapazes de discernir a escura silhueta de Guenhwyvar entre
as ramagens escuras.
A pantera mostrou-se daí a pouco, porém, caindo de novo pesadamente sobre o dorso do lobo do
Inverno, e desta vez tendo o cuidado de ferrar as mandíbulas numa orelha de Caroak.
O lobo do Inverno caiu e uivou enquanto as garras de Guenhwyvar faziam o seu trabalho. Caroak
conseguiu virar-se e Guenhwyvar ouviu a inspiração profunda do monstro, o mesmo som que ouvira
antes do anterior sopro gélido.
Os grandes músculos do pescoço da pantera contraíram-se, forçando as mandíbulas abertas de
Caroak a desviarem-se para o lado. O hálito letal saiu, mesmo assim, mas acertou em três dos worgs
atacantes, mesmo em cheio nos focinhos.
Os músculos de Guenhwyvar descontraíram e depois contraíram-se de novo subitamente, e a
pantera ouviu o pescoço de Caroak a partir. O lobo do Inverno caiu como um trapo, com
Guenhwyvar ainda em cima dele.
Os três worgs mais próximos de Guenhwyvar, os três que tinham apanhado o bafo gélido de
Caroak, não eram uma ameaça. Um estava caído de lado, tentando respirar, mas o ar não se movia
nos seus pulmões congelados; outro andava em círculos, completamente cego; e o último estava
perfeitamente imóvel, ainda a olhar para as patas dianteiras, que, por qualquer razão, não respondiam
à sua ordem para se mexerem.
O resto da matilha, no entanto, quase uma vintena, avançou metodicamente, rodeando a pantera
num círculo mortal. Guenhwyvar olhou em volta, em busca de uma escapatória, mas os worgs não
andavam a correr freneticamente, e não deixavam abertas.

Os orcs que lideravam andavam pelo meio das árvores dobradas, procurando um caminho. Alguns
tinham feito algum progresso, mas todas as armadilhas estavam ligadas, e qualquer um dos fios
armadilhados faria todos os pinheiros endireitarem-se subitamente.
Um dos orcs encontrou a rede de Montolio nesse momento, e da pior maneira. Tropeçou numa
corda, caiu de caras na rede, e depois foi lançado bem alto pelo ar, com um dos seus companheiros
também apanhado, ao lado. Nenhum deles poderia imaginar como tinha tido muito mais sorte do que
aqueles que tinham deixado para trás, e especialmente o orc que, sem desconfiar de nada, caminhava
junto à corda eriçada de lâminas aguçadas. Quando as árvores se soltaram, também essa armadilha
infernal entrou em acção, esventrando a criatura e lançando-a no ar, de cabeça para baixo.
Mesmo os orcs que não tinham sido apanhados pelas armadilhas secundárias não se saíram bem.
Ramos entrelaçados, cheios de pontas aguçadas, dispararam à volta deles, fazendo alguns fugir
rapidamente e tropeçando nos outros e desorientando-os.
Pior ainda para os orcs, Montolio usou o som das árvores a assobiar no seu movimento como sinal
para abrir fogo. Flecha atrás de flecha assobiou pelo local, com a maioria delas a acertar no alvo.
Um orc ergueu a lança para a atirar, mas depois recebeu uma flecha em cheio na cara, e outra no
peito. Outro dos monstros virou costas e fugiu, gritando freneticamente:
— Má magia! Má magia!
Para os que estavam a passar pela parede de pedras, o que gritava parecia voar, com os pés a
deslizar acima do chão. Os companheiros espantados compreenderam tudo quando o orc caiu como
um trapo, com uma flecha ainda a vibrar espetada nas costas.
Drizzt, ainda no seu instável poiso, não tinha tempo para se deliciar com o eficiente trabalho de
Montolio e com os seus planos bem arquitectados. A leste, o gigante estava em movimento e, do
outro lado, os dois orcs montados em worgs que restavam tinham-se recomposto o suficiente para
recomeçar os ataques, com as tochas erguidas bem alto.

O círculo de worgs a rosnar apertou-se. Guenhwyvar conseguia cheirar o hálito pestilento deles. A
pantera não podia esperar atacar aquelas fileiras apertadas, nem podia saltar por cima deles
suficientemente depressa para fugir.
Mas Guenhwyvar encontrou outra via. Com as patas traseiras apoiadas no corpo ainda a
contorcer-se de Caroak, a pantera saltou como um flecha no ar, por quatro metros ou mais. Apanhou
o ramo mais baixo da árvore com as longas garras das patas da frente, firmou-se e subiu. Depois,
desapareceu na ramagem, deixando a matilha frustrada a uivar e a rosnar.
Mas Guenhwyvar reapareceu daí a pouco, saindo por um lado e regressando ao chão, e a matilha
perseguiu-a. A pantera aprendera a conhecer o terreno bastante bem durante as semanas anteriores, e
agora descobrira exactamente para onde devia levar os lobos.
Correram ao longo de uma ravina muito extensa, com um vazio escuro e ameaçador à esquerda.
Guenhwyvar marcara bem os rochedos e as poucas árvores dispersas. Não conseguia ver o abismo
do lado esquerdo e tinha de confiar plenamente na memória. Incrivelmente rápida, Guenhwyvar
rodou subitamente e saltou para a noite, aterrando com leveza do outro lado do caminho e disparando
em direcção ao refúgio. Os worgs teriam de dar um grande salto — demasiado grande para a maioria
deles — ou correr uma grande distância para trás, se quisessem segui-la.
Aproximaram-se rosnando e escavando o chão. Um deles parou à beira do abismo e pareceu
querer tentar o salto, mas uma flecha explodiu-lhe no flanco e arruinou-lhe a determinação.
Os worgs não eram estúpidos, e a visão da flecha colocou-os na defensiva. A chuva de flechas que
se seguiu, vinda de Kellindil e dos seus, era mais do que esperavam. Dezenas de flechas assobiaram,
abatendo os worgs onde estavam. Apenas alguns escaparam à barragem de flechas, e esses fugiram
imediatamente na escuridão da noite.

Drizzt convocou um truque mágico para fazer parar os portadores das tochas. Fogo feérico, chamas
dançantes inofensivas, apareceram subitamente por baixo das chamas das tochas, deslizando pelos
instrumentos de madeira até lamberem as mãos dos orcs. O fogo feérico não queimava — nem sequer
era quente —, mas quando os orcs viram as chamas a chegarem-lhe às mãos estavam longe de ser
racionais.
Um deles lançou a tocha para longe, e o movimento sacudido fê-lo cair da sela. Caiu na erva e o
worg deu mais uma volta e rosnou de frustração.
O outro orc deixou simplesmente cair a tocha, que aterrou em cima da cabeça da sua montada.
Faíscas e chamas saltaram da espessa pelagem do worg, provocando-lhe ardor nos olhos e orelhas, e
o animal ficou tresloucado.
O orc cambaleou até se pôr de novo em pé, estonteado e ferido, e estendendo os braços para a
frente, como que a pedir desculpa. O worg, no entanto, não pareceu interessado em ouvi-lo. Saltou
em frente e cravou as poderosas garras no rosto do orc.
Drizzt não viu nada disto. O drow apenas podia esperar que o truque tivesse resultado, porque,
assim que lançou o encantamento, soltou-se do poiso onde estava e deixou que o ramo semi-partido o
levasse até ao chão.
Dois orcs, vendo finalmente um alvo, correram para o drow assim que aterrou, mas logo que as
mãos de Drizzt ficaram livres do ramo exibiram as cimitarras prontas. Os orcs avançaram, de
qualquer forma, sem prestar atenção, e Drizzt sacudiu as armas deles para o lado e abateu-os. O
drow passou por entre mais resistentes dispersos enquanto avançava para o seu local já preparado.
Um sorriso sinistro passou-lhe pelo rosto quando por fim sentiu o cabo do pique debaixo dos pés
descalços. Lembrou-se dos gigantes de Maldobar que tinham chacinado uma família inocente, e
reconfortou-se por agora ir matar mais um do seu género malévolo.
— Mangura bok woklok! — gritou Drizzt, colocando um pé sobre a raiz e o outro sobre a ponta
romba da arma escondida.

Montolio sorriu quando ouviu o chamamento do drow, ganhando confiança com a proximidade do seu
poderoso aliado. O arco do ranger cantou mais algumas vezes, mas Montolio pressentiu que os orcs
estavam a vir na sua direcção por caminhos laterais, usando o arvoredo espesso como cobertura.
Esperou, deixando-os aproximar-se. Depois, mesmo antes de chegarem junto dele, largou o arco,
pegou na espada e cortou a corda ao seu lado, mesmo por baixo de um grande nó. A corda cortada
chicoteou no ar, e o nó prendeu num ramo baixo. O escudo de Montolio, fortalecido por um dos
encantamentos de escuridão de Drizzt, desceu para ficar precisamente à altura certa do braço do
ranger.
A escuridão tinha pouca influência no ranger cego, mas os poucos orcs que tinham vindo ter com
ele deram consigo numa posição precária. Agitaram-se e esbracejaram freneticamente — um deles
retalhando o próprio irmão — enquanto Montolio calmamente se orientava na refrega e fazia o seu
trabalho com método. Em apenas um minuto, quatro dos cinco que tinham avançado estavam mortos
ou moribundos, e o quinto estava em fuga.
Longe de saciado, o ranger e a sua bola de escuridão portátil seguiram-no, em busca de vozes ou
sons que os levassem a mais orcs. De novo se ouviu o grito que fazia Montolio sorrir.

— Mangura blok woklok — gritou Drizzt de novo. Um orc atirou uma lança para o drow, que ele
prontamente desviou para o lado. O orc distante estava agora desarmado, mas Drizzt não foi em
perseguição dele, determinado a manter a sua posição.
— Mangura blok woklok! — gritou mais uma vez. — Anda, estúpido cabeça de pedra!
Desta vez, o gigante, que se aproximava da parede na direcção de Montolio, ouviu as palavras. O
grande monstro hesitou por um momento, olhando para o drow com curiosidade.
Drizzt não perdeu a oportunidade.
— Mangura blok woklok!
Com um rugido e batendo os pés com força no chão, fazendo-o estremecer, o gigante abriu a murro
um buraco na parede de pedras e avançou para Drizzt.
— Mangura blok woklok! — disse Drizzt, para garantir que tinha a atenção dele, colocando os
pés na posição adequada.
O gigante lançou-se numa corrida cega, fazendo tombar orcs aterrorizados pelo caminho e batendo
a moca contra uma pedra que trazia na mão, irritadamente. Cuspiu mil pragas contra Drizzt, nesses
poucos segundos — palavras que o drow nunca conseguiria decifrar. Com três vezes a altura de
Drizzt e várias vezes o seu peso, o gigante apareceu diante dele, e na sua corrida parecia realmente
que iria esmagar o drow onde este estava calmamente à espera.
Quando o gigante estava a apenas dois passos de Drizzt, concentrado na sua rota de colisão, o
drow deslocou todo o peso para o pé que estava mais atrás. A ponta do pique entrou no buraco. A
ponta aguçada subiu.
Drizzt saltou para trás no momento em que o gigante avançou para o pique erguido. A ponta da
arma e os gumes laterais desapareceram na barriga do gigante e abriram caminho para cima até ao
coração e aos pulmões. A vara metálica dobrou-se e pareceu que ia partir enquanto a outra
extremidade se enterrava mais uns centímetros no chão.
Mas o pique aguentou a pressão, e o gigante estacou ali mesmo. Largou a moca e a pedra e tentou
deitar as mãos gordas à vara metálica, mas não tinha forças sequer para as fechar em volta dela. Os
olhos enormes rebolavam de terror e de absoluta surpresa. A grande boca abriu-se muito e
contorceu-se estranhamente, mas não tinha sequer ar para soltar um grito.
Também Drizzt quase gritou, mas conteve as palavras antes de as dizer.
— Espantoso — disse, olhando novamente para onde Montolio estava a lutar, porque o grito que
quase soltara era um louvor à deusa Mielikki. Abanou a cabeça e sorriu, espantado pela percepção
acutilante do seu companheiro que não era assim tão cego.
Com esses pensamentos em mente e com uma sensação de rectidão no coração, Drizzt correu pela
vara acima e retalhou a garganta do gigante com ambas as armas. Prosseguiu saltando por cima dos
ombros e cabeça do monstro e em direcção a um grupo de orcs que tinha ficado a olhar, rodopiando
as armas enquanto o fazia.
A visão do gigante, o seu maior aliado, a estremecer e em estertor, já os tinha deixado nervosos,
mas quando este monstro de pele de ébano e olhos ferozes saltou na sua direcção entraram em
pânico. A carga de Drizzt levou-o até aos dois que estavam mais próximos, e abateu-os
imediatamente. Depois, prosseguiu.
Cinco ou seis metros à esquerda do drow, uma bola de escuridão saiu de entre as árvores,
empurrando uma dúzia de orcs à sua frente. Os orcs sabiam que entrar naquele globo impenetrável
era ficar ao alcance do ranger cego e morrer.

Dois orcs e três worgs, que era tudo o que restava dos portadores das tochas, reagruparam-se e
deslizaram silenciosamente em direcção ao extremo leste do refúgio. Se conseguissem colocar-se
atrás do inimigo, julgavam que a batalha ainda poderia ser ganha.
O orc mais a norte nem sequer viu a silhueta escura que corria para ele. Guenhwyvar abateu-o e
prosseguiu a corrida, confiante em que aquele não se voltaria a erguer.
Um worg era o seguinte na fila. Mais rápido a reagir do que o orc, virou-se e enfrentou a pantera,
com os dentes arreganhados e as patas a bater no chão.
Guenhwyvar rugiu, parando em frente dele. Grandes garras avançaram alternadamente numa série
de golpes. O worg não conseguia responder à velocidade do felino. Balouçava as mandíbulas para
um lado e para o outro, mas sempre demasiado tarde para apanhar as garras velozes. Ao fim de
apenas cinco golpes, o worg estava derrotado. Um olho fechara-se para sempre, e a língua cortada
quase ao meio pendia-lhe de um lado da boca; o maxilar inferior já não estava alinhado com o
superior. Só a presença de outros alvos salvou o worg, porque quando virou costas e fugiu por onde
tinha vindo, Guenhwyvar, vendo presas mais próximas, não o seguiu.
Drizzt e Montolio tinham feito fugir a maior parte da força atacante para lá da parede de pedras.
— Má magia! — gritavam os orcs, com as vozes soando desesperadas. Hooter e as suas
companheiras corujas ajudavam à confusão geral, batendo as asas mesmo nas caras dos orcs, dando
bicadas e depois fugindo de novo para o céu. Mais um orc tropeçou numa das armadilhas enquanto
tentava fugir. Caiu uivando e guinchando, e os seus gritos só faziam aumentar o terror dos
companheiros.
— Não! — gritou Roddy McGristle, incrédulo. — Deixaste que apenas dois vencessem o teu
exército inteiro! — O olhar de Graul fixou-se no homem rude. — Podemos fazê-los avançar de novo
— disse Roddy. — Se te virem, voltarão para a batalha.
A avaliação do homem das montanhas não estava errada. Se Graul e ele entrassem agora na
batalha, os orcs, que ainda eram mais de cinquenta, talvez se reagrupassem. Esgotadas quase todas as
armadilhas, Drizzt e Montolio ficariam numa posição realmente delicada! Mas o rei orc vira mais um
problema a avolumar-se a norte e decidira, apesar dos protestos de Roddy, que o velho ranger e o
elfo negro simplesmente não valiam tanto esforço.
A maioria dos orcs no campo de batalha ouviram o novo perigo antes de o conseguirem ver,
porque Bluster e os seus amigos eram uma pandilha barulhenta. O maior obstáculo que os ursos
encontravam enquanto avançavam por entre as fileiras de orcs era escolher um único alvo no meio do
tropel. Atiravam orcs ao chão quando passavam por eles, depois perseguiam-nos até ao arvoredo e
para lá dele, e depois corriam atrás deles o caminho todo até às suas grutas junto ao rio. Era o auge
da Primavera; o ar estava carregado de energia e excitação, e aqueles ursos brincalhões adoravam
lançar orcs ao ar!

A horda de corpos em queda passou mesmo junto ao quickling caído. Quando Tephanis acordou, viu
que era o único que estava vivo no campo ensopado de sangue. Uivos e gritos vinham de oeste, do
bando que fugia, e os sons da batalha ainda ecoavam no refúgio do ranger. Tephanis sabia que o seu
papel na batalha, por pequeno que tivesse sido, estava terminado. Uma dor tremenda corria-lhe por
uma perna; uma dor maior do que alguma vez sentira. Olhou para o pé desfeito e percebeu,
horrorizado, que a única maneira de se libertar da armadilha seria completar o feio corte, perdendo a
ponta do pé e os cinco dedos. Não seria uma tarefa difícil — o pé já estava apenas preso por um
pequeno pedaço de pele — e Tephanis não podia hesitar, receando que o drow viesse a qualquer
momento atrás dele.
O quickling abafou um grito e tapou a ferida com pedaços da camisa rasgada; depois, cambaleou
— lentamente — para o meio das árvores.

O orc arrastava-se em silêncio, agradecido pelos ruídos do combate entre a pantera e o worg.
Qualquer ideia de matar o velho ranger ou o drow tinham já abandonado este orc; vira os seus
companheiros perseguidos por um bando de ursos. Agora, o orc só queria encontrar uma saída, o que
não seria tarefa fácil no meio do emaranhado de ramagens baixas dos pinheiros.
Pisou algumas folhas secas quando entrou numa clareira e estacou ao ouvir o ruído. Olhou para a
esquerda, e depois girou a cabeça lentamente para espreitar para a direita. De repente, virou-se para
trás, esperando um ataque pelas costas. Mas estava tudo calmo, tanto quanto conseguia ver, à
excepção dos rugidos distantes da pantera e dos uivos dos worgs. O orc soltou um profundo suspiro
de alívio e procurou de novo o trilho.
Parou subitamente, por instinto, e atirou a cabeça para trás, para olhar para cima. Uma figura
escura estava empoleirada num ramo mesmo por cima da cabeça do orc, e o relâmpago prateado
disparou antes que conseguisse sequer reagir. A curva de uma lâmina de cimitarra mostrou-se
perfeita para deslizar por baixo do queixo do orc e mergulhar-lhe na garganta.
O orc ficou muito quieto, de braços abertos e a tremer, e tentou gritar, mas tinha a laringe
completamente cortada. A cimitarra saiu num golpe rápido e o orc caiu para trás, morto.
Não muito longe dali, outro orc conseguiu finalmente desembaraçar-se da rede em que estava
pendurado e rapidamente a cortou para libertar outro companheiro. Os dois, enraivecidos e não tão
ansiosos como os outros por fugir sem lutar, avançaram silenciosamente.
— No escuro — disse um deles quando passaram por um grupo de árvores e viram a paisagem
tapada por uma escuridão impenetrável. — No fundo.
Juntos, os orcs ergueram as lanças e atiraram-nas, rugindo selvaticamente devido ao esforço. As
lanças desapareceram na escuridão, mesmo no meio do globo, com uma delas a embater nalgum
objecto metálico, e com a outra a atingir algo mais macio.
Os gritos de vitória dos orcs foram logo parados pelo som de dois disparos de um arco. Uma das
criaturas caiu para a frente, e estava morta antes de chegar ao chão, mas a outra, mantendo
teimosamente a posição, conseguiu ainda olhar para o peito, para ver a ponta de uma flecha a
espreitar. Ainda viveu o tempo suficiente para ver Montolio passar descontraidamente por ele e
desaparecer no meio da escuridão, para ir buscar o escudo.
Drizzt observou o velho ranger à distância, abanando a cabeça e espantando-se com a cena.

— Acabou — disse o batedor elfo aos outros quando estes chegaram junto dele, no meio dos
rochedos logo a sul do refúgio de Mooshie.
— Não tenho assim tanta certeza — respondeu Kellindil, olhando com curiosidade para oeste e
ouvindo os ecos dos rugidos dos ursos e dos gritos dos orcs. Kellindil suspeitava de que algo mais
do que Graul estaria por detrás deste ataque e, sentindo-se de alguma forma responsável pelo drow,
queria saber o que poderia ser.
— O ranger e o drow defenderam o refúgio — explicou o batedor.
— De acordo — disse Kellindil. — E a vossa parte terminou. Regressem todos ao acampamento.
— Não te juntas a nós? — perguntou um dos elfos, embora já adivinhasse a resposta.
— Se o destino assim ditar — respondeu Kellindil. — Por agora, tenho outros assuntos a tratar.
Os outros não perguntaram mais nada. Kellindil raramente vinha ao seu reino, e nunca ficava por
muito tempo. Kellindil era um aventureiro; o seu lar eram as estradas. Partiu imediatamente, correndo
para apanhar os orcs que fugiam, e depois seguindo o movimento deles lateralmente.

— Deixaste que apenas dois te vencessem! — queixou-se Roddy quando ele e Graul pararam por um
momento para recuperar o fôlego. — Apenas dois!
A resposta de Graul veio sob a forma de uma pesada moca. Roddy bloqueou parcialmente o golpe,
mas o impacto fê-lo recuar.
— Vais pagar por isso! — rosnou o homem das montanhas, tirando Bleeder do cinturão. Uma
dúzia dos esbirros de Graul apareceram ao lado do rei orc nesse momento e perceberam
imediatamente a situação.
— Trouxeste-nos a desgraça! — acusou Graul. E depois incitou os seus orcs: — Matem-no!
O cão de Roddy fez cair o primeiro do grupo e Roddy não esperou que os outros chegassem perto.
Virou costas e correu para o meio da noite, usando todos os truques que conhecia para se manter
adiante do grupo que o perseguia.
Os seus esforços deram frutos rapidamente — os orcs não queriam realmente mais lutas nessa
noite — e Roddy podia parar de olhar por cima do ombro.
Ouviu um restolhar mais à frente e virou-se mesmo a tempo de apanhar com o punho de uma
espada mesmo em cheio na cara. A força do golpe, multiplicada pelo próprio balanço de Roddy, fez
o homem das montanhas cair redondo no chão, inconsciente.
— Não estou nada surpreendido — disse Kellindil para o corpo caído.
Oito dias nada tinham feito para aliviar a dor no pé de Tephanis. O duende coxeava o melhor que
podia, mas frequentemente, quando corria, desequilibrava-se para um lado e inevitavelmente caía no
meio de um arbusto ou, pior ainda, ia contra o tronco de uma árvore.
— Importas-te-de-parar-de-me-rosnar, estúpido-cão? — resmungou Tephanis para o cão amarelo
com que estava desde o dia a seguir à batalha. Nenhum dos dois se sentia confortável com a presença
do outro. Tephanis lamentava-se frequentemente por aquele feio rafeiro não ser nada parecido com
Caroak.
Mas Caroak estava morto; o quickling encontrara o corpo morto do lobo do Inverno. Mais um
companheiro caído, e agora o duende estava de novo sozinho.
— Sozinho, a não ser pela tua companhia, estúpido cão — lamentou-se.
O cão arreganhou os dentes e rosnou.
Tephanis teve vontade de lhe cortar o pescoço, de correr para trás e para diante pelo dorso do
animal, cortando-o e retalhando cada centímetro. No entanto, viu o Sol já baixo no horizonte e soube
que o animal poderia em breve mostrar-se valioso.
— Horas-de-me-ir! — disse o quickling. Mais depressa do que o cão poderia reagir, Tephanis
passou como uma flecha por ele, agarrando a trela e fazendo-a dar três voltas em redor de uma
árvore próxima. O cão foi atrás dele, mas Tephanis escapou-lhe com facilidade até que a trela
esticou ao máximo, fazendo-o estacar.
— Já-volto, sua-coisa-estúpida!
Tephanis correu pelos caminhos da montanha, sabendo que essa noite poderia ser a sua última
oportunidade. As luzes de Maldobar ardiam à distância, mas era outra luz diferente, a de uma
fogueira, que guiava o quickling. Chegou ao pequeno acampamento apenas alguns minutos depois, e
ficou contente por ver que o elfo não estava por perto.
Encontrou Roddy McGristle sentado junto à base de uma árvore enorme, com os braços atados
atrás das costas e presos à árvore. O homem das montanhas estava com um aspecto desgraçado —
tão mau quanto o cão —, mas Tephanis estava sem opções. Ulgulu e Kempfana estavam mortos,
Caroak estava morto, e Graul, depois do desaire no Refúgio de Mooshie, pusera a cabeça de
Tephanis a prémio.
Isso deixava apenas Roddy — que não era grande escolha, mas Tephanis não queria ter de
sobreviver sozinho outra vez. Acelerou, sem ser notado, até atrás da árvore e sussurrou ao ouvido do
homem:
— Estarás-em-Maldobar-amanhã.
Roddy ficou estarrecido com a voz inesperada e aguda.
— Estarás-em-Maldobar-amanhã — disse Tephanis de novo, tão devagar quanto conseguiu.
— Desaparece — rosnou Roddy, pensando que o duende veloz estava apenas a atormentá-lo.
— Deverias-ser-mais-simpático-para-mim. Deverias, sim! — respondeu Tephanis imediatamente.
— O-elfo-quer-ver-te-preso, sabes? Por-crimes-contra-o-ranger-cego.
— Cala a boca — resmungou McGristle, mais alto do que pretendera.
— Que estás para aí a dizer? — ouviu-se a voz de Kellindil, não muito distante.
— Aí-está! Agora-estragaste-tudo, homem-tonto! — sussurrou Tephanis.
— Já te disse para desapareceres! — respondeu Roddy.
— Posso-fazê-lo. Mas-onde-te-deixaria-isso? Na-prisão? — disse Tephanis, irritado. — Posso-
ajudar-te, se-quiseres-a-minha-ajuda.
Roddy estava a começar a compreender.
— Desata-me as mãos — comandou.
— Já-estão-desatadas — respondeu Tephanis. E Roddy descobriu que era verdade. Começou a
levantar-se, mas depois mudou de ideias subitamente, quando Kellindil se aproximou.
— Fica-quieto — aconselhou Tephanis. — Eu-distraio-o-teu-captor.
Tephanis já estava em movimento enquanto dizia estas palavras e Roddy ouviu apenas um
murmúrio ininteligível. Manteve as mãos atrás das costas, no entanto, porque não via nenhuma outra
opção de momento, com o elfo fortemente armado por perto.
— É a nossa última noite na estrada — disse Kellindil, deitando junto à fogueira a ave que abatera
para o jantar. Pôs-se em frente de Roddy e inclinou-se. — Mandarei chamar a Senhora Falconhand
assim que chegarmos a Maldobar — disse o elfo. — Ela chama a Montolio DeBrouchee seu amigo, e
decerto gostará de saber os acontecimentos que se deram no refúgio dele.
— Que sabes tu? — rosnou Roddy. — O ranger também era meu amigo!
— Se és amigo do rei dos orcs, Graul, não podes ser amigo do ranger — retorquiu Kellindil.
Roddy não tinha nenhuma resposta imediata, mas Tephanis forneceu-lhe uma. Um ruído veio de
trás do elfo, que girou, agarrando na espada.
— Que espécie de ser és tu? — perguntou ao quickling, de olhos muito abertos de espanto.
Kellindil nunca chegou a saber a resposta, porque Roddy surgiu de repente atrás dele e fê-lo cair.
Kellindil era um guerreiro experiente, mas em corpo a corpo não estava à altura do peso bruto de
Roddy McGristle. As mãos sujas e enormes de Roddy apertaram o fino pescoço do elfo.
— Tenho-o-teu-cão — disse Tephanis, quando o acto sinistro foi consumado. — Está-preso-a-
uma-árvore.
— Mas quem és tu? — perguntou Roddy, tentando disfarçar a sua satisfação, tanto pela liberdade,
como por saber que o cão ainda estava vivo. — E que queres tu de mim?
— Sou-uma-coisa-pequena, isso-podes-ver-que-é-verdade — explicou Tephanis. — Gosto-de-
ter-amigos-grandes.
Roddy ponderou a oferta por um momento.
— Bem, mereceste isso — riu-se. Foi à procura de Bleeder, o seu machado de confiança, pegou
nos pertences do elfo morto e levantou-se de rosto sombrio. — Vem daí, então, regressemos às
montanhas. Tenho de tratar de um drow.
Uma expressão amarga passou pelo rosto do quickling, mas Tephanis disfarçou-a antes que Roddy
notasse. Tephanis não tinha nenhuma intenção de se aproximar do refúgio do ranger cego. Para além
de o rei orc ter posto a sua cabeça a prémio, sabia que os outros elfos ficariam desconfiados quando
vissem Roddy aparecer sem a presença de Kellindil. Mais ainda, Tephanis sentia a cabeça e o pé a
doerem ainda mais só de pensar em enfrentar de novo o elfo negro.
— Não! — exclamou o duende. Roddy, não acostumado a que lhe desobedecessem, olhou para ele
perigosamente. — Não-há-necessidade — mentiu Tephanis. — O-drow-morreu, foi-morto-por-um-
worg.
Roddy não pareceu convencido.
— Levei-te-até-ao-drow-uma-vez — lembrou-lhe Tephanis.
Roddy estava realmente desapontado, mas já não duvidava do quickling. Se não tivesse sido ele,
nunca teria localizado Drizzt. Estaria a mais de cem quilómetros dali, a rondar a Gruta de Morueme e
a gastar todo o seu ouro em mentiras de dragões.
— E o ranger cego? — perguntou Roddy.
— Esse-vive. Mas-deixa-o-viver — respondeu Tephanis. — Muitos-amigos-poderosos-juntaram-
se-lhe — deixou o olhar de Roddy seguir o seu até ao corpo de Kellindil. — Elfos, muitos-elfos!
Roddy assentiu. Não tinha nenhum rancor real contra Mooshie e não desejava enfrentar os pares de
Kellindil.
Enterraram Kellindil e todos os mantimentos que não podiam levar consigo, encontraram o cão e
partiram nessa mesma noite para as terras amplas do oeste.

No Refúgio de Mooshie, o Verão passou pacificamente e produtivo, com Drizzt a aprender os


costumes e os métodos de um ranger, com ainda mais facilidade do que o optimista Montolio
acreditara ser possível. Drizzt aprendeu os nomes de todas as árvores e arbustos da região, e de
todos os animais e, mais importante, aprendeu a ler e a observar as pistas que Mielikki lhe dava.
Quando se aproximava de um animal que não tivesse encontrado antes, descobriu que simplesmente
observando os seus movimentos e acções podia rapidamente perceber as suas intenções,
comportamento e estado de espírito.
— Vai e sente a pele dele — murmurou Montolio para Drizzt certo dia, ao crepúsculo. O velho
ranger apontava para o outro lado do campo, para uma linha de árvores, e para um veado. Mesmo à
luz fraca, Drizzt tinha dificuldade em ver o veado, mas sentia a sua presença, tal como obviamente
acontecia com Montolio.
— E ele deixará? — sussurrou Drizzt em resposta. Montolio sorriu e encolheu os ombros.
Drizzt saiu e avançou agachado, silenciosamente, seguindo pelas sombras. Escolheu uma
abordagem por norte, a favor do vento, mas para se aproximar pelo lado norte do veado tinha de dar
a volta por leste. Percebeu o seu erro quando ainda estava a duzentos metros do veado. Este levantou
a cabeça subitamente, farejando o ar, e abanou a cauda branca.
Drizzt ficou imóvel e esperou um longo momento enquanto o veado recomeçava a pastar. A arisca
criatura estava agora em alerta, e assim que Drizzt deu outro passo cuidadoso o veado saltou para
mais longe.
Mas não antes que Montolio, que fora pelo lado sul, se aproximasse o suficiente para lhe passar
uma mão pelo flanco, enquanto o veado passava a correr por ele.
Drizzt piscou os olhos, espantado.
— O vento estava a meu favor! — protestou para o ranger trocista.
Montolio abanou a cabeça.
— Só ao longo dos últimos vinte metros, quando apareceste a norte do veado — explicou. — O
oeste era melhor do que o leste, até esse ponto.
— Mas não se podia chegar pelo lado norte do veado vindo de oeste — disse Drizzt.
— Nem precisei de o fazer — respondeu Montolio. — Há uma elevação ali atrás — e apontou
para sul. — Corta o vento neste ângulo; fá-lo virar para trás.
— Não sabia.
— Tens de saber — disse Montolio com descontracção. — Esse é o truque. Tens de ver como um
pássaro veria e olhar para baixo por toda a região, antes de escolheres um caminho.
— Ainda não aprendi a voar… — respondeu Drizzt sarcasticamente.
— Nem eu! — exclamou o ranger. — Olha para cima.
Drizzt semicerrou os olhos enquanto os virava para o céu cinzento. Distinguiu uma silhueta
solitária, deslizando com facilidade com grandes asas bem abertas para aproveitar a brisa.
— Um falcão — disse o drow.
— Pairou usando a brisa de norte — explicou Montolio. — Depois, virou para oeste usando as
correntes contrárias junto da elevação. Se tivesses observado este voo, poderias ter suspeitado das
alterações do terreno.
— Isso é impossível — disse Drizzt, impotente.
— Será? — perguntou Montolio, recomeçando a andar, para esconder o sorriso.
Claro que o drow estava certo: não se podia ver a topografia de um terreno através dos padrões de
voo de um falcão. Montolio soubera da alteração do vento devido a uma coruja sorrateira que viera a
seu pedido, logo após Drizzt ter começado a atravessar o campo, mas Drizzt não precisava de saber
disso. O drow que se entretivesse a remoer na ideia por algum tempo, decidiu o velho ranger. Essa
reflexão, recapitulando tudo o que tinha aprendido, seria uma lição valiosa.
— Foi Hooter que te disse — declarou Drizzt meia hora mais tarde, no caminho de regresso ao
refúgio. — Hooter avisou-te do vento e avisou-te do falcão.
— Pareces muito seguro de ti.
— E estou — disse Drizzt com firmeza. — O falcão não piou; já me tornei atento o suficiente para
saber isso. Não podias ver a ave, e sei que não ouviste o assobio do vento sobre as asas dele, digas
tu o que disseres!
A gargalhada de Montolio fez aparecer um sorriso de confirmação na cara do drow.
— Portaste-te bem, hoje — disse o velho ranger.
— Mas não consegui chegar perto do veado — lembrou-lhe Drizzt.
— O teste não era esse — respondeu Montolio. — Confiaste no teu conhecimento para refutar as
minhas afirmações. Tens a certeza das lições que aprendeste. Agora ouve mais isto. Deixa-me
contar-te alguns truques a usar quando te queres aproximar de um veado.
Conversaram durante todo o caminho de regresso ao refúgio, e depois pela noite dentro. Drizzt
ouvia com atenção, absorvendo cada palavra enquanto ia ficando a par de cada vez mais segredos do
mundo maravilhoso.
Uma semana mais tarde, num campo diferente, Drizzt colocou uma mão sobre o flanco de um
veado, e a outra sobre a sua cria salpicada de manchas. Ambos os animais se assustaram com o toque
inesperado, mas Montolio «viu» o sorriso de Drizzt a mais de cem metros de distância.
As lições de Drizzt estavam longe de terminadas quando o Verão começou a morrer, mas Montolio
já não passava tanto tempo a instruir o drow. O drow já aprendera o suficiente para poder sair para o
mundo e aprender por si mesmo, ouvindo e observando as vozes silenciosas e os sinais subtis das
árvores e dos animais. Tão embrenhado andava nas suas intermináveis revelações, que nem reparou
nas profundas alterações em Montolio. O ranger sentia-se agora muito mais velho. Mal conseguia
endireitar as costas nas manhãs mais frias, e as mãos ficavam-lhe dormentes. Montolio manteve-se
estóico, não sendo pessoa para auto-comiserações, e não se lamentando por aquilo que sabia que
estava para chegar.
Vivera uma vida longa e cheia, conseguira realizar muitas coisas, e experimentara a vida mais
intensamente do que a maioria dos homens alguma vez faria.
— Quais são os teus planos? — perguntou inesperadamente a Drizzt certa noite, enquanto jantavam
um guisado de vegetais que Drizzt preparara.
A pergunta atingiu Drizzt com força. Não tinha quaisquer planos para além do presente. E porque
haveria de ter, se a vida era tão fácil e tão agradável ali — muito melhor do que alguma vez fora
para o acossado drow renegado? Drizzt não queria realmente pensar nisso, e por isso atirou um
biscoito a Guenhwyvar, para mudar de assunto. A pantera estava a habituar-se demasiado a usar a
sua esteira de dormir, enrolando-se nos cobertores a tal ponto que Drizzt às vezes pensava que a
única maneira de a desenrodilhar dos cobertores era mandá-la de volta para o Plano Astral.
Montolio era persistente.
— Quais são os teus planos, Drizzt Do’Urden? — perguntou de novo o velho ranger, com firmeza.
— Onde e como vais viver?
— Estás a mandar-me embora? — perguntou Drizzt.
— Claro que não.
— Pois então viverei aqui contigo — respondeu Drizzt calmamente.
— Refiro-me a depois disso — disse Montolio, começando a ficar frustrado.
— Depois disso? — perguntou Drizzt, pensando que Mooshie sabia alguma coisa que ele não
sabia.
O riso de Montolio troçou das suas suspeitas.
— Sou um velho — explicou o ranger. — e tu és um elfo jovem. Sou mais velho do que tu, mas
mesmo que fosse um jovem, os teus anos ultrapassariam sempre os meus por longa margem. Para
onde irá Drizzt Do’Urden quando Montolio DeBrouchee já cá não estiver?
Drizzt virou costas.
— Eu não quero… — começou a dizer. — Ficarei aqui.
— Não — respondeu Montolio sobriamente. — Tens muito mais à tua frente do que isto, espero.
Esta vida não servirá.
— A ti, serviu-te — retorquiu Drizzt, com mais exaltação do que pretendera.
— Durante cinco anos — disse Montolio calmamente, sem se ofender. — Cinco anos, depois de
uma vida inteira de aventuras e excitação.
— A minha vida não tem sido muito calma — lembrou-lhe Drizzt.
— Mas és ainda uma criança — disse Montolio. — Cinco anos não são quinhentos, e a ti restam-te
quinhentos, não cinco. Promete-me agora que reconsiderarás o teu percurso quando eu já não estiver
cá. Há um mundo vasto lá fora, meu amigo, cheio de dor, mas cheio também de alegrias. A dor
mantém-te no caminho para o crescimento, e a alegria torna a viagem tolerável. Promete-me agora —
disse de novo o ranger — que quando Mooshie não estiver cá, Drizzt partirá e irá procurar o seu
lugar.
Drizzt queria argumentar, perguntar ao ranger como tinha tanta certeza de que o seu refúgio não
era também o «lugar» de Drizzt. Uma balança mental oscilou e depois nivelou-se, e depois voltou a
desequilibrar-se dentro de Drizzt, nesse momento. Ponderou as recordações de Maldobar, as mortes
dos agricultores e todas as recordações de antes disso, das provações que enfrentara e dos males que
o tinham tão persistentemente perseguido. Contra isso, considerou o desejo profundo de regressar ao
mundo mais vasto. Quantos outros Mooshies encontraria? Quantos novos amigos? E como seria vazio
este refúgio quando ficasse apenas ele e Guenhwyvar?
Montolio aceitou o silêncio, apercebendo-se da confusão do drow.
— Promete-me que quando chegar o momento, pelo menos considerarás o que acabei de te dizer.
Confiando em Drizzt, Montolio não precisou de ver o assentimento do amigo.

As primeiras neves chegaram cedo nesse ano, apenas como uma leve poeira vinda de nuvens soltas
que brincavam às escondidas com a Lua cheia. Drizzt, passeando com Guenhwyvar, deliciou-se com
a mudança da estação, apreciando a confirmação do ciclo infindável. Estava animado quando
regressou ao refúgio, sacudindo a neve dos ramos dos pinheiros enquanto caminhava.
A fogueira ardia mansamente; Hooter estava muito quieta num ramo baixo, e nem mesmo o vento
parecia fazer ruído. Drizzt olhou para Guenhwyvar em busca de alguma explicação, mas a pantera
sentou-se simplesmente perto da fogueira, sombria e muito quieta.
O horror é uma estranha emoção, um culminar de indícios muito subtis que trazem tanto confusão
como medo.
— Mooshie — chamou Drizzt suavemente, aproximando-se do refúgio do velho. Afastou a manta
que cobria a entrada e usou-a para tapar a luz que vinha do braseiro moribundo da fogueira, deixando
os olhos reverterem para o espectro infra-vermelho.
Ficou ali por um longo momento, vendo os últimos sopros de calor a abandonarem o corpo do
ranger. Mas se Mooshie estava frio, o seu sorriso contente emanava calor.
Drizzt lutou contra as lágrimas por muitas vezes durante os dias seguintes, mas sempre que se
lembrava desse sorriso, da paz final que tomara conta do homem idoso, lembrava a si mesmo que as
lágrimas eram pela sua própria perda, e não por Mooshie.
Enterrou o ranger num recanto perto do refúgio, e depois passou o Inverno calmamente, tratando
das suas tarefas diárias e interrogando-se. Hooter vinha com cada vez menos frequência e, numa das
vezes, o olhar de despedida que lançou a Drizzt disse ao drow, sem margem para dúvidas, que nunca
mais regressaria ao refúgio.
Na Primavera, Drizzt acabou por compreender os sentimentos de Hooter. Durante mais de uma
década, procurara um lar, e encontrara-o junto de Montolio. Mas, desaparecido o ranger, o refúgio
já não parecia tão hospitaleiro. Era o refúgio de Mooshie, não de Drizzt.
— Como prometi — murmurou Drizzt certa manhã. Montolio pedira-lhe para ponderar
cuidadosamente o seu percurso quando ele já não estivesse por perto, e Drizzt cumpria agora a sua
palavra. Sentia-se confortável no refúgio e continuava a ser bem aceite ali, mas já não era o seu lar.
O seu lar era lá fora, sabia disso, no vasto mundo que Montolio lhe tinha garantido que estava «cheio
de dor, mas também cheio de alegrias».
Drizzt embalou algumas coisas — abastecimentos práticos e alguns dos livros mais interessantes
do ranger — colocou o cinturão com as cimitarras e pôs o arco ao ombro. Depois, deu uma volta
final pelo refúgio, observando pela última vez as pontes de cordas, o arsenal, o barril de brandy e a
raiz da árvore onde prendera o pique que parara o gigante, o local onde Mooshie mantivera a sua
posição… Chamou Guenhwyvar, e a pantera compreendeu assim que chegou.
Nunca olharam para trás enquanto avançavam pelo trilho da montanha, em direcção ao vasto
mundo de alegrias e tristezas.
Como me parecia diferente o trilho, enquanto me afastava do Refúgio de Mooshie pela
estrada que me tinha levado até lá! Mais uma vez, estava só, a não ser quando Guenhwyvar
vinha ter comigo, quando a convocava. Nesta estrada, porém, estava só apenas fisicamente.
Na minha mente trazia um nome, a materialização dos meus preciosos princípios. Mooshie
chamara a Mielikki uma deusa; para mim, era um modo de vida.
Caminhava a meu lado, sempre, pelas muitas estradas da superfície que percorri. Levou-
me para a segurança e lutou contra o meu desespero quando fui escorraçado e depois
perseguido pelos anões da Cidadela Adbar, uma fortaleza a nordeste do Refúgio de
Mooshie. Mielikki, e a minha crença no meu próprio valor, deram-me coragem para me
aproximar de cidade após cidade, por todas as terras do norte. A recepção era sempre a
mesma: choque e medo, que rapidamente se transformavam em ódio. Os mais generosos dos
que fui encontrando diziam-me simplesmente para me ir embora; outros expulsavam-me de
armas apontadas. Por duas vezes fui forçado a lutar, embora tenha conseguido escapar
sem que ninguém ficasse seriamente ferido.
Os pequenos arranhões e cicatrizes eram um preço baixo a pagar. Mooshie pedira-me
que não vivesse como ele próprio vivera, e as percepções do velho ranger, como sempre,
mostraram ser verdadeiras. Nas minhas jornadas pelas terras do norte mantivera sempre
uma coisa — a esperança — que nunca teria mantido se tivesse permanecido como um
eremita no refúgio. À medida que cada nova aldeia aparecia no horizonte, um espicaçar de
antecipação fazia-me apressar os passos. Um dia, estava convencido, haveria de encontrar
aceitação e o meu lar.
Sucederia subitamente, supunha eu. Aproximar-me-ia de um portão, diria uma saudação
formal, e depois revelaria ser um elfo negro. Até mesmo a minha fantasia era temperada
pela realidade, pois o portão não se abriria à minha aproximação. Na verdade, ser-me-ia
permitida a entrada, mas escoltado por guardas, e depois teria um período de teste, muito
parecido com aquele que passei em Blingdenstone, a cidade svirfnebli. Haveria suspeitas
acerca de mim durante muitos meses, mas, no fim, os princípios acabariam por ser vistos
como eram e aceites; o carácter da pessoa sobrepor-se-ia à cor da sua pele e à reputação
dos seus congéneres.
Esta fantasia passou pela minha mente incontáveis vezes ao longo dos anos. Cada
palavra de cada encontro na minha cidade imaginada tornou-se uma litania contra as
rejeições reiteradas. Não poderia ser o suficiente, mas havia sempre Guenhwyvar, e agora
havia Mielikki.

— Drizzt Do’Urden
A Estalagem das Colheitas, em Westbridge, era o local favorito de reunião dos viajantes da Estrada
Longa que se estendia entre as duas grandes cidades do norte, Waterdeep e Mirabar. Para além de
alojamento confortável a preços razoáveis, a estalagem oferecia a Taberna e Casa de Pasto Derry,
um estabelecimento famoso onde se trocavam histórias e onde, em todas as noites de qualquer
semana, um hóspede podia encontrar aventureiros de regiões tão variadas como Luskan e Sundabar.
A lareira era grande e acolhedora, a bebida em quantidade, e as lendas tecidas no Derry eram
daquelas que acabariam por ser contadas e recontadas por todos os reinos.
Roddy manteve o capuz do muito gasto casaco de viagem bem puxado para a frente, escondendo a
cara marcada pelas cicatrizes, enquanto atacava o seu borrego com pão. O velho cão amarelo estava
sentado no chão ao seu lado, rosnando, e de vez em quando Roddy deixava cair um pedaço de carne,
distraidamente.
O rancoroso caçador de prémios raramente levantava os olhos do prato, mas os olhos raiados de
sangue espreitavam desconfiados por debaixo das sombras do capuz. Conhecia alguns dos rufiões
reunidos nessa noite no Derry, pessoalmente ou pela reputação, e não confiava em nenhum deles, tal
como nenhum deles confiaria nele, se fosse sensato.
Um homem alto reconheceu o cão de Roddy enquanto passava pela mesa, e parou, pensando em
cumprimentar o caçador de prémios. No entanto, seguiu caminho, percebendo que o miserável
McGristle não valia realmente esse esforço. Ninguém sabia exactamente o que se passara anos antes
nas montanhas perto de Maldobar, mas Roddy voltara da região profundamente marcado por
cicatrizes, físicas e emocionais. Sempre sombrio, McGristle passava agora mais tempo a rosnar do
que a falar.
Roddy comeu durante mais algum tempo e depois deixou cair um grande osso perto do cão,
limpando as mãos engorduradas ao casaco, e afastando sem querer uma parte do capuz que escondia
as cicatrizes. Puxou rapidamente o capuz para baixo, olhando em redor para ver se alguém o tinha
visto. Um único olhar de relance já custara a vários homens as suas vidas, no que dizia respeito às
cicatrizes de Roddy.
Ninguém pareceu ter notado, no entanto; desta vez, não. A maioria dos que não estavam ocupados
a comer estavam perto do balcão, discutindo acaloradamente.
— Nunca se passou nada disso! — gritava um homem.
— Estou a dizer-te o que vi! — retorquia outro. — E disse-te a verdade!
— Isso só é verdade aos teus olhos! — voltava a acusar o primeiro. E outro ainda acrescentava:
— Não saberias, mesmo que visses um deles!
Vários dos homens aproximaram-se, empurrando-se uns aos outros.
— Fiquem quietos! — ouviu-se uma voz. Um homem saiu do meio do grupo e apontou para Roddy
que, não o reconhecendo, levou instintivamente a mão a Bleeder, o seu já bastante desgastado
machado.
— Perguntem a McGristle — gritou o homem. — Roddy McGristle. Ele sabe mais de elfos negros
do que ninguém.
Uma dúzia de conversas cruzadas nasceram de imediato, enquanto o grupo inteiro, parecendo uma
mancha amorfa deslizando em conjunto, se aproximava de Roddy. A mão de Roddy já se afastara de
Bleeder, cruzando os dedos com os da outra mão em cima da mesa.
— És McGristle, não és? — perguntou o homem, mostrando uma boa dose de respeito pelo
caçador de prémios.
— Pode ser que seja — respondeu Roddy calmamente, apreciando a atenção que lhe davam. Não
se via rodeado por um grupo tão interessado no que tinha para dizer desde que o clã Thistledown
fora encontrado morto.
— Ora — veio uma voz rouca de algures mais atrás. — Que sabe ele de elfos negros?
O olhar frio de Roddy fez com que os que estavam à sua frente dessem um passo atrás, movimento
que ele notou. Gostava dessa sensação, gostava de ser importante outra vez, e respeitado.
— Um elfo drow matou o meu cão — disse secamente. Estendeu um braço e puxou a cabeça do
velho cão amarelo, mostrando uma cicatriz. — E marcou a cabeça deste. Maldito elfo negro — disse
deliberadamente, afastando o capuz da cara. — E fez-me estas a mim.
Normalmente, Roddy escondia as horríveis cicatrizes, mas os murmúrios e o ar de espanto da
pequena multidão soavam-lhe imensamente agradáveis. Virou-se para o lado, deixou-os ver bem, e
saboreou a reacção tanto tempo quanto pôde.
— Pele negra e cabelos brancos? — perguntou um homem baixo de barrigudo. Era o mesmo que
começara a discussão junto ao balcão com a sua própria história acerca de um elfo negro.
— Pois, para ser um elfo negro, tinha de ser… — rosnou Roddy em resposta. O homem olhou em
volta, com ar triunfante.
— Era o que estava a tentar dizer-lhes! — disse o homem para Roddy. — Insistem que o que eu vi
foi um elfo sujo, ou talvez um orc, mas eu sei que era um drow!
— Quando se vê um drow — disse Roddy sombria e deliberadamente, sopesando cada palavra e
dando-lhe importância —, sabe-se logo que se viu um drow. E ninguém esquece quando viu um
drow! E quem duvidar das tuas palavras, que vá à procura de um drow ele próprio. Regressará para
te pedir desculpa!
— Pois bem, eu vi um elfo negro — proclamou o homem. — Estava acampado em Lurkwood, a
norte de Grunwald. Uma noite bastante pacífica, pensei eu, por isso fiz uma boa fogueira para
contrariar o vento frio. Pois bem, de repente aparece esse estranho, sem aviso, sem uma palavra!
Todos os homens do grupo estavam agora presos por aquelas palavras, ouvindo-as com outro
interesse, agora que o estranho marcado por um drow tinha confirmado, de alguma forma, a história.
— Sem uma palavra, um pio de uma ave, nada! — prosseguiu o homem barrigudo. — Tinha o
capuz puxado para a frente, parecia suspeito, e por isso disse-lhe: «ao que vens?». «Em busca de um
local onde eu e os meus companheiros possamos passar a noite», respondeu ele, muito calmamente.
Pareceu-me bastante razoável, mas continuava a não gostar daquele capuz a esconder-lhe a cara.
«Afasta o capuz, então», disse-lhe eu. «Não partilho nada sem ver a cara de um homem». Ele
ponderou sobre as minhas palavras por um minuto, e depois levou as mãos, muito lentamente, ao
capuz — o homem imitou o movimento dramaticamente, olhando em volta para se assegurar de que
tinha a atenção de toda a gente. — Não precisei de ver mais nada! — gritou subitamente. E todos,
embora tivessem acabado de ouvir a mesma história contada da mesma forma apenas momentos
antes, saltaram para trás, surpresos. — As mãos dele eram pretas como carvão e tão magras como as
de um elfo. Percebi logo, embora não saiba como pude ter tanta certeza nesse momento, que tinha um
drow à minha frente. Um drow, digo-vos! E quem duvidar das minhas palavras que vá à procura de
um elfo negro para tirar a prova!
Roddy assentiu com a cabeça, em sinal de aprovação, enquanto o homem barrigudo olhava
sobranceiro para os outros, que antes tinham duvidado dele.
— Parece que ando a ouvir falar demasiado acerca desses elfos negros, ultimamente — comentou
Roddy.
— Só ouvi falar de um — interveio outro homem. — Até agora, quero eu dizer. Agora também te
ouvi a ti falar da tua batalha com um deles. Isso já faz dois drows em seis anos.
— Como eu disse — notou Roddy sombriamente —, parece que ando a ouvir falar demasiado
sobre elfos… — e não pôde acabar a frase, porque o grupo de homens desatou a rir exageradamente
à sua volta. Parecia o regresso dos bons velhos tempos do caçador de prémios, os dias em que todos
os que o rodeavam ficavam presos a cada palavra sua.
O único homem que não se ria era o barrigudo que contara a história, demasiado abalado pela sua
própria narrativa do encontro com o drow.
— Ainda agora — disse o barrigudo sobrepondo-se à agitação —, quando penso naqueles olhos
de cor púrpura a olharem para mim por baixo do capuz…
O sorriso de Roddy desfez-se num instante.
— Olhos de cor púrpura? — mal conseguiu dizer. Roddy já conhecera muitas criaturas com
infravisão, que era o tipo de visão sensível ao calor da maioria das criaturas do Subescuro; e sabia
que normalmente esses olhos pareciam pontos vermelhos.
Roddy ainda se lembrava bem dos olhos púrpura que tinham olhado para ele quando estava preso
debaixo da árvore caída. Soubera então, e sabia agora, que esses olhos de tom estranho eram uma
raridade, mesmo entre os elfos negros.
Os do grupo que estavam mais próximos de Roddy pararam de rir, pensando que a pergunta dele
lançava uma sombra sobre a veracidade do relato do barrigudo.
— Eram púrpura, sim — insistiu o barrigudo, embora houvesse pouca convicção na voz trémula.
Os homens em volta esperaram pela confirmação ou pelo desmentido de Roddy, sem saberem se
deveriam ou não rir-se do que contara a história.
— Que armas usava o drow? — perguntou Roddy com ar sinistro, pondo-se ameaçadoramente de
pé.
O homem pensou por um momento.
— Espadas curvas — gaguejou.
— Cimitarras?
— Cimitarras — concordou o outro.
— O drow disse-te como se chamava? — perguntou Roddy. E, quando o homem hesitou, agarrou-o
pelos colarinhos e puxou-o por cima da mesa. — O drow disse-te como se chamava? — perguntou
de novo, com o hálito quente a chegar à cara do barrigudo.
— Não sei… hum… Driz?
— Drizzit?
O homem encolheu os ombros, impotente, e Roddy largou-o.
— Onde? — rugiu o caçador de prémios. — E quando?
— Lurkwood — repetiu o homem, a tremer. — Há três semanas. O drow vai para Mirabar com os
monges Chorosos, pareceu-me.
A maioria dos homens murmurou ao ouvir a menção ao grupo religioso fanático. Os monges
Chorosos eram um bando de maltrapilhos pedintes que acreditavam — ou afirmavam acreditar —
que havia uma quantidade finita de dor no mundo. Quanto mais sofrimento atraíssem sobre eles,
diziam os monges, menos ficava para o resto do mundo. Quase toda a gente troçava daquela ordem
religiosa. Alguns eram sinceros, mas outros mendigavam a troco de indulgências, prometendo sofrer
horrivelmente para bem de quem lhes desse a esmola.
— Esses eram os companheiros do drow — prosseguiu o homem. — Vão sempre para Mirabar, à
procura do frio, quando chega o Inverno.
— Uma boa caminhada — notou alguém.
— E a mais longa — disse outro. — Os monges vão sempre pelo caminho do túnel.
— Trezentos quilómetros — respondeu o primeiro homem que tinha reconhecido o caçador de
prémios, tentando acalmá-lo.
Mas Roddy nem o ouviu. Com o cão atrás, virou costas e deixou o grupo inteiro a murmurar, em
absoluta surpresa.
— Foi Drizzit quem tirou a orelha e o cão a Roddy — continuou o homem, agora voltando a
atenção para o grupo. Não sabia, antes disso, o nome do estranho drow; apenas baseara a sua
presunção na reacção de Roddy. Agora, o grupo reunia-se em volta dele, todos sustendo a
respiração, à espera que contasse a história de Roddy McGristle e do drow de olhos púrpura. Como
todos os clientes habituais do Derry, o homem não deixou que a falta de verdadeiro conhecimento o
impedisse de contar a história. Enfiou os polegares no cinturão e começou, preenchendo os
consideráveis espaços em branco com o que quer que lhe parecesse adequado.
Mais uma centena de suspiros e de palmas de apreço e de gozo espantado ecoaram na rua, fora do
Derry, nessa noite, mas Roddy McGristle e o seu cão amarelo, já com as rodas da carroça bem
enfiadas na lama da Estrada Longa, não ouviram mais nada.
— Eh, que-estás-a-fazer? — veio o queixume de uma saca atrás do banco de Roddy. Tephanis
espreitou. — Porque-estás-a-ir-embora?
Roddy virou-se e lançou uma mão em direcção ao duende, mas Tephanis, mesmo estremunhado,
não teve dificuldade em saltar para longe do perigo.
— Mentiste-me, meu filho de um kobold! — rosnou Roddy. — Disseste-me que o elfo estava
morto. Mas não está! Está a caminho de Mirabar, e pretendo apanhá-lo.
— Mirabar? — gritou Tephanis. — Demasiado-longe, demasiado-longe! — Roddy e o quickling
tinham passado por Mirabar na Primavera anterior. Tephanis considerava-a um local miserável,
cheio de anões de rostos sombrios, e com um vento demasiado frio para seu gosto. — Temos-de-ir-
para-sul-para-o-Inverno. A-sul-é-que-está-o-calor!
O olhar fixo de Roddy que se seguiu calou o duende.
— Esquecerei o que me fizeste — resmungou. — Mas depois acrescentou, num aviso claro: — Se
apanharmos o drow.
Virou costas ao duende e Tephanis enfiou-se no saco, sentindo-se mal e interrogando-se se Roddy
McGristle valeria todo aquele trabalho.
Roddy conduziu a carroça pela noite dentro, inclinando-se para a frente para incitar o cavalo e
resmungando repetidamente:
— Seis anos!

Drizzt encolheu-se perto do fogo que ardia num velho barril de minério que o grupo encontrara. Este
seria o sétimo Inverno do drow na superfície, mas ainda se sentia sempre desconfortável com o frio.
Passara décadas, e o seu povo vivera durante milénios, no Subescuro sem estações e sempre quente.
Embora o Inverno ainda estivesse a meses de distância, a sua aproximação era evidente nos ventos
gélidos que sopravam da Cordilheira das Montanhas do Mundo. Drizzt só usava um velho cobertor,
fino e puído, por cima da sua roupa, cota de malha e cinturão.
O drow sorriu quando reparou nos seus companheiros a discutirem e a zangarem-se por causa de
quem era a vez de dar um gole numa garrafa de vinho que tinham mendigado, e por causa de quanto
tinha bebido o último a servir-se. Drizzt estava agora sozinho junto ao barril com o fogo; os monges
Chorosos, embora não rejeitassem o drow, raramente se aproximavam muito dele. Drizzt aceitava
isso e sabia que os fanáticos apreciavam a sua companhia por razões práticas. Alguns do bando
apreciavam mesmo os ataques que sofriam por parte dos vários monstros das terras, vendo-os como
oportunidades para algum verdadeiro sofrimento, mas os mais pragmáticos do grupo gostavam de ter
por perto o drow armado e hábil, para lhes dar protecção.
A relação era aceitável para Drizzt, ainda que não fosse compensadora. Deixara o Refúgio de
Mooshie anos antes, cheio de esperanças, mas esperanças temperadas pela realidade da sua
existência. Vez após vez, Drizzt aproximara-se de aldeias para de imediato ser recebido por um muro
de palavras duras, de pragas e de armas desembainhadas. De todas as vezes, Drizzt encolhia os
ombros e ignorava os ataques. Fiel ao espírito ranger — porque era de facto um ranger, agora, pelo
treino e pelo coração — aceitava isso estoicamente.
A última rejeição mostrara a Drizzt que a sua determinação estava, porém, a ficar cada vez mais
fraca. Fora afastado de Luskan, na costa da Espada, mas não por quaisquer guardas, pois nem sequer
se aproximara do local. Tinham sido os seus próprios receios a mantê-lo afastado, e esse facto
assustara-o mais do que quaisquer espadas que já tivesse enfrentado. Na estrada, fora da cidade,
encontrara este punhado de monges Chorosos, e os proscritos tinham-no aceite relutantemente, tanto
porque não tinham meios para o afastar, como porque estavam demasiado esmagados pela sua
própria miséria para darem atenção a quaisquer diferenças raciais. Dois do grupo tinham-se até
lançado aos pés de Drizzt, pedindo-lhe que lançasse os seus «terrores élficos» e os fizesse sofrer.
Ao longo da Primavera e do Verão, a relação desenvolvera-se, com Drizzt a servir de guardião
silencioso, enquanto os monges se dedicavam à mendicidade e aos seus hábitos de sofrimento. No
conjunto, era tudo de bastante mau gosto, por vezes até mesmo enganador, para o drow cheio de
princípios; mas não encontrara outras opções.
Drizzt olhava fixamente para as chamas enquanto ponderava sobre o seu destino. Ainda tinha
Guenhwyvar sempre pronta a responder ao seu chamamento, e pusera as cimitarras e o arco em
serviço várias vezes, sempre com vantagem. Todos os dias dizia a si mesmo que, apesar dos
fanáticos de certa forma inofensivos, estava a servir Mielikki, e a seguir o seu coração. No entanto,
não tinha grande consideração pelos monges e não lhes chamava amigos. Vendo os cinco homens,
agora, bêbedos e tropeçando uns nos outros, Drizzt supôs que nunca o faria.
— Bate-me! Trespassa-me! — gritou subitamente um dos monges, enquanto corria em direcção ao
barril, caindo contra Drizzt. Drizzt agarrou-o e endireitou-o, mas apenas por um momento.
— Lança a tua maldade drow sobre a minha cabeça! — tartamudeou o monge bêbedo e sujo,
enquanto o corpo mole se abatia de novo no chão.
Drizzt virou costas, abanou a cabeça e, inconscientemente, meteu a mão na bolsa para sentir a
estatueta de ónix, precisando desse toque para lhe lembrar que não estava realmente sozinho. Estava
a sobreviver, combatendo numa batalha interminável e solitária, mas longe de satisfeito. Encontrara
um lugar, talvez, mas não um lar.
— É como o refúgio, mas sem Montolio — murmurou o drow. — Nunca será um lar.
— Disseste alguma coisa? — perguntou um monge mais possante, o Irmão Mateus, aproximando-
se para retirar dali o companheiro bêbedo. — Por favor desculpa o Irmão Jankin, amigo. Bebeu
demais, creio.
O sorriso impotente de Drizzt disse-lhe que não tinha ficado ofendido, mas as palavras seguintes
apanharam o Irmão Mateus — líder do grupo e o seu membro mais racional — de surpresa.
— Farei a viagem até Mirabar convosco — explicou Drizzt —, mas depois partirei.
— Partirás? — perguntou Mateus, preocupado.
— Isto não é o meu lugar — explicou Drizzt.
— O lugar dele é Dez-Cidades! — resmungou Jankin.
— Se algum de nós te ofendeu… — disse Mateus, sem prestar atenção ao bêbedo.
— Não, ninguém — disse Drizzt, sorrindo de novo. — Mas há mais coisas para mim nesta vida,
Irmão Mateus. Não fiques zangado, peço-te. Mas partirei. Não foi uma decisão a que tenha chegado
com ligeireza.
Mateus demorou um momento a considerar estas palavras.
— Como queiras — disse. — Mas podes, pelo menos, escoltar-nos pelo túnel até Mirabar?
— Dez-Cidades — insistiu Jankin. — Isso é que é lugar para sofrer. E tu também haverias de
gostar, drow. Terra de renegados, onde um renegado pode encontrar o seu lugar!
— Muitas vezes, há inimigos nas sombras que atacariam de bom grado um grupo de monges
desarmados — interrompeu-o Mateus, dando a Jankin um abanão com força.
Drizzt fez uma pausa, interessado nas palavras de Jankin. Mas Jankin tinha caído de novo, e o
drow olhou para Mateus.
— Não é precisamente por causa disso que vão pelo túnel para a cidade? — perguntou ao monge.
O túnel estava normalmente reservado para os carrinhos das minas, que deslizavam desde a Espinha
do Mundo, mas os monges iam sempre por ali, mesmo em situações como esta, em que tinham de
circundar completamente a cidade, só para chegarem à entrada do caminho mais longo. — Para
serem vitimizados e sofrerem? — prosseguiu Drizzt. — Certamente a estrada estará limpa e será
mais conveniente, com o Inverno ainda a meses de distância.
Drizzt não gostava do túnel para Mirabar. Quem quer que encontrassem no caminho teria de estar
demasiado perto para que pudesse esconder a sua identidade. Fora abordado várias vezes nas duas
viagens anteriores por ali.
— Os outros insistem em que vamos pelo túnel, embora seja um desvio de muitos quilómetros —
respondeu Mateus, com um tom de censura. — Mas eu prefiro formas mais pessoais de sofrer, e
apreciaria muito a tua companhia até Mirabar.
Drizzt quis gritar para o monge intrujão. Mateus considerava perder uma refeição como um
sofrimento suficientemente duro, e só usava aquela fachada porque muitas pessoas ingénuas davam
moedas àqueles fanáticos com longos hábitos; na maior parte das vezes, faziam-no apenas para se
verem livres daqueles homens malcheirosos.
Drizzt assentiu e ficou a olhar para Mateus enquanto este arrastava Jankin dali.
— Mas depois, parto — murmurou. Podia dizer a si mesmo vezes sem conta que estava a servir a
sua deusa e a seguir o seu coração ao proteger aquele bando aparentemente indefeso, mas o
comportamento deles negava frequentemente essas palavras.
— Drow! Drow! — chamava Jankin enquanto o Irmão Mateus o arrastava para junto dos outros.
Tephanis observava o grupo de seis — os cinco monges e Drizzt — enquanto se deslocavam
lentamente para o túnel no caminho de oeste para Mirabar. Roddy mandara o quicklling à frente para
reconhecer o terreno, dizendo-lhe para fazer o drow — se o visse — vir na direcção dele.
— Bleeder dará conta dele! — rosnou, batendo com o formidável machado na mão.
Tephanis não tinha assim tanta certeza. O duende vira Ulgulu, um senhor decerto muito mais
poderoso do que Roddy McGristle, abatido pelo drow, e outro senhor poderoso, Caroak, fora
desfeito pela pantera. Se Roddy conseguisse o que queria e encontrasse o drow em combate,
Tephanis era bem capaz de se ver forçado, em breve, a procurar um novo senhor.
— Desta-vez-não, drow — sussurrou o duende subitamente, com uma ideia a vir-lhe à mente. —
Desta-vez-apanho-te!
Tephanis conhecia o túnel para Mirabar — ele e Roddy tinham-no usado no Inverno anterior,
quando a neve tinha coberto a estrada de oeste — e aprendera muitos dos seus segredos, incluindo
um que agora planeava usar para ganhar vantagem.
Fez um percurso em círculo em volta do grupo, a boa distância, não querendo alertar o drow de
orelhas pontiagudas; mesmo assim, chegou à entrada do túnel muito antes dos outros. Uns minutos
mais tarde, o duende já tinha penetrado mais de um quilómetro no túnel, e estava a arrombar uma
fechadura complicada, mas que parecia tosca para o quickling, colocada na alavanca de uma grade
de ferro levadiça.

O Irmão Mateus liderou o caminho para o túnel, com outro monge ao lado e os outros três
completando um escudo protector em redor de Drizzt. Drizzt pedira este dispositivo, para que
pudesse passar despercebido se calhassem encontrar alguém. Mantinha o capuz bem fechado e os
ombros encolhidos. Tentava manter-se baixo no meio do grupo.
Não encontraram outros viajantes e avançaram pela passagem iluminada por tochas a um ritmo
constante. Foram dar a um cruzamento e Mateus parou subitamente, vendo a grade levadiça aberta
para uma passagem à direita. Entrando uma dúzia de passos, havia uma porta de aço também aberta,
e a passagem depois dela estava na escuridão total, e não iluminada por tochas, como o túnel
principal.
— Que estranho — notou Mateus.
— Que descuido… — corrigiu outro. — Rezemos para que não haja outros viajantes, que possam
não conhecer o túnel tão bem como nós, e que entrem por aqui e tomem o caminho errado!
— Talvez devêssemos fechar a porta — propôs outro.
— Não — interrompeu Mateus. — Pode haver alguém lá adiante, talvez mercadores, que não
ficariam nada satisfeitos se o fizéssemos.
— Não! — gritou o Irmão Jankin subitamente, correndo para a dianteira do grupo. — É um sinal!
Um sinal de deus! Somos chamados a Festo, ao sofrimento derradeiro!
Jankin virou-se para correr pelo túnel, mas Mateus e um outro, nada surpreendidos pela habitual
excitação de Jankin, saltaram sobre ele imediatamente e deitaram-no ao chão.
— Festo! — gritava Jankin freneticamente, com os longos e sujos cabelos negros a tapar-lhe a
cara. — Estou a caminho!
— Que é isso? — teve Drizzt de perguntar, sem fazer ideia do que estavam os monges a dizer,
embora pensasse reconhecer a referência. — Quem, ou o quê, é Festo?
— Hefesto — corrigiu o Irmão Mateus.
Drizzt conhecia de facto o nome. Um dos livros que trouxera do Refúgio de Mooshie era sobre
lendas de dragões, e Hefesto, um venerável dragão vermelho que vivia nas montanhas a noroeste de
Mirabar, tinha uma entrada dedicada a ele.
— Esse não é o nome verdadeiro do dragão, evidentemente — prosseguiu Mateus, por entre
arquejos enquanto lutava com Jankin. — Esse não sei, nem ninguém já sabe.
Jankin contorceu-se subitamente, atirando o outro monge para o lado, e deu imediatamente uma
forte pisadela na sandália de Mateus.
— Hefesto é um velho dragão vermelho que vive nas cavernas a oeste de Mirabar, tanto quanto se
lembra toda gente, incluindo os anões! — explicou outro monge, o Irmão Herschel, que estava menos
ocupado do que Mateus. — A cidade tolera-o porque é um dragão preguiçoso e estúpido, se bem que
eu não o considere assim. A maioria das cidades, presumo, não tolerariam um dragão vermelho, e
dar-lhe-iam luta! Mas Hefesto não é muito dado a pilhagens, e ninguém se lembra da última vez que
saiu, sequer, do seu buraco. E até faz algum trabalho de fundição de metais, desde que lhe paguem,
mas o preço é elevado.
— Mas há quem pague — acrescentou Mateus, mantendo de novo Jankin sob controlo. —
Especialmente quando a estação vai avançada, e querem aproveitar as últimas caravanas para sul.
Nada consegue separar os metais melhor do que o bafo de um dragão vermelho! — o riso de Mateus
desapareceu rapidamente quando Jankin se sacudiu de novo, lançando-o ao chão.
Jankin libertou-se, mas apenas por um momento. Mais depressa do que alguém pudesse reagir,
Drizzt lançou a capa para trás e correu atrás do monge fugitivo, apanhando-o logo a seguir à porta de
aço. Uma simples manobra e um braço torcido fizeram Jankin aterrar com força no chão e deixaram-
no sem fôlego.
— Afastemo-nos desta região imediatamente — propôs o drow, olhando para o monge caído. —
Estou a ficar cansado das proezas de Jankin; sou bem capaz de o deixar ir ter com o dragão!
Dois dos outros aproximaram-se e ajudaram Jankin a levantar-se, e depois o grupo todo virou-se
para partir.
— Socorro! — ouviu-se um grito vindo do túnel escuro.
As cimitarras de Drizzt apareceram-lhe nas mãos. Os monges reuniram-se todos em volta dele,
espreitando para a escuridão.
— Vês alguma coisa? — perguntou Mateus, sabendo que a visão nocturna de Drizzt era muito mais
apurada do que a sua.
— Não, mas o túnel faz uma curva pouco mais adiante — respondeu Drizzt.
— Socorro! — ouviu-se de novo a voz.
Atrás do grupo, depois da curva no túnel principal, Tephanis teve de conter as gargalhadas. Os
quicklings eram ventríloquos exímios, e o maior problema que Tephanis tinha para enganar o grupo
era manter os gritos suficientemente lentos para poderem ser percebidos.
Drizzt deu um passo adiante, cauteloso, e os monges, até mesmo Jankin, agora mais sóbrio devido
ao grito de socorro, seguiram-no. Drizzt fez-lhes sinal para recuarem, assim que percebeu o potencial
para uma armadilha.
Mas Tephanis era muito rápido. A porta fechou-se com um baque forte e, antes que o drow, dois
passos mais adiante, pudesse abrir caminho por entre os monges surpreendidos, o duende já tinha
trancado a porta. Um momento depois, Drizzt e os monges ouviram um segundo estrondo, quando a
grade desceu.
Tephanis estava de novo lá fora, à luz do dia, uns minutos depois, achando-se muito esperto e
lembrando a si mesmo que devia manter uma expressão de surpresa quando dissesse a Roddy que o
grupo de Drizzt tinha desaparecido.

Os monges cansaram-se de gritar assim que Drizzt lhes recordou que os gritos poderiam despertar a
atenção do ocupante do outro extremo do túnel.
— Mesmo que alguém passe junto da grade, os gritos não serão ouvidos através da porta de aço
— disse o drow, inspeccionando a pesada porta com a única vela que Mateus tinha acendido.
Uma combinação de aço, pedra e couro, tudo perfeitamente encaixado — a porta fora construída
por anões. Drizzt experimentou bater-lhe com o punho de uma cimitarra, mas isso apenas produziu
um som surdo que não iria mais longe do que os gritos.
— Estamos perdidos — lamentou-se Mateus. — Não temos saída, e as nossas reservas também
não são abundantes.
— Mais um sinal! — gritou Jankin subitamente; mas dois dos monges deitaram-no ao chão mais
uma vez, antes que saísse a correr em direcção ao covil do dragão.
— Talvez haja alguma coisa de válido no pensamento do Irmão Jankin — disse Drizzt, depois de
uma longa pausa.
Mateus olhou para ele, desconfiado.
— Estás a pensar que as nossas reservas durarão um pouco mais se o Irmão Jankin for ter com
Hefesto? — perguntou.
Drizzt não conseguiu reprimir uma gargalhada.
— Não tenho intenção de sacrificar ninguém — disse, olhando para Jankin, que se debatia debaixo
dos outros dois monges. — Por muito que ele esteja disposto a isso! Mas parece que só temos um
caminho para sair.
Mateus seguiu o olhar do drow ao longo do túnel escuro.
— Se não estás a planear sacrifícios, então estás a olhar para o lado errado — resmungou o
monge. — Decerto não estás a pensar passar pelo dragão!
— Veremos — foi a única resposta do drow.
Acendeu uma nova vela no interior e avançou um pouco pelo túnel. O seu bom senso argumentava
contra a excitação inegável que sentia perante a perspectiva de enfrentar Hefesto, mas era uma
argumentação que considerava que seria vencida pela simples necessidade. Montolio lutara contra
um dragão, lembrou-se Drizzt, e perdera a visão por isso. As recordações do ranger dessa batalha,
para além dos ferimentos, não eram assim tão terríveis. Drizzt começava a compreender o que o
ranger cego lhe tinha dito acerca das diferenças entre sobrevivência e completude. Que valor teriam
os quinhentos anos que ainda tinha para viver?
Para bem dos monges, Drizzt esperava, de facto, que alguém pudesse abrir a porta e a grade. Mas
os dedos do drow fervilhavam de excitação com a promessa de acção, quando meteu a mão no saco e
tirou de lá um livro de lendas de dragões que trouxera do Refúgio de Mooshie.
Os olhos sensíveis do drow precisavam de pouca luz, e conseguia ler o manuscrito com relativa
facilidade. Tal como desconfiara, havia uma entrada relativa ao venerável dragão vermelho que
vivia a oeste de Mirabar. O livro confirmava que Hefesto não era o verdadeiro nome do dragão, mas
sim o nome que lhe fora atribuído em alusão a um obscuro deus dos ferreiros.
A entrada não era muito extensa, e consistia sobretudo em relatos de mercadores que iam alugar o
bafo do dragão para os seus fins e outros relatos de mercadores que, aparentemente, tinham dito uma
palavra errada ou discutido demasiado o preço — ou talvez o dragão estivesse simplesmente com
fome, ou de mau humor —, porque esses nunca tinham regressado. O mais importante para Drizzt era
a entrada que confirmava a descrição dos monges, e que dava o dragão como preguiçoso e algo
estúpido. Segundo os apontamentos, Hefesto era muito orgulhoso, como os dragões costumavam ser,
e capaz de falar a língua comum, mas «falho no que toca à intuição desconfiada normalmente
associada à sua raça, e particularmente aos veneráveis vermelhos».
— O Irmão Herschel está a tentar arrombar a fechadura — disse Mateus, aproximando-se de
Drizzt. — Os teus dedos são hábeis, não queres tentar fazer o mesmo?
— Nem Herschel, nem eu conseguiremos arrombar aquela fechadura — disse Drizzt
distraidamente, sem tirar os olhos do livro.
— Pelo menos, Herschel está a tentar alguma coisa — resmungou Mateus —, em vez de estar
debruçado sobre um livro, a desperdiçar velas em leituras inúteis!
— Não tão inúteis assim, se quisermos sair daqui vivos — disse Drizzt, continuando a não tirar os
olhos do livro. Mas despertou a atenção do monge.
— O que é? — perguntou Mateus, espreitando por cima do ombro do drow, muito embora não
conseguisse ler.
— Fala de vaidade — respondeu Drizzt.
— Vaidade? Que tem a vaidade a ver com…
— Vaidade de dragão — explicou Drizzt. — Um ponto talvez bastante importante. Alguns dragões
possuem-na em excesso, e mais os maus do que os bons, dentre eles.
— Tendo garras longas como espadas e um bafo capaz de derreter pedra, não haviam de ser
vaidosos… — murmurou Mateus.
— Talvez, sim — concedeu Drizzt —, mas a vaidade é uma fraqueza, não duvides, até mesmo para
um dragão. Muitos heróis exploraram essa característica para levarem um dragão à derrota.
— Agora estás a pensar em matar aquela coisa! — espantou-se Mateus.
— Se tiver de ser — disse Drizzt, de novo distraidamente. Mateus lançou as mãos para o céu e
afastou-se, abanando a cabeça para responder aos olhares dos outros.
Drizzt sorriu para si mesmo e voltou a concentrar-se na leitura. Os seus planos começavam a
ganhar forma. Leu a entrada inteira por várias vezes, memorizando cada palavra.
Três velas mais tarde, Drizzt ainda estava a ler e os monges estavam a ficar impacientes e com
fome. Espicaçaram Mateus, que se levantou, endireitou o cinto e avançou para Drizzt.
— Mais vaidade? — perguntou sarcasticamente.
— Já despachei essa parte — respondeu Drizzt. Estendeu-lhe o livro, mostrando a Mateus um
desenho de um grande dragão negro aninhado no meio de umas árvores num pântano. — Estou agora
a ler sobre o dragão que poderá ajudar a nossa causa.
— Hefesto é um vermelho — notou Mateus com desdém. — Não é um negro.
— Isto é outro dragão diferente — explicou Drizzt. — Mergandevinasander de Chult,
possivelmente um visitante para conversar com Hefesto.
O Irmão Mateus estava completamente estupefacto.
— Os vermelhos e os negros não se dão muito bem — respondeu. — Qualquer tolo sabe isso.
— Mas eu raramente dou ouvidos a tolos — respondeu Drizzt, e mais uma vez o monge virou
costas e afastou-se abanando a cabeça.
— Há mais uma coisa que não sabes, mas que Hefesto provavelmente saberá — disse Drizzt
calmamente, demasiado baixo para que alguém pudesse ouvir. — Mergandevinasander tem olhos de
cor púrpura!
Drizzt fechou o livro, confiante em que este lhe dera suficiente compreensão do assunto para tentar
a sua acção. Se alguma vez tivesse visto o terrível esplendor de um venerável vermelho, não estaria
a sorrir nesse momento. Mas a ignorância e as recordações de Montolio davam coragem ao jovem
guerreiro drow que tinha tão pouco a perder, e Drizzt não tinha nenhuma intenção de se deixar morrer
à fome por medo de um perigo desconhecido. Mas também não avançaria mais. Por enquanto.
Não sem antes ter tido tempo para praticar a sua melhor voz de dragão.

De todos os esplendores que Drizzt vira na sua vida aventurosa, nenhum — nem mesmo as grandes
casas de Menzoberranzan, ou a caverna dos illithid, ou mesmo o lago de ácido — se poderia
aproximar sequer do espectáculo fascinante e aterrador do covil do dragão. Pilhas de ouro e pedras
preciosas enchiam a enorme câmara, em filas ondulantes, como o rasto de um grande navio no mar.
Armas e couraças, rebrilhando magnificamente, estavam empilhadas por toda a parte, e a abundância
de objectos trabalhados — cálices, taças e outros do género — poderia facilmente encher as salas
dos tesouros de uma centena de reis poderosos.
Drizzt teve se lembrar de respirar quando olhou para aquele esplendor. Não eram tanto as riquezas
que o fascinavam — pouco se importava com bens materiais —, mas sim as aventuras que aqueles
objectos maravilhosos sugeriam, que, essas sim, levavam a mente de Drizzt em cem direcções
diferentes. Olhando para o covil do dragão, parecia-lhe irrisória a sua simples sobrevivência na
estrada com os Monges Chorosos e o seu simples desejo de encontrar um lugar calmo e pacífico a
que chamasse lar. Pensou de novo no dragão de Montolio, e em todas as outras histórias de aventuras
que o ranger cego lhe contara. Subitamente, sentiu a necessidade de ter as suas próprias aventuras.
Drizzt queria um lar, e queria encontrar aceitação, mas percebeu nesse momento, olhando para
aqueles despojos, que também queria um lugar nos livros dos cronistas. Esperava agora viajar por
estradas perigosas e excitantes, e até escrever ele próprio os seus relatos.
A câmara era imensa e irregular, alargando-se atrás de curvas escuras. Estava tudo iluminado
fracamente por uma névoa vermelha e fumarenta. Estava quente, e desconfortavelmente quente; por
isso, Drizzt e os outros demoraram algum tempo a tentar perceber qual era a fonte desse calor.
Drizzt virou-se para trás, para os monges expectantes, e piscou um olho, apontando depois para a
sua esquerda, para a única saída.
— Já sabem qual é o sinal — disse em voz baixa.
Mateus assentiu, hesitante, ainda a interrogar-se se teria sido sensato confiar no drow. Drizzt tinha
sido um aliado valioso para o pragmático monge nas estradas durante os últimos meses; mas um
dragão era um dragão.
Drizzt perscrutou a sala novamente, desta vez olhando para lá dos tesouros. Entre duas pilhas de
ouro, viu o seu alvo, e esse não era menos esplêndido do que as jóias e o ouro. Estendida num vale
entre essas montanhas de riquezas estava uma enorme cauda com escamas, de um vermelho dourado
como o brilho da luz que inundava o local, abanando-se levemente e ritmicamente para um lado e
para o outro, e cada varrimento fazia-a enterrar-se mais profundamente no meio das pilhas de ouro.
Drizzt já vira imagens de dragões; um dos mestres de magia da Academia tinha até criado ilusões
dos vários tipos de dragões, para os alunos poderem observá-los. Nada, porém, poderia ter
preparado o drow para este momento: a sua primeira visão de um dragão vivo. Em todos os Reinos
conhecidos, não havia nada mais impressionante, e de todos os tipos de dragões, os grandes
vermelhos eram talvez os mais imponentes.
Quando Drizzt finalmente conseguiu afastar o olhar daquela cauda ondulante, delineou o caminho
para o interior da câmara. O túnel abria numa parede, bem alto, mas havia um trilho claro que levava
até ao chão. Estudou o trilho por um longo momento, memorizando cada passo a dar. Depois, enfiou
duas mãos-cheias de terra nos bolsos, tirou uma flecha da aljava e colocou-lhe um encantamento de
escuridão. Cuidadosamente e em silêncio, Drizzt escolheu cada passo pelo trilho, guiado pelo som
surdo da cauda ondulante. Quase tropeçou quando chegou perto da primeira pilha de pedras
preciosas, e ouviu a cauda parar abruptamente.
— Aventura! — disse em silêncio para si mesmo, e prosseguiu, concentrando-se na imagem mental
do que o rodeava. Imaginou o dragão a surgir-lhe de repente à frente, vendo através do seu globo de
escuridão. Encolheu-se instintivamente, esperando que uma explosão de chamas o engolisse e o
mirrasse ali mesmo. Mas forçou-se a avançar e, quando por fim se aproximou da pilha de ouro, ficou
satisfeito por ouvir a respiração calma, profunda, do dragão adormecido.
Drizzt começou a dirigir-se lentamente para o segundo monte de ouro, deixando que um
encantamento de levitação se formasse nos seus pensamentos. Não esperava realmente que o
encantamento funcionasse muito bem — porque falhava cada vez mais completamente à medida que o
ia usando. Mas toda a ajuda que conseguisse obter ajudaria no efeito da sua dissimulação. A meio do
segundo monte de ouro, Drizzt começou a correr, fazendo saltar pedras preciosas e jóias por todo o
lado. Ouviu o dragão a acordar, mas não abrandou, preparando o arco enquanto avançava.
Quando chegou à beira do topo do monte de ouro, saltou e pôs em acção a levitação, pairando
imóvel no ar por uma fracção de segundo, até que o encantamento falhou. Então, caiu, disparando o
arco e lançando o globo de escuridão a voar até ao outro lado da sala.
Nunca teria acreditado que um monstro daquele tamanho pudesse ser tão ágil, mas quando caiu
pesadamente numa pilha de cálices e de pequenos objectos cravejados de jóias, deu consigo a olhar
para a cara de um monstro muito zangado.
Aqueles olhos! Como dois raios gémeos danados, o olhar perfurou Drizzt, quase o atravessou,
impelindo-o a cair de borco e a mendigar misericórdia e a revelar toda a dissimulação que
preparara, a confessar todos os pecados a Hefesto, àquela coisa-deus. O grande pescoço
serpenteante do dragão inclinou-se ligeiramente para um lado, mas o olhar penetrante nunca largava o
drow, mantendo-o preso tão firmemente como uma abraço de urso de Bluster.
Uma voz soou muito baixa, mas firmemente, nos pensamentos de Drizzt: era a voz de um ranger
cego, contando histórias de batalhas e de heroísmo. Inicialmente, mal a ouvia, mas a voz era
insistente, lembrando-lhe, à sua maneira, que outros cinco homens dependiam agora dele. Se
falhasse, os monges morreriam.
Esta parte do plano não era muito difícil para Drizzt, porque acreditava verdadeiramente nas suas
palavras.
— Hefesto! — gritou na língua comum. — Serás mesmo tu, finalmente? Oh, magnífico! Oh mais
magnífico do que contam os relatos, de longe!
A cabeça do dragão afastou-se alguns metros de Drizzt, e uma expressão confusa surgiu-lhe nos
olhos penetrantes, desarmando-o.
— Conheces-me? — delirou Hefesto, vaidoso, com o seu bafo quente a fazer esvoaçar a cabeleira
branca do drow.
— Toda a gente te conhece, poderoso Hefesto! — gritou Drizzt, pondo-se de joelhos, mas não se
atrevendo a levantar-se. — Eras tu quem eu procurava, e agora encontrei-te e não estou desapontado.
Os terríveis olhos do dragão semicerraram-se, desconfiados.
— Porque haveria um elfo negro de procurar Hefesto, Destruidor de Cockleby, Devorador de Dez
Mil Cabeças de Gado, Aquele que Esmagou Angalander, o Estúpido Prateado, Aquele que… — e
prosseguiu por vários minutos, com Drizzt a aguentar estoicamente o hálito horrível, e fingindo
continuamente, durante todo esse tempo, estar maravilhado pela enumeração dos malévolos feitos do
dragão. Quando Hefesto terminou, Drizzt teve de parar por um momento para recordar a questão
inicial.
A sua confusão real apenas ajudou, desta vez, a melhorar ainda mais a dissimulação.
— Elfo Negro? — perguntou, como se não compreendesse. Olhou para o dragão e repetiu as
palavras, ainda mais confundido: — Elfo Negro?
O dragão olhou em redor, com o olhar a passar como dois faróis sobre os montes de tesouros, e
depois parando por algum tempo no globo de escuridão de Drizzt, do outro lado da sala.
— Sim, refiro-me a ti! — Rugiu Hefesto subitamente. E a força desse grito fez o drow cair para
trás. — Elfo Negro!
— Drow? — disse Drizzt, recuperando rapidamente e sem se atrever a pôr-se de pé. — Não, eu
não… — depois olhou para si mesmo e assentiu com a cabeça, como que a perceber finalmente: —
Ah, sim, claro — disse então. — Esqueço-me às vezes deste manto que uso!
Hefesto lançou um longo rugido, cada vez mais impaciente, e Drizzt percebeu que tinha de agir
depressa.
— Não sou drow — disse. — Embora possa passar a sê-lo, em breve, se o poderoso Hefesto não
me ajudar! — Drizzt esperava apenas ter conseguido espicaçar a curiosidade do dragão. — Já
ouviste falar de mim, tenho a certeza, poderoso Hefesto. Sou, ou era, e espero voltar a ser,
Mergandevinasander de Chult, um velho negro de não pouca fama.
— Mergandevinasander? — começou Hefesto a dizer. Mas depois calou-se. Ouvira de facto falar
do negro, claro; os dragões conheciam os nomes da maioria dos outros dragões de todo o mundo.
Hefesto também sabia, tal como Drizzt esperara, que Mergandevinasander tinha olhos púrpura.
Para o ajudar a avançar na explicação, Drizzt relembrou as suas experiências com Clacker, o
malogrado pech que tinha sido transformado por um mago num horror de garras.
— Um mago venceu-me — começou a dizer, sombriamente. — Um grupo de aventureiros entrou
no meu covil. Ladrões! Mas apanhei um: um paladino!
Hefesto pareceu gostar deste pequeno pormenor. Drizzt, que pensara nele apenas nesse momento,
aplaudiu-se a si mesmo em silêncio e prosseguiu:
— Como a armadura prateada dele se derreteu sob o ácido do meu hálito!
— Que pena desperdiçá-lo assim — interrompeu Hefesto. — Os paladinos dão refeições tão
agradáveis!
Drizzt sorriu para disfarçar o desconforto perante essa ideia. Seria também saboroso um elfo
negro? — não conseguiu impedir-se de se interrogar, com a boca do dragão ali tão perto.
— Teria morto todos eles, e teria sido um belo tesouro amealhado, se não fosse aquele maldito
mago! Foi ele que me fez esta coisa terrível!
E olhou para a sua forma drow com ar de desaprovação.
— Um polimorfo? — perguntou Hefesto, com um tom em que Drizzt notou uma ponta de simpatia
— ou pelo menos, rezou para que fosse.
Assentiu com a cabeça, solenemente:
— Um feitiço malévolo. Tirou-me a forma, as asas e o sopro. Mas continuei a ser
Mergandevinasander em pensamento, se bem que… — Hefesto abriu muito os olhos perante esta
pausa, e o olhar desgraçado e confuso que Drizzt lhe devolveu fê-lo erguer-se: — Descobri uma
súbita afinidade com aranhas — murmurou Drizzt. — Gosto de as acariciar e tratar como bichos de
estimação…
«Então, é assim que se parece um dragão enojado», pensou quando voltou a olhar para o monstro.
Moedas e pequenos objectos retiniram por toda a sala, enquanto um arrepio involuntário sacudia a
espinha do dragão.

Os monges, no túnel, não podiam ver a cena, mas conseguiam ouvir o suficiente da conversa para
perceberem o que o drow tinha em mente. Pela primeira vez de que qualquer um deles se conseguia
lembrar, o Irmão Jankin ficara sem palavras, mas Mateus conseguiu murmurar, fazendo eco dos
sentimentos de todos:
— Aquele tem uma boa dose de bravura!
O monge possante deu uma gargalhadinha e pôs a mão à frente da boca, receando ter falado
demasiado alto.

— Porque vieste ter comigo? — rugiu Hefesto irritadamente. Drizzt deslizou para trás, empurrado
pela força do rugido, mas conseguiu manter o equilíbrio.
— Para implorar ao poderoso Hefesto… — mendigou Drizzt. — Não tenho escolha. Viajei até
Menzoberranzan, a cidade dos drow, mas o feitiço deste mago é poderoso, disseram-me eles, e nada
podiam fazer para o contrariar. Por isso, vim à tua procura, grande e poderoso Hefesto, que és
famoso pelas tuas capacidades para lidar com feitiços e transmutações. Talvez alguém do meu
próprio género…
— Um negro? — respondeu o rugido tremendo. E, desta vez, Drizzt caiu mesmo. — E achas-me do
teu próprio género?
— Não, não… Mas um dragão — disse Drizzt rapidamente, retractando-se do aparente insulto e
pondo-se mais uma vez de pé, num salto, e pensando que era bem capaz de ter de correr outra vez daí
a pouco.
O rugido continuado de Hefesto disse-lhe que precisava de arranjar uma diversão, e encontrou-a
atrás do dragão, nas profundas marcas de fogo ao longo das paredes e ao fundo de um recanto
rectangular. Drizzt pensou que seria ali que Hefesto ganhava o seu considerável pecúlio, derretendo
metais. O drow não pôde deixar de estremecer ao pensar em quantos desafortunados mercadores ou
aventureiros poderiam ter encontrado o fim junto àquelas paredes chamuscadas.
— O que causou tão grande cataclismo? — perguntou, espantado.
Hefesto não se atreveu a virar os olhos, suspeitando de alguma traição. Um momento depois, no
entanto, o dragão percebeu a que se estava a referir o elfo negro, e o rugido desapareceu.
— Que deus desceu sobre ti, poderoso Hefesto, e te abençoou com uma exibição de poder tão
grande? Em lado algum de todos os Reinos há pedras tão calcinadas como estas! Nenhuma assim,
desde os fogos que criaram o mundo…
— Basta! — disse Hefesto, envaidecido. — Tu, que és tão conhecedor, não conheces o bafo de um
vermelho?
— Claro que o fogo é a arma de um vermelho — respondeu Drizzt, sem tirar os olhos do recanto
calcinado —, mas a que ponto podem as chamas ser intensas? Decerto não tão fortes que causem uma
tal devastação!
— Gostarias de ver? — respondeu o dragão, com um sopro sinistro, fumegante.
— Sim! — exclamou Drizzt. E depois: — Não! — acrescentou, caindo e enrolando-se em posição
fetal. Sabia que estava a pisar terreno traiçoeiro, mas sabia também que era uma aposta que
precisava de fazer. — É verdade que gostaria de ver um tal sopro, mas também é verdade que receio
sentir o seu calor!
— Então, olha, Mergandevinasander de Chult! — rugiu Hefesto. — Vê quem é melhor do que tu!
A aspiração súbita de ar do dragão puxou Drizzt dois passos mais para a frente, fez-lhe os cabelos
brancos entrarem-lhe para os olhos, e quase lhe arrancou a capa das costas. No monte atrás dele, as
moedas de ouro resvalaram numa correria ruidosa.
Depois, o pescoço longo e serpenteante do dragão rodou, num arco amplo, pondo a cabeça do
grande vermelho em linha com o recanto rectangular.
O sopro explosivo que se seguiu sugou o ar de toda a câmara; os pulmões de Drizzt ardiam e os
olhos picavam, devido ao calor e ao brilho ofuscante. Mas continuou a olhar, enquanto as chamas do
dragão se abatiam no recanto, num estampido de trovão. Drizzt notou, também, que Hefesto fechava
bem os olhos quando soprava o fogo.
Terminada a exibição, Hefesto virou-se de novo para Drizzt, triunfante. O drow, ainda a olhar para
o mesmo sítio, vendo a pedra derretida a deslizar pelas paredes e a pingar do tecto, não precisou de
fingir o espanto.
— Pelos deuses! — murmurou. E conseguiu olhar para a expressão satisfeita do dragão. — Pelos
deuses! — disse mais uma vez. — Mergandevinasander de Chult, que se julgava supremo, sente-se
humilhado.
— E é assim que deve sentir-se! — gabou-se Hefesto. — Nenhum negro está à altura de um
vermelho! Fica sabendo disso, Mergandevinasander. É um facto que te poderá salvar a vida, se
alguma vez um vermelho te bater à porta!
— Assim é — concordou imediatamente Drizzt. — Mas receio bem que não venha a ter porta…
— voltou a olhar para o seu corpo e riu com desdém: — Nenhuma porta, a não ser na cidade dos
elfos negros!
— É o teu destino, não o meu — disse Hefesto. — Mas vou ter piedade de ti. Vou deixar-te partir
com vida, ainda que isso seja mais do que mereces por teres perturbado o meu sono!
Drizzt sabia que este era o momento crítico. Poderia aceitar a oferta de Hefesto; nesse momento,
nada mais desejava do que sair dali. Mas os seus princípios e a recordação de Mooshie não o
deixavam partir. E os seus companheiros no túnel? — lembrou a si mesmo. — E as aventuras para os
livros dos cronistas?
— Devora-me, então — disse para o dragão, ainda que mal conseguisse acreditar que estava a
dizer tal coisa, enquanto a dizia. — Eu, que conheci a glória de ser dragão, não me poderei contentar
com a vida como elfo negro.
As enormes mandíbulas de Hefesto aproximaram-se mais.
— Pobre raça dos dragões! — queixou-se Drizzt. — Os nossos números estão sempre a decrescer,
enquanto os humanos se multiplicam como vermes. Ai dos tesouros dos dragões, que serão roubados
por magos e paladinos!
A forma como Drizzt pronunciou esta palavra fez Hefesto parar um pouco.
— E ai de Mergandevinasander — prosseguiu dramaticamente —, atingido por um mago humano
cujos poderes se mostraram superiores até aos de Hefesto, o mais poderoso de entre os dragões.
— Superiores? — gritou Hefesto. E toda a sala estremeceu com a força daquele rugido.
— Que outra coisa posso acreditar? — gritou Drizzt em resposta, embora de uma forma quase
ridícula, em comparação com o volume da voz do dragão. — Hefesto não ajudaria um dos seus, da
sua espécie em declínio? Não, não posso acreditar nisso, e que o mundo nunca acredite em tal coisa!
— apontou um dedo esticado para o tecto, fazendo o seu melhor sermão. Não precisava que lhe
lembrassem o preço de falhar agora. — Dirão, por todos os vastos Reinos, que Hefesto não se
atreveu a tentar desfazer a magia do feiticeiro, que o grande vermelho não se atreveu a revelar a sua
fraqueza contra um feitiço tão poderoso, por receio de que essa fraqueza incitasse o mesmo feiticeiro
a vir para norte, para mais um ataque e mais um saque de dragão! Ah! — gritou, de olhos muito
abertos. — Mas essa rendição não dará também ao feiticeiro e aos seus maldosos e ladrões amigos
esperanças renovadas de virem saquear também o seu tesouro? E que dragão possui mais para ser
roubado do que Hefesto, o vermelho da rica Mirabar?
O dragão estava confuso. Hefesto gostava do seu modo de vida, dormindo sobre riquezas cada vez
maiores, pagas por ricos mercadores. Não precisava de aventureiros heróicos a espreitar o seu
covil! E era precisamente com esses sentimentos que Drizzt contava.
— Amanhã! — rugiu o dragão. — Esta noite pensarei no feitiço, e amanhã Mergandevinasander
voltará a ser um negro! Depois, partirá, com o rabo em chamas se se atrever a dizer mais uma
palavra blasfema! Agora, tenho de descansar para me recordar do feitiço. Não saias daí, dragão sob
a forma de elfo. Cheiro-te onde estás e ouço-te melhor do que qualquer outra coisa neste mundo. Não
durmo tão profundamente como muitos ladrões teriam desejado!
Drizzt não duvidou de nenhuma palavra de Hefesto, evidentemente; por isso, embora as coisas
tivessem corrido tão bem como esperara, viu-se metido num sarilho. Não poderia esperar um dia
inteiro para recomeçar a conversa com o vermelho, nem os seus amigos. Como reagiria o dragão,
interrogou-se Drizzt, quando tentasse contrariar um feitiço que nem sequer existia? E se, pensou
enquanto quase entrava em pânico, Hefesto o transformasse realmente num dragão negro?
— É claro que o sopro de um negro tem algumas vantagens sobre o de um vermelho — disse
Drizzt quando Hefesto virava costas.
O vermelho voltou a virar-se para ele com uma rapidez assustadora e com uma fúria ainda mais
assustadora.
— Queres sentir o meu sopro? — perguntou Hefesto. — Depois disso, seriam assim tão grandes as
tuas bravatas?
— Não, não é isso — respondeu Drizzt. — Não te sintas insultado, poderoso Hefesto. É verdade
que o espectáculo do teu fogo me retirou o orgulho! Mas o sopro de um negro também não pode ser
subestimado. Tem qualidades que vão até para além da força do fogo de um vermelho!
— Que estás para aí a dizer?
— Ácido, ó Hefesto, o Incrível, Devorador de Dez Mil Cabeças de Gado — respondeu Drizzt. —
Ácido que se pega à armadura de um cavaleiro e a trespassa num derradeiro tormento.
— Como aconteceria com metal derretido… — disse Hefesto sarcasticamente. — Metal derretido
pelo fogo de um vermelho.
— Pior, receio bem — admitiu Drizzt, baixando os olhos. — O sopro de um vermelho surge numa
explosão de destruição, mas o de um negro dura mais e permanece mais tempo, para desgraça do
inimigo.
— Uma explosão? — rosnou Hefesto. — Quanto tempo pode durar o teu sopro, desgraçado negro?
Consigo soprar mais tempo, tenho a certeza!
— Mas… — começou Drizzt, apontando para a parede queimada. Desta vez, a súbita inspiração
de ar do dragão fez Drizzt avançar vários passos, e quase o levantou do chão. O drow manteve
suficiente presença de espírito para gritar o sinal combinado: — Fogos dos Nove Infernos! —
enquanto Hefesto virava a cabeça mais uma vez para a parede calcinada.

— É o sinal! — disse Mateus sobrepondo-se ao ruído. — Corram! Corram, pelas vossas vidas!
— Nunca! — gritou o aterrorizado Irmão Herschel; e os outros, excepto Jankin, não discordaram.
— Oh, sofrer desta maneira! — lamentou-se o monge dos cabelos desgrenhados, saindo do túnel.
— Temos de ir! Pelas nossas vidas! — lembrou-lhes Mateus, agarrando Jankin pelos cabelos para
o impedir de ir na direcção errada.
Debateram-se à saída do túnel durante alguns segundos, e depois os outros monges, percebendo
que a sua única esperança em breve se perderia, saíram a correr do túnel e o grupo inteiro caiu aos
tropeções e cambaleando pelo trilho que descia da saída do túnel. Quando se levantaram, pareciam
estar num transe, saltitando por todo o lado, sem saberem ao certo se deviam voltar a subir para o
túnel ou correr para a saída. O desesperado bailado não os ajudava a subir a rampa de regresso ao
túnel, especialmente com Mateus ainda a tentar dominar Jankin, por isso a saída era o único caminho
possível. Tropeçando uns nos outros, os monges correram atravessando a sala.
Nem sequer o terror impediu que cada um deles, até mesmo Jankin, apanhasse uma mão-cheia de
jóias, enquanto corriam.

Nunca se vira uma tal explosão de fogo de dragão! Hefesto, de olhos fechados, rugia continuamente,
desintegrando a pedra no canto da sala. Grandes pingos de chamas caíam no meio da sala — e Drizzt
quase foi vencido pelo calor —, mas o irritado dragão não abrandava, determinado a humilhar o
incomodativo visitante de uma vez por todas.
O dragão espreitou, por um momento, para verificar os efeitos da sua exibição. Os dragões
conheciam as suas salas dos tesouros melhor do que qualquer outra coisa no mundo, e Hefesto não
deixou de reparar na imagem de cinco silhuetas que corriam através da sala, em direcção à saída.
O sopro parou abruptamente, e o dragão girou.
— Ladrões! — rugiu, abrindo rachas na rocha com a sua voz tonitruante.
Drizzt percebeu que o jogo estava acabado.
A grande mandíbula eriçada de dentes aguçados tentou trincar o drow. Drizzt saltou para o lado e
depois para cima, sem mais nenhum sítio para onde fugir. Apanhou um dos chifres do dragão e subiu
em conjunto com a cabeça do monstro. Conseguiu trepar para se pôr em cima da cabeça e aguentou-
se aí, enquanto o dragão ultrajado tentava sacudi-lo. Deitou uma mão a uma cimitarra, mas em vez
disso deu com um bolso, e tirou de lá uma mão-cheia de terra. Sem a mínima hesitação, atirou a terra
para um olho malévolo do dragão.
Hefesto ficou frenético, sacudindo a cabeça violentamente, para cima e para baixo e para todos os
lados. Drizzt manteve-se teimosamente firme, e o manhoso dragão descobriu outra maneira de se
livrar dele.
Drizzt percebeu a intenção de Hefesto quando a cabeça do monstro disparou para cima a toda a
velocidade. O tecto não era assim tão alto — pelo menos, comparado com o pescoço de serpente do
dragão. Era uma queda perigosa, mas um destino preferível, de longe, e por isso Drizzt libertou-se
mesmo antes de a cabeça do dragão se abater contra a rocha.
O drow pôs-se de pé, estonteado, enquanto Hefesto, quase incólume apesar do impacto, inspirou
fundo. A sorte salvou o drow, e não pela primeira, nem pela última vez, quando um pedaço de pedra
de tamanho considerável caiu do tecto e se esmagou contra a cabeça do monstro. O sopro de Hefesto
saiu apenas como um inofensivo suspiro, e Drizzt saiu a correr a toda a velocidade por cima dos
montes de ouro e pedras preciosas, mergulhando do outro lado.
Hefesto rugia de raiva e lançou o que restava do seu sopro, sem pensar, contra os montes de ouro.
Moedas de ouro derreteram; enormes pedras preciosas estalaram sob a enorme pressão. O monte
tinha pelo menos três metros de altura e era compacto, mas Drizzt, encostado do outro lado, sentiu as
costas a arder. Saltou para longe da pilha, deixando a capa fumegante e quase fundida com o ouro
derretido.
Reapareceu de cimitarras desembainhadas, enquanto o dragão recuava para tomar balanço. O
drow correu direito a ele, com bravura, ou estupidamente, cortando o ar com as cimitarras e com
toda a sua força. Parou, estonteado, apenas ao fim de dois golpes, com ambas as cimitarras a
vibrarem-lhe dolorosamente nas mãos; era como se as tivesse feito bater contra uma parede de
pedra!
Hefesto, de cabeça erguida, nem prestara atenção ao ataque.
— O meu ouro! — lamuriava-se. Depois, olhou para baixo, com os olhos faiscantes a trespassar
de novo o drow. — O meu ouro! — disse outra vez, malevolamente.
Drizzt encolheu os ombros e fugiu.
Hefesto sacudia a cauda freneticamente, fazendo-a bater contra outros montes do seu tesouro e
fazendo chover moedas de ouro e jóias por toda a sala.
— O meu ouro! — rugia o dragão continuamente, enquanto abria caminho à bruta por entre as
pilhas maciças.
Drizzt atirou-se para trás de outro monte.
— Ajuda-me, Guenhwyvar! — implorou, deixando cair a estatueta.
— Consigo cheirar-te, ladrão! — ronronou o dragão — como se uma tempestade de trovões
pudesse ronronar —, não muito longe de Drizzt.
Em resposta, a pantera surgiu no cimo do monte, rugiu desafiadoramente e depois saltou para
longe. Drizzt, lá em baixo, escutou cuidadosamente, medindo os passos, enquanto Hefesto avançava
rapidamente.
— Vou desfazer-te à dentada, imitador de aparências! — prometeu o dragão. Depois, a boca
enorme, muito aberta, mordeu em direcção a Guenhwyvar.
Mas os dentes, mesmo os dentes de dragão, tinham pouco efeito contra a névoa insubstancial em
que Guenhwyvar subitamente se transformou.
Drizzt ainda conseguiu meter no bolso algumas jóias e ouro enquanto corria para fora dali, com a
retirada coberta pelo estrépito da birra do dragão frustrado. A sala era grande e Drizzt ainda não
tinha chegado à saída quando Hefesto recuperou e o viu. Confuso, mas não menos irado, o dragão
rugiu de novo e começou a avançar para ele.
Na língua de duende, e sabendo pelo livro que Hefesto a falava, mas esperando que o dragão não
soubesse que ele sabia, Drizzt gritou:
— Quando o estúpido monstro me seguir até lá fora, entrem e apanhem o resto!
Hefesto travou, escorregando, e virou-se, olhando para o túnel que dava para o seu tesouro. O
estúpido dragão estava num dilema terrível, querendo trincar o matreiro drow, mas receando ser
roubado lá atrás. Correu até ao túnel e meteu a cabeça lá dentro, para ver melhor, e depois recuou de
novo, para pensar melhor.
Os ladrões já tinham chagado à saída, sabia disso; teria de sair a céu aberto, se os quisesse
apanhar — o que não era grande ideia nesta altura do ano, tendo em conta o seu negócio lucrativo.
Por fim, o dragão resolveu o problema da mesma forma como sempre resolvia todos os problemas:
prometeu a si mesmo que comeria todos os do próximo grupo de mercadores que viesse ter com ele.
Com o orgulho restabelecido por essa resolução, que decerto esqueceria assim que regressasse ao
seu sono, o dragão caminhou pela sala, voltando a empilhar o ouro e salvando o que podia dos
montes que tinha derretido inadvertidamente.
— Conseguiste fazer-nos passar! — gritou o Irmão Herschel. Todos os monges, excepto Jankin,
deram um grande abraço a Drizzt assim que o drow chegou junto deles, num vale rochoso a oeste do
covil do dragão.
— Se ao menos houvesse maneira de alguma vez te retribuirmos!
Em resposta, Drizzt esvaziou os bolsos e cinco pares de olhos ávidos abriram-se muito quando
pedaços de ouro e pedras preciosas caíram, brilhando ao sol da tarde. Uma pedra, em especial — um
rubi de três centímetros — prometia riqueza para além de qualquer coisa que os monges alguma vez
tivessem visto.
— É vosso — explicou Drizzt. — Tudo. Não preciso de tesouros.
Os monges olharam uns para os outros, com remorsos, mas nenhum deles querendo revelar o saque
que trazia nos seus próprios bolsos.
— Talvez devesses ficar pelo menos com uma parte — propôs Mateus. — Se continuas a pensar
partir sozinho…
— Assim é — disse Drizzt com firmeza.
— Mas não podes ficar aqui — raciocinou Mateus. — Para onde irás?
Drizzt não pensara realmente muito nisso, ainda. Tudo o que sabia era que o seu lugar não era
entre os Monges Chorosos. Ponderou por algum tempo, recordando os muitos caminhos sem saída
por onde viajara. Uma ideia veio-lhe à mente.
— Tu próprio o disseste — disse para Jankin. — Falaste de um lugar, uma semana antes de termos
entrado no túnel…
Jankin olhou para ele, intrigado, mal se lembrando da conversa.
— Dez-Cidades — disse Drizzt. — Terra de renegados, onde um renegado poderia encontrar o
seu lugar.
— Dez-Cidades? — Mateus recuou. — É melhor reconsiderares o teu curso, amigo. Icewind Dale
não é um lugar acolhedor, nem o são os assassinos empedernidos que lá vivem.
— O vento está sempre a soprar, lá — acrescentou Jankin, com uma expressão ávida nos olhos
negros e fundos. — E vem sempre carregado de areia e de um frio cortante. Irei contigo!
— E os monstros! — acrescentou outro, dando-lhe um carolo. — Iétis da tundra e ursos brancos, e
bárbaros ferozes! Não, eu não iria para Dez-Cidades, nem que o próprio Hefesto me tentasse
empurrar para lá!
— Bem, o dragão era bem capaz disso — notou Herschel, olhando nervosamente para o covil não
muito distante. — Há algumas quintas de agricultores nas redondezas. Talvez pudéssemos passar a
noite numa delas e regressar ao túnel amanhã.
— Não irei convosco — disse Drizzt de novo. — Dizem que Dez-Cidades é um lugar pouco
acolhedor; mas encontraria eu melhor recepção em Mirabar?
— Iremos ter com os agricultores esta noite — respondeu Mateus, reconsiderando as suas
palavras. — Comprar-te-emos lá um cavalo, e os mantimentos de que precisas. Não desejo nada que
te vás — disse —, mas Dez-Cidades parece-me uma boa escolha… — e olhou vivamente para
Jankin — Para um drow! Muitos encontraram lá o seu lugar. É, de facto, o lugar para quem não tem
lugar.
Drizzt percebeu a sinceridade da voz do monge e apreciou a gentileza.
— Como a encontro? — perguntou.
— Segue as montanhas — respondeu Mateus. — Mantém-nas sempre ao alcance da mão direita.
Quando passares para lá da cordilheira, terás entrado em Icewind Dale. Apenas um pico isolado
marca as terras planas a norte da Espinha do Mundo. As cidades foram construídas em volta dele.
Que sejam tudo o que esperas delas!
E com isto, os monges prepararam-se para partir. Drizzt pôs as mãos cruzadas atrás da cabeça e
recostou-se contra a parede da montanha. Era chegado, realmente, o momento de se separar dos
monges. Sabia disso. Mas não poderia negar a sensação de culpa e a solidão que isso acarretava. As
pequenas riquezas que tinha trazido do covil do dragão alterariam grandemente as vidas dos seus
companheiros, proporcionar-lhes-iam abrigo e todas as necessidades; mas a riqueza nada poderia
fazer para alterar as barreiras que Drizzt enfrentava.
Dez-Cidades, a terra que Jankin dissera ser um lar para os sem terra, um ponto de reunião para
aqueles que não tinham mais nenhum sítio para onde ir, trouxe a Drizzt uma certa medida de
esperança. Quantas vezes tinha o destino troçado dele? De quantos portões se aproximara
esperançoso, para depois ser mandado de volta sob a ameaça de uma lança? Desta vez, seria
diferente, disse Drizzt a si mesmo. Porque se não conseguisse encontrar lugar numa terra de
renegados, onde haveria então de o encontrar?
Para o emocionado drow, que passara tanto tempo a fugir da tragédia, da culpa e dos preconceitos
a que não conseguia escapar, a esperança não era uma emoção confortável.

Drizzt acampou num pequeno bosque nessa noite, enquanto os monges seguiam para a pequena aldeia
de agricultores. Regressaram na manhã seguinte trazendo um belo cavalo, mas um do grupo estava
notoriamente ausente.
— Onde está Jankin? — perguntou Drizzt, preocupado.
— Preso num celeiro — respondeu Mateus. — Tentou escapulir-se ontem à noite, para
regressar…
— Para junto de Hefesto… — concluiu Drizzt por ele.
— Se continuar com essa ideia hoje, somos bem capazes de o deixar ir — acrescentou Herschel
com uma expressão de enfado.
— Aqui tens o teu cavalo — disse Mateus. — Se a noite não te fez mudar de ideias.
— E aqui tens uma nova capa — ofereceu Herschel, estendendo a Drizzt uma capa de boa
qualidade, forrada a pele. Drizzt sabia o quanto os monges estavam a ser invulgarmente generosos, e
quase mudou de ideias. Mas não podia deitar para trás as suas outras necessidades, e essas não
seriam satisfeitas com este grupo.
Para demonstrar a sua determinação, o drow foi direito ao animal, decidido a montá-lo
imediatamente. Já vira cavalos antes, mas nunca tão de perto. Ficou espantado pela força do animal,
pelos músculos que corriam pelo pescoço, e também pela altura do dorso.
Passou um momento a olhar para os olhos do cavalo, comunicando as suas intenções o melhor que
podia. Depois, para espanto de todos, e até de Drizzt, o cavalo baixou as pernas da frente,
inclinando-se para permitir a Drizzt montar com facilidade na sela.
— Tens jeito para os cavalos — notou Mateus. — Nunca mencionaste que eras um cavaleiro
experiente.
Drizzt limitou-se a acenar com a cabeça e fez o seu melhor para se manter na sela quando o cavalo
começou a trotar. O drow precisou de vários minutos para perceber como controlar o animal e já
tinha avançado longe para leste — no sentido errado — antes de conseguir voltar para trás. Durante
o percurso, tentou esforçadamente manter a fachada, e os monges, que também não eram experientes
com cavalos, limitaram-se a sorrir e a acenar.
Horas depois, Drizzt estava a cavalgar para oeste, seguindo a encosta sul da Espinha do Mundo.

O frio vento de leste enchia-lhe os ouvidos com uma canção interminável. Drizzt ouvira-a a cada
segundo desde que contornara o lado ocidental da Espinha do Mundo e depois virara para norte, e
depois para leste, para a extensão de terra desolada cujo nome derivava deste vento: Icewind Dale.
Aceitou o triste lamento e a picada gélida desse vento de boa vontade, porque, para ele, a corrente de
ar chegava como uma brisa libertadora.
Outro símbolo dessa liberdade chegou quando o drow contornou a cadeia de montanhas: a visão
do vasto mar. Drizzt visitara uma faixa costeira uma vez, no caminho para Luskan, e agora queria
fazer uma pausa e ir outra vez até às praias. Mas o vento frio lembrou-lhe o Inverno que estava a
chegar, e apercebeu-se da dificuldade que teria depois em viajar, quando caíssem as primeiras
neves.
Drizzt viu Kelvin’s Cairn, a solitária montanha na tundra a norte da grande cadeia de montanhas,
no primeiro dia depois de se afastar da Espinha do Mundo. Dirigiu-se para lá ansiosamente,
visualizando o singular pico como ponto de referência da terra a que chamaria casa. Uma esperança
receosa enchia-o sempre que olhava para a montanha.
Passou por vários pequenos grupos, carroças solitárias ou um punhado de homens a cavalo, à
medida que se aproximava de Dez-Cidades, ao longo da rota das caravanas, que era a entrada de
sudoeste. O Sol estava baixo no horizonte e fraco, e Drizzt mantinha o capuz da capa puxado para a
frente, escondendo a pele de ébano. Fazia um aceno de cabeça ligeiro quando passava por algum
viajante.
Três lagos dominavam a região, além do pico da rochosa Kelvin’s Cairn, que se erguia a trezentos
metros acima da planície irregular e estava coroado por neve, mesmo durante o curto Verão. Das dez
cidades que davam nome àquela área, só a cidade principal, Bryn Shander, estava afastada dos lagos.
Ficava acima da planície, numa pequena colina, com a bandeira ondeando desafiadoramente contra o
vento forte. A rota das caravanas, o caminho de Drizzt, levava a essa cidade, que era o principal
mercado da região.
Drizzt pôde ver, pelo fumo que subia de distantes fogos, que várias outras comunidades estavam a
poucos quilómetros da cidade da colina. Considerou o percurso por um momento, interrogando-se se
deveria ir para uma dessas cidades mais pequenas, mais isoladas, em vez de continuar directamente
para a cidade principal.
— Não — disse o drow firmemente, metendo uma mão na bolsa para sentir a estatueta de ónix.
Esporeou o cavalo, correndo pela colina acima até aos portões imponentes da cidade amuralhada.
— Mercador? — perguntou um dos dois guardas enfadados diante do portão de ferro. — Vens um
bocado atrasado para negociar, nesta altura do ano.
— Não sou mercador — respondeu Drizzt em voz baixa, perdendo uma boa dose da sua coragem,
agora que tinha chegado a hora. Estendeu a mão lentamente até ao capuz, tentando mantê-la em
movimento sem tremer.
— De que cidade vens, então? — perguntou o outro guarda. Drizzt voltou a descer a mão, com a
coragem derrotada pela pergunta directa.
— De Mirabar — respondeu honestamente. Depois, antes que se conseguisse impedir e antes que
os guardas fizessem outra pergunta que o distraísse, estendeu de novo a mão e afastou o capuz.
Quatro olhos quase saltaram das órbitas, e as mãos caíram imediatamente sobre os punhos das
espadas.
— Não! — replicou Drizzt subitamente. — Não, por favor.
Um cansaço apoderou-se da voz e da postura do drow, que os guardas não conseguiriam entender.
Drizzt já não tinha forças para batalhas sem sentido, geradas pela incompreensão. Contra uma horda
de duendes ou um gigante briguento, as cimitarras do drow saltavam-lhe com facilidade para as
mãos. Mas contra alguém que só lutasse contra ele devido a incompreensão e preconceitos, as
espadas pesavam-lhe muito.
— Vim de Mirabar — prosseguiu o drow, com a voz a ficar mais firme a cada sílaba — para Dez-
Cidades, para viver em paz.
E estendeu as mãos bem abertas, não oferecendo nenhuma ameaça. Os guardas não sabiam bem
como reagir. Nunca algum deles vira um elfo negro — embora soubessem sem sombra de dúvida que
Drizzt era um drow —, nem conheciam nada acerca dessa raça, a não ser as histórias contadas junto
à fogueira sobre a antiga guerra que separara os povos élficos.
— Espera aqui — murmurou um dos guardas para o outro, que pareceu não apreciar essa ordem.
— Irei informar o Porta-Voz Cassius.
Bateu no portão de ferro e esgueirou-se para dentro assim que este foi aberto o suficiente para o
deixar passar. O guarda que ficou fitava Drizzt sem pestanejar, com a mão sempre pousada no punho
da espada.
— Se me matares, cem flechas abater-te-ão — declarou, tentando, mas falhando estrondosamente,
parecer confiante.
— Porque havia de o fazer? — perguntou Drizzt simplesmente, mantendo as mãos bem afastadas e
uma postura sem nada de ameaçador. Este encontro estava a correr bem, até agora, acreditava. Em
todas as outras cidades e aldeias de que se atrevera a aproximar-se, os primeiros que o viam tinham
fugido aterrorizados ou tinham-no perseguido de armas em riste.
O outro guarda regressou daí a pouco com um homem pequeno e magro, barbeado e com olhos
azuis muito claros, que sondavam tudo à sua volta continuamente, notando cada pormenor. Vestia
roupas refinadas e, pelo respeito que os dois guardas mostravam, Drizzt percebeu imediatamente que
era de posição elevada na cidade.
O homem estudou Drizzt por longo tempo, observando cada gesto e cada traço.
— Sou Cassius — disse por fim. — Porta-Voz de Bryn Shander e Principal Porta-Voz do
Conselho Governante de Dez-Cidades.
Drizzt fez uma pequena vénia.
— Sou Drizzt Do’Urden — respondeu. — De Mirabar e outros sítios mais distantes, agora
chegado a Dez-Cidades.
— Porquê? — perguntou Cassius secamente, tentando apanhá-lo desprevenido.
Drizzt encolheu os ombros.
— É preciso alguma razão?
— Para um elfo negro, talvez — respondeu Cassius com sinceridade.
O sorriso de compreensão de Drizzt desarmou o Porta-Voz e acalmou os dois guardas, que agora
estavam protectoramente colocados de cada lado do homem.
— Não posso dar nenhuma razão para a minha chegada, a não ser o meu desejo de vir até cá —
prosseguiu Drizzt. — Longo tem sido o meu caminho, Porta-Voz Cassius. Estou cansado e preciso de
paz. Dez-Cidades é lugar de renegados, segundo me disseram, e um elfo negro é, sem dúvida, um
renegado entre os habitantes da superfície.
Parecia suficientemente lógico, e a sinceridade de Drizzt transpareceu claramente para o Porta-
Voz atento. Cassius apoiou o queixo numa mão e pensou por um longo momento. Não receava o
drow, nem duvidava das suas palavras, mas não tinha nenhuma intenção de permitir a agitação que
um drow causaria na cidade.
— Bryn Shander não é lugar para ti — disse Cassius secamente, ao mesmo tempo que os olhos de
alfazema do drow se semicerravam perante a injusta afirmação. Sem se deixar abalar, Cassius
apontou para norte. — Vai para Lonelywood, na floresta das margens norte de Maer Gualdon —
propôs. Depois, dirigiu o olhar para sudoeste. — Ou para Good Mead, ou Dougan’s Hole, no lago de
sul, Redwaters. São tudo cidades mais pequenas, onde causarás menos agitação e encontrarás menos
sarilhos.
— E se me recusarem a entrada? — perguntou Drizzt. — Para onde irei então, caro senhor?
Ficarei ao vento, para morrer na planície deserta?
— Não sabes se…
— Sei — interrompeu Drizzt. — Já joguei este jogo muitas vezes. Quem receberá de bom grado
um drow, mesmo um que tenha renegado o seu povo e os seus usos, e que não deseje mais do que um
pouco de paz?
A voz de Drizzt era firme e não mostrava auto-comiseração, e Cassius percebeu de novo que as
palavras eram verdadeiras.
Cassius simpatizou verdadeiramente com Drizzt. Ele próprio fora em tempos um renegado, e fora
forçado a ir para os confins do mundo, para a desolada Icewind Dale, para poder encontrar um lar.
Não havia confins para além destes; Icewind Dale era a última paragem de todos os renegados. Outro
pensamento ocorreu então a Cassius; uma solução possível para o dilema, que não deixaria a sua
consciência a atormentá-lo.
— Quanto tempo viveste na superfície? — perguntou, sinceramente interessado.
Drizzt pensou na pergunta por um momento, interrogando-se sobre aonde quereria o Porta-Voz
chegar.
— Sete anos — respondeu.
— Nas terras do norte?
— Sim.
— E, no entanto, não encontraste lar, nem uma aldeia que te acolhesse — disse Cassius. — Terás
de ter sobrevivido a invernos hostis e, sem dúvida, a inimigos mais directos. És hábil com essas
espadas que trazes no cinturão?
— Sou um ranger — disse Drizzt calmamente.
— Profissão invulgar para um drow — notou Cassius.
— Sou um ranger — repetiu Drizzt, mais convictamente. — Bem treinado nas coisas da natureza e
no uso das minhas armas.
— Não duvido — respondeu Cassius. Fez uma pausa, e depois disse: — Há um lugar que oferece
abrigo e isolamento — e o Porta-Voz dirigiu o olhar de Drizzt para norte, para as encostas rochosas
de Kelvin’s Cairn. — Para lá do vale dos anões, fica a montanha — explicou — e para lá da
montanha, a tundra. Seria bom para Dez-Cidades ter um batedor nas encostas norte da montanha. O
perigo parece vir sempre dessa direcção.
— Vim à procura de um lar — interrompeu-o Drizzt. — E tu ofereces-me um buraco no topo de
uma pilha de rochas e um dever para com aqueles a quem nada devo.
Mas, na verdade, a sugestão era atraente para o espírito de ranger do drow.
— Preferias que te dissesse que as coisas são diferentes? — respondeu Cassius. — Não permitirei
que um elfo errante entre em Bryn Shander.
— Se fosse um homem, também teria de se mostrar merecedor?
— Nenhum homem traz consigo uma reputação tão sinistra — respondeu Cassius calmamente, sem
hesitar. — Se eu fosse assim tão magnânimo, se te acolhesse só por confiar nas tuas palavras e te
abrisse as portas de par em par, entrarias para encontrar um lar? Ambos sabemos melhor do que isso,
drow. Nem toda a gente em Bryn Shander seria tão aberta e calorosa, garanto-te. Causarias agitação
aonde quer que fosses, fosse qual fosse o teu comportamento ou intenções, e serias forçado a entrar
em lutas. E o mesmo aconteceria em qualquer outra das cidades — prosseguiu Cassius, percebendo
que as suas palavras tinham soado verdadeiras ao drow errante. — Ofereço-te um buraco numa pilha
de rochas, dentro das fronteiras de Dez-Cidades, onde as tuas acções, boas ou más, se tornarão a tua
reputação, independentemente da cor da tua pele. A minha proposta parece-te agora tão vazia?
— Precisarei de provisões… — disse Drizzt, aceitando a verdade das palavras de Cassius. — E o
meu cavalo? Não creio que as encostas empinadas de uma montanha sejam local adequado para este
animal.
— Pois então vende o teu cavalo — propôs Cassius. O meu guarda conseguirá por ele um preço
justo e regressará aqui com as provisões de que precisarás.
Drizzt pensou na sugestão por um momento, e depois entregou as rédeas a Cassius.
O Porta-Voz partiu então, considerando-se bastante sagaz. Não só tinha evitado sarilhos no
imediato, como convencera Drizzt a vigiar as fronteiras a norte, num local onde Bruenor
Battlehammer e o seu clã de anões de rostos severos certamente poderiam impedir o drow de
provocar quaisquer sarilhos.

Roddy McGristle levou a sua carroça até uma pequena cidade aninhada nas sombras do extremo
oeste da cadeia de montanhas. Sabia que a neve viria em breve, e não tinha nenhum desejo de ser
apanhado a meio do caminho quando começasse a nevar. Permaneceria ali com os agricultores e
esperaria pelo fim do Inverno. Nada poderia sair de Icewind Dale sem passar por aquela zona, e se
Drizzt tinha ido para lá, como lhe tinham revelado os monges, não tinha mais lado nenhum para onde
fugir.

Drizzt partiu de junto dos portões nessa noite, preferindo a escuridão para a sua viagem, apesar do
frio. A abordagem directa da montanha levou-o ao longo do lado leste da garganta rochosa que os
anões reclamavam como sua terra. Tomou especial cuidado em evitar quaisquer guardas que essa
gente barbuda pudesse ter instalados. Só encontrara anões uma vez, antes, quando passara pela
Cidadela Adbar nas suas errâncias anteriores fora do Refúgio de Mooshie, e não fora uma
experiência agradável. As patrulhas de anões tinham-no expulsado sem esperar por explicações, e
tinham-no perseguido pelas montanhas durante muitos dias.
Apesar de todos os seus cuidados ao passar pelo vale, no entanto, Drizzt não pôde ignorar um alto
monte de pedras com que deparou, com degraus recortados nas pedras empilhadas. Estava a menos
de metade do caminho para a montanha, com muitos quilómetros e horas de noite ainda por passar,
mas subiu por esse desvio, degrau após degrau, encantado pelo panorama cada vez mais vasto das
luzes das cidades à sua volta.
A subida não era muito grande, apenas quinze metros, mas com a tundra plana e na noite limpa,
Drizzt pôde ver cinco cidades: duas nas margens do lago a leste; duas a oeste, junto do lago maior, e
Bryn Shander, na sua colina rochosa a uns quilómetros a sul.
Quantos minutos passaram, não sabia, porque aquela vista provocou-lhe demasiadas esperanças e
fantasias para que desse por isso. Só estava havia um dia em Dez-Cidades, mas já se sentia
confortável com a paisagem, com o facto de saber que milhares de pessoas em redor da montanha
ouviriam falar dele e, se calhar, acabariam por aceitá-lo.
Uma voz grave e rouca, resmungando, sacudiu Drizzt das suas contemplações. Agachou-se numa
posição defensiva e pôs-se atrás de uma rocha. O desfiar de queixas denunciava claramente uma
figura que se aproximava. Tinha ombros largos e era cerca de trinta centímetros mais baixo do que
Drizzt, embora obviamente fosse mais pesado do que o drow. Drizzt soube que era um anão antes
mesmo que a figura parasse para ajustar o capacete — batendo com a cabeça contra uma pedra.
— Dagnaggit — resmungava o anão, «ajustando» o capacete uma segunda vez.
Drizzt ficou obviamente intrigado, mas era também suficientemente esperto para perceber que um
anão rezingão não seria provavelmente amistoso para com um drow a meio de uma noite escura.
Enquanto o anão se remexia, fazendo um novo ajuste do capacete, Drizzt deslizou para longe dali,
correndo com leveza e silenciosamente ao longo da berma do trilho. Passou muito perto do anão, mas
depois desapareceu sem provocar mais ruído do que a sombra de uma nuvem.
— Eh? — resmungou o anão quando recomeçou a subida, desta vez satisfeito com o capacete. —
Quem está aí?
Começou uma série de pequenos saltos, rodando, com os olhos disparando em todas as direcções,
em alerta.
Mas só havia ali a escuridão, as pedras e o vento.
A primeira neve da estação caiu preguiçosamente sobre Icewind Dale, com grandes flocos caindo em
fascinantes danças em ziguezague, muito diferente dos nevões fustigados pelo vento que eram
habituais na região. A jovem rapariga, Catti-brie, observava-a com óbvio encanto, da entrada da sua
gruta, com o tom profundo dos olhos azuis parecendo ainda mais puro à luz reflectida do tapete
branco que cobria o chão.
— Vem tarde, mas virá com força, quando chegar — resmungou Bruenor Battlehammer, um anão
de barba ruiva, enquanto se aproximava por trás da filha adoptiva. — Vai ser uma estação dura,
como são sempre todas neste sítio de dragões brancos!
— Oh, paizinho! — respondeu Catti-brie com tom de censura. — Pára de te queixar. É um belo
nevão, e bastante inofensivo, sem o vento a empurrá-lo.
— Humanos… — desabafou o anão com desdém, ainda atrás da rapariga. Catti-brie não podia ver
a expressão na cara dele, meiga para ela, mesmo quando resmungava, mas também não precisava.
Bluenor era nove partes de fanfarronice e uma parte de queixume, pelas suas contas.
Catti-brie virou-se para o anão subitamente, com os caracóis dourados, à altura dos ombros, a
correrem-lhe pela cara.
— Posso ir lá para fora brincar? — perguntou, com um sorriso esperançoso no rosto. — Oh, por
favor, paizinho!
Bruenor forçou-se a fazer a sua melhor careta.
— Lá para fora?! — rugiu. — Ninguém, a não ser um tolo, veria um Inverno de Icewind Dale
como sítio para diversão! Ganha juízo, rapariga! O Inverno ainda te gela os ossos!
O sorriso de Catti-brie desapareceu, mas recusou-se a render-se tão facilmente.
— Belas palavras para um anão — retorquiu, para horror de Bruenor. — Tu sentes-te bem nos
buracos e, quanto menos vês o céu, mais sorris. Mas eu tenho um longo Inverno pela frente, e esta
pode ser a minha última oportunidade para ver o céu. Por favor, paizinho!
Bruenor não conseguiu manter o rosto contorcido por uma careta, perante o encanto da filha, mas
não queria que ela saísse.
— Receio que ande alguma coisa por aí a rondar — explicou, tentando soar com autoridade. —
Senti-a no posto de vigia, há algumas noites atrás, embora não a tenha visto. Pode ser um leão
branco, ou um urso. É melhor não… — Mas Bruenor não chegou a acabar, porque a expressão
desolada de Catti-brie arruinou completamente os receios imaginados do anão.
Catti-brie não era novata em matéria de perigos da região. Vivera com Bruenor e o seu clã de
anões durante mais de sete anos. Um bando de assaltantes duendes tinha morto os pais de Catti-brie
quando era pequena e, embora fosse humana, Bruenor acolhera-a como sua.
— És mesmo teimosa, rapariga — disse Bruenor em resposta à expressão pesarosa de Catti-brie.
— Vai lá e diverte-te, então; mas não te afastes muito! Dá-me a tua palavra de que manterás as grutas
à vista, e que levarás a espada e a corneta no cinto, minha teimosa.
Catti-brie correu a dar um beijo na cara de Bruenor, que o taciturno anão prontamente limpou,
resmungando nas costas dela enquanto a rapariga desaparecia pelo túnel. Mas cada vez que Catti-
brie lhe dava um beijo agradecido na cara, o anão dava-se conta de que acabara por ceder.
— Humanos! — resmungou o anão mais uma vez, e desceu o túnel até à mina, batendo os pés com
força, pensando em forjar algumas peças de ferro, só para recordar a si mesmo como era duro.

Era fácil para a rapariga racionalizar a sua desobediência quando olhou por cima do vale, desde as
encostas mais baixas de Kelvin’s Cairn, a mais de cinco quilómetros da porta de Bruenor. Este
dissera-lhe que mantivesse as grutas à vista, e elas lá estavam. Ou, pelo menos, o terreno invernoso à
volta delas lá estava, à vista daquele ponto alto.
Mas Catti-brie, deslizando alegremente por um declive, depressa viu uma falha no facto de não dar
atenção aos avisos do pai. Chegara ao fim de uma correria deliciosa, e estava a esfregar as mãos
geladas, quando ouviu um rugido baixo e ameaçador.
— Leão branco — murmurou Catti-brie, lembrando-se das suspeitas do pai. Quando ergueu os
olhos, viu que o cálculo do pai não tinha acertado bem no alvo. Era, de facto, um grande felino que
estava a ver, a olhar para ela de cima, de uma elevação rochosa; mas era um felino negro, e não
branco; e era uma grande pantera, e não um leão.
Desafiadora, Catti-brie desembainhou uma faca.
— Para trás, gato! — disse a rapariga, com apenas um ligeiro tremor na voz, porque sabia que o
medo incitava os animais selvagens a atacar.
Guenhwyvar baixou as orelhas e deitou-se sobre a barriga; depois lançou um longo e forte rugido
que ecoou por toda aquela região rochosa.
Catti-brie não podia responder à força daquele rugido, nem aos longos e abundantes dentes que a
pantera mostrava. Olhou em volta, à procura de uma saída, mas sabia que, qualquer que fosse o lado
para onde corresse, não poderia ficar fora do alcance de um salto da poderosa pantera.
— Guenhwyvar! — ouviu chamar de mais acima.
Catti-brie olhou para a extensão de terreno coberta de neve, para ver uma figura magra, envolta
numa capa, escolhendo cuidadosamente o caminho até perto dela.
— Guenhwyvar! — chamou de novo o recém-chegado. — Vai-te embora!
A pantera lançou um rugido baixo em resposta, e depois afastou-se, saltando pelos rochedos
cobertos de neve e por pequenas elevações com tanta facilidade como se estivesse a correr em
terreno plano e suave.
Apesar dos seus receios, Catti-brie viu a pantera afastar-se com sincera admiração. Sempre
adorara animais e estudara-os frequentemente, mas o jogo dos músculos elegantes de Guenhwyvar
era mais majestoso do que alguma coisa que alguma vez tivesse imaginado. Quando por fim parou de
admirar a pantera, a figura magra estava mesmo atrás dela. Virou-se rapidamente, de faca na mão.
A faca caiu-lhe da mão, e parou de respirar abruptamente, assim que olhou para o drow.
Também Drizzt ficou estupefacto com o encontro. Queria assegurar-se de que a rapariga estava
bem, mas, quando olhou para Catti-brie, qualquer ideia dos seus propósitos iniciais desapareceu,
numa torrente de recordações.
Era aproximadamente da mesma idade do rapaz de cabelos cor de areia da quinta, notou Drizzt
inicialmente, e isso trouxe, inevitavelmente, as recordações dolorosas de Maldobar. Quando olhou
mais atentamente, porém, para os olhos de Catti-brie, os seus pensamentos foram levados ainda mais
longe para o passado, para os seus dias de marcha ao lado dos da sua raça. Os olhos de Catti-brie
possuíam o mesmo brilho inocente e alegre que vira nos olhos de uma criança elfo, uma rapariguinha
que salvara das lâminas selvagens dos seus companheiros de patrulha. Essa recordação abalou
Drizzt, fê-lo regressar num turbilhão a essa sangrenta clareira numa floresta de elfos, onde o seu
irmão e companheiros drow tinham brutalmente chacinado um grupo de elfos. Drizzt quase matara
essa criança, quase se pusera para sempre nessa mesma estrada negra que os seus seguiam com tão
boa vontade.
Drizzt sacudiu-se para se libertar dessa recordação e lembrou a si mesmo que esta era uma criança
diferente, de outra raça. Queria dizer uma saudação, mas a rapariga já desaparecera.
Aquela maldita palavra, «drizzit», ainda ecoou na cabeça do drow por longos momentos, enquanto
regressava à gruta que adoptara para seu lar na encosta norte das montanhas.

Nessa mesma noite, a força total da estação começou a fazer-se sentir. O frio vento de leste,
soprando do Glaciar de Reghed, lançava a neve em rajadas altas e insuportáveis.
Catti-brie via a neve a cair com desalento, pois receava que muitas semanas passariam ainda antes
que pudesse regressar a Kelvin’s Cairn. Não contara a Bruenor, nem aos outros anões, acerca do
encontro com o drow, por receio de ser castigada e de que Bruenor o expulsasse dali. Olhando para
a neve que se acumulava, Catti-brie desejou ter sido mais valente, que tivesse sido mais calma e
tivesse falado com o estranho elfo. Cada uivo do vento fazia aumentar esse desejo e levava a
rapariga a interrogar-se se perdera a sua única oportunidade.

— Vou a Bryn Shander — anunciou Bruenor um dia, mais de dois meses mais tarde. Uma pausa
inesperada surgira no Inverno, que normalmente durava sete meses, de Icewind Dale, num raro
degelo de Janeiro. Bruenor olhou para a filha, desconfiado, por um longo momento: — E tu pretendes
ir lá para fora hoje? — perguntou.
— Se me deixares — respondeu Catti-brie. — As grutas sufocam-me e o vento não está assim tão
frio.
— Vou mandar um ou dois anões acompanhar-te — propôs Bruenor.
Catti-brie, pensando que esta poderia ser a sua oportunidade para investigar o drow, rejeitou logo
essa ideia.
— Andam todos a tratar de reparar as suas portas — retorquiu, mais bruscamente do que
pretendia. — Não vás maçá-los por causa de mim!
Os olhos de Bruenor semicerraram-se.
— És demasiado casmurra.
— Saio ao meu pai — disse Catti-brie, com um piscar de olhos que derrotou quaisquer argumentos
adicionais.
— Mas então tem cuidado — começou Bruenor. — E mantém…
— As grutas sempre à vista! — completou Catti-brie por ele. Bruenor virou costas e saiu
ruidosamente da gruta, resmungando interminavelmente e amaldiçoando o dia em que se dispusera a
receber uma criança humana como sua filha. Catti-brie limitou-se a rir perante aquela fachada
interminável.
Mais uma vez, foi Guenhwyvar quem primeiro encontrou a rapariga de cabelos dourados. Catti-
brie dirigira-se imediatamente para a montanha e estava a caminhar pelos trilhos mais a oeste quando
viu a pantera negra por cima dela, observando-a de um pico rochoso.
— Guenhwyvar — chamou a rapariga, lembrando-se do nome que o drow usara. A pantera rosnou
baixinho e desceu das rochas, aproximando-se.
— Guenhwyvar? — disse Catti-brie de novo, mais hesitante, porque a pantera estava apenas a uma
dúzia de passos dela. As orelhas de Guenhwyvar empinaram-se ao ouvir pela segunda vez o nome, e
os músculos do felino descontraíram-se visivelmente.
Catti-brie aproximou-se lentamente, um passo cuidadoso de cada vez.
— Onde está o elfo negro, Guenhwyvar? — perguntou a rapariga calmamente. — Podes levar-me
a ele?
— E porque quererias ir ter com ele? — perguntou uma voz atrás de Catti-brie.
A rapariga estacou, lembrando-se da voz suave e melódica, e depois virou-se lentamente para o
drow. Estava apenas a três passos dela, com os olhos de alfazema a olharem para os dela assim que
se virou. Catti-brie não fazia ideia do que haveria de dizer, e Drizzt, tomado de novo pelas
recordações, ficou calado, a observar e à espera.
— És um drow? — perguntou Catti-brie quando o silêncio se tornou insuportável. Assim que
ouviu as suas próprias palavras, censurou-se por fazer uma pergunta tão estúpida.
— Sou — respondeu Drizzt. — Que significa isso para ti?
Catti-brie encolheu os ombros perante a estranha resposta.
— Ouvi dizer que os drow são maus, mas tu não me pareces mau.
— Então, correste um grande risco ao vir aqui sozinha — notou Drizzt. — Mas não receies —
acrescentou rapidamente, vendo o desconforto da rapariga. — Não sou mau e não te farei mal algum.
Depois de meses sozinho na gruta, Drizzt não queria que este encontro acabasse tão depressa.
Catti-brie assentiu, acreditando nas palavras dele.
— O meu nome é Catti-brie — disse. — O meu pai é Bruenor, rei do Clã Battlehammer. — Drizzt
inclinou a cabeça com curiosidade. — Os anões, — explicou Catti-brie, apontando para o vale.
Percebeu a confusão de Drizzt assim que disse essas palavras. — Não é meu pai verdadeiro —
explicou. — Bruenor recolheu-me quando era ainda bebé, quando os meus pais foram…
Não conseguiu acabar, e Drizzt não precisava que o fizesse, compreendendo a expressão dolorosa
dela.
— Sou Drizzt Do’Urden — disse o drow. — Muito prazer, Catti-brie, filha de Bruenor. É bom ter
alguém com quem conversar. Durante todas estas semanas de Inverno, só tive Guenhwyvar, aquela
pantera ali, quando está presente. E o meu amigo não fala muito, claro!
O sorriso de Catti-brie quase lhe chegava às orelhas. Olhou por cima do ombro para a pantera,
agora preguiçosamente estendida no trilho.
— É um belo felino — disse a rapariga.
Drizzt não duvidou da sinceridade do tom da rapariga, ou do olhar de admiração que lançou à
pantera.
— Vem cá, Guenhwyvar — disse Drizzt. E a pantera espreguiçou-se e levantou-se lentamente.
Avançou até ficar mesmo ao lado de Catti-brie, e Drizzt assentiu com a cabeça ao desejo não dito,
mas óbvio, da rapariga. De forma hesitante, inicialmente, mas depois com firmeza, Catti-brie
acariciou a pelagem espessa da pantera, sentindo a força e perfeição do animal. Guenhwyvar aceitou
as carícias sem se queixar, e até deu um pequeno encontrão contra o flanco de Catti-brie quando ela
parou por um momento, incitando-a a continuar.
— Estás sozinha? — perguntou Drizzt.
— O meu pai diz-me sempre para manter as grutas à vista — riu-se a rapariga. — Consigo vê-las
bastante bem, na minha cabeça!
Drizzt olhou para trás, para o vale, para a distante parede de rocha, a muitos quilómetros de
distância.
— O teu pai não ficará nada contente. Estas terras não são muito pacíficas. Só estou na montanha
há dois meses e já tive de lutar por duas vezes com animais brancos e felpudos que nem conheço.
— Iétis da tundra — respondeu Catti-brie. — Deves estar na face norte. Os iétis da tundra não
vêm para este lado.
— Tens assim tanta certeza? — perguntou Drizzt sarcasticamente.
— Nunca vi aqui nenhum — respondeu Catti-brie. — Mas também não tenho medo deles. Vim
para te encontrar, e encontrei-te.
— Pois encontraste — disse Drizzt. — E agora?
Catti-brie encolheu os ombros e voltou a dedicar-se a acariciar o pêlo de Guenhwyvar.
— Anda — propôs Drizzt. — Vamos encontrar um local mais confortável para conversar. O brilho
da neve fere-me os olhos.
— Estás acostumado aos túneis escuros? — perguntou Catti-brie esperançosa, e desejosa de ouvir
histórias sobre terras para além das fronteiras de Dez-Cidades, único sítio que sempre conhecera.
Drizzt e a rapariga passaram um dia maravilhoso juntos. Drizzt contou a Catti-brie sobre
Menzoberranzan e Catti-brie respondeu contando histórias de Icewind Dale, da sua vida com os
anões. Drizzt estava especialmente interessado em ouvir acerca de Bruenor e da sua gente, já que os
anões eram os seus vizinhos mais próximos, e mais temíveis.
— Bruenor fala duro como uma pedra, mas eu conheço-o melhor do que isso — garantiu Catti-brie
ao drow. — É uma boa alma, tal como o resto do clã.
Drizzt ficou contente por ouvir isto, e feliz, também, por este encontro, tanto pelas implicações de
ter tais amigos, como, sobretudo, porque apreciava verdadeiramente a companhia da encantadora e
ousada rapariga. A energia e o gosto pela vida de Catti-brie transbordavam. Na presença dela, Drizzt
não conseguia ver as suas memórias terríveis, e só podia sentir-se bem pela sua decisão de salvar a
criança elfo, tantos anos antes. A voz melodiosa de Catti-brie e a forma como lançava os cabelos
dourados por cima dos ombros aliviavam o fardo da culpa das costas de Drizzt tão seguramente
como um gigante poderia levantar uma pesada pedra.
As histórias de ambos poderiam ter continuado pelo resto do dia e pela noite dentro, e durante
semanas daí em diante; mas quando Drizzt reparou que o Sol estava a baixar no horizonte, percebeu
que chegara o momento de a rapariga regressar a casa.
— Eu levo-te — ofereceu-se Drizzt.
— Não — respondeu Catti-brie. — É melhor não. Bruenor não compreenderia e eu ficaria metida
numa montanha de sarilhos. Eu consigo regressar, não te preocupes! Conheço estes trilhos melhor do
que tu, Drizzt Do’Urden, e não me conseguirias acompanhar, por mais que quisesses.
Drizzt riu-se perante a bravata, mas quase acreditou. Ele e a rapariga levantaram-se
imediatamente, avançando para o extremo mais a sul da montanha, e depois despediram-se com
promessas de que voltariam a encontrar-se durante a próxima aberta no tempo, ou na Primavera, se
não houvesse oportunidade antes disso.
A rapariga caminhava com ligeireza quando entrou na gruta dos anões, mas bastou um olhar para o
rosto fechado do pai para lhe roubar a alegria. Bruenor fora a Bryn Shander nessa manhã, para tratar
de assuntos com Cassius. O anão não ficara muito contente ao saber que um elfo negro se tinha
instalado tão perto da sua porta, mas calculava que a sua curiosa filha — demasiado curiosa —
consideraria isso uma coisa fenomenal.
— Mantém-te longe da montanha — disse Bruenor assim que viu Catti-brie. E a rapariga ficou
desesperada.
— Mas, meu pai… — tentou protestar.
— Dá-me a tua palavra, rapariga — exigiu o anão. — Não voltarás a pôr um pé naquela montanha
sem minha permissão! Há um elfo negro por lá, segundo me disse Cassius. Quero a tua palavra!
Catti-brie assentiu, impotente, e depois seguiu Bruenor de volta para o complexo dos anões,
sabendo que lhe seria difícil fazer o pai mudar de ideias, mas sabendo, também, que Bruenor tinha
ideias que estavam longe de justificadas no que dizia respeito a Drizzt Do’Urden.

Uma nova aberta no tempo chegou um mês depois, e Catti-brie manteve a promessa. Não pôs um pé
em Kelvin’s Cairn, mas, dos trilhos em redor, chamou por Drizzt e por Guenhwyvar. Drizzt e a
pantera, que procuravam a rapariga aproveitando essa pausa no Inverno, depressa se lhe juntaram,
desta vez no vale, partilhando mais histórias e um almoço que Catti-brie trouxera na mochila.
Quando Catti-brie regressou às minas dos anões, nessa tarde, Bruenor estava muito desconfiado e
perguntou-lhe apenas uma vez se tinha mantido a sua promessa. O anão sempre confiara na filha, mas
quando Catti-brie lhe respondeu que não tinha estado em Kelvin’s Cairn, as suas suspeitas não
diminuíram.
Bruenor vagueou pelos trilhos mais baixos de Kelvin’s Cairn durante a maior parte da manhã.
Grande parte da neve já tinha desaparecido, e a Primavera estava no ar, mas algumas teimosas bolsas
ainda tornavam os trilhos difíceis. Com o machado numa mão e o escudo embrasonado na outra, com
a imagem de uma caneca a espumar que era a insígnia do clã Battlehammer, Bruenor avançava
cuspindo maldições a cada local mais escorregadio, a cada pedra no caminho, e contra os elfos
negros em geral.
Contornou a ponta mais a noroeste da montanha, com o nariz longo e pontiagudo vermelho como
um tomate devido ao vento gelado, e com a respiração difícil.
— Altura para descansar — resmungou o anão, vendo uma alcova na rocha, protegida pelas
paredes altas do vento impiedoso.
Bruenor não fora o único a dar com esse local confortável. Mesmo antes de chegar à abertura de
três metros na rocha, um bater de asas súbito fez aparecer uma cabeça enorme, parecida com a de um
insecto, à sua frente. O anão caiu para trás, estupefacto e assustado. Reconheceu o monstro como
sendo um remorhaz, um verme polar, e não tinha grande vontade de o atacar.
O remorhaz saiu do refúgio em sua perseguição, com o corpo de doze metros, parecido com o de
uma serpente, a rolar para fora como uma fita azul gelada atrás dele. Grandes olhos multifacetados de
insecto, brancos e brilhando fortemente, assestaram-se no anão. Umas asas curtas, de algo parecido
com couro, mantinham a metade frontal do monstro erguida e pronta a atacar, enquanto dezenas de
pernas atarefadas impeliam o restante do longo corpo.
Bruenor sentiu o calor crescente enquanto o dorso da agitada criatura começava a brilhar.
— Isso há-de contrariar o vento por um bocado! — riu-se o anão, percebendo que não conseguiria
correr mais depressa do que a criatura. Parou de recuar e brandiu o machado ameaçadoramente.
O remorhaz avançou a direito, com a formidável mandíbula, suficientemente grande para engolir o
anão inteiro, mordendo esfomeadamente.
Bruenor saltou para o lado e colocou o escudo e o corpo de forma a impedir que a mandíbula lhe
apanhasse as pernas, ao mesmo tempo que fazia o machado bater mesmo em cheio entre os chifres do
monstro.
As asas bateram ferozmente, erguendo a cabeça novamente. O remorhaz, quase incólume, tomou
balanço para atacar de novo rapidamente, mas Bruenor adiantou-se. Agarrou no pesado machado
com a mão do escudo, sacou de um longo punhal e mergulhou para a frente, mesmo no meio do
primeiro conjunto de pernas do monstro.
A grande cabeça desceu num ápice, mas Bruenor já se tinha enfiado debaixo do estômago do
monstro, que era o seu ponto mais vulnerável.
— Estás a perceber aonde quero chegar? — riu-se o anão, mergulhando o punhal entre as escamas.
Bruenor era demasiado forte e estava demasiado bem protegido pela sua couraça para ficar
seriamente ferido pelos ataques da criatura, mas depois esta começou a rebolar, tentando assentar o
dorso vermelho e a ferver sobre o anão.
— Não, nem penses, meu trapalhão misturado de verme, dragão, pássaro e insecto! — rosnou
Bruenor, esgueirando-se para se manter afastado do calor. Pôs-se ao lado da criatura e atacou com
toda a sua força, fazendo o remorhaz, desequilibrado, cair para o lado.
A neve saltou e ferveu com um silvo quando as costas escaldantes do monstro assentaram nela.
Bruenor dava pontapés e abria caminho pelas patas que se remexiam freneticamente, para chegar ao
vulnerável lado de baixo. O machado aguçado do anão rasgou uma abertura larga e profunda.
O remorhaz enrolou-se sobre si próprio e abanava o longo corpo para cá e para lá, sacudindo
Bruenor para o lado. O anão estava de novo de pé, daí a um instante, mas não suficientemente
depressa, enquanto o verme rebolava para ele. O dorso em brasa apanhou Bruenor numa coxa
enquanto tentava saltar para longe, e o anão afastou-se a coxear e agarrando a calça de couro
fumegante.
Depois, enfrentaram-se de novo, com ambos a mostrarem consideravelmente maior respeito um
pelo outro.
A mandíbula abria e fechava, com golpes rápidos. O machado de Bruenor arrancou-lhe um dente e
desviou-a para o lado. A perna ferida do anão, no entanto, cedia devido à queimadura, e um Bruenor
cambaleante não conseguiria sair do caminho do monstro. Um longo chifre prendeu-o por debaixo do
braço e atirou-o para o lado e para longe.
Embateu contra um pequeno monte de pedras, recompôs-se, e bateu com a cabeça,
intencionalmente, contra uma grande rocha, para ajustar o capacete e sacudir o torpor.
O remorhaz deixava um rasto de sangue atrás de si, mas isso não o fazia abrandar. A enorme
mandíbula abriu-se e a criatura soltou um silvo. Bruenor enfiou-lhe prontamente uma pedra na
garganta.

Guenhwyvar alertou Drizzt para os sarilhos lá em baixo, no extremo noroeste. O drow nunca vira um
verme polar antes, mas assim que viu os combatentes, de uma falésia mais acima, percebeu que o
anão estava numa situação melindrosa. Lamentando ter deixado o arco na gruta, Drizzt desembainhou
as cimitarras e seguiu a pantera pela encosta abaixo, tão depressa quanto os trilhos escorregadios o
permitiam.

— Anda lá, vá! — rugia o teimoso anão para o remorhaz. E o monstro atacou, de facto. Bruenor
preparou-se, pretendendo pelo menos dar um bom golpe antes de se tornar comida de verme.
A grande cabeça desceu para ele, mas depois o remorhaz, ouvindo um rugido atrás dele, hesitou e
desviou os olhos.
— Má jogada! — gritou o anão, satisfeito. E assestou o machado no maxilar inferior do monstro,
abrindo-o ao meio num golpe limpo entre dois grandes incisivos. O remorhaz guinchou de dor; as
asas de couro batiam freneticamente, tentando afastar a cabeça do alcance do anão.
Bruenor bateu-lhe outra vez, e depois uma terceira vez, e cada golpe abria grandes fendas na
mandíbula e fazia a cabeça baixar-se cada vez mais.
— Achas que ainda me vais morder, hem? — gritava o anão. Estendeu a mão que tinha o escudo e
agarrou um chifre enquanto o remorhaz começava a levantar a cabeça outra vez. Um golpe súbito fez
a cabeça do monstro virar num ângulo vulnerável e os músculos do braço de Bruenor contraíram-se e
depois lançaram o poderoso machado direito ao crânio do monstro.
A criatura estremeceu e sacudiu-se ainda por mais um momento, e depois ficou quieta, com o
dorso ainda a brilhar de calor intenso.
Um segundo rugido de Guenhwyvar fez o orgulhoso anão desviar os olhos da sua presa. Ferido e
hesitante, Bruenor olhou para cima, para ver Drizzt e a pantera a aproximarem-se rapidamente, o
drow com ambas as cimitarras desembainhadas.
— Venham lá! — rugiu Bruenor para ambos, não compreendendo a corrida deles e tomando-a por
um ataque. Bateu o machado contra o escudo: — Venham daí experimentar o meu machado!
Drizzt parou de súbito e chamou Guenhwyvar, para que parasse também. A pantera, no entanto,
continuou a avançar, de orelhas caídas.
— Vai-te, Guenhwyvar! — comandou Drizzt.
A pantera rugiu indignada uma última vez e saltou para longe.
Satisfeito por ver o felino desaparecer, Bruenor assestou o olhar em Drizzt, que estava junto à
outra ponta do verme derrotado.
— Tu e eu, hem? — cuspiu o anão. — Tens estômago para enfrentar o meu machado, drow? Ou
gostas mais de lutar contra rapariguinhas?
A óbvia referência a Catti-brie gerou uma expressão irada nos olhos de Drizzt, e agarrou as armas
com mais força.
Bruenor rodopiava o machado com facilidade.
— Anda! — desafiava desdenhoso. — Tens estômago para avançar e lutar contra um anão?
Drizzt queria gritar para que todo o mundo o ouvisse. Queria saltar por cima do monstro morto e
esmagar o anão, contrariar as palavras dele pela força bruta, mas não conseguiria. Drizzt não
conseguia negar Mielikki e não poderia trair Mooshie. Teria de sublimar a raiva mais uma vez, teria
de receber os insultos com estoicismo e com a certeza de que ele, ele e a sua deusa, sabiam a
verdade que morava no seu coração.
As cimitarras deslizaram nas bainhas e Drizzt afastou-se, com Guenhwyvar ao lado.
Bruenor viu os dois a afastarem-se, curioso. Primeiro, pensou que o drow era um cobarde, mas
depois, à medida que a excitação da batalha diminuía gradualmente, começou a interrogar-se acerca
das intenções do drow. Teria vindo até ali para acabar com os dois contendores, como inicialmente
presumira? Ou teria, possivelmente, vindo em seu socorro?
— Ná… — murmurou o anão, recusando a possibilidade. — Um elfo negro? Não…
O caminho de regresso foi longo para o anão, a coxear, dando-lhe muitas oportunidades para rever
os acontecimentos na ponta de noroeste. Quando finalmente chegou às minas, o Sol já se tinha posto
havia muito, e Catti-brie e vários outros anões estavam reunidos, prontos a sair à procura dele.
— Estás ferido — notou um dos anões. Catti-brie imaginou imediatamente um combate entre Drizzt
e o pai.
— Um verme polar — explicou o anão descontraidamente. — Tratei dele, mas apanhei uma
queimadura, como paga pelo esforço.
Os outros anões acenaram com as cabeças, admirando as proezas em combate do seu líder — um
verme polar não era uma vitória fácil — e Catti-brie suspirou alto.
— Vi o drow! — rugiu o anão na direcção da filha, desconfiando da razão para aquele suspiro de
alívio. O anão continuava confundido acerca do encontro com o elfo negro, bem como acerca do
papel de Catti-brie em tudo isso. Teria Catti-brie realmente encontrado o elfo negro?
— Vi-o, pois! — continuou o anão, agora falando para os outros anões. — O drow e um gato mais
negro e maior do que alguma vez vi. Vinha direito a mim, mesmo quando estava a dar o golpe final
no verme.
— Drizzt não faria isso! — interrompeu Catti-brie, antes que o pai entrasse no seu habitual modo
de contador de histórias.
— Drizzt? — perguntou Bruenor. A rapariga virou costas, percebendo que a sua mentira fora
exposta. Bruenor deixou passar isso — de momento. — Foi assim como vos digo! — prosseguiu o
anão. — Vinha direito a mim, com ambas as espadas desembainhadas! Afastei-o a ele e ao gato!
— Poderíamos segui-lo — propôs um dos anões. — Expulsá-lo da montanha!
Os outros concordaram e murmuraram, mas Bruenor, ainda confuso acerca das intenções do drow,
fê-los parar.
— A montanha é dele — disse-lhes Bruenor. — Cassius deu-lha, e não queremos sarilhos com
Bryn Shander. Desde que o drow se mantenha à distância e não interfira connosco, deixemo-lo estar.
Mas — e olhou directamente para Catti-brie — não te aproximarás dele, nem falarás com ele, nunca
mais!
— Mas… — começou Catti-brie, futilmente.
— Nunca! — rugiu Bruenor. — Quero a tua palavra, rapariga. Já! Ou, por Moradin, irei eu
próprio buscar a cabeça desse drow!
Catti-brie hesitou, encurralada.
— Diz-me — exigiu Bruenor.
— Tens a minha palavra — murmurou a rapariga. Depois, correu para o seu refúgio sombrio na
gruta.

Cassius, Porta-Voz de Bryn Shander, mandou-me vir ter contigo — explicou o homem rude. — Disse
que, se alguém conhecia o drow, serias tu.
Bruenor olhou em redor para a sua sala de audiências, e para os muitos outros anões que lá se
encontravam, e nenhum deles parecia bem impressionado pelo rude e estranho homem. Bruenor
posou o queixo barbudo numa mão e bocejou longamente, determinado a manter-se fora deste
aparente conflito. Poderia ter mandado embora o homem mal-encarado e o seu cão malcheiroso, sem
se incomodar mais, mas Catti-brie, sentada ao lado do pai, remexia-se desconfortavelmente.
Roddy McGristle não deixou de reparar nos movimentos reveladores da rapariga.
— Cassius diz que deves ter visto o drow, estando ele aqui tão perto.
— Se alguém da minha gente o viu — respondeu Bruenor, distraidamente —, não me falaram
disso. Se o teu drow está por perto, até agora não nos deu problemas.
Catti-brie olhou curiosa para o pai e depois respirou mais descontraidamente.
— Não deu problemas? — resmungou Roddy, com um olhar manhoso a surgir-lhe no rosto. —
Esse nunca os dá — e lentamente, dramaticamente, o homem das montanhas retirou o capuz,
revelando as cicatrizes. — Nunca dá problemas, até ao momento em que menos se espera!
— O drow fez-te isso? — perguntou Bruenor, não muito alarmado, nem impressionado. — Belas
cicatrizes… Melhores do que muitas que já vi.
— Matou o meu cão! — rugiu Roddy.
— A mim, não me parece morto — troçou Bruenor, fazendo soltar gargalhadinhas por toda a sala.
— O meu outro cão! — rosnou Roddy, percebendo que não iria longe com este teimoso anão. —
Não te ralas nada comigo, e nem tens obrigação disso. Mas não é por mim que ando atrás deste drow,
nem por qualquer prémio sobre a sua cabeça. Nunca ouviste falar de Maldobar? — Bruenor encolheu
os ombros. — A norte de Sundabar — explicou Roddy. — Um sítio pequeno, pacífico. Tudo
agricultores. Uma família, os Thistledown, vivia mais ao lado da aldeia. Três gerações numa única
casa, como acontece com as boas famílias. Bartholomew Thistledown era um bom homem, digo-te,
tal como o pai antes dele, e os filhos, quatro rapazes e uma garota, muito parecida com a tua, todos
rectos e com coração espirituoso e amor pela terra.
Bruenor já desconfiava de para onde ia o homem rude, e pelo desconfortável remexer de Catti-brie
ao seu lado, percebeu que a filha também o sabia.
— Boa família — continuou Roddy, fingindo uma expressão condoída e distante. — Nove pessoas
na casa — o rosto do homem das montanhas endureceu subitamente e olhou a direito para Bruenor.
— Nove que morreram na casa — declarou. — Retalhados pelo teu drow, e uma devorada pelo gato
diabólico dele!
Catti-brie tinha de responder, mas as palavras saíram-lhe num grito confuso. Bruenor ficou
contente pela confusão dela, porque, se tivesse falado claramente, a sua argumentação teria dado ao
homem das montanhas mais do que Bruenor queria que ele recebesse. O anão pôs uma mão no ombro
da filha, e depois respondeu calmamente a Roddy:
— Vieste até nós com histórias sinistras. Abalaste a minha filha, e eu não gosto de a ver abalada!
— Peço-te desculpas, rei — disse Roddy com uma vénia —, mas tens de saber do perigo que
espreita à tua porta. O drow é má peça, e o gato dele também! Não quero que se repita a tragédia de
Maldobar.
— Nem verás nenhuma na minha casa — garantiu-lhe Bruenor. — Não somos simples
agricultores, podes ter a certeza. O drow não nos incomodará mais do que tu próprio já nos
incomodaste.
Roddy não ficou surpreendido por Bruenor não o ajudar, mas percebeu bem que o anão, ou pelo
menos a filha, sabia mais sobre o paradeiro de Drizzt do que tinha deixado transparecer.
— Se não por mim, por Bartholomew Thistledown, imploro-te, bom rei. Diz-me se sabes onde
posso encontrar o demónio negro. Ou, se não sabes, dá-me alguns soldados para me ajudarem a
localizá-lo.
— Os meus anões têm muito que fazer nesta altura, com o degelo — explicou Bruenor. — Não
posso dispensá-los para andarem atrás dos inimigos de outros — Bruenor não se importava nada
com a briga entre Roddy e o drow, mas a história do homem das montanhas confirmava-lhe de facto
as suspeitas de que o elfo negro deveria ser evitado, especialmente pela sua filha. Bruenor poderia
mesmo ter ajudado Roddy e despachado o assunto, mais para os ver a ambos fora do seu vale do que
por quaisquer razões morais; mas não podia ignorar o óbvio desconforto de Catti-brie.
Roddy tentou, sem sucesso, esconder a ira, enquanto procurava outra opção qualquer.
— Para onde irias, se estivesses a fugir, Rei Bruenor? — perguntou. — Conheces a montanha
melhor do que ninguém, segundo Cassius me disse. Onde deverei procurar?
Bruenor descobriu que lhe agradava ver o incomodativo humano tão aflito.
— O vale é grande — disse, cripticamente. — A montanha é grande. Há muitos buracos…
E ficou calado por um longo momento, a abanar a cabeça.
Roddy perdeu a compostura por completo.
— Ajudas um drow assassino? — rugiu. — Dizes-te rei, mas…
Bruenor saltou do trono de pedra, e Roddy recuou um passo, prudentemente, levando uma mão ao
punho de Bleeder.
— O que tenho é a palavra de um vadio contra a de um renegado! — rugiu-lhe Bruenor. — Um é
tão bom, ou tão mau, como o outro, pelos meus cálculos!
— Mas não pelos cálculos dos Thistledown! — gritou Roddy. E o cão, pressentindo o ultraje do
dono, mostrou os dentes e rosnou ameaçadoramente.
Bruenor olhou para o estranho animal amarelo com curiosidade. Estava a ficar perto da hora do
jantar e as discussões davam-lhe imensa fome! Seria bom, cão amarelo? — interrogou-se.
— Não tens mais nada para me dar? — perguntou Roddy.
— Poderia dar-te a minha bota — rosnou Bruenor em resposta. Vários soldados anões bem
armados aproximaram-se, para se assegurarem de que o volátil humano não fazia nada de insensato.
— Oferecia-te jantar — continuou Bruenor —, mas cheiras demasiado mal para a minha mesa, e não
pareces do tipo que toma banho antes do jantar.
Roddy puxou a trela do cão e virou costas, batendo as pesadas botas com força e atirando com
força cada porta que encontrava. A um gesto de Bruenor, quatro soldados seguiram o homem, para se
assegurarem de que saía sem nenhum incidente. Na sala formal de audiências, os outros riam-se e
aplaudiam a forma como o rei tinha lidado com o humano.
Catti-brie não se uniu à alegria geral. Bruenor reparou nisso e pensou que sabia porquê. A história
de Roddy, verdadeira ou falsa, criara muitas dúvidas na rapariga.
— Aqui temos então — disse-lhe Bruenor bruscamente, tentando levá-la para lá dos limites na
discussão que vinham mantendo. — O drow é um assassino procurado. Agora, levarás os meus
avisos a sério, rapariga!
Os lábios de Catti-brie desapareceram quando os mordeu amargamente. Drizzt não lhe tinha
contado muito sobre a sua vida na superfície, mas não conseguia acreditar que aquele drow que
conhecia fosse capaz de assassinar alguém. Nem podia, também, negar o óbvio: Drizzt era um elfo
negro, e para o seu pai, mais experiente, pelo menos esse simples facto dava crédito à história de
McGristle.
— Estás a ouvir-me, rapariga? — rugiu Bruenor.
— Tens de os pôr em confronto — disse subitamente Catti-brie. — O drow e Cassius, e esse feio
Roddy McGristle. Tens de…
— Não é problema meu! — gritou Bruenor, interrompendo-a.
As lágrimas inundaram rapidamente os olhos de Catti-brie, perante a súbita raiva do pai. O mundo
inteiro parecia ter dado uma reviravolta, para ela. Drizzt estava em perigo; e mais ainda a verdade
sobre o seu passado. E igualmente doloroso para Catti-brie, o pai, que sempre amara e admirara
durante toda a vida de que se conseguia recordar, parecia agora não dar ouvidos aos seus apelos por
justiça.
Nesse momento horrível, Catti-brie fez a única coisa que uma miúda de onze anos podia fazer
contra tanta adversidade: virou costas a Bruenor e fugiu.

Catti-brie não sabia realmente o que pretendia conseguir quando deu consigo a correr pelos trilhos
do sopé de Kelvin’s Cairn, quebrando a sua promessa a Bruenor. Catti-brie não podia negar a sua
vontade de ir até ali, embora pouco tivesse para dar a Drizzt, a não ser um aviso de que McGristle
andava à procura dele.
Não conseguia resolver todas as suas preocupações, mas depois ficou diante do drow e percebeu a
verdadeira razão por que se tinha aventurado a ir lá fora. Não fora por Drizzt que ali fora, embora
quisesse vê-lo a salvo. Fora pela sua própria paz.
— Nunca me falaste dos Thistledown de Maldobar — disse Catti-brie friamente, em vez de
cumprimentar Drizzt, e apagando de imediato o sorriso da cara do drow. A expressão sombria que
atravessou o rosto de Drizzt mostrou claramente a sua dor.
Pensando que Drizzt, pela sua expressão melancólica, estava a aceitar a culpa pela tragédia, a
rapariga, magoada, virou costas e tentou fugir. Drizzt, porém, agarrou-a pelo ombro, fê-la virar-se e
puxou-a para si. Seria realmente um desgraçado se esta rapariga, que o tinha aceitado de todo o
coração, acreditasse nas mentiras.
— Não matei ninguém — sussurrou Drizzt por cima dos soluços de Catti-brie — a não ser os
monstros que chacinaram a família Thistledown. Dou-te a minha palavra!
Depois, contou-lhe a história toda, incluindo a sua fuga à perseguição do grupo de Dove
Falconhand.
— E agora aqui estou — concluiu —, querendo deixar essa experiência para trás, ainda que, dou-
te a minha palavra, nunca mais a esqueça!
— Vocês contam duas histórias diferentes — respondeu Catti-brie. — Tu e McGristle, quero eu
dizer.
— McGristle? — disse Drizzt quase sem fôlego, como se o ar tivesse sido sugado subitamente do
seu corpo. Drizzt não via esse rancoroso homem havia anos e pensava que ele era uma coisa do
passado distante.
— Apareceu hoje — explicou Catti-brie. — Um homem muito grande, com um cão amarelo. Anda
atrás de ti.
A confirmação deixou Drizzt boquiaberto. Alguma vez se veria livre daquele passado? Se não,
como poderia alguma vez encontrar aceitação?
— McGristle disse que tu os tinhas morto — continuou Catti-brie.
— Então, só tens as nossas palavras — raciocinou Drizzt. — E não há maneira de provar uma ou a
outra.
O silêncio que se seguiu pareceu durar horas.
— Não gostei nada daquele feio brutamontes — fungou Catti-brie. E conseguiu fazer um sorriso
pela primeira vez, desde que vira McGristle.
Aquela afirmação de amizade tocou profundamente Drizzt, mas não podia esquecer os sarilhos que
agora pendiam sobre ele. Teria de lutar com Roddy, e talvez com outros, se o caçador de prémios
conseguisse agitar ressentimentos — tarefa não muito difícil, tendo em conta a sua ascendência. Ou
poderia ter de fugir, aceitando de novo a estrada como a sua casa.
— O que vais fazer? — perguntou Catti-brie, sentindo a agitação dele.
— Não receies por mim — tranquilizou-a Drizzt, e deu-lhe um abraço enquanto o dizia, um abraço
que sabia que podia bem ser a sua maneira de dizer adeus. — O dia está a acabar. Tens de regressar
a tua casa.
— Ele vai encontrar-te — respondeu Catti-brie sombriamente.
— Não — disse Drizzt calmamente. — Pelo menos, não tão depressa. Com Guenhwyvar a ajudar-
me, manterei Roddy McGristle à distância até conseguir ver qual será o meu melhor caminho. Agora,
vai! A noite chegará em breve e não creio que o teu pai aprecie saber que andaste por aqui.
A ideia de que teria de enfrentar de novo Bruenor pôs Catti-brie em movimento. Despediu-se de
Drizzt e virou costas, mas depois virou-se outra vez, correu para Drizzt e deu-lhe um abraço. Os
passos da rapariga eram mais leves quando desceu a montanha. Não resolvera nada para Drizzt, pelo
menos tanto quanto soubesse, mas os problemas do drow pareciam agora bem menores, comparados
com o seu próprio alívio por saber que o amigo não era o monstro que alguns diziam que era.
A noite seria, realmente, bem escura para Drizzt Do’Urden. Julgara que McGristle era um
problema distante, mas a ameaça estava ali e agora, e ninguém, a não ser Catti-brie, viria em sua
defesa.
Teria de enfrentar sozinho o problema — mais uma vez —, se é que o queria enfrentar. Não tinha
aliados, a não ser Guenhwyvar e as suas próprias cimitarras, e a perspectiva de lutar com McGristle
— ganhasse ou perdesse — não lhe agradava.
— Isto não é lar — murmurou para o vento gélido.
Pegou na estatueta de ónix e chamou o seu companheiro felino.
— Vem, minha amiga — disse para a pantera. — Afastemo-nos, antes que o nosso inimigo se
aproxime demais.
Guenhwyvar manteve-se em alerta enquanto Drizzt recolhia as suas coisas — enquanto o drow
cansado das estradas esvaziava o seu lar.
Catti-brie ouviu o cão a rosnar, mas não teve tempo para reagir quando o homem enorme saltou de
trás de uma rocha e a agarrou bruscamente por um braço.
— Eu sabia que tu sabias! — exclamou McGristle, despejando o seu hálito pestilento mesmo na
cara da rapariga.
Catti-brie deu-lhe uma canelada.
— Larga-me! — gritou.
Roddy ficou surpreendido por ver que a rapariga não mostrava nenhum sinal de medo na voz.
Sacudiu-a com força quando ela tentou dar-lhe outro pontapé.
— Vieste à montanha por alguma razão — disse Roddy calmamente, mas sem abrandar a força
com que a segurava. — Vieste ver o drow; eu sabia que tu eras amiga desse drow. Vi logo nos teus
olhos!
— Não sabes coisa nenhuma! — gritou-lhe Catti-brie. — Só dizes mentiras.
— Então o drow contou-te a história dele sobre os Thistledowns, hem? — respondeu Roddy,
percebendo facilmente o que a rapariga queria dizer. Catti-brie percebeu então que tinha errado ao
deixar a raiva sobrepor-se. Dera ao homem a confirmação do seu destino.
— O drow? — disse, fingindo-se surpreendida. — Não faço ideia do que estás a dizer.
O riso de Roddy troçou dela.
— Estiveste com o drow, rapariga. Já disseste isso de forma bem clara. E agora vais levar-me a
vê-lo.
Catti-brie olhou-o com desdém, recebendo outro abanão de Roddy.
A cara contorcida de McGristle suavizou-se depois, subitamente, e Catti-brie ainda gostou menos
da expressão que lhe apareceu nos olhos.
— És uma rapariga cheia de brio, não és? — ronronou Roddy, agarrando Catti-brie pelo outro
ombro e virando-a para que ficasse bem de frente para ele. — Cheia de vida, hem? Vais levar-me ao
drow, rapariga, não duvides disso. Mas talvez haja outras coisas que possamos fazer antes disso,
coisas que te mostrarão que não se deve brincar com gente como Roddy McGristle — a carícia que
fez na cara de Catti-brie pareceu demasiado grotesca, mas horrivelmente e inegavelmente
ameaçadora. Catti-brie pensou que ia desmaiar.
A rapariga precisou de toda a sua coragem para enfrentar Roddy, nesse momento. Era apenas uma
rapariguinha, mas fora criada entre os anões de rostos sombrios do Clã Battlehammer, um grupo
orgulhoso e duro. Bruenor era um guerreiro, e assim era a sua filha, também. O joelho de Catti-brie
encontrou as virilhas de Roddy, e quando as mãos dele a largaram momentaneamente, lançou uma
mão crispada à cara do homem, arranhando. Deu outra joelhada, com menos efeito, mas o movimento
defensivo de Roddy permitiu-lhe afastar-se, quase livre.
A mão de ferro de Roddy apertou-se ainda mais, subitamente, em volta do pulso de Catti-brie, e
debateram-se por um momento. Depois, a rapariga sentiu uma mão igualmente forte a agarrar-lhe o
outro pulso e, antes que percebesse o que se estava a passar, foi afastada de Roddy e uma figura
negra pôs-se ao seu lado.
— Finalmente, ficamos cara a cara — rosnou Roddy, deliciado, para Drizzt.
— Corre — disse Drizzt a Catti-brie. — Isto não é assunto teu.
Catti-brie, abalada e terrivelmente assustada, não discutiu.
As mãos brutais de Roddy agarraram o cabo de Bleeder. O caçador de prémios já enfrentara
Drizzt em combate e não tinha nenhuma intenção de tentar equiparar-se aos passos rápidos e ágeis do
drow. Com um aceno, chamou o cão.
O cão avançou metade do caminho até Drizzt, e estava quase a saltar para ele, quando Guenhwyvar
o soterrou, fazendo-o rebolar para o lado. O cão conseguiu pôr-se de pé outra vez, sem ferimentos
graves, mas recuava vários passos a cada vez que a pantera rugia mesmo em frente do seu focinho.
— Basta disto — disse Drizzt, subitamente muito grave. — Perseguiste-me durante anos e durante
muitas léguas. Louvo a tua persistência, mas a tua raiva está mal dirigida, digo-te. Não matei os
Thistledown. Nunca levantaria uma arma contra eles!
— Os Thistledown que vão para os Nove Infernos! — rugiu Roddy em resposta. — Pensas que é
disso que se trata?
— A minha cabeça não te fará receber o prémio — retorquiu Drizzt.
— O ouro que vá para os Nove Infernos! — gritou Roddy. — Tiraste-me o meu cão, e uma orelha!
— e apontou um dedo sujo para o lado da cabeça marcada por cicatrizes.
Drizzt queria argumentar, queria lembrar a Roddy que fora ele quem iniciara a luta, e que fora o
seu próprio machado que fizera tombar a árvore que lhe desfigurara a cara. Mas compreendia a
motivação dele, e sabia que meras palavras não o aplacariam. Ferira-o no orgulho e, para um homem
como McGristle, essa ferida sobrepunha-se de longe a qualquer dor física.
— Não quero lutar — disse Drizzt firmemente. — Pega no teu cão e vai-te, desde que me dês a tua
palavra em como não me voltarás a perseguir.
A gargalhada trocista de Roddy provocou um arrepio na espinha de Drizzt.
— Hei-de perseguir-te até ao fim do mundo, drow! — rugiu. — E hei-de sempre encontrar-te. Não
há buraco suficientemente fundo para me impedir de chegar a ti. Nem mar suficientemente vasto!
Apanhar-te-ei, drow. Ou te apanho agora ou, se fugires, apanho-te depois!
Roddy fez um sorriso mostrando os dentes amarelos e avançou cautelosamente para Drizzt.
— Vou apanhar-te, drow! — rosnou o caçador de prémios mais uma vez. Um salto para frente
aproximou-o mais, e Bleeder varria o ar à sua frente selvaticamente. Drizzt saltou para trás.
Um segundo golpe prometia resultados semelhantes, mas Roddy, em vez de o concluir, avançou
com um contra-golpe enganadoramente rápido, que raspou pelo queixo de Drizzt.
Estava perto de Drizzt num instante, com o machado varrendo furiosamente por todos os lados.
— Fica quieto — gritava, enquanto Drizzt se desviava agilmente, saltava ou se agachava na
sequência de cada golpe. Drizzt sabia que estava a correr riscos perigosos ao não contrariar os
golpes maliciosos, mas esperava que, se conseguisse cansar o homem possante, talvez ainda pudesse
encontrar uma solução mais pacífica.
Roddy era ágil e rápido, para um homem tão grande, mas Drizzt era muito mais rápido, e
acreditava que poderia jogar aquele jogo ainda por bastante tempo.
Bleeder avançou num arco largo, dirigido ao peito de Drizzt. O ataque era uma armadilha; Roddy
queria que o drow se agachasse, para depois lhe acertar na cara.
Mas Drizzt percebeu a manobra. Em vez de se baixar, saltou, fez uma cambalhota no ar por cima
do machado, e desceu com leveza, ainda mais perto de Roddy. Desta vez, Drizzt atacou mesmo,
batendo com ambos os punhos das cimitarras na cara de McGristle. O caçador de prémios cambaleou
para trás, sentindo sangue quente a escorrer-lhe do nariz.
— Vai-te embora — disse Drizzt com sinceridade. — Leva o teu cão para Maldobar, ou onde quer
que seja a tua casa.
Se Drizzt acreditava que Roddy se ia render perante nova humilhação, estava muito enganado.
Roddy rugiu de fúria e carregou a direito, com um ombro à frente, tentando derrubar o drow.
Drizzt bateu de novo com os punhos das armas na cabeça baixa de Roddy e lançou-se numa
cambalhota para a frente, mesmo por cima das costas dele.
O caçador de prémios caiu pesadamente, mas pôs-se de joelhos com grande rapidez, puxando de
um punhal que lançou de imediato, enquanto Drizzt se virava de novo. O drow viu o brilho prateado
no último instante e desviou-o com uma espada. Outro punhal se seguiu, e depois outro, e, a cada vez,
Roddy avançava um passo na direcção de Drizzt, ocupado a desviar os punhais.
— Eu conheço os teus truques, drow! — disse Roddy com um sorriso malévolo. Dois passos
rápidos levaram-no mesmo até junto de Drizzt e Bleeder voltou a cortar o ar. Drizzt mergulhou numa
cambalhota para o lado e voltou a levantar-se uns centímetros mais adiante. A confiança inesgotável
de Roddy começava a irritá-lo; atingira o caçador de prémios com golpes que teriam prostrado a
maioria dos homens, e interrogou-se sobre quantos golpes ele aguentaria. Esse pensamento levou
Drizzt à inevitável conclusão de que poderia ter de começar a atingir em Roddy com mais do que
apenas os punhos das cimitarras.
Mais uma vez, Bleeder veio de lado. Desta vez, Drizzt não se desviou. Pôs-se dentro do raio da
lâmina do machado e bloqueou-a com uma arma, deixando Roddy em posição aberta para um golpe
com a outra cimitarra. Três rápidos golpes da direita fecharam um olho de Roddy, mas o caçador de
prémios limitou-se a sorrir e voltou a carregar, agarrando Drizzt e forçando o opositor, mais leve, a
cair no chão.
Drizzt sacudia-se e golpeava, compreendendo que a sua consciência o tinha traído. Num combate
tão próximo, não poderia igualar a força de Roddy, e os seus movimentos limitados retiravam-lhe a
vantagem da velocidade. Roddy manteve a posição por cima e manobrou um braço para bater com o
machado.
Um ganido do cão amarelo foi o único aviso que recebeu, mas não o percebeu o suficiente para
evitar a corrida da pantera. Guenhwyvar arrastou Roddy de cima de Drizzt, lançando-o ao chão. O
homem manteve suficiente presença de espírito para lançar um golpe contra a pantera, enquanto esta
seguia caminho, fazendo-lhe um corte no quarto traseiro.
O teimoso cão acorreu, mas Guenhwyvar recuperou, deu a volta a Roddy e afastou-o.
Quando Roddy se virou de novo para Drizzt, deparou com um furioso rodopiar de cimitarras que
não conseguia sequer seguir com os olhos e que não poderia contrariar. Drizzt vira o golpe que
Roddy fizera na pantera, e o fogo nos seus olhos cor de alfazema já não mostrava vontade de
compromisso. Um punho de cimitarra embateu na cara de Roddy, seguido por uma pancada do lado
rombo da outra espada. Um pé pontapeou-lhe o estômago, depois o peito e depois o pescoço, naquilo
que pareceu um único movimento. Impassível, Roddy resistiu a tudo com um sorriso de esguelha, mas
o irado drow continuou a pressioná-lo. Uma cimitarra ficou presa sob a lâmina do machado, e Roddy
avançou, pensando fazer cair Drizzt de novo.
A segunda arma de Drizzt antecipou-se, porém, golpeando o antebraço de Roddy. O caçador de
prémios encolheu-se, arquejando e olhando para o braço ferido, enquanto Bleeder caía no chão.
Drizzt não abrandou. A sua rapidez apanhou Roddy desprevenido, e vários pontapés e murros
deixaram o homem sem fôlego. Drizzt saltou então no ar e pontapeou para a frente com ambos os pés,
acertando em cheio no queixo de Roddy e fazendo-o cair redondo no chão. Mesmo assim, Roddy
sacudiu-se e tentou levantar-se, mas desta vez sentiu os gumes de duas cimitarras encostados a ambos
os lados do pescoço.
— Disse-te que te fosses embora — disse Drizzt sombriamente, sem mexer as lâminas um
milímetro, mas deixando que Roddy sentisse bem o frio metal.
— Mata-me — disse Roddy calmamente, sentindo uma fraqueza no oponente. — Mata-me, se tens
estômago para isso!
Drizzt hesitou, mas o seu desprezo não abrandou.
— Vai-te! — disse com tanta calma quanta conseguiu reunir, uma calma que negava o teste
seguinte, que sabia que haveria de vir.
Roddy riu-se dele:
— Mata-me, diabo de pele negra! — rugiu, avançando, embora ainda de joelhos, para Drizzt. —
Mata-me ou apanho-te! Não duvides, drow! Perseguir-te-ei até aos confins do mundo e até debaixo
dele, se for preciso!
Drizzt ficou sem resposta e olhou para Guenhwyvar, em busca de apoio.
— Mata-me! — gritava Roddy, quase histérico. Agarrou os punhos de Drizzt e puxou-os para a
frente. Fios de sangue apareceram de ambos os lados do pescoço do homem. — Mata-me, como
mataste o meu cão!
Horrorizado, Drizzt tentou afastar-se, mas a força das mãos de Roddy era enorme.
— Não tens estômago para isso? — desdenhou o caçador de prémios. — Então, eu ajudo-te!
Sacudiu os pulsos de Drizzt, puxando-os com força contra a resistência do drow, rasgando linhas
ainda maiores no pescoço. E se o enlouquecido homem sentia dor, não o demonstrava, com o seu
sorriso inabalável.
Ondas de emoções complexas varreram Drizzt. Queria matar Roddy, nesse momento, mais por
frustração estupefacta do que por vingança; mas, mesmo assim, sabia que não podia fazê-lo. Tanto
quanto Drizzt sabia, o único crime de Roddy era a sua sanha contra ele, e isso não era razão
suficiente. Em nome de tudo o que tinha por precioso, Drizzt tinha de respeitar uma vida humana —
mesmo uma vida tão miserável como a de Roddy McGristle.
— Mata-me! — gritava o homem repetidamente, com um prazer perverso ao ver o nojo cada vez
maior do drow.
— Não! — gritou Drizzt na cara de Roddy, com força suficiente para o fazer calar. Enraivecido ao
ponto de não conseguir parar de tremer, Drizzt não esperou para ver se Roddy recomeçava os seus
gritos tresloucados. Levou um joelho ao queixo do homem, libertou os pulsos, e depois bateu-lhe
com os punhos de ambas as armas ao mesmo tempo nas têmporas.
Roddy entortou os olhos, mas não tombou, sacudindo teimosamente o golpe. Drizzt bateu-lhe outra
vez, e outra, até que por fim o venceu, horrorizado pelas suas próprias acções e pelo desafio
continuado do caçador de prémios.
Quando a raiva se dissipou, Drizzt ficou por cima do homem, a tremer e com lágrimas a cair dos
olhos cor de alfazema.
— Leva esse cão daqui! — gritou para Guenhwyvar. Depois, deixou cair as cimitarras,
horrorizado, e inclinou-se para se assegurar de que Roddy não estava morto.

Roddy acordou e viu o cão de pé ao seu lado. A noite estava a cair rapidamente e o vento
recomeçara a soprar com força. Doía-lhe a cabeça e o braço, mas ignorou a dor, querendo apenas
recomeçar a perseguição, confiante agora em que Drizzt nunca teria coragem para o matar. O cão
farejou o rasto imediatamente — ia para sul — e partiram. A coragem de Roddy só se dissipou um
pouco quando fez a curva por trás de uma formação rochosa e deu de caras com um anão de barbas
vermelhas e uma rapariguinha, que o esperavam.
— Ninguém toca na minha menina, McGristle — disse Bruenor calmamente. — Não devias ter-lhe
tocado!
— Ela está feita com o drow! — protestou Roddy. — Avisou o assassino da minha chegada!
— Drizzt não é um assassino! — gritou-lhe Catti-brie em resposta. — Não matou os agricultores!
Disse-me que só dizes isso para que outros te ajudem a encontrá-lo!
Catti-brie apercebeu-se, subitamente, de que tinha acabado de admitir, perante o pai, que se tinha
encontrado com o drow. Quando chegara junto do pai, contara-lhe apenas do encontro com
McGristle.
— Foste ter com ele! — disse Bruenor, obviamente magoado. — Mentiste-me e foste ter com o
drow! Eu disse-te para não ires. E tu disseste que não irias…
O lamento de Bruenor magoou Catti-brie profundamente, mas manteve-se firme nas suas crenças.
Bruenor educara-a para ser honesta, e isso incluía ser honesta para com aquilo que sabia que estava
certo.
— Uma vez, disseste-me que todos recebemos o que merecemos — replicou Catti-brie. —
Disseste-me que todos somos diferentes e cada um devia ser visto por aquilo que é. Eu já vi Drizzt, e
vi quem ele é, digo-te! Não é assassino nenhum! E este… — apontou acusadoramente para
McGristle: — Este é um mentiroso! Não me orgulho de te ter mentido, mas não poderia deixar Drizzt
ser apanhado por este aqui!
Bruenor considerou as palavras da filha por um momento, e depois lançou um braço em volta dela
e abraçou-a com força. A mentira da filha ainda o magoava, mas estava orgulhoso por a sua menina
ter defendido aquilo em que acreditava. Na verdade, Bruenor viera até ali, não à procura de Catti-
brie, que acreditava que estaria a chorar em casa, mas para encontrar o drow. Quanto mais vezes
contava a história da sua luta com o remorhaz, mais se convencia de que Drizzt viera em seu socorro,
e não para lutar contra ele. Agora, à luz dos acontecimentos mais recentes, poucas dúvidas restavam.
— Drizzt veio e libertou-me desse aí — continuou Catti-brie. — Salvou-me.
— O drow confundiu-a — disse Roddy, apercebendo-se da atitude cada vez mais firme de
Bruenor e não querendo lutar com o perigoso anão. — É um assassino e um cão traiçoeiro, digo-te
eu, e o mesmo diria Bartholomew Thistledown, se um morto pudesse falar.
— Bah! — resmungou Bruenor. — Não conheces a minha filha, ou pensarias melhor antes de lhe
chamar mentirosa. E já te disse antes, McGristle, que não gosto de ver a minha filha ser incomodada!
Penso que é melhor ires andando para fora do meu vale. E penso que é melhor ires já.
Roddy rosnou, e o cão fez o mesmo, saltando para se pôr entre o homem da montanha e o anão,
arreganhando os dentes para Bruenor. O anão encolheu os ombros, despreocupado, e rosnou de volta
ao cão, provocando-o ainda mais.
O cão atirou-se ao tornozelo de Bruenor, e o anão enfiou-lhe prontamente uma bota na boca, e
prendeu-lhe o maxilar contra o chão.
— E leva o teu cão fedorento contigo!
Bruenor estava a vociferar, mas, ao admirar o flanco carnudo do cão, começou a pensar de novo
que talvez arranjasse melhor uso para o animal.
— Eu vou para onde decido ir, anão! — retorquiu Roddy. — Vou apanhar um drow, e se o drow
está no teu vale, então também eu estou!
Bruenor percebeu a clara frustração na voz do homem, e depois reparou com mais atenção nas
feridas que tinha na cara e no golpe que tinha no braço.
— O drow escapou-te — disse o anão, e a gargalhada feriu Roddy profundamente.
— Não por muito tempo! — prometeu o homem. — E nenhum anão se porá no meu caminho!
— Vai andando para as minas — disse Bruenor para Catti-brie. — Diz aos outros que sou capaz
de me atrasar um bocadinho para o jantar.
O machado desceu do ombro do anão.
— Dá-lhe com força! — sussurrou-lhe Catti-brie, sem duvidar minimamente das proezas do pai.
Beijou Bruenor no topo do capacete, e depois correu alegremente para casa. O pai confiava nela;
nada mais poderia estar errado no mundo.

Roddy McGristle e o seu cão com três pernas saíram do vale pouco tempo depois. Roddy vira uma
fraqueza em Drizzt, e pensara que poderia vencer o drow; mas não vira sinais desse tipo em Bruenor
Battlehammer. Quando Bruenor o deitara abaixo, o que não demorara muito, Roddy não duvidara,
nem por um segundo, de que se tivesse pedido ao anão que o matasse, Bruenor tê-lo-ia feito de bom
grado.
Do alto da colina de sul, aonde fora para uma última visão de Dez-Cidades, Drizzt viu uma
carroça a afastar-se do vale, e suspeitou de que fosse a carroça de McGristle. Sem saber o que tudo
aquilo significava, mas mal acreditando que Roddy tivesse mudado de ideias, olhou para baixo, para
os seus pertences embrulhados numa trouxa, e interrogou-se sobre para onde virar a seguir.
As luzes das cidades começavam a aparecer, e Drizzt observou-as com emoções contraditórias.
Estivera naquele local várias vezes, encantado pela paisagem que o rodeava e pensando que
encontrara o seu lugar. Como era agora diferente esta vista! O aparecimento de McGristle dera a
Drizzt uma pausa e relembrara-lhe que continuava a ser um proscrito, e que o seria sempre.
«Drizzit», murmurou para si mesmo. Uma palavra maldita, realmente. Nesse momento, Drizzt não
acreditava que alguma vez viesse a encontrar um lar, não acreditava que um drow que não era um
drow no coração tivesse lugar em todos os Reinos, à superfície ou no Subescuro. A esperança,
sempre fugidia no coração de Drizzt, fugira de vez.
— Escada de Bruenor. É como se chama este local — disse uma voz possante atrás de Drizzt. O
drow virou-se, pensando em fugir, mas o anão de barbas vermelhas estava demasiado perto para lhe
escapar. Guenhwyvar correu a pôr-se ao lado de Drizzt, mostrando os dentes.
— Acalma o teu bicho de estimação, elfo! — disse Bruenor. — Se gato souber tão mal como cão,
não quero nada dele! Este lugar é meu — prosseguiu o anão. — Dado que eu sou Bruenor e isto se
chama Escada de Bruenor!
— Não vi nenhum sinal de propriedade — respondeu Drizzt, indignado, com a paciência esgotada
pela longa estrada que agora parecia tornar-se ainda mais longa. — Mas agora sei que o reclamas, e
por isso partirei. Anima-te, anão. Não voltarei.
Bruenor ergueu uma mão, tanto para fazer parar o drow, como para o calar.
— É apenas uma pilha de pedras — disse, tão perto de um pedido de desculpas quanto Bruenor
alguma vez dera. — Dei-lhe o meu nome, mas isso faz delas minhas? É apenas uma maldita pilha de
pedras!
Drizzt inclinou a cabeça perante a inesperada cogitação do anão.
— Nada é o que parece, drow! — declarou Bruenor. — Nada! Tentamos seguir de acordo com o
que sabemos, não é? Mas depois descobrimos que não sabemos nada do que julgávamos saber!
Pensei que o cão seria saboroso… Parecia bom… Mas o meu estômago está a amaldiçoar-me a cada
passo que dou!
A segunda menção a um cão fez surgir uma súbita revelação no que dizia respeito à partida de
Roddy McGristle.
— Mandaste-o embora — disse Drizzt, apontando para a estrada que partia do vale. — Expulsaste
McGristle do meu caminho.
Bruenor mal o ouviu, e claro que não admitiria esse gesto de bom coração, de qualquer forma.
— Nunca confiei em humanos — disse simplesmente. — Nunca se sabe o que estão a pensar, e
quando descobrimos, a maior parte das vezes, já é tarde demais! Mas com outras gentes, acerto
sempre. Um elfo é um elfo, no fim de contas, e por isso um gnomo. E os orcs são simplesmente
estúpidos e feios. Nunca conheci um que fosse diferente, e já conheci uns quantos! — Bruenor
acariciou o machado, e Drizzt percebeu o que ele queria dizer. — Assim eram os meus pensamentos
acerca dos drow — continuou Bruenor. — Nunca vi nenhum, nunca quis ver nenhum. E quem haveria
de querer? Os drow são maus, têm mau coração, segundo me disse o meu velho pai, e o pai dele
antes dele, e toda a gente me dizia o mesmo.
Olhou para as luzes de Termalaine, no Maer Dualdon, a oeste, abanou a cabeça e deu um pontapé
numa pedra.
— Depois ouço dizer que anda um drow no meu vale e… Que há-de um rei fazer? E depois a
minha filha vai ter com ele!
Um fogo acendeu-se nos olhos de Bruenor, mas depressa o apagou, quase como se tivesse
vergonha, assim que olhou para Drizzt.
— E ela mente-me na minha cara… Nunca me tinha feito tal coisa, e não voltará a fazer, se for
esperta!
— Não foi culpa dela — começou Drizzt a explicar. Mas Bruenor sacudiu as mãos agitadamente,
para pôr o assunto de lado.
— Pensava que sabia aquilo que sabia — continuou Bruenor, após uma pequena pausa, com a voz
quase num lamento. — Tinha o mundo bem organizado, lá isso tinha. É fácil, quando se fica sempre
no nosso buraco.
Voltou a olhar para Drizzt, directamente no centro dos olhos de alfazema.
— Escada de Bruenor? — perguntou o anão com um encolher de ombros resignado. — Que
significa isso, drow? Pôr o nome numa pilha de pedras… Pensava eu que sabia tudo, e também
pensava que carne de cão saberia bem! — esfregou uma mão sobre o estômago e fez uma careta. —
Chama-lhe pilha de pedras, então, e não reclamarei mais direitos sobre ela, não mais do que os teus!
Chama-lhe Escada de Drizzt, se queres, e passas tu a expulsar-me daqui!
— Não faria nada disso — respondeu Drizzt calmamente. — Nem sei bem se conseguiria, mesmo
que quisesse!
— Chama-lhe o que quiseres! — exclamou Bruenor, subitamente aflito. — E chama vaca a um cão,
que isso não altera nada aquilo a que sabe!
Bruenor levantou as mãos em desistência e virou costas, correndo pesadamente pelo trilho de
pedras, resmungando a cada passo.
— E mantém um olho alerta pela minha filha — ouviu-o Drizzt dizer por entre os resmungos —, se
ela for tão cabeça de orc que continue a ir para a montanha cheia de vermes e iétis malcheirosos! E
fica sabendo que te considerarei… — o resto já não se ouviu, porque Bruenor desaparecera atrás de
uma curva.
Drizzt começou a tentar perceber o caminho tortuoso por entre aquele diálogo, mas não precisou
de pôr o discurso de Bruenor todo em ordem. Desceu uma mão até Guenhwyvar, esperando que a
pantera partilhasse com ele aquela vista magnífica. Drizzt soube então que se viria sentar neste monte
de pedras, a Escada de Bruenor, muitas mais vezes, para ver as luzes a ganharem vida; porque,
juntando todas as palavras que o anão dissera, recolheu uma frase clara, palavras que esperara
muitos anos para ouvir:
Bem-vindo a casa.
De todas as raças dos Reinos conhecidos, nenhuma é mais complicativa, ou mais confusa,
do que os humanos. Mooshie convenceu-me de que os deuses, longe de serem entidades
exteriores, são personificações do que existe no nosso coração. Se isso for verdade, então
os muitos e variados deuses das seitas humanas — divindades de comportamentos
amplamente diferentes — revelam muito acerca dessa raça.
Se nos aproximamos de um halfling, ou de um elfo, ou de um anão, ou de qualquer uma
das outras raças, boas e más, temos uma ideia razoável do que podemos esperar. Há
excepções, evidentemente; aponto-me a mim próprio como uma delas, com grande fervor!
Mas um anão será sempre, provavelmente, rude, embora leal, e nunca conheci um elfo, nem
ouvi falar de nenhum, que preferisse uma gruta ao céu aberto. As preferências de um
humano, porém, só ele as sabe. Se é que ele próprio as sabe discernir.
Em termos de bem e mal, a raça humana tem pois de ser julgada com muito cuidado.
Combati contra vis assassinos humanos, vi feiticeiros humanos tão fascinados pelo seu
poder que destruíam impiedosamente todos os seres que encontravam no seu caminho, e vi
cidades onde grupos de humanos exploravam os mais infelizes da sua própria raça, vivendo
em palácios dignos de reis, enquanto outros homens e mulheres, e mesmo crianças,
morriam à fome e nas sarjetas das ruas lamacentas. Mas conheci outros humanos — como
Catti-brie, Mooshie, Wulfgar, Agorwal de Termalaine — cuja honra não se podia
questionar e cujas contribuições para o bem dos Reinos nas suas curtas vidas se
sobreporão às da maioria dos anões e elfos que podem viver meio milénio ou mais.
São, de facto, uma raça confusa, e o destino do mundo passa cada vez mais pelas mãos
deles. Pode vir a revelar-se um equilíbrio delicado, mas certamente nada enfadonho. Os
humanos têm um leque de características muito mais amplo que quaisquer outros seres;
são a única raça «boa» que faz a guerra contra si própria — e com alarmante frequência.
Os elfos da superfície mantêm a sua fé no final. Aqueles que viveram mais tempo e viram
o nascimento de muitos séculos têm fé em que a raça humana amadurecerá para o bem, que
os males que traz consigo se desfarão no nada, deixando o mundo para os que restarem.
Na cidade onde nasci, testemunhei as limitações do mal, a auto-destruição e a
incapacidade para se atingirem objectivos mais altos, até mesmo objectivos baseados na
aquisição de poder. Por essa razão, também eu mantenho a esperança nos humanos, e nos
Reinos. Sendo os mais variados, os humanos são também os mais maleáveis, os mais
dispostos a discordar, no seu interior, daquilo que considerem ser falso.
A minha própria sobrevivência baseou-se na minha crença em que há uma finalidade
maior nesta vida: que os princípios são uma recompensa em si mesmos. Não posso, por
isso, olhar para a frente com desespero, mas antes com esperanças mais elevadas para
tudo o que sinto e com a determinação de que poderei ajudar a atingirem-se essas alturas.
Esta é, pois, a minha história, contada completamente como a consigo recordar e tão
completamente como decidi divulgá-la. O meu caminho foi um caminho cheio de
armadilhas e de barreiras, e só agora, que pus esses esforços tão para trás, consigo contá-
la com honestidade.
Nunca olharei para trás, para esses dias, rindo; o preço pago foi demasiado elevado para
que entre na história algum humor. Lembro-me, porém, frequentemente de Zaknafein, e de
Belwar e de Mooshie, e de todos os outros amigos que deixei para trás.
Muitas vezes me interroguei, também, sobre os muitos inimigos que enfrentei, sobre as
muitas vidas que as minhas espadas terminaram. A minha vida foi uma vida violenta num
mundo violento, cheio de inimigos, contrários a mim próprio e a tudo o que tenho por
valioso. Fui elogiado pelo corte perfeito das minhas cimitarras, pelas minhas aptidões em
combate, e tenho de admitir que muitas vezes me permiti sentir orgulho dessas aptidões
duramente aprendidas.
Sempre que me afasto da excitação e considero o todo mais profundamente, contudo,
lamento que as coisas não tenham podido ser diferentes. Custa-me recordar Masoj Hun’ett,
o único drow que alguma vez matei; foi ele quem iniciou a nossa luta, e certamente ter-me-
ia morto se eu não tivesse sido mais forte. Posso justificar as minhas acções nesse dia
fatídico, mas nunca me sentirei confortável com a sua necessidade. Deveria haver maneiras
melhores do que a espada.
Num mundo tão cheio de perigos, onde pululam orcs e trolls, ao que parece, a cada curva
das estradas, aquele que consegue lutar é muitas vezes exaltado como herói e recebe
generosos aplausos. Há mais sob o manto do «herói», digo eu, do que força de braços ou
destreza com as armas em batalha. Mooshie era um herói, verdadeiramente, porque venceu
a adversidade, porque nunca hesitou perante as probabilidades desfavoráveis, e sobretudo
porque agia de acordo com um código de princípios claramente definidos. Poderia dizer-se
menos do que isso acerca de Belwar Dissengulp, o gnomo das profundezas sem mãos que se
tornou amigo de um drow renegado? Ou de Clacker, que deu a sua própria vida, para
evitar trazer perigo para os seus amigos?
Da mesma forma, chamo herói a Wulfgar de Icewind Dale, porque aderiu aos princípios
acima do entusiasmo em batalha. Wulfgar venceu as concepções erradas da sua juventude
selvagem, aprendeu a ver o mundo como um lugar de esperança, e não de um terreno para
potenciais conquistas. E Bruenor, o anão que ensinou a Wulfgar essa importante diferença,
é um rei dos mais justos de todos os que jamais houve nos Reinos. Incorpora em si esses
mandamentos que as pessoas têm como mais queridos, e de bom grado defenderão Bruenor
com as suas vidas, cantando-lhe louvores, nem que seja com os seus últimos sopros de vida
numa batalha.
No fim, quando encontrou forças para renegar a Matrona Malice, também o meu pai foi
um herói. Zaknafein, que perdera a batalha pelos princípios e pela sua identidade durante
quase toda a sua vida, venceu no fim.
Nenhum destes guerreiros, porém, faz sombra a uma jovem rapariga que conheci quando
passei pela primeira vez por Dez-Cidades. De toda a gente que conheci, ninguém viveu de
acordo com princípios mais elevados de honra e de decência do que Catti-brie. Viu muitas
batalhas, e mesmo assim os seus olhos brilham claramente com inocência e no seu sorriso
nunca transparece amargura. Triste será o dia, e que todo o mundo há-de lamentar, em que
uma nota discordante de cinismo estragar a harmonia da sua melodiosa voz.
Muitas vezes, aqueles que me chamam heróis fazem-no apenas por causa das minhas
proezas em batalha, e não sabem nada dos princípios que orientam as minhas espadas.
Aceito o manto que me lançam por aquilo que vale, para satisfação deles, e não minha.
Quando Catti-brie me chamar assim, então sim permitirei ao meu coração inchar de
satisfação por saber que fui julgado pelo meu coração, e não pelo braço que brande a
espada; só então me atreverei a acreditar que o manto se justifica.
E assim termina a minha história — se é que me posso atrever a dizê-lo. Estou agora
sentado confortavelmente ao lado do meu amigo, o rei de Mithrall Hall, e tudo está
sossegado e pacífico e próspero. Na verdade, este drow encontrou o seu lar e o seu lugar.
Mas sou novo ainda, tenho me lembrar a mim mesmo disso. Posso ter para viver dez vezes
os anos que já vivi. E apesar de todo o meu presente contentamento, o mundo continua a
ser um lugar perigoso, onde um ranger tem de defender os seus princípios, pela força das
armas, se for preciso.
Deverei atrever-me a acreditar que a minha história está contada até ao fim?
Não creio.

— Drizzt Do’Urden
FIM DA TRILOGIA
A LENDA DE DRIZZT

A TRILOGIA DO ELFO NEGRO:


Pátria
Exílio
Refúgio
A TRILOGIA DAS PLANÍCIES GELADAS:
Fragmento de Cristal
Rios de Prata
A Jóia Encantada
BIOGRAFIA

R. A. Salvatore é um autor norteamericano conhecido pelos seus romances da série Forgotten


Realms e Vector Prime, pertencente à série New Jedi Order do universo Star Wars. O seu primeiro
romance, The Crystal Shard, foi publicado em 1988, ao qual se seguiram várias trilogias,
alcançando a popularidade com a sua criação de uma das personagens mais famosas da fantasia, o
elfo negro Drizzt Do’Urden. R. A. Salvatore vive em Massachusetts, EUA, com a mulher e três
filhos.
Mais informações em
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LEIA NAS PRÓXIMAS PÁGINAS UM EXCERTO DO 1º VOLUME DE AS CRÓNICAS DE DRAGONLANCE, DE
MARGARET WEIS & TRACY HICKMAN

DRAGÕES DE UM CREPÚSCULO DE OUTONO

Anos após terem optado por seguir caminhos diferentes, um grupo de companheiros reencontra-se na
sua terra natal apenas para descobrir que o mundo de Krynn mudou. Rumores de guerra e sombras
dominam as conversas de estalagem e monstros e criaturas míticas que só existiam em lendas
voltaram a ser avistados. E nenhum companheiro se atreve a confidenciar os segredos que oculta no
coração e que descobriu em viagens cheias de perigo.
Até ao dia em que um encontro ocasional com uma bela mulher, que detém em seu poder um bastão
de cristal, arrasta os companheiros para o caos e muda as suas vidas para sempre. Ninguém esperava
que se revelassem heróis. Muito menos eles. Mas conseguirão arranjar a força, honra e coragem para
enfrentar os Deuses da Luz e Trevas no momento em que a Guerra da Lança está prestes a começar?
Mais informações em
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CÂNTICO DO DRAGÃO

Ouvi o sábio enquanto a sua canção desce


como chuva do céu, ou como lágrimas,
e arrasta os anos, a poeira das muitas histórias
da Alta Lenda dos Dragonlance.
Pois em eras longínquas, para lá das memórias e das palavras,
no primeiro alvor do mundo
quando as três luas se erguiam do colo da floresta,
dragões, terríveis e grandiosos,
faziam a guerra a este mundo de Krynn.

Porém, da escuridão dos dragões,


de entre o clamor por luz
na face vazia da lua negra espreitando,
uma luz concentrada brilhou em Solamnia,
um cavaleiro de verdade e poder,
que convocou os próprios deuses
e forjou a poderosa Dragonlance, trespassando a alma
da espécie dos dragões, afastando a sombra das suas asas
das margens refulgentes de Krynn.

Assim Huma, Cavaleiro de Solamnia,


Portador da Luz; Primeiro Lanceiro;
seguiu a sua luz até ao sopé das montanhas Khalkist
até aos pés de pedra dos deuses,
até ao silêncio curvado dos seus templos.
Convocou os Criadores da Lança, tomou
os seus poderes inomináveis para esmagar o mal indescritível,
para arremessar a escuridão que se fechava
de regresso ao túnel da garganta do dragão.

Paladino, o Grande Deus do Bem,


resplandecia ao lado de Huma,
fortalecendo a lança do seu forte braço direito,
e Huma, radioso sob a luz de mil luas,
baniu a Rainha das Trevas,
baniu as suas ruidosas hostes uivantes
de volta ao reino sem sensações da morte, onde as suas maldições
seriam lançadas contra o vazio absoluto
e bem abaixo da terra iluminada.

Assim terminou em clamor a Era dos Sonhos


e começou a Era do Poder,
Em que Istar, reino da luz e da verdade, nasceu no leste,
onde minaretes brancos e dourados
se elevaram em direção ao Sol e à glória do Sol,
anunciando o fim do mal,
e Istar nutrindo e embalando
os longos verões do bem,
brilhou como um meteoro
nos alvos céus dos justos.

Porém, mesmo na plenitude da luz do Sol,


o Rei Sacerdote de Istar via sombras:
À noite via as árvores como coisas com punhais,
os riachos
escurecidos e agigantados sob a lua silenciosa.
Procurou nos Livros os caminhos de Huma,
códigos, sinais e magias
para que também ele pudesse invocar os deuses, pudesse encontrar
a ajuda deles nos seus sacros propósitos,
de purificar o mundo dos seus pecados.

Depois vieram os tempos das trevas e da morte,


quando os deuses voltaram as costas ao mundo.
Uma montanha de fogo caiu como um cometa sobre Istar,
a cidade abriu-se como um crânio em chamas,
montanhas ergueram-se de onde antes existiam vales férteis,
mares jorraram para dentro dos túmulos das montanhas,
desertos respiraram no fundo de mares abandonados,
as estradas de Krynn sacudiram-se
e tornaram-se os caminhos dos mortos.

Assim começou a Era do Desespero.


As estradas confundiram-se.
Os ventos e as tempestades de areia avançaram para o seio das cidades.
As planícies e as montanhas tornaram-se o nosso lar.
Enquanto os velhos deuses perdiam o poder,
clamávamos ao céu sem feições
para lá da fronteira fria e cinzenta, aos ouvidos dos novos deuses.
O céu está calmo, silencioso, imóvel.
Ainda estamos à espera da resposta deles.
O VELHO

Tika Waylan endireitou as costas com um suspiro e moveu os ombros para aliviar os músculos
doridos. Atirou o trapo ensopado para o balde de água e olhou em redor para a sala vazia.
Estava a tornar-se cada vez mais difícil manter a velha estalagem em funcionamento. Havia muita
dedicação esfregada no acabamento quente da madeira, mas nem mesmo a dedicação e o esforço
conseguiam disfarçar as rachas e falhas das mesas muito usadas, ou impedir que um cliente se
sentasse ocasionalmente sobre uma farpa. A Estalagem do Derradeiro Lar não era elegante; não era
como algumas de que ouvira falar em Haven. Era confortável. A árvore viva sobre a qual estava
construída fechava os braços antigos à sua volta carinhosamente, enquanto as paredes e decorações
tinham sido construídas em volta do tronco com tanto cuidado que era impossível dizer onde parava
o trabalho da natureza e onde começava o do homem. O bar parecia ir e vir como uma onda polida
em volta da madeira viva que o suportava. Os vitrais coloridos de cada janela lançavam raios
acolhedores de cores vibrantes pela sala.
As sombras recuavam agora, à medida que o meio-dia se aproximava. A Estalagem do Derradeiro
Lar abriria em breve para os clientes. Tika olhou em volta e sorriu com satisfação. As mesas estavam
limpas e polidas. A última coisa que lhe faltava fazer era varrer o chão. Começou a afastar os
pesados bancos de madeira, quando Otik apareceu da cozinha, envolto num vapor fragrante.
— Vai ser mais um dia agitado. Tanto em relação ao tempo, como ao negócio — disse Otik,
enfiando o corpo possante, com esforço, por detrás do balcão. Começou a colocar canecas no
balcão, assobiando alegremente.
— Preferia o negócio mais fresco e o tempo mais quente — disse Tika, empurrando um banco. —
Dei cabo dos pés ontem e poucos agradecimentos tive, e ainda menos gorjetas! Que gente sombria!
Todos nervosos, sobressaltados com cada ruído. Deixei cair uma caneca, ontem à noite, e juro que
Retark sacou logo da espada!
— Bah! — desdenhou Otik. — Retark é um guarda Seguidor de Solace. Esses são sempre
nervosos. Também tu serias, se tivesses de trabalhar para Hederick, esse fanático.…
— Cuidado — avisou Tika.
Otik encolheu os ombros.
— A não ser que o Alto Teocrata agora consiga voar, não nos está a ouvir. E eu ouviria as botas
dele nas escadas antes que ele me conseguisse ouvir. — Mas Tika notou que ele baixara a voz
enquanto prosseguia: — Os residentes de Solace não suportarão muito mais, digo-te já. Pessoas que
desaparecem, que são levadas para sabe-se lá onde. Tempos tristes, estes. — Abanou a cabeça.
Depois, animou-se. — Mas bons para o negócio.
— Até que ele nos feche as portas — disse Tika sombriamente. Pegou na vassoura e começou a
varrer com brusquidão.
— Até os teocratas precisam de encher a barriga e de lavar o fogo e as cinzas da garganta —
brincou Otik. — Deve ser um trabalho que dá sede, isso de andar a arengar às pessoas sobre os
Novos Deuses, de manhã à noite. Por isso aqui vem todas as noites.
Tika parou de varrer e encostou-se ao balcão.
— Otik — disse com seriedade, em voz baixa. — Há outras conversas, também. Fala-se de guerra.
De exércitos que se reúnem no Norte. E há aqueles homens estranhos, encapuzados, na cidade, que
andam com o Alto Teocrata, a fazer perguntas.
Otik olhou para a rapariga de dezanove anos com afeição, estendeu uma mão e fez-lhe uma festa na
cara. Era um pai para ela, desde que o verdadeiro pai de Tika desaparecera misteriosamente.
Afastou os caracóis ruivos da cara da rapariga.
— Guerra.… Bah. — Riu-se com desdém. — Fala-se de guerra desde o Cataclismo. É apenas
falatório, rapariga. Talvez seja o Teocrata que inventa isso para manter as pessoas na ordem.
— Não sei — respondeu Tika, franzindo o sobrolho. — Eu…
A porta abriu-se.
Tika e Otik estremeceram, alarmados, e viraram-se para a porta. Não tinham ouvido passos na
escada, e isso era estranho! A Estalagem do Derradeiro Lar estava erguida sobre os ramos de uma
possante árvore, como todos os outros edifícios de Solace, à exceção da oficina do ferreiro. A gente
da cidade decidira abrigar-se nas árvores durante o caos e o terror que se tinham seguido ao
Cataclismo. E assim Solace se tornara numa cidade nas árvores, uma das poucas verdadeiras
maravilhas que restavam a Krynn. Robustos passadiços de madeira ligavam as casas e as lojas
empoleiradas bem acima do nível do chão, e era aí que quinhentas pessoas faziam a sua vida
quotidiana. A Estalagem do Derradeiro Lar era a maior construção de Solace e ficava doze metros
acima do chão. Havia escadas que corriam em espiral em redor do tronco rugoso da velha árvore.
Tal como Otik dissera, qualquer visitante seria ouvido a aproximar-se, muito antes de ser visto.
Mas nem Tika nem Otik tinham ouvido o homem velho.
Estava à porta, apoiado num cajado de carvalho muito usado, e espreitava para o interior da
taberna. O esfarrapado capuz da sua túnica cinzenta e simples estava puxado para a frente sobre a
cabeça, com a sombra a esconder os traços do rosto, com exceção apenas dos olhos brilhantes de ave
de rapina.
— Posso ajudar-te, ó Velho Homem? — perguntou Tika ao estranho, trocando olhares
preocupados com Otik. Seria aquele velho um espião Seguidor?
— Hem? — O velho piscou os olhos. — Estão abertos?
— Bem… — Tika hesitou.
— Certamente — disse Otik, com um largo sorriso. — Entra, ó Barba Grisalha. Tika, leva o nosso
cliente a uma mesa. Deve estar cansado, depois desta longa subida.
— Subida? — Coçando a cabeça, o velho olhou em redor, para a entrada, e depois para o chão, lá
em baixo. — Ah, sim. A subida. Muitas escadas.… — Avançou uns passos, e depois sacudiu Tika
com a vara, em jeito de brincadeira.
— Vai tratar dos teus afazeres, rapariga. Sou bem capaz de encontrar uma cadeira sozinho.
Tika encolheu os ombros, pegou na vassoura e começou a varrer, sem tirar os olhos do velho.
Este mantinha-se no centro da sala, olhando em volta como que a confirmar a localização e
posição de cada mesa e cadeira da sala. A sala era grande e tinha a forma de um feijão, rodeando o
tronco da árvore. Os ramos mais pequenos desta suportavam o chão e o tecto. O velho olhou com
especial interesse para a lareira, que ficava uns três quartos do espaço mais para trás, no fundo da
sala. Sendo a única construção de pedra da estalagem, tinha obviamente sido trabalhada por mãos de
anões, de forma a que parecesse ser parte da árvore, enredando-se naturalmente nos ramos acima
dela. Um balde ao lado da lareira estava cheio de pinhas e lenha trazidas das montanhas altas.
Nenhum residente de Solace pensaria em queimar madeira das suas próprias grandes árvores. Havia
saída pelas traseiras, depois da cozinha; era uma queda de doze metros, mas uns quantos clientes de
Otik tinham considerado essa via bastante conveniente. O velho pensou o mesmo.
Murmurou comentários satisfeitos para consigo mesmo, enquanto os seus olhos passavam de uma
área para outra. Depois, para espanto de Tika, deixou subitamente cair o cajado, arregaçou as
mangas e começou a alterar as posições das mesas!
Tika parou de varrer e apoiou-se na vassoura.
— Que estás a fazer? Essa mesa sempre esteve aí!
Havia uma mesa longa e estreita no centro da sala principal. O velho arrastou-a pelo chão e
empurrou-a contra o tronco da enorme árvore, do outro lado da lareira; depois, deu alguns passos
para trás para admirar o seu trabalho.
— Aqui! — resmungou. — Tem de ficar mais próxima da lareira. E agora traz-me mais duas
cadeiras. São precisas seis cadeiras aqui.
Tika virou-se para Otik. Este parecia prestes a protestar, mas, nesse momento, viu-se um clarão
vindo da cozinha. Um grito do cozinheiro indicou que a gordura tinha novamente pegado fogo. Otik
correu em direção às portas da cozinha.
— É inofensivo — sussurrou enquanto passava por Tika. — Deixa-o fazer o que quiser. Dentro do
razoável. Talvez esteja a preparar alguma festa.
Tika suspirou e levou duas cadeiras ao velho, como lhe tinha sido pedido. Colocou-as onde este
lhe indicou.
— Agora — disse o velho, olhando atentamente em redor — traz mais duas cadeiras, para aqui,
mas que sejam confortáveis, se faz favor. Coloca-as próximas da lareira, neste canto mais escuro.
— Esse sítio não é escuro — protestou Tika. — Está mesmo sob a luz do Sol!
— Ah… — Os olhos do velho semicerraram-se. — Mas vai estar escuro à noite, não vai? Quando
a lareira estiver acesa…
— Eu… acho que sim… — Tika hesitou.
— Traz as cadeiras. Linda menina! Quero uma aqui mesmo — e o velho indicou um local mesmo
frente à lareira. — Essa é para mim.
— Vais dar uma festa, ó Velho? — perguntou Tika enquanto trazia a cadeira mais confortável e
mais gasta da hospedaria.
— Uma festa? — Essa ideia pareceu ser engraçada para o velho. Soltou uma gargalhadinha. —
Sim, miúda. Vai ser uma festa como o mundo de Krynn nunca viu desde antes do Cataclismo!
Prepara-te, Tika Waylan. Prepara-te!
O velho deu umas palmadinhas no ombro de Tika, passou-lhe uma mão pelos cabelos, e depois
virou-se e deixou-se descer, com os ossos a ranger, até ficar sentado na cadeira.
— Uma caneca de cerveja — pediu.
Tika foi servir a cerveja. Só depois de lhe levar a bebida e recomeçar a varrer é que Tika parou,
indagando-se como é que o velho sabia o seu nome.
LIVRO 1

REENCONTRO DE VELHOS AM IGOS. UM A RUDE INTERRUPÇÃO.

Flint Forjardente deixou-se cair sobre uma rocha coberta de musgo. Os seus velhos ossos de anão
tinham-no apoiado por mais tempo do que seria de esperar, e não estavam dispostos a continuar mais
sem se queixarem.
— Nunca deveria ter partido — resmungou Flint, olhando para o vale mais abaixo. Falava em voz
alta, embora não houvesse sinal de outro ser vivo nas redondezas. Longos anos de deambulações
solitárias tinham-no levado a ganhar o hábito de falar consigo mesmo. Bateu com as duas mãos nos
joelhos. — E raios me partam se alguma vez voltar a partir! — declarou com veemência.
Aquecida pelo sol da tarde, a rocha dava uma sensação de conforto ao velho anão, que tinha
passado o dia inteiro a caminhar sob o ar fresco do outono. Flint descontraiu-se e deixou o calor
penetrar-lhe os ossos — o calor do Sol e o calor dos seus pensamentos. Porque chegara a casa.
Olhou em volta, com o olhar a demorar-se com enlevo nas paisagens familiares. A encosta abaixo
dele formava um dos lados de uma montanha em forma de tigela inundada de esplendor outonal. As
árvores do vale davam a impressão de estar a pegar fogo com as cores da estação, com os vermelhos
brilhantes e dourados fundindo-se no púrpura das montanhas Kharoli, mais adiante. O céu azul-
violeta que se entrevia no meio das árvores refletia-se nas águas do Lago de Cristal. Estreitas tiras
de fumo subiam acima do topo das árvores, sendo o único sinal de presença de Solace. Uma suave
neblina expandia-se e cobria todo o vale com o odor suave de lareiras acesas.
Depois de se sentar para descansar, Flint retirou um pedaço de madeira e uma adaga reluzente da
trouxa, e as mãos começaram a mexer inconscientemente. Desde tempos imemoriais, o seu povo
sempre tivera necessidade de dar a forma que desejasse a algo sem forma. Ele próprio fora um
famoso ferreiro, antes de se retirar, uns anos antes. Aplicou a lâmina na madeira, e depois as mãos
ficaram paradas, porque a sua atenção foi atraída pelo fumo que saía das chaminés ocultas lá mais
em baixo.
— A lareira da minha própria casa apagou-se — disse Flint em voz baixa. Sacudiu-se com raiva
pelo seu sentimentalismo e começou a retalhar a madeira com violência. Ia resmungando em voz alta:
— A minha casa ficou vazia. O mais provável é que o telhado tenha brechas e que os móveis se
tenham estragado. Que demanda idiota. Isto é a coisa mais estúpida que jamais fiz. Ao fim de cento e
quarenta e oito anos, já deveria ter aprendido!
— Nunca hás de aprender, anão — respondeu-lhe uma voz distante. — Nem que vivas duzentos e
quarenta e oito anos!
A madeira caiu da mão do anão, que depois se dirigiu com uma segurança calma da adaga para o
cabo do machado, enquanto Flint perscrutava o caminho. A voz soou-lhe familiar — a primeira voz
familiar que ouvia desde havia muito tempo. Mas não saberia dizer de quem era essa voz.
Flint semicerrou os olhos voltados para o Sol que começava a pôr-se. Julgou ter visto a silhueta de
um homem a correr pelo caminho acima. De pé, Flint pôs-se à sombra de uma árvore alta, para ver
melhor. O andar do homem era marcado por uma graciosidade elegante — Flint teria dito a
graciosidade de um elfo, mas o corpo do homem tinha a envergadura e os músculos de um humano, e
os pelos faciais eram definitivamente humanos. Tudo o que o anão conseguia ver do rosto daquele
homem, coberto por um capuz verde, era uma pele bronzeada e uma barba de tom castanho-
avermelhado. Trazia um arco longo ao ombro, e uma espada embainhada do lado esquerdo. Vestia
roupas de pelica, cuidadosamente trabalhada com os desenhos intricados que os elfos apreciavam.
Só que nenhum elfo do mundo de Krynn poderia ter barba… Nenhum elfo, a não ser…
— Tanis? — indagou Flint, hesitante, enquanto o homem se aproximava.
— O próprio — e o rosto barbudo do recém-chegado abriu-se num enorme sorriso. Ficou de
braços abertos e, antes que o anão pudesse impedi-lo, agarrou Flint num abraço que o levantou do
chão. O anão abraçou também o velho amigo contra si durante um breve momento, e depois,
lembrando-se da sua dignidade, sacudiu-se e libertou-se do abraço do meio elfo.
— Bom, não aprendeste boas maneiras nestes cinco anos — resmungou o anão. — Continuas a não
respeitar a minha idade nem a minha posição. Erguer-me assim como um saco de batatas! — Flint
olhou para a estrada mais abaixo. — Espero que ninguém tenha visto.
— Duvido que haja muita gente que se lembre de nós — respondeu Tanis, com os olhos a estudar
o robusto amigo carinhosamente. — O tempo parece que não passa para ti nem para mim, velho anão,
como passa para os humanos. Cinco anos é muito tempo para eles, mas apenas um breve momento
para nós. — Depois, sorriu. — Não mudaste nada.
— O mesmo não se pode dizer de outras pessoas. — Flint sentou-se na pedra e recomeçou a
esculpir. Franziu o sobrolho para Tanis. — Porquê essa barba? Já eras feio que bastasse.
Tanis coçou o queixo.
— Estive em terras que não eram amistosas para com gente de sangue élfico. A barba… Foi um
presente do meu pai humano — respondeu com amarga ironia — e ajudou bastante a esconder as
minhas origens.
Flint rosnou. Sabia que aquilo não era toda a verdade. Ainda que detestasse matar, Tanis não era
do tipo de se esquivar a uma luta escondendo-se por trás de uma barba. Agora, havia lascas de
madeira a voar.
— E eu estive em terras que não eram amistosas para com qualquer um, fosse qual fosse o sangue.
— Flint revirou a madeira na mão, examinando-a. — Mas agora estamos em casa. Tudo isso ficou
para trás.
— Não é o que tenho ouvido dizer — retorquiu Tanis, cobrindo novamente o rosto com o capuz,
para evitar o sol nos olhos. — Os Altos Seguidores de Haven nomearam um homem chamado
Hederick para governar como Alto Teocrata em Solace, e ele transformou a cidade num viveiro de
fanatismos com a sua nova religião.
Tanis e o anão viraram-se e olharam para baixo, para o sossegado vale. Luzes começavam a
faiscar, tornando visíveis as casas das árvores. O ar da noite estava quieto, calmo e suave,
aromatizado pelo fumo da madeira ardendo nas lareiras das casas. De vez em quando, conseguiam
ouvir, ao longe, uma mãe a chamar os filhos para o jantar.
— Não ouvi falar de nenhum problema em Solace — contestou Flint calmamente.
— Perseguição religiosa… inquisições… — A voz de Tanis soou sombria, vinda das profundezas
do capuz. Uma voz mais grave, mais sombria do que Flint alguma vez se lembrava de lhe ter ouvido.
O anão franziu o sobrolho novamente. O amigo tinha mudado naqueles cinco anos. E os elfos nunca
mudam! Mas Tanis era apenas meio elfo, era um filho da violência; a mãe tinha sido violada por um
guerreiro humano durante uma das muitas guerras que tinham separado as diferentes raças de Krynn,
durante os anos caóticos que se tinham seguido ao Cataclismo.
— Inquisições? Segundo os rumores, isso apenas atinge quem desafia o novo Alto Teocrata —
retorquiu Flint. — Não acredito nos deuses dos Seguidores, nem nunca acreditei, mas também não
ando a dizer as minhas ideias aí pela rua. Mantém-te calado que eles deixam-te em paz. Esse é o meu
lema. Os Altos Seguidores de Haven continuam a ser homens sábios e virtuosos. É apenas essa maçã
estragada de Solace que está a apodrecer todo o cesto. A propósito: encontraste o que procuravas?
— Um sinal dos antigos e verdadeiros deuses? — perguntou Tanis. — Ou a paz de espírito?
Procurei ambos. Sobre qual dos dois queres saber?
— Bom, pensava que um viria com o outro — resmungou Flint. Rodou o pedaço de madeira nas
mãos, ainda insatisfeito com as proporções. — Mas vamos ficar aqui a noite inteira a sentir o cheiro
da comida? Ou vamos jantar à cidade?
— Vamos — respondeu Tanis com um aceno.
Juntos, começaram o trajeto, mas as longas pernas de Tanis obrigavam o anão a dar dois passos
por cada um dos seus. Embora já tivessem passado muitos anos desde que tinham viajado juntos,
Tanis reduziu inconscientemente o ritmo, enquanto Flint aumentava inconscientemente o seu.
— Então não encontraste nada? — continuou Flint.
— Nada… — respondeu Tanis. — Tal como descobrimos há muito tempo, os únicos clérigos e
sacerdotes que existem neste mundo servem falsos deuses. Ouvi histórias de curas, mas tudo não
passava de truques e de magias. Felizmente, o nosso amigo Raistlin ensinou-me o que devia ver…
— Raistlin! — exclamou Flint, ofegante. — Esse mago pálido e escanzelado? Ele próprio pouco
mais é do que um charlatão. Sempre a reclamar e a resmungar, a meter o nariz onde não é chamado.
Se não fossem os cuidados do irmão gémeo, já alguém teria posto fim à magia dele há muito tempo.
Tanis estava feliz pelo facto de a barba lhe esconder o sorriso.
— Acho que esse jovem é um mago melhor do que queres admitir — disse. — E tens de admitir
que trabalhou afincadamente e sem descanso para ajudar os que foram enganados pelos falsos
clérigos, tal como eu próprio — e suspirou.
— Coisa por que sem dúvida recebeste pouco agradecimento — constatou o anão.
— Muito pouco — respondeu Tanis. — As pessoas querem acreditar em alguma coisa, mesmo que
no fundo saibam que não é verdade. Mas… e tu? Como foi a viagem para a tua terra natal?
Flint continuou a andar com passos pesados, sem responder, de rosto fechado. Por fim, disse:
— Nunca deveria ter ido. — Levantou os olhos para Tanis, uns olhos quase impossíveis de ver
por detrás das sobrancelhas brancas e espessas, informando o meio elfo de que essa parte da
conversa não era bem-vinda. Tanis percebeu o olhar de Flint, mas fez perguntas, apesar disso.
— Que aconteceu com os clérigos anões? E as histórias que ouvimos?
— Não eram verdadeiras. Os clérigos desapareceram há trezentos anos, durante o Cataclismo.
Pelo menos, assim dizem os anciões.
— Tal como com os elfos — comentou Tanis.
— Vi…
— Chiu! — Tanis levantou uma das mãos, em advertência. Flint ficou imóvel.
— Que foi? — murmurou.
Tanis apontou.
— Ali, naquele arvoredo.
Flint olhou para lá das árvores, ao mesmo tempo que uma mão procurava o machado de guerra que
trazia preso às costas.
Os raios vermelhos do Sol poente refletiram-se por um segundo num pedaço de metal que brilhava
por entre as árvores. Tanis viu-o por um instante, depois deixou de o ver, e depois viu-o de novo.
Nesse momento, porém, o Sol descia, deixando no céu um brilho violeta e fazendo com que as
sombras da noite se espalhassem sobre as árvores da floresta.
Flint semicerrou os olhos e perscrutou a escuridão.
— Não vejo nada.
— Mas eu vi — disse Tanis.
Continuou a perscrutar o mesmo local onde tinha visto o metal, e gradualmente a sua visão de elfo
começou a detetar a aura vermelha de calor emanado por todos os seres vivos, mas visível apenas
para os elfos.
— Quem está aí? — perguntou Tanis.
Por alguns momentos, a única resposta foi um som estranho que fez os pelos do pescoço do meio
elfo ficarem em pé. Era um som oco, uma espécie de zumbido que começara muito baixo e fora
aumentando até se transformar num tom agudo, como um uivo. A acompanhar o grito vinha uma voz.
— Elfo errante, volta para trás e deixa o anão. Somos os espíritos das pobres almas que Flint
Forjardente deixou prostradas na taberna. Mas morremos em combate? — A voz do espírito elevou-
se ainda mais, tal como o gemido cavo que a acompanhava. — Não! Morremos de vergonha,
amaldiçoados pelo fantasma das uvas, por não sermos capazes de beber mais do que um anão da
montanha.
A barba de Flint tremia de ódio, e Tanis, que tinha começado a rir, foi forçado a agarrar o furioso
anão pelos ombros, para evitar que este entrasse a correr para o bosque.
— Malditos sejam os olhos dos elfos! — A voz fantasmagórica era agora alegre. — E malditas
sejam as barbas dos anões!
— Não desconfiaste logo? — murmurou Tanis para Flint. — É Tasslehoff Pé-Ligeiro!
Houve um breve restolhar dos arbustos mais abaixo, e depois uma figura pequena pôs-se de pé no
caminho. Era um kender, membro de uma raça considerada por muitas pessoas em Krynn tão
incómoda como os mosquitos. De constituição baixa, os kenders raramente cresciam mais do que até
um metro e vinte. Este kender, em particular, era quase da altura de Flint, mas a estrutura franzina e o
perpétuo rosto de criança faziam com que parecesse ainda mais pequeno. Vestia umas calças justas
azul-brilhante, que contrastavam fortemente com o colete de pele de animal e com a túnica tosca. Os
olhos castanhos brilhavam, cheios de malícia e alegria; o sorriso parecia chegar até às extremidades
das orelhas pontiagudas. Baixou a cabeça, num gesto de troça, o que fez com que uma longa mecha
dos cabelos castanhos, que eram o seu orgulho e alegria, descaísse para cima do nariz. Depois,
endireitou-se, rindo. O brilho metálico que os olhos de Tanis tinham visto provinha das fivelas de um
dos numerosos sacos presos à volta dos ombros e da cintura do kender.
Tas sorriu-lhes, apoiando-se no cajado hoopak. Fora esse cajado que criara aquele som
fantasmagórico. Tanis deveria tê-lo reconhecido logo, pois já tinha visto o kender assustar muitos
dos seus atacantes só com o rodopiar do cajado no ar, produzindo aquele uivo. Era uma invenção dos
kenders; a parte de baixo do cajado hoopak era afiada e estava coberta de cobre. O topo tinha uma
espécie de forquilha, com uma tira de couro. O cajado era feito de um só pedaço de madeira flexível.
Apesar de ser menosprezado por todas as raças de Krynn, o hoopak era mais do que uma ferramenta
ou uma arma útil para os kenders — era também o seu símbolo. «Novas estradas pedem um hoopak»
era um ditado popular entre o povo kender. E era sempre imediatamente seguido por outro desses
ditados: «Nenhuma estrada é velha de mais.»
Tasslehoff correu subitamente para a frente, de braços abertos.
— Flint! — O kender lançou os braços em volta do anão e abraçou-o. Flint, envergonhado,
respondeu ao abraço de forma relutante, e depois deu rapidamente um passo atrás. Tasslehoff riu-se,
e depois levantou os olhos para o meio elfo.
— Quem é este? — perguntou. — Tanis? Nem te reconheci, com a barba! — e estendeu os braços
curtos.
— Não, obrigado — disse Tanis, rindo. E acenou, mantendo o kender à distância. — Prefiro que a
minha bolsa fique onde está.
Com uma súbita expressão de espanto, Flint procurou debaixo da túnica.
— Meu grande malandro! — E rugiu, saltando para o kender, que se ria.
Rebolaram envoltos em poeira.
Tanis, contendo o riso, começou a tirar Flint de cima do kender. Depois, parou e virou-se,
alarmado. Tarde de mais, ouviu o tilintar dos ornamentos de latão dos arreios e o resfolegar de um
cavalo. O meio elfo levou a mão ao punho da espada, mas já tinha perdido toda a vantagem que
poderia ter tido, se estivesse em alerta.
Praguejando, Tanis não pôde fazer mais nada a não ser ficar parado a olhar para a figura que
emergia das sombras. Estava sentada num pequeno pónei de pelagem longa nas pernas, que avançava
de cabeça baixa, como se tivesse vergonha do cavaleiro. O rosto desse cavaleiro tinha manchas
cinzentas, e a pele flácida pendia, criando dobras. Dois olhos cor-de-rosa olhavam para eles sob um
capacete de aspeto militar. O corpo, gordo e redondo, saía de entre as aberturas de uma armadura
barata e pretensiosa.
Um odor peculiar atingiu Tanis, que franziu o nariz, enojado. «Duende», registou o seu cérebro.
Largou a espada e empurrou Flint, mas, nesse momento, o anão soltou um tremendo espirro e caiu
sentado sobre o kender.
— Cavalo! — disse Flint, espirrando novamente.
— Atrás de ti — respondeu Tanis, baixinho.
Flint, ouvindo o tom de alerta na voz do amigo, levantou-se desajeitadamente. Tasslehoff fez o
mesmo, rapidamente.
O duende estava sentado no pónei com uma perna de cada lado, a observá-los com um olhar
desdenhoso e esticando os lábios da cara plana. Os olhos cor-de-rosa refletiam os últimos raios de
Sol.
— Estão a ver, rapazes — disse o duende, falando na Língua Comum com um forte sotaque —, o
tipo de idiotas com que temos de lidar aqui em Solace.
Ouviu-se uma gargalhada vinda de trás das árvores por trás do duende. Cinco guardas duendes,
vestindo uniformes toscos, avançaram. Posicionaram-se dos dois lados da montada do chefe.
— Ora bem… — O duende inclinou-se na sela. Tanis assistiu com uma espécie de fascínio
horrorizado quando a enorme barriga da criatura cobriu a ponta da sela. — Sou o Chefe de Poucos
Toede, líder das forças que mantêm Solace protegida dos elementos indesejáveis. Vocês não têm o
direito de andar pelos limites da cidade depois do pôr-do-sol. Estão presos — e o Chefe de Poucos
Toede inclinou-se, para falar com um duende que se encontrava perto.
— Traz-me o cajado de cristal azul, se o encontrares com eles — disse na sua estranha língua.
Tanis, Flint e Tasslehoff trocaram olhares, interrogando-se. Todos eles sabiam um pouco da língua
dos duendes, e Tas sabia mais do que os outros. Será que tinham ouvido bem? Um cajado de cristal
azul?
— Se resistirem — acrescentou o Chefe de Poucos Toede, voltando a falar na Língua Comum,
para dar mais ênfase —, mata-os.
Depois disto, puxou as rédeas, fez rodar a sua montada num único movimento, e galopou pelo
caminho abaixo, em direção à cidade.
— Duendes! Em Solace! Este novo Teocrata tem muita coisa a explicar! — disse Flint, levantando
a mão e puxando do machado de guerra. Firmou os pés com força no chão, balançando-se para a
frente e para trás até se sentir equilibrado. — Muito bem — anunciou —, vamos a isso.
— Aviso-vos que recuem — disse Tanis, atirando a capa por sobre um dos ombros e
desembainhando a espada. — Fizemos uma longa caminhada. Estamos cansados, com fome, e
atrasados para uma reunião com amigos que não vemos há muito tempo. Não temos nenhuma intenção
de sermos presos.
— Ou de sermos mortos — acrescentou Tasslehoff, que não tinha sacado nenhuma arma, mas
continuava a observar os duendes com interesse.
Um pouco surpreendidos, os duendes trocaram olhares nervosos. Um deles olhou sinistramente
para a estrada por onde o líder tinha desaparecido. Os duendes estavam acostumados a molestar
agricultores e vendedores ambulantes que viajavam para a pequena cidade, mas não a desafiar
guerreiros armados e obviamente bem treinados. Mas o ódio contra as outras raças de Krynn vinha
de longe. Desembainharam as espadas longas e curvas.
Flint deu um passo em frente, as mãos agarrando firmemente o cabo do machado.
— Só existe uma criatura que eu odeio mais do que um anão insolente — declarou — e essa
criatura é um duende!
O duende mergulhou contra Flint, esperando derrubá-lo. Flint rodopiou o machado com uma
precisão letal. A cabeça de um dos duendes rebolou pela poeira e o corpo estatelou-se no chão.
— Que andam vocês, seus nojentos, a fazer em Solace? — perguntou Tanis, aparando habilmente a
estocada desajeitada de outro duende. As espadas cruzaram-se e pararam por um momento; depois,
Tanis empurrou o duende para trás. — Trabalham para o Alto Teocrata?
— Teocrata? — O duende engasgou-se com a gargalhada que soltou. Brandindo a espada como um
louco, correu para Tanis. — Esse idiota? O nosso Chefe de Poucos trabalha para o… aaah! — A
criatura empalou-se contra a espada de Tanis. Grunhiu, e depois foi escorregando devagar até cair no
chão.
— Raios! — praguejou Tanis, olhando frustrado para o duende morto. — Idiota desajeitado! Não
queria matá-lo, só queria descobrir quem o contratou.
— Descobrirás quem nos contratou mais cedo do que gostarias! — rosnou outro duende, correndo
na direção do meio elfo distraído.
Tanis virou-se rapidamente e desarmou a criatura. Depois, deu-lhe um pontapé no estômago e o
duende dobrou-se.
Outro duende correu para Flint antes que o anão tivesse tempo de recuperar do anterior golpe letal.
Flint cambaleou para trás, tentando recuperar o equilíbrio.
Então, a voz aguda de Tasslehoff fez-se ouvir.
— Esta escória luta por qualquer um, Tanis. Dá-lhes carne de cão de vez em quando, e serão teus
para semp…
— Carne de cão! — rugiu o duende e afastou-se de Flint, enraivecido. — E que tal carne de
kender, seu vozinha esganiçada? — O duende correu na direção do aparentemente desarmado kender,
agitando os braços, tentando alcançar-lhe o pescoço com as mãos vermelho-púrpura. Tas, sempre
com a mesma expressão inocente de criança, meteu a mão no colete de lã, de onde tirou uma adaga
que arremessou com um único gesto. O duende levou as mãos ao peito e caiu com um gemido. Só
sobrou o som de pés a bater no chão, enquanto o último duende fugia a correr. A batalha terminara.
Tanis guardou a espada, fazendo caretas de nojo diante dos corpos fedorentos; o cheiro fazia
lembrar peixe podre. Flint limpou o sangue escuro de duende da lâmina do machado. Tas olhava com
desolação para o corpo do duende que tinha matado. Caíra de bruços, com a adaga debaixo dele.
— Eu tiro-a — ofereceu-se Tanis, preparando-se para fazer rebolar o corpo.
— Não. — Tas fez uma careta. — Já não a quero. Uma pessoa nunca mais se consegue livrar do
cheiro.
Tanis concordou com um aceno da cabeça. Flint prendeu novamente o machado e os três
continuaram o caminho.
As luzes de Solace ficavam mais fortes à medida que a escuridão aumentava. O cheiro do fumo de
madeira no ar frio da noite trazia-lhes pensamentos de comida, de calor e de segurança. Os
companheiros estugaram o passo. Não disseram mais nada durante bastante tempo, cada um deles
ouvindo o eco das palavras de Flint na sua mente: Duendes. Em Solace.
Por fim, e apesar disso, o irrequieto kender riu-se.
— Além do mais — disse Tas —, a adaga era de Flint!
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DRAGÕES DE UMA NOITE DE INVERNO

MARGARET WEIS & TRACY HICKMAN

Prepare-se para conhecer Dragonlance, o clássico da fantasia que influenciou gerações de


leitores com um novo mundo cheio de paixão e aventura.

Os nossos heróis venceram uma batalha, mas não venceram a guerra pelo destino de Krynn. Os
servos de Takhisis, a rainha dos Dragões, estão de volta e os povos de todas as nações precisam de
lutar para salvar os seus lares e manter a própria liberdade. Mas há muito que as raças estão
divididas pelo ódio e preconceito. Guerreiros elfos e cavaleiros humanos lutam entre si e a guerra
parece estar perdida antes de começar.
Forçados a separarem-se pelos acontecimentos, passará ainda algum tempo antes que os nossos
heróis se reencontrem. Perseguidos por estranhos sonhos e profecias sinistras, o grupo parte em
busca das misteriosas e lendárias orbe e lança do dragão.
Conseguirão, juntos, fazer frente às trevas? E será possível para um cavaleiro caído em desgraça,
enfrentar, à pálida luz do inverno, as forças de Takhisis?
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