A PRISÃO DO TEMPO
Autor
CLARK DARLTON
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Mil anos são como um dia... para os
terranos que vivem em outra dimensão!
— Dessa forma, parece que vencemos o espaço e o tempo. Há cem anos uma
viagem à Lua ainda constituiria uma verdadeira utopia; é um fato do qual não devemos
esquecer-nos. Apenas trinta anos depois disso, em mil novecentos e setenta e um, o
homem chegou à Lua, e assim teve início o progresso vertiginoso da navegação espacial,
que perdurou até agora, quando nos encontramos no ano de dois mil e quarenta e um.
Graças ao auxílio que recebemos dos arcônidas, os saltos pelo hiperespaço, que nos
levam a estrelas situadas a milhares de anos-luz da Terra, já não representam o menor
problema. Conseguimos vencer o espaço e, portanto, também o tempo. Ao menos era o
que se acreditava até pouco tempo atrás.
A pessoa que proferira estas palavras fez uma ligeira pausa, e fitou os seis homens
sentados do lado oposto da mesa comprida. Em seus olhos lia-se a tensão e a expectativa
que antecedem a ação iminente, cujos detalhes ainda não lhes eram conhecidos. Perry
Rhodan sabia que neles poderia confiar, pois cumpririam as tarefas que lhes fossem
confiadas, mesmo que isso parecesse impossível.
Havia mais dois homens, que estavam sentados ao lado de Rhodan. À sua direita,
Reginald Bell conseguira enfiar-se numa poltrona muito pequena para seu corpo, e seus
olhos azuis olhavam em torno com uma expressão amável. Os cabelos ruivos cortados à
escovinha continuavam bem penteados, do que se concluía que estava passando por um
dos raros períodos de paz de espírito, e que excepcionalmente não acontecera nada que o
aborrecesse.
À esquerda de Rhodan estava sentado Atlan, o imortal. Seus olhos, desligados do
tempo, brilhavam numa expressão profunda e pensativa; parecia que estava à procura de
algo que pudesse dar resposta a todas as indagações. E, ao que tudo indicava, ainda não o
havia encontrado.
— Infelizmente, conforme já sabem, estávamos enganados — prosseguiu Rhodan,
inclinando-se ligeiramente para a frente, a fim de fitar os seis homens. — É verdade que
vencemos o espaço e o tempo em nosso contínuo temporal, mas não nos lembrávamos de
que pudessem existir outros planos. Mais do que isso, esquecemo-nos de que os dois
planos temporais podem encontrar-se. E foi o que aconteceu.
Esperou até que cessasse a ligeira movimentação que se notou entre os ouvintes.
— Deparamo-nos com duas dimensões temporais prestes a colidirem. É claro que
um fenômeno deste tipo não pode deixar de produzir seus efeitos. Suponhamos que nosso
Universo seja um plano, semelhante ao que é formado pela lâmina espessa da Via Láctea.
O plano temporal dos desconhecidos é semelhante ao nosso, mas encontra-se em posição
inclinada em relação ao nosso e desloca-se lentamente em direção ao mesmo. Nos lugares
em que isso acontece, verifica-se o desaparecimento de toda vida orgânica; os seres
tornam-se invisíveis. Mundos inteiros foram despovoados dessa forma, e por isso não é
de se admirar que o computador de Árcon tenha solicitado nosso auxílio e concordado em
estabelecer uma sociedade. Árcon e o Império Solar vêem-se diante de um inimigo
comum, que ameaça despovoar toda a Via Láctea.
Atlan fez um movimento ligeiro. Ao notar o olhar indagador de Rhodan, disse:
— Pelo que sei, seus homens descobriram que no plano dos desconhecidos
prevalece uma dimensão temporal diferente da nossa. Em comparação com nosso plano,
o tempo passa muito devagar. Será esta a chave?
— A chave de quê?
Atlan sacudiu lentamente a cabeça.
— Não pergunte por enquanto, Rhodan. Só falarei quando minhas suposições se
confirmarem. Apenas gostaria de dar uma indicação. Sua equipe científica apurou que no
plano dos invisíveis o tempo corre setenta e duas mil vezes mais devagar que o nosso.
Portanto, para eles passaram-se apenas alguns meses desde que cheguei à Terra.
Rhodan lançou um olhar perscrutador para Atlan. Fazia mais de dez mil anos que o
imortal se encontrava na Terra. Onde pretendia chegar? Atlan não esclareceu este ponto.
Por enquanto.
Rhodan voltou a dirigir-se aos seis homens.
— Marcel Rous e Fellmer Lloyd conseguiram construir um aparelho que nos
permite penetrar no outro plano temporal sem nos privarmos da dimensão que nos é
própria. Em outras palavras: qualquer pessoa que penetre no mundo dos invisíveis
continua a viver como antes, mas tem de conformar-se com o fato de que a existência de
tudo que se encontra a seu redor se processa num ritmo setenta e duas mil vezes mais
lento.
“O aparelho foi batizado com o nome de gerador de campo de refração que funciona
como lente. Já construímos o protótipo, instalado numa gazela cujos geradores foram
reforçados a fim de fornecerem a energia suplementar. Além desse gerador de campo de
refração, possuímos outro dispositivo, que nos permite prever com boa margem de
segurança onde se verificará a próxima interseção dos dois planos temporais. Pelo que se
supõe, acontece uma superposição irregular das duas zonas temporais. Precisamos nos
certificar se nossa suposição é correta. Quero que os senhores façam essa verificação.”
Os seis homens fitaram-se. Em seus olhos Rhodan não viu pavor, mas apenas uma
alegre surpresa. Todos eles arriscariam a vida por Rhodan e pelo planeta Terra. Nos
últimos decênios tiveram muitas oportunidades de lutar contra inimigos reais e palpáveis
a fim de proteger a Terra. Mas desta vez a muralha do tempo interpunha-se entre eles e o
inimigo. Acontece que essa muralha possuía aberturas...
— A expedição será dirigida pelo Tenente Rous. É o único que já teve vários
contatos com o inimigo. Da expedição ainda participará um mutante, André Noir, o hipno
que, se necessário, poderá impor sua vontade aos desconhecidos. Talvez assim se torne
possível trazermos um prisioneiro ao nosso plano temporal. Além deste, participarão Fritz
Steiner, físico, químico e um dos construtores do gerador ampliado; Ivã Ragow, biólogo,
zoólogo e médico; Fred Harras, um técnico e mecânico altamente qualificado; e
finalmente Josua, nosso meteorólogo e metalúrgico africano. Bem, os senhores já se
conhecem. Partirão amanhã num cruzador pesado, que os deixará no setor espacial onde
fica o sistema solar a que se destinam. É tudo que lhes posso dizer por agora. Não
pretendo cancelar a folga que terão hoje de noite em Terrânia. Alguma pergunta?
O Tenente Marcel Rous, um francês baixo, moreno e vivaz, sacudiu vivamente a
cabeça. Sabia que não haveria perguntas, pois na manhã do dia seguinte — ainda hoje,
mais tarde — lhes diriam tudo que ainda não sabiam. Os outros cinco homens do grupo
também se mantiveram em silêncio.
Rhodan parecia satisfeito, como se não esperasse outra coisa.
— Fico-lhes muito grato. Encontramo-nos amanhã, às dez horas, meia hora antes da
partida. Tenente Rous, peço-lhe que fique mais um pouco. Os outros podem retirar-se. Se
permitirem que lhes dê um conselho, direi que não devem dormir tarde. Não sei se no
outro plano temporal terão tempo para dormir.
Noir, o hipno, sorriu enquanto se deslocava em direção à porta. Os outros quatro não
deram mostras de seus sentimentos; apenas se apressaram para sair. As noites em Terrânia
costumavam ser curtas. Queriam aproveitar a última delas, esperando naturalmente que
não fosse a última de sua vida.
Rhodan esperou que a porta se fechasse. Depois dirigiu-se a Rous.
— Amanhã não teremos tempo para discutir todos os detalhes; por isso vi-me
obrigado a pedir que ficasse mais um pouco. O senhor deverá ser informado sobre tudo
que acontecerá amanhã e sobre o que deverá fazer se a experiência não for bem sucedida,
já que é o chefe da expedição. Infelizmente não podemos afastar a hipótese do fracasso.
Não nos devemos esquecer de que o gerador de campo de refração ainda se encontra na
fase experimental. Foi construído com base nos dados que possuímos, e só podemos fazer
votos de que em sua construção não tenha ocorrido qualquer engano.
“Segundo os cálculos do computador positrônico, a próxima interseção deverá
ocorrer no sistema solar de Morag, e isso dentro de uma semana. Quando isso acontecer,
o senhor deverá encontrar-se nas imediações da área atingida, para acompanhar o ataque.
O senhor sabe qual é o risco: não há como voltar do outro plano temporal, a não ser que
se possa contar com o gerador de campo de refração. Se for atingido sem ele, estará
perdido, pois viverá setenta e duas mil vezes mais devagar que antes. Vários meses e até
anos se passarão antes que possa fazer qualquer movimento para libertar-se. Não se
esqueça que um segundo de nossa dimensão temporal corresponde a vinte horas no outro
plano.”
Atlan acenou lentamente com a cabeça, mas não disse nada.
Bell também se manteve em silêncio. Sentia-se satisfeito em não ter de participar da
expedição. Sempre estava pronto a enfrentar um inimigo que pudesse ver. Mas quando se
tratava de seres invisíveis, atemporais, vindos de outro nível de existência... bem, nesse
caso preferia estar longe.
— Preste atenção — prosseguiu Rhodan, fitando Rous. — Neste momento lhe darei
algumas informações que lhe poderão ser de importância vital...
***
Nos catálogos estelares, aquela estrela constava com o nome de Morag. Tratava-se
de um sol branco-amarelento, cujo espectro era quase idêntico ao do nosso astro rei. O
segundo planeta desse sol era do mesmo tamanho da Terra, tinha uma atmosfera de
oxigênio perfeitamente respirável e sua gravitação, um pouco superior à da Terra. Sua
distância do sol Morag era ligeiramente inferior à que separa o sol de nosso planeta,
motivo por que o clima era quente e seco, embora houvesse muitos oceanos. As áreas
litorâneas não tinham por que queixar-se da falta de chuvas. As gigantescas matas virgens
constituíam prova disso.
O nome do segundo planeta desse sol era Tats-Tor, e sua colonização fora iniciada
pelos arcônidas há pouco menos de três mil anos. Nele se encontravam matérias-primas
de elevado valor, motivo por que Tats-Tor se transformara num importante espaçoporto
para as naves do Império. No grande campo de concreto de Akonar, capital de Tats-Tor,
pousavam as naves de muitas raças. As ruas da cidade estavam repletas das criaturas mais
estranhas que a natureza fantasiosa havia criado no curso dos milênios nos mais diversos
mundos da Galáxia.
Os verdadeiros donos de Tats-Tor eram os novos arcônidas, nome que haviam dado
a si mesmos.
E esse nome não fora escolhido sem motivo, conforme Marcel Rous não demoraria
a constatar. Pelo aspecto exterior em nada se distinguiam dos arrogantes arcônidas da
“tróica” de Árcon, onde o maior computador positrônico do Universo governava um
império estelar. Além de orgulhosos, demonstravam uma enorme presunção em virtude
de sua origem e tratavam os membros de outras raças com uma afrontosa arrogância. Os
outros seres conformavam-se com esse tratamento, porque estavam interessados em
adquirir as preciosas mercadorias encontradas em Tats-Tor.
O cruzador pesado da classe Terra materializou-se a duas horas-luz de Tats-Tor e
desembarcou uma gazela. Tratava-se de uma pequena nave de reconhecimento de longo
curso, que não possuía o formato esférico; lembrava um disco achatado que media
dezoito metros de espessura, uns trinta e cinco metros de diâmetro.
Assim que a gazela se encontrava a distância segura e se deslocava em direção ao
planeta ainda distante, o cruzador da classe Terra voltou a desmaterializar-se.
Desapareceu pura e simplesmente, deixando para trás não apenas um espaço vazio,
mas uma sensação de terrível solidão.
Foi ao menos a sensação que o Tenente Rous teve quando subitamente fitou a tela
negra, interrompida apenas pelas estrelas cintilantes que davam vida a centenas de
planetas.
A hora tinha chegado. Estavam sós e dependiam exclusivamente das suas próprias
capacidades. Quando se aproximasse o terrível momento, ninguém poderia auxiliá-los.
E Rhodan havia dito que tinha cem por cento de certeza de que isso aconteceria
dentro de uma semana do planeta Terra.
Rous soltou um suspiro e corrigiu a rota pelos meios visuais. Preferiu não realizar
um salto de transição para ganhar tempo. Ganhar tempo para quê? Para preparar o
encontro com os novos arcônidas, cujo caráter, segundo se dizia, não primava pela
gentileza das maneiras.
— Bobagem! — disse em voz alta. Noir, que estava saindo da sala de rádio,
levantou os olhos.
— O que é bobagem, Marcel? Será nossa expedição?
— Como pode dizer uma coisa dessas, Noir? Na minha opinião trata-se de um
empreendimento indispensável, mesmo que esteja ligado a um risco considerável, isto é,
o de “encalharmos” no tempo. Estava aludindo apenas aos novos arcônidas. Pelo que
dizem, não são muito agradáveis.
— Já conseguimos lidar com muitos seres difíceis — disse o hipno a título de
consolação. — Se não quiserem ser amáveis, nós os obrigaremos.
— O senhor poderá influenciar alguns “exemplares”, mas não todos os habitantes do
planeta — ponderou Rous. — Aguardemos para descobrir o que os arrogantes acharão do
ataque iminente dos desconhecidos. Pautaremos nosso procedimento de acordo com isso.
— Onde pretende pousar?
— No espaçoporto de Akonar, capital do planeta. É lá que reside o administrador, ao
qual teremos de entregar a mensagem de Rhodan. Se existe alguém que pode dar-nos
algum apoio é ele.
Fritz Steiner entrou na sala de comando. Ouvira as últimas palavras. Falando no tom
exaltado que lhe era peculiar, disse:
— Que apoio poderia ser este? Se não estiverem dispostos a ajudar, poderão esperar
que o invisível os alcance e “devore”. Afinal, temos o GCR.
Rous arregalou os olhos.
— Temos o quê?
Steiner soltou uma estrondosa gargalhada.
— O GCR. São as iniciais de gerador de campo de reflexão.
— O senhor é muito inteligente — disse Rous em tom sarcástico, aborrecido por
não ter descoberto o sentido daquelas letras. — Tem certeza de que o aparelho
funcionará?
— O senhor não tem? Pois foi construído com base nos dados fornecidos pelo
senhor. De repente lhe surgiram dúvidas sobre sua eficiência?
— De forma alguma. Apenas acontece que costumo ser cauteloso, Steiner. Basta o
menor erro para que estejamos perdidos.
— Ninguém sabe — disse Steiner com uma estranha tranqüilidade — como são
cientificamente as coisas atrás da muralha do tempo. O outro plano temporal deve
oferecer as mesmas condições de vida do nosso. Se pudermos chegar a eles, o contrário
também deverá ser possível. Será que fui suficientemente claro?
— Um homem sem esperança é um homem sem futuro — disse Rous. — Sim, o
senhor foi suficientemente claro. Nossas concepções são idênticas.
Duas horas depois dessa discussão, pousaram no espaçoporto de Akonar. Receberam
o chamado do controle de vôo, que lhes forneceu as coordenadas exatas para o pouso. Ao
que parecia, a pessoa que os chamara não estava interessada em saber quem eles eram,
tanto que não perguntara de que planeta vinham. Dali se concluía com absoluta segurança
que em Tats-Tor havia um tráfego espacial intenso e pacífico.
Rous pediu que Steiner permanecesse na sala de comando, com o receptor ligado.
Rous e Noir procurariam o administrador, a fim de avisá-lo sobre o perigo iminente. Um
transmissor embutido no anel manteria Steiner ao par sobre aquilo que fosse falado. Se
houvesse algum imprevisto, poderia intervir.
Uma das características principais de um porto interestelar consiste no fato de que
ninguém se interessa pelo outro. Rous e Noir traziam sob os macacões os trajes de
combate arcônidas, que haviam recebido vários aperfeiçoamentos. Se surgisse algum
perigo poderiam tornar-se invisíveis, voar ou envolver-se num campo energético. Antes
de mais nada, porém, o traje possibilitaria uma fuga rápida, caso surgisse um ataque de
surpresa dos seres invisíveis.
Foram à cidade num veículo robotizado, que os deixou à frente do palácio do
administrador. Para isso não tiveram de fazer outra coisa senão dizer ao robô de direção o
lugar a que pretendiam chegar.
Mas agora teriam de enfrentar o primeiro controle.
O palácio do administrador ficava exatamente na área circular, situada entre o
espaçoporto e o bairro comercial. Dentro dessa zona não havia qualquer controle ou
obstáculo. Qualquer indivíduo poderia pousar sua nave no espaçoporto e andar pela
cidade, sem que ninguém perguntasse qual era seu nome ou planeta de origem. Só teria
de sujeitar-se ao controle quando saísse da área delimitada.
Dois arcônidas uniformizados, que Rous reconheceu pelo cabelo branco e pelos
olhos albinos avermelhados, encontravam-se junto à barreira de radiações, que só podia
ser atravessada num lugar. Evidentemente não seria difícil aos dois terranos atravessar
essa barreira por meio de um campo energético, que seus trajes poderiam criar num
instante, mas a finalidade de suas presenças no planeta não era a de ficar tapeando os
arcônidas. Por isso tiraram tranqüilamente do bolso as finas chapas de metal e as
entregaram aos arcônidas.
O maior deles pegou os elementos de identificação, que tinham validade em todo o
Império, enquanto o outro fitava atentamente os dois desconhecidos. Ao que parecia,
pretendia classificá-los. Talvez pensasse que eram descendentes dos saltadores.
— São do planeta Terra? — perguntou o arcônida que estava examinando as placas,
fitando Rous, que se encontrava mais próximo. — Não vejo os dados relativos à posição.
O documento não é válido.
— Poderíamos ter indicado dados falsos — disse Rous com a maior tranqüilidade.
— Nesse caso escaparíamos às perguntas que desabam sobre nós sempre que pousamos
num mundo subdesenvolvido. Os dados relativos à posição deixaram de ser inseridos
com o consentimento do regente. Será que isso não basta?
— Qualquer um pode alegar isso — respondeu o arcônida. — Antes de deixá-los
passar tenho de solicitar informações. O que pretendem fazer em Tats-Tor?
— Viemos para prevenir o administrador contra uma invasão que está iminente.
O arcônida lançou um olhar perplexo para Rous, enquanto o outro recuou um passo.
— Uma invasão? Será que o senhor ficou louco?
— Pareço um louco? — perguntou Rous. — Não pense que fizemos toda esta
viagem para engolir ofensas do senhor. Se acha que deve consultar antes de nos deixar
passar, ande depressa. Não temos tempo a perder.
A perplexidade do arcônida cedeu lugar à costumeira arrogância.
— Ouça, terrano; o senhor esperará tanto tempo quanto eu quiser. Sem nossa
permissão não entrará em Akonar. Ei, Rof — disse, dirigindo-se ao colega — chame a
central e televisione os dois passaportes.
Rous e Noir fitaram-se, sorriram ligeiramente e prepararam-se para uma longa
espera. Infelizmente não havia como evitar isso, mas depois não teriam mais a menor
dificuldade em passar por qualquer controle. Quando fossem conhecidos, tudo se tornaria
mais fácil.
O arcônida que ficou para trás voltou a dirigir-se a Rous.
— Então a posição de seu mundo não precisa constar do passaporte? Isso é muito
estranho. Trata-se de uma norma geral: todo viajante espacial deve portar um documento
que consigne o lugar onde pode ser encontrado o mundo a que pertence. Trata-se de uma
precaução cuja finalidade os senhores hão de compreender. Se houver um crime, será
mais fácil...
— Eu já lhe disse que a Terra é uma exceção. Nunca ouviu falar nesse planeta?
— Nunca — confessou o arcônida. — Quando foi colonizada a Terra? Os senhores
já não têm muita semelhança com os arcônidas.
As últimas palavras foram ditas com certo desprezo. Rous reprimiu a cólera;
permaneceu calmo. Provavelmente esse guarda nem sabia por que estava tão convencido
de si mesmo.
— Faz poucos meses que a Terra pertence ao Império — disse ao guarda, cujo rosto
começava a ficar pálido. — Aliás, nem é bem assim, pois ainda não consentimos em
sermos governados por um computador, se é que está interessado nisso. Mas para evitar
contratempos, consentimos em tornar-nos sócios. Nem sei por que lhe conto isto. Parece
que o senhor não entende nada da alta política.
O arcônida levou dois minutos para recuperar-se do susto. Lançou um olhar
desconfiado para os dois homens que aguardavam calmamente junto à barreira.
— Sócios? O que quer dizer com isso? No Império só existe uma raça dominante,
que é a dos arcônidas. Nunca ouvi falar na Terra.
— Isso não é de admirar — disse Rous em tom indiferente. — Sem dúvida também
não ouviu falar na outra raça, a qual vai atacar Tats-Tor. Então, qual é o problema? Será
que ainda teremos de esperar muito tempo?
O arcônida hesitou por um instante, mas depois deixou livre a passagem.
— Vamos logo. Acredito que poderão passar. Meu colega já está voltando. Então,
Rof, a central resolveu alguma coisa?
— Ninguém conhece a posição da Terra. A central acha que devemos deixar passar
os desconhecidos.
Rous pegou os passaportes e entregou o de Noir.
— É provável que nos próximos dias tenhamos de passar várias vezes por esta
barreira. Tomara que não seja sempre tão demorado como hoje. Seja como for, os
senhores apenas estão cumprindo seu dever.
Mais tarde, ao lembrar-se da cena, Rous se admiraria por ter perdido tanto tempo.
Teria sido facílimo impor sua vontade aos dois guardas. Mas, segundo dizia Rhodan, os
novos arcônidas se disporiam de modo voluntário a cooperar com eles.
Normalmente não seria fácil falar com o administrador do planeta, mas a central de
comando das barreiras da área fronteiriça já informara o comando sobre o incidente.
Assim que entraram no hall, dois arcônidas compenetrados que envergavam o uniforme
dos guardas palacianos aproximaram-se de Rous e Noir. Ao que parecia, por aqui ainda se
dava muito valor às tradições.
— São os terranos? — perguntou um deles.
Rous não se surpreendeu ao notar que a notícia de sua chegada se havia espalhado
tão depressa. Era quase certo que os novos arcônidas nunca tinham ouvido o nome de
Perry Rhodan, mas a simples idéia de que o Império pudesse ter um sócio bastaria para
aguçar suas curiosidades.
— Sim; somos nós.
— O administrador quer falar com os senhores. Queiram seguir-me.
Apesar do trato cortês, o funcionário não conseguiu ocultar seu orgulho e
arrogância. Agora, que caminhava à frente de Rous, este teve vontade de dar-lhe um
pontapé, mas lembrou-se em tempo das diretrizes que lhe haviam sido fornecidas. Não
usar de violência, não ser petulante, conservar sempre a paciência.
Em todos os lugares se viam empregados que não faziam nada, e lançavam olhares
curiosos para Rous e Noir. O hipno não pôde resistir à tentação de dar uma pequena
prova de sua capacidade, sem que ninguém o notasse.
Subitamente dois ou três funcionários fizeram meia-volta e saíram andando a passos
majestosos. Noir dera-lhes ordem de tirarem cinco dias de férias. Sabia que essa ordem
seria cumprida de qualquer maneira, mesmo que Akonar e o administrador ficassem de
pernas para o ar. Ninguém saberia explicar a atitude tomada por aqueles dois homens;
nem eles mesmos seriam capazes de dizer por que agiam dessa forma.
Um sorriso ligeiro surgiu no rosto de Rous, quando registrou o incidente. Fazia
votos de que Noir não se sentisse tentado a realizar outras experiências desse tipo.
Os dois arcônidas pararam ao chegarem ao fim do corredor.
— O administrador os espera atrás dessa porta. Peço-lhes que deixem aqui as armas
que porventura portem.
Não tinham armas.
A porta abriu-se, deixando livre a entrada.
Rous esperara encontrar um ambiente bastante luxuoso, mas teve uma surpresa
agradável. A sala, que não era muito grande, lembrava antes um laboratório eletrônico
que uma sala de audiências. As paredes estavam cobertas de telas e dos respectivos
controles. Os fios se reuniam embaixo do teto e desapareciam atrás das paredes. Havia
dois intercomunicadores pequenos colocados sobre mesas, junto com os respectivos
microfones. Era aqui que confluíam “os fios” de todo um planeta. Pelo que acreditava
Rous, dali mesmo o administrador poderia entrar em contato com qualquer ponto de Tats-
Tor.
O arcônida estava sentado atrás de outra mesa. Próximo, havia duas poltronas.
— Sejam bem-vindos — disse no mais puro arcônida imperial, acenando
ligeiramente com a cabeça. — Os guardas de fronteira me informaram sobre sua chegada,
mas devo confessar que nunca ouvi falar no planeta Terra.
— O senhor é administrador de um pacato planeta colonial — disse Rous, parando
perto de Noir, junto às poltronas. O arcônida não fez menção de levantar-se. — Se fosse
um saltador ou membro da frota de guerra do Império, sem dúvida já teria ouvido falar a
nosso respeito.
— O que quer dizer com isso? — o administrador lembrou-se dos seus deveres de
anfitrião e apontou para as poltronas. — Façam o favor de sentar.
Rous sentou. Noir também. Seus olhares se cruzaram.
— O que quero dizer é que já tivemos um conflito violento com Árcon, mas
atualmente a situação está pacificada. Hoje somos sócios do regente, em pé de igualdade.
O administrador do Império Solar, cuja sede é o planeta Terra, celebrou um acordo com
seu regente supremo, a fim de lutar contra um inimigo poderoso. É por isso que viemos
para cá.
— Por que vieram justamente para Tats-Tor? O senhor mesmo acaba de dizer que
este planeta é pacato e não tem nada a ver com as guerras travadas pelo Império.
— É verdade. Acontece que o homem mais pacato não pode viver em paz se o mau
vizinho não deixa. Ao que parece, os invisíveis são os maus vizinhos.
— Os invisíveis? Não sei a respeito de que está falando.
Rous respirou profundamente e resolveu ser breve. Sabia que, apesar da cortesia do
administrador, seria mais fácil lidar com um inimigo que com esse arcônida manhoso.
— Nosso Universo está sendo cortado, cruzado por uma dimensão estranha. Os
conceitos de tempo que prevalecem nessa dimensão são diferentes dos nossos. Nos
pontos em que as duas dimensões se encontram, a matéria viva e, com ela, toda vida
animal desaparece de nosso campo de visão. Até hoje não conseguimos recuperar um
único dos seres desaparecidos.
— Isso é muito interessante — interrompeu o arcônida sem a menor comoção.
— Infelizmente ainda não percebi indício desse fenômeno.
— Isso não é de admirar — explicou Rous. — O regente preferiu não alarmar o
Império. Ainda acontece que até pouco tempo atrás não era possível prever um ataque
iminente. Quando os desconhecidos atacavam, não havia nada que se pudesse fazer.
— Por que veio justamente para Tats-Tor a fim de revelar o segredo do regente?
— Porque, segundo nossos cálculos, Tats-Tor será o próximo planeta a ser atingido
pelos invisíveis.
O administrador lançou um olhar de incredulidade para Rous, mas não demonstrou
qualquer comoção ou sequer um interesse especial.
— Será? — perguntou, estreitando os olhos. — Quer dizer que veio para nos
prevenir?
— Exatamente.
— Por quê? O que pretende receber em troca? Para que servirá a advertência se não
há nada que se possa fazer?
As perguntas deixaram Rous decepcionado.
— Pretendemos descobrir uma arma para deter os seres da outra dimensão temporal.
Foi este o principal motivo de nossa vinda para Tats-Tor. Queremos realizar uma
experiência com um novo invento.
Mas para isso precisamos de sua permissão. Acho que o senhor não terá nenhuma
objeção se tentarmos...
— Em hipótese alguma a experiência poderá ser realizada em Akonar — disse o
administrador. — Não posso permitir que vidas humanas sejam colocadas em perigo.
Façam suas experiências onde quiserem, menos na capital.
— Não fazemos questão de realizar a experiência aqui. Antes de mais nada, teremos
de considerar os indícios da aproximação da frente inimiga. Não sei se teremos
possibilidade de salvar seu mundo da destruição, mas queremos colher algumas
experiências. O senhor compreende?
— Só compreendo uma coisa — disse o arcônida, reclinando-se na poltrona. — Os
senhores querem aproveitar um perigo que, segundo dizem, se aproxima de nosso mundo,
para colher vantagens. Provavelmente, têm intenções inconfessáveis. Sinto muito,
senhores terranos, mas gostaria que abandonassem nosso mundo o mais cedo possível.
Digamos antes do pôr do sol. Combinado?
Rous não fez menção de levantar-se. Subitamente viu-se em seus olhos um brilho
frio, que recomendava cautela. Colocou calmamente ambas as mãos sobre a mesa. Essa
calma não combinava com sua personalidade, pois todos sabiam que aquele francês
moreno era um homem Impulsivo.
— Quer dizer que não acredita no que acabo de dizer? — perguntou num tom que
quase chegava a ser amável.
— Não quero que o senhor crie qualquer agitação — disse o arcônida, esquivando-
se à pergunta direta que acabara de ser formulada. — Nosso mundo nunca foi atacado, e
se isso acontecer algum dia, gozaremos da proteção da frota de guerra do Império.
Bastará um pedido de socorro...
— Desta vez não — esclareceu Rous em tom tranqüilo. — O senhor sofrerá uma
decepção amarga, pois o regente não luta contra os invisíveis vindos de outra dimensão
temporal. Todos os mundos que já foram atacados por eles ficaram vazios e abandonados.
Até mesmo os insetos desapareceram. Não existe mais qualquer forma de vida animal.
O arcônida empalideceu. Os olhos vermelhos pareciam brasas em meio ao rosto
pálido.
— O senhor está mentindo, terrano! Nosso regente não tem medo de qualquer
inimigo. Ainda descobrirei quais são as verdadeiras intenções dos senhores.
Rous levantou-se abruptamente.
— O senhor pode negar-nos apoio, mas não acredita que possa proibir nossa
permanência em Tats-Tor. Portanto, não se dê ao incômodo de dizer quando devemos
partir. Quanto ao mais, não deixaremos de avisá-lo assim que surgirem indícios de que a
invasão tenha começado.
O administrador retribuiu o olhar de Rous com uma expressão fria e arrogante.
— Dispenso seu aviso. Se realmente houver um ataque, saberei o que fazer. É claro
que não posso proibir sua permanência na área do espaçoporto, mas vejo-me obrigado a
pedir encarecidamente que não alarmem a população de Akonar com suas histórias
fantasiosas. Ficaria muito grato se pudessem despedir-se.
Noir também se levantara. Falando em inglês, perguntou:
— Não quer que lhe aplique um “tratamento”, Marcel? Poderia convencê-lo a
ceder-nos alguns colaboradores.
— Isso seria contrário às instruções de Rhodan, André. Se essa gente arrogante não
quiser ajuda, que se arranjem como puderem.
Dirigindo-se ao administrador, Rous prosseguiu em arcônida:
— Seria altamente recomendável se quisesse manter sua estação de rádio em
recepção, na faixa normal. Passe bem, arcônida.
Absteve-se de propósito de citar o titulo do administrador. Este estremeceu. Isto
provava que compreendera a ofensa que Rous quis colocar em suas palavras. Sem esperar
resposta, os dois homens saíram da sala e voltaram às suas naves.
Ninguém procurou impedi-los.
***
O russo Ivã Ragow era um daqueles homens que pensam que todo e qualquer
indivíduo é um tipo pacato. É claro que essa idéia tinha sua origem no desejo de não ser
incomodado e poder viver em paz. Além disso, tal qualidade parecia corresponder à sua
especialidade. Uma pessoa que, além de lidar constantemente com plantas e animais,
exerce as funções de médico, forçosamente há de acreditar na convivência pacífica das
mais diversas criaturas.
Caminhando tranqüilamente pelas ruas de tráfego intenso da cidade de Akonar,
Ragow realizava estudos por conta própria. Rous não fizera nenhuma objeção a que fosse
dar umas voltas pela capital. O minúsculo radiotransmissor praticamente invisível, que os
swoons haviam montado num anel, mantinha-o em contato ininterrupto com a gazela. O
operador de rádio de plantão, que naquele instante era Fred Harras, mantinha-o
constantemente sob controle.
Ragow desviou-se cuidadosamente de um ser disforme, que caminhava à sua frente,
dentro de sua “atmosfera” especial, encerrada num traje espacial. Passou à frente do
estranho ser e teve o cuidado de não dar mostras muito evidente de sua curiosidade. Mas
não pôde resistir à tentação de lançar-lhe um olhar de esguelha. Nunca vira uma coisa
dessas, embora tivesse andado por inúmeros mundos. No capacete transparente,
balançava a “atmosfera” da estranha criatura, consistente num líquido oleoso cuja
composição Ragow não conhecia. Só agora viu que aquele ser possuía guelras na parte
lateral da cabeça.
Infelizmente teve de olhar para o lado oposto, a fim de não chamar a atenção. Só um
provinciano costumava olhar insistentemente para qualquer criatura estranha, mostrando
admiração por seu aspecto e achando que ele mesmo era a criatura mais perfeita deste
mundo.
Ragow manteve-se na principal artéria comercial, que ficava junto ao espaçoporto.
Era ali que os comerciantes e visitantes moravam em grandes hotéis, cujos letreiros
brilhavam à luz do sol. Não entendeu uma única palavra da confusão de línguas que
ouvia em torno de si; naquele instante lamentava-se de não ser telepata.
Parou diante de uma das numerosas lojas. O vendedor não era arcônida, como se
poderia supor. Um saltador de barbicha apregoava em voz alta e insistente as mercadorias
que tinha para vender; tratava-se de souvenirs de todos os pontos da Galáxia.
Ragow aproximou-se e examinou os objetos expostos. Felizmente a descrição fora
feita em língua arcônida, de forma que não teve necessidade de formular perguntas
inconvenientes que atraíssem a atenção do saltador para sua pessoa. Este mantinha-se
muito ocupado, fazendo ofertas tentadoras aos transeuntes.
Havia mugglis empalhados; tratava-se de seres vindos do terceiro planeta do sol
Thorakl, situado a dois mil anos-luz. Pareciam lagartos e tinham três caudas. Se a
descrição dada pelo saltador era correta, a do centro servia de antena transmissora. E,
pelo que se dizia, este transmissor orgânico continuava a funcionar, embora o animal
estivesse morto.
Ainda havia a pedra brilhante e colorida, vinda do planeta Temporalis, situado no
centro da Galáxia. Bastava colocá-la num projetor recentemente inventado para fazer
reviver o passado. A pedra emitia raios que podiam ser projetados numa tela eletrônica,
que reproduzia os acontecimentos desenrolados há vários milênios. Aquela pedra
recolhera todas as impressões óticas e as armazenara como se fosse uma câmara
automática.
Ragow refletia sobre se convinha adquirir a pedra, quando viu um pequeno objeto
que ficava na terceira fila.
Quase ficou sem fôlego.
O que viu diante de si era uma simples navalha, do tipo que costumava ser usado há
um século atrás. E o bilhete que se encontrava junto à mesma dizia mais ou menos o
seguinte: “Instrumento de degola do planeta Terra, cuja posição é desconhecida. Os
terranos usam-no para livrar-se das esposas, quando querem arranjar outra. Seu uso é
muito disseminado. Trata-se de precioso documento, que revela as características de
uma estranha cultura.”
Ragow ficou sem saber se devia rir ou chorar. O exagero enorme da descrição o
fazia duvidar da veracidade das indicações relativas aos outros objetos, mas nem por isso
ficou sabendo como o dono da loja conseguira uma navalha terrana.
“Deveria perguntar?” indagou-se mentalmente.
Quando ia formular a pergunta, viu dois homens a seu lado. Eram arcônidas. E o
uniforme revelava serem policiais ou soldados.
— O senhor é um dos terranos que vieram naquela pequena nave achatada? —
perguntou um deles com a arrogância do “grande” funcionário cônscio do poder que
exerce sobre o simples mortal. — Faça o favor de seguir-nos.
Ragow não estava disposto a deixar que o levassem sem mais nem menos. Livrou-se
da mão que o segurava.
— Sou terrano, mas nem por isso o senhor tem o direito de me prender em plena
rua. O que deseja de mim?
— Essa informação lhe será dada pelo administrador — respondeu o arcônida. —
Quer vir por bem, ou teremos de forçá-lo? Depois da entrevista poderá voltar à sua nave.
Ragow lembrou-se de seu traje de combate. Devia tornar-se invisível e deixar
aqueles homens para trás, numa perplexidade total? Ou sairia voando? Não; com isso
apenas atrairia as atenções sobre si, fato que em nada facilitaria o cumprimento de sua
missão. Além disso, talvez seria interessante descobrir o que o administrador pretendia
deles. Ainda há três dias mostrara-se extremamente reservado diante de Rous e Noir.
— Irei, mas só se me deixarem caminhar à vontade — disse depois de algum tempo,
após lançar mais um olhar sobre a ignominiosa navalha exposta na loja do saltador.
Oportunamente cuidaria disso. — Caminhem à frente; eu os seguirei.
Os dois fizeram o que Ragow pedira. Provavelmente haviam recebido ordens
terminantes de não recorrer à violência. Ragow deixou que se afastassem um pouco. A
seguir, colocou a mão à frente da boca e cochichou:
— Ei, Harras! Ouviu? Tenho de ir ao gabinete do administrador. Avise Rous.
— Já foi avisado, Ragow. Ele quer que o senhor os acompanhe. Não se preocupe;
cuidaremos do senhor. Se surgir qualquer perigo, apareceremos para levá-lo.
— Quando chegar a hora, não percam tempo — pediu Ragow e seguiu os arcônidas.
Desta vez, não houve qualquer problema junto ao posto de controle. Em dez
minutos, Ragow viu-se à frente do administrador.
Pelo que Rous lhe dissera, pensara que fosse diferente: mais orgulhoso e arrogante.
Mas, ao que parecia, por ora o presunçoso funcionário não tinha tempo para palhaçadas.
Em seus olhos vermelhos brilhavam vários sentimentos, principalmente a insegurança.
— Faça o favor de sentar-se, terrano — disse com a voz rouca e numa calma
forçada. — Desejava falar com os dois terranos, que me procuraram há dois dias.
Acontece que apenas o senhor foi encontrado. Já está informado sobre o assunto que os
trouxe para cá.
— Para Tats-Tor?
— Isso mesmo.
— Estou informado sobre o ataque iminente dos invisíveis, se é isso que quer dizer.
— E esse ataque a que está aludindo se manifesta através do desaparecimento de
todos os seres vivos?
— Exatamente.
O administrador fitou os olhos de Ragow.
— Tenho certeza de não se tratar de um ataque de criaturas invisíveis ou
desconhecidas, mas de uma trama diabólica dos terranos, cuja finalidade ainda não
consegui descobrir. Se não fosse assim, seria impossível prever com tamanha exatidão o
tempo em que ocorre o fenômeno. Isso não lhe parece lógico?
— Não acho, administrador — disse o russo, sacudindo a cabeça e lançando um
olhar atento para o equipamento técnico da sala. — Por que iríamos ter todo esse trabalho
para assustá-los?
— É o que eu gostaria de saber — reconheceu o arcônida, que recuperou um pouco
de sua costumeira petulância. — Pelo menos já vejo que realmente pretendem cumprir
suas ameaças.
Ragow já não compreendia mais nada. Ainda pensava naquela navalha maluca que
vira na loja do saltador, e teve dificuldade em acompanhar o raciocínio do administrador,
que só dizia tolices.
— Que ameaça? — perguntou em tom tranqüilo.
O administrador respirou profundamente e disse:
— Há meia hora desapareceram todos os habitantes de uma cidade de tamanho
médio, a quinhentos quilômetros ao leste da capital. Não ficou nenhum ser vivo. Pelo que
dizem, até os peixes desapareceram dos rios.
Ragow parecia despertar de um sonho.
— Está começando! — exclamou e levantou a mão, para dizer em voz alta em
direção ao anel: — Harras, a frente do tempo começou a avançar. Avise imediatamente o
Tenente Rous, e venham buscar-me. Ou preferem que voe?
— O que é isso? — perguntou o administrador, apontando para o anel que Ragow
trazia no dedo.
Acontece que o russo já estava saturado daquela desconfiança.
— Isto — disse em tom condescendente — é a arma milagrosa com a qual fiz
desaparecer sua cidade miserável. Se não calar a boca e se insistir em não nos dar apoio,
o senhor será o próximo a ser tragado pela torrente do tempo. Compreendeu?
O administrador manteve-se num silêncio obstinado. Fez um gesto de mão, dando a
entender que Ragow tinha permissão para retirar-se.
Mal se viu a sós, o arcônida chamou alguns dos seus oficiais e deu-lhes algumas
ordens inequívocas.
— Está acontecendo mais cedo do que esperávamos — constatou Rous um tanto
preocupado, assim que todos estavam reunidos na gazela, onde Ragow havia apresentado
um minucioso relato. — Na minha opinião só pode ser um precursor da frente
propriamente dita, ou seja, de uma espécie de abaulamento da área de superposição.
— Nesse caso a frente é assimétrica — constatou Noir. — É o que o chefe queria
saber.
— Por enquanto nada está provado — advertiu Rous, para evitar conclusões
precipitadas. — Devemos examinar o local dos acontecimentos e aguardar novos ataques.
— Tenho minhas dúvidas de que realmente se trate de ataques — disse Ragow de
repente. — Pelo contrário; tenho certeza de que os desconhecidos invisíveis, que vivem
em outra dimensão temporal, nem sabem o que estão fazendo por aqui. Provavelmente
não têm meios de impedi-lo.
Rous fez um gesto afirmativo.
— Uma das nossas tarefas consiste justamente em verificar este ponto. Sugiro que
decolemos imediatamente para darmos uma olhada na cidade despovoada.
Não se deram ao trabalho de cumprir qualquer formalidade. A nave de
reconhecimento de Rhodan decolou sem prévio aviso e subiu rapidamente,
desaparecendo dentro de poucos segundos no azul do céu.
Rous, que pilotava a nave, nem chegou a ver os rostos espantados dos soldados que
marchavam pelo campo de pouso e haviam recebido ordens de deter os terranos e
apreender sua nave. Marcel dirigiu a gazela para o leste e só desceu quando viu lá
embaixo a cidade a que se destinavam. O medidor de radiações montado na gazela entrou
em funcionamento, marcando num mapa os limites da área de superposição. Toda e
qualquer matéria inorgânica que tivesse permanecido no outro plano temporal, mesmo
por um tempo insignificante, envelhecera vários milênios. A decomposição radiativa de
certos elementos representava prova inequívoca desse fato. Por isso era fácil delimitar a
zona de influência.
— O formato é elíptico — disse Fritz Steiner, técnico responsável por essa parte da
operação. — Parece que a área de superposição só atingiu o planeta de raspão. Da
próxima vez será mais extensa.
Pousaram na periferia da cidade e examinaram-na ligeiramente. Não havia nenhum
ser vivo. Até os insetos, tão abundantes em toda parte, haviam desaparecido.
Subitamente Fred Harras, operador de rádio que estava de plantão, gritou:
— O administrador diz que somos responsáveis pelo fenômeno e colocou suas
forças em estado de prontidão. A polícia de I Akonar recebeu ordens de prender-nos
imediatamente, recorrendo à força caso isso se torne necessário. A operação de busca já
foi iniciada.
Rous fitou as casas desertas com os olhos semicerrados.
— As suposições de Rhodan se confirmaram. A decadência e arrogância dos
arcônidas é tamanha que só confiam em suas experiências. Não dão a menor importância
às palavras de outras raças. Pois bem; colherão suas experiências. Apenas receio que não
poderão fazer muita coisa com elas. Não irão nem sentir que de repente saíram de nossa
dimensão, ingressando numa outra...
Steiner não demonstrou tanta sensibilidade pelo destino dos arcônidas.
— Devemos estar preparados — disse em tom de advertência. — Um dos próximos
ataques, por enquanto poderemos usar esta expressão menos exata, ocorrerá a uns cem
quilômetros de Akonar, nesta mesma direção. Vamos pousar nessa área para aguardar os
acontecimentos? Acho que não adiantará voltar à capital. Isso só nos daria
aborrecimentos.
Rous soltou um suspiro.
— Nossa tarefa antes de tudo! Por enquanto não temos meios de ajudar os
habitantes deste mundo.
Fez um sinal para Steiner e colocou a mão sobre o acelerador.
— Vamos aguardar no deserto, perto de Akonar. Ainda bem que por lá não existe
mata virgem. Em compensação, se não me engano, há manadas. Bem que gostaria de
comer um bife fresco.
— Concordo, enquanto esse bife não envelhecer dez mil anos na outra dimensão
temporal — disse Steiner e voltou à sala de máquinas, onde os complicados instrumentos
aguardavam o momento de serem postos a funcionar.
2
***
No cume da montanha, o ar estava tão imóvel como na planície. Mas era menos
transparente e mais quente. Não se enxergava além de dez metros. As “correrias” foram
inúteis, pois não tiveram uma visão ampla. Parecia que o cume achatado da montanha
estava envolto em algodão.
— Gostaria de saber de onde vem este calor — disse Noir, sacudindo a cabeça. —
Será que ninguém pode dar uma explicação razoável.
— Eu posso.
Steiner, que proferira estas palavras, abaixou-se e colocou a mão sobre a rocha nua,
mas logo a retirou. Seu rosto exprimiu o espanto. Voltou a levantar.
— Então? — perguntou Rous, pedindo que desse o resultado da experiência em
palavras inteligíveis. — O que é?
— O solo está quente — começou Steiner em tom inseguro. — Quase chego a
acreditar que há um fogo aceso sob a rocha.
Harras começou a rir. Steiner virou-se furioso.
— Não sei o que há de engraçado nisso. Não seria possível que por aqui existisse
um vulcão ou coisa semelhante?
— Ora, o fogo! — disse Harras com um sorriso. — Gostaria de saber qual seria o
aspecto do fogo neste lugar. Uma chama leva algum tempo para arder. O que aconteceria
aqui? Veríamos uma chama congelada?
— É justamente por isso que emite o mesmo calor — disse Steiner, apontando para
o solo. — O calor teve tempo para propagar-se pela rocha; talvez durante milênios.
Rous examinou a encosta do lado oposto.
— Não sei, mas é possível que o lugar em que nos encontramos não seja o ponto
mais elevado. Suas palavras me deram uma idéia, Steiner. Se isto for um vulcão, talvez
estejamos na beira de uma cratera. Isso explicaria o calor.
Harras, que se adiantara um pouco, gritou de repente:
— Venham cá, amigos. Vocês ficarão admirados. Tenham cuidado para não
escorregar.
Steiner e Rous logo se puseram em movimento, enquanto Ragow e Noir ainda
esperavam. Não tinham muita pressa nesse mundo em que o tempo passava devagar.
Rous sentiu que o calor aumentava. Quase chegou a ter a impressão de estar sendo
atingido diretamente por uma fonte de calor. Depois viu através da neblina que Harras
fazia um sinal para ele.
— A cratera propriamente dita fica aqui — gritou o técnico e apontou para uma
abertura vermelha e incandescente que havia a seus pés. — Olhe a lava.
Parecia uma massa sólida e incandescente, que não se movia. Mas as ondas
enrijecidas provavam que a massa estava subindo e que num tempo imprevisível atingiria
a beira da cratera.
— Está aí a fonte de calor — disse Steiner. — Minha suposição foi correta; era o
que eu queria saber. Quem sabe com que velocidade se processa a irrupção vulcânica a
que estamos assistindo?
— Uma irrupção vulcânica?! — Rous parecia surpreso.
Steiner apontou para a lava.
— O que poderia ser senão isso? A lava já está subindo; tenho certeza absoluta.
Chegará à beira da cratera dentro de dois ou três anos, talvez antes. De qualquer maneira
não corremos o menor perigo. Quando o fogo líquido começar a correr pelo vale, ainda
haverá muito tempo para nos colocarmos em segurança. Mas é bastante duvidoso que a
mesma coisa aconteça com os seres que vivem na mesma dimensão temporal do vulcão.
— Uma irrupção vulcânica! — disse Ragow em tom de admiração. — E estamos
parados, assistindo a tudo. Isto até parece mais espantoso que aquela história das asas do
inseto.
Noir pigarreou.
— Para dizer a verdade, o calor está demais. Provavelmente não poderemos
prosseguir na mesma direção, pois ninguém sabe qual é a largura da cratera. O que vamos
fazer? Voltar?
— Não vejo outra alternativa — disse Rous.
— Se quisermos caminhar em direção à cidade de Akonar, teremos de escolher
outro caminho — sugeriu Ragow.
— Nunca encontraremos a cidade propriamente dita, porque permaneceu na outra
dimensão temporal, ou seja, na nossa. Mas encontraremos seus habitantes. Talvez
possamos dar uma lição nesse administrador arrogante — comentou Steiner.
— Isso não adiantará nada, pois levará três dias para sentir a bofetada — disse
Harras em tom irônico.
Rous constatou que o motivo da visibilidade reduzida eram os vapores que enchiam
o ar. Lembrou-se de que estes talvez pudessem ser venenosos.
— Vamos voltar — anunciou, pondo-se a caminho. — Não adianta expormo-nos a
um perigo desconhecido. Lá na planície o ar é mais puro.
Quando estavam a meio caminho, Ragow subitamente soltou um grito. Levantou o
braço e, de lábios trêmulos, apontou para a encosta rochosa que ficava à sua esquerda. No
início não viram o que lhe chamara a atenção, pois nada se movia. Mas deveria haver
qualquer coisa que se movesse neste mundo louco?
— Olhem o animal! — balbuciou Ragow em tom nervoso. — Não estão vendo?
Rous forçou a vista, mas apenas viu blocos de pedra imóveis de vários tamanhos.
“Será que Ragow estava aludindo aos mesmos?”, pensou o tenente interrogando-se.
O russo baixou o braço e inclinou a cabeça para escutar melhor. Havia alguma coisa
no ar; era um ruído estranho. Parecia um trovejar surdo. Mas o raio, que continuava
imóvel no céu, ficava muito longe.
Logo o som não poderia ter percorrido a distância, pois não ultrapassava a
velocidade de dezessete metros por segundo. Mas o ruído surdo continuava no ar.
— ...uuuum... uuuum... Ragow disse:
— Está ouvindo, tenente? Escutei no instante em que vi os animais.
— Que animais? — perguntou Steiner. — Não vejo nenhum animal.
— Estão parados, ou melhor, rastejando à frente dessas cavernas. Nunca vi um ser
desse tipo. Serão lagartas?
— Lagartas? — perguntou Rous em tom impaciente. — Não vejo nenhuma lagarta.
E a distância é muito grande...
— Eu disse que são como lagartas — comentou Ragow com a voz tranqüila. — Mas
são muito maiores. Vejam aquelas pedras à frente das cavernas!
As cavernas abertas na encosta rochosa pareciam bocas. Degraus irregulares de
pedra levavam às mesmas. Eram trilhas estreitas, pisadas por inúmeros pés. E lá embaixo,
no início das trilhas, estavam as pedras... quer dizer, as lagartas...
Todos viram. Aqueles objetos que acreditavam serem pedras tinham o mesmo
formato. Pareciam esculpidas na rocha. Jaziam imóveis, isolados e em grupos, e não se
moviam.
No ar ouvia-se o ruído ininterrupto.
— ...uuuum... uuuum...
— Não há dúvida de que são seres vivos que habitam essas cavernas — disse
Ragow e caminhou resolutamente na direção do estranho grupo. — Na dimensão
temporal normal nunca vi seres desse tipo. Por isso é altamente provável que se trate de
habitantes deste plano temporal. Talvez sejam os grandes desconhecidos!
Rous já se recuperara do espanto. Seguiu o sábio, que se encontrava bem no meio
dos seres vivos petrificados e os estudava atentamente. Os outros três homens também se
aproximaram.
Realmente pareciam lagartas enormemente aumentadas. As pequenas asas davam
provas de que aqueles animais sabiam voar, ou ao menos já haviam sido capazes disso.
Nenhuma lagarta tinha menos de metro e meio. Em vez dos pêlos finos, possuíam um
casco blindado marrom-escuro, que envolvia todo o corpo. Pouco abaixo da cabeça
redonda ficavam duas tenazes finas, que se distinguiam perfeitamente das pernas
dispostas ao longo do “tronco”. Segundo tudo indicava, esses ferrões só serviam à
locomoção.
— ...uuuum... uuuum...
Enquanto os homens se aproximavam dos animais, os estranhos sons tornaram-se
Sinais breves e agudos. Mas assim que a expedição parou, voltaram às características
interiores.
Seria uma distorção sonora?
Ao perceber a indagação que Steiner pretendia formular, Rous fez um gesto
afirmativo.
— É isso mesmo. Estes animais emitem sons que, em virtude da distensão do
tempo, chegam muito lentamente ao nosso ouvido. Se os gravássemos em fita e os
reproduzíssemos com a velocidade aumentada em setenta e duas mil vezes,
perceberíamos os sons originais.
Ragow acenou com a cabeça.
— É verdade, tenente. Os animais se comunicam entre si. Por isso não são animais
na verdadeira acepção da palavra, pois possuem certo grau de inteligência. Talvez mais
do que desconfiamos.
— Quem sabe se não são as inteligências máximas da outra dimensão temporal?
— perguntou Rous.
— É possível — disse Ragow, abaixando-se para examinar uma das lagartas.
— Talvez descubramos um dia.
Rous esteve a ponto de responder, mas nesse instante ouviu o zumbido fino do
receptor embutido no anel. Josua estava chamando.
Ligou apressadamente o aparelho.
— Pois não, Josua. Aqui fala Rous. O que houve?
A voz do africano parecia insegura.
— Não sei se realmente aconteceu alguma coisa, tenente, mas julguei conveniente
avisá-lo.
— Diga!
— Há um objeto no ar, acima de minha cabeça. Parece uma nave, deve ter uns dez
metros de comprimento e seu formato é o de um torpedo. Deve ter saído das nuvens. Está
descendo lentamente, como se quisesse pousar.
Os outros participantes da expedição aguçaram o ouvido. Rous logo percebeu o
ponto que despertara sua atenção e exprimiu-o por meio de palavras.
— Consegue ver o movimento da nave, Josua?
— Até vejo muito bem, tenente. Acontece que se move muito devagar. Deverá
demorar umas duas horas para pousar — se é que vai pousar.
— Vamos voltar — prometeu Rous, lançando um olhar triste para as lagartas
petrificadas. — O pouso de uma nave torna-se um fato que justifica plenamente a
suspensão das investigações que estamos realizando.
— Se houver alguma novidade, avisarei — disse Josua.
Dali a alguns segundos, Ragow sacudiu a cabeça; parecia contrariado.
— Será que devemos ignorar nosso achado? Talvez possamos levar uma das
lagartas...
— O senhor sabe perfeitamente que isso é impossível, ao menos nas circunstâncias
atuais e sem outros recursos. Para deslocar uma dessas lagartas, o senhor precisaria da
mesma energia que seria necessária para conferir a um ser humano que se encontrasse na
Terra uma aceleração de setenta quilômetros por segundo. Seria mais fácil atirar um
homem às nuvens terrestres, apenas com o auxílio das mãos, que levantar um destes
animais a uma altura de um metro. A não ser que tenha muito tempo, Acho que gastaria
umas vinte horas por metro.
Ragow parecia desesperado.
— Aos poucos começo a compreender a importância do tempo. Apenas receio que,
quando compreenda de vez, acabe enlouquecendo.
Rous lançou mais um olhar para as lagartas e prestou atenção ao estranho som de
suas vozes, que foi penetrando lentamente em seus ouvidos.
— Mais tarde daremos outro olhar nos “uuuns”. Por enquanto vamos...
— Daremos um olhar em quem? — perguntou Steiner em tom de surpresa.
— Eu os chamo de “uuuns”, porque é assim que soam suas vozes — explicou Rous.
— Agora vamos andando, para dar uma olhada na nave desconhecida que pretende
pousar nas proximidades de nossa fresta de luz.
Em parte aliviados, em parte contrariados, os participantes da expedição puseram-se
em marcha.
Por mais devagar que se arrastassem, ainda alcançariam o futuro...
4
***
Ivã Ragow fitou a nave imóvel por algum tempo. Depois disse com a voz entediada:
— O que é que eu tenho com isso? Se quiserem pousar, levarão algumas horas,
talvez mesmo dias. Até lá estarei de volta.
Rous aguçou o ouvido.
— Estará de volta? Como?
— Darei uma olhada nas lagartas, ou seja, nos tais dos “uuuns”. Talvez ali encontre
a solução.
— Não vá só, Ragow. André Noir vai acompanhá-lo. Talvez possa ajudar em
alguma coisa.
Noir não ficou muito entusiasmado, mas reconheceu perfeitamente que o cientista
não deveria andar só pelas montanhas. E não havia dúvida de que Ragow não se deixaria
remover do seu intento.
Os dois homens partiram imediatamente. Combinou-se que qualquer novidade seria
comunicada imediatamente pelo rádio.
Rous, Steiner, Harras e Josua ficaram para trás.
Por algum tempo seguiram os companheiros com os olhos. Depois voltaram a
dedicar sua atenção à nave desconhecida.
Foi Rous quem percebeu em primeiro lugar.
— Está se movendo, Steiner! Em sentido lateral. O movimento é muito lento.
Só dali a cinco minutos o físico fez um gesto de assentimento.
— O senhor tem razão, tenente. A nave se desloca para a esquerda. Acredito que
desenvolve no máximo o dobro da velocidade do som.
— Isso seria um centímetro por segundo. Ora... o que é isso?
— Veremos. Bem que gostaria de saber para onde são transmitidas as imagens.
Talvez para uma cidade, talvez para uma nave maior.
Harras disse, esticando as palavras:
— Tenho um pressentimento nada agradável, tenente. Estamos em plena planície,
sem a menor proteção. E a nave estranha está bem acima de nós. Se quisessem matar-nos,
não teríamos a menor chance de defesa.
— Que motivo poderiam ter para matar-nos?
— Motivo? Não acha que está perdendo um tempo precioso, refletindo sobre os
motivos?
Steiner fez que sim.
— Harras tem razão, tenente. Afinal, o que é que sabemos dos desconhecidos que se
mantêm numa dimensão estranha? Ragow até que foi inteligente quando resolveu ir às
montanhas.
— Se andarmos depressa, ainda poderemos alcançá-lo — disse Rous, olhando para
cima. — A nave desloca-se cada vez mais depressa.
Josua mexeu nervosamente nos controles de seu traje de luta. Rous franziu a testa,
mas Steiner e Harras seguiram o exemplo do africano.
— Não me digam que querem voar! — admirou-se Rous.
— E se nos tornássemos invisíveis? — perguntou Harras. — Até agora supúnhamos
que os habitantes da outra dimensão temporal não nos viam, porque aos seus olhos somos
rápidos demais.
— Podemos usar os campos energéticos defensivos! — a sugestão de Steiner era
muito melhor que a de Harras.
Mas Josua sacudiu a cabeça.
— Não; deveríamos sair voando. Para as montanhas, as cavernas.
Rous sabia que uma velocidade não superior a três metros por segundo não
representaria o menor perigo. Face à composição dessa atmosfera, uma velocidade
relativamente elevada como esta não teria nenhum efeito desfavorável. Sentiriam apenas
um ligeiro calor provocado pêlo atrito.
— Devemos ter muito cuidado — advertiu. — Ninguém deverá voar mais depressa
que eu. Também acho que uma marcha a pé não nos adiantaria muito.
Steiner foi o último a elevar-se no ar. Sustentado pelos campos antigravitacionais,
pairou poucos metros acima dos companheiros.
— É maravilhoso deixar as pernas balançando. Vamos voar em formação unida?
— Gostaria de ver os rostos dos “uuuns”, se é que nos viram — disse Harras
enquanto subia, seguido de perto por Josua, que parecia muito satisfeito porque sua
sugestão fora aceita.
Rous subiu por último.
— Fiquem logo atrás de mim e não voem muito depressa. Assim que o calor se
torne muito forte, freiem. Garanto-lhes que eu nunca poderia imaginar que a densidade
do envoltório atmosférico depende do tempo que se escoa em seu interior.
A expressão não era bem correta, mas atingia o cerne do problema. Na verdade, era
o tempo que modificava este mundo a ponto de causar uma subversão aparente nas leis
mais elementares da natureza. Se o fluxo do tempo pudesse ser acelerado em 72 mil
vezes, este mundo estranho voltaria ao normal.
Ou será que este mundo era real?
Será que o plano temporal estranho era o normal?
Estas indagações atingiram a mente de Rous com a intensidade de um raio. Sentiu a
impressão de ter envolvido a chave do problema.
Deslocaram-se poucos metros acima do solo pedregoso. Rous deu-se conta de que
no início de sua aventura nem pensaram na possibilidade de que, se necessário, poderiam
voar.
Quase haviam esquecido seus trajes especiais.
Steiner lançou um olhar para o céu e exclamou:
— A nave persegue-nos, mas é mais lenta que nós! Quer dizer que não nos querem
perder de vista. De qualquer maneira, estamos desenvolvendo sessenta vezes a
velocidade do som, se quisermos encarar a coisa sob este ângulo.
Rous acenou lentamente com a cabeça.
— Estão sentindo o calor? Atrás de nós está surgindo um verdadeiro vácuo, porque
o movimento do ar é muito lento — também olhou para o alto. — É verdade, Steiner. A
nave-câmera nos persegue.
Cruzaram o rio e o vale e atingiram a encosta suave que já conheciam. A pequena
nave ficara bem para trás. Ao que parecia, conseguia percorrer uns dois centímetros por
segundo, isto é, desenvolvia pelo menos quatro vezes a velocidade do som.
— Será que ainda nos vêem? — perguntou Harras.
— Não acredito que o alcance das câmaras chegue até aqui — disse Rous,
sacudindo a cabeça. — Do contrário não teriam necessidade de seguir-nos.
Dali a alguns minutos, viram junto à rocha dois vultos humanos que se moviam. E
neste mundo imobilizado qualquer movimento logo despertava a atenção.
Eram Ivã Ragow e André Noir!
No momento em que o pé de Rous tocou o chão, Steiner soltou um grito estridente.
O braço estendido do físico apontava para a planície. Os homens seguiram seu olhar e
ficaram estarrecidos.
Rous sentiu uma mão fria comprimir seu coração, pois estava assistindo a fatos que
comprovavam suas suspeitas. No lugar em que pouco antes estivera a árvore em forma de
forca só havia um feixe energético ofuscante, que parecia descer verticalmente,
envolvendo a árvore a ponto de só deixar Rous perceber uma silhueta confusa da mesma.
Disse com a voz zangada:
— Eles demoraram muito a atacar. O raio mortífero nos teria atingido, e não
seríamos suficientemente rápidos para desviar-nos. Afinal, a luz ainda desenvolve seus
quatro quilômetros por segundo, o que representa uma velocidade inconcebível para este
mundo da rigidez. Aquilo ali é um raio energético disparado contra nós. Isso prova que os
“uuuns” nos descobriram. E descobrimos mais uma coisa: têm a intenção de matar-nos.
— Aquilo ali é um raio energético? — perguntou Rous e inclinou a cabeça,
enquanto procurava rememorar seus conhecimentos de física. — Pode ser tão demorado?
Rous sorriu e continuou:
— Qual é o significado da palavra demorado num mundo como este? Admitamos
que o senhor dispare um raio energético com a duração de um centésimo de segundo. Se
a nave estiver a quatrocentos quilômetros de altura, o raio levará exatamente um minuto e
quarenta segundos para atingir a superfície. E depois, feita a respectiva conversão,
permanecerá no espaço por doze minutos. Para os “uuuns” doze minutos equivalem
exatamente a um segundo. Se minha suposição for correta, daqui a pouco o raio se
apagará. O processo de extinção começará na parte superior e progredirá à velocidade de
quatro quilômetros por segundo.
— É inacreditável! — observou Steiner, mas acrescentou: — Contudo, não deixa de
ser lógico.
Rous disse em tom pensativo:
— Nem por isso podemos concluir que em quaisquer circunstâncias poderemos
desviar-nos de um disparo energético. Tivemos sorte por termos mudado de posição. Se
ainda estivéssemos perto daquela árvore, estaríamos irremediavelmente perdidos. Mesmo
que o raio se desloque à velocidade de apenas quatro quilômetros por segundo, não o
veremos antes de sermos atingidos por ele. Para todos os efeitos práticos, tanto faz que o
raio se aproxime a uma velocidade de quatro ou de trezentos mil quilômetros por
segundo.
Steiner olhou para o céu nublado.
— O que acontecerá se resolverem fazer nova ajustagem de seus dispositivos de
mira?
Rous sacudiu a cabeça.
— Não se preocupe, Steiner. Já pensei nisso. Aqui não corremos o menor perigo. O
senhor acha que os “uuuns” seriam capazes de matar sua própria gente? Dificilmente
assumirão o risco de destruir uma de suas povoações.
Ragow, que se encontrava agachado perto de um provável habitante daquele mundo,
voltou a erguer-se. Em seu rosto havia uma expressão indagadora.
— Não compreendo — disse enquanto se levantava. — Esses seres têm naves
espaciais e canhões energéticos, mas vivem em cavernas. Como podemos combinar esses
fatos?
Mesmo desta vez a resposta de Rous foi imediata.
— Basta recuar cem anos, Ragow. Como eram as condições na Terra? Os
antepassados de Josua talvez ainda vivessem na selva africana e ficavam felizes quando
conseguiam abater um leão com suas lanças. E na mesma época a primeira bomba
atômica foi construída a cinco mil quilômetros daquele lugar. Se entre os habitantes de
um mesmo planeta pode haver tamanha diferença no desenvolvimento técnico e cultural,
essas diferenças serão muito maiores quando a mesma raça povoa uma série de sistemas
solares...
Ragow acenou lentamente com a cabeça.
— E claro que o senhor tem razão, tenente. Nunca se devem tirar conclusões
precipitadas, esquecendo a própria história. Quer dizer que o senhor está convencido de
que estas lagartas são as inteligências dominantes desta dimensão temporal?
— Apenas podemos formular suposições, Ragow. Só poderemos ter certeza quando
pela primeira vez nos defrontarmos com os “uuuns”. Devo confessar que a perspectiva
desse encontro me causa uma sensação nada agradável.
Noir apontou para o céu.
— A nave-câmara não se aproxima. Está parada.
— Acho que seria fácil voar até lá e derrubar esse artefato. — conjeturou Harras.
Rous lançou-lhe um olhar rápido.
— O senhor ficou louco?
— Por quê? Afinal, fomos atacados. Temos o direito de nos defender. Ninguém sabe
quanto tempo teremos de passar neste mundo. Não estou com vontade de correr
constantemente dessas “lesmas”.
— Harras tem razão! — disse Steiner.
Noir e Josua fizeram um sinal de assentimento. E o rosto de Ragow também não
parecia exprimir uma opinião contrária.
— Hum — fez Rous, compreendendo que acabara de ser derrotado pela maioria. —
Acho que a coisa não será tão fácil como Harras imagina. Não nos esqueçamos de que os
“uuuns” podem ver-nos e...
— Só nos vêem quando estão na nave-câmera. Se esta for destruída, levarão uma
eternidade para encontrar um substituto — Harras parecia entusiasmado pela idéia. —
Pego um radiador portátil e fundo as câmaras. Depois procurarei danificar a nave, para
que caia.
Rous lançou os olhos para o alto.
— Olhem! — gritou subitamente. — O raio energético está se apagando.
Viram perfeitamente.
O processo prosseguia de cima para baixo, com uma velocidade enorme, mas
também com uma relativa lentidão. Pela primeira vez na história, olhos humanos
puderam seguir o percurso da luz. Nada menos de dez segundos se passaram até que o
raio se extinguisse de vez.
O centésimo de segundo havia chegado ao fim.
Harras mexeu no cinto em que estavam guardados os instrumentos.
Rous disse:
— Andei pensando em certas coisas, e quero pô-los a par do resultado de minhas
reflexões. Há uma hora ainda receávamos que um disparo de nossas pistolas de radiações
poderia causar uma catástrofe, porque os impulsos luminosos percorreriam a dimensão
estranha a uma velocidade 72 mil vezes maior. Até receávamos que a estrutura espaço-
temporal pudesse ser rompida. Agora já não penso assim.
— Por quê? — perguntou Steiner em tom indiferente.
— Porque estamos transmitindo mensagens pelo rádio. E as ondas de rádio
desenvolvem a mesma velocidade da luz. Alguém observou um efeito estranho?
Ninguém, não é? Conclui-se que nada acontecerá se nesta dimensão alguma coisa se
deslocar em velocidade superior à da luz, em termos relativos. Por isso acredito que
Harras poderá usar tranqüilamente seu radiador de impulsos.
— Para dizer a verdade — começou Harras, esforçando-se para conservar a calma
— já me tinha esquecido dessas especulações. Teria atirado de qualquer maneira.
— O senhor sempre foi um homem impulsivo — repreendeu-o Ragow, lançando um
olhar pensativo para os “uuuns” que se encontravam diante das cavernas. — Tomara que
depois disso tenha oportunidade de examinar estas lagartas.
— Não tenho a menor idéia de como pretende fazer isso — confessou Rous.
O cientista sorriu.
— Mas eu tenho — disse com a maior tranqüilidade.
5
***
Fred Harras não se sentiu muito bem quando se aproximava lentamente da nave
imóvel, com o radiador de impulsos pronto para disparar.
A nave devia ter uns dez metros de comprimento; seus cálculos haviam sido
corretos. Cem metros abaixo de Harras ficava a superfície do planeta desconhecido.
Flutuava sobre a mesma, libertado de seu peso, e controlava o vôo por meio dos
instrumentos embutidos no cinto que trazia sob o uniforme. Era como se boiasse na água.
A nave estava a apenas alguns metros. Viu nitidamente as objetivas de dez câmaras.
A primeira delas dirigiu-se para ele. Devia ter demorado uns cinco minutos até que
notassem sua presença.
A teoria de que a análise pelo processo de câmara lenta demorava alguns minutos
parecia confirmar-se.
Falando para dentro do microfone do transmissor embutido no anel, Harras disse:
— Estou à distância de tiro. Devo...?
— O que está esperando? — soou a pergunta de Rous, que na verdade representava
uma ordem.
Harras acenou com a cabeça e fez pontaria para a primeira câmara. O estreito feixe
energético atingiu-a e a fundiu num segundo. Acontece que a câmara havia sido
produzida em outra dimensão temporal, motivo por que obedecia às leis naturais que
prevaleciam nesta. Harras pôde notar o processo de fusão, mas os pingos de metal e os
gases produzidos pelo mesmo tiveram o mesmo comportamento dos demais objetos desse
mundo tresloucado.
As peças incandescentes se deslocavam com uma lentidão inacreditável, embora
tivessem recebido uma aceleração notável, produzida pelo impulso energético que se
deslocava à velocidade da luz. Mas dali a alguns metros sua velocidade diminuiu.
A segunda câmara também se derreteu, depois a terceira, a quarta...
Dentro de trinta segundos a destruição foi completada. Se os desconhecidos não
possuíssem outra nave-objetiva, estariam “cegos”.
Harras hesitou. Deveria descer à superfície, ou seria preferível tentar derrubar a
nave? A mesma executou um movimento quase imperceptível. Não representava um
perigo para eles, mas era possível que em seu interior existissem elementos que poderiam
representar alguma indicação sobre o inimigo desconhecido da outra dimensão temporal.
Que Rous decidisse. E Rous tomou sua decisão:
— Caso acredite que pode atingir e destruir uma peça vital, tente. Talvez a derrube.
Nesse caso Steiner terá o que fazer.
“Talvez na popa”, pensou Harras e contornou cautelosamente o objeto prateado.
Teve o cuidado de não penetrar no raio de propulsão perfeitamente visível, que saía
dos bocais a uma velocidade não superior a quatro quilômetros por segundos. O que
representavam esses quatro quilômetros face à verdadeira velocidade da luz?
Recuou um pouco, desviou-se, levantou a arma e dirigiu-a para o conjunto de bocais
de popa. Depois comprimiu o botão acionador.
O resultado foi perfeitamente visível e bastante impressionante. A nave explodiu.
Mas explodiu em câmara lenta. No início, a dilatação chegava a cinqüenta
centímetros por segundo, mas depois foi-se tornando mais lenta. Harras não teve a menor
dificuldade em desviar-se dos destroços que começavam a descer com a lentidão de
penas. Trinta segundos depois da explosão, esses destroços flutuavam, aparentemente
imóveis. Tinha de olhar atentamente para notar que desciam com uma lentidão incrível,
enquanto as peças menores caíam mais depressa. O envoltório esférico assumiu o
formato de um ovo, isso em virtude da gravitação.
Em seu receptor Harras ouviu as exclamações dos companheiros, que
contemplavam o fenômeno do solo.
— É incrível!
Devia ser Steiner, que nunca deixava de admirar-se sobre os efeitos oticamente
perceptíveis da dilatação do tempo, embora os compreendesse perfeitamente.
— Volte! — gritou Rous em tom preocupado. — Senão o senhor acabará sendo
atingido pelo raio vingador da nave-mãe, se é que esta existe.
— Quem poderia ter descoberto nossa entrada nesse mundo senão ela? — disse
Harras e desceu obliquamente. Passou pelos destroços, que atingiriam o solo a pouco
menos de duzentos metros dali, no lugar exato em que devia encontrar-se a gazela,
naturalmente em sua própria dimensão temporal.
***
***
***
Trouxeram mais dois “uuuns” para sua dimensão temporal, com o que provaram que
o resultado obtido com a primeira experiência de Ragow não era fruto do acaso. Mas nem
mesmo Steiner conseguiu encontrar uma explicação fundamentada para o fenômeno. Só
lhes restava aceitar o fato como tal e deixar as perguntas em aberto. Rous afastou-se
juntamente com Harras, a fim de não perturbar as experiências de Noir. Ragow também
estava muito ocupado, e preferia ficar só. Steiner voava em direção aos destroços da
nave-câmara, que continuavam a descer, a fim de iniciar o exame dos mesmos. Josua
montava guarda sobre uma rocha mais elevada.
— Será que devíamos trazer um dos arcônidas de volta ao nosso tempo? — disse
Rous, apontando para a planície, onde o destacamento policial petrificado do
administrador de Tats-Tor levava uma existência imóvel.
— Para quê? — perguntou Harras. — Não devemos nada a esses sujeitos
convencidos; pelo contrário. Além disso, não compreenderiam; diriam que somos
culpados de tudo.
— Concordo plenamente com o senhor, mas não é assim que devemos pensar.
Rhodan nos confiou uma tarefa, e esta foi cumprida quase completamente. Apenas não
conseguimos voltar e apresentar nosso relatório. A esta hora devem estar preocupados
conosco e talvez resolvam agir. A gazela ainda deve estar no mesmo lugar.
— Se é que resistiu ao ataque e o GCR continua intacto — comentou Harras.
Uma sombra passou pelo rosto de Rous.
— Este é o ponto mais importante. Qual é o motivo da falha do aparelho? O fato
deve ter ocorrido independentemente de qualquer intervenção humana, pois quando
aconteceu não havia um único ser humano em Tats-Tor. Além disso, estou convencido de
que isto aqui — com um movimento amplo apontou para a planície, até o horizonte
distante — não é Tats-Tor. Encontramo-nos em outro planeta. Apesar disso a gazela só
pode estar perto da árvore-forca. Será que dois planetas podem existir simultaneamente
no mesmo lugar?
Harras sacudiu a cabeça.
— Simultaneamente nunca, tenente. Acontece que os dois planetas constituem
mundos que vivem em dimensões temporais diferentes; por isso é possível que se
encontrem aparentemente no mesmo lugar. Na verdade, só permaneceram
simultaneamente no mesmo lugar por um milionésimo de segundo, que é o momento em
que se verificou o contato.
Rous pôs as mãos nos quadris.
— Quer saber de uma coisa, Harras? Não devemos pensar muito sobre isso. Nunca
desvendaremos o mistério, ao menos enquanto permanecermos no terreno das sutilezas
especulativas. Se um dia conseguirmos esclarecer tudo, isso só se verificará por meio da
física ou da matemática. Talvez Steiner possa ajudar.
Olharam para cima. Viram perfeitamente que a uns cinqüenta metros de altura o
físico achava-se entre os destroços da nave. Steiner ainda estava examinando as peças
que lhe pareciam importantes e procurava introduzi-las no envoltório energético.
Conseguiu fazê-lo por meio do campo antigravitacional.
Rous ligou o rádio.
— Conseguiu alguma coisa, Steiner?
— Depende... — respondeu Steiner prontamente. — Ainda não sei como estes
fragmentos poderiam ser examinados. Estão submetidos às leis da outra dimensão
temporal. Assim que saem do campo antigravitacional de meu traje especial; não consigo
movê-los.
— Aplique o método de Ragow. Aquilo que aconteceu com os seres orgânicos
também deverá funcionar com a matéria inorgânica. Faça uma viagem com eles.
Steiner compreendeu imediatamente.
— É uma ótima idéia. Ultrapassarei a velocidade da luz e trarei as peças para nosso
plano temporal. Se começarmos a refletir sobre isso, concluímos que é um absurdo.
Deixou que os dois homens que se encontravam em terra contraditassem sua tese e
saiu voando com sua abóbada energética. Os destroços que ficaram para trás continuaram
a descer tranqüilamente, como se nada tivesse acontecido. A velocidade da queda
aumentava lentamente, mas demorariam a atingir o solo. Provavelmente o impacto
infinitamente lento os romperia ou deformaria com a mesma vagarosidade.
— Quer saber o que estou pensando, tenente? — perguntou Harras, olhando para o
lugar em que Steiner desaparecera no horizonte.
— O que é?
— Estamos vivendo na outra dimensão, e até agora conseguimos rechaçar todos os
ataques. Até gozamos de certa superioridade sobre os desconhecidos. Mas as diferentes
concepções sobre o tempo deixam-me confuso. Veja só o que Ragow fez: conseguiu...
bem, quase diria que conseguiu inverter “os pólos do uuum”. Mas o que gostaria de saber,
tenente, é quanto tempo se passou realmente... Lá na nossa dimensão, quero dizer.
Rous fitou-o atentamente.
— Isso é uma coisa que ninguém de nós sabe, meu caro. Só podemos fazer votos de
que a diferença não seja muito grande.
Calou-se, porque nesse instante o receptor embutido em seu anel emitiu um
zumbido. Comprimiu um botão.
— Alô; quem está falando?
— É Steiner. Preste atenção, Rous! Acabo de encontrar uma coisa. Está a uns cem
quilômetros ao oeste do platô em que você se encontra. Poderia vir o mais rápido
possível?
— O que é?
Seguiu-se uma ligeira pausa, depois da qual Steiner disse:
— É um girino da classe de sessenta metros, pousado no solo. Se não me engano,
traz uma designação usual entre nós: K-7.
O Tenente Marcel Rous teve a impressão de que seu coração iria parar.
A K-7 era comandada por ele há exatamente três meses, quando o planeta Mirsal III
foi assaltado e despovoado pelos seres da outra dimensão temporal. De início Becker
tornou-se invisível e desapareceu por completo juntamente com dois outros homens.
Depois, quando retornou duma excursão à cidade abandonada, a nave auxiliar K-7
também deixara de existir. Os desconhecidos haviam levado a nave juntamente com os
tripulantes, e desde então esta foi dada como perdida.
E agora... três meses depois!
Rous respirou profundamente e disse:
— Fique onde está e transmita sinais goniométricos, Steiner. Irei imediatamente.
— Irei com o senhor — disse Harras em tom resoluto.
7
***
***
**
*