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DEFINIÇÕES – UM GESTO POLÍTICO PARA NOMINAR O SILÊNCIO

Debora Diniz e Lívia Barbosa1

Não há ser humano típico. Existimos na diversidade – um falso truísmo sobre o mundo
individualizado e repleto de fronteiras. Mas não é em relação a essa diversidade que a
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência propõe
definições sobre a pessoa com deficiência. Parece curioso um documento transnacional
partir de verbetes sobre quem somos, para daí avançar em direitos e proteções. É
exatamente isso que faz o Artigo 2 – Definições, tema de nosso comentário. O artigo é
um texto sobre o silêncio em quatro atos: comunicação, discriminação, adaptação
razoável e desenho universal. Entre os atos, há um coro único: não há um ser humano
típico – os impedimentos são variações do corpo, esse espaço que habitamos para
existir.

Comunicação e língua se confundem no documento da ONU – são formas e


mecanismos de transmitir, aprender e conectar pessoas. Aprender pelo texto escrito não
é o mesmo que ler, por isso os ledores de computador ou o passeio táctil pelos pontos
do braille permitem que cegos aprendam com Machado de Assis ou Clarice Lispector.
Comunicação é o conceito-chave para permitir que as pessoas aprendam com o já-dito
ou já-escrito – não é sempre pela escuta padrão ou pela leitura ocular. As línguas são
várias não apenas pelo seu léxico e estrutura, mas pelas modalidades que as pessoas
escolhem para se expressar – oral ou espaçovisual. Surdos manualistas preferem os
sinais; surdos implantados ensaiam as mãos e os sons. Cegos podem ser bilíngues:
braillistas ou ouvidores, seja dos cassetes do passado, seja das novas tecnologias de
informação.

O desafio não é apenas reconhecer essas diferentes maneiras de lançar-se no mundo


pela linguagem. O que o documento provoca são novas formas de reconhecimento pela
existência nos sinais, nas letras alargadas ou nos dedos sensíveis. Se há uma expectativa
didática no Artigo 2 ao explicitar as modalidades de comunicação, há principalmente
uma ambição política – sim, há formas no plural de comunicar-se, todas igualmente

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Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis –
Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Lívia Barbosa é assistente social, professora
da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis. Ambas pesquisam e militam no campo da
deficiência e dos direitos sociais.

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legítimas, mas são os equipamentos do Estado quem protege as necessidades básicas. É
preciso urgentemente preparar-se para esse reconhecimento, pois uma criança espera
para entrar na escola, no ônibus ou no hospital. É assim que a escola pública deve estar
equipada para crianças cegas que usam os dedos, para adolescentes surdas que são
manualistas, para estudantes universitárias que veem nos livros letras tão miúdas quanto
formigas passeando no papel. E reconhecimento não é apenas um gesto ético de
políticas de igualdade, é um passo político de prioridades orçamentárias para as
políticas públicas (Fraser, 1997).

Mas é exatamente o léxico que nos escapa quando nos aproximamos do segundo
conceito da seção Definições – “discriminação por motivo de deficiência” (Diniz, 2013;
Diniz; Barbosa, 2010). Temos um nome para quando a abjeção ao corpo atinge as cores
ou os sexos das pessoas: racismo e sexismo. O léxico da língua portuguesa aqui não é
apenas um traidor, é um sinal do silêncio. Não sabemos como descrever a discriminação
sofrida pelas pessoas com deficiência, por isso recorremos a um termo composto –
“discriminação por motivo de deficiência”. Imaginem usarmos algo parecido para o
racismo: “discriminação sofrida por motivo de cor da pele”. Seria um anacronismo
semelhante às fragilidades linguísticas do passado em que falávamos “pessoas de cor”,
entre tantos outros desqualificadores da existência marginal ao tipo humano ideal.

A ausência de um conceito eficaz – alguns propõem capacitismo, e o léxico precisa


mesmo ser provocado (Mello, 2012) – não pode nos emudecer diante do que é
substancialmente dito no documento: “qualquer diferenciação, exclusão ou restrição
baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o
reconhecimento. O corpo com impedimentos não é razão suficiente para justificar a
exclusão de uma criança da escola. A discriminação não é um dado da natureza, não
está na essência de nenhum corpo, mas no olhar do outro que o desqualifica como um
ser abjeto. Essa é a essência da discriminação: uma recusa pela igualdade de existência
àqueles que escapam a um padrão ideal do humano. Como o tipo ideal é fictício, uma
construção moral com diferentes matrizes entre grupos e encontros sociais, ele ora se
transmuda na sexualidade hegemônica, ora na cor dominante.

A diferença entre a discriminação sofrida pelo corpo com impedimentos e outras formas
de discriminação, como o racismo, é a solidão enfrentada pela pessoa com deficiência

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(Diniz, 2007). Não raro, uma criança surda nasce em uma família de ouvintes. Não raro,
uma criança cega passa anos de sua infância sem conhecer outra igual a ela. A solidão
agrava-se pelo discurso hegemônico da tragédia pessoal pelos impedimentos – seria
uma existência miserável aquela vivida em um corpo com impedimentos, falsamente
pressupõe o senso comum (Diniz, 2013). Não nos cabe um julgamento sobre quais
formas de habitar corpos são melhores que outras; o que importa para políticas
distributivas e igualitaristas é que há existências no plural. Qualquer forma de
discriminação com o objetivo de impedir a igual participação é eticamente injusta.

A demanda pela igualdade inevitavelmente leva o debate político a um argumento


autoritário para políticas distributivas – mas o que seria o justo para cada um e para a
coletividade? O documento se refere a adaptações razoáveis. “Razoável” percorre um
marco de debates políticos liberais sobre o limite do justo (Rawls, 2002), mas pode
também ser entendido em um sentido simples – não como adjetivo de qual adaptação
seria possível aos cofres públicos, e sim como um substantivo ético na vida coletiva.
Razoável é tudo aquilo que protege as necessidades básicas individuais. O limite não é o
orçamento destinado à política de educação, mas o dever de manter uma criança com
impedimentos na escola. E aqui partimos de um marco político constitucional anterior à
Convenção sobre as Pessoas com Deficiência no Brasil: os direitos sociais protegem
necessidades básicas. Assim, saúde, educação e proteção social são marcos
fundamentais. O razoável não é, portanto, um julgamento do quanto deve ser destinado
às políticas de deficiência; trata-se de um estatuto de que, uma vez acordadas quais
necessidades devem ser protegidas, razoável é o dever do Estado de cumpri-las.

O ato final da seção Definições é o desenho universal. É o apelo ao universalismo do


pensamento humano para as criações de bem-estar, mobilidade, conforto ou,
simplesmente, consumo. O tipo ideal – homem, branco, burguês, independente –
também envelhecerá, experimentará impedimentos em seu próprio corpo, antes um
representante da norma. O futuro compartilhado de impedimentos em todos os corpos
não deve ser uma sombra perversa ao reconhecimento do desenho universal como uma
necessidade de justiça, mas, talvez, um recurso didático para o reconhecimento. Um dos
principais desafios das políticas de justiça é a incapacidade de imaginar-se no lugar do
outro corpo que não o meu ou dos próximos a mim: é preciso treinar a sensibilidade nos
homens para que entendam as particularidades da gravidez e da maternagem. Assim

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ocorre no campo da deficiência – é preciso provocar a imaginação que se crê normal e
perfeita sobre os corpos fora da norma. Assim, uma rampa é um ajuste razoável não
apenas para cadeirantes, mas também para idosos, pessoas com marcha reduzida ou
mulheres grávidas. Ou simplesmente para os usuários de outros meios de transporte,
como patins, skates ou bicicletas.

Esses são os quatro atos do novo teatro social que teremos que representar para a
igualdade entre pessoas com e sem impedimentos. Não há justiça sem políticas
distributivas e medidas igualitaristas: por isso precisamos enfrentar a discriminação pela
mudança da linguagem; reconhecer o razoável como um gesto básico de proteção para
todos; e, por fim, assumir que o verdadeiro universalismo não segrega alguns como fora
do tipo ideal. A verdade é que nenhum de nós representa o ideal da perfeição da norma.
Todos sobrevivemos porque fomos cuidados, porque nossas relações de
interdependência de alguma forma funcionaram. Mas o justo não se contenta com o
mínimo – é preciso o razoável para a igualdade e a vida boa. É assim que as políticas
sociais brasileiras se veem agora, diante do desafio de traçar o roteiro do justo para as
políticas de deficiência após a assinatura da Convenção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Diniz, Debora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007.
Diniz, Debora. Deficiência e Políticas Sociais – entrevista com Colin Barnes. SER
Social, v. 15, n. 32, p. 237-251, 2013.
Diniz, Debora; Barbosa, Lívia. Pessoas com deficiência e direitos humanos no Brasil.
In: Venturini, Gustavo (Ed.). Direitos humanos: percepções da opinião pública:
análises de pesquisa nacional. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos
da Presidência da República, 2010. p. 201-218.
Fraser, Nancy. Justice Interruptus: Critical Reflections on the “Postsocialist”
Condition. New York: Routledge, 1997.
Mello, Anahí Guedes De. Gênero, deficiência e capacitismo: uma análise
antropológica das violências contra mulheres com deficiência a partir das
relações de cuidado. Trabalho apresentado nas Jornadas NIGS, Belo Horizonte,
2012.
Rawls, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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