Os pés, desnivelados, estão descalços: o direito, apoiado no que parece ser uma pedra a
sustentar todo o corpo da mulher; o esquerdo, abandonado, como que a absorver o torpor de que
é acometida. As vestes, convulsionadas em dobras, revelam mãos cujos dedos sutilmente
retorcidos denotam uma espécie muito particular de contrição pelo prazer. O olhar avança e
detém-se no rosto de mármore: a boca entreaberta e os olhos semicerrados, inscritos na cabeça
levemente inclinada para trás, condensam a expressão máxima da experiência mística de Teresa
D’Ávila: o êxtase supremo de perder-se em Deus.
De pé, à esquerda da santa arrebatada, um arcanjo de torso seminu e asas plumadas
segura com a ponta dos dedos uma flecha de ouro; as vestes, igualmente convulsionadas,
participam da mesma elevação espiritual que revolteia a roupa de Tereza. O sorriso que adorna
sua face, em contraposição à expressão extática da mulher que vigia, é o da vitória: a satisfação
de quem, imbuído do espírito próprio de sua tarefa, confirma admirado o auspício divino
concretamente manifestado.
Da abóbada da capela pendem filetes dourados a figurar a luminescência divina que coroa
a ascensão mística de Tereza sob o olhar sereno do enviado dos céus. Em dias ensolarados, os
feixes de mármore e a cena retratada são iluminados pela luz natural advinda da janela instalada
em seu topo: uma concessão do divino, que abdica momentaneamente de sua intangibilidade
para testemunho humano.
Assim esculpida, Tereza em êxtase justifica seu outro nome: transverberação. De fato, a
flecha do anjo, na iminência de trespassar seu coração repleto, é o Deus encarnado em fúria
gozosa; a mulher, prestes a receber a consagração suprema, estará purificada para comungar do
amor de Cristo ainda nesta vida: reconhecerá em si o Deus vivo e serão um só corpo e espírito.
II
III
IV
A experiência extática de Teresa ainda está por ser reconhecida em toda sua magnitude e
importância – por católicos e protestantes, cristãos e ateus, especialistas e leigos – pela dimensão
daquilo que propõe: a restituição do corpo enquanto objeto desejante no seio da dogmática
católica, em que a potência erótica e sexual do corpo deve ser contida.
É possível objetar que a vivência corporal do desejo divino de Santa Teresa aparece como
argumento pouco sólido e fundamentado, uma vez que a própria Teresa fez questão de
conceituar como puramente espiritual as suas exasperações místicas - posição que se coaduna
com a prática mística em certa medida ordinária de vários outros santos. A ponderação de
Teresa, contudo, diz menos de sua jornada particular em direção à partilha da vida junto a Deus
que das imposições oriundas dos ensinamentos cristãos.
Cabe questionar se a recusa a admitir a parcela de desejo carnal que compete à
experiência narrada não seria reflexo das limitações inerentes ao sistema de crenças da
religiosidade dominante no contexto histórico em que Teresa encerrava-se. Ou, de maneira mais
complexa, a desconsideração do caráter erótico-sexual de sua experiência mística poderia ser a
única aproximação possível na ausência de descrições mais acuradas dos processos de ascensão
divina da santa. Como afirmar aquilo que se desconhece?
De família pia, temente a Deus e de vida proba e devota, o caminho de Teresa até a
clausura era quase natural. Já encerrada nos muros do convento, a futura santa fez de sua vida o
testemunho mais inequívoco do abandono radical e profundo nos braços do divino: demonstrou
incômodo com as perturbações do enclausuramento - condição essencial da via penitente em
direção ao sagrado –, perturbações ocasionadas por motivos variados, desde a inobservância dos
princípios religiosos por parte dos responsáveis pelos mosteiros até a abertura do espaço recluso
à visitação; direcionou, então, suas paixões e interesses com maior vigor para santos e santas
cuja medida da fé era a capacidade de abnegação da vivência mundana com o objetivo de
comungar com Deus, unidos num só corpo.
É através dessa ascese inexorável que o desejo de Santa Teresa encontra a possibilidade
de sua realização plena. Apartada dos constrangimentos sociais de seu meio, encerrada nos
muros de uma clausura protetiva, a mulher e seu corpo são soberanos: o conhecimento, custoso,
de um mundo superior intangível poderá utilizar todos os instrumentos e opções disponíveis,
longe do confronto com as limitações que confinariam Teresa à constrição pudica diante da cruz
imóvel da igreja de seu povoado, ou, pela virulência de seu desejo, aos autos do Tribunal do
Santo Ofício.
Além de dotar de protagonismo desejante o corpo tantas vezes renegado por sua
denominação religiosa, o processo de abandono extático de Santa Teresa institui também um
paradoxo interessante: o ambiente do claustro, cuja existência é justificada pela necessidade de
se domar as paixões e os apetites da condição humana, é o responsável por potencializar a fúria
erótico-carnal da freira carmelita – pela ocultação que promove da existência de homens e
mulheres em relação íntima com a esfera do divino: o aspecto íntimo do desejo ocupa seu espaço
no palco físico do êxtase sexual.
VII