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DIVINO CAÍDO, DESEJO ABERTO

É neste mundo que te quero sentir


É o único que sei. O que me resta.
Dizer que vou te conhecer a fundo
Sem as bênçãos da carne, no depois,
Me parece a mim magra promessa.
Sentires da alma? Sim. Podem ser prodigiosos.
Mas tu sabes a delícia da carne
Dos encaixes que inventaste. De toques.
Do formoso das hastes. Das corolas.
Vês como fico pequena e tão pouco inventiva?
Haste. Corola. São palavras róseas. Mas sangram
Se feitas de carne.
Dirás que o humano desejo
Não te percebe as fomes. Sim, meu Senhor,
Te percebo. Mas deixa-me amar a ti, neste texto
Com os enlevos
De uma mulher que só sabe o homem.

Hilda Hilst, Poemas Malditos, Gozosos e Devotos.

Os pés, desnivelados, estão descalços: o direito, apoiado no que parece ser uma pedra a
sustentar todo o corpo da mulher; o esquerdo, abandonado, como que a absorver o torpor de que
é acometida. As vestes, convulsionadas em dobras, revelam mãos cujos dedos sutilmente
retorcidos denotam uma espécie muito particular de contrição pelo prazer. O olhar avança e
detém-se no rosto de mármore: a boca entreaberta e os olhos semicerrados, inscritos na cabeça
levemente inclinada para trás, condensam a expressão máxima da experiência mística de Teresa
D’Ávila: o êxtase supremo de perder-se em Deus.
De pé, à esquerda da santa arrebatada, um arcanjo de torso seminu e asas plumadas
segura com a ponta dos dedos uma flecha de ouro; as vestes, igualmente convulsionadas,
participam da mesma elevação espiritual que revolteia a roupa de Tereza. O sorriso que adorna
sua face, em contraposição à expressão extática da mulher que vigia, é o da vitória: a satisfação
de quem, imbuído do espírito próprio de sua tarefa, confirma admirado o auspício divino
concretamente manifestado.
Da abóbada da capela pendem filetes dourados a figurar a luminescência divina que coroa
a ascensão mística de Tereza sob o olhar sereno do enviado dos céus. Em dias ensolarados, os
feixes de mármore e a cena retratada são iluminados pela luz natural advinda da janela instalada
em seu topo: uma concessão do divino, que abdica momentaneamente de sua intangibilidade
para testemunho humano.
Assim esculpida, Tereza em êxtase justifica seu outro nome: transverberação. De fato, a
flecha do anjo, na iminência de trespassar seu coração repleto, é o Deus encarnado em fúria
gozosa; a mulher, prestes a receber a consagração suprema, estará purificada para comungar do
amor de Cristo ainda nesta vida: reconhecerá em si o Deus vivo e serão um só corpo e espírito.
II

É consenso que Gian Lorenzo Bernini, ao esculpir o Êxtase ou a Transverberação de


Santa Teresa, estivesse apenas seguindo orientações estritas da Igreja Católica, para quem a
representação das experiências de seus mártires com o Supremo deveria aparecer nas obras
humanas da maneira mais realista possível, de modo a proporcionar aos fiéis uma conexão
emocional profunda com os mistérios divinos – a possibilidade, no caso em tela, de apropriação
particular do momento íntimo da santa por todo aquele que adentra a Capela Cornaro, localizada
na Igreja de Santa Maria della Vittoria, em Roma, onde se encontra a magnum opus do artista
italiano.
Não surpreende, portanto, que as experiências místicas de vultos católicos importantes,
constituindo o exemplo último da comunhão religiosa e a aspiração definitiva dos que buscam
uma relação essencial com Deus, tenham sido priorizadas ao longo dos séculos nas retratações de
artistas os mais diversos, junto aos episódios mais violentos da dogmática católica. Apostando no
mesmo arrebatamento responsável por instituir de santidade homens e mulheres comuns, a
estratégia religiosa da aproximação entre humano e divino é consubstanciada pela obra de arte.
A vivência mística de santos e santas - pela medida de sua própria força e potência, e a
partir de sua apropriação em períodos históricos diferentes por escritores, pintores, escultores,
musicistas – ensejou, no entanto, interpretações conflitantes com as acepções referendadas pela
institucionalidade religiosa. No caso de Teresa D’Ávila, aspecto algum orientou debates mais
acalorados que as vinculações de seu êxtase ao âmbito da sexualidade e do desejo erótico, logo
deslegitimadas por especialistas – religiosos ou leigos – como vulgaridades que impediam a
fruição completa de fenômenos tão complexos.
Mas a vulgaridade não residiria justamente na ignorância conscienciosa da dimensão
sexual e erótica das ascensões extáticas de Santa Teresa? E se ela, na ânsia de abandonar-se em
Deus, tocasse o próprio corpo e descobrisse a cada toque uma sensação desconhecida, um prazer
novo? Era um corpo santo, consagrado. Seus gestos, uma intimidade divina.

III

A negação do desejo de Teresa D’Ávila, ao menos de sua parcela carnal – decorrente da


negação, mais veemente, de seu caráter eminentemente erótico – é a resposta automática e
imediata ao protagonismo que o corpo assumiria caso a via-crúcis desejante da santa católica não
fosse interditada naquilo que poderia conter de sublimação física. Em verdade, a acusação da
presença do vulgar em análises que consideram a existência do desejo de ordem sexual no êxtase
de Teresa é incapaz de ocultar o receio de que o corpo e seus anseios tomem parte relevante no
conhecimento das coisas divinas.
Abordar a misticidade envolvendo Santa Teresa excluindo do escopo analítico a
possibilidade da ascensão através da corporeidade teria, segundo os proponentes de tal
aproximação, a vantagem de não conspurcar o objeto em questão com problemáticas menores e
desimportantes; em outras palavras, um conhecimento das motivações de determinado mártir
santificado que se demorasse em aspectos relativos ao desejo meramente carnal constituiria
sempre uma experiência superficial devedora de vícios analíticos contemporâneos – pré-
conceitos hodiernos, em suma.
Sob a justificativa de uma apreensão mais profunda da experiência mística através de
determinada obra de arte - pois não influenciada por concepções equivocadas -, tal abordagem
desconsidera, inicialmente, que a suposta pureza estética da escultura de Bernini não existe fora
de significações específicas orientadas pelos dogmas aos quais, direta ou indiretamente,
responde. Se o corpo e a sexualidade para a dogmática cristã constituem um problema por vezes
insolúvel, e sanável apenas pela via da interdição, não é forçoso reconhecer que a interpretação
do prazer místico que roga para si decorre das intenções pretendidas por quem a endossa.
Ademais, é necessário considerar que a própria misticidade concernente a personagens da
hagiografia cristã entre os séculos não se materializou em sacralizações e empreendimentos
artísticos sem complicações e embates com as pretensões de instituições religiosas e seus líderes.
Decidir cada aspecto da representação de uma figura santificada a partir da definição de seus
contornos palatáveis a determinadas audiências foi a atitude mais comumente adotada pela alta
cúpula da Igreja Católica – e da qual nem mesmo a bíblia esteve excluída.
O que assoma de tal posição, pretensamente superior dentre a alegada trivialidade
analítica de muitos, é fundamentalmente o temor da corporeidade alçada à condição de
instrumento de ascese divino-sexual: o corpo em sua função redentora rumo ao encontro de
Deus.

IV

A experiência extática de Teresa ainda está por ser reconhecida em toda sua magnitude e
importância – por católicos e protestantes, cristãos e ateus, especialistas e leigos – pela dimensão
daquilo que propõe: a restituição do corpo enquanto objeto desejante no seio da dogmática
católica, em que a potência erótica e sexual do corpo deve ser contida.
É possível objetar que a vivência corporal do desejo divino de Santa Teresa aparece como
argumento pouco sólido e fundamentado, uma vez que a própria Teresa fez questão de
conceituar como puramente espiritual as suas exasperações místicas - posição que se coaduna
com a prática mística em certa medida ordinária de vários outros santos. A ponderação de
Teresa, contudo, diz menos de sua jornada particular em direção à partilha da vida junto a Deus
que das imposições oriundas dos ensinamentos cristãos.
Cabe questionar se a recusa a admitir a parcela de desejo carnal que compete à
experiência narrada não seria reflexo das limitações inerentes ao sistema de crenças da
religiosidade dominante no contexto histórico em que Teresa encerrava-se. Ou, de maneira mais
complexa, a desconsideração do caráter erótico-sexual de sua experiência mística poderia ser a
única aproximação possível na ausência de descrições mais acuradas dos processos de ascensão
divina da santa. Como afirmar aquilo que se desconhece?

Dizer do desejo o verdadeiro nome: como, se a linguagem, medida da civilização humana


e ávida por expressar com exatidão os contornos de um conceito, muitas vezes parece ser
incapaz de abarcar o sentido último das coisas? Como se de um mergulho nas profundezas das
abstrações se retornasse apenas encharcado, sem que nada houvesse retido; como se as palavras
só existissem para provar sua ineficácia e impotência.
Talvez Teresa, a cada palavra escrita a sangue, buscasse a retratação fidedigna dos
eventos de seu contato íntimo com o Deus de sua devoção. E talvez, ao descrevê-los nos limites
de uma trajetória exclusivamente espiritual, assumisse a incapacidade de revelar outro caminho:
aquele que adentra o território do corpo em furor sexual, de cujo conhecimento depende o
sucesso da empreitada sagrada. Fosse pelo impedimento da linguagem ou pela inexperiência de
uma vida casta e reclusa dedicada desde sempre ao paraíso, a expressão do desejo de Santa
Teresa em seus termos definitivos ainda está em suspensão.
VI

De família pia, temente a Deus e de vida proba e devota, o caminho de Teresa até a
clausura era quase natural. Já encerrada nos muros do convento, a futura santa fez de sua vida o
testemunho mais inequívoco do abandono radical e profundo nos braços do divino: demonstrou
incômodo com as perturbações do enclausuramento - condição essencial da via penitente em
direção ao sagrado –, perturbações ocasionadas por motivos variados, desde a inobservância dos
princípios religiosos por parte dos responsáveis pelos mosteiros até a abertura do espaço recluso
à visitação; direcionou, então, suas paixões e interesses com maior vigor para santos e santas
cuja medida da fé era a capacidade de abnegação da vivência mundana com o objetivo de
comungar com Deus, unidos num só corpo.
É através dessa ascese inexorável que o desejo de Santa Teresa encontra a possibilidade
de sua realização plena. Apartada dos constrangimentos sociais de seu meio, encerrada nos
muros de uma clausura protetiva, a mulher e seu corpo são soberanos: o conhecimento, custoso,
de um mundo superior intangível poderá utilizar todos os instrumentos e opções disponíveis,
longe do confronto com as limitações que confinariam Teresa à constrição pudica diante da cruz
imóvel da igreja de seu povoado, ou, pela virulência de seu desejo, aos autos do Tribunal do
Santo Ofício.
Além de dotar de protagonismo desejante o corpo tantas vezes renegado por sua
denominação religiosa, o processo de abandono extático de Santa Teresa institui também um
paradoxo interessante: o ambiente do claustro, cuja existência é justificada pela necessidade de
se domar as paixões e os apetites da condição humana, é o responsável por potencializar a fúria
erótico-carnal da freira carmelita – pela ocultação que promove da existência de homens e
mulheres em relação íntima com a esfera do divino: o aspecto íntimo do desejo ocupa seu espaço
no palco físico do êxtase sexual.

VII

As obras de arte, porque resultado da criação humana, contêm a medida da imperfeição


do homem. Mas é fato que as limitações do trabalho artístico ou de sua interpretação, sobretudo
quando contestatório, também são decorrentes dos valores e preconceitos de determinada época.
Santa Teresa em êxtase arrebatador não escapou das considerações que ressaltavam no
ato de união mística com Deus o caráter irrevogavelmente divino de sua experiência, devedoras
do moralismo dogmático temeroso da corporeidade. Também, por outro lado, foi apropriada por
quem vislumbrava em sua elevação pela carne a libertação definitiva das amarras da repressão
sexual, como se o que mantivesse Teresa dependente da fé fosse menos a crença genuína e
legítima em Deus que as obrigações de seu gênero aprisionado em modos de existência
compulsórios.
Ambas as aproximações relativas a um fenômeno religioso complexo de intimidade
essencial entre humano e divino, da qual irrompe a possibilidade do conhecimento daquilo que
não é imediatamente acessível ao que o gênero humano logra êxito alcançar, são insuficientes
quanto ao que podem apreender. A tarefa que se impõe é única e hercúlea: resgatar a mulher
múltipla daqueles que, instruídos pela dogmática católica e para quem o êxtase só existe em sua
dimensão religiosa, a querem santa, e dos que, proclamando a repressão milenar que obsta a
liberdade humana, a constroem profana. Tarefa conclusa, Teresa estará livre. E toda a carne
poderá, enfim, louvar o nome do Senhor.

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