Friedrich Nietzsche
por Miguel Duclós
O "perdoem" faz lembrar uma postura irônica que o autor adota no início do aforismo. Aqui fala
também o ermitão, que tem uma postura diferente, construída a partir de seus estudos e
meditações solitários, mas que levanta a sua voz para falar contra uma postura firmemente aceita
na sociedade científica em sua época, oferecendo uma visão que, entretanto, não expressa a sua
meditação mais íntima, pois, há algo de inexprimível no que a solidão revela.
O autor já passa da ironia à crítica, ao dizer que irá falar de artes-de-interpretação ruins, ou seja,
rotula a atividade do cientista físico segundo o seu próprio conceito onde tudo pode ser visto como
interpretação, e produz uma valoração negativa, segundo uma "perspectiva avaliadora". Vejamos a
natureza desta crítica.
As aspas em "legalidade da natureza" também indicam ser este um conceito próprio da física,
talvez também se atinja aí o positivismo, ou um determinismo. De qualquer maneira, o conceito
passa a noção de um direito baseado na experiência, na impessoalidade da lei natural, universal a
todos, que, portanto devem a ela se conformar.
Ao meu ver está implícita também uma postura antidogmática na afirmação de que a "legalidade
da natureza só subsiste etc", se tomarmos o dogmatismo no seu significado original - filosófico e
não religioso - como uma opinião admitida e repassada por uma escola sem que passe pelo crivo
da crítica, ou de um exame mais detalhado.
A colocação do termo "texto" entre aspas é curiosa, não creio, mais uma vez, que compreendi
bem. Mais adiante o autor reforça a oposição entre texto e interpretação; talvez o sentido dado seja
o de "palavras que se citam para provar qualquer doutrina", ou a pretensão da física de que se
pode ler a natureza como a um texto.
Há uma crítica sagaz ao esclarecimento ilustrado, racional, que gerou a ciência moderna, uma vez
se nega a ela a certeza racional e a determina como fruto de instintos não-racionais. A crítica fica
ainda mais aguda se considerarmos que a "igualdade, liberdade e fraternidade" que apregoou a
revolução francesa derivou, de certa forma, do esclarecimento iluminista.
...
Nota: Além da tradução de RRTF na coleção Os Pensadores, Abril Cultural, foram consultados
ainda: a tradução de Paulo César de Souza, um texto de Jorge de Moraes chamado "Da
Interpretação: para uma compreensão da produção de sentidos na filosofia de Friedrich Nietzsche",
e os dicionários filosóficos de André Lalande e José Ferrater Mora.