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FOLHA 1


ENCONTRO DE PSICÓLOGOS JURÍDICOS DO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

ORGANIZAÇÃO DO V ENCONTRO
NÚCLEO DE PSICOLOGIA DA VARA DA INFÃNCIA E JUVENTUDE E DO
IDOSO DACOMARCA DA CAPITAL

ORGANIZAÇÃO DO LIVRO
SERVIÇO DE APOIO AOS PSICÓLOGOS DA CORREGEDORIA GERAL DO
TJRJ E PSICÓLOGOS REPRESENTANTES DOS NÚCLEOS REGIONAIS DA
CGJ

APOIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CORREGEDORIA GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO JUDICIÁRIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
FOLHA 2


ENCONTRO DE PSICÓLOGOS JURÍDICOS DO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

“As Metáforas do Poder: entre o público e o

privado”

Data: 29 e 30 de novembro da 2004

Programação
29/11
9h 30min – Mesa de Abertura
• Coordenação: Dr. Siro Darlan de Oliveira – Juiz Titular da 1ª Vara da
Infância e Juventude da Capital

10h – Mesa 1
• Conferência do Professor Márcio Alves da Fonseca –
PUC/SP
Coordenação: Eliana Olinda Alves – Psicóloga do TJRJ

12h - Almoço

13h 30min – Mesa 2


• Professora Bethânia Assy (UERJ)
• Dr. Geraldo Prado (Juiz de Direito da 37ª Vara Criminal)
Coordenação: José César Coimbra – Psicólogo do TJRJ

15h 30min – Mesa 3


• Professora Ana Cristina Figueiredo(UFRJ)
• Professor Sérgio Carrara(UERJ)
Coordenação: Anna Paula Uziel - Profª. da UERJ

17h – Lançamento do Livro do 4º Encontro de Psicólogos do TJRJ


Encerramento
30/11 – Restrito aos Psicólogos do Quadro da CGJ

FOLHA 3

APRESENTAÇÃO

Mais uma vez encontramos a oportunidade de lançar as


comunicações do Encontro de Psicólogos do TJRJ. Como das vezes
anteriores essa oportunidade faz a ponte entre o passado e o
presente. As palavras escritas aqui se constituem como a melhor
introdução ao que encontraremos no 6º Encontro.

Momento de (re)descobrir contribuições tão significativas: a


conferência do profº. Márcio Alves da Fonseca com a atualidade das
elaborações de Foucault; o diálogo entre a profª. Bethânia Assy e o
juiz Geraldo Prado sobre a urgência e os desafios que o ato de julgar
implica; o encontro entre os professores Sérgio Carrara e Ana
Figueiredo assinalando as contribuições da psicanálise e da
antropologia para a nossa reflexão.

Enfim, as discussões sobre “as metáforas do poder” propiciam,


neste momento, a todos nós, ferramentas preciosas para fazer frente
à realidade que é a nossa. Sem maniqueísmos, vislumbraremos nas
páginas que se seguem a parte de responsabilidade que cabe a cada
um na transmissão de sentido que as metáforas propiciam. Que
possamos acrescentar uma palavra a mais nesse elo interminável,
produzindo significados antes inauditos, talvez seja a grande aposta
que nos anima.

Boa leitura, bom encontro!

Comissão Organizadora
“As Metáforas do Poder: entre o público e o privado”

Márcio Alves da Fonseca

Considero bastante interessante o tema escolhido para este Encontro:


As metáforas do poder entre o público e o privado. Isto porque me parece não
apenas recolocar uma questão já tantas vezes tratada – a questão do público e
do privado – mas a recoloca de modo a sugerir que só faz sentido uma reflexão
sobre o público e o privado na medida em que se leva em conta o caráter
ambíguo da separação aparentemente tão óbvia entre aquilo que chamamos
de domínio público e de domínio privado.
Ao falarmos em metáforas do poder entre o público e o privado sugere-
se uma idéia de transposição de sentido ou de significado de um domínio a
outro. Fazer uma metáfora é transportar significado de uma coisa para outra, é
transportar sentido de uma coisa para outra. Digo isto porque nos parece
natural pensar no tema do público e do privado a partir de uma oposição
fundamental. A oposição que coloca, de um lado, o domínio que
corresponderia à liberdade e à auto-determinação do indivíduo, do sujeito; e,
de outro, quase como um domínio independente do primeiro, aquele
correspondente ao controle, à invasão da vida privada, exercidos pelas
instituições, pelos governos, pelo Estado, todas estas estruturas que, de algum
modo, identificamos como o domínio público.
Sem pretender negar a existência de uma certa objetividade naquilo que
entendemos ser um domínio próprio do indivíduo, o domínio, portanto, da vida
privada e um domínio próprio do coletivo, o domínio público, talvez fosse
importante pensar no quanto a separação rigorosa entre estas supostas
esferas independentes é ambígua, paradoxal e, num certo sentido, artificial.
Portanto, mais do que pensar na separação entre os domínios público e
privado, no sentido de se procurar identificar os limites precisos a cada um
deles e os transbordamentos possíveis destes limites, mais do que pensar
nesta separação, talvez fosse necessário pensarmos em suas intersecções ou,
ainda, nas condições que tornam possíveis as metáforas entre o que
chamamos de domínios público e privado. Assim, mais significativo que
especificar as distinções, os transbordamentos dos limites entre o Estado e o
indivíduo, entre a esfera pública e a esfera privada, seria procurar entender e
decifrar seus entrecruzamentos.
Nesta perspectiva, não haveria tanto sentido em se perguntar, por
exemplo, de que lado estão a Justiça, o Direito, os saberes e práticas como a
medicina, a psiquiatria e a psicologia. Não haveria tanto sentido em se
perguntar se elas seriam instâncias de afirmação dos indivíduos, de proteção
de sua liberdade, de produção de sua autonomia ou se, ao contrário, se seriam
instâncias de controle e dominação. Segundo a perspectiva que se sugere
aqui, é um outro tipo de pergunta que faz mais sentido. Trata-se da pergunta
pelas intersecções que estas instâncias – a Justiça, o Direito, a Psicologia –
permitem realizar entre o público e o privado, entre os indivíduos e o Estado,
entre a liberdade e a auto-determinação e as formas de controle e de
condução. Então, no lugar de se tentar classificar a Justiça, o Direito, os
saberes, as práticas como a psicologia, quer em instâncias de auto-
determinação e afirmação da liberdade individual, quer em instâncias de
controle e de dominação, parece ser importante considerar seu caráter muitas
vezes ambíguo pelo qual as intersecções entre liberdade e controle, auto-
determinação e dominação, tornam-se possíveis e se concretizam.
Este tipo de pergunta carregaria, digamos assim, um duplo significado,
um significado, me parece, ao mesmo tempo histórico e crítico. Significado
histórico porque sugere uma pesquisa acerca da constituição destas instâncias
de saber e de práticas, não como instâncias que pairam sobre a vida concreta
dos homens, não como instâncias independentes das vontades, dos
interesses, das determinações de caráter econômico, político, cultural e
simbólico, mas como instâncias de saberes e de práticas que necessariamente
carregam as marcas de todas estas determinações.
Ao lado deste significado histórico, estas questões relativas às
intersecções também apresentariam um caráter crítico ou teriam um significado
crítico, porque permitiriam evidenciar as contradições inerentes às mesmas e
seu potencial paradoxal de emancipação e liberação e, ao mesmo tempo, de
dominação, de controle. Pensar nas interseções entre o público e o privado,
entre a sociedade e o indivíduo, entre o Estado e a vida privada. Pensar,
igualmente, que papéis desempenham em tais interseções instâncias como o
Direito, a Justiça, saberes como a psiquiatria e a psicologia. Esta parece ser
uma tarefa que se impõe a cada um que de algum modo atua nestes campos
delimitados.
Este tipo de reflexão, esta forma de problematização dos saberes e das
práticas que se preocupa antes com as intersecções do que com a suposta
independência entre o que entendemos por domínio público e privado, é muito
familiar a alguns trabalhos de Michel Foucault, filósofo francês contemporâneo,
cujo aniversário de vinte anos de morte acontece justamente neste ano de
2004. Neste sentido, talvez seja interessante retomarmos alguns de seus
estudos em que os cruzamentos - e não as separações - entre domínios sejam
postos em evidência, domínios estes, por exemplo, como o Direito e a
Medicina, a Justiça e a Psiquiatria ou mais genericamente as funções Psi;
como Foucault as designa no curso do Collège de France, de 1974.
Nestes estudos, o privilégio conferido à trama das intersecções permite
que acompanhemos a gênese de algumas figuras que parecem carregar esta
marca emblemática, o traço peculiar da indistinção entre o público e o privado,
entre o individual e o coletivo, entre o particular e o comum, o natural e o
artificial. Trata-se de uma série de estudos de Foucault a que podemos chamar
de genealogia do anormal, figura histórica dotada de uma feição natural que
teria surgido, segundo o filósofo, precisamente no cruzamento, nas
intersecções entre os discursos médico e judiciário, entre os discursos do
Direito, da Justiça e da Medicina, mais precisamente da psiquiatria. Tomemos,
então, alguns momentos desta genealogia do anormal ou da noção de
anormalidade realizada por Foucault como simples ilustração da hipótese que
procuramos sugerir aqui. Em virtude de tal hipótese faz mais sentido,
relativamente ao tema do público e do privado, pensar nas condições que
determinam as intersecções e os cruzamentos entre liberdade dos indivíduos e
controle exercido pelas instituições, do que pensar numa separação rigorosa,
precisa, de seus domínios e de seus limites.
Foi pesquisando o aparecimento das noções de normal e anormal no
seio da ciência médica, mais precisamente no seio das práticas da psiquiatria
do final do século XVIII e do início do século XIX, que Foucault chega à idéia
de norma, que será tão importante em seus escritos. A noção de norma, tal
como aparece em Foucault, não deve ser buscada prioritariamente do lado do
Direito, da lei, mas do lado da medicina, dos saberes e das práticas que atuam
sobre a vida. Particularmente em dois cursos que ministrou no Collège de
France, os cursos dos anos de 1974 e 1975, encontramos uma espécie de
genealogia da figura do anormal realizada pelo autor. Nestes dois cursos nos
limitaremos a tomar apenas algumas passagens que nos permitem reconstituir
parcialmente esta genealogia.
Um comentador de Foucault, Frederic Grou, em seu livro Foucault e a
Loucura, aponta para o fato de que no curso de 1974 intitulado O Poder
Psiquiátrico, Foucault retoma uma análise dos arquivos psiquiátricos no ponto
em que a havia deixado em seu livro A História da Loucura, de 1961. Trata-se
da análise do tratado médico-filosófico sobre a alienação mental do Dr. Pinel.
Este texto de Pinel, que serviu para Foucault encerrar seu livro sobre a loucura,
será retomado no curso de 1974 com o interesse de evidenciar algumas cenas
terapêuticas ocorridas no interior de uma ordem disciplinar presente na
instituição asilar.
Assim, neste curso, Foucault volta sua atenção aos dispositivos
concretos, aos efeitos arquitetônicos, às técnicas de intervenção do
panoptismo asilar, procurando pesquisar uma tática geral de poder. E será
segundo esta nova perspectiva que fará a análise do ato terapêutico como uma
espécie de batalha, como o lugar em que se desenrola uma certa luta entre o
louco e o médico, de modo que a vitória deste último sobre o primeiro
representa a possibilidade de sua cura. Para Foucault, o asilo do final do
século XVIII e do início do século XIX será organizado como um campo de
batalha. A cena que serve para ilustrar o modo de ser do asilo psiquiátrico
naquele momento é a cena da perda da razão do rei George III, no ano de
1788. Pinel descreve tal cena e Foucault a retoma na segunda aula do curso
de 1974. Trata-se de um monarca, de um rei que perde a razão. O rei é
entregue aos cuidados do médico, que o dirige a partir daí. Os elementos da
cena funcionam como uma espécie de cerimônia de destronamento. Separado
de sua família e destituído de sua realeza, o médico declara que ele, o rei, não
é mais o soberano.
A loucura faz com que o rei seja destituído do poder soberano, mas
também o insere em um domínio de um outro tipo de poder, que se opõe termo
a termo ao poder da soberania. Trata-se de um poder anônimo, sem face, sem
nome, um poder que se manifesta pela implacabilidade de um regulamento.
Um poder que não tem o caráter de se concentrar em alguém, mas tem a
função de produzir efeitos sobre o corpo descoroado do rei. No desenrolar do
tratamento ou da cena do tratamento do rei George III, quando este se revolta
contra o médico e lança sobre ele as suas imundícies, o rei é apanhado com
força, jogado sobre a cama, tem suas roupas arrancadas e é lavado. Aqui
também vemos outro deslocamento da cena do poder em relação à cena do
suplício; nesta cena invertida quem sofre o suplício agora é o rei.
Para Foucault, a reconstituição da cena da loucura do rei George,
descrita no tratado sobre a alienação mental de Pinel, seria bem mais
significativa para expressar o surgimento da psiquiatria ou da protopsiquiatria,
como ele a denomina, do final do século XVIII e início do século XIX, do que o
gesto emblemático de Pinel libertando os loucos do asilo de Bissec. Na
seqüência desta cena da loucura do rei George, segundo este filósofo, poder-
se-ia traçar o futuro de outras cenas, como aquela do tratamento moral cujo
principal autor foi o Dr. Louré, no final dos anos de 1870, como também as
cenas da descoberta da prática da hipnose, da constituição da psicanálise e,
enfim, da anti-psiquiatria do século XX.
No interior desta história dos episódios da psiquiatria, história que
prioriza o aspecto do poder de normalização nela implicado, é que ocorrerão as
análises do autor sobre o surgimento da noção de anomalia. Após discutir a
emergência do poder psiquiátrico como uma espécie de intensificador da
realidade em relação à loucura, um poder em que a cura consistirá na
submissão do louco à realidade da qual sua loucura o afasta, Foucault irá se
dedicar a estudar a generalização deste poder psiquiátrico para outras
instâncias em que é necessário se fazer a realidade funcionar como poder.
Como pôde se dar a generalização do poder psiquiátrico para outras
instâncias ou instituições? Tal processo parece ter se dado, segundo este
filósofo, sobretudo através da psiquiatrização da infância, como também,
evidentemente, através da psiquiatrização do criminoso. Segundo Foucault, é
na junção, no engate hospital – escola - instituição sanitária - modelo de saúde
– sistema de aprendizagem, que se deve procurar o princípio de difusão do
poder psiquiátrico. Neste processo a noção de desenvolvimento será
fundamental. Esta noção permitiu, segundo Foucault, o estabelecimento de
uma certa linha de separação entre vários tipos de caracteres. Em relação a
alguns indivíduos fala-se, por exemplo, em uma interrupção no
desenvolvimento psicológico. Em relação a outros não se fala em interrupção,
mas em lentidão. Em nenhuma dessas situações reportam-se propriamente à
noção de loucura ou doença mental. A importância de tal distinção está na
idéia de que o desenvolvimento não é algo de que se é dotado ou de que se é
privado mas consiste em um processo que afeta toda a vida orgânica e
psicológica do indivíduo. Neste sentido, o desenvolvimento é comum a todos,
mas é comum como uma espécie de otimum, uma regra de sucessão
cronológica que possui um ponto de chegada determinado.
O desenvolvimento é uma espécie de norma em relação a qual nos
situaríamos, muito mais do que uma virtualidade que se possui em si mesmo.
Com a noção de desenvolvimento vê-se desenhar uma dupla normatividade:
uma normatividade que será aquela do adulto – aqui o adulto aparece como
ponto ao mesmo tempo real, ideal, da finalização do desenvolvimento – e, de
outro lado, outra normatividade que corresponde a uma média referida à
própria infância; é a média da velocidade do desenvolvimento relativamente a
maior parte das crianças.
Com este tipo de análise vemos aparecer algo que será a especificação,
no interior da infância, de um certo número de organizações, de estados e de
comportamentos, que não têm propriamente o caráter de doença mas que são
desvios relativamente a duas normatividades: aquelas da criança e do adulto e
que são emblemáticas, definitivas. Neste ponto Foucault afirma que vemos
aparecer aí algo que é precisamente a anomalia. A criança chamada na época
de idiota ou retardada no desenvolvimento não seria uma criança propriamente
doente nem louca mas uma criança anormal. Deste modo, a categoria da
anomalia não teria se referido primariamente ao adulto mas à criança. No
século XIX o adulto é que podia receber a designação de louco e não se
concebia a possibilidade real de uma criança ser considerada louca. Em
contrapartida, a criança com problemas de desenvolvimento é que irá receber a
designação de criança anormal.
Foi através dos problemas práticos colocados pela criança com
problemas de desenvolvimento, que a psiquiatria, dirá Foucault, está em vias
de se tornar algo que não seria mais o poder que controla e corrige a loucura,
mas algo infinitamente mais geral e perigoso, que é o poder sobre o anormal, o
poder de definir aquele que é desviante da norma. Progressivamente a
categoria da anomalia iria recobrir todo o campo dos problemas práticos
daquilo que se constituiu na vasta família que vai do mentiroso ao
envenenador, do pederasta ao homicida, do onanista ao incendiário. A
psiquiatria poderá, assim, se ligar a toda uma série de regimes disciplinares
que existirão em torno dela, em função do princípio de que ela representa ao
mesmo tempo uma ciência e um poder sobre o anormal.
Passemos agora a algumas breves passagens de um outro curso, de
1975, intitulado justamente “Os Anormais”, a fim de recuperarmos mais alguns
fragmentos desta chamada genealogia do anormal, realizada por Foucault.
Tais fragmentos podem contribuir para pensarmos justamente nas intersecções
entre os domínios público e privado, a partir do exemplo específico de
cruzamento dos discursos médicos e judiciário, constitutivos desta figura da
anormalidade. Foucault inicia o curso daquele ano de 1975 fazendo uma
referência a uma série de laudos psiquiátricos em matéria penal. Uma das
séries se refere a três homens que haviam sido acusados de chantagem em
um caso de envolvimento sexual. É interessante atentarmos para alguns
extratos destes laudos psiquiátricos que instruem o caso em questão. Eu leio
alguns trechos:

X, uma das pessoas envolvidas naquele caso, “intelectualmente, sem


ser brilhante, não é estúpido. Encadeia bem suas idéias e tem boa memória.
Moralmente é homossexual desde os doze ou treze anos e esse vício, no
início, teria sido uma compensação às zombarias de que era vítima quando
criança, por ser criado pela assistência pública”. Mais adiante, sobre essa
mesma pessoa, ainda se lê: “X é totalmente imoral, cínico, falastrão até. Há
três mil anos certamente teria vivido em Sodoma e os fogos do céu com toda a
justiça o teriam punido por seu vício”.
Em outro extrato, no mesmo caso, sobre outro dos indivíduos
envolvidos, se lê o seguinte:
“Z é um ser deveras medíocre, do contra, de boa memória, até encadeia
bem as idéias. Moralmente é um ser cínico e imoral, mas o traço mais
característico de seu caráter parece ser uma preguiça, cujo tamanho nenhum
qualificativo conseguiria dar idéia. É evidentemente menos cansativo trocar
discos e encontrar clientes numa boate do que trabalhar de verdade. Aliás, ele
reconhece que se tornou homossexual por necessidade material, por cobiça e
que, tendo tomado gosto pelo dinheiro, persiste nesta maneira de se conduzir.
Conclusão: ele é particularmente repugnante”.

Estes extratos de laudos médicos são parte das conclusões dos exames
médico-psicológicos a que foram submetidos três homossexuais detidos por
furto e chantagem em uma cidade no interior da França no ano de 1974.
Foucault dirá que há muito a ao mesmo tempo muito pouco a ser dito sobre
este gênero de discursos. São discursos que têm o poder de determinar uma
decisão da justiça sobre a liberdade ou a detenção de alguém. Funcionam
como discursos de verdade no interior da instituição judiciária, discursos de
verdade porque detentores de um status científico na medida em que são
pronunciados por pessoas qualificadas para dizê-los. Discursos que podem
prender, que podem matar, que fazem rir. Esses discursos cotidianos, de
verdade, que matam e que fazem rir, estariam, segundo o filósofo, no centro de
nossa instituição judiciária. Neles, vimos se cruzarem a instituição judiciária e o
saber médico. Entretanto, quando observamos de perto o seu conteúdo,
percebemos a curiosa propriedade de serem como que estranhos aos dois,
tanto às regras, mesmo às mais elementares, de formação de um discurso
científico, como às regras de Direito, pois dizem coisas que fogem aquilo que
interessa especificamente, formalmente, à lei.
Daí o nosso estranhamento ao lermos esses discursos a ponto de nos
causar alguns risos. Tal estranhamento se deve ao fato de que tais discursos
não se refiram propriamente a criminosos ou indivíduos inocentes, nem a
indivíduos doentes ou sãos, mas a indivíduos que pertencem a outra categoria,
dirá Foucault, à categoria da anomalia. Os laudos médico-legais não são
homogêneos nem ao Direito nem à Medicina, não derivam do Direito nem da
Medicina; endereçam-se a um objeto diferente, a uma espécie de terceiro
termo, recoberto, de um lado, pelas noções jurídicas de delinqüência e
reincidência e, de outro, pelos conceitos médicos de doença e de saúde. Tais
discursos estariam ligados a uma forma de poder, aquela mesma forma de
poder a que é submetido o rei George III, destronado, que transforma o poder
judiciário e o saber psiquiátrico em instâncias de controle da anormalidade. E
não somente em instâncias de controle do crime ou instâncias de tratamento
da doença, respectivamente.
No restante deste curso Foucault procura pesquisar como o domínio
compreendido pela categoria da anomalia teria se constituído historicamente a
partir de três figuras: a figura do monstro humano, a do onanista, e a figura dos
indivíduos a quem seria possível corrigir, os chamados incorrigíveis. Tais
figuras seriam os ancestrais dos anormais. Esses fragmentos tomados de
modo pouco rigoroso, de uma certa genealogia do anormal elaborada por
Michel Foucault em dois de seus cursos no Collège de France, certamente têm
o interesse de explorar essa noção de anormalidade que, segundo Foucault,
teria sido constituída historicamente. Esses fragmentos não têm a qualidade de
revelar ou de procurar definir uma verdade histórica da psiquiatria ou mesmo o
verdadeiro papel da justiça criminal na formação da noção de anormalidade.
Não é essa a nossa pretensão nem era a de Foucault. As histórias que esse
autor constrói, a partir de fragmentos que recolhe e que intencionalmente
seleciona, têm um sentido propriamente genealógico, que ele chama de
genealogia do anormal. Ou seja, não se trata de pesquisar uma origem
primeira, uma verdade primeira sobre um fato, uma situação. Trata-se, antes,
de reconstituir aspectos de um certo engendramento, de uma certa formação
histórica, com o intuito de problematizá-la.
Neste sentido, uma problematização importante que esta genealogia da
noção de anormalidade escrita por Foucault possibilita refere-se à matização
dos domínios público e privado, permitindo questionar sua distinção e seus
domínios precisos. Ao contrário da separação e da independência entre uma
esfera de liberdade e auto-determinação do indivíduo, de um lado, e um
domínio de controle e condução por parte das instituições e do Estado, do
outro. Este tipo de pesquisa genealógica permite evidenciar as incontáveis
intersecções entre estes domínios. Parece-me que esse é um dos aspectos
fundamentais a ser levado em conta numa discussão acerca do tema do
público e do privado. Penso que a pergunta sobre as intersecções entre estes
domínios, e não apenas pela sua distinção e seus limites, é que permite a
compreensão de algumas das metáforas possíveis entre os processos de
objetivação e de subjetivação que nos constituem. A esse título, e também a
título de conclusão dessa fala, permito-me retirar do contexto em que é citado
por Foucault e reproduzir aqui um diálogo um pouco longo, citado pelo filósofo
no curso O Poder Psiquiátrico, de 1974, entre Lauré, um importante médico
psiquiatra da época, e um paciente do asilo de Salpetrière. O diálogo é o
seguinte:

- Como a Sra. está se sentindo?


- Minha pessoa não é uma senhora. Chame-me de senhorita, por favor.
- Não sei seu nome, diga-o, por favor.
- Minha pessoa não tem nome. Ela deseja que o senhor escreva.
- Mas eu teria de saber como é chamada, ou melhor, como era chamada
antigamente.
- Compreendo o que o senhor que dizer. Era Katarina, mas não se pode mais
falar o que acontecia antes. Minha pessoa perdeu seu nome ou ela deu seu
nome ao entrar nesta instituição.
- Qual a sua idade?
- Minha pessoa não tem idade.
- E essa Katarina de que acaba de me falar. Que idade ela tem?
- Não sei.
- Se a senhorita não é a pessoa de quem fala, não serão então duas pessoas
numa só?
- Não, minha pessoa não conhece a que nasceu em 1979. Talvez seja aquela
senhora que o senhor está vendo ali.
- O que a senhorita fez e o que lhe aconteceu desde que é a sua pessoa?
- Minha pessoa residiu na casa de saúde, fizeram com ela e continuam fazendo
experiências físicas e metafísicas. Olha ali uma dessas pessoas invisíveis que
desce. Ela quer misturar a voz dela com a minha. Minha pessoa não quer, ela a
manda embora.
- Como são essas pessoas invisíveis que a senhora fala?
- São pequenos, impalpáveis, pouco formados.
- Como se vestem?
- De avental.
- Que língua falam?
- Falam francês, se falassem outra língua minha pessoa não os entenderia.
-Tem certeza de que os vê?
- Toda certeza. Minha pessoa os vê, mas metafisicamente, na invisibilidade,
nunca materialmente, porque neste caso não seriam mais invisíveis.
- A senhorita às vezes sente estes invisíveis em seu corpo?
- Minha pessoa os sente e fica muito aborrecida. Eles me fizeram toda sorte de
incidências.
- Como a senhorita está sendo tratada aqui, na Salpetrière?
-Minha pessoa está muito bem, é tratada com muita bondade. Ela nunca pede
nada às serviçais.
- O que acha das senhoras que estão nesta sala, com a senhorita?
- Minha pessoa pensa que elas perderam a razão.

Foucault considera este diálogo como uma formidável descrição da


existência asilar. Depois que o nome daquela mulher foi dado ao entrar
naquela instituição, uma vez constituída esta individualidade administrativa e
médica, não resta mais do que esta minha pessoa, que a partir de então só fala
em terceira pessoa. Ora, me parece que na trama dos processos de nossas
objetivações e subjetivações, talvez nosso maior desafio não seja marcar
idealmente os limites entre o público e o privado, mas seja antes decifrar
alguns dos cruzamentos, algumas das intersecções a partir dos quais ainda
podemos falar em algo como minha pessoa.
O DECLÍNIO DO IMAGINÁRIO PÚBLICO
Bethânia Assy1

A atrofia da capacidade de imaginar aquilo que nos diz respeito somente


em comunidade atingiu um patamar que mencionar sentimentos públicos já
não faz qualquer sentido, muito menos em se tratando de definir felicidade e
safistação. A propensão de equalizar o imaginário de aprazimento
exclusivamente às aspirações e aos êxitos pessoais ou ao concomitante
contentamento material nas sociedades de consumo demonstra não só o
empobrecimento do nosso imaginário público, mas o aniquilamento de nossa
capacidade de se comprazer com algo que não traga consigo expectativas e
interesses particulares. De fato, a tentativa de escapar à inexorabilidade de
eventos históricos irreconciliáveis, e ao próprio desnudamento da
vulnerabilidade da condição humana, levaram, segundo Hannah Arendt, as
sociedades contemporâneas a um robustecimento da esfera privada. A
sobrevalorização da experiência interior paulatinamente ocupou a esfera
pública ao inflacionar o espaço coletivo com interesses privados,
idiossincrasias individuais e satisfações pessoais. O espraiamento da
supervaloração das experiências interiores tem-se mostrado inversamente
proporcional ao desencantamento e extenuação dos espaços potenciais
daquilo que nos diz respeito apenas como membros de uma comunidade, não
tanto do espaço objetivo entre homens (objective in-between space), à
fabricação, à poiesis do mundo, mas sobretudo do espaço intersubjetivo, às
ações, a práxis (subjective in-between space), responsável pela edificação de

1
Doutora em Filosofia pela New School for Social Research – New York – USA. Professora
de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
uma espécie de imaginário da coisa pública.

Muito embora a preocupação moderna com o self, que se iniciou com


Descartes, adquiriu fôlego com Kierkegaard e culminou no existencialismo
europeu, já apontasse uma dose considerável da crise de credibilidade com a
promessa e a realidade que o mundo poderia nos oferecer, os catastróficos
adventos políticos de meados do século 20, em particular o Holocausto e as
"imagens do inferno na terra"2, como os campos de concentração eram
metaforizados, selaram o que Hannah Arendt chamou de perigo de
"desmundialização" (worldlessness) da nossa era. O mundo desde então não
seria mais um lugar seguro, restando, paradoxalmente, como derradeiro confim
de seguridade, a experiência "verdadeira e autêntica" do self.

Em A condição humana a autora estabelece um paralelo substancial


entre a conquista do espaço em 1957 e um processo de alienação do mundo,
deslocando o ponto arquimediano de nossa confiança e credibilidade para uma
região ausente de qualquer topos, de qualquer espacialidade, ou seja, para a
interioridade do self. Afinal, o alcance dos objetos fabricados pelos homens
rompera os limites topográficos "em direção aos primeiros passos para escapar
do aprisionamento dos homens a terra"3. Essa declaração, feita pela impressa
americana da época, longe de acidental, deflagrava um deslocamento do valor
da experiência humana da perspectiva do mundo para a interioridade não
compartilhada do self Justamente para fazer face a essa tendência, que o
prólogo de A condição humana notabiliza a conquista do homo faber, o
lançamento do primeiro satélite artificial em tomo da terra fabricado pelo
homem, para introduzir uma obra essencialmente atenta à desvalorização da
atividade de agir conjuntamente. Tanto na preservação e na continuidade
quanto na criação e na espontaneidade, do mundo e dos homens, a autora, ao
descrever as atividades da vita activa, faz uso de expressões que privilegiam a
localização dos acontecimentos humanos, quais sejam, o espaço da aparência,
os domínios público e privado, a teia de relações, a pólis; de modo a tomar a
espacialidade sua dimensão mais profícua: o espaço onde o homem trabalha,
fabrica, e age criativamente.

2
Veja-se: ARENDT, Hannah, "The Image of Hell," em Essays in Understanding 1930-1954.
New York, San Diego and London: Harcourt Brace & Company, editado por Jerome Kohn,
1994, pp.l97 -205.
3
(tradução ligeiramente modificada) ARENDT, A condição humana. Trad. brasileira de
Roberto Rapouso, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 1 (The Human Condition.
Chicago-London: The University of Chicago Press, 1989, p. 9).
Ao contrário da valorização da imagem corporal, na qual ser e aparecer,
de certa forma, também coincidem, o que está por detrás da valorização
arendtiana do espaço público da aparência é fornecer um fórum para a
liberdade humana entendida não como horizonte das experiências interiores,
mas como um espaço do exercício da virtuosidade pública.

A fenomenologia arendtiana de "ser-do-mundo" e não meramente "estar-


no mundo" visa uma nova simbologia cultural que leve em conta também uma
forma pública de vida. De tal forma que, ao final, uma parcela considerável das
nossas satisfações e aprazimentos seria fruto do compromisso com a
comunidade na qual vivemos, por meio do reconhecimento da superioridade do
cuidado com o mundo e com o bem-estar coletivo sob os caprichos e
interesses individuais.

Ao reverso dos que tomam a estética, juízo de gosto e satisfação, como


alternativa individualista à universalidade da razão na ética, Hannah Arendt vai
apropriar a estética kantiana a fim de saIientar a capacidade humana de sentir
prazer com aquilo que "interessa apenas em sociedade"4, a despeito de
nenhuma retribuição no âmbito das sensações privadas. O resultado de tal
compromisso é a realização de uma forma pública específica de felicidade. "A
vida em comum era caracterizada por sua capacidade de proporcionar
'felicidade pública', quer dizer, uma felicidade que só poderia ser obtida em
público, independente da vida privada. A possibilidade de desfrutar desta
felicidade pública tem decrescido na vida modema, pois nos dois últimos
séculos a esfera pública tem se retraído"5. Para que possamos ser capazes de
desfrutar desta felicidade pública é fundamental o que se pode chamar de
cultivo de sentimentos públicos, o que em absoluto significa alcançar uma
instância neutra que equalize os sentidos de sociabilidade com uma
perspectiva geral, nem, muito menos, o mero esforço racional em deliberar
acordos e consensos. É particularmente no que denomina de sensus
communis, o cultivo de sentimentos comuns aos outros em uma mesma
comunidade, que podemos exercitar a capacidade de sentir satisfação por

4
ARENDT, Hannah. Lições sobre a filosofia de Kant. Trad. de André Duarte, Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1993, p. 94 (lectures on Kant’s Political Philosophy. Edited with na
interpretative essay by Ronald Beiner, Chicago: Ed. The University of Chicago Press, 1982, p.
73).
5
ARENDT, Hannah. “Public rights and Private Interests: Response to Charles Frankel”, em
Small Comforts for hard Times: Himanists on Public Policy, editado por Michael Mooney e
Florian Stuber, New York: Columbia University Press, 1977, p. 104.
aquilo que "interessa apenas em sociedade"6, ou ao que Hannah Arendt,
fazendo uso de um vocabulário kantiano, nomeia de "deleite desinteressado",
de natureza pública, embora nem de caráter caritativo ou mesmo altruístico7.

Sociabilidade é a "própria origem, e não meta da humanidade do


homem; ou seja, descobrimos que a sociabilidade é a própria essência dos
homens na medida em que pertencem apenas a este mundo. Isso é um ponto
de partida radical de todas as teorias que enfatizam a interdependência
humana como dependência com relação a nossos companheiros tendo em
vista nossas carências e necessidades"8. A humanidade, quer dizer, a
comunalidade como um atributo que pertence aos seres humanos apenas, é o
espaço mesmo da gênese dos homens, engendrados sobre sua condição de
mundaneidade. Descrita como estatuto ontológico dos seres humanos, o
atributo da pluralidade reitera-se com freqüência nos escrito arendtiano. A
interação é a base estrutural da ação humana.

A autora de A condição humana lança mão do vocabulário


heideggeriano para valorizar precisamente o que Heidegger desvaloriza. Como
bem assinala Benhabib "O espaço de aparência é ontologicamente reavaliado
por [Arendt], precisamente porque seres humanos podem agir e falar com os
outros apenas na medida que eles aparecem para os outros"9. Implica em
compartilhar o mundo com os outros por meio de atos e linguagem, isto é, ser
visto e ouvido pelos outros, de forma que, ao julgarmos, o fazemos
necessariamente como membros de uma comunidade10. O sensus communis
certifica tal comunicabilidade, peculiaridade capital em termos de julgamento
efetivo. A experiência do senso de comunalidade no julgamento de gosto
chama atenção para uma forma de existência comum particularmente humana:
6
ARENDT, Hannah. “Critique of Judgment”, Seminar Fall 1970, New School for Social
Research, manuscrito inédito, Hannah Arendt’s Papers, The Manuscript Division, Library of
Congress, Washington DC, container 46, p. 032415.
7
ARENDT, Hannah. Lições sobre a filosofia de Kant, p. 94 (original, p. 74).
8
(trad. Mod.) ARENDT, Hannah. Lições sobre a filosofia de Kant, p. 94-5, original p. 73-4).
9
BENHABIB, Seyla. The Reluctant Modernismo f Hannah Arendt. London – New Delhi: Sage
Publications, 1996, p. 111. Ao contrário de Arendt, Heidegger estabelece uma relação
suspeita no que diz respeito à aparência, considerando-a também a condição de ocultação
da verdade (aletheia) do ser (Sein), o espaço de inautenticidade (Uneigentlichkeit), o estado
de queda (Verfallenheit), e o estado de ser lançado (Geworfenheit).
10
Mesmo ao considerar a comunalidade constituição ontológica do homem, o sensus
communis, de fato, reflete nossa condição factual concreta, fenomenologicamente verificável,
que opera, simultaneamente, a condição de validade de linguagem, comunicação e
compartilhamento em geral. Veja-se: FORTI, Simona, "Sul 'Giudizio riflettente' Kantiano:
Arendt e Lyotard a Confronto," in La Politica tra Natalità e Mortalita - Hannah Arendt. Edited
by Eugenia Parise. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1993, p. 124.
a pluralidade constituída por linguagem e ação. O sensus communis garante a
comunicação. Comunicar-se não se confunde com expressar-se11. Possibilita
que se fale em termos de natureza comum do homem, e por conseqüência, de
comunalidade política. Nossa natureza comunal não se deve apenas à
necessidade de preservação da espécie e de satisfação do reino das
necessidades, sem dúvida melhor realizadas em conjunto. Compartilhamos a
capacidade de associação natural com outras espécies, essencial à vida
biológica como um todo (humana e animal), à preservação da vida. Já a
capacidade de praxis e lexis nos confere uma outra forma de comunalidade,
nos institui uma outra forma de existência comunal, koinon, a capacidade
humana de se organizar politicamente, a bios politikos.

Hannah Arendt não vaticinou, todavia, que ao invés do cultivo de


sentimentos públicos, teríamos o cultivo de uma felicidade fabricada no corpo.
A privatização do nosso imaginário às puras satisfações pessoais nas
sociedades atuais parece encontrar no corpo, justamente o espaço menos
compartilhado, que menos diz respeito ao coletivo, a consagração do nosso
aprazimento. E é justamente nele, nos seus prazeres e dores, que a autora vai
localiza a dimensão mais radical da felicidade privada. "Nada, de fato, é menos
comum e menos comunicável - e portanto, mais fortemente protegido contra a
visibilidade e audibilidade da esfera pública - que o que se passa dentro de
nosso corpo, seus prazeres e dores. Seu labor e consumo. Por isso mesmo,
nada expele o indivíduo mais radicalmente para fora do mundo que a
concentração exclusiva na vida corporal"12. Uma das formas mais reais e
radicais de felicidade privada se encerra no alivio da dor, incomunicável para
além dos limites corporais. "A felicidade alcançada no isolamento do mundo e
usufruída dentro das fronteiras da existência privada do indivíduo jamais pode
ser outra coisa senão a famosa 'ausência de dor"'13.

Tem-se desta forma, um deslocamento do nosso imaginário de


felicidade da interioridade do self para a visibilidade do corpo. Apesar de já do
domínio da aparência, a supervalorização do corpo ainda reproduz a mesma
artimanha que a autora tanto refutou, não só nas atividades da vida do espírito
11
Comunicação, linguagem, depende do sensus communis. A expressão de alegria, ou medo,
por exemplo, não depende necessariamente da linguagem. Arendt assinala que o gesto seria
suficiente, ou o som, no caso da distância tornar o gesto invisível. Veja-se: ARENDT, Lições
sobre a filosofia política de Kant, p. (original p. 70).
12
ARENDT, Hannah, A condição humana, p. 124 (original p. 112).
13
Ibid, p. 125 (original, p. 112).
quanto na ação: o desencantamento e privatização do espaço público. Um
possível diagnóstico seria que passamos por um processo de permuta de um
self ensimesmado para um corpo ensimesmado, cujas conseqüências são: o
confinamento à vida corporal do espaço derradeiro da felicidade, o
deslocamento de nossa confiança no espaço público para o interior do corpo, e
a transferência à esfera coletiva da responsabilidade por nossas satisfações
privadas. A atitude do homo faber de instrumentalização do mundo desloca-se
então para a instrumentalização do próprio corpo. A promessa mais urgente do
mundo tomou-se a busca da felicidade de um paraíso fabricado no corpo do
homem. Tem-se um desvio da noção original arendtiana de homo faber. Uma
das peculiaridades do artificialismo e da mecanização da vida natural do homo
faber se dava na orientação a uma determinada finalidade, a própria fabricação
dos objetos de consumo. Ao se instrumentalizar o corpo, perde-se a dimensão
teleológica da fabricação, que se encerrava nos objetos produzidos. o corpo é
afirmado como o próprio objeto de fabricação, cujo produto final não pode ser
alcançado. Em outras palavras, em vez de consumirmos os objetos, fabricamos
e consumimos nossos próprios corpos.

Deste modo, o que era atividade exclusiva do animal laborans, qual seja,
o exaustivo consumo dos nossos apetites, que além de ser do domínio da
necessidade se encerrava na própria atividade em si, se funde com o princípio
da fabricação. Uma fabricação sem qualquer vislumbre de telos, pois o
principal critério de medida deixa de ser o da utilidade, e passa a ser o da
felicidade limitada à ilusão de um infinito processo de fabricação e consumo do
corpo; mesmo que tal felicidade seja por pouco tempo, o tempo suficiente de
sermos tragados por uma nova possibilidade de consumirmos mais uma nova
fabricação da nossa imagem corporal. A autora de A condição humana afirmou
que a vitória do homo faber se baseava na convicção de que "o homem é a
medida de todas as coisas"14. Na promessa contemporânea de felicidade, o
ponto arquimediano não é mais o self solipsista, mas o corpo solipsista, que
passa a ser a medida de todas as coisas, o artefato humano por excelência, a
medida de fabricação da vida. Talvez a tradução consagrada do filme de Frank
Capra continue sendo elucidativa, "a felicidade não se compra", nem mesmo se
fabrica, mesmo que sua matéria-prima seja nosso bem mais precioso, nosso
corpo, onde se encerra a vida.

14
Ibid., p. 319 (original, p. 306).
AS METÁFORAS DO PODER: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO
Geraldo Prado15

Peço desculpas ao público pelo atraso. Em alguma medida este atraso é explicável,
embora não se justifique. Ele é explicável na lógica do tema principal do 5º Encontro de
Psicólogos do Tribunal de Justiça – As metáforas do poder: entre o público e o privado.

Eu esclareço, ainda antes de prosseguir com os agradecimentos e cumprimentos, que


estava no gabinete do presidente do Tribunal de Justiça juntamente com alguns juízes que
integram o movimento da magistratura fluminense pela democracia. Eu estava lá com esses
juízes, o movimento na realidade entregando ao Presidente do Tribunal de Justiça quatro
projetos de reforma do regimento interno do tribunal e do Código de Organização Judiciária que
giram em torno de dois temas: a proibição do nepotismo – uma luta antiga contra esta prática –
e o segundo pelo fim das sessões secretas e pela exigência, aliás constitucional, de
fundamentação das decisões administrativas. Além dos dois projetos que foram entregues nós
comunicamos ao presidente do Tribunal de Justiça que no próximo dia 17 de dezembro
estaremos entregando um projeto de resolução para a criação de reserva de vagas para
afrodescendentes na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro também. Então,
estávamos lá vendo, apresentando, colocando as coisas e vendo de que modo a presidência
do Tribunal vai dar encaminhamento a isso. Eu vou falar mais disso ao longo da minha
exposição, mas o que seria algo meio protocolar demorou um pouco, com isso eu atrasei e
peço desculpas a todos.

Em primeiro lugar, vou me apresentar: eu sou juiz de Direito há 17 anos, fui promotor
de Justiça durante três anos, sou professor de Direito Processual Penal da graduação da UFRJ
(Faculdade Nacional de Direito) e do Programa de Mestrado da Universidade Estácio de Sá.
Sou Doutor em Direito, sou morador, nascido e criado nessa cidade do Rio de Janeiro, pela
qual sou profundamente apaixonado. Portanto, sendo isso tudo e sendo a contradição que todo
sujeito é, penso nessas relações entre público e privado a partir da minha experiência pessoal.
Não poderia ser de outra maneira. Minha experiência como juiz, morador de uma cidade
assustada, professor encarregado de pesquisas na área da criminologia e controle social, todas
essas minhas experiências são a base daquilo que eu penso e da minha atuação na
magistratura, nas minhas relações sociais outras e até mesmo do fato de eu ter, juntamente
com outros grandes companheiros – entre os quais eu cito e presto homenagens a Siro Darlan,
Joaquim Domingos, Sílvio Teixeira, André Trendinique, André Nicolite, Cristiane Ferrari, Milene
Massali –, formado esse grupo de magistrados pela democracia (Magistratura Fluminense pela
democracia no Rio de Janeiro), cujo compromisso, já de alguns conhecido, é no sentido da
radicalização democrática, independente do que isso possa vir a nos custar. Portanto, são
todas essas experiências que formam a pessoa que está com vocês hoje e que tem que falar

15
Juiz de Direito da 37.ª Vara Criminal do TJRJ.
do público e do privado tomando talvez como referência, como ponto central, o Poder Judiciário
e a minha condição de juiz. Há um livro – Histórias de violência: crime e lei no Brasil organizado
pela Elizabeth Canceli e publicado pela UnB –, uma coletânea de artigos de muita gente boa.
Entre os excelentes autores que publicam esse trabalho, há uma professora do Rio Grande do
Sul, Ruth Gauer, antropóloga. A Ruth apresenta um texto sensacional, “Fundamentos do
moderno pensamento jurídico brasileiro” e, sobre esse texto da Ruth, a Elizabeth escreveu o
seguinte: “o segundo capítulo do livro de Ruth Gauer faz um exaustivo exercício na busca da
ruptura portuguesa com a herança das estruturas político-administrativas da Idade Média e do
romantismo, as quais informariam o nosso país colonial. Encontra, dessa forma, o modelo de
modernidade que seria adotado pelo Brasil no século XIX ao mesmo tempo em que vislumbra
a“força da tradição”, ou seja, o mesmo instante em que as inovações estariam separando pela
modernidade o público do privado, e valorizando a coisa pública com o paralelo surgimento de
uma sociedade civil, a manutenção da personalização como a força da tradição seria a
tentativa de não transformação e a permanência de regras particulares sobre gerais do
tratamento personalizado”.

Isso diz muito da nossa realidade, muita gente já enfrentou essa temática – Roberto Da
Matta, com a sua maneira de ver as coisas; a extraordinária professora da UFF, Gislene Neder,
também; Vera Malaguti Batista, que tenho certeza já trocou idéias com vocês – da questão da
permanência de práticas de particularização sobre práticas de generalização, que são próprias
de uma República. Isso no momento atual quando a gente pensa que está no século XXI, em
2004, dezesseis anos depois da edição de uma constituição que deveria produzir, se não
resgate de uma cidadania que nunca existiu, no mínimo as condições elementares para a
configuração de um novo modelo de cidadania a ser realizado diariamente. E não encontramos
isso, muito pelo contrário, parece que estamos vivendo o mesmo tipo de situação pré-1988, em
que a cidadania ainda é uma cidadania bem particularizada, ainda é uma cidadania de apenas
alguns segmentos sociais. Então, a coisa se complica e exige de todos nós um esforço de
compreensão para não reproduzirmos, no nosso atuar concreto, o que nos parece que é justo.
E todos aqui sabem que não há uma justaposição entre o justo e o legal, pode ser legal e estar
muito distante do justo. Estarmos aí a atuar, fazendo justiça e na realidade perpetuando
injustiças, segmentações, abismos, diferenciações sociais.

Como pensar isso? Embora fale para psicólogos, na maioria aqui, falo como juiz. Em
que estágio nós do Direito, nós juízes, nos encontramos? Em primeiro lugar, é necessário
compreender que o Poder Judiciário brasileiro nunca foi um poder transformador. Se nós
pudéssemos talvez fazer uma análise histórica da formação do Poder Judiciário da
modernidade, principalmente essa chave que é a Revolução Francesa, que Poder Judiciário
surge com o fim do Antigo Regime? Que Poder Judiciário é o que a comunidade espera em
uma República? Se pudermos pensar em Poder Judiciário da modernidade como sendo este
poder transformador, criador, motivador de universalidade dos direitos ou do processo de
universalização do gozo de direitos fundamentais, é evidente que estamos muito distantes
disso na realidade brasileira.
Não há como analisar o Poder Judiciário brasileiro sem analisar a sua função penal,
sua função de controle social. O Poder Judiciário brasileiro nasce como um instrumento nas
mãos do Executivo para ser realmente uma ferramenta de controle social, de segurança
pública. O modelo judiciário, digamos liberal, que em alguma medida a constituição do Império
trazia já esculpido, referido e que já estava neutralizado pelo próprio poder moderador do
imperador, aquele Poder Judiciário na prática não tinha absolutamente nada a ver com o
discurso do texto constitucional. As práticas sociais entregaram a juízes, desde o início da
história do Poder Judiciário brasileiro, a tarefa de ser instrumento de segurança pública. Juízes
como intendentes, juízes como policiais ou, em outras palavras, policiais como juízes. A
formação da nossa estrutura judiciária trazia, logo de cara, esta deformação com a atribuição
de funções de segurança pública a quem deveria ter uma posição imparcial, dentro dos limites
em que a imparcialidade é possível. Ter uma posição imparcial na gestão de conflitos. Em uma
gestão de conflitos que tenderia a diminuir o grau de conflitividade social, reduzir o nível de
violência na comunidade. Mas se isso era o modelo ideal do Poder Judiciário da modernidade
não era, por certo, o modelo do Poder Judiciário brasileiro, de uma sociedade escravocrata, de
uma sociedade marcada profundamente pelo tipo de produção que havia escolhido para ser a
sua força econômica e de uma sociedade que vivia num estado que ainda sequer se conhecia
direito. Todos sabemos que a língua falada no Brasil no início do século XIX não era o
português, era uma língua geral, era uma combinação do português de quem chegava, com as
línguas trazidas pelos africanos que também chegavam, com a língua dos índios que já
habitavam esta terra. Era uma língua absolutamente incompreensível, por exemplo, para um
sujeito culto vindo de Portugal que não tivesse a experiência de viver no Brasil durante muito
tempo. E o processo de uniformização lingüística, que é essencial na visão de muitos para a
configuração da nacionalidade, de constituição de uma unidade lingüística, se fez dentro do
próprio projeto de integração territorial brasileira, com o enfrentamento entre o poder central e
as forças provinciais numa luta que era entre conservadores: mais conservadores contra
menos conservadores. Então, uma luta de imposição da unidade territorial brasileira, a luta de
imposição de um certo modelo econômico. Todas essas lutas foram travadas entre elites
centrais e outras elites, mas seres humanos, negros, camponeses e o pessoal que já
trabalhava nas cidades numa condição infeliz foram, de alguma forma, importantes nestas
batalhas. Eu cito sempre a Balaiada como exemplo disso, porque as pessoas falam da
Balaiada mas não se lembram de que, naquele mesmo período, os negros se revoltaram em
quilombos no Maranhão, liderados por Cosme, e se não fosse a força militar dos negros dos
quilombos, o Balaio e seu grupo de liberais não tinha conseguido enfrentar o poder central
durante muito tempo. Mas esses todos certamente eram massa de manobra de um mecanismo
complicado que tinha na justiça uma das suas principais engrenagens. A justiça criminal
brasileira, no período da Regência, foi empregada ao limite para atingir dois objetivos: o
primeiro deles era não permitir que a justiça, no seu funcionamento concreto, enunciasse
regras que poderiam ser interpretadas como regras de universalização de direitos. Tínhamos
um tribunal do júri, nesse período da nossa vida no século XIX, que não tinha um juiz
profissional como hoje, com a sua predominância, a sua hegemonia no julgamento. Tinha, sim,
pessoas da comunidade que conduziam todo o julgamento e quando – nesses conflitos como a
Balaiada – alguém que integrava o grupo revoltoso dos balaios era levado a julgamento,
perante esse tribunal popular, era absolvido com o seguinte argumento: esse sujeito tem que
ser absolvido porque, na realidade, está lutando por nossa liberdade, por direitos da
comunidade do Maranhão. Ele está enfrentando o poder central, mas está enfrentando em
busca de algo que o poder central nunca nos oferecerá, o poder central nos oferece a
escravidão como modo de produção, o poder central nos oferece a aristocracia como modo de
definição de estamentos sociais e aqui, não, os balaios estão querendo coisa diferente, estão
querendo construir uma República em que haja unidade, igualdade, etc. Então, se esse
camarada matou um soldado, vai ser absolvido porque havia uma justa razão para tal. Quando
os tribunais do júri, em meados do século XIX, começavam a produzir esse tipo de decisão, o
Poder Central se deu conta de como era importante dominar o Poder Judiciário, de como era
importante não permitir que o Poder Judiciário tivesse essa independência, de como era
importante não permitir, tanto do ponto de vista ideológico como do político, ter um Poder
Judiciário capaz de dizer ao próprio governo central “olha, você está do lado errado, você não
tem razão”. Vivíamos uma época em que não havia o chamado controle de constitucionalidade
das leis, o juiz não podia deixar de aplicar uma lei por entendê-la inconstitucional e isso era
muito positivo para as elites, mas ainda assim não era suficiente. Não era suficiente porque,
apesar de tudo, era possível se produzir decisões contestando o status quo. Então, há um
desmonte, o tribunal do júri brasileiro é desmontado, e estou citando só um dos inúmeros
exemplos que poderia citar aqui. Ele é desmontado, desaparecem esses jurados que decidiam
um pouco como decidem os júris americanos que vocês assistem pela televisão: encerrado o
debate, se reuniam, conversavam entre si, trocavam idéias e, em seguida, apresentavam o
veredito, que era a posição deles, jurados, a respeito daquele caso. Aquilo desaparece, um juiz
profissional é inserido neste processo e esse juiz profissional era absolutamente ligado aos
interesses da Coroa e só permanecia naquela cidade, naquela comarca à frente daquele Juízo
enquanto bem servisse à Coroa. Seria curiosidade histórica? Seria curiosidade histórica se isso
não representasse a realidade do Poder Judiciário ao longo de toda a nossa história até bem
recentemente.

Se dermos um salto e chegarmos a dois períodos duros da realidade brasileira, 1937-


1945 e 1964-1985, veremos que o Poder Judiciário no Brasil, salvo raríssimas exceções que
podem ser enunciadas nos dedos de uma das mãos – Vitor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva,
mais dois ou três ministros do Supremo –, em nenhum momento se prestou a contestar os
regimes autoritários que produziram matança, que produziram extermínio, que produziram
diferenciação social. Portanto, a nossa folha de serviços prestados à democracia é muito
curtinha, muito pequena, medida por decisões isoladas de um ou outro juiz, e não consegue
ser vista como sendo a expressão do Judiciário da modernidade, do Judiciário defensor dos
direitos fundamentais, do Judiciário não como obstáculo à transformação social, mas como um
relevante instrumento desta própria transformação social. Isso tudo é absolutamente cultural.
Um Poder Judiciário que funciona assim independentemente do que a Constituição diga –
“todos são iguais perante a lei” –, independentemente do que as leis digam – “todos terão o
mesmo tipo de tratamento em situações tais ou quais” – é um Poder Judiciário bastante
sensível a práticas que não combinam, mas misturam o público e o privado. Há uma
privatização não só do público, mas também do Estado – e eu não confundo estatal com
público (são dimensões diferentes, uma mais abrangente outra menos abrangente). Não se
trata de fazer essa diferença, mas de pensar a coisa de uma forma diversa: um professor e ex-
ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, disse o seguinte, que é uma frase do rei Luís XIV: “o
Estado sou eu”; se fosse proferida por um brasileiro, seria diferente: “o Estado é meu”. Essa é a
percepção, porque essa configuração do Poder Judiciário servil só tem sentido se ele, nós
juízes, que temos o poder de decidir os casos concretos – podemos tirar o filho do pai e
entregar à mãe, da mãe e entregar ao pai ou tirar dos dois; podemos mandar alguém para a
cadeia por 20, 30, 40, 100 anos, podemos fazer tanta coisa – e não o fazemos porque, de
algum modo, o não fazer é objeto de algum tipo de troca. Há uma troca nisso, não se trata da
intimidação do Poder Judiciário, muito embora nós saibamos que atitudes heróicas em
momentos extremos são exigidas de heróis, não necessariamente de pessoas comuns.
Portanto, ter uma atitude heróica lá no período em que a Olga Benário está sendo embarcada
para ser liquidada pela Alemanha nazista ou uma atitude heróica em pleno período Médici no
Brasil, quando se sabia que o sistema penal que valia era o sistema penal subterrâneo e não o
sistema penal formal, é uma coisa complicada. Mas não se trata aqui de fazer referências a
atitudes heróicas, mas a decisões cotidianas que, pelo seu conjunto, são indicativas de uma
maneira de ser que já funciona como uma força capaz de controlar ou de conter o
autoritarismo, de controlar e de conter as violações dos direitos fundamentais. Esta força, que é
a soma das práticas concretas de cada juiz no seu dia-a-dia e que não precisa ser
necessariamente heróica, não precisa ser alguma coisa que vá colocar em risco a vida, a
segurança desse sujeito. Essa força não se produziu no Brasil exatamente porque a história do
Poder Judiciário brasileiro era a de ser um locus de relação promíscua com o poder. E nas
minhas pesquisas e como professor de processo penal, digo que não adianta a gente pensar o
processo penal sem ver como ele é realizado na prática. Não adianta eu dizer para o aluno que
todo sujeito que é suspeito da prática de um crime será acusado em Juízo quando, na
realidade, dentro da Delegacia de Polícia funcionam mecanismos informais de seleção para
definir quem será acusado e quem não será acusado. Aqui vai se dar o mesmo, não adianta eu
dizer para vocês que os mecanismos de seleção dos juízes são perfeitos, são ajustados a
princípios democráticos e republicanos, quando sabemos que, historicamente, até o concurso
público esteve e está sob suspeita, de tantas coisas estranhas que acontecem.

E quando começamos a observar o padrão disso na América Latina – porque também


em outros lugares o fenômeno se dá da mesma forma: na Argentina, na Colômbia e em outros
países –, vamos perceber exatamente o que está no fundo disso tudo, ou seja, as grandes
negociações que são o fator decisivo na seleção de quem vai estar no Poder Judiciário. E se
eu penso em alguém que aceita se submeter a um tipo de negociação deste gênero para ser
juiz, porque esta pessoa não vai aceitar outras tantas negociações para não perturbar o poder,
não incomodar o poder? O que é o nepotismo dentro do Poder Judiciário senão mais uma
moeda de troca? O que é a sessão secreta do julgamento sem motivação senão a
possibilidade de punir e de calar as vozes dissidentes, divergentes, quer pelos motivos mais
nobres quer apenas porque não tomam parte do banquete.
O que mais lamento em tudo isso é que nós chegamos em 1988 cheios de esperança
de mudança, participamos do processo, não nos damos conta de como esse processo ia se
realizar na prática. Havia uma utopia tão grande, uma vontade tão grande de que esse país
desse certo que nos esquecemos de ver o seguinte: a transição democrática brasileira foi
talvez uma das mais negociadas transições democráticas de que se tem notícia. Foi uma
transição democrática em que ficou muito claro para aqueles que estavam deixando o governo
que eles não estavam necessariamente deixando o poder. Quer dizer, todo mundo sabe quem
foi José Sarney, quem é José Sarney, quem foi e quem é Antônio Carlos Magalhães. Decerto,
toda transição – tecnicamente falando, em termos de ciência política – pressupõe algum nível
de negociação, mas esse nível de negociação leva em conta as forças emancipatórias que se
impõem naquele momento às reacionárias, que estão sendo vencidas, aquele grupo autoritário
que está sendo apeado do poder. No caso brasileiro não, no caso brasileiro, por uma questão
de política econômica, a transição foi uma negociação em que quem tinha as cartas na mão
era quem estava com o poder e continuou tendo depois e ficamos nós com a migalha, com o
resto e com a utopia, porque sonhar é preciso. E ficamos nós com a utopia. Dentro do Poder
Judiciário as coisas continuaram da mesma forma, dentro do Poder Judiciário aquele mesmo
nível de práticas que conhecíamos de antes, prosseguiu. Eu entrei, fui Promotor de Justiça de
1985 a 1988. Em 1988, eu ingresso no Poder Judiciário e algumas semanas depois é
promulgada a Constituição. Eu entrei numa época em que juízes não pagavam imposto de
renda, juízes até hoje têm benefícios e beneplácitos que são incompatíveis com a regra
primária de que todos são iguais perante a lei. Dizem que eu sou antipático. Tem um
restaurante no 4º andar que tem uma cerca que separa os homens de bem dos que não são de
bem. Eu fico com os que não são de bem, não tem jeito, dizem “mas você pega nas pequenas
coisas, você é muito chato”. Mas as pequenas coisas são signos, falando para psicólogos, as
pequenas coisas emitem fortes sinais de como a gente configura o mundo, que representação
mental temos do mundo, dos nossos semelhantes, se são tão semelhantes assim ou não. E aí
entra a virtude de tudo, porque se pensarmos que lá em 1850 aqueles senhores de escravos
se achavam “os reis da cocada preta”, isso é eterno e esses animais falantes vão nos servir até
o fim dos tempos e hoje nós nos damos conta de que foi possível em alguma medida mudar
isso e impor goela abaixo: todos somos iguais! Você pode não gostar do cara, mas vai ter que
aturar o malandro, você vai ter que viver com ele. Então, conseguimos transformar uma
diferenciação eterna, mudar alguma coisa, é óbvio que condenamos os escravos que saíram
da senzala, que foram para as periferias, foram sofrer outro tipo de escravidão. Mas é uma luta
constante, uma coisa dinâmica e é essa dinâmica da sociedade que nos permite acreditar em
forças transformadoras, que nos permite acreditar que às vezes seis valem mais que
seiscentos e que é possível lutar algumas vezes com as armas que estão à nossa disposição e
outras tantas construir armas novas, criativas para mudar a realidade. Dentro do Poder
Judiciário eu creio que as grandes mudanças estão vindo através de algo que é interessante
que é a classe média hoje chegando mais ao Poder Judiciário, tendo acesso à condição de ser
juízes. Não é suficiente porque a força dessa caixa de formação de mentalidade conservadora
que é o Poder Judiciário é uma força imensa. Individualmente, o sujeito tem que lutar muito
para não ceder ao gozo de ser chamado de senhor (e tem ação judicial movida por juiz para
ser chamado de senhor). Olha como isso é poderoso, mas você tem uma juventude que vai
lutando e vai superando isso, que vai tomando conta do espaço, que vai se questionando. Se
vocês olharem neste restaurante, tem muito mais juiz do lado de fora daquela cerca do que do
lado de dentro. Do lado de dentro estão os mesmos que sempre estiveram há 10, 20, 30 anos.
Do lado de fora tem toda uma magistratura que olha aquilo e fala “mas que coisa absurda, será
que esses caras se acham melhores que os outros realmente?”. Não basta isso só, não basta
uma postura individual para resolver, como não basta um para resolver as grandes questões da
violência da nossa cidade, não bastam apenas as nossas práticas e posturas individuais. É
necessárioa uma ação política, é necessário ir à luta politicamente, recuperar o senso do
sujeito político da Grécia Antiga. Entender que tudo aquilo que diz respeito à polis diz respeito a
cada um de nós. Sofrer como estamos sofrendo no Rio de Janeiro e não fazer nada é um crime
maior com as gerações do futuro. Eu termino a minha fala como eu tenho terminado no último
mês, ando tão angustiado, tão triste, ao mesmo tempo procurando força dentro de mim para
continuar com os meus companheiros nessa batalha e essa frase funciona como combustível
para mim. Os africanos costumam dizer que “o mundo não é aquele que nós herdamos dos
nossos pais mas aquele que nós tomamos de empréstimo a nossos filhos”. Portanto, é
obrigação nossa devolver melhor o que a gente pega emprestado. Não podemos devolver pior.
Essa é a significação, este é o sentido do sujeito político que cada um de nós tem que ser. Era
a contribuição que eu podia trazer. Muito obrigado!
A CLÍNICA DA SUBJETIVIDADE: ENTRE O PRIVADO E O PÚBLICO
Ana Cristina Figueiredo16

Intitulei minha apresentação de “A Clínica da Subjetividade: entre o


privado e o público” e pretendo e pretendo fazer alguns comentários, algumas
notas como preâmbulo sobre essa questão de privado e público e falar um
pouco do que estou chamando de a clínica da subjetividade. Eu diria que é
mais a clínica do sujeito, mas subjetividade é um nome de mais circulação e
tive realmente uma experiência inusitada chegando aqui no Fórum, que me fez
pensar o que é privado e público. Estou há quase 15 minutos tentando achar
esse auditório porque é um excesso de informações, indicações e setas e o
excesso de possibilidades e você se perde completamente. Não é por falta de
indicação, apesar de eu não ter visto nenhuma placa em que estivesse escrito
Auditório Antonio Carlos Amorim. Mas eu perguntava às pessoas e cada uma
me mandava para um lado. Fiquei pensando realmente que o auge do privado
é o anonimato: você está perdido em um público de massa, anônimo, com uma
alta incidência de ternos e gravatas e ninguém sabe de você nem você sabe de
ninguém. Então, acho que o insuportável do privado é esse anonimato, você
não é nada para ninguém e ninguém é nada para você, as indicações não te
levam a lugar algum e o público é uma massa amorfa. Assim, eu diria que foi
uma experiência chocante.

Acho que essa questão do privado e do público é muito própria do


campo da história e da antropologia e não vou entrar nesse detalhe, mas vou
falar um pouco da experiência do sujeito. Todos sabemos que essa invenção
do privado e do público, ou pelo menos a invenção dessa separação, marca a
modernidade. Enfim, historicamente, isso já foi dito à exaustão: a partir do
século XVIII, com certo ápice no século XIX, a separação entre privado e
público, a valorização da intimidade, do espaço privado, a nuclearização da
família, a separação entre o profundo e a superfície que marcam o chamado
individualismo burguês e nesse campo nascem todas as práticas “psi”,
16
Psicanalista e professora do Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
inclusive a psicanálise. Freud falava em psicologia profunda, alguma coisa que
fala do interior, do privado, do íntimo. Esse é o retrato, digamos, do século XIX
e da passagem ao século XX. Eu só queria marcar que também sociólogos que
estão falando isso não estão trazendo nenhuma novidade quanto a esse
campo contemporâneo. Que, ao contrário do que parece, trata-se de invasão
do público pelo privado; não é o público invadindo a privacidade, não é invasão
da privacidade como o cinema pode nos vender, com o olhar pelo buraco da
fechadura. Não é invasão da privacidade, é o privado invadindo o público. A
intimidade se expõe à exaustão na mídia, nos programas de televisão, e no
limite a gente tem esse fenômeno, nos últimos 3 ou 4 anos, que é o chamado
“Big Brother”, que é um fenômeno mundial de exposição do mais íntimo ao
olhar curioso que tudo quer ver. O privado invade o público, o privado se
expõe, se apresenta. O privado toma o público. A partir disso, como se pensa
no espaço jurídico, que deveria ser o espaço público propriamente dito, ao
mesmo tempo legislando sobre uma série de experiências da ordem do
privado? Então, fiquei pensando em varas de família, varas da infância e da
adolescência, litígios, confrontos pela posse de crianças, adoção, questões de
tutela, abuso sexual, pequenas infrações... E me perguntei: o privado invade o
público em busca de soluções? O público deve dar respostas ao privado?
Devemos manter esta distinção entre privado e público? Qual a utilidade dela,
em última instância? Qual o teor dessas respostas que nem sempre estão
escritas nas leis?

Não pretendo falar do ofício de vocês, psicólogos aqui presentes que


trabalham na esfera do judiciário. Acho que são vocês que têm de falar disso e
gostaria mais de ouvir do que falar: saber sobre os casos que aparecem, as
incidências no sistema jurídico, quais são os maiores problemas que vocês
enfrentam no cotidiano desse trabalho. Mas eu queria então marcar alguma
coisa para discussão e trazer uma referência da psicanálise a que se possa
remeter esse trabalho árduo, que toca o impossível a cada vez. O que vem a
ser essa clínica da subjetividade, do sujeito?

Eu vou marcar três coisas brevemente, três tópicos e vamos ver como é
que a gente pensa isso. Primeiro, eu queria marcar a diferença do sujeito e do
indivíduo. Se o indivíduo é o produto dessa separação entre privado e público,
ele é o privado e o público é o social, o sujeito não é exatamente indivíduo.
Pelo menos o que a psicanálise nos ensina, desde Freud, com certeza, e
depois dele, é que o sujeito se constitui primeiro numa dimensão de alteridade,
a partir de um outro. Esse outro que o constitui está presente em várias
dimensões que borram essa distinção entre privado e público e, portanto, a
gente não pode pensar só no indivíduo. Então, a gente tem indivíduos que nos
dirigem suas queixas, suas palavras, enfim, falam a nós e que se deve legislar
para punir ou educar. E o sujeito, a partir da psicanálise, eu diria que é efeito
de linguagem; a linguagem não tem dono. Essa distinção de linguagem privada
e linguagem pública não é possível de ser feita quando se fala do campo da
linguagem. Então, se o sujeito é uma produção do efeito de linguagem, ele é
pontual, ele não é um indivíduo o tempo todo, é o que se produz a partir do
indivíduo. A partir do indivíduo, a distinção de privado e público já não se
sustenta mais. O indivíduo é pensado como um corte no que se diz social. Na
questão social, a segunda coisa é que se a gente tem um sujeito que é efeito
de linguagem, que pensa e que aparece a partir da fala e que essa distinção
privado e público já não se sustenta mais, a gente tem duas dimensões da fala,
o que se diz ou o dito e o dizer. Não existe um dito sem um dizer. Quem diz, diz
alguma coisa. Então, a relação entre o dizer e o dito é uma relação estreita,
inseparável. Mas o dizer envolve a responsabilidade do sujeito, envolve a
posição a partir de onde ele diz alguma coisa. A fala é como se fosse a
linguagem funcionando, o dizer é o que você recorta na fala. O dito é o
conteúdo. O dizer não tem compromisso com a verdade porque o dizer é um
ato, assim eu disse, “eu disse e está dito”, o dito sim pode ser falso ou
verdadeiro, então você pode mentir ou dizer a verdade. O dizer é verdadeiro ou
falso, a gente está no campo do dito, o dizer não é verdadeiro nem mentiroso,
o dizer é um ato e ele parece ser extremamente importante para quem trabalha
no campo do judiciário ou pra quem trabalha em qualquer campo. Como
trabalhar levando em consideração o dizer e não só o dito. Isso é uma coisa
que eu queria marcar. O dito é o que se fixa ao mesmo tempo em que é
passível de interpretação, da atribuição de sentido, de ressignificação. Então o
dito pode ser trabalhado ao mesmo tempo. O que está dito está dito, não se
volta atrás, o dito é uma conseqüência do dizer. Se dizer é um ato, tem
conseqüências e cabe ao profissional “psi” do tribunal levar o sujeito a essa
responsabilidade do ato, no ato, porque aí existe a reposta de quem ouve o
que está sendo dito, tem o dizer do lado do profissional “psi”. O dizer é o ato de
tornar público, o que de outro modo se restringe ao privado ou ao indefinido.
Ele é extraído de uma certa falação, da controvérsia, do burburinho da fala
colocado em cena, em pauta, em ato. E aí você tem o sujeito se constituindo
em ato, a partir do seu dizer. Isso é fundamental para se fazer laudos, para se
fazer avaliações e perícias de um modo geral, para construir um laudo, por
exemplo, ou decidir coisas, e um ato perante o juiz, inclusive. O Juiz tem uma
função de acolher esse dizer como um ato.

A terceira coisa que eu queria marcar é sobre a questão da


singularidade do sujeito, se isso é privado ou público, o que é sujeito, o que é
individual e o que é singular. Tem uma certa confusão, um certo ruído nessas
três coisas e eu diria enfim que é preciso a gente trabalhar o termo
singularidade de uma maneira mais desdobrada, a primeira acepção do termo
mais corrente é de único, peculiar, exclusivo, singular. Um dizer, um ato tem
uma dimensão singular, ele é único como ato. Podemos pensar singularidade
também como um conjunto de fatores num arranjo único. O que dá a
singularidade não é a unidade e sim um composto de fatores estruturais
incidentais que constituem um momento e mesmo uma trajetória do sujeito. O
sujeito se apresenta de um modo singular ou naquele momento ou por conta
de uma determinada trajetória e o singular pode se remeter ainda à situação
mais do que ao sujeito, sujeito capturado numa situação singular. As situações
que se apresentam são singulares porque, sendo ou não previsíveis, cabe a
cada um o trabalho de lidar com isso, com um novo sentido, ou simplesmente
suportar seus efeitos. Eu acho que essa idéia de singularidade como um
arranjo único ou uma situação única é mais interessante que a idéia da
singularidade como algo essencial, de um ser único. Queria deixar algumas
indicações aqui sobre como fazer essa clínica operar, onde você tem um
sujeito que é efeito de linguagem, que se diz num ato e que tem situações
singulares. A gente tem que julgar, avaliar e analisar caso a caso. O juiz, a meu
ver, faz uma clínica do caso a caso, ele tem que decidir, julgar, caso a caso,
um conjunto de componentes que fazem daquele caso o sujeito singular, com
todas as variáveis do caso. Quanto aos profissionais “psi”, podemos pensar na
situação diagnóstica e então proponho o que a gente propõe na clínica da
saúde mental de um modo geral, de uma situação que requer a participação de
todos os envolvidos no problema. Mas, para isso, requer a convocação do
sujeito no dizer e o registro dos ditos a partir do dizer. A gente não deve, no
diagnóstico da situação, dissociar o dito do dizer. Um segundo item é a
convocação com o sujeito a cada caso compactuando frente ao juiz, ou frente a
uma situação dada, frente à sua própria determinação do sujeito como
convocação, um sujeito de resposta, de responsabilidade pelo que diz e
inclusive sobre o que já fez ou deixou de fazer. E o tempo da resposta; a
relação com o tempo é muito importante. É preciso aproveitar o tempo do
decurso de um processo jurídico, ou de um tempo que é necessário, moroso
para que as coisas aconteçam e muitas vezes há uma pressa, uma urgência de
ter que haver uma resposta. Mas é preciso abrir um hiato nesse tempo para
recolher o que for possível da narrativa dos casos fazendo aparecer com louvor
dentro do dizer, convocando porque muitas vezes, o sujeito não diz, ele se cala
ou ele é convocado a dizer alguma coisa que ele não diz, ele resiste às
intervenções. Então é preciso um tempo para convocar esse sujeito do dizer
para que ele possa tomar posição frente a seu próprio destino.
AS METÁFORAS DO PODER: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

Sérgio Carrara17

Boa Tarde! Eu gostaria de iniciar agradecendo o convite para estar aqui


com vocês. Quando eu fui convidado para participar do evento eu fiquei,
confesso, um tanto no escuro em relação a minha contribuição. Eu não sou um
profissional psi, não trabalho nessa área, eu sou antropólogo, fiz Antropologia
Social e tenho trabalhado com questões jurídicas, imagino que tenha sido esse
o motivo da lembrança do meu nome. Mas na área do Direito eu tenho
trabalhado, sobretudo, com Direito Penal, com crimes, no Mestrado eu
trabalhei durante vários anos com manicômio judiciário, com história do
surgimento do manicômio judiciário no Brasil e na América Latina. De fato o Rio
de Janeiro teve o primeiro manicômio judiciário da América Latina. Trabalhei,
portanto, com a problemática dos criminosos loucos ou dos loucos criminosos.
Essa foi a minha primeira incursão nessa área. Uma segunda incursão se deu
na primeira metade dos anos 90 quando eu coordenei uma pesquisa sobre
violência contra a mulher, também trabalhando com processos, crimes,
principalmente com processos de agressão física, que é o grosso que chega às
delegacias, trabalhando com o andamento do processo, o modo como o
judiciário reagia a esses casos. Depois disso, trabalhei alguns anos - e
continuo trabalhando, é o meu tema de pesquisa atualmente - com assassinato
de homossexuais na cidade do Rio de Janeiro, com assassinatos que
aconteceram nos anos de 1980, sobretudo. Desse último trabalho, que ainda é
um trabalho em andamento, eu derivei uma reflexão sobre os chamados
“direitos sexuais”. Talvez vocês já tenham ouvido essa expressão, não é uma
expressão nova e como vocês podem imaginar coloca de uma maneira muito
complicada a relação entre o público e o privado.

Sobretudo no Mestrado eu estive preocupado com as relações entre a


ciência e o Direito, ocasião em que trabalhei com manicômio judiciário, com os
17
Professor do Instituto de Medicina Social da UERJ e Coordenador do Centro Latino-
Americano em Sexualidade e Direitos Humanos.
experts, com os peritos, que na época não eram psicólogos, eram médicos,
sobretudo médicos psiquiatras. Trabalhei com a construção da figura do perito
e explorei um pouco a complexidade dessa relação entre Direito e ciência. Eu
vou me ater a isso, tendo claro que as duas instâncias trabalham com a
verdade de modos muito diferentes e, portanto, tem-se um nó com possíveis e
inúmeros conflitos de uma relação que eu acho que não se resolveu até hoje.
Vocês que trabalham nessa área devem muito bem saber que o Direito tem
uma grande dificuldade em trabalhar com tons intermediários, ou a pessoa é
culpada ou ela é inocente, ou ela cometeu o crime ou ela não cometeu.
Enquanto que a ciência, nas suas versões menos positivistas, não trabalha
com esse nível de certeza. Então, enquanto o Direito trabalha com o certo, a
ciência tende a trabalhar com o provável e, portanto, as conexões e as
correlações aí são complicadíssimas, as brigas de poder são enormes, eu acho
que não só no final do século XIX, mas ainda hoje, no começo do século XX -
foi esse o período que eu trabalhei.

Há uma grande discussão, da qual muitos de vocês devem ter


conhecimento, quanto ao fato de a ciência ter invadido o Direito, principalmente
a Medicina e as ciências psi, ou se elas foram convocadas, conjuradas pelo
Direito para resolver problemas que o sistema tinha dificuldade de tratar. Eu
lembro da posição do Robert Castel - que é um sociólogo francês com livro
famoso “Alienismo: a idade de ouro da psiquiatria” – que, por exemplo, trabalha
com a hipótese de que de fato os juízes chamaram os psiquiatras, os alienistas
no começo do século XIX, para dar conta de casos que a nova lógica liberal de
interpretação das ações humanas não dava conta. Uma lógica baseada no
cálculo de interesses, na idéia da racionalidade, então para se julgar um ato
tem que se aceder aos interesses e aos cálculos que o indivíduo fez para
cometer aquele ato. E, como diz o Castel, em alguns casos essa localização de
interesses não é simples. Casos, por exemplo, de parricídios, como o famoso
caso do Pierre Rivière, tratado por Foucault, que mata a família, mata a irmã e
ao mesmo tempo explica porque fez, mas é uma razão inaceitável, ele não
consegue ser processado dentro da lógica dos interesses. Portanto, os
médicos psi, os alienistas eram chamados para dar um destino a essas
pessoas. Então, há essa dúvida em relação à origem, se a ciência invade o
Direito ou se o Direito convida a ciência para se pronunciar, para funcionar
dentro do sistema judiciário. Embora eu tenha trabalhado essas questões, eu
nunca pensei em termos da relação entre o público e o privado, então de fato
para mim esse convite foi também um convite para pensar sobre essa questão
sobre a qual nunca tinha me concentrado. Então, trago para vocês são
reflexões preliminares em cima dessa experiência de alguns anos, bons anos
de trabalho nessa área, principalmente na área do Direito Criminal. Frente a
essa minha incerteza em relação à contribuição que traria, tive uma conversa
com o Eduardo, que é um dos organizadores do evento. E o que ficou de mais
consistente foi um desconforto que eu senti, um desconforto em relação à
própria atividade de psicólogo jurídico. E acho um desconforto saudável
porque, do meu ponto de vista, qualquer atividade científica que não for
acompanhada de uma boa dose de autocrítica só pode ser perigosa. Então, o
que eu sentia era um certo desconforto do próprio psicólogo jurídico quanto à
sua atuação. Não sei se estou interpretando equivocadamente. O Eduardo me
mostrou o material do Encontro, com um olho que tem na ilustração do folder e
disse que tinha um panóptico dentro do olho. Eu não consegui enxergar o
panóptico dentro do olho, mas eu entendi o que o Eduardo estava falando, pois
quando ele falava me vinham à mente duas teses que eu li - uma é de uma
psicóloga que está aqui do nosso lado, Ana Paula Uziel, e uma outra de uma
antropóloga, Adriana Viana, que trabalharam com Direito Civil, com Tribunal da
Infância e da Adolescência. A Ana trabalhando com homossexualidade e
adoção e a Adriana trabalhando com processos de guarda. E nesses dois
trabalhos, que eu recomendo para quem não leu, aparecem muito bem
descritas as atividades dos experts judiciários nessa área, ou seja, que não é a
área criminal, tanto dos psicólogos quanto dos assistentes sociais envoltos nas
suas atividades de fazer laudos, fazer pareceres, acompanhar casos. E não
fica muito claro a espécie de investigação que eles procedem na vida privada
dos candidatos à adoção ou à guarda. É como se aos psicólogos e assistentes
sociais trabalhando nessa área ficasse reservada a tarefa de julgar as vidas
privadas. Eu fico pensando se a atividade seria diferente dos experts, dos
peritos psiquiatras ou antropólogos criminais do século XIX que também
invadiam os corpos para, sob a pele, identificarem as tendências criminosas.
Eu acho que se a gente trabalhar com a perspectiva foucaultiana, a resposta é
não. Não há uma diferença entre os antigos e modernos psiquiatras forenses e
a atividade dos psicólogos e dos assistentes sociais na área do Direito de
Família.
Enquanto técnicos das ciências humanas, queiramos ou não, e eu me
incluo entre esses técnicos, somos “senhores da norma”. Para usar as
formulações de Foucault, uma norma sem a qual o edifício jurídico que se
constrói a partir do século XVIII não pode funcionar, norma que funciona sob a
lei, mas que dá sentido à lei, como o que dá sentido mais profundo a essa lei.
Então, nessa complexa relação com a lei, pergunta-se se o indivíduo tem
direito à adoção. É a norma que pergunta: esse indivíduo é capaz? São
questões completamente distintas que exigem técnicas totalmente diferentes, e
só têm sentido em determinado contexto histórico, claro. Eu vou voltar aqui a
um ponto da Ana. O século XVIII instaura simultaneamente a separação formal
entre o público e o privado, onde o privado é a esfera do indivíduo, do seu
corpo e das extensões desse corpo, da casa, do domicílio, etc., e ao mesmo
tempo instaura a necessidade de controle desse mundo privado. Pensando
foucaultianamente, você tem esse duplo imperativo, de um lado você constrói o
privado, você formaliza o mundo privado e ao mesmo tempo você cria a
necessidade de controle desse mundo privado. E é nessa injunção que nós
continuamos vivendo até hoje. Eu fiquei pensando nessas idéias e me parece
que Foucault, ao mesmo tempo espelha uma determinada concepção da
relação entre o público e o privado, entre o Estado e o indivíduoque é o que eu
gostaria de trazer para vocês. Essa representação se dilata do meu ponto de
vista de Lombroso, das teorias lombrosianas, passando pelo admirável mundo
novo. A Ana também se refere à idéia do Big Brother... e vai até a um filme que
eu gostei muito - Minority Report - que eu acho que muitos de vocês devem
ter visto. Embora eu não seja fã do Tom Cruise, o filme é muito interessante,
baseado num romance de um dos melhores escritores de ficção científica
americanos. O filme é muito interessante porque tudo é transparente, as
edificações, os edifícios são feitos de vidro, você vê imediatamente tudo o que
se passa no interior desses edifícios. Nesse mundo, você tem três figuras que
são videntes, espécies de sensitivas que ficam numa sala e elas ficam
recebendo impressões de crimes que vão acontecer e, portanto, não só os
prédios são transparentes mas os indivíduos e suas intenções também são
transparentes, pelo menos para essas figuras. No momento em que elas
antevêem um crime, a polícia entra em ação imediatamente e previne o crime.
Isso para mim é a representação dessa concepção da maneira mais acabada,
ou seja, o mundo privado é fonte de todos os males. Onde o perigo se constrói,
onde o perigo se gesta. Um mundo totalmente transparente, onde o privado
não existe, é um mundo da ordem absoluta, é um mundo sem violência, enfim,
sem nenhum tipo de imprevisibilidade. Bem, nós não estamos longe da idéia de
Lombroso - que muita gente deve conhecer - só que quem vê não são mais
sensitivos que estão prevendo o futuro, mas é o próprio cientista que,
examinando o corpo. diz “esse indivíduo é perigoso” e fornece um laudo de
periculosidade. Eu imagino que os psicólogos, até onde eu conheço da
literatura, ficam nesse drama: essa família é uma família disfuncional, ela vai
ser o melhor, não vai ser, como saber? Continua nessa atividade um pouco de
vidência. Portanto, nós voltamos para o desconforto. Então, eu fiquei
imaginando que talvez para pensar esse desconforto seja necessário
problematizar essa concepção segundo a qual a tendência do público, a
tendência do Estado, é de, na medida do possível, invadir o privado, esse é o
devir do Estado, o privado é um problema, que é o sonho totalitário. Eu acho
que a gente tem que problematizar e contextualizar essa concepção para lidar
talvez melhor com a própria prática dos técnicos dentro do sistema judiciário.
Não se trata, do meu ponto de vista, de jogar fora a criança com a água do
banho. Não há muitas dúvidas quanto ao contínuo e progressivo
esquadrinhamento daquilo que a partir do século XVIII chamamos de mundo
privado e aí talvez a gente vá um pouco em direções contrárias. E isso era feito
através dos exames – técnicas, segundo Foucault, por excelência dos experts -
ou através da valorização pública do mundo privado. Lembrei, por exemplo, do
trabalho da Marisa Corrêa sobre assassinato de mulheres: é um trabalho antigo
da década de 1970, onde ela vai mostrar como de fato nos casos de
assassinatos de mulheres por seus maridos, companheiros, etc., nunca está
em questão o ato; o que se julga é a vida da pessoa, a vida da mulher. Assim,
se a mulher tem muitos sapatos, por exemplo, isso vai ter um peso no
julgamento do seu assassino. No caso, se a mulher não é decente, ou seja, se
sua vida privada não é uma vida moralmente aceitável, os processos vão tomar
uma direção no sentido da absolvição dos acusados. No caso de assassinato
dos homossexuais – que eu tenho trabalhado mais recentemente – também há
essa lógica. Embora não seja dominante em todos os casos, ela também
aparece através da figura da promiscuidade. Voltando ao Direito Penal: você
esquadrinha a vida privada para saber se o indivíduo é promíscuo ou não é
promíscuo, porque se ele for promíscuo o caso vai ter um tipo de andamento,
se não for, será um outro tipo de andamento. Então, esse esquadrinhamento
continua, quer seja pelos exames quer seja por essa valorização pública do
mundo privado e da vida privada.

O problema é que nem sempre essa demanda de invasão de


privacidade parte do Estado ou da justiça. Em muitos casos, ela emerge do
próprio mundo privado. Então, retomo um pouco a discussão que fiz quando
trabalhei com os casos de violência contra a mulher. Vocês sabem que a
coibição, o combate à violência – que às vezes é chamada de doméstica, às
vezes é chamada de violência de gênero, violência contra a mulher – é uma
demanda do movimento feminista desde os anos 1970. Eu trabalhei com os
casos da década de 1990 e a partir dos casos que são arquivados pela justiça,
os chamados crimes de bagatela pelo próprio sistema judiciário. Ou seja, nesse
caso você tem a reivindicação, do ponto de vista das mulheres, de intervenção
da justiça no mundo privado para coibir uma violência que é considerada por
muitos como não sendo violência, porque acontece na ordem privada, em
casa, na família, no interior do domicílio. Assim, havia uma resistência enorme
no começo da década de 1990 – e eu não sei se isso continua, mas
provavelmente sim –, por parte dos juízes e promotores, operadores da justiça,
de fazer essa intervenção. Era a velha idéia de que em briga de marido e
mulher não se mete a colher, o foi escrito numa das sentenças que eu analisei,
absolvendo um acusado. Eu trouxe até um pedaço de uma fala de um promotor
que não sabia o que fazer frente a um desses casos: a mulher tinha sido
agredida, era uma agressão pesada, não era uma agressão leve, só que ela
tinha se reconciliado com o marido depois dessa agressão. Era um crime de
ação pública naquela época, ainda não tinham os tribunais de pequenas
causas18, de conciliação e o promotor no momento que vai fazer as suas
considerações sobre o caso escreve:

“A questão é tentar definir-se qual é o papel do Estado, afinal para que


serve o Estado se não for para tentar uma solução conveniente para os
conflitos judiciais. Pode o Estado intrometer-se na vida das pessoas, pode o
Estado sobrepor-se à vontade do cidadão quando essa vontade diz respeito
apenas aos interesses desse cidadão, quem deve mandar na família, o Estado
ou a própria família, se a vítima declara que deseja continuar vivendo com o

18
Atuais Juizados Especiais.
acusado e que o conflito já foi superado pode o Estado assim mesmo condenar
o acusado? O que será melhor para esse casal?”

Essas eram as indagações que esse promotor se colocava. Então,


nesse sentido, me parece que o caso da violência contra a mulher é exemplar
da problematização que estou tentando fazer aqui. Primeiro, mostra que, no
contexto brasileiro, essa sanha do Estado de invadir o mundo privado não se
aplica tão perfeitamente como talvez tenha sido o caso francês. De fato, o
Estado prefere em alguns casos dizer “não, isto não é comigo, isto é do mundo
privado”, e eu não sei como pensar essa atitude. Parece-me, pelo menos nos
casos e no período que analisei que era uma maneira de lidar com a
sobrecarga de processos dentro do sistema. Então, é conveniente que haja
uma esfera privada, é conveniente que haja uma esfera em que o Estado não
deve atuar, não deve entrar, etc. Isso auxilia, de fato, ajuda a resolver um
problema, eu tinha um pouco essa idéia. E também acho que o caso da
violência contra a mulher é exemplar porque através dele a gente começa a se
aproximar daquilo que eu considero um dilema fundamental para compreender
esse desconforto que, de algum modo, percebo em qualquer técnico que
trabalha do ponto de vista de um saber científico no interior do sistema
judiciário. E quando a gente fala de esfera privada, de mundo privado, a gente
está falando de duas coisas e que historicamente se acoplaram, mas elas têm
datas muito diferentes. De um lado, a gente está falando do indivíduo e do que
se construiu como sua privacidade, direito à integridade física, o controle sobre
seu corpo, liberdade de pensamento, a esfera do que se chama dos direitos
fundamentais do indivíduo entendidos como fazendo parte do mundo privado,
ou seja, o indivíduo tem o direito à liberdade de opinião, à liberdade de crença;
no caso brasileiro, desde o século XIX ele pode escolher os parceiros sexuais,
com quem vai para a cama, o que faz parte do seu universo privado. A esse
sentido de esfera privada se acoplou um outro que é a família, que é o
domicílio, que também é pensado como de uma esfera privada. Na
antropologia, particularmente quando se pensa na separação entre público e
privado, o que se pensa é na oposição casa-rua. A rua como um espaço
público, por excelência, e a casa como a esfera das relações pessoalizadas. O
problema é que essa esfera também é uma esfera do poder do pai e, portanto,
em muitos casos, é para intervir nessa esfera em nome da privacidade do
indivíduo, que os técnicos e a justiça atuam.
Então, parece-me que é em nome da proteção dos direitos individuais
que o Estado muitas vezes é chamado a intervir na privacidade dos lares, ou
seja, em nome da privacidade do indivíduo. Então, quando uma mulher é
espancada, por exemplo, é um direito individual, um direito à privacidade que
foi atingido e o Estado tem que intervir numa esfera que consideramos da
ordem privada, que é a família, para resolver aquele desrespeito à privacidade
do indivíduo. Eu imagino que no caso das crianças a mesma questão se
coloque. Quando um técnico atua, quando a justiça como um todo é chamada
a pensar uma família que está querendo adotar uma criança ou um conflito em
relação à guarda de uma criança, ela ao mesmo tempo está pensando do
ponto de vista da privacidade do indivíduo, da criança, desse sujeito de direitos
especiais, mas, para fazê-lo, tem que entrar na privacidade da família. Ela tem
que invadir a privacidade de outros, para proteger aquela individualidade.

Então, parece-me que de fato a questão é difícil: manter


simultaneamente a crença nos direitos individuais e protegê-los, inclusive o
direito à privacidade, sem invadir algumas searas do mundo privado, como é a
família. E acho que é isso que faz, em parte, com que tenhamos ao mesmo
tempo uma perspectiva crítica da nossa atividade, mas não consigamos
também deixar de exercê-la, porque ficamos entre a defesa da privacidade
individual, importante de ser preservada, mas que para ser defendida, tem que
se fazer uma invasão da privacidade da família.

Não acho que esta reflexão, ainda bastante preliminar, resolva a tensão
e o desconforto, mas talvez sirva para a gente poder equacioná-los e
compreendê-los de uma maneira mais adequada.

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