MAIORIDADE1
INTRODUÇÃO
A SAB é uma jovem sociedade às vésperas de sua maioridade. Já teve, é claro, inúmeras
crises. Apesar disso, já cumpriu importante papel, dado que nasceu e cresceu nas duas
últimas décadas, período em que a Arqueologia constituiu-se enquanto campo profissional
específico e bem definido a partir de um conjunto de eventos que vão desde a abertura de
um curso de graduação em arqueologia, até o expressivo crescimento dos contratos, fora
dos domínios estritamente acadêmicos.
Sem vocação para ser uma Sociedade dos Poetas Mortos, a SAB parece pronta a aceitar o
desafio de crescer e acompanhar o seu momento, seguindo os bons exemplos de
congêneres como a SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a ABA -
Associação Brasileira de Antropologia, sociedades profissionais indiscutivelmente
comprometidas com a modernidade e o desafio profissional do crescimento de seus
dinâmicos campos de atuação.
Um claro projeto que faça sentido, personalidade, alma, vontade e liberdade. No momento
em que o reconhecimento da profissão parece trazer mais uma importante mudança à
arqueologia brasileira, a SAB, aceitando consciente a perspectiva de maioridade, investe
para um resgate de força e credibilidade a fim de preparar-se para ocupar lugar e papel
institucional que lhe cabem.
1
Artigo publicado nos Anais do IX Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira. Rio de Janeiro,
agosto de 2000, CD-ROM.
Uma retrospectiva histórica ligeira, e as experiências acumuladas com a gestão da qual
participamos na Sociedade de Arqueologia Brasileira, podem ser úteis à discussão da SAB
e suas perspectivas futuras, num tempo de novas éticas e muitas arqueologias.
As primeiras minutas do Estatuto da SAB foram redigidas nas JBAs realizadas nos anos de
1978 e 1979, quando foi também instituída a Comissão encarregada da formulação da
proposta de criação da Sociedade. Dela fizeram parte entre outros, Alfredo Mendonça de
Souza (da Faculdade de Arqueologia e do Instituo Superior de Cultura Brasileira), Maria
da Conceição Beltrão (do Museu Nacional, UFRJ) e Dorath Pinto Uchoa (do Instituto de
Pré-História da USP).
Num contexto de crise econômica cada vez mais agravado pela inflação crescente, e com a
área acadêmica e de pesquisa cada vez mais penalizada pelas mudanças político-
econômicas nacionais, a divulgação científica, artesanal e modesta proporcionada pela
SAB, cumpriu digno papel. Numa situação cada vez mais difícil de editoração científica na
área de arqueologia, vista nesse momento de maneira pessimista, inclusive pelo fórum
profissional reunido na segunda SAB.
É nessa reunião que André Prous faz duas proposições que se tornariam motivo de
polêmica continuada por todos esses anos, exigindo novos atos de vontade: a necessidade
de se rever os recém-aprovados procedimentos para admissão de sócios, motivo de grande
insatisfação e conflitos, e a forma como deveriam ser realizadas as inscrições de chapas
concorrentes à Direção da Sociedade, que se julgava dificultada pelos prazos estatutários.
Naquele momento o colega chamava atenção para a dificuldade de articulação prévia entre
os membros das eventuais chapas, dada a dispersão dos profissionais nacionais, sugerindo
flexibilizar, em nível do Estatuto, os procedimentos e prazos para inscrições, de modo a
permitir que o processo fosse totalmente realizado durante a reunião científica da
Sociedade. Nessa mesma SAB foi também sugerida a criação de um Conselho de Ética da
Sociedade que passou a intermediar os numerosos problemas existentes entre os
profissionais. Nenhuma dessas duas proposições, entretanto, foi aprovada na Assembléia
sendo ambas as decisões postergadas naquele momento.
Finalmente foi também nessa reunião que Ondemar Dias Júnior propôs a criação de uma
comissão que desse início a discussões sobre a regulamentação da profissão, proposição
aprovada pela Assembléia, dando saída a um processo que hoje encontra-se em seus passos
finais.
A discussão, registrada em Ata, já na segunda reunião dos sócios da SAB destes temas
grandemente polêmicos, mostra que com o crescimento e a profissionalização crescentes
surgiu a necessidade de delimitar e organizar o campo da arqueologia desde o ponto de
vista político-profissional, e que tais necessidades, presentes na criação da SAB e
certamente sua maior motivação, não poderiam ser desconsideradas ou subestimadas.
Estes fatos aqui exemplificados, entre outros, documentados nas Atas da Sociedade,
decorrentes das conversas entre profissionais por todo o Brasil, confirmam que a SAB, ao
contrário do que muitos hoje pensam, foi criada a partir de uma motivação fortemente
política e de problemas concretos que se estabeleciam a nível da prática profissional, não
se tratando apenas de uma congregação científica.
Na terceira reunião em Goiânia, em 1985, já contando com 86 sócios, a SAB iniciou suas
articulações com outras sociedades científicas, inclusive filiando-se à SBPC. Não chegou,
entretanto, a ter participação e assento efetivos junto àquela instituição, dada a sua fraca
mobilização política.
Apesar das sérias crises testemunhadas por esse período, entretanto, não se logrou avançar
com a proposição de criação de uma instância deliberativa voltada às questões éticas, o que
apenas recentemente pode ser retomado e concretizado, e sem um colegiado consolidado e
código mais claramente estabelecidos, as intervenções nos casos polêmicos não chegaram
a resultar em ações exemplares ou satisfatórias, restando à SAB oferecer espaços de
corredores à discussão dos problemas que se acumulavam bi-anualmente.
A polêmica sobre a forma como se conduzia a seleção de sócios para a SAB só pôde ser
atenuada a partir de 1987, com a flexibilização e melhor definição de critérios para
admissão de sócio efetivo, registrando-se então que esta categoria de associado passava a
estar aberta inclusive para os bacharéis em arqueologia, e numa Ata de redação confusa,
assinada na Assembléia Geral Ordinária de Santos, lê-se que tais mudanças teriam sido
feitas: para aqueles alunos que não tivessem ainda titulação mas estejam trabalhando em
arqueologia, tivessem a oportunidade de atuar como sócios-efetivos. Deveria ser
considerado o seguinte: curso de graduação e comprovação de pelo menos 6 anos de
prática em arqueologia, sendo que para os bacharéis do curso de arqueologia o tempo
seria de 4 anos. Sendo que titulados com mestrado e doutoramento ficam automaticamente
dispensados deste requisito
Numa retrospectiva histórica podemos considerar que as demandas feitas desde a sua
criação, e que somente a médio prazo foram alcançadas, hoje mostram resultados
favoráveis. A Sociedade, realmente constituída por todos os profissionais interessados,
como espaço democrático de debate aberto às necessidades efetivas do campo profissional,
competitiva, estimulante pode ser realmente uma representação de categoria profissional
que cumpra os papéis, não necessariamente conflitantes, de veicular conhecimento e criar
bases político-profissionais.
VIVENDO A MUDANÇA
Ao começar a participar da gestão da SAB em 1995, deparamo-nos com uma nova situação
pela primeira vez se passava a Sociedade a uma equipe cuja vitória eleitoral não resultou
apenas do endosso de uma Assembléia Geral à chapa única proposta. A proposta
administrativa feita à época fora centrada na dinamização de uma Sociedade que, embora
crescendo, parecia padecer de um certo desestímulo e descrédito e que se mostrava em
riscos de esvaziamento.
Ao receber a Sociedade, nos demos conta também que a crise decorrente de uma
administração itinerante, da falta de sede e de equipe administrativa fixa, e da falta de
recursos, repercutia gravemente sobre as bases da instituição. Com o crescimento
progressivo e sem a devida garantia física, a Sociedade reduzia-se a um conjunto disperso
de documentos e muitos problemas.
Essa administração teve, portanto, diferentes frentes de atuação com a qual se preocupar.
Parte delas foi resolvida e parte ainda está por resolver. A SAB, para ser viável, deverá
poder ser administrada com continuidade, independente das fraturas presentes em toda e
qualquer transição eleitoral.
O estímulo de um processo político mais ativo resultou na proposição de duas chapas que
não chegaram a efetivar-se, e de duas que, afinal, consolidadas, apresentaram-se e
concorreram. A existência de uma segunda eleição competitiva e os numerosos interesses
daí decorrentes acelerou a mobilização dos sócios, assegurando ainda melhores resultado.
A SAB voltou a pulsar enquanto instituição.
Como reflexo de um arejamento progressivo no seu quadro de sócios, houve também uma
reativação política assegurada pela crescente incorporação de temas profissionais e
trabalhistas no conteúdo dos encontros, e pela competição eleitoral. Pode ser sentido um
aquecimento da Sociedade traduzido na maior participação ao longo de dois anos de gestão
e em um comparecimento maciço ao IX Congresso da Sociedade de Arqueologia
Brasileira, no Rio de Janeiro este ano.
Alguns problemas, de resto sentidos por todas as administrações anteriores, e por todas as
sociedades nacionais em um país tão grande e difíceis são os espaços, tempos e pessoas,
tudo muito distante. Hoje há alternativas de diferentes ordens para a comunicação, mas há
ainda barreiras culturais e há necessidade de um processo educativo e, sobretudo de
vontade. Vontade política para a implementação de projetos claros, o condicionamento à
certas disciplinas, a confiança e o envolvimento. A Sociedade será apenas o que quisermos
que ela seja, ou o que os sócios quiserem que ela seja.
Outros problemas, portanto, são da ordem do projeto. E que projeto é esse que quisemos
ter de uma SAB? E que projeto é esse que as pessoas associadas a SAB gostariam ou
aceitariam ter? O que parecia claro ao início de nossa gestão tornou-se uma questão a ser
elaborada progressivamente ao longo do percurso.
Por mais que a concepção de SAB pareça formada, há uma situação real em que as
circunstâncias profissionais conduzem a um certo rumo. Por exemplo, a regulamentação da
profissão, com a criação dos Conselhos profissionais que definirão quem é arqueólogo
profissional no Brasil, está prestes a tirar da SAB uma parte de suas supostas atribuições,
um dos motivos de preocupação central com sua estrutura, composição de quadros de
associados. O crescimento da arqueologia de contrato, por sua vez, assegurando mercado
não acadêmico aos profissionais, introduz novas lógicas, novas éticas e novos problemas a
serem discutidos. Estes entre outros fatos ligados a circunstância profissional no Brasil,
pressionam sensivelmente a instituição cuja estrutura, ainda um pouco anacrônica, parece
espelhar valores e lógica acadêmicas.
Atuando como grande mediadora ou espaço neutro de interação, a SAB tem papel político
fundamental, sendo no mínimo uma postura imatura imaginar que as questões e razões
científicas prevalecem ao nível dos discursos e negociações no espaço de uma Sociedade
de profissionais como esta. Querer convencer a todos que a SAB privilegia apenas a
questão científica é enfraquecer a Sociedade em seu papel fundamental e torná-la
desacreditada. Contribuir para o amadurecimento do processo político na SAB, através da
abertura de espaços a lideranças verdadeiras e ajudando a equilibrar forças e interesses,
conduzir o processo político com maior grau de liberdade e aguda consciência do projeto
profissional que temos pela frente. Informar e intermediar as discussões, para que os
problemas sejam colocados e as soluções sejam buscadas, ao invés de fingir que não temos
problemas. Esse é o papel esperado de gestores da SAB: competência política para dentro e
para fora.
Durante a gestão que vivemos, foi ainda o contato com as instituições governamentais e
empresas contratantes de serviços em geral deu clareza de quanto a Sociedade era
solicitada a informar e auxiliar na condução de políticas, abertura de espaços, redefinição
de processos profissionais. E de quão pouco preparados estávamos enquanto instituição
para agilizar tais participações. Ficou clara a necessidade de uma vertente atenta de ação
política, quer associada a outras instituições congêneres como a SBPC, quer pelo
acompanhamento permanente e direto de ações em diferentes campos governamentais.
Ficou clara também a necessidade de uma agilidade de consulta e disponibilização de
informações para assegurar a conexão entre as demandas do Estado e as necessidades e
disponibilidades dos profissionais em arqueologia.
Uma última avaliação da arqueologia brasileira, feita, para grande satisfação nossa, na
vigência de nossa gestão e apresentada durante a IX SAB mostra como já dito, o
crescimento e a consolidação de um campo profissional que em 1983, se dizia
pessimisticamente sob risco. A Sociedade de Arqueologia Brasileira, reunida no Rio de
Janeiro este ano, confirma os números de SCHMITZ e sua equipe do Anchietano:
crescemos e melhoramos de maneira impressionante nesses últimos anos, e mais
amadurecemos profissionalmente em progressão geométrica.
A administração do último biênio não logrou realizar tudo o que pretendia, talvez por que,
como de rotina, idealizamos e sonhamos além do que a realidade nos permitiria ir.
Realizamos alguns passos importantes e, principalmente, testemunhamos, emocionados
essa mudança fantástica que está se operando. Conseguimos que o processo, iniciado em
1995 não se interrompesse, parecendo haver boas chances até de que se avance
significativamente. Possibilitamos melhores condições, inclusive materiais à SAB, de tal
forma que as aquisições e vantagens se acumulem. É questão de vontade e de projeto. E há
pessoas com essa vontade e coerentes com esse projeto.
Nos primeiros anos, talvez sob forte tutela, tenha se mantido sob ótica mais idealizada,
protegida. A medida em que crescemos essa Sociedade também pode crescer, à medida
que os profissionais ocuparam seu espaço na arqueologia brasileira, a SAB afirmou-se. A
SAB é uma jovem Sociedade às vésperas da sua maioridade, não temos mais preocupação:
deu certo. Deslanchou.
PERSPECTIVAS DA MAIORIDADE
Da discussão com colegas aprendemos que cada uma dessas Sociedades, ainda que
convergentes em seus fins aparentes tem histórias e metas diversas. Não há uma única
forma de Sociedade pela simples razão de que não são idênticas as condições em que se
desenvolvem e estruturam os campos profissionais nos diferentes lugares.
A SAB tem uma história que não pode ser desconsiderada, tem necessidades, decorrentes
das pessoas e da forma como a arqueologia brasileira vai se oganizando, que não podem
ser desconsiderada. Tem um papel de matriz, espaço de gestação do campo profissional,
que não pode se desconsiderado.
O sucesso nessa fase de maioridade, depende do que já falamos mas também de uma
certa flexibilidade e sensibilidade para adaptar-se, para adequar a estrutura da Sociedade às
demandas da comunidade profissional e do contexto em que nos inserimos. Já se disse que
chegar à maturidade sem desafetos é falta de personalidade, e talvez a SAB tenha
acumulado alguns desafetos ao longo desse percurso mas com certeza encontrou um
caminho coerente e bem sucedido.
Entretanto é bom enfatizar que a experiência dos últimos anos mostra que talvez
tenhamos nos preocupado mais com a biodiversidade existente na Sociedade do que com o
projeto SAB. Talvez aqui valesse lembrar a experiência antropológica tanto do ponto de
vista biológico como do ponto de vista cultural, opções de diversidade são vantajosas do
ponto de vista da adaptabilidade. A uniformidade de idéias e a cristalização de propostas
não assegura a sobrevivência, principalmente em tempos de rápidas mudanças e éticas
várias.
Diversidade de estilos e idéias, que não conflite seriamente com o projeto básico maior
da sociedade a multiplicidade de opções e o arejamento assegurado pela admissão de
novos atores administrativos e políticos e de renovação da vontade e da paixão, aliadas à
experiência e a um claro compromisso com a consolidação das aquisições já asseguradas
pode ser a grande vantagem desta Sociedade, onde o número de participantes já cresceu o
suficiente para ser massa crítica, mas ainda não tanto que não se possa reunir e conversar
em um único evento.
Uma análise rápida da SAB e sua trajetória já permite refletir sobre o seu papel.
Outros aspectos, talvez antes menos valorizados, deverão hoje ser tomados seriamente
em conta enquanto papel fundamental da Sociedade, tal como se aprende do exercício
levado a efeito por outras intituições congêneres como a SBPC. Entre esses papéis estão,
com destaque, a participação permanente e intensiva da SAB nos processos de divulgação
científica e educação para a preservação do patrimônio arqueológico.
Como dito na Ata de fundação da SAB, e reiterado ainda, a sua constituição resultou de
uma necessidade, sentida a partir do crescimento e da complexificação do que era
anteriormente um campo reduzido e de manejo artesanal. A SAB resultou de um processo
acelerado de crescimento e profissionalização da arqueologia, que indubitavelmente se
daria a despeito dela.
Seu papel vem crescendo nos últimos anos. A constituição de uma categoria profissional
e de um campo profissional muito mais avançado e organizado, a vista do que temos em
outros países americanos deve-se , sem duvida a existencia da Sociedade de Arqueologia
Brasileira, que ao longo desses dezoito anos, tornou-se o centro desse processo, através das
açòes representativas das diferentes instituições e profissionais da área.
Podemos imaginar que caracterísiticas teria a arqueologia brasileira hoje sem uma
sociedade profissional? Sem ESTA sociedade profissioanl, com sua história e acumulações
peculiares?
A experiência de uma curta gestão, e a convivência com os colegas ao longo de duas
décadas parece sugerir que a maneira como a arqueologia vem se institucionalizando em
nosso país tem relação direta e essencial com a SAB. É bom considerar isso ao pensar nas
perspectivas da maioridade.
Neste momento a SAB merece explicitação de seu projeto. É preciso ler nas entrelinhas
da história e da circunstância que vivemos, para propor sobre as bases do que já somos.