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GIOVANA CARMO TEMPLE

A CRÍTICA NIETZSCHEANA À DEMOCRACIA MODERNA

MARÍLIA
2007
GIOVANA CARMO TEMPLE

A CRÍTICA NIETZSCHEANA À DEMOCRACIA MODERNA

Trabalho apresentado como requisito


parcial à obtenção do título de Mestre,
junto ao Programa de Pós-Graduação
em Filosofia da UNESP, Campus de
Marília.

ORIENTADOR: Dr. José Carlos


Bruni.

MARÍLIA
2007

2
Giovana Carmo Temple

A CRÍTICA NIETZSCHEANA À DEMOCRACIA MODERNA

DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM


FILOSOFIA

BANCA EXAMINADORA

Presidente e Orientador Dr. José Carlos Bruni: __________________________

2º Examinador Dr. Oswaldo Giacóia Júnior: ____________________________

3º Examinador Dr. Ricardo Monteagudo: _____________________________

Marília, 22 de fevereiro de 2007.

3
À minha querida e amada mãe. Sinto muito
a sua força e coragem comigo. Saudades...

(in memoriam)

4
AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Bruni, a melhor coisa a dizer é que sentirei saudades de você. Foi muito bom
ter sido sua “orientanda”, as nossas conversas e as suas aulas foram essenciais para a
conclusão deste trabalho.

Ao Prof. Dr. Oswaldo Giacóia Júnior, meu respeito e admiração. Agradeço pelas primeiras
orientações, há alguns anos atrás e, em particular, pelas valiosas contribuições no meu
exame de qualificação. Também não posso esquecer dos livros e textos que o sr., sempre
tão gentil, me emprestou. Agradeço muito!

Ao Prof. Dr. Ricardo Monteagudo, pelas importantes sugestões e considerações na


qualificação, bem como pelo empréstimo de textos e livros.

Ao Prof. Dr. José Geraldo Poker e ao Prof. Dr. Eduardo Figueiredo, que desde o meu
primeiro ano de faculdade me incentivaram à pesquisa. O incentivo de vocês foi essencial
para a minha formação acadêmica.

Ao Prof. Dr. Márcio Benchimol, pelas orientações e empréstimos de textos e livros,


imprescindíveis à conclusão deste trabalho.

Ao Prof. Dr. Sinésio Ferraz, pelo apoio em importantes momentos que acompanharam o
desenvolvimento da minha pesquisa.

Ao Prof. Dr. Trajano, pela amizade e pelo apoio.

À Profa. Dra. Cândida, que me incentivou a fazer o mestrado em filosofia nesta instituição.

Ao “Seu” Benedito, funcionário da UNESP, sempre tão simpático. Às secretárias da Pós-


Graduação em Filosofia pela ajuda e paciência. À Edna, secretária do Departamento de
Filosofia, que desde a época da graduação sempre me ajudou. À Ilma, funcionária da
biblioteca, essencial em tantos empréstimos de livros.

À Capes, pelo incentivo à pesquisa, que exigiu de mim não apenas esforço acadêmico, mas
paciência e perseverança.

Ao Jair, que me acompanhou por muitos anos.

À minha distante amiga Gláucia, por ter estado tão presente com suas cartas no momento
mais difícil da minha vida. Às minha amigas Amanda e Tarsila, que estão ao meu lado há

5
mais de dez anos. Aos meus grandes companheiros da UNESP e com os quais eu dividi
ótimos momentos de amizade: Adriana, Orion, Thaís, Cristina e Irene. Vocês todos estão
no meu coração.

À Santina, por ter ficado em nossa família e por fazer muita companhia.

Agradeço muito ao Malcom, com quem eu dividi com grande intensidade as mais
importantes discussões que fazem parte deste trabalho, bem como os momentos mais
felizes e tristes desde meu ingresso no Programa de Pós-Graduação da UNESP. Amo você.

Por fim, à minha família, minha mãe, meu pai e minha irmã. À minha mãe, por ter sido tão
maravilhosa, por ter acreditado (sempre) em mim e por ter cobrado tanto de mim. À minha
irmã, por encher a casa de alegria com sua risada cativante, pela sua companhia e por seu
amor. Ao meu pai, agradeço por tentar com amor me compreender, por se interessar e
escutar com atenção os meus assuntos (e problemas), e por sempre acordar de bom humor,
o que torna os meus dias mais agradáveis Agradeço muito a paciência, a compreensão pela
ausência, e o amor de vocês. Amo vocês três.

6
Não quero ser misturado e confundido com esses
pregadores da igualdade. Porque, a mim, assim
fala a justiça: “Os homens não são iguais”. E,
tampouco, o devem tornar-se! Que seria meu
amor pelo além do homem, se falasse de outro
modo? Através de mil pontes e alpondras, terão de
abrir caminho para o futuro, e cada vez mais
guerras e desigualdades deverão ser postas entre
eles: assim manda que eu fale o meu grande amor!

“Das tarântulas”, Assim Falou Zaratustra.

7
RESUMO

TEMPLE, Giovana Carmo. A crítica nietzscheana à democracia moderna. 2007, 142 f.


Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP, Campus de Marília,
2007.

O objetivo do presente trabalho consiste em analisar particularmente a crítica da

modernidade política, da democracia e da sociedade civil burguesa que defende o progresso

da humanidade a partir da igualdade entre os homens, a alguns dos grandes temas da

filosofia política de Nietzsche, a saber, vontade de poder, o “último homem”, o “além do

homem”, o pathos da distância e a transvaloração dos valores.

Palavras chaves: modernidade, democracia, igualdade, autoconservação, auto-superação.

8
ABSTRACT

The objective of the present work consists of particulary analyzing the criticism of the

political modernity, of the democracy and of the bourgeois civil society that defends the

humanity's progress based on the equality among the men, to some of the great themes of

the political philosophy of Nietzsche, to know, the will to power, the last man, the

overman, the pathos of the distance and the revaluation of all values.

Key-Words: modernity, democracy, equality, self-conservation, self-overcoming.

9
SUMÁRIO

NOTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA 10

INTRODUÇÃO 11

CAPÍTULO 1- ESTADO, MEMÓRIA, PROMESSA, RESPONSABILIDADE:


ÔNUS DO PROCESSO CIVILIZATÓRIO.

1.1- A FORMAÇÃO DO ESTADO 25


1.2- (IR)RESPONSABILIDADE DOS “INCONSCIENTES ARTISTAS” 39
1.3- A CONSCIÊNCIA MORAL 53

CAPÍTULO 2- O PODER E AS DESIGUALDADES SOCIAIS:


CONSTRUÇÃO E DISSOLUÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO MODERNO

2.1- O ESTADO GREGO 62


2.2- HOBBES E NIETZSCHE: ALGUMAS (DES) SEMELHANÇAS 71
2.3- AUTOCONSERVAÇÃO e AUTO-SUPERAÇÃO 88

CAPÍTULO 3- CRISTIANISMO E DEMOCRACIA: A DECADÊNCIA DA


MODERNIDADE POLÍTICA E A SUA SUPERAÇÃO

3.1- O “ÚLTIMO HOMEM” 96


3.2- O MOVIMENTO DEMOCRÁTICO: HERANÇA DO
MOVIMENTO CRISTÃO 105
3.3- A “GRANDE POLÍTICA” 110

CONSIDERAÇÕES FINAIS 127

REFERÊNCIAS 138

10
NOTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

Nas citações dos textos de Nietzsche presentes em nosso trabalho, optamos por

remeter nosso leitor aos textos originais do filósofo, conforme a edição das obras completas

de Nietzsche: COLLI, G.; MONTINARI, M (Org.). Sämtliche Werke: Kritische

Studienausgabe (KSA). Berlim; New York: Walter de Gruyter, 1988. 15 v. Contudo,

observamos que as traduções não são de nossa autoria, por isso após as citações do texto no

original reportamos o leitor ao número da página conforme a tradução utilizada. No que se

refere aos fragmentos póstumos, sobretudo no que diz respeito à “grande política”, as

traduções utilizadas são de Oswaldo Giacóia Júnior. As demais obras são, em sua maioria,

traduzidas por Paulo César de Souza, salvo cinco textos: Cinco prefácios para cinco livros

não escritos, tradução de Pedro Süssekind; Crepúsculos dos ídolos, tradução de Artur

Morão; O Viandante e sua Sombra, tradução de Heraldo Barbuy; Assim falou Zatustra,

tradução de Mário da Silva; O Anticristo, tradução de Pietro Nassetti. Todas as obras

consultadas estão presentes nas referências deste trabalho.

11
INTRODUÇÃO

Buscamos desenvolver neste trabalho algumas considerações e reflexões

acerca do pensamento político de Nietzsche. Sabemos que Nietzsche é o filósofo da cultura

por excelência, mas como bem define Ansell-Pearson (1997, p. 18), “Nietzsche é um

pensador preocupado com o destino da política no mundo moderno”, como podemos

perceber em “suas abrangentes preocupações – desde as primeiras reflexões sobre o agon

grego até a tentativa de escrever uma genealogia da moral e o diagnóstico do niilismo para

caracterizar o mal-estar e as doenças morais dos seres humanos modernos – para se

compreender que Nietzsche é primeira e primordialmente um pensador ‘político’”.

Não nos parece, assim, que a política seja um tema secundário nos escritos

filosóficos de Nietzsche. Mas, deve-se observar que as suas reflexões político-filosóficas

estão presentes, sobretudo, na crítica aos valores morais da modernidade. Se no jovem

Nietzsche destaca-se, principalmente, a crítica à cultura; a partir de Humano, Demasiado

Humano, a reflexão dos valores morais adquire maior preponderância e a crítica da moral

passa a constituir a temática principal da filosofia de Nietzsche. No conjunto das obras do

filósofo, principalmente no que se refere aos textos que estão presentes em nosso estudo, a

12
crítica à moral adquire maior completude em duas principais obras, a saber, Para além de

bem e mal e Para a Genealogia da Moral.

Em uma reflexão de sua própria trajetória, Nietzsche afirma que seus

pensamentos sobre a origem de nossos preconceitos morais tiveram “sua expressão

primeira, modesta e provisória na coletânea de aforismos que leva o título de Humano,

demasiado Humano. Um livro para espíritos livres”1. Em um aforismo seguinte, Nietzsche

completa: “Foi então que pela primeira vez apresentei as hipóteses sobre as origens a que

são dedicadas estas três dissertações, de maneira canhestra, como seria o último a negar,

ainda sem liberdade, sem linguagem própria, e com recaídas e hesitações diversas”2. Se em

Humano, demasiado humano, Nietzsche identifica recaídas e hesitações no que se refere à

sua crítica aos valores morais; em Para a genealogia da Moral Nietzsche formula com total

liberdade e linguagem própria suas análises filosóficas a respeito da origem dos valores

morais.

Nestes dois textos em questão o discurso nietzscheano alcança coerência a

partir de um programa filosófico denominado por Nietzsche de perspectivismo3. Esse

projeto nietzscheano consiste na desconstrução de toda tese filosófica que pretende ser algo

além de uma perspectiva. Ao que nos parece, o grande desafio a que se propõe este filósofo

com o perspectivismo consiste em evitar os efeitos narcóticos da moral absoluta e, assim,

desenvolver um projeto filosófico alternativo à decadência e o rebaixamento do homem em

escala globalizada da modernidade. Voltaremos a este assunto posteriormente.

1
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a genealogia da moral], prólogo, 2. In: KSA, vol. 5, p. 248.
Tr. p. 8.
2
Ibid, prólogo, 4. In: KSA, vol. 5, p. 251. Tr. p. 10.
3
No capítulo primeiro analisamos com maior especificidade o perspectivismo na filosofia nietzscheana.

13
Na realização deste objetivo que pretende ser intrinsecamente do âmbito

moral, é que poderemos transitar pelo terreno da política em Nietzsche, uma vez que o

questionamento acerca da origem dos valores morais implica em tomar por acidental tudo o

que é concebido como certo, verdadeiro, como por exemplo, a tese contratualista

(rousseauniana) de que a formação do Estado principiou por um contrato social e tem como

propósito o “bem comum” e o “melhoramento” do homem. Dito de outra forma, ao refletir

o valor dos valores morais, tal como a genealogia nietzscheana pretende, é possível

questionar a veracidade do pensamento contemporâneo de que o Estado pós-revolução

industrial caminha para o “progresso” da humanidade.

Para tanto, Nietzsche separa-se da corrente filosófica tradicional (dogmática)

que intentou fazer “ciência da moral” e passou apenas a justificar a moral dominante,

atribuindo a ela um valor de racionalidade em si mesma: “Tão logo se ocuparam da moral

como ciência, os filósofos todos exigiram de si, com uma seriedade tensa, de fazer rir, algo

muito mais elevado, mais pretensioso, mais solene: eles desejaram a fundamentação da

moral”4. Para Nietzsche, estes filósofos “eram mal informados e pouco curiosos a respeito

de povos, tempos e eras, não chegavam a ter em vista os verdadeiros problemas da moral –

os quais emergem somente na comparação de muitas morais”5.

Percebe-se assim, que uma análise que pretenda ser efetivamente científica

frente à moral implica em uma pesquisa histórica e genealógica, com vistas a um exame, a

uma desconfiança, a dúvidas que suscite o conflito e a ambigüidade, ou seja, recuar a

qualquer estratégia de justificação. Isto porque, esta metodologia adotada pelos filósofos

4
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal] 186, In: KSA, vol. 5, p. 105. Tr. p. 85.
5
Ibid, 186, In: KSA, vol. 5, p. 106. Tr. p. 86.

14
dogmáticos6, que pretende ser “científica”, parece desconsiderar as questões acerca da

origem dos valores morais, pois se limita à cristalização da moral dominante, tornando

inviável qualquer manifestação contrária a essa moral. Por outro lado, o questionamento

dos fatos morais, tal como realiza Nietzsche, possibilita uma nova perspectiva que consiste

na leitura da história dos fatos passados e o surgimento dos valores morais, com a

peculiaridade de revelar as modificações significativas destes conforme a sua época

histórica. Nas palavras de Nietzsche: “reunião de material, formulação e ordenamento

conceitual de um imenso domínio de delicadas diferenças e sentimentos de valor que

vivem, crescem, procriam e morrem”7.

Essa história natural da moral inicia o capítulo quinto de Para além de bem e

mal e será aprimorada de forma exemplar na primeira Dissertação de Para a genealogia da

Moral. Trata-se aqui da conhecida distinção entre moral de senhores e a moral de escravos,

e suas múltiplas tipologias no contexto social. Nesta análise a questão central para

Nietzsche será desmistificar a moral platônico-cristã como a “moral em si”, o que implica

em solapar a verdade intuída por esta moral em seus mais diversos campos de atuação,

tanto na esfera da moral, da política, da economia, quanto da teoria do conhecimento, da

arte e da filosofia.

Este procedimento genealógico nietzscheano implica, como afirmamos, um

distanciamento frente à moral dominante, necessário para a relativização histórica dessa

moral. Ao questionar o valor dos valores morais, Nietzsche subverte a pretensão dogmática

6
Como explica Carlos Alberto Ribeiro de Moura (2005, p. 33), no prefácio de Para além de Bem e mal,
Nietzsche censura Platão por ser o responsável pela introdução do ‘dogmatismo’ na filosofia: “O seu pior erro
teria sido um erro tipicamente dogmático: a invenção do espírito puro e do Bem em si. Para Nietzsche o
filósofo dogmático é aquele que estabelece uma determinada relação com a verdade. O ‘dogmatismo’ é a
pretensão à universalidade da verdade, e o seu oposto imediato será o ‘filósofo do futuro’”. E, como explica
Giacóia (2002, p. 10) Para além de bem e mal é um “experimento rigorosamente antiplatônico”.
7
Ibid, 186. In: KSA, vol. 5, p. 105. Tr. p. 85.

15
de que a moral dominante contém um núcleo de racionalidade e, portanto, de veracidade

absoluta, pretensão que faz com que ela afirme de maneira obstinada e inexorável: “eu sou

a moral mesma, e nada além é moral!”8. A luta da moral dominante (moral escrava) é

preservar a sua soberania; a luta de Nietzsche é mostrar que a moral de hoje, a moral de

animal de rebanho, nada mais é “do que uma espécie de moral humana, ao lado da qual,

antes da qual, depois da qual muitas outras morais, sobretudo mais elevadas, são ou

deveriam ser possíveis”9.

Ora, se Nietzsche pretende atacar a inflexibilidade da moral dominante, por

sua vez, ele passa a relativizar10 os valores morais. A hipótese histórico-genealógica

descrita em Para a genealogia da moral dá credibilidade a esse projeto nietzscheano, qual

seja, de relativizar os valores morais ao comprovar historicamente que a moral escrava é

apenas uma forma de moral humana, ao lado da qual há uma variedade existente. A moral

passa a representar assim, a partir da pesquisa genealógica de Nietzsche, um reinterpretar

constante, conforme a vontade de poder11 que por um dado momento na história consegue

se sobrepor às demais vontades de poder, imprimindo a sua forma.

Como afirmamos anteriormente, a filosofia política de Nietzsche desenvolve-

se no interior da pesquisa histórico-genealógica acerca dos valores morais. Desta forma, a

reconstrução de alguns argumentos centrais na filosofia nietzscheana a respeito da origem

dos valores morais é imprescindível para compreendermos a crítica de Nietzsche às

políticas modernas, em especial à democracia. Assim, o primeiro capítulo dessa dissertação

(seção 1.1 e 1.2) consiste no desenvolvimento da hipótese genealógica nietzscheana acerca


8
Ibid, 202. In: KSA, vol. 5, p. 124. Tr. P. 101.
9
Ibid, 202. In: KSA, vol. 5, p. 124. Tr. p. 101.
10
Esta análise inspira-se no texto Moralidade e memória: dramas do destino da alma, de Oswaldo Giacóia
Júnior.
11
A opção pela tradução do termo Der Wille zur Macht por vontade de poder encontra a sua justificação no
capítulo 1, seção 1.2.

16
do processo civilizatório, o que implica na retomada de questões fundamentais presentes no

texto Para a Genealogia da Moral, a saber, o surgimento do Estado, das formações

psíquicas como a memória, a promessa, a má consciência, multiplicando a gênese dos

valores morais conforme as contingências históricas. De modo que, ao questionarmos os

valores da democracia moderna, como igualdade entre os homens, felicidade como

sinônimo de paz, tranqüilidade, conforto, estabilidade social e econômica, estaremos,

primeiramente, tratando da identidade essencial desses valores, a saber, a moral cristã.

Nesta reconstituição da gênese da consciência moral buscamos tratar dos

temas mais próximos à nossa pesquisa, partindo do surgimento do Estado ao desenrolar do

processo civilizatório, sem esgotar este tema. Este percurso ganha sustentação na medida

em que desempenha dupla função: por um lado, reconstrói a partir da pesquisa genealógica

nietzscheana o surgimento dos valores morais com o início do processo civilizatório e, por

outro lado, apresenta de que maneira estes valores se refletem na política moderna, em

especial, na democracia. Ora, se “o movimento democrático constitui a herança do

movimento cristão”, como Nietzsche afirma no aforismo 202 de Para além de bem e mal, é

necessário que tenhamos conhecimento dos pressupostos teóricos e metodológicos de

Nietzsche, para compreender com maior clareza as suas proposições acerca da política

moderna.

Especificamente na seção 1.2, tratamos do ônus do processo civilizatório. O

surgimento do Estado implicou em uma nova configuração do homem animal. Se no estado

de natureza o homem tinha uma liberdade irrestrita, com a formação da sociedade há uma

coerção e uma coação sobre o caos pulsional do homem animal. O Estado atua como uma

“camisa-de-força” sobre os instintos, a fim do domar o homem e torná-lo mais interessante.

Assim, se por um lado o homem passa a ser senhor de si, autônomo e responsável, já que a

17
faculdade psíquica da memória outorga-lhe poderes como a possibilidade de fazer

promessas e comprometer-se com o outro; por outro lado, o homem passa a criar valores

morais que determinam suas ações entre o bem e o mal, não podendo mais dar livre vazão

aos seus instintos, estes passam a se dirigir contra o próprio homem: estamos falando aqui

(resumidamente) da origem da má consciência.

Para ilustrar esta transfiguração pela qual passou o homem animal, e

contradizer a tese contratualista no que se refere ao surgimento do Estado por um pacto

(racional) entre os contratantes, buscamos desenvolver a partir do texto Para a Genealogia

da Moral as reflexões de Nietzsche no que se refere à atuação dos “inconscientes artistas”,

os conquistadores e senhores, que com sua terrível tirania, imprimiram sua forma até que “a

matéria-prima humana e semi-animal ficou não só amassada e maleável, mas também

dotada de uma forma”12. Deste modo, fazem parte deste primeiro capítulo algumas

considerações (primárias) acerca do instinto, da responsabilidade e da “má consciência”, na

filosofia nietzscheana13.

Em seguida (capítulo 2), partindo do amadurecimento de nossas reflexões,

passamos à reflexão de um dos temas mais relevantes na filosofia de Nietzsche, e que

perpassa em grande medida suas obras, a saber, o poder, ou melhor, as relações de poder.

Nietzsche evidencia com a sua pesquisa histórico-genealógica que a formação social e

moral só foi possível porque há nas relações não apenas sociais, mas vitais, um constante

embate entre vontades de poder. Esta análise reforça os argumentos presentes no primeiro

12
NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 324s.
Tr. p. 74.
13
Advertimos nosso leitor, novamente, que a maneira com que apresentamos a filosofia nietzscheana, tanto
no que se refere à gênese do vir a ser da história da moral, quanto o resgate histórico do valor dos valores
morais, foi com o intuído de elucidar as implicações das proposições de Nietzsche para a crítica às políticas
modernas, sobretudo a democracia.

18
capítulo, a saber: que a origem do Estado, para Nietzsche, não sobreveio nos termos de uma

vontade geral (tal como pensou Rousseau), tampouco com a vontade divina: “a inserção de

uma população sem normas e sem freios em uma forma estável”14 só foi possível pela

violência exercida por uma “raça de conquistadores”. Ainda, de acordo com as proposições

desta perspectiva histórico-genealógica, o Estado não surgiu para promover a paz, ele

representa uma “fatalidade inevitável”15, o início do processo civilizatório rompeu com o

estado natural, com a selvageria, e um enorme quantum de liberdade não foi suprimido,

mas tornado latente à força.

Mais além, esta análise nos possibilitou aproximar, na medida do possível, os

escritos de Hobbes e de Nietzsche. As interpretações de Nietzsche no que se refere à

condição natural do homem, presente no texto O Estado grego, tem dupla relevância em

nossa pesquisa. Primeiramente, apresenta um Nietzsche muito próximo de Hobbes, ao

afirmar que a condição natural do homem tende para uma guerra de todos contra todos, o

que torna similar nestes dois pensadores algumas reflexões no que se refere ao poder, como

é possível perceber na seção 2.2. Contudo, na seção 2.3 podemos observar uma distinção de

grande relevância ente Hobbes e Nietzsche: enquanto o autor de O Leviatã preocupa-se,

sobretudo, com a conservação da espécie e, por isso, a manutenção da paz no ordenamento

civil; Nietzsche, em oposição, pretende a auto-superação, procedimento compatível com a

sua filosofia pautada na vontade de poder.

14
NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 324s.
Tr. p. 74.
15
Ibid, II, 17. In: KSA, vol. 5, p. 324s. Tr. p. 74.

19
Em segundo lugar, podemos perceber da leitura de O Estado grego de que

maneira o jovem Nietzsche já se expressava como a má consciência do seu tempo16. Isto

porque, podemos identificar neste texto algumas estratégias argumentativas nietzscheanas

em relação à sua posição assumida no embate com a modernidade que devem ser

compreendidas como um contra-discurso aos valores modernos, e estão presentes também

tanto em Para Além de Bem e Mal quanto em Para a Genealogia da Moral. Nestes termos,

ao que nos parece, o diálogo de Nietzsche com a modernidade tem a pretensão de ensaiar

um projeto filosófico alternativo à visão dogmática da modernidade17, definido como a

“Grande política” e, por isso, não compete a Nietzsche assumir a posição conservadora

atribuída aos filósofos dogmáticos de justificar a moral dominante, mas o oposto,

questioná-la.

Este argumento pretende desarticular da leitura do texto O Estado Grego uma

perspectiva moralista que impõe a Nietzsche uma característica reacionária que não nos

parece apropriada. Isso significa que a nossa análise não se prendeu a possíveis

interpretações das proposições de Nietzsche que pretendem relacioná-lo a uma estridente

defesa de uma classe escrava como condição inexorável para uma cultura superior18. A

importância do texto O Estado grego está, acima de tudo, na contraposição apresentada por

Nietzsche entre os gregos e a modernidade. É preciso superar o tom estridente de Nietzsche

para compreender que este filósofo não pretende formular uma (nova) verdade, ele está

16
Esta identificação do filósofo como a má consciência do seu tempo está presente no aforismo 212 de Para
além de bem e mal. Apresentamos aqui o aforismo para esclarecer a nossa afirmação: “Cada vez mais quer me
parecer que o filósofo, sendo por necessidade um homem do amanhã e do depois de amanhã, sempre se achou
e teve de se achar em contradição com o seu hoje: seu inimigo sempre foi o ideal de hoje. Até agora todos
esses extraordinários promovedores do homem, a que se denomina filósofos, e que raramente viram a si
mesmos como amigos da sabedoria, antes como desagradáveis tolos e perigosos pontos de interrogação –
encontraram sua tarefa, sua dura, indesejada, inescapável tarefa, mas afinal também a grandeza de sua tarefa,
em ser a má consciência do seu tempo”. In: KSA, vol. 5, p. 145. Tr. p. 118.
17
Como há pouco mencionamos, p. 8.
18
Como esclarece Giacóia no texto Friedrich Nietzsche: A “Grande Política” Fragmentos, 2002, p. 23.

20
distante de qualquer pretensão dogmática. Pretendemos sugerir que o caráter polêmico das

obras de Nietzsche, presente nas obras citadas acima, bem como nos fragmentos póstumos

da “Grande política”, analisados no terceiro capítulo, é construído, em grande medida,

como um contra-discurso, tanto em relação à tradição metafísica quanto à modernidade.

Tendo isso em vista, ilustrativo é o prefácio de Para além de bem e mal, no

qual Nietzsche inicia sem reservas sua guerra contra o dogmatismo filosófico. Ao refletir o

que bastou para construir os alicerces das absolutas construções dogmáticas, Nietzsche

afirma: “alguma superstição popular de um tempo imemorial (como a superstição da alma,

que, como superstição do sujeito e do Eu, ainda hoje causa danos), talvez algum jogo de

palavras, alguma sedução por parte da gramática, ou temerária generalização de fatos muito

estreitos, muito pessoais, demasiado humanos”. Neste trecho citado percebemos a ironia de

Nietzsche com os dogmáticos, sobretudo com Descartes, com a intenção de atingir de

maneira radical a pretensão metafísica.

Também a crítica à modernidade na filosofia nietzscheana apresenta-se de

forma estridente e exige do seu leitor um conhecimento do “espírito” da filosofia de

Nietzsche. O sentido desta afirmação, em nosso trabalho, traduz-se pela maneira com que

buscamos refletir alguns pensamentos “controversos” de Nietzsche, como por exemplo, o

aforismo 257 de Para Além de Bem e Mal19. Foi nossa intenção considerar, acima de tudo,

a crítica à moral realizada por Nietzsche. Nestes termos, ao se perguntar pelo valor da

nossa civilização, Nietzsche distancia-se da argumentação que pretende justificar a moral, e

essa nova perspectiva crítica frente à modernidade faz com que os seus escritos adquiram,

19
Este aforismo é citado e analisado no capítulo 3, seção 3.3. Em poucas palavras, neste aforismo Nietzsche
opõe-se sem reservas ao igualitarismo uniforme da democracia moderna com o seu conceito de pathos da
distância: um grau de hierarquia necessário para o surgimento de estados mais elevados, raros, para a
elevação do tipo “homem".

21
além de um tom severo, contornos de um contra-discurso. Foi assim que buscamos

interpretar o tom provocativo de Nietzsche tanto na construção histórico-genealógica dos

valores morais quanto no seu projeto filosófico-cultural intitulado “a grande política”.

Assim, se a ironia e o sarcasmo são características singulares nos escritos

nietzscheanos, não é por puro capricho, mas sim com vistas a uma transvaloração dos

valores morais. Deste tema ocupa-se o terceiro e último capítulo deste trabalho, no qual

buscamos desenvolver as duas oposições que merecem destaque em nossa pesquisa: o

“último homem” e o “além-do-homem”.

Se o resultado da participação dos valores da moral escrava na modernidade,

representado na filosofia nietzscheana pela figura do “último homem”, é o movimento

democrático que, para o filósofo, constitui a herança do movimento cristão20; em oposição,

Nietzsche apresenta o seu projeto alternativo aos ideais decadentes da democracia,

intitulado a “Grande política”: uma política voltada para a superação do homem,

direcionada para a criação e promoção da cultura. Assim, como contra-ideal ao

igualitarismo massificador que propõe a democracia moderna, Nietzsche pensa em uma

política voltada à hierarquia dos talentos.

Nestes termos, a “grande política” consiste não no poderio político ou bélico,

mas sim em uma ética aristocrática que pretende, sob o domínio do pathos da distância, ser

“uma raça com esfera vital própria, com um excedente de força para beleza, coragem,

cultura, maneiras, até no que há de mais espiritual; uma raça afirmadora, a quem é

permitido gozar todo grande luxo...”21. A tarefa de transformar a política da modernidade e

20
Conferir no capítulo 3, seção 3.2, a análise do aforismo 202 de Para Além de Bem e Mal.
21
NIETZSCHE, Fragmento póstumo do outono de 1887, 9[153], In: KSA, vol. 12, p. 424s. Tr. p. 38.

22
dar efetividade à “grande política” será responsabilidade do indivíduo soberano,

representado na pessoa do filósofo-legislador.

Compreendido de que maneira o projeto nietzscheano apresentado como

alternativa à decadência e ao rebaixamento das políticas modernas, especificamente a

democracia, implica em solapar o império dos valores morais (cristãos), o objetivo não é

outro senão o de criar condições para o surgimento de uma nova aristocracia do espírito,

capaz de manter “aquela exigência de sempre novos alargamentos de distância no interior

da própria alma, a configuração de estados sempre mais elevados, mais raros, mais

remotos,[...], em resumo, a ‘auto superação do homem’, para tomar uma fórmula moral em

um sentido extra moral”22.

As oposições presentes na filosofia nietzscheana, como por exemplo, na

moral aristocrática a virtude da distância (o pathos da distância), o egoísmo, o orgulho de

si, a busca pelo isolamento, contrapõem-se à “virtude” do nivelamento, do igualitarismo, o

desprezo por si e a busca pelo amor ao próximo, da compaixão, como aparecem nas mais

variadas manifestações da moral de rebanho; são caracterizações para os tipos

nietzscheanos, e tem seu fundamento a partir de uma perspectiva da história natural da

moral. Assim, se a modernidade (leia-se aqui os filósofos dogmáticos) mostra-se incapaz de

compreender o vir a ser da história natural da moral, e prefere determinar-se pela tradição

cristã que consiste na conservação da moral platônico-cristã como a única moral, é, acima

de tudo, pela falta de sentido histórico.

Assim, reiteramos que nesta perspectiva crítica frente aos valores da

modernidade, Nietzsche investiga os chamados “valores supremos” para o pensamento do

homem ocidental - como bem e mal, verdade e mentira, realidade e ilusão, dever e

22
Ibid, outono de 1885 – outono de 1886, 2[13]. In: KSA, vol. 12, p. 71s. Tr. p. 33.

23
obrigação, culpa e pecado (são estes alguns exemplos) – com o objetivo de mostrar que

estes conceitos não possuem um significado permanente. Por isso, não nos parece possível

encontrar em Nietzsche uma unidade pacificadora. Mas, ao posicionar-se como contra-ideal

da modernidade, este filósofo cria as condições para que o “homem do desconhecimento”,

o homem da modernidade que pretensiosamente acredita que, por exemplo, “a moral do

povo discrimina entre a força e as expressões de força, como se por trás do forte houvesse

um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força”23; a possibilidade do

autoconhecimento. E, ao que nos parece, o autoconhecimento inicia-se com a compreensão

de que todos os valores morais supremos são perspectivas que se transformam, modificam,

desdobram, e muitas vezes perecem ao longo do tempo.

Enfim24, procuramos ao longo do nosso trabalho, permanecer fiéis à

solicitação de Nietzsche presente no aforismo 282 de Humano, Demasiado Humano:

“Como falta de tempo para pensar e tranqüilidade no pensar, as pessoas não mais ponderam

as opiniões divergentes: contentam-se em odiá-las”25. Diante disso, esperamos que o nosso

leitor consiga perceber que as nossas reflexões acerca da democracia moderna não têm por

objetivo promover um simples julgamento entre bem e mal desta forma de governo,

tampouco buscamos fazer apologias a uma nova instituição política. Sabemos que

comumente a democracia é uma forma de governo incontestável, sobretudo no que diz

respeito ao preceito da igualdade entre os homens. Contudo, buscamos mostrar que o valor

23
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a genealogia da moral], I, 13, In: KSA, vol. 5, p. 279. Tr.
p. 36.
24
Informamos o leitor que algumas citações dos textos de Nietzsche se repetem em diferentes seções e/ou
capítulos. Este fato justifica-se pela necessidade de explicitar por mais de uma vez o pensamento
nietzscheano. Assim, apesar de cansativa a repetição (e até mesmo excessiva), esta foi a forma que
encontramos para manter a integridade dos textos nietzscheanos, bem como para tornar coerente as nossas
reflexões.
25
NIETZSCHE. Menschliches Allzumenschliches [Humano, demasiado humano], 282. In: KSA, vol. 2, p.
231. Tr. p. 191.

24
da democracia é apenas mais um artigo de “fé”, que não possui uma verdade em si, e

justamente por isso ela pode e deve ser repensada. No nosso caso, esta reflexão consiste em

uma pesquisa histórico-genealógica (nietzscheana) acerca do valor dos valores

democráticos. Uma perspectiva que pretende, antes de tudo, suscitar tensão, conflito, ou

seja, posicionar-se como um contra-discurso à democracia moderna.

25
CAPÍTULO 1

ESTADO, MEMÓRIA, PROMESSA, RESPONSABILIDADE: ÔNUS DO


PROCESSO CIVILIZATÓRIO.

É preciso mesmo admitir algo ainda mais grave: que, do


mais alto ponto de vista biológico, os estados de direito não
podem senão ser estados de exceção, enquanto restrições
parciais da vontade de vida que visa o poder, a cujos fins
gerais se subordinam enquanto meios particulares: a saber,
como meios para criar maiores unidades de poder. Uma
ordem de direito concebida como geral e soberana, não
como meio na luta entre complexos de poder, mas como
meio contra toda luta, mais ou menos segundo o clichê
comunista de Dühring, de que toda vontade deve considerar
toda outra vontade como igual, seria um princípio hostil à
vida, uma ordem destruidora e desagregadora do homem,
um atentado ao futuro do homem, um sinal de cansaço, um
caminho sinuoso para o nada.-26

1.1- A FORMAÇÃO DO ESTADO

Um trabalho filológico, filosófico e, sobretudo, psicológico, faz de Para a

Genealogia da Moral um livro revelador, pois trata-se de uma análise histórica e

psicológica da evolução do homem como homem moral. É, portanto, um trabalho histórico-

genealógico no qual Nietzsche além de mostrar a evolução histórica de diferentes tipos de

moralidade, denuncia a hegemonia dos valores morais modernos, a saber, da “moral

escrava”. Assim, a investigação acerca do valor dos valores morais faz Nietzsche constatar

que o homem moderno está “doente”, e que esta doença é proveniente dos valores da

“moral escrava”, pois são valores que, sobretudo, conduzem à “mediocrização” e ao

26
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 11. In: KSA, vol. 5, p. 312-
313. Tr. p. 65.

26
“rebaixamento” da vida. Exemplo de grande importância são os valores morais intrínsecos

à política democrática moderna que pretende igualar vontades de poder27 diametralmente

opostas, reduzindo o valor da vida a valores de utilidade social, como “a felicidade da

maioria”28 e o bem estar geral. Assim, Para Genealogia da Moral, é um texto de caminhos

nebulosos, provocativo, desafiador e que, ao final, “uma nova verdade se faz visível em

meio a espessas nuvens29”. Para cada uma das três dissertações30 Nietzsche, em Ecce

Homo, apresenta “uma verdade nova”, sendo de maior relevância (neste estudo) a verdade

da segunda dissertação, na qual a crueldade é “pela primeira vez revelada como um dos

mais antigos e indeléveis substratos da cultura31”.

Entendemos a segunda dissertação de Para a Genealogia da Moral como um

procedimento genealógico que diz respeito às formações psíquicas e sociais do homem. Isto

porque, as três dissertações são pesquisas genealógicas em que Nietzsche reflete de que

maneira surgiram32 as valorações morais ao longo da história e quais as influências e

27
Uma análise pormenorizada da vontade de poder será desenvolvida na seção 1.2.
28
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 228, In: KSA: vol.5, p. 164. Tr. p. 134.
29
NIETZSCHE, Ecce Homo, In: KSA, vol. 6, p. 352. Tr. p. 138.
30
“A verdade da primeira dissertação é a psicologia do cristianismo: o nascimento do cristianismo do espírito
do ressentimento, não, como se crê, do ‘espírito’ – um anti-movimento em sua essência, a grande revolta
contra a dominação dos valores nobres. A segunda dissertação oferece a psicologia da consciência: a mesma
não é, como se crê, ‘a voz de Deus no homem’ – é o instinto de crueldade que se volta para trás, quando já
não pode se descarregar para fora. A crueldade pela primeira vez revelada como um dos mais antigos e
indeléveis substratos da cultura. A terceira dissertação dá resposta à questão de onde procede o tremendo
poder do ideal ascético, do ideal sacerdotal, embora o mesmo seja o ideal nocivo par excellence, uma vontade
de fim, um ideal de décadence. Resposta: não porque Deus atue por trás dos sacerdotes, mas sim faute de
mieux [por falta de coisa melhor] – porque foi até agora o único ideal, porque não tinha concorrentes. ‘Pois o
homem preferirá ainda querer o nada a nada querer’...Sobretudo faltava um contra-ideal – até Zaratustra. Fui
compreendido. Três decisivos trabalhos de um psicólogo, preliminares a uma transvaloração de todos os
valores. – Este livro contém a primeira psicologia do sacerdote”. Nietzsche, Ecce Homo, In: KSA, vol. 6, p.
352-353. Tr. p. 138-139.
31
Nietzsche, Ecce Homo, In: KSA, vol. 6, p. 352. Tr. p. 138.
32
Importante esclarecer o significado na filosofia de Nietzsche os termos origem (Ursprung) e criação
(Erfindung). Foucault explica, no texto Verdade e as Formas Jurídicas (1996, p. 14), que “quando fala de
invenção, Nietzsche tem sempre em mente uma palavra que opõe a invenção, a palavra origem. Quando diz
invenção é para não dizer origem; quando diz Erfindung é para não dizer Ursprung”. Assim, a religião para
Nietzsche não tem origem (Ursprung), ela foi inventada, criada (Erfindung); bem como a poesia, a moral e o
conhecimento. Portanto, a palavra surgimento deve ser compreendida como criação. Este assunto não é de

27
limites deste passado moral para o futuro do homem ocidental. Com relação à segunda

dissertação, a hipótese de Nietzsche é de que tanto a moral quanto a cultura se constituíram

a partir de atos de crueldade, sobretudo no que se refere às forças impulsivas e instintivas33

do homem que com o processo civilizatório são interiorizadas em ações de intensa

crueldade e passam a se dirigir contra o próprio homem: estamos nos referindo aqui

(resumidamente) à criação da “má consciência”.

Não obstante, apesar da crueldade exercida na domesticação do bicho homem,

foi este processo que fez dele um animal interessante. Assim, o procedimento histórico-

genealógico acerca do valor dos valores morais tem como propósito reconstruir o vir a ser

da moral. A reflexão acerca da moralidade entendida como um atributo da natureza

humana, que desconsiderava o tempo e a história, é solapada por uma nova perspectiva, de

caráter histórico e crítico: a pesquisa genealógica nietzscheana não admite a moral como

um dado inquestionável, desconstruindo teorias de caráter absoluto, tanto em um plano

epistemológico, quanto ético-político. O discurso nietzscheano permite, portanto, uma

revisão histórica dos valores morais de maneira integral, reveladora de uma multiplicidade

de valores morais, atuantes na criação de duas forças que acompanharam o

desenvolvimento do homem social: tanto da consciência moral quanto da “má

consciência”.

Situando-se, portanto, como antagonista dos ideais socrático-cristãos e dos

valores morais como unidade e inerentes à natureza humana, apresenta Nietzsche uma nova

perspectiva, a saber, dualidade e jogos de poder. Com uma escrita fulminante e muitas

vezes irônica, realiza o filósofo alemão uma nova leitura da procedência dos valores

fácil explicação, encontramos em Nietzsche dois empregos para a palavra Usprung, como explica Foucault
em Nietzsche, a genealogia e a história (1996, p. 16).
33
Com relação às forças impulsivas, iremos elaborar este assunto ao longo do texto, na seção 1.2.

28
morais, não por mero capricho em desacreditar outras correntes filosóficas, mas com o

objetivo de apresentar uma nova realidade possível acerca dos valores morais, qual seja, de

que a moral não se manifeste como um recurso decadente e narcótico, mas que seja um

atributo capaz de tornar possível a transvaloração dos valores, em outras palavras, reverter

a inversão platônica dos valores morais, superando, assim, a interpretação moralista

atribuída à própria vida a partir do platonismo (cristão)34.

Na pesquisa genealógica presente no texto Para a Genealogia da Moral,

Nietzsche mostra que ao longo do tempo a moral cristã consolidou uma forma de negação

da própria vida. Cumpre esclarecer, portanto, de que maneira a moral cristã nega a vida, e

para tanto, nos limitaremos a um exemplo condizente com este trabalho: a política

democrática moderna que, para Nietzsche, “constitui a herança do movimento cristão35”.

Desenvolver um estudo crítico da democracia pode muito bem suscitar

estranheza, já que a democracia é concebida (talvez não em sua totalidade, mas em seus

princípios) como uma política “amadurecida” pois tende ao exercício pleno das políticas

públicas sociais e tem como meta o bem comum36. Ao questionarmos os valores morais

intrínsecos à democracia moderna, é de grande importância que a filosofia de Nietzsche

seja entendida e interpretada como um contra-discurso, ou seja, como um discurso crítico

que não pretende instituir uma verdade incondicional, mas sim suscitar tensão, conflito e,

por isso mesmo, uma análise acerca do valor dos valores morais em questão. O objetivo

34
Como explica Giacóia no texto Platão e a transvalorização de todos os valores, In: Sonhos e Pesadelos da
Razão Esclarecida: Nietzsche e a Modernidade. Passo Fundo: UPF, 2005, p. 31-32.
35
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para Além de bem e mal], 202, In: KSA, vol. 5, p. 125. Tr. p.
102.
36
Maria Rita Kehl desenvolve uma pertinente análise a respeito da democracia moderna, sobretudo no que se
refere à igualdade entre os homens, como uma política pública constituída a partir do ressentimento, uma vez
que: “o ressentimento social teria sua origem nos casos em que a desigualdade é sentida como injusta diante
de uma ordem simbólica fundada sobre o pressuposto da igualdade”.
Kehl, Maria Rita. Políticas do Ressentimento. In: Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. –
(Coleção clínica psicanalítica/ dirigida por Flávio Carvalho Ferraz).

29
dos escritos de Nietzsche não é prescrever princípios, mas proporcionar a seus leitores uma

“liberdade intelectual” (se for possível assim denominar), excluindo qualquer viés

pragmático ou idealizado37. Portanto, não pretende Nietzsche construir ídolos: “A última

coisa que eu prometeria seria ‘melhorar’ a humanidade. Eu não construo novos ídolos; os

velhos que aprendam o que significa ter pés de barro. Derrubar ídolos (minha palavra para

‘ideais’) – isto sim é meu ofício38”.

Desta forma, não há preocupação na filosofia nietzscheana em construir uma

(nova) verdade, mas romper com a estabilidade dos valores morais, questionando,

primeiramente, a origem do valor dos valores morais. Não nos parece exagero afirmar que

o objetivo de Nietzsche consista, em especial (ou talvez primeiramente), na crítica aos

ideais e, por conseguinte, calçar “pés de barro” que nos permitam desenvolver a capacidade

de arriscar e, portanto, refletir de que maneira, por exemplo, a democracia moderna pode

ser compreendida como a conservação de alguns ideais tão antigos quanto a moral

socrático-platônico-cristã, a saber, igualdade, liberdade e fraternidade39; e que nesta

perspectiva são estes ideais formas de anestesiar, amansar e domar, são procedimentos que

não tem por fim dividir o poder, mas que almeja conquistar o controle sobre (e da) a vida,

ou melhor, das manifestações de forças. Se o “martelo” de Nietzsche tem como propósito

solapar os pilares de sustentação da democracia, este desequilíbrio é necessário para que

37
Nietzsche adverte no texto Pensamentos sobre o futuro de nossos institutos de formação: “O leitor do qual
espero alguma coisa deve ter três qualidades. Deve ser calmo e ler sem pressa. Não deve intrometer-se, nem
trazer para a leitura a sua ‘formação’. Por fim, não pode esperar na conclusão, como um tipo de resultado,
novos tabelamentos”. NIETZSCHE, F. In: Cinco prefácios para Cinco Livros não Escritos. Tradução e
prefácio Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1996, p. 33.
38
Ecce Homo, Prólogo, 2, In: KSA, vol. 6, pg. 257. Tr. p. 40.
39
Esclarece Giacóia: “O desenvolvimento do movimento democrático em direção a formas de igualitarismo
cada vez mais radicais, como o socialismo e o anarquismo, é interpretado por Nietzsche como sintoma de que
eles são ‘unânimes na fundamental e instintiva hostilidade contra toda e qualquer outra forma de sociedade
que não a do ‘rebanho autônomo’’. É nessa imbricação entre ideologia do igualitarismo uniforme e sua
atestação político-religiosa pela moral cristã que se esclarece o significado da figura nietzschiana do ‘último
homem’”. GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Nietzsche & Para além de bem e mal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2002, p.49. (Passo-a-passo).

30
possamos compreender de que maneira, mesmo sendo aparentemente tão avessa à

violência, é esta sociedade moderna fruto da violência e permeada por ela, apesar da moral

democrática induzir ao amolecimento do homem ao proclamar pela paz, tranqüilidade,

segurança, estabilidade, felicidade, duração, equilíbrio40.

Se, afirmamos anteriormente que para Nietzsche tanto a cultura quanto a moral

são criações ao longo da história, impulsionadas por atos de crueldade, o surgimento do

Estado insere-se também neste desenrolar histórico. Contudo, anterior a este processo

histórico de criações, deve-se considerar o estado de natureza41 no qual estava o homem

inserido antes da criação da sociedade; e, a partir destas reflexões, ou melhor,

conjuntamente a essas análises, compreender com maior clareza as modificações históricas,

já que com o surgimento do Estado, bem como da moral e da cultura, há um rompimento

com a natureza.

Esta perspectiva histórica tem a prerrogativa de esclarecer, por exemplo, que a

relação que conhecemos no interior da comunidade, em termos de castigo, justiça,

responsabilidade, “culpa” e “má consciência”, são processos de moralização pelos quais

passou o homem. Isto significa que no estado de natureza não havia um contexto moral a

determinar e formar comportamentos; assim, o processo civilizatório é imprescindível para

o surgimento do homem moral, apto a prever o futuro, fazer promessas, enfim, obrigar-se

com os demais.

40
Continua Nietzsche nesta citação de Ecce Homo: “A realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua
veracidade, na medida em que se forjou um mundo ideal... O ‘mundo verdadeiro’ e o ‘mundo aparente’ – leia-
se: o mundo forjado e a realidade... A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade, através dela
a humanidade mesma tornou-se mendaz e falsa até seus instintos mais básicos – a ponto de adorar os valores
inversos aos únicos que lhe garantiriam o florescimento, o futuro, o elevado direito ao futuro”. Ecce Homo,
In: KSA, vol.6, pg. 257. Tr. p. 40.
41
Trataremos do tema “estado de natureza” na filosofia nietzscheana no segundo capítulo deste trabalho,
seção 2.1.

31
No texto Para A Genealogia da Moral Nietzsche esclarece de que maneira as

forças conseguem transmutar, associar, aumentar, diminuir, transformar e declinar. Neste

jogo de forças é estabelecida uma ambigüidade que parece recorrente ao processo

civilizatório. Neste cenário é possível perceber, por exemplo, como Nietzsche apresenta a

dualidade necessária para o surgimento da verdadeira cultura, da arte, a saber, o escravo e o

gênio42. E, se há uma relação constante de tensão entre forças há, inevitavelmente, uma

força, por menor que seja sua duração, mais forte. Há que se observar que nesta perspectiva

filosófica não há espaço para a estabilidade e equilíbrio, desejos utilitaristas de uma

democracia voltada para a igualdade de direitos. Isso nos reporta justamente ao pensamento

improcedente (para nossa análise) do homem ocidental que entende que a igualdade deve

desigualar para igualar. Portanto, o estranhamento decorrente de um estudo crítico da

democracia, e isso pretendemos desenvolver ao longo do nosso texto, não parece estar no

que Nietzsche entende como jogos de poder, mas sim na possibilidade de fazer eqüidade

entre vontades de poder diametralmente opostas.

A análise genealógica do surgimento do Estado é caracterizada, desta forma,

por jogos de poder, em contraposição tanto às teorias que professam que o Estado, como

tudo que há na terra, tem uma origem divina, quanto às teorias filosóficas que explicam a

gênese do Estado a partir de um contrato social, como entendeu Rousseau. Insistimos

novamente para a importância dos termos aqui apresentados. Como afirmamos

anteriormente, qualquer referência ao termo origem43 na filosofia nietzscheana deve ser

42
Este assunto será melhor analisado ao longo do texto, especificamente na seção 2.1.
43
Acerca desta questão, a pesquisa genealógica de Nietzsche em oposição à investigação tradicional da
origem, Foucault faz a seguinte análise: “Por que Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas
ocasiões, a pesquisa de origem (Ursprung)? Porque, primeiramente, a pesquisa, nesse sentido, se esforça para
recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida
em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal
origem é tentar reencontrar ‘o que era imediatamente’, o ‘aquilo mesmo’ de uma imagem exatamente

32
atentamente observada; o termo origem (Ursprung), implica em uma constatação muitas

vezes metafísica, remonta à origem (divina) de surgimento da vida (o princípio da vida), o

que, conseqüentemente, implica em uma leitura de eternidade e imortalidade. Há que se

considerar, portanto, as forças contingentes da história, dissolvendo a unidade atribuída aos

fenômenos, afirmando, desta maneira, um sentido múltiplo, em que é possível identificar,

sobretudo, as forças heterogêneas que se deslocam a todo o momento da história, e que

constituem o próprio devir.

Assim, de acordo com a filosofia nietzscheana, não nos parece apropriado

buscar a origem para os eventos. Isto porque, a origem compreendida como unidade

(princípio do todo universal) é o extremo oposto do propósito presente na filosofia

nietzscheana, a saber, a possibilidade de crescimento, desenvolvimento, deslocamento,

transfiguração de forças que dão forma a multiplicidades e não a unidade. Também, a partir

de uma perspectiva múltipla é possível compreender e estabelecer traços de uma moral

dominante e compreendê-la a partir de suas diversas forças possíveis e, assim, relativizá-la.

Não há possibilidade, por exemplo, de determinar precisamente de que maneira o Estado

originou-se. É possível considerar uma hipótese, que Nietzsche compreende plausível, já

que é justificada a partir não da origem, mas das modificações inerentes ao devir histórico.

A partir desta perspectiva podemos compreender a história, na filosofia nietzscheana, como

criação, aumentar de forças, um desabrochar, bem como um resguardar, um diminuir,

definhar e extinguir-se, para novamente dar início a este desenvolvimento.

adequada a si; é tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos
os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira. Ora, se o
genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na metafísica, o que é que ele aprende?
Que atrás das coisas há algo ‘inteiramente diferente’: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que
elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram
estranhas”. FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do poder. Tradução
Roberto Machado. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1996, p. 16-17.

33
A respeito do surgimento e formação do Estado, reportamo-nos ao parágrafo

dezessete, da Segunda Dissertação do texto Para a Genealogia da Moral, em que

Nietzsche descreve a violência e o abuso de poder usados na gênese do Estado:

[..] que o mais antigo “Estado”, em conseqüência, apareceu como uma terrível
tirania, uma maquinaria esmagadora e implacável, e assim prossegui o seu
trabalho, até que tal matéria-prima humana e semi-animal ficou não só amassada
e maleável, mas também adotada de uma forma. [...]. Deste modo começa a
existir o “Estado” na terra: penso haver-se acabado aquele sentimentalismo que o
fazia começar com um “contrato”. Quem pode dar ordens, quem por natureza é
“senhor”, quem é violento em atos e gestos – que tem a ver com contratos! Tais
seres são imprevisíveis, eles vêm como o destino, sem motivo, razão,
consideração, pretexto, eles surgem como o raio, de maneira demasiado terrível,
repentina, persuasiva, demasiado “outra”, para serem sequer odiados. Sua obra
consiste em instintivamente criar formas, imprimir formas, eles são os mais
involuntários e inconscientes artistas – logo há algo novo onde eles aparecem,
uma estrutura de domínio que vive, na qual as partes e as funções foram
delimitadas e relacionadas entre si, na qual não encontra lugar o que não tenha
antes recebido um “sentido” em relação ao todo. Eles não sabem o que é culpa,
responsabilidade, consideração, esses organizadores natos; eles são regidos por
aquele tremendo egoísmo de artista, que tem olhar de bronze, e já se crê
eternamente justificado na “obra”, como a mãe no filho.44

São estes “organizadores e artistas da violência” que dão início a esta

“maquinaria esmagadora e implacável”45 que é a formação do Estado. A força desses

“senhores” também fez surgir “a má consciência”, “neles não nasceu a má consciência, isto

é mais do que claro – mas sem eles ela não teria nascido46”, pois foi “dos seus golpes de

martelo, da sua violência de artista” que um “quantum de liberdade” foi eliminado do

mundo. O “instinto de liberdade” foi tornado “latente à força” por esses “artistas”, “esse

instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no íntimo, por fim capaz de

desafogar-se somente em si mesmo: isto, apenas isto, foi em seus começos a má

44
Nietzsche. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 324-325.
Tr. p. 74-75.
45
Ibid, II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 325. Tr. p. 74.
46
Ibid, II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 325. Tr. p. 75.

34
consciência47.” Por isso afirmamos que a atuação desses “senhores” rompeu com a natureza

e criou o homem social .

A compreensão histórica acerca dos instintos naturais do homem “encarcerados

no íntimo” não só explica o surgimento da “má consciência” mas também permite o

entendimento das estruturas sociais tal como conhecemos. Nietzsche explica o Estado como

uma forma de controle sobre os instintos do homem, uma força capaz de dar forma e

amansar a “matéria-prima humana e semi-animal”. Para o filósofo há uma “definição” (se

assim for possível denominar) para a “palavra Estado”:

Empreguei a palavra Estado: já se compreende a que me refiro – a uma horda


qualquer de loiros animais de rapina, uma raça de conquistadores e de senhores
que, organizados para a guerra e dotados de força de organizar, coloca sem
escrúpulo algum suas terríveis garras sobre uma população talvez tremendamente
superior em número, porém ainda informe, errante. É assim, com efeito, que se
inicia na terra o Estado. Penso que desse modo fica refutado aquela fantasia que o
fazia começar com um contrato48.

Para Nietzsche, portanto, o Estado se institui a partir de relações de dominação e

exploração dos mais fortes sobre os mais fracos. A despeito da violência, é esta dominação

que impulsiona o processo civilizatório, no qual necessariamente são elaboradas formas de

“ajustamento” dos instintos naturais aos novos padrões sociais, a saber, de controle,

autoridade, subserviência, servilismo. Opera-se um violento trabalho que consiste em

ajustar o instinto animal à rigidez necessária à organização social, concretizado na

consolidação das formas regulares de vida social, configuração de hábitos permanentes e,

sobretudo, o sentimento de veneração frente ao costume, indispensável para a ruptura entre

natureza e sociedade/cultura: este trabalho recebe o nome de eticidade dos costumes49.

47
Ibid, II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 325. Tr. p. 75.
48
Ibid, II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 324. Tr. p. 74-75.
49
Esclarece Giacóia que: “Por sua vez, a eticidade dos costumes está vinculada à gênese das formas
rudimentares de Estado. Nela estão descritos o violento e bárbaro trabalho de ajustamento do animal
instintivo à rigidez da organização social, sua captura e modelagem sob a pressão irresistível da camisa-de-

35
Se, segundo o mesmo filósofo, nada existe de maneira a priori, como marca da

providência divina, então, tudo é construção, vir a ser; a moral é a predição máxima desta

análise. A moral, ou melhor, “a criação da instância psíquica da consciência moral”50, é

uma tirania contra a natureza, contra os instintos: é ela a força que dá forma, é o cárcere

contra a natureza e para onde ficam aprisionados os instintos. Contudo, como não há na

filosofia de Nietzsche unidade, estabilidade, essa mesma força que se apresenta como

“tirania contra a natureza”, não apenas aprisiona, mas também desenvolve atividades que

parecem ser possíveis apenas pela atuação desta mesma força:

Mas o fato curioso é que tudo o que há e houve de liberdade, finura, dança, arrojo
e segurança magistral sobre a terra, seja no próprio pensar, seja no governar, ou
no falar e convencer, tanto nas artes como nos costumes, desenvolveu-se apenas
graças à “tirania de tais leis arbitrárias”; e, com toda seriedade, não é pequena a
probabilidade de que justamente isso seja “natureza” e “natural”.51

O “essencial e inestimável em toda moral52” - e por isso mesmo a sua

importância no desenvolvimento do que Nietzsche chama de “finura”, “dança”, “arrojo” –

comportamentos que ao mesmo tempo em que denotam uma certa liberdade são

indissociáveis do aprimoramento e repetição próprios de uma vida social – está no fato da

moral ser uma “demorada coerção”, “a coerção métrica, a tirania da rima e do ritmo53”, que

fez com que se obedecesse “por muito tempo e numa direção: daí surge com o tempo, e

sempre surgiu, alguma coisa pela qual vale a pena viver na terra, como virtude, arte,

força sociedade e da paz. No contexto dessa argumentação, a hipótese do contrato-social não pode dar conta
da origem da sociedade: esta emerge não do acordo de vontades entre idealizados sujeitos de iguais direitos,
mas da conquista, das relações de poder”.
Giacóia Júnior, Oswaldo. Para a Genealogia da Moral/ Nietzsche. Adaptação de Oswaldo Giacóia Júnior.
São Paulo: Scipione, 2001- (Série Reencontro Filosofia), p. 43.
50
Termo utilizado por Oswaldo Giacóia Júnior, In: Sonhos e Pesadelos da Razão Esclarecida: Nietzsche e a
Modernidade. Passo Fundo: UPF, 2005, p. 52.
51
Nietzsche. Jenseits von Gut und Böse [Para Além de Bem e Mal], 188. In: KSA, vol. 5, p. 108. Tr. p. 88.
52
Ibid, 188. In: KSA, vol. 5, p. 108. Tr. p. 87.
53
Ibid, 188, In: KSA: vol. 5, p. 108. Tr. p. 87.

36
música, dança, razão, espiritualidade – alguma coisa transfiguradora, refinada, louca e

divina”54.

Cabe observar, por conseguinte, que a moral é uma disciplina sobre a força

instintiva: “tudo o que há de violento, arbitrário, duro, terrível e anti-racional nisso revelou-

se como meio através do qual o espírito europeu viu disciplinada a sua força, sua inexorável

curiosidade e sutil mobilidade55”. Portanto, a moral, bem como o surgimento do Estado,

tem sua criação na atuação de uma força que imprime sua forma sobre forças mais fracas.

A resistência que pode haver (e que faz o “combate” entre vontade de poder) não parece ser

a de uma força que visa à harmonia, mas sim uma nova força que também tem como

objetivo imprimir sua forma. Nesse processo, como em todos os eventos históricos, não há

dado natural, providência divina, tudo é vir-a-ser. Para compreender a luta entre forças

diametralmente opostas que fizeram a história da moral, é necessário apreender estes

acontecimentos, sobretudo, como uma “tirania” contra a natureza, um excesso de força

atuante na “matéria prima humana e semi-animal”, que precisou de regras e formas para

tornar possível o processo civilizatório.

O aforismo 257 de Para Além de Bem e Mal, texto antecipatório à gênese do

Estado presente em Para a Genealogia da Moral, é de grande importância ilustrativa para a

tese aqui desenvolvida, em que Nietzsche afirma que a elevação “do tipo homem” foi obra

de uma sociedade aristocrática, nas palavras do filósofo:

É certo que não devemos nos entregar a ilusões humanitárias, no tocante às


origens de uma sociedade aristocrática (ou seja, do pressuposto dessa elevação do
tipo “homem”): pois a verdade é dura. Digamos, sem meias palavras, de que
modo começou na terra toda sociedade superior! Homens de uma natureza ainda
natural, bárbaros em toda terrível acepção da palavra, homens de rapina, ainda
possuidores de energias de vontade e ânsias de poder intactas, arremeteram sobre
raças mais fracas, mais polidas, mais pacíficas, raças comerciantes ou pastoras,

54
Ibid, 188. In: KSA, vol. 5, p. 109. Tr. p. 88.
55
Ibid, 188. In: KSA, vol. 5, p. 109. Tr. p. 88.

37
talvez, ou sobre culturas antigas e murchas, nas quais a derradeira vitalidade
ainda brilhava em reluzentes artifícios de espírito e corrupção. A casta nobre
sempre foi, no início, a casta de bárbaros: sua preponderância não estava
primariamente na força física, mas na psíquica – eram os homens mais inteiros (o
que em qualquer nível significa também “as bestas mais inteiras”)56.

Primeiramente, esclarecemos a partir da interpretação de Giacóia57 (2005, p.

55), que a referência de Nietzsche aos “bárbaros”, “encontra explicação nos modelos de

organização primitiva gentílica, do tipo das comunidades de estirpe, ou gens”. São

organizações sociais “dos tempos pré-históricos, anteriores à instituição do Estado”, assim,

continua Giacóia, “esse argumento tem importância decisiva, porque permite desconstruir a

teoria do pacto como fundamento de inteligibilidade, historicizando formas distintas de

organização comunitária”. Portanto, Nietzsche faz um percurso histórico ao retomar

formações sociais que “são refratárias à idéia de contratos, de responsabilidade pessoal ou,

mesmo, de sujeitos singulares de direito, para atacar um entendimento do pacto social

fundante, seja em sentido empírico, seja desempenhando a função de princípio explicativo

transcendental”(GIACÓIA, 2005, p. 55).

Assim, o uso exacerbado de violência que foi empregado para a criação do

Estado, além de refutar a hipótese de um Estado erigido pela vontade dos contratantes, de

maneira pacífica (tal como pensou Rousseau), tornou possível a criação de um “tipo

homem”, resultado da força modeladora atuante sobre a forma humana semi-animal. Tal

nomeação, bem como às demais determinações dadas por Nietzsche a outras figuras, como

“bárbaro”, “nobre”, “aristocrático”, “ave de rapina”, “besta loura”, não são “invariantes

ontológicos, designando características naturais de indivíduos ou de classes sociais”

56
Ibid, 257, In: KSA, vol. 5, p. 205- 206. Tr. p. 169-170.
57
Esta explicação, bem como uma tradução do volume 14 de Kritische Studienausgabe, em que os editores
fazem um comentário referente ao aforismo 257 de Para além de bem e mal, estão na obra de Oswaldo
Giacóia Júnior, Sonhos e Pesadelos da Razão Esclarecida: Nietzsche e a Modernidade, p. 54-55.

38
(GIACÓIA, 2005, p. 56). Esta reflexão é de suma importância, pois se tais figuras

pudessem ser compreendidas como determinações naturais colocaríamos a filosofia de

Nietzsche em contradição; não é possível um fator ontológico a determinar previamente

uma característica natural, tal fato não é compatível com uma filosofia do vir a ser, cujo

movimento caminha em direção a “auto-superação”. Por conseguinte, são estas figuras

nietzscheanas tipos presentes em seus escritos “cujas estruturas se definem, se deslocam e

se alternam a partir de posições e remanejamentos ocorridos em configurações distintas de

relações de poder”. (GIACÓIA, 2005, p. 56).

Destarte, a reconstituição da gênese do Estado, na filosofia nietzscheana, não

apenas se opõe aos estudos racionalistas e contratualistas, mas, sobretudo, aponta um novo

sentido histórico de reconstrução dos valores morais. Talvez não seja exagero afirmar como

prioridade da pesquisa genealógica o caráter revelador de uma multiplicidade de forças, na

qual se inserem perspectivas58 modeladoras da história. Para tanto, torna-se necessário um

olhar mais abrangente para as mudanças no significado da própria história, como, por

exemplo, pensar que para a civilização existir foi preciso exercer uma força “tirânica” sobre

a natureza, inclusive sobre o “animal homem”; processo pelo qual passou o homem animal,

sem memória, sem lembrança do passado e perspectiva para o futuro, até a construção do

homem que responde por si, autônomo.Esta apreciação não pretende nem ao menos ser um

possível resumo da genealogia de Nietzsche, mas apenas uma contextualização capaz de

revelar a importância na filosofia de Nietzsche da política, uma vez que, sem a figura do

animal político, capaz de obrigar-se com o outro não haveria civilização. Também, é esta

pesquisa genealógica nietzscheana que torna possível uma análise crítica do valor dos

58
Iremos esclarecer o perspectivismo, na filosofia de Nietzsche, ao longo do texto, na seção 1.2.

39
valores morais59, por interpretar a vida como uma multiplicidade de forças, movimento que

torna possível a construção e a dissolução, o crescer e o perecer, de forças, sejam elas

morais, políticas ou artísticas. Em outras palavras, apreender a moral dominante como

multiplicidade permite compará-la em uma ordem hierárquica de morais possíveis, que

passam a ser valorizadas em função de um determinado fim e propósito, que para

Nietzsche, deve ser a auto-superação, mas que na democracia moderna, caminha em

direção ao rebaixamento e diminuição do homem, como veremos no desenvolvimento do

presente trabalho.

1.2- (IR)Responsabilidade dos inconscientes artistas.

Os escritos de Nietzsche requerem de seu leitor não apenas tempo e dedicação,

mas uma leitura que consista na “arte da interpretação”60, como o próprio filósofo adverte

no Prólogo de Genealogia da Moral: “É certo que, a praticar desse modo a leitura como

arte, faz-se preciso algo que precisamente em nossos dias está bem esquecido – e que

exigirá tempo, até que minhas obras sejam ‘legíveis’ -, para o qual é imprescindível ser

quase uma vaca, e não um ‘homem moderno’: o ruminar61. Advertidos do rigor filosófico

que os textos de Nietzsche requerem, pretendemos tecer algumas análises (primárias) a

59
Afirma Nietzsche, no Prólogo de Genealogia da Moral: “[...] – por fim, uma nova exigência se faz ouvir.
Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses
valores deverá ser colocado em questão – para isso é necessário um conhecimento das condições e
circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram (moral como
conseqüência, como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas também moral como causa,
medicamento, estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi
desejado”. NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral, Prólogo, 6. In: KSA, vol. 5, p. 252. Tr. p. 12.
60
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a genealogia da moral], Prólogo, 8. In: KSA, vol. 5, p.
255. Tr. p. 14.
61
Ibid, Prólogo, 8. In: KSA, vol. 5, p. 256. Tr. p. 14-15.

40
respeito de um tema pertinente ao desenvolvimento dos nossos estudos acerca do Estado e

que, posteriormente será esclarecedor no que se refere à caracterização nietzscheana da

democracia moderna como uma política decadente: uma reflexão acerca da

responsabilidade (ou não) dos “inconscientes artistas”62; tipos nietzscheanos

imprescindíveis ao surgimento do Estado, pois são eles próprios os construtores e os

formadores da primeira forma de organização social. Vejamos, por partes, a importância

deste tipo nietzscheano, a saber, os “inconscientes artistas”.

O estudo genealógico apresentado por Nietzsche em Para a Genealogia da

Moral é imprescindível para a compreensão da democracia moderna como uma política

herdeira dos ideais cristãos, pois neste texto, escrito após Zaratustra e Para além de bem e

mal, Nietzsche apresenta com rigor e sagacidade filosófica de que maneira o ideal ascético

contribuiu, ou melhor, foi o causador da decadência e da degeneração dos valores da

modernidade. Também um conceito presente em Para a Genealogia da Moral é

indispensável para uma reflexão da modernidade política, qual seja, a vontade de poder.

Como se sabe, o conceito de vontade de poder surgiu pela primeira vez em Zaratustra, e

possibilitou ao leitor de Nietzsche compreender de maneira mais coesa a sua filosofia, pois

é este um dos grandes temas de sua obra. No que diz respeito à filosofia política de

Nietzsche, este conceito pretende ser esclarecedor e favorecer a compreensão da

democracia moderna como uma política decadente. Isto porque, a investigação acerca do

conceito da vontade de poder aproxima o leitor de Nietzsche das reflexões que esse filósofo

apresenta da vida, ou melhor, das forças presentes ao longo da história, tirânica à natureza e

que, apesar desta dinâmica, não se justifica e nem necessita de artifícios metafísicos. A

62
Ibid, II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 325. Tr. p. 75.

41
força da vida63 é, na filosofia de Nietzsche, a vontade de poder64, nas palavras do filósofo:

“minha fórmula é esta: a vida é vontade de poder”65. Uma força por si só criadora, que não

decorre da racionalidade, é pura e simplesmente uma força suficiente em si mesma para

gerar a vida. Assim, a filosofia de Nietzsche tende a se explicar, sobretudo, pela vontade de

poder.

A tese de Nietzsche de que a vida é vontade de poder, implica em um combate,

no qual forças crescem de forma desigual, se consumindo a cada momento. A vontade de

poder não aspira por nenhuma finalidade determinada, apenas pela superação de um estado

por outro mais elevado. É uma força que busca a todo o momento uma nova resistência que

deve ser ultrapassada, em um movimento incessante. Compreender que a vida é vontade de

poder e nada mais, pode ser, a princípio, uma contradição para o “homem moderno”, o

homem do conhecimento, que acredita na ciência e na verdade. Contudo, a filosofia de

Nietzsche não caminha ao lado das crenças do homem do conhecimento - que para

Nietzsche é, na verdade, o homem do desconhecimento66 - por entender que as condições de

63
Como esclarece Müller-Lauter, no texto A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche (1997, p. 55):
“Nietzsche se separa da ‘vontade de vida’ de Schopenhauer, como forma fundamental da vontade”. Para
Nietzsche: ‘a vida é um mero caso particular da vontade de poder, - é totalmente arbitrário afirmar que tudo
anseia por passar para essa forma de vontade de poder’”. Fragmento póstumo, primavera de 1888, 14 [121];
KSA: vol. 13, p. 300.
64
Concordamos com a explicação de Giacóia de que a melhor tradução do termo Der Wille zur Macht é
vontade de poder: “Optei por vontade de poder, não pelo corrente termo vontade de potência, para traduzir o
conceito nietzschiano Der Wille zur Macht. A tradução tem o inconveniente de arriscar-se a circunscrever o
conceito demasiadamente no registro da filosofia política, mas apresenta também a vantagem de evitar a
ressonância e a evocação da distinção metafísica entre ato e potência – o que certamente contraria a intenção
de Nietzsche -, assim como de manter presente um dos mais fundamentais aspectos de seu pensamento, qual
seja, uma concepção de força e poder se esgotando, sem resíduos, a cada momento de sua efetivação. Nos
termos de para Além de Bem e Mal, aforismo nº 22, todo poder (jede Macht) extrai, a todo instante, sua última
conseqüência”. Esta explicação está no texto:
MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Tradução de Oswaldo
Giacóia. São Paulo: Annablume, 1997, p. 51-52
65
NIETZSCHE, Fragmentos póstumos, 2 [190], In: KSA, vol. 12, p. 161. Tr. de Carlos Alberto Ribeiro de
Moura, p. 198. Contudo, optamos pela tradução do termo Der Wille zur Macht por vontade de poder, e não
vontade de potência, como está na tradução.
66
“para nós mesmos somos ‘homens do desconhecimento’”. NIETZSCHE. Genealogia da Moral, Prólogo, 1.
Tr. p. 8.

42
possibilidade do conhecimento do homem moderno são sociais, econômicas, políticas, ou

seja, precisamente morais. Por conseguinte, a questão da veracidade67, para Nietzsche,

surge apenas com o processo civilizatório, é uma necessidade social, uma vez que o homem

deixa de ser “uma matéria-prima humana e semi-animal”, como afirma Nietzsche no

aforismo dezessete de Genealogia da Moral, e passa a ser o homem que se obriga com o

outro, que desenvolve a memória68 e torna-se um animal, agora, interessante.

Assim, quando o homem deixa de viver em uma guerra de todos contra todos69,

isto é, no estado de natureza, são criados novos padrões e valores morais necessários para

adequar e suprir as novas necessidades da vida social. A partir deste processo forma-se a

“humanidade”: as “qualidades naturais” e “humanas” vão se construindo conjuntamente ao

longo da história, em um processo de “humanização” daquele homem animal, como explica

Nietzsche em A Disputa de Homero:

Quando se fala de humanidade, a noção fundamental é a de algo que se separa e


distingue o homem da natureza. Mas uma tal separação não existe na realidade:
as qualidades “naturais” e as propriamente chamadas “humanas” cresceram

67
Pertinente a este assunto é o texto Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra Moral, de 1873, em que
Nietzsche afirma: “Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de
sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o
minuto mais soberbo e mais mentiroso da ‘história universal’: mas também foi somente um minuto. Passados
poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer. –Assim poderia
alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado suficientemente quão lamentável, quão
fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidades e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. Houve
eternidades, em que ele não estava; quando de novo ele tiver passado, nada terá acontecido”. Tr. Rubens
Rodrigues Torres Filhos, p. 31. Há que se observar que anterior a este texto, no texto Sobre o Pathos da
Verdade, há um prelúdio ao texto desenvolvido em Sobre verdade e Mentira no Sentido Extra Moral, no qual
afirma o filósofo: “Em algum canto perdido do universo que se expande no brilho de incontáveis sistemas
solares surgiu, certa vez, um astro em que animais espertos inventaram o conhecimento. Esse foi o minuto
mais arrogante e mais mentiroso da história do mundo, mas não passou de um minuto. Após uns poucos
suspiros de natureza, o astro congelou e os animais espertos tiveram de morrer. Foi bem a tempo: pois, se eles
vangloriavam-se por terem conhecido muito, concluíram por fim, para sua grande decepção, que todos os seus
conhecimentos eram falsos; morreram e regeneraram, ao morrer, a verdade. Esse foi o modo de ser de tais
animais desesperados que tinham inventado o conhecimento”. Tr. p. 28-29.
68
Trataremos do tema memória, promessa e consciência na seção seguinte deste trabalho.
69
Como afirma Nietzsche no texto O Estado grego (2000, p. 49), aproximando-se muito da leitura hobbesiana
do estado de natureza: “Sem Estado, no natural bellum omnium contra omnes, ...”. Veremos adiante uma
análise mais pormenorizada deste texto, especificamente na seção 2.1.

43
conjuntamente. O ser humano, em suas mais elevadas e nobres capacidades, é
totalmente natureza, carregando consigo seu inquietante duplo caráter70.

Destarte, esta força criadora e impulsiva, que não decorre de um encadeamento

racional, fez surgir o Estado. Não nos parece apropriado avançar o estudo sem antes tecer

algumas considerações acerca do termo instinto (Triebe). Para tanto, Assoun (1980, p 95),

no texto Freud e Nietzsche (1980), esclarece que o uso inaugural do termo Triebe71, por

Nietzsche, formula algumas idéias que acompanharão toda a sua filosofia, a saber: (1)“em

primeiro lugar, os instintos se apresentam em feixes: o que predomina neles é uma

diversidade fervilhante”; (2) é possível distinguir os dois maiores feixes presentes na

genealogia nietzscheana, a partir de sua atividade ou expressão: “científico de um lado,

ético-estético, de outro”, assim, “existe um instinto operando na ciência, na ética, na arte

[...], existe um instinto por atividade humana, um pouco como – na crença animista – havia

um espírito em cada objeto”; (3) “toda atividade unitária, a começar por aquela filologia

que Nietzsche pratica, revela-se um mar de instintos mantidos juntos (zusammengetan)”,

assim, “a realidade é portanto atribuída a esta diversidade conflitante de instintos,

remetendo a unidade à categoria de aparência”.

Os instintos, na filosofia nietzscheana, são de grande complexidade e

importância, com Humano, demasiado Humano72, por exemplo, inaugura-se um novo

conceito para o instinto. Desta forma, salientamos a importância de um estudo restrito deste

tema (instinto), que tem sua relevância na análise do surgimento Estado e, por conseguinte,

da pesquisa genealógica acerca do processo civilizatório. Iniciado com surgimento do

70
NIETZSCHE, F. A disputa de Homero. In: Cinco Prefácios para cinco livros não escritos. Tradução e
prefácio Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1996, p. 65.
71
Afirma Assoun (1980, p. 94-95) que “o primeiro uso oficial do termo instinto no discurso nietzschiano” foi
apontado “na aula inaugural em Basiléia sobre Homero e a Filologia Clássica, em 1869”.
72
Sobre este tema consultar: ASSOUN, Paul-Laurent. Freud e Nietzsche: semelhanças e dessemelhanças.
Tradução Marília Lúcia Pereira. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1980, p. 131.

44
Estado o processo de civilização representa, na pesquisa genealógica nietzscheana, a

debilitação da animalidade e dos instintos a partir do processo repressivo de renúncia à

satisfação dos impulsos. O Estado atua em seu benefício: a barbárie do Estado consiste em

reprimir as forças impulsivas, ao impor a “camisa de força social”, aniquilando os instintos

que não possuem finalidade e utilidade previstas pelos desígnios estatais. Assim, afirma

Nietzsche:

Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto
é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que
depois se denomina sua “alma”. Todo o mundo interior, originalmente delgado,
como que entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo
profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua
descarga para fora. Aqueles terríveis com que a organização do estado se protegia
dos velhos instintos de liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre esses
bastiões – fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e
errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo73.

Essa repressão dos instintos é que gerou a enfermidade do homem moderno,

ônus do processo civilizatório. As forças necessárias à construção e criação da civilização

foram as de coerção e coação sobre o caos pulsional dominante no animal homem. No

estado de natureza, que pode ser definido como pré-moral, o homem não era apto a uma

reflexão de seus atos a partir das categorias morais de bem e de mal e, por isso, as “bestas

louras”, citadas por Nietzsche em Para a Genealogia da Moral, no aforismo dezessete,

apenas tornaram livre sua força instintiva, guerreira e violenta, capaz de dar forma ao que

era anárquico.

Complementar à reflexão das forças instintivas que fizeram surgir o Estado, é a

afirmação de Nietzsche de que esses “organizadores natos”, criadores do Estado, não sabem

o que é “culpa, responsabilidade, consideração”, atuam eles como “inconscientes artistas”.

Assim, podemos questionar o significado destas afirmações, que contradizem em absoluto

73
NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral] II, 16, vol. 5, p. 321. Tr. p. 73.

45
as hipóteses da filosofia contratualista a respeito da gênese do Estado, cuja origem é

compreendida como um acordo de vontade entre os contratantes, portanto, um processo que

exige um encadeamento racional de deliberações. Reportamo-nos, assim, ao aforismo

dezessete, da segunda Dissertação de Para a Genealogia da Moral74, em que Nietzsche

afirma:

Deste modo começa a existir o “Estado” na terra: penso haver-se acabado aquele
sentimentalismo que o fazia começar com um “contrato”. Quem pode dar ordens,
quem por natureza é “senhor”, quem é violento em atos e gestos – que tem haver
com contratos! Tais seres são imprevisíveis, eles vêm como o destino, sem
motivo, razão, consideração, pretexto, eles surgem como o raio, de maneira
demasiado terrível, repentina, persuasiva, demasiado “outra”, para serem sequer
odiados. Sua obra consiste em instintivamente criar formas, imprimir formas, eles
são os mais involuntários e inconscientes artistas – logo há algo novo onde eles
aparecem, uma estrutura de domínio que vive, na qual as partes e as funções
foram delimitadas e relacionadas entre si, na qual não encontra lugar o que não
tenha antes recebido um “sentido” em relação ao todo. Eles não sabem o que é
culpa, responsabilidade, consideração, esses organizadores natos; eles são regidos
por aquele tremendo egoísmo de artista, que tem o olhar de bronze, e já se crê
eternamente justificado na “obra”, como a mãe no filho75.

Retomemos aqui a importância que há pouco mencionados a respeito da atuação

dos “inconscientes artistas”. O Estado foi, portanto, criado por “involuntários e

inconscientes artistas”. Mas, quais seriam as conseqüências desta hipótese nietzscheana?

Como afirmamos anteriormente, a atuação de tais “seres imprevisíveis” não foi racional,

portanto, tampouco consciente. Não nos parece plausível exigir um agir consciente de um

homem-animal76, cuja época histórica situa-se em um período pré-moral. Há que se retomar

também as nossas reflexões no que diz respeito às forças inerentes à vida, forças que criam

vida e não são decorrentes da razão e nem de contratos, é a vontade de poder que em algum

momento da história deu forma ao que era anárquico, imprimindo sua força, sem “razão”,

74
Sabemos que este aforismo já foi citado anteriormente, mas a repetição, apesar de cansativa, tem a
vantagem de ajudar nas análises a serem feitas e situar o leitor no texto de Nietzsche.
75
NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral] II, 17, In: KSA: vol. 5, p. 324-
325. Tr. p. 75.
76
Esta análise terá grande importância complementar às análises do capítulo 3, seção 3.1, na qual será
possível compreender de que maneira o homem consciente, e não mais o homem do período pré-moral, será
capaz de instituir, ao invés da “pequena política”, a “Grande política”.

46
“consideração” ou “pretexto”, ou seja, sem relação de causa e efeito. É uma força violenta

que surge “como o raio”, a força de “tais seres” consiste em “instintivamente criar formas”.

Estas considerações de Nietzsche são como um “martelo” derrubando antigos

preceitos e valores morais. Assim, a hipótese de Nietzsche acerca da gênese do Estado tem

o efeito de: (1) colocar fim à idéia de um Estado erigido pelo contrato, eliminando a

possibilidade do Estado ser uma de uma ato racional, é o Estado uma criação de

“inconscientes artistas”; (2) valorizar o todo em detrimento de uma teoria atomística; (3)

buscar uma justificação ético-estética para a existência.

Não pretendemos abordar de maneira minuciosa todas essas questões, mas, na

medida do possível, elucidá-las: Nietzsche apresenta um cenário de violência, mas também

de vida, de uma força demolidora e fabricante, uma manifestação de vida que dissipa, não

se reprime, tampouco se contém. É uma manifestação de forças “repentinas”, ou seja, não

surge de um cálculo racional dos possíveis prejuízos ou benefícios sociais, porque não é

uma força racional, é “instintiva” e “inconsciente”. Assim, o Estado surgiu sem finalidade,

por isso, não é de origem estatal as atribuições do castigo, da pena, da responsabilidade, da

garantia da segurança; o Estado não surgiu com estes atributos, são eles construções ao

longo da história. Daí a afirmação de Nietzsche de que não foram esses “inconscientes

artistas” que fizeram surgir a má consciência, “mas sem eles ela não teria nascido”, pois

estes artistas romperam com o estado natural, deram forma à primeira organização social, e

assim um “enorme quantum de liberdade” foi tornado latente, e “esse instinto de liberdade

tornado latente à força,..., esse instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no

47
íntimo, por fim capaz de desafogar-se somente em si mesmo: isto, apenas isto, foi em seus

começos a má consciência77”.

Importante à compreensão de que “a vida é vontade de poder” é a reflexão de

Nietzsche acerca do agir, que para o filósofo a força é uma ação que se extingue a cada

momento da sua efetivação, sem que seja possível estabelecer uma relação de causa e

efeito. É esta uma proposição de caráter inovador, cujas conseqüências implicam na

inverdade de algumas (se não de todas) crenças do homem moderno. Ilustrativa é a

passagem presente na primeira dissertação de Genealogia da Moral, em que Nietzsche

afirma:

Pois assim como o povo distingue o corisco do clarão, tomando este como ação,
operação de um sujeito de nome corisco, do mesmo modo a moral do povo
discrimina entre a força e as expressões de força, como se por trás do forte
houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força.
Mas não existe um tal substrato; não existe “ser” por trás do fazer, do atuar, do
devir; o “agente” é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo78.

Assim, a ação, e não o “agente”, é a geradora da vida; “o povo duplica a ação,

na verdade; quando vê o corisco relampejar, isto é a ação da ação: põe o mesmo

acontecimento como causa e depois como seu efeito79”. Por isso, “não é de espantar que os

afetos entranhados que ardem ocultos, ódio e vingança, tirem proveito dessa crença, e no

fundo não sustentem com fervor maior outra crença senão a de que o forte é livre para ser

fraco, a ave de rapina livre para ser ovelha”80. É este pensamento do homem fraco que faz

com que ele adquira “o direito de imputar à ave de rapina o fato de ser o que é”81, na

qualidade de agente livre, “indiferente e livre para escolher”. É esta imputação ao agir

77
NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 325. Tr.
p. 75.
78
Ibid, I, 13. In: KSA, vol. 5, p. 279. Tr. p. 36.
79
Ibid, I, 13. In: KSA, vol. 5, p. 279. Tr. p. 36.
80
Ibid, I, 13, In: KSA: vol, 5, p. 280. Tr. p. 36-37.
81
Ibid, I, 13, In: KSA, vol. 5, p. 280. Tr. p. 37.

48
humano procedente da moral escrava, dos ideais ascéticos, da qual o homem moderno é

ainda sujeito. Portanto, a responsabilidade do agir humano, pensada em termos de

supressão da vontade de poder, é decorrente da malícia dos homens fracos, resultado da

revolta da moral escrava82, que, com sua “vingativa astúcia” preferem a posição de que

“’nós, fracos, somos realmente fracos; convém que não façamos nada para o qual não

somos fortes o bastante’”83, como se a fraqueza “fosse um empreendimento voluntário, algo

desejado, escolhido, um feito, um mérito”84. Assim, a confiança no sujeito livre para

escolher passa a ser, na realidade, um artigo de fé, na qual os fracos e oprimidos enganam

“a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e o seu ser-

assim como mérito”85.

Que fique compreendido, para Nietzsche, a violência empreendida pelas “bestas

louras” é “sem consciência ou sentimento86”, é uma raça reconhecida por “sua indiferença e

seu desprezo por segurança, corpo, vida, bem-estar, sua terrível jovialidade e intensidade do

prazer no destruir, nas volúpias da vitória e da crueldade87”, mas que, não obstante à sua

fúria, foi esta raça que deu início ao processo civilizatório. Todavia, foi este um momento

histórico anterior à civilização e, portanto, os instintos manifestavam-se sem repressão e o

82
Estamos nos referindo à célebre distinção nietzscheana da “moral escrava” e da “moral aristocrática”. A
maneira escrava de instituir valores se caracteriza por um procedimento inverso àquele empregado pela moral
dos senhores. “entre os dominados, a negatividade é princípio fundador. Para a moral dos escravos , ‘Bom’
significa o contrário de ‘Bom’ na moral aristocrática, ou seja, o conceito denota todas as todas as qualidades
que, do ponto de vista desta última, identificavam os ‘maus’, no sentido de ruins, de baixa qualidade, privados
de excelência. Por outro lado, o termo ‘Mau’, da perspectiva da moral escrava, recobre o conjunto das
virtudes nobres, particularmente os traços agressivos e dominadores dos guerreiros, sua atividade e sua força.
Por essa razão, do ponto de vista da moral escrava o significado principal do conceito ‘Mau’ é formado por
malvado, em referência ao tipo que fere, ataca, domina, violenta, subjuga”. GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo.
Para a Genealogia da Moral/ Nietzsche. Adaptação de Oswaldo Giacóia Júnior. São Paulo: Scipione, 2001,
p.27-28.
83
NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral [Para a GenealogiaMoral] I, 13, In: KSA: vol. 5, p. 280. Tr. p.
37.
84
Ibid, I, 13, In: KSA: vol. 5, p. 280. Tr. p. 37.
85
Ibid, I, 13, In: KSA: Vol. 5, p. 281. Tr. p. 37
86
Ibid, I, 11, In: KSA, vol. 5, p. 276. Tr. p. 33.
87
Ibid, I, 11, In: KSA, vol. 5, p. 276. Tr. p. 33.

49
mais forte imprimia sua força sobre os mais fracos, sem a pretensão de causar dor ou

sofrimento aos mais fracos. O ônus da civilização é a censura, o aprisionamento dos

instintos, inclusive dos instintos das “bestas louras”, que tiveram seu caos impulsional

contido pelo costume, pelas regras e pela vigilância. Mas, não apenas estes instintos

naturais tiveram que ser amansados, como eles tiveram que se igualar aos valores de uma

moral de rebanho, e o sentido da cultura voltou-se especificamente em “amestrar o animal

de rapina ‘homem’, reduzi-lo a um animal manso e civilizado, doméstico88”, assim, foram

“finalmente liquidadas e vencidas as estirpes nobres89”. Foi esta uma grande “conquista”

dos homens fracos para o “avanço” do processo civilizatório, qual seja, não há mais temor

ao homem; mas, afirma Nietzsche, ainda “sofremos do homem, [...], Não o temor; mas sim

que não tenhamos mais o que temer no homem”90.

A justificativa ético-estética de Nietzsche para a vida pode ser compreendida

como a superação desta cultura (platônico-socrática) que caminha para o rebaixamento.

Não se trata de um retorno ao estado de natureza, mas a possibilidade de que a civilização

não tenha por objetivo equalizar vontades de poder diametralmente opostas. E o caminho

para esta superação seria uma educação política aristocrática em detrimento aos valores

morais escravos91. A doença do homem moderno, seu cansaço perante a vida, seu

esgotamento, justifica-se pelo fato de que não há mais o que temer; e não há mais o que

temer porque os valores morais do homem moderno são determinados pelos ideais

democráticos (cristãos) que tem por objetivo garantir o bem estar, a felicidade, a paz e o

bem comum. Mas, para uma filosofia que entende a vida como força, vontade de poder,

88
Ibid, I, 11, In: KSA, vol. 5, p. 277. Tr. p. 33.
89
Ibid, I, 11, In: KSA, vol. 5, p. 277. Tr. p. 34.
90
Ibid, I, 11, In: KSA, vol. 5, p. 277. Tr. p. 34.
91
A ética aristocrática é afirmativa, é o resultado de um sim a si mesmo, como veremos no capítulo 3.

50
“exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um

quere-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão

absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força”92 .

A maneira afirmativa das forças se expressarem, sem que estejam com isso

afirmando os ideais negativos da moral escrava, é através da arte (da criatividade artística),

e não da ciência moderna: “De outro modo nos desviamos da vida. O movimento instintivo

das ciências é o aniquilamento completo da ilusão: se não houvesse arte, a conseqüência

seria o quietismo93”. A arte é o espaço para criação, produção, imaginação, crescer,

desabrochar, manifestação. Não tem como objetivo a verdade, serve-se, ao contrário, da

ilusão, cria formas e fatos que não (necessariamente) são vivenciados pelos sentidos. A arte

é a possibilidade de manifestação dos instintos, de desenvolvimento e criação de novos

valores. Já a ciência não é uma forma de expressão artística, uma vez que seu objetivo não

é a liberdade artística, mas a busca pela verdade.

Nietzsche também reconhece no agir humano um acaso que implica, por sua

vez, em priorizar o todo em detrimento das partes. Em outras palavras, para Nietzsche, “a

teoria do livre-arbítrio é uma invenção das classes dirigentes”94, um valor de grande

utilidade estatal, acautelando a sociedade do perigo de agir diferente do previsto, deve-se

manter um padrão de comportamento. Assim é a construção da teoria do livre-arbítrio, é

preciso que o homem pense ser livre, pois este é o único caminho para culpá-lo por seus

atos, a liberdade da vontade é uma maneira dissimulada de instituir a igualdade, o

nivelamento e a mediocrização do homem. É a moral escrava criadora de valores que


92
NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], I, 13, In: KSA, vol. 5, p. 279. Tr.
p. 36.
93
Fragmento póstumo, inverno de 1869-70 – primavera de 1870, 3 [60]. Tr. Roberto Machado, p. 39.
94
NIETZSCHE, Der Wanderer und sein Schatten [O andarilho e sua sombra], 9, In: KSA: vol. 2, p. 245. Tr.
p. 25.

51
tendem exclusivamente para a sua autoconservação, e que considera como sinônimo de

felicidade a paz, a tranqüilidade e a segurança. A decadência da modernidade é a vitória

dos valores escravos, é a transformação do tipo forte em tipo fraco, é a assimilação dos

fortes aos valores das forças reativas. Nestes termos é possível compreender de que maneira

o livre-arbítrio pressupõe (erroneamente) o isolamento dos fatos, nas palavras nas

Nietzsche:

A observação inexata que nos é comum, toma um grupo de fenômenos por uma
unidade e a denomina fato: entre ele e outro fato, apresenta-nos um espaço vazio,
isola cada ato. Mas em realidade o conjunto de nossa atividade e de nosso
conhecimento não é uma série de fatos e de espaços intermediários vazios, e sim
uma corrente contínua. Unicamente, a crença no livre-arbítrio é incompatível com
a concepção de uma corrente contínua, homogênea, indivisa e indivisível: porque
supõe que toda a ação particular é isolada e indivisível; é uma atomística no
domínio do querer e do saber. – (1) – Do mesmo modo que com os caracteres que
compreendemos inexatamente (ungenau), procedemos com os fatos: falamos de
caracteres idênticos, de fatos idênticos: e nem um, nem outro existe. E enfim
elogiamos ou lastimamos unicamente sob a ação da falsa idéia pela qual há fatos
idênticos, e uma ordem gradual de gêneros, de fatos a qual responde a uma
graduada de valor: e assim é que isolamos, não apensa o fato particular, como
também a seu turno os grupos de fatos sedicentes idênticos (atos de bondade, atos
de maldade, de piedade, de inveja, etc.) uns como outros erradamente. A palavra
e a idéia, são a mais visível da causas que nos fazem crer neste isolamento de
grupos de ações; não nos servimos delas apenas para designar as cousas, senão
que também cremos originariamente que por elas lhes apreendemos a essência.
As palavras e as idéias nos induzem, ainda hoje, a representar-nos as cousas
como mais simples do que são, separadas umas das outras, indivisíveis,
possuindo cada qual uma existência em si e por si. Existe, oculta na linguagem,
uma mitologia filosófica que reaparece a cada instante, quaisquer que sejam as
precauções que se tomem. A crença no livre arbítrio, isto é, a crença nos fatos
idênticos e nos fatos isolados, - há na linguagem um apóstolo e um representante
perpétuo.95

Desta forma, “continua existindo a antiqüíssima ilusão de saber, saber com

precisão em cada caso como se produz a ação humana96”, e em cada ação particular o

homem sente-se apto a afirmar: “eu sei o que quero, o que fiz, sou livre e responsável por

isso, torno o outro responsável, posso dar o nome de todas as possibilidades morais e todos

95
Ibid, 11, In: KSA: vol. 2, p. 546-547. Tr. p. 25-26.
96
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], 116, In: KSA, vol. 3, p. 108. Tr. p. 88.

52
os movimentos interior que precedem um ato’”97. Este raciocínio faz o homem acreditar

que compreende a si mesmo e o outro; assim até agora a humanidade pensou: “’Uma ação é

aquilo que nos parece ser’”98. Este processo de humanização está predeterminado pelos

valores morais escravos, pela fé de que tais valores são a verdade, e que o agir está fixado

conforme ao que o homem entende por regularidade da vida. Contudo, é esta regularidade

uma forma de evitar o novo, o perigoso, a mudança; portanto, é confortável e seguro

acreditar que há um fatalismo nas ações99. A moral escrava serviu para fixar padrões, em

uma relação de causa e efeito, assim, de acordo com essa moral “os juízos ‘bom’ e ‘mau’

são um apanhado das experiências relativas ao que é ‘apropriado ao fim’ ou ‘não

apropriado ao fim’; segundo ela, o que chamamos de bom é aquilo que conserva a espécie,

o que chamamos de mau, aquilo que a prejudica”100, contudo, “os maus impulsos” também

são tão indispensáveis e conservadores da espécie quanto os bons, “apenas é diferente a sua

função101”. Ilustrativa é a passagem do aforismo 277, do texto A Gaia Ciência:

Existe, na vida, um certo ponto alto: ao atingi-lo corremos novamente, com toda a
nossa liberdade, e por mais que tenhamos negado ao belo caos da existência toda
razão boa e solícita, o grande perigo da servidão espiritual, e temos ainda a nossa
a nossa mais dura prova a prestar. Pois é então que para nós se apresenta, com a
mais insistente energia, a idéia de uma providência pessoal, tendo a seu favor o
melhor advogado, a evidência, é então que vemos com nossos olhos que todas,
todas as coisas que nos sucedem resultam constantemente no melhor possível. A
vida de cada dia e cada hora parece não querer mais do que demonstrar sempre de
novo essa tese; seja o que for, tempo bom ou ruim, a perda de um amigo, uma
doença, uma calúnia, a carta que não chegou, uma torção no pé, a olhada numa
loja, um argumento contrário, o ato de abrir um livro, um sonho, uma trapaça:
imediatamente ou pouco depois tudo se revela como algo que “tinha que
acontecer” – é algo de profundo sentido e utilidade justamente para nós102.

97
Ibid, 116, In: KSA, vol. 3, p. 108. Tr. p. 88-89.
98
Ibid, 116, In: KSA, vol. 3, p. 109. Tr. P. 89.
99
Ilustrativo a este tema o aforismo 61, de O Andarilho e sua Sombra, intitulado Fatalismo Turco.In: KSA,
vol. 2. p. 580
100
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [ A Gaia Ciência], 4, In: KSA, vol.3, p. 376. Tr. p. 57.
101
Ibid, 4, In: KSA, vol. 3, p. 377. Tr. p. 57.
102
Ibid, 277, In: KSA, vol. 3, p. 521-522. Tr. p. 188.

53
No entanto, para Nietzsche, é o “caos da existência negado por nós” a força

motora da vida: “de fato, aqui e ali alguém toca conosco – o querido acaso”103. Mas, pensar

na “total irresponsabilidade do homem por seus atos e seu ser é a gota mais amarga que o

homem do conhecimento tem que engolir”104; esta perspectiva estabelece uma nova

relação: do homem tendo que enfrentar constantemente o desconhecido: “todas as sua

avaliações, distinções, aversões, são assim desvalorizadas e se tornam falsas”105, não pode o

homem “louvar nem censurar, pois é absurdo louvar e censurar a natureza e a

necessidade”106. Sendo o homem fruto do acaso a unidade é considerada em detrimento à

particularidade, pois “tudo no âmbito da moral veio a ser, é mutável, oscilante, tudo está em

fluxo, é verdade: - mas tudo se acha também numa corrente: em direção a uma meta107”.

Portanto, os valores morais estão em constante mudança, e da mesma forma que hoje a

moral “produz o homem tolo, injusto, consciente da culpa108”, pode vir a existir o

“precursor necessário109” deste homem, o homem de novos hábitos: “o homem sábio e

inocente110”.

1.3- A Consciência Moral

Nietzsche esclarece, no texto Crepúsculos dos Ídolos, qual seria a “fórmula”

para a decadência e a “fórmula” para a vida ascendente, nas palavras do filósofo: “ter de

combater os instintos – eis a fórmula da décadence: enquanto a vida ascende, a felicidade é

103
Ibid, 277, In: KSA, vol. 3, p. 522. Tr. p. 189.
104
NIETZSCHE, Menschliches, Allzumenschliches [Humano, demasiado humano], 107, In: KSA, vol.2, p.
103. Tr. p. 81.
105
Ibid, 107, In: KSA, vol. 2, p. 103. Tr. p. 81.
106
Ibid, 107, In: KSA, vol. 2, p. 103. Tr. p. 81.
107
Ibid, 107, In: KSA, vol. 2, p. 105. Tr. p. 83.
108
Ibid, 107, In: KSA, vol. 2, p. p. 105-106. Tr. p. 83.
109
Ibid, 107, In: KSA, vol. 2, p. 106. Tr. p. 83.
110
Ibid, 107,In: KSA, vol. 2 p. 105. Tr. p. 83.

54
igual ao instinto”111. Paradoxalmente, a princípio, o filósofo também afirma em Genealogia

da Moral112 que o homem animal “é mais doente, inseguro, inconstante, indeterminado, que

qualquer outro animal, não há dúvida – ele é o animal doente”. O homem animal é o grande

experimentador de si mesmo, o insatisfeito, insaciado, que “luta pelo domínio último com

os animais, a natureza e os deus – ele, o ainda não domado, o eternamente futuro, que não

encontra sossego de uma força própria que o impele, de modo que o seu futuro, mergulha

implacável na carne de todo o presente”. “Rico” e “corajoso”, é ele também o animal mais

exposto ao perigo.

Deste modo, qual é a possibilidade do homem moderno superar a decadência de

sua época, já que o combate aos instintos é a “fórmula” de decadência e o retorno à

natureza, ao caos pulsional, é uma possibilidade também precária? Afirmamos

anteriormente (seção 1.1) que a pesquisa genealógica nietzscheana diz respeito à

reconstrução histórica tanto da formação social quanto psíquica do homem, e que para o

filósofo são formações edificadas no centro de um constante embate entre vontades de

poder: “que todo acontecimento do mundo orgânico é um subjugar e assenhorear-se, e todo

subjugar e assenhorear-se é uma nova interpretação”113; a moral, portanto, como “todo

acontecer no mundo orgânico” é a representação de valores, de um tipo de moralidade

condicionada a fins e propósitos de um determinado momento histórico, em que vontades

de poder são ajustadas para formar o projeto cultural de uma determinada época. Não é,

portanto, a moral, para a filosofia nietzscheana, uma verdade ou mentira, um bem ou mal,

eternizados na história, são apenas valores que perecem para surgir novos valores, em um

111
Crepúsculo dos Ídolos. O problema de Sócrates, 11, In: KSA, vol. 6, p. 73. Tr. p. 27.
112
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], III, 13, In: KSA, vol 5 p. 367.
Tr. p. 110.
113
Ibid, II, 12, In: KSA, vol. 5, p. 313-314. Tr. p. 66.

55
eterno processo de vir a ser. A perspicácia de Nietzsche, contudo, foi de observar que ao

longo da história do homem Ocidental prevaleceu um projeto moral (platônico-cristão) que

caminha para o “apequenamento e nivelamento do homem europeu”114. Uma moral que

buscou igualar as forças diferentes, possibilitando assim, não apenas a constituição da

sociedade, mas também, que o homem deixasse de se superar: “de um homem que

justifique o homem, de um acaso feliz do homem”115. Os valores morais da modernidade,

inclusive os ideais democráticos modernos, pretendem uma moral “em que tudo desce,

descendente, torna-se mais ralo, mais plácido, prudente, manso, indiferente, medíocre,

chinês, cristão”116. Portanto, é imprescindível esclarecer a crítica nietzscheana ao valor dos

valores morais: os valores morais são resultado de um embate entre vontades de poder,

cuja sobrevida na história do homem Ocidental é de uma vontade de poder fraca,

particularmente instituída pelos ideais ascéticos, e que deve ser superada por valores que

façam o homem crescer, se surpreender, amadurecer, buscar e desejar a vida.

Também afirmamos que a pesquisa histórico-genealógica de Nietzsche é uma

investigação acerca do surgimento das faculdades psíquicas do homem. Tal apreciação

encontra-se, sobretudo, na segunda Dissertação do texto Para a Genealogia da Moral, na

qual a história da consciência moral inicia-se com o relato da pré-história da memória. Ora,

se o homem animal era desprovido de memória, com o início do processo civilizatório esta

faculdade passa a ser imprescindível:

Criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a
natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do
homem?...O fato de que este problema esteja em grande parte resolvido deve
parecer ainda mais notável para quem sabe apreciar plenamente a força que atua
de modo contrário, a do esquecimento117.

114
Ibid, I, 12, In: KSA: vol. 5, p. 278. Tr. p. 35.
115
Ibid, I, 12, In: KSA: vol. 5, p. 278. Tr. p. 35.
116
Ibid, I, 12, In: KSA, vol. 5, p.278. Tr. p. 35.
117
Ibid, II, 1, In: KSA, vol. 5, p. 291. Tr. p. 47.

56
Com o processo civilizatório formou-se, portanto, a faculdade psíquica da

memória, com a qual o homem passou a comprometer-se com o outro, e lutar contra a força

do esquecimento. Passa-se, então, de uma época sem passado e futuro, sem duração

temporal, à temporalidade finita, isto é, a concepção da mortalidade. A importância apenas

ao momento presente significa uma vida sem história, cultura e moralidade. Já a noção do

presente, a lembrança do passado e as perspectivas do futuro fazem do homem não mais um

animal atado apenas ao presente, mas um homem soberano, responsável por si, que se

projeta no futuro.

Entretanto, é a memória uma das faculdades psíquicas necessárias ao

desenvolvimento do homem social que talvez tenha exigido mais tempo e força para

consolidar-se, pois teve que lutar contra a força do esquecimento, que não é uma simples

“força inercial [...], mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças

a qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em

nossa consciência, no estado de digestão”118, o esquecimento é uma proteção contra à

“assimilação psíquica” de todo “o multiforme processo de nossa nutrição corporal”119. A

memória torna possível, portanto, que a vontade do homem seja efetivada em sua ação, pois

o torna “confiável, constante, necessário”120.

Por ter que lutar contra a força do esquecimento a memória exigiu um longo

trabalho de assimilação, no qual toda espécie de sofrimento foi criada, não por vingança,

mas para fazer do homem senhor de si, assim, caso sua palavra empenhada não fosse

cumprida, o credor teria seu dano reparado de maneira equivalente ao prejuízo. Mas,

118
Ibid, II, 1, In: KSA, vol. 5, p. 291. Tr. p. 47.
119
Ibid, II, 1, In: KSA, vol. 5, p. 291. Tr. p. 47.
120
Ibid, II, 1, In: KSA: vol. 5, p. 292. Tr. p. 48.

57
“‘como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa

inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do

esquecimento?’”121, Nietzsche responde, “‘grava-se algo a fogo, para que fique na

memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória’”122. Quando o homem

sentiu a necessidade de criar a memória “jamais deixou de haver sangue, martírio e

sacrifício”123, foi a dor “o mais poderoso auxiliar da mnemônica”124. Assim, a tarefa de

criar um animal capaz de lembrar de sua promessa, com a ajuda dos castigos, fez o homem

“reter na memória cinco ou seis ‘não quero’, com relação aos quais se fez uma promessa, a

fim de viver os benefícios da sociedade”125. Com a ajuda da memória o homem chegou

finalmente à “‘razão’”: “Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa

sombria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto

seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as “‘coisas boas’”!...”126.

A efetivação da memória exigiu, por conseguinte, um processo de nivelamento,

ou seja, capacitar todo homem social a uma mesma ordem psíquica, sem a qual o processo

civilizatório seria inexeqüível: “a tarefa mais imediata de tornar o homem até certo ponto

necessário, uniforme, igual entre iguais, constante, e portanto confiável”127. A memória da

vontade, portanto, torna o homem apto a comprometer-se com o outro, o que coincide,

necessariamente, com o surgimento da promessa. Nas palavras do filósofo:

Como seria de esperar após o que foi dito, imaginar tais relações contratuais
desperta sem dúvida suspeita e aversão pela antiga humanidade, que as criou ou
permitiu. Precisamente nelas fazem-se promessas; justamente nela é preciso
construir uma memória naquele que promete; nelas, podemos desconfiar,
encontraremos um filão de coisas duras, cruéis, penosas. O devedor, para infundir

121
Ibid, II, 3, In: KSA: vol. 5, p. 295. Tr. p. 50.
122
Ibid, II, 3, In: KSA: vol. 5, p. 295. Tr. p. 50.
123
Ibid, II, 3, In: KSA: vol. 5, p. 295. Tr. p. 51.
124
Ibid, II, 3, In: KSA: vol. 5, p. 295. Tr. p. 51.
125
Ibid, II, 3, In: KSA: vol. 5, p. 297. Tr. p. 52.
126
Ibid, II, 3, In: KSA: , vol. 5, p. 297. Tr. p. 52.
127
Ibid, II, 2, In: KSA: vol. 5, p. 293. Tr. p. 48.

58
confiança em sua promessa de restituição, para garantir a seriedade e a santidade
de sua promessa, para reforçar na consciência a restituição a restituição como
dever e obrigação, por meio de um contrato empenha ao credor, para o caso de
não pagar, algo que ainda “possua”, sobre o qual ainda tenha poder, como seu
corpo, sua mulher, sua liberdade, ou mesmo sua vida128.

Assim, memória, promessa e consciência: são estas três formações psíquicas

constitutivas ao desenvolvimento do homem social e ao fortalecimento da instituição civil,

em outras palavras, é a consciência moral 129do indivíduo soberano. Capacidades psíquicas

elementares à formação do homem do passado, do presente e do futuro, ou seja, do homem

que faz história e desenvolve a cultura. O surgimento da consciência merece destaque na

filosofia de Nietzsche pelas próprias advertências e restrições dadas pelo filósofo. Não é

esta consciência desenvolvida pelo homem social o conhecimento do corpo, que Nietzsche

chama em Zaratustra130 de a grande razão131, mas a pequena consciência, que se

desenvolveu apenas “sob a pressão da necessidade de comunicação”, como explica

Nietzsche no aforismo 354 de A Gaia Ciência:

128
Ibid, II, 5, In: KSA: vol. 5, p. 298-299. Tr. p. 53-54.
129
Ilustrativo é o aforismo 2 da segunda Dissertação de Para a Genealogia da Moral, no qual Nietzsche
afirma: “O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa rara
liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais íntima profundeza e tornou-se
instinto, instinto dominante – como chamará ele a esse instinto dominante, supondo que necessite de uma
palavra para ele? Mas não há dúvidas: este homem soberano o chama de sua consciência moral (Gewissen)”.
Para a genealogia da Moral, II, 2, In: KSA, vol. 5, p. 294. Tr. p. 50.
130
“O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um
rebanho e um pastor. Instrumento do teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à qual chamas
‘espírito’, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão”. NIETZSCHE, Also sprach Zarathustra,
Dos desprezadores do corpo. In: KSA, vol. 4, p. 49. Tr, p. 60.
131
Não temos a pretensão de aprofundar estes temas presentes na filosofia de Nietzsche, a saber consciência,
razão, corpo. Pretendemos analisá-los a partir da perspectiva histórica da gênese do Estado e do processo
civilizatório, tendo por objetivo a elaboração de nosso trabalho: crítica dos valores morais presentes na
democracia moderna. Tal recorte tem o inconveniente de tratar desta temática tão importante à filosofia de
Nietzsche de maneira superficial, mas também apresenta a vantagem de limitar e aprofundar nosso tema.
Uma análise mais pormenorizada destes temas está presente no livro: GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. O
inconsciente no século XXI. In: Sonho e Pesadelos da Razão Esclarecida: Nietzsche e a modernidade. Passo
Fundo: UPF, 2005, p. 85-104.

59
Para que então consciência, quando no essencial é supérflua? Bem, se querem
dar ouvidos à minha resposta a essa pergunta e à sua conjectura talvez
extravagante, parece-me que a sutileza e a força da consciência estão sempre
relacionadas à capacidade de comunicação de uma pessoa (ou animal), e a
capacidade de comunicação, por sua vez, à necessidade de comunicação: mas
não, entenda-se, que precisamente o indivíduo mesmo, que é o mestre justamente
em comunicar e tornar compreensíveis suas necessidades, também seja aquele
que em suas necessidades mais tivesse de recorrer aos outros[...]. Supondo que
esta observação seja correta, posso apresentar a conjectura de que a consciência
desenvolveu-se apenas sob a pressão da necessidade de comunicação – de que
desde o início foi necessária e útil apenas entre uma pessoa e outra (entre a que
comanda e a que obedece, em especial), e também se desenvolveu apenas em
proporção ao grau dessa utilidade. Consciência é, na realidade, apenas uma rede
de ligação entre as pessoas[...]. O fato de nossas ações, pensamentos,
sentimentos, mesmo movimentos nos chegarem à consciência – ao menos parte
deles -, é conseqüência de uma terrível obrigação que por longuíssimo tempo
governou o ser humano: ele precisava, o animal mais ameaçado, de ajuda,
proteção, precisava de seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se
compreensível – e para isso tudo ele necessitava da “consciência”, isto é, “saber”
o que lhe faltava, “saber” como se sentia, “saber” o que pensava.132

A necessidade de comunicação entre uma pessoa e outra: é esta a utilidade da

consciência ao processo de desenvolvimento da “humanização”. A comunicação, a

memória e a promessa foram atributos essenciais para que o animal homem pudesse iniciar

a sociabilidade, e sair da vida precária atada ao presente. Assim, esclarece Giacóia:

sabemos onde desemboca a argumentação de Nietzsche: consciência,


sociabilidade, linguagem e comunicação implicam-se mutuamente, do ponto de
vista de sua gênese. A comunicação desenvolveu-se sob a pressão da necessidade
de comunicação, motivo pelo qual está essencialmente vinculada à
comunicabilidade, à sociedade e à linguagem133.

Destarte, a consciência e a linguagem são manifestações de uma necessidade

social, ou seja, “de uma natureza comunitária e gregária134”. São estes processos históricos

que fizeram do homem um indivíduo soberano, é ele apto a prometer, “e nele encontramos,

vibrante em cada músculo, uma orgulhosa consciência do que foi finalmente alcançado e

132
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [ A Gaia Ciência], 354, vol. 3, p. 590-591. Tr. p. 248-249.
133
GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. O inconsciente no século XXI. In: Sonhos e Pesadelos da razão esclarecida:
Nietzsche e a modernidade. Passo Fundo, UPF, 2005, p. 94.
134
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [ A Gaia Ciência], 354, In: KSA, vol. 3, p. 592. Tr. p. 249.

60
está nele encarnado, uma verdadeira consciência de poder e liberdade, um sentimento de

realização”135. A figura do soberano é, pois, o fruto mais maduro do desenvolvimento

social, nas palavras do filósofo: “Mas coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde

a árvore finalmente sazona seus frutos, onde a sociedade e a moralidade do costume

finalmente trazem à luz aquilo para o qual eram apenas o meio: encontramos então, como o

fruto mais maduro da sua árvore, o indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo”136.

Esta lacônica análise do procedimento genealógico nietzscheano nos permite

desfazer o que, a princípio, parecia ser um paradoxo. Nietzsche não sugere um retorno à

natureza, tampouco uma explosão de instintos do homem social. Uma análise atenta à

pesquisa genealógica nietzscheana acerca do valor dos valores morais esclarece o dilema,

como Nietzsche explica em Aurora: “Não nego, como é evidente – a menos que eu seja um

tolo -, que muitas ações consideradas imorais devem ser evitadas e combatidas; do mesmo

modo, que muitas consideradas morais devem ser praticadas e promovidas – mas acho que,

num caso e no outro, por razões outras que as de até agora”137. Desta forma, não é a

negação da moral o caminho para a transvaloração dos valores, “temos que aprender a

pensar de outra forma – para enfim, talvez bem mais tarde, alcançar ainda mais: sentir de

outra forma”. Por isso não é a repetição do homem animal que pretende Nietzsche, mas a

auto-superação do homem autônomo, senhor de si, pois é ele “uma criação artística já

conquistada no passado, historicamente soterrada, mas sempre passível de novas

configurações”138.

135
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 2, In: KSA, vol. 5, p. 293. Tr.
p. 49.
136
Ibid, II, 2, In: KSA, vol. 5, p. 293. Tr. p. 49.
137
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], 103, In: KSA: vol. 3, p. 91-92. Tr. p.75.
138
GIACÓIA JÚNIOR, OSWALDO. Consciência moral e autocompreensão. Para revisitar antigos padrões.
In: Sonho e Pesadelos da Razão Esclarecida: Nietzsche e a Modernidade. Passo Fundo: UPF, 2005, p. 174.

61
A moral do homem Ocidental, a que faz parte também das estruturas mais

elementares da democracia moderna, foram construídas a partir de uma perspectiva (da

moral fraca) tendo em vista um objetivo: “a conservação e a promoção da humanidade; mas

isto significa querer uma fórmula e nada mais139”. Portanto, questiona-se Nietzsche:

“Conservação de quê?...Promoção para onde? Justamente o essencial, a resposta a esses de

quê? e para onde?, não é omitido na fórmula?140”. A falta de “reflexão” faz com esses

valores morais sejam eternizados e aceitos, mas “Supondo que se queira dar à humanidade

a sua maior racionalidade possível: isto não significaria, certamente, garantir-lhe a sua

maior duração possível!141”. Foi até agora prescrito o caminho para a humanidade buscar

sua felicidade, sem nem ao menos questionarmos quais são os benefícios desta felicidade.

Assim, deve o homem buscar “desenvolvimento”: desenvolvimento não busca felicidade,

mas desenvolvimento e nada mais142”. Com estas reflexões, parece-nos que a filosofia a

“marteladas” de Nietzsche é, ao mesmo tempo, uma destruição e uma reconstrução,

sobretudo, um caminho para a reflexão: o que parece mais importante, felicidade ou

“desenvolvimento”? A felicidade que o homem moderno busca conduz à inércia, à

estagnação, ao marasmo; o desenvolvimento, apenas ele, liberta, possibilitar o vir a ser.

139
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora]. 106, In: KSA, vol. 3, p. 93. Tr. p. 77.
140
Ibid, 106, In: KSA, vol. 3, p. 93. Tr. p. 77.
141
Ibid, 106, In: KSA, vol. 3, p. 94. Tr. p. 77.
142
Ibid, 108, In: KSA, vol. 3, p. 96. Tr. p. 79.

62
CAPÍTULO 2

O PODER E AS DESIGUALDADES SOCIAIS: CONSTRUÇÃO E


DISSOLUÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO MODERNO

Existe entre os chineses um provérbio que as mães ensinam


às crianças de berço: “Faz pequeno o teu coração!”. Esta é,
de fato, a tendência fundamental das civilizações tardias:
não tenho dúvida de que a primeira coisa que um grego
antigo observaria em nós, europeus modernos, seria também
a autodiminuição – apenas com isso já lhe seríamos
“repugnantes ao gosto”. 143

Sabedoria na dor: - na dor há tanta sabedoria como no


prazer: como este, ela está entre as forças de primeira ordem
na conservação da espécie. Se não, há muito já teria
desaparecido; o fato de doer não é argumento contra ela, é
sua essência. Eu escuto, na dor, o grito de comando do
capitão do navio: “Recolham as velas!”. O ousado
navegador “homem” teve de aprender mil maneiras de
dispor as velas, senão logo teria passado, o mar o teria
engolido. Precisamos também saber viver com a energia
diminuída: tão logo a dor dá seu sinal de alarme, é tempo de
diminuí-la – algum grande perigo, um temporal está se
armando, e é bom nos “inflarmos” o menos possível. –
Existem homens, é verdade, que ouvem o comando oposto,
ao sentir a aproximação da grande dor, e que nunca são mais
orgulhosos, belicosos e felizes do que quando surge a
tempestade; sim, a dor mesma lhes proporciona seus
maiores momentos! São os homens heróicos, os grandes
portadores de dor da humanidade: estes seres poucos ou
raros, que necessitam exatamente da mesma apologia que a
dor – e, verdadeiramente, ela não lhes deve ser negada! São
forças de primeira ordem na conservação e promoção da
espécie: ainda que fosse apenas por resistirem à comodidade
e não esconderem seu nojo a tal espécie de felicidade.144

2.1- O Estado grego

Como afirmamos anteriormente145, a construção genealógica nietzscheana além

de desacreditar as teorias filosóficas contratualistas, por sustentar que a gênese do Estado

não está nos contratos racionais, mas na violência dos “inconscientes artistas”, valoriza uma

143
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 267. In: KSA, vol. 5, p. 220-221. Tr.
p. 182
144
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [A gaia ciência], 318. In: KSA, vol. 3, p. 550. Tr. p. 212-213.
145
No capítulo 1, seção 1.2.

63
justificação ético-estética para a vida, bem como uma relação que tenha por objetivo a

“economia global da vida” em oposição ao “otimismo econômico” baseado nos valores

individuais e utilitários da sociedade civil burguesa, como também veremos na seção 2.3.

Neste ensaio a política moderna é revelada por Nietzsche como um

individualismo atomizado exacerbado, e a cultura grega tem a importância, sobretudo, de

representar a oposição aos valores morais modernos, especificamente às políticas liberais e

democráticas, além de ser a cultura na qual a democracia originou-se. A relação entre o

grego e o trabalho e, o homem moderno e o trabalho, é central nesta análise, na qual

Nietzsche identifica na política moderna um “amolecimento” do homem moderno, que

preza não pela sobrevida do Estado, mas do indivíduo; diferente da cultura grega, que

concebia o indivíduo como parte do todo orgânico. Assim, a política moderna pretende um

individualismo liberal que exige um título honrado às ações do homem e, por isso,

Nietzsche afirma que “nós modernos temos, com relação aos gregos, a vantagem de dois

conceitos que nos são dados como consolo para um mundo onde tudo conduz à escravidão

e que, por isso, encara com pavor a palavra ‘escravo’: falamos da ‘dignidade do homem’ e

da ‘dignidade do trabalho146’”.

A “dignidade do homem” e a “dignidade do trabalho” são conceitos que fazem

com que o homem moderno olhe admirado para o esforço exaustivo e miserável que é o

trabalho, “mas a fim de que o trabalho tenha direito a título honrado, é preciso, antes de

tudo, que a própria existência para a qual ele é apenas um meio de tormento tenha mais

dignidade e valor do que vem mostrando até agora às filosofias e às religiões147”. É preciso,

146
NIETZSCHE, Der griechische Staat, [O Estado grego]. In: KSA: vol. 1, p. 764. Tr. p. 39.
147
Ibid, In: KSA, vol 1, p. 764. Tr. p. 39.

64
pois, que antes do próprio trabalho a vida tenha dignidade, que a existência tenha um

propósito muito maior do que simplesmente o “impulso de existir a qualquer preço148”.

A confrontação entre o grego e o homem moderno tem sua importância porque

entre os gregos “se expressa com aterradora sinceridade que o trabalho é um ultraje”. O

homem grego reconhece que não é o trabalho uma forma de engrandecimento humano, e,

sobretudo, os gregos sabiam que uma vida dedicada ao trabalho exaustivo impossibilita que

um homem dedique-se à atividade artística; já o homem moderno vê no trabalho,

principalmente, a forma de lutar pela existência com “dignidade”. Assim, o trabalho é de

grande importância para o homem moderno, que através dele busca reconhecimento social

e conquistas individuais.

Desta forma, ao que nos parece, a importância deste ensaio, está na reflexão de

Nietzsche acerca da contradição entre os valores morais de duas épocas, a saber, os gregos

e nós modernos, e, especialmente, como os valores morais do homem moderno não

condizem com a “dignidade do homem”, mas uma decadência de valores. Assim, é possível

compreender porque para os gregos a figura do escravo não causa a mesma aversão que

provoca no homem moderno, para o grego “ o trabalho é um ultraje porque a existência não

tem valor nenhum em si mesma149”, e mesmo que “ a existência brilhe com o adorno

sedutor das ilusões artísticas,..., ainda assim vale aquela frase segundo a qual o trabalho é

um ultraje”150 . Já para o homem moderno, o trabalho é a medida de seu prestígio social,

acredita na “dignidade do trabalho”, o que faz com que o trabalho escravo seja considerado

como indigno, impraticável em uma sociedade que caminha para o “progresso” da

“humanidade”.

148
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 764. Tr. p. 39-40.
149
Ibid, In: KSA: vol. 1, p. 765. Tr. p. 40.
150
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 765. Tr. p. 40-41.

65
Permitimos-nos uma reflexão que parece esclarecer as análises de Nietzsche

presentes no ensaio O Estado Grego. Como já foi dito, a vontade de poder é primordial

para a compreensão da filosofia nietzscheana. Contudo, este foi um conceito que surgiu

pela primeira vez em Zaratustra151, e que permitiu compreender de maneira mais integral a

questão da moral nos escritos de Nietzsche152 posteriores a Zaratustra. Em Zaratustra,

Nietzsche afirma: “onde há vida também há vontade: mas não vontade de vida, senão – é o

que te ensino – vontade de poder!153”. Não pretendemos questionar qual termo tem maior

relevância nas obras de Nietzsche, mas afirmar que o conceito da vontade de poder

proporciona uma leitura mais rica das obras posteriores a Zaratustra, bem como possibilita

uma perspectiva esclarecedora para algumas questões presentes nos textos anteriores, já que

a filosofia de Nietzsche mesmo sendo dividida por seus comentadores em três fases, não

são elas distintas uma das outras, mas sim um amadurecimento de suas reflexões

filosóficas.

Assim, quando Nietzsche afirma que para o homem grego o trabalho, bem como

a produção artística, é um “ultraje inevitável”, é porque “quando a força urgente do impulso

faz efeito, ele precisa criar e sujeitar-se àquele esforço inevitável do trabalho154”, como o

ato da procriação: “o mesmo sentimento que leva o processo de procriação a ser

considerado como algo a se ocultar com vergonha, embora o homem sirva nele a uma meta

mais elevada do que a sua conservação individual”155. Assim, conclui Nietzsche, “a

vergonha parece penetrar,[...], no lugar onde o homem é apenas ferramenta de

manifestações da vontade, infinitamente maiores do que ele pode estimar na configuração


151
Zaratustra, segunda parte, Do superar a si mesmo. In: KSA, vol. 4, p.146. Tr. p. 143s.
152
Com relação a esta análise consultar: PASCHOAL, A. E. A Genealogia de Nietzsche. Curitiba:
Champagnat, 2003, p. 46-47.
153
Zaratustra, segunda parte , Do superar a si mesmo. In: KSA, vol. 4, p. 147. Tr. p. 146.
154
NIETZSCHE, Der griechische Staat, [O Estado grego] In: KSA: vol. 1, p. 766. Tr. p. 42.
155
Ibid, In: KSA: vol. 1, p. 766. Tr. p. 42.

66
singular do indivíduo156”. Portanto, a concepção do agir e da responsabilidade do homem

grego não estava no limite de sua liberdade, mas na necessidade de manifestação de

vontade “infinitamente maiores do que ele pode estimar na configuração singular do

indivíduo”. A concepção de política dos gregos não tinha como meta a ascensão do

individualismo liberal, os gregos são para Nietzsche “‘os homens políticos em si’”, cuja

cultura, entendida como a verdadeira necessidade de arte, fundamenta-se sobre o horror da

exploração:

Para que haja um solo mais largo, profundo e fértil onde a arte se desenvolva, a
imensa maioria tem que se submeter como escrava ao serviço de uma minoria,
ultrapassando a medida de necessidades individuais e de esforços inevitáveis pela
vida. É sobre suas despesas, por seu trabalho extra, que aquela classe privilegiada
deve ver-se liberada da luta pela existência, para então gerar e satisfizer um novo
mundo de necessidade157.

Ao homem moderno coube aniquilar “a situação de inocência do escravo com o

fruto da árvore do conhecimento! Agora ele tem que se entreter dia após dia com tais

mentiras transparentes, que todo bom observador reconhece na pretensa ‘igualdade para

todos’ e nos ‘chamados direitos do homem158’”. A dignidade do homem moderno consiste

em trabalhar para sua sobrevivência individual, acalentado pelo ideal de igualdade que

caracteriza a política moderna, e que se recusa a aceitar uma “verdade cruel”, qual seja, “o

fato de que a escravidão pertence à essência de uma cultura159”. Sabemos que deve ser feita

uma advertência com relação a estas comparações entre o mundo grego e a do homem

moderno, mas, como já foi advertido, a filosofia de Nietzsche não deve ser entendida como

um discurso pragmático, não pretende este filósofo que o homem moderno volte à época

grega, não é de retrocesso que trata Nietzsche, mas de superação. Portanto, os escritos de

156
Ibid, In: KSA: vol. 1, p. 767. Tr. p. 42.
157
Ibid, In: KSA: vol. 1, p. 767. Tr. p. 43.
158
Ibid, In: KSA: vol. 1, p. 765-766. Tr. p.41.
159
Ibid, In: KSA: vol. 1, p. 767. Tr. p. 43.

67
Nietzsche vão além: é um contra-discurso, que pretende avaliar o valor dos valores morais,

e justamente isso Nietzsche procede no texto O Estado Grego, a saber, a possibilidade do

homem moderno repensar os seus próprios valores, oferecendo ao seu leitor uma alternativa

à democracia, a saber, a cultura aristocrática.

Se a cultura fosse realmente do agrado de um povo, se aqui não governassem


poderes inexoráveis, que são a lei e o limite do homem singular, então o desprezo
pela cultura, a glorificação da pobreza de espírito e o aniquilamento iconoclasta
das pretensões artísticas seriam mais do que uma insurreição das massas
oprimidas contra homens singulares ameaçadores: seriam o grito da compaixão
que contornaria os muros da cultura. O impulso para a justiça e para a igualdade
do sofrimento faria submergir todas as outras noções.160

Cercar de compaixão o muro da cultura é o mesmo que podar “com foice

implacável tudo aquilo que quer crescer com força161”. O amolecimento do homem

moderno frente ao horror da vida - da aceitação da condição trágica em que “cada instante

devora o precedente, cada nascimento é a morte de incontáveis seres, gerar, viver e morrer

são uma unidade162” - fez “nascerem as monstruosas calamidades sociais do presente163”,

como a “dignidade do homem” e a “dignidade do trabalho”. Mas, relembra Nietzsche, “a

mesma crueldade que encontramos na essência de toda cultura também está na essência de

toda religião poderosa, e principalmente na natureza do poder164”. Assim, “se chegasse a

ser verdade que os gregos sucumbiram por causa da escravidão, é muito mais certo que nós

sucumbiremos por causa da falta de escravidão165”.

Para Nietzsche, o Estado é a imposição política da disciplina sobre o indivíduo.

Sem a “camisa-de-força” que representa o Estado, o homem não teria saído do estado de

natureza: “sem Estado, no natural bellun omnium contra omnes, a sociedade não pode de

160
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 768. Tr. p. 43-44.
161
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 768. Tr. p. 44.
162
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 768. Tr. p. 44-45.
163
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 769. Tr. p. 45.
164
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 768. Tr. p. 44.
165
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 769. Tr. p. 45.

68
modo algum lançar raízes em uma escala maior e além do âmbito familiar166”. Para o

filósofo alemão, em concordância com Hobbes, sem o Estado o homem estaria sujeito a

uma guerra de todos contra todos, por isso, é o Estado a “mola de ferro que impele o

processo social167”. Para o jovem Nietzsche, a violência que formou o Estado também

gerou o escravo, pois os gregos já denunciavam, mesmo no apogeu da civilização e da

humanidade: “‘O vencido pertence ao vencedor, com mulher e filhos, com bens e sangues.

É a violência que dá o primeiro direito, e não há nenhum direito que não seja em seu

fundamento arrogância, usurpação, ato de violência168’”.

Os gregos foram, portanto, “os homens políticos em si”169, a história não

conhece “nenhum outro exemplo de um desencadeamento tão medonho do impulso

político, de um sacrifício tão incondicional de todos os outros interesses a serviço desse

instinto de Estado170” (apenas a Itália renascentista assemelha-se). Já a política democrática

moderna, por sua vez, é o oposto das virtudes políticas do homem grego, e revela

“perturbações perigosas da esfera política, tão críticas para a arte quanto para a

sociedade171”, uma vez que, o homem democrático é o indivíduo do liberalismo burguês e

que participa da vida política unicamente para a satisfação de interesses próprios, nas

palavras do filósofo:

Se deve haver homens que, por nascimento, situam-se fora dos instintos do povo
e do Estado, deixando o Estado prevalecer somente quando o tomam em seu
próprio interesse: tais homens inevitavelmente haverão de imaginar como meta
última do Estado a mais imperturbável vida em conjunto de grandes comunidades
políticas, nas quais seria permitido que eles perseguissem antes de tudo as
próprias intenções, sem limites. Com essas noções na cabeça, irão fomentar a
política que a tais intenções a maior segurança, enquanto é impensável que devam

166
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 772. Tr. p.49.
167
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 772. Tr. p. 49.
168
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 772. Tr. p. 46.
169
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 771. Tr. p. 48.
170
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 771. Tr. p. 48.
171
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 772. Tr. p. 49.

69
se sacrificar, como que conduzidos por um instinto inconsciente, à tendência
estatal, impensável justamente porque carecem daquele instinto172.

Os que fazem do Estado um meio para adquirir vantagem são carentes do

“instinto inconsciente estatal”, eles sabem o querem do Estado e o que o Estado deve

conceder-lhes, “por isso, não há como impedir que tais homens adquiram uma grande

influência sobre o Estado, porque eles o consideram como meio, enquanto todos os outros,

sob o poder daquelas intenções inconscientes do próprio Estado, é que são apenas meios

para as finalidades do Estado173”. E para alcançar as metas egoístas dos que se libertaram

do instinto inconsciente estatal, a guerra torna-se uma impossibilidade: o objetivo das

políticas modernas é libertar o Estado das guerras e, “pela fabricação de grandes corpos

estatais equilibrados e das garantias mútuas de segurança entre eles, tornar altamente

improvável o êxito de uma guerra ofensiva, e com isso da guerra em geral174”. Para tanto,

retiram de qualquer “detentor isolado” o poder que possa ter, ou seja, vão apagando

“lentamente os instintos monárquicos dos povos”175. O Estado como meio para alcançar

vantagens particulares deriva, para Nietzsche, da concepção “de mundo liberal e otimista,

que tem suas raízes nas doutrinas do Iluminismo e da Revolução Francesa176”.

A oposição nietzscheana à política liberal, à individualidade atomizada e ao

equilíbrio social, é uma censura às práticas democráticas, sobretudo no que se refere à

desvalorização da arte e da cultura. Os dilemas nietzscheanos acerca da democracia

moderna pretendem superar os valores particulares, que são, na política democrática

moderna, relativizados e tornados em termos de igualdade social. Tampouco Nietzsche faz

172
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 772. Tr. p. 49-50.
173
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 773. Tr. p. 50.
174
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 773. Tr. p. 50.
175
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 773. Tr. p. 50.
176
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 773. Tr. p. 50-51.

70
uma defesa da hierarquia de classes e da guerra por mera tirania às classes oprimidas, mas

por “amor à terra natal177”, por uma ética na política, cuja manifestação primordial de

grandeza é a arte, a criação artística, a força criadora que fez (a título exemplificativo) o

Estado surgir e possibilitar o processo social. Uma vez equilibrada esta força criada por

corpos estatais de igualdade e segurança social institui-se uma neutralização da força

artística, uma estagnação da vida, que deixa de crescer para se preservar. Assim, para

Nietzsche, a dignidade de cada homem, no conjunto de seus atos, só tem valor na medida

em que “é instrumento do gênio, de modo consciente ou inconsciente178”, e a conseqüência

ética imediata disso é que o “‘homem em si’, o homem em sentido absoluto não possui nem

dignidade, nem direito, nem deveres: o homem só pode justificar sua existência como a de

um ser totalmente determinado, servindo a finalidades inconscientes179”. Diante disto, a

política nietzscheana tem um caráter ético-estético que repugna a democracia moderna por

solapar os valores da grandeza estética e aristocrática, sobretudo ao proclamar pela

igualdade entre os homens, bem como por impedir o desenvolvimento da cultura em prol

da felicidade dos pequenos prazeres iguais para todos e mercantilizados, característica da

moderna sociedade burguesa que pretende universalizar a ideologia da liberdade, igualdade

e fraternidade. Esse “progresso” da humanidade é, para Nietzsche, o apequenamento da

humanidade, tipificado na figura do “último homem”, como veremos no último capítulo

deste trabalho.

177
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 774. Tr. p. 51.
178
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 776. Tr. p. 53.
179
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 776. Tr. p. 53.

71
2.2 – HOBBES E NIETZSCHE: ALGUMAS (DES) SEMELHANÇAS

A reflexão a respeito de como o poder se apresenta na dinâmica de uma

sociedade democraticamente estruturada sugere alguns pontos essenciais a serem

cuidadosamente pensados. Os valores intrínsecos à legitimidade da democracia moderna,

como liberdade, igualdade, enfim, valores ideológicos que fazem da democracia um

governo “humanitário”, parecem suprimir, a princípio, a atuação do poder, pois necessário

se faz que as relações sociais sejam democráticas, tanto no âmbito familiar quanto estatal.

Desta forma, há um indício muito maior de afinidade entre um Estado monárquico ou

ditatorial com o poder, do que com a democracia moderna, que nos sugestiona a relacioná-

la ao ideário da igualdade entre os homens e da liberdade.

Contudo, indo além de uma superficial reflexão acerca da democracia moderna,

podemos nos deparar com um grande paradoxo desta forma de governo que pretende ser

“humanitário”, a saber, o progresso do “homem moderno” compreendido como a auto-

mediocrização da humanidade, seu rebaixamento a um igualitarismo uniformizador que

tende a culminar na anarquia e tirania. A democracia moderna representa o “progresso”

social por pretender, sobretudo, eliminar as diferenças, estabelecer a paz (o controle dos

conflitos), promover um discurso democrático no qual (supõe-se) todas as opiniões são

pertinentes, enfim, por almejar o “melhoramento” da humanidade, um otimismo temporal

que pretende ser a salvação, o progresso de todos os tempos. Ao tratar do progresso em

termos de um igualitarismo uniformizante, que fixou a felicidade mercantilizada dos

prazeres iguais para todos, Nietzsche identifica nessa hegemonia das idéias modernas um

72
perigo involuntário: com o fim das diferenças e da autoridade legítima, a democracia

moderna prepara um caminho não intencional para a barbárie e a tirania.

Nestes termos, o progresso da democracia representa, para Nietzsche, a

mediocrização da humanidade, que pode ser constatado no avanço irreversível da moderna

sociedade industrial, cujas prerrogativas de direitos iguais prepara tendências tanto para a

anarquia quanto para a tirania. Isto porque, a “impressão geral causada por esses futuros

europeus será, provavelmente, a de trabalhadores bastante utilizáveis, múltiplos, faladores e

fracos de vontade, necessitados do senhor, do mandante, como do pão de cada dia”180,

assim, afirma Nietzsche: “Quero dizer que a democratização na Europa é, simultaneamente,

uma instituição involuntária para o cultivo de tiranos – tomando a palavra em todo sentido,

também no mais espiritual”181. Como esclarece Giacóia (1999, p. 156), no texto Crítica da

Moral como Política em Nietzsche, a verdadeira causa deste “cultivo de tiranos” na

democracia moderna “há que ser buscada na absolutização dos valores morais consagrados

pelas ‘idéias modernas’, sob o efeito da qual esses se tornam valores em si”.

O tipo-homem da moderna sociedade civil-burguesa, que representa o progresso

da humanidade, é o homem “bom” que Nietzsche responsabiliza, na primeira Dissertação

de Para a Genealogia da Moral182, pela revolta da moral escrava, ou seja, é o homem

“bom” de uma moral, a saber, da moral cristã. É esse tipo homem (cristão) que tanto os

socialistas quanto os democratas pretendem disseminar, de maneira globalizada, sem ao

menos questionar para onde caminha este “melhoramento” da humanidade. Esta

180
NIETZSCHE, F. Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 242, In: KSA, vol. 5, p. 182s. Tr. p.
150.
181
Ibid, 242, In: KSA, vol. 5, p. 182s. Tr. p. 150.
182
Explica Nietzsche que com a revolta da moral escrava o homem “bom” passa a ser aquele da moral
escrava, o homem pacífico, manso, doméstico, em oposição ao homem mau, guerreio e forte.
Conferir: NIETZSCHE, F. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], Primeira dissertação,
In: KSA, vol. 5, p. 257s. Tr. p. 20s.

73
antropologia tácita dos socialistas e democratas, de que o homem é “bom”, e as instituições

que o corrompem, é a mesma certeza da qual partia Rousseau no Discurso sobre a origem

da desigualdade. O homem “bom” de Rousseau é o homem “bom” da Revolução Francesa

que, para Nietzsche, promoveu este “asilo alienado das idéias modernas”183. É ele a

idealização cristã do homem natural, que Rousseau forjou do conceito de uma natureza que

seria liberdade, bondade, inocência. Essa natureza da bondade humana é o culto da moral

cristã, que tanto a democracia moderna quanto os ideais socialistas pretendem consolidar

como progresso civilizatório, cujas virtudes igualitárias e niveladoras são características

essenciais da existência gregária, que suprime as referências verticais. Portanto, o que

parece relevante e constitui uma etapa capaz de rever a questão do poder é repensar na

atuação do poder, não como mera força coercitiva, mas como uma força velada das práticas

democráticas que são, sobretudo, atuação de uma vontade de poder fraca, que pretende

com o igualitarismo uniformizador o apequenamento da humanidade. Nas forças gregárias

a identidade é coletiva, não há distância, o nivelamento é a segurança da igualdade, em

oposição à tensão, que possibilitada o novo, o diferente.

Hobbes representa o contraposto do igualitarismo natural, ao identificar na

natureza humana uma luta incessante por mais poder e, por isso, o Estado Leviatã exige

uma hierarquia representada na figura do Soberano e dos súditos, como condição de

alcançar a justiça, mas, próximo à democracia, pretende, sobretudo, a conservação da

unidade estatal. Discorrer sobre a justiça implicaria um outro estudo de extrema

complexidade filosófica, assim preferimos nos limitar à própria definição de Hobbes (2002,

p. 7) a respeito da justiça: “que significa uma firme vontade de dar a cada um o que é seu”.

Contudo, a questão que Hobbes se coloca consiste em definir o que será de cada indivíduo

183
NIETZSCHE, F. Die fröhliche Wissenschaft [A Gaia Ciência], 350, In: KSA, vol. 3, p. 586. Tr. p. 244.

74
se esta tarefa couber ao próprio homem, uma vez que a natureza do homem é condicionada

por uma luta incessante por (mais) poder, e não por uma bondade natural que possibilite a

partilha desinteressada de bens.

Nietzsche aproxima-se de maneira singular da análise hobbesiana acerca do

poder, repudiando as reflexões de Rousseau acerca de uma natureza humana bondosa e

pacífica, como pretendia o cristianismo. Sendo assim, em Hobbes e Nietzsche a natureza do

homem é definida por “uma guerra de todos contra todos”184, uma luta incessante por poder

que, no caso de Hobbes só cessa com a morte, e por isso deve ser neutralizada; mas que,

para Nietzsche, não deve ser neutralizada, mas possibilitar a transvaloração dos valores, ou

seja, o vir a ser de novos valores que tenham por objetivo, sobretudo, o desenvolvimento

da cultura185.

A “grande política” de Nietzsche em nada se ajusta às perspectivas niveladoras

da democracia moderna, tampouco ao romantismo da natureza rousseauniana. Nietzsche

luta contra todo ideal, é este a arma do escravo, e não é ao escravo que cabe a função de

construir um Estado que pretenda promover a cultura, à moral escrava é possível apenas um

estado no qual “os prejuízos de todos se somam num prejuízo global: o homem se torna

menor”186. Não obstante, o apequenamento do homem moderno será, para Nietzsche, a

força mediana propulsora de uma “raça” mais forte, que encontraria neste igualitarismo a

possibilidade de ser a exceção187. Nestes termos, a hierarquia e a subordinação são

imprescindíveis ao Estado nietzscheano, não em vistas a um benefício particular, é esta

uma característica da democracia moderna utilitarista e atomizada, mas ao desenvolvimento


184
Esta afirmação está presente no texto O Estado grego. Como vimos na seção 2.1, para Nietzsche, sem
Estado a condição do homem é uma guerra de todos contra todos, bem como já pensava Hobbes no texto
Leviatã.
185
Como veremos no capítulo 3.
186
NIETZSCHE, F. Fragmento póstumo do outono de 1887, 10[17], In: KSA, vol. 12, p. 462s. Tr. p. 43.
187
Trataremos deste tema ao longo do capítulo 3 deste trabalho.

75
da cultura, criadora de valores e não conservadora de ideais, pois a conservação é um

predicado da moral fraca, da “moral escrava”188. Contudo, há que se observar que com a

moral escrava não deixa de haver dominação, há um ganho da vontade de poder fraca sobre

a vontade de poder aristocrática. Sem o poder do ideal ascético não seria possível a

supressão das diferenças, o ideal da igualdade pensa na justiça como sinônimo da

descentralização do poder, sem o pathos da distância189 é estabelecido um equilíbrio entre

os poderes com o objetivo de alcançar, além da justiça, a domesticação dos impulsos

naturais para a guerra.

Assim, parece-nos pertinente a possibilidade de rever os valores da democracia

moderna, que em nosso estudo (nietzscheano) são compreendidos como formações e

construções históricas ao longo da vida, e que por isso mesmo podem ser repensados,

recriados e até mesmo perecerem. E será a partir das reflexões de Hobbes que poderemos

inverter as relações que parecem lógicas para a democracia moderna, a saber, igualdade e

justiça, desigualdade e injustiça. Isto porque, inquietado com questões relativas ao poder e

ao Estado, Hobbes se dedica a investigar a passagem do estado de natureza para a

sociedade civil e, sobretudo, as prerrogativas de uma organização estatal capaz de

promover a paz e proteger o homem natural da “guerra de todos contra todos” a que ele está

sujeito no estado de natureza, guerra decorrente do uso indiscriminado do poder e da força

no estado de natureza. Assim, propõe o autor de Leviatã um Estado erigido pela vontade de

todos, ou seja, um pacto social no qual os súditos obrigatoriamente concedem seu poder ao

Soberano, com a promessa do Soberano garantir-lhes a integridade física.

188
O instinto de autoconservação na filosofia de Nietzsche será analisado na seção seguinte.
189
Como veremos no capítulo 3, para Nietzsche é imprescindível ao Estado, que tenha por objetivo a
promoção da cultura, uma sociedade hierarquiza, uma distância entre classes, o oposto da sociedade gregária
própria de uma moral escrava.

76
Se da leitura hobbesiana do estado de natureza, em que a liberdade irrestrita

decorrente do poder exercido pela luta da sobrevivência tem como conseqüência a guerra

de todos contra todos, promover na sociedade civil a igualdade entre os homens parece

senão contraditório pelo menos curioso. Por isso a inversão da ordem lógica da democracia:

para Hobbes a condição de igualdade é causa de discórdia, é necessário, portanto, a

desigualdade para promover a paz. Mas, aqui convém esclarecer que tanto na democracia

moderna, quanto no Estado Leviatã, o que tem valor preponderante é neutralizar o poder

entre os súditos, ou seja, é a conservação o objetivo principal. A fim de tornar esta hipótese

plausível, reportamos-nos aos escritos de Hobbes, para compreender como é possível

definir o que pertence a cada indivíduo se esta tarefa couber ao próprio homem da

coletividade:

E foi por isso que, quando dediquei minhas reflexões à investigação da justiça
natural, prontamente me vi prevenido pela própria palavra justiça (que significa
uma firma vontade de dar a cada um o que é seu) de que minha primeira pergunta
tinha de ser esta: a que se devia que um homem pudesse chamar algo de seu, em
vez de dizer que pertence a outro. E quando constatei que isso se devia não à
natureza, mas ao consentimento (pois aquilo que a natureza primeiro impôs em
comum os homens depois distribuíram sob várias apropriações), fui então levado
a outra pergunta, a saber: para que fim, e sob que impulsos, quando tudo era
igualmente de todos em comum, os homens consideraram mais adequado que
cada homem tivesse o seu bem? E descobri que a razão foi que, se os bens forem
comum a todos, necessariamente haverão de brotar controvérsias sobre quem
gozará mais de tais bens, e de tais controvérsias inevitavelmente se seguirá todo
tipo de calamidades, as quais, pelo instinto natural, todo homem é ensinado a
esquivar. Assim cheguei a duas máximas da natureza humana – uma que provém
de sua parte concupiscente, que deseja apropriar-se do uso daquelas coisas nas
quais todos os outros têm igual participação, outra, procedendo da parte racional,
que ensina todo homem a fugir de uma dissolução antinatural, como sendo este o
maior dano que pode ocorrer à natureza. Com base nesses princípios assim
postos, penso haver demonstrado neste pequeno livro de minha lavra, pelas
conexões mais evidentes, primeiro a absoluta necessidade de que haja ligas e
contratos, e a partir daí os rudimentos da prudência tanto moral como civil.
(HOBBES, 2002, p. 7).

Há, para Hobbes, “a absolta necessidade de que haja ligas e contratos” para

definir o que será de cada indivíduo, uma vez que a natureza do homem é determinada pela

busca incessante pelo poder, o que confere ao homem natural um estado iminente de

77
guerra, pois “um poder certo e irresistível confere a quem o possui direito de dominar e

mandar naqueles que não possam resistir190”, assim a justiça apenas efetiva-se a partir do

pacto social. Próxima a esta análise hobbesiana acerca do uso excessivo do poder está a

reflexão nietzscheana que, no aforismo 259 de Para além de bem e mal, descreve a vida

como “essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco,

opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais

comedido, exploração191”. No entanto, a reflexão de Nietzsche rompe-se com a de Hobbes

no que se refere aos objetivos do uso do poder, isto porque, em Hobbes o poder é entendido

em termos utilitários, como meio para um fim, nas palavras do filósofo: “O poder de um

homem (universalmente considerado) consiste nos meios de que presentemente dispõe para

obter qualquer visível bem futuro192”. Ainda, para Hobbes, o poder é dividido em “poder

original”, que consiste na “eminência das faculdades do corpo ou do espírito; extraordinária

força, beleza, prudência, capacidade, eloqüência, liberalidade ou nobreza193”; e o “poder

instrumental” que são “adquiridos mediante os anteriores ou pelo acaso, e constituem meios

e instrumentos para adquirir mais: como a riqueza, a reputação, os amigos, e os secretos

desígnios de Deus a que os homens chamam boa sorte194”. Destarte, Hobbes põe em

evidência uma natureza humana condicionada a uma luta incessante por poder: “assinalo

assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e

inquieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte195”, mas é um poder

que tem por objetivo um bem futuro. Diferente da atuação do poder na filosofia de

190
HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Tradução, apresentação e notas Renato Janine Ribeiro. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 35.
191
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para Além de bem e mal], 259, In: KSA, vol. 5, p. 207. Tr. p.
171.
192
HOBBES, Leviatã, cap. X.
193
Ibid, cap. X.
194
Ibid, cap. X.
195
Ibid, cap. XI.

78
Nietzsche que entende a vida como um esbanjamento de forças, como a atuação das forças

dos “inconscientes artistas196” que ao criarem o Estado e darem forma a uma matéria-

humana semi-animal estavam, acima de tudo, esbanjando a sua força criativa de maneira

inconsciente.

Já para Hobbes, entre os bens futuros desejado pelo homem está, sobretudo, a

conservação da própria vida. Devido à condição beligerante do estado de natureza o

emprego indiscriminado do poder é o meio de um indivíduo preservar a sua vida diante de

outro ser vivo, de conservar-se197, por isso a lógica utilitarista do poder na filosofia de

Hobbes. Em contrapartida, Nietzsche não pretende uma lógica utilitária para o poder, para

este filósofo o poder refere-se, acima de tudo, a um dispêndio, a um esbanjamento de

forças, e não um estado final que deva ser atingido. Para Nietzsche, “uma criatura viva quer

antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é vontade de poder -: a

autoconservação é apenas uma das indiretas, mais freqüentes conseqüências disso198”. Para

Nietzsche, se fosse possível “explicar toda a nossa vida instintiva como elaboração e

ramificação de uma forma básica da vontade – a vontade de poder, como é minha tese -;

supondo que se pudesse reconduzir todas as funções orgânicas a essa vontade de poder, e

nela se encontrasse também a solução para o problema da geração e nutrição199”, seria

possível definir “toda força atuante, inequivocadamente, como vontade de poder200”, desta

forma, o mundo seria “‘vontade de poder, e nada mais201’”.

196
NIETZSCHE, F. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], 17, In: KSA, vol.5, p. 324s. Tr.
p. 75.
197
Com relação a este tema consultar: ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma
introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 60.
198
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 13, In: KSA, vol. 5, p. 27. Tr. p. 20.
199
Ibid, 36, In: KSA, vol. 5, p. 55. Tr. p. 43.
200
Ibid, 36, In: KSA, vol. 5, p. 55. Tr. p. 43.
201
Ibid, 36, In: KSA, vol. 5, p. 55. Tr. p. 43.

79
Para o autor de Leviatã, em decorrência desta tendência natural de uma luta

incessante pelo poder, que se interrompe apenas com a morte, o Estado Leviatã tem uma

finalidade específica: pôr fim à perpétua condição de insegurança das relações de poder

formadas no estado de natureza. Da condição de igualdade do estado de natureza em que

não há convenções e o que a natureza prover ao homem não é dividido entre os homens,

mas disputado, Hobbes reflete uma forma de Estado justa, mas, para tanto, os indivíduos

não devem mais lutar pela preservação, pois esta passa a ser uma prerrogativa estatal e não

individual. Assim, afirma Hobbes: “o estado de igualdade é um estado de guerra, e que por

isso a desigualdade foi introduzida pelo consentimento geral, essa desigualdade pela qual

tem mais aquele a quem, voluntariamente, demos mais não se deve considerar como se não

fosse razoável”, (Do Cidadão, 2002, p. 158-159).

É esta reflexão de Hobbes que indicamos anteriormente como inversão da lógica

democrática moderna: o estado de natureza é a realização efetiva da igualdade, mas esta

não é a realização da justiça, assim, a justiça para Hobbes só irá se efetivar quando houver

“desigualdade”, ou seja, a divisão do poder concretizada nas figuras dos súditos e do

Soberano. O consentimento202 impõe, portanto, uma nova configuração social: enquanto no

estado de natureza, em que não há convenções, tudo é de todos, não há divisão legítima dos

bens naturais entre os homens, o que impulsiona as “controvérsias” e as “calamidades”; o

Estado Leviatã, tal como Hobbes o concebe, tem a prerrogativa de definir os “rudimentos

da prudência tanto moral como civil” para a efetiva legitimidade do pacto social e,

conseqüente manutenção da integridade física dos contratantes.

202
Importante observar que o consentimento no pacto hobbesiano tem fundamental importância para a
formação e constituição do Estado, mas passa a ser uma questão secundária quando o Estado Leviatã já está
solidificado. A respeito deste assunto conferir: Hobbes, Leviatã, cap. XXX; Ribeiro, Renato Janine. A marca
do Leviatã (linguagem e poder em Hobbes). São Paulo: Ática, 1979.

80
Além de pensar uma forma de sociedade justa baseada na desigualdade de

poder, Hobbes também reflete a respeito das possibilidades de exercício do poder:

aristocracia, monarquia, democracia, e suas respectivas denominações depreciativas:

oligarquia, tirania e anarquia203. A crítica dirigida à democracia consiste em apresentá-la

como discurso demagógico, como podemos perceber em Do Cidadão (2002, p. 160): “vede

quantos demagogos, isto é, quantos oradores poderosos há junto ao povo (são eles tantos, e

a cada dia crescem em número), e para cada um deles há tantos filhos, parentes, amigos e

bajuladores que haverão de ser recompensados”. Hobbes identifica na democracia, em

decorrência da descentralização do poder, um regime de eloqüência, de opiniões, a arte da

retórica que culmina (este governo popular) na disputa pela soberania. É assim que Hobbes

(2002, p. 163-164) entende a liberdade reivindicada pelos particulares em um estado

democrático: “quando os particulares reivindicam a liberdade, sob o seu nome eles não

estão querendo a liberdade, mas a soberania (dominion), embora por ignorância não se

dêem conta disso”. Assim, não parece ser o estado democrático um consenso em busca do

bem comum, mas um uso disfarçado de uma ideologia tendo em vistas algum benefício

particular, nas palavras de Hobbes:

[...] talvez alguns afirmem que um Estado popular deva ser preferido, e muito, a
um monárquico: porque, quando todos podem pôr a mão nos negócios públicos,
então têm todos uma oportunidade para mostrar sua sabedoria, seus
conhecimentos e eloqüência, na decisão dos assuntos mais difíceis e relevantes; o
que, para quem se destaca nessas faculdades, e que acredita nelas superar aos
outros, é a mais prazerosa de todas as coisas, devido àquele desejo de ser
elogiado que é congênito à natureza humana. Já numa monarquia, essa via para
obtenção do elogio e da honra está fechada à maior parte dos súditos; e, se isso
não for um inconveniente, o que o será? (HOBBES, 2002, p. 164).

Parece-nos excessivo aproximar a crítica nietzscheana à democracia moderna

com as análises de Hobbes acerca da democracia, sobretudo porque em Nietzsche

203
Leviatã,cap. XIX, p. 114.

81
encontramos uma nova perspectiva de análise que consiste em um estudo genealógico que

tem como objetivo minar alguns (se não todos) aspectos da democracia moderna. Contudo,

Nietzsche realiza uma leitura das relações de poder totalmente diversa do ideário da

vontade coletiva ou, do bem comum, tal como o fez Rousseau204 e, como vimos, próxima à

filosofia política de Hobbes, em particular às análises destes dois pensadores no que se

refere à propensão natural do homem para a guerra. Partindo de uma análise histórico-

genealógica das relações estabelecidas no decorrer da história, Nietzsche argumenta a

gênese e a sobrevida do Estado, qualquer que seja sua organização política, pelo poder205.

Assim, para Nietzsche, a democracia moderna tem por objetivo conservar uma forma

específica de poder, a saber, da “moral escrava”, ou seja, a democracia moderna é a

neutralização da vontade de poder aristocrática, e o aumento da vontade de poder fraca,

decadente. Desta forma, a democracia moderna consiste, acima de tudo, na manutenção de

valores igualitários (moral cristã) que pretendem garantir a estabilidade dos instintos - cujo

caráter geral utilitarista em nada engrandece a cultura, mas, ao contrário, luta contra a força

do vir a ser – o que faz do homem democrático um indivíduo “decadente”, nas palavras do

filósofo:

204
Buscando divergir a filosofia de Hobbes com os escritos de Rousseau, podemos enumerar as seguintes
diferenças: 1º - para Rousseau o único regime que se adapta às pretensões da vontade geral é a democracia,
sendo a aristocracia e a monarquia formas de opressão; em Hobbes a melhor forma de governo é aquela que
visa unidade e continuidade (duração temporal), além de ser um Estado de essência imperialista, pois tende
sempre ao acréscimo de poder em função do Leviatã; 2º- para Rousseau é impensável a cessão de si nos
moldes do contrato social, já o pacto hobbesiano exige a cessão de si; 3º- o contrato social de Rousseau
pretende garantir a igualdade entre súditos e soberanos, o pacto hobbesiano agrava a distância entre súditos e
soberano; 4º - a Vontade Geral é o alicerce rousseauniano para a democracia, Hobbes entende ser necessária a
união (concórdia) de todos para o surgimento do pacto, contudo, para o andamento posterior do Estado é de
seu interesse garantir o poder e a repressão, garantir a vida e, a produção do bem-estar. Sobre este assunto
consultar: Leviatã, cap. XXX; Ribeiro, Renato Janine. A marca do Leviatã (linguagem e poder em Hobbes).
São Paulo: Ed. Ática, 1978.
205
Conforme foi apresentado na seção 1.1.

82
Creio que tudo o que hoje na Europa estamos habituados a venerar como
“humanidade”, “moralidade”, “humanitarismo”, “compaixão”, justiça, com efeito
pode ter um valor de fachada, como enfraquecimento e mitigação de certos
impulsos fundamentais poderosos e perigosos, porém, a despeito disso, a longo
prazo, não é nada além do que o apequenamento do inteiro tipo “homem”, sua
definitiva mediocrização, se me quiserem excusar uma palavra desesperada num
assunto desesperado206.

Portanto, a contradição, e por isso a possibilidade de repensar o poder e sua

atuação na política democrática, tem por objetivo avaliar o valor dos valores democráticos,

a saber, um “otimismo liberal” que se presta “a serviço de uma aristocracia monetária

egoísta e desestatizada207”, como afirma Nietzsche no texto o Estado Grego. Desta forma é

que a atuação do poder na democracia manifesta-se através de valores morais decadentes, a

saber, de conservação, igualdade e equilíbrio, que crescem na mesma medida do poder de

uma “moral escrava”.

Reconhecendo o poder que o estado natural concede aos homens, Hobbes pensa

em uma política representada por um Soberano a quem os súditos tenham que “transferir” e

“renunciar” seus direitos naturais, a saber, o poder para proteção da vida, conforme a razão

de cada um. Ao considerar como opção política e social um Estado dividido entre o

Soberano e os súditos, não há como evitar a caracterização de autoridade monárquica que

os escritos de Hobbes parecem defender. Por outro lado, a preferência pela democracia não

parece nos livrar da condição de súditos como podemos refletir a partir da leitura de Para

além de bem e mal em que Nietzsche afirma ser “o movimento democrático não apenas

uma forma de decadência das organizações políticas, mas uma forma de decadência ou

diminuição do homem, sua mediocrização e rebaixamento de valor208”. Portanto, tanto no

estado Leviatã hobbesiano, quanto na democracia moderna, o poder é o tema central. Mas

206
NIETZSCHE, F. Fragmento póstumo do outono de 1885-outono de 1886, 2[3], In: KSA, vol. 12, p. 71s.
Tr. p. 32.
207
NIETZSCHE, Der griechische Staat, [O Estado grego] In: KSA: vol. 1, p. 774. Tr. p. 51.
208
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 203, In: KSA, vol.5, p. 126. Tr. p.
103.

83
com uma diferença singular das análises de Nietzsche acerca do poder, a saber, Hobbes

estabelece um Estado no qual não seja possível o uso indiscriminado do poder, é um estado

de autoconservação; já Nietzsche pretende uma política de auto-superação e, para tanto, é

imprescindível o embate entre vontades de poder.

Apenas “um poder comum a recear”, como afirma Hobbes no Leviatã (1979, p.

76), é capaz de por fim a este estado natural de guerra. Mas como compactuar com um

poder comum se, para Hobbes, o homem naturalmente tende para a guerra? Os fatores

determinantes para o homem optar pela vida em sociedade não é o amor ao homem,

tampouco a confiança, mas apenas a satisfação de desejos próprios (principalmente para

resguardar a vida). Assim, é tanto pelas paixões quanto pela razão que se forma o consenso

entre os indivíduos de que o estado civil é a melhor maneira de organização do poder, uma

vez que o Estado impulsiona uma organização cuja continuidade e duração são

impraticáveis no estado de natureza.

O mesmo pensa Nietzsche no texto O Estado Grego, como afirmamos na seção

anterior: “sem Estado, no natural bellum omnium contra omnes, a sociedade não pode de

modo algum lançar raízes em uma escala maior e além do âmbito familiar209”, por isso, o

Estado é “a mola de ferro que impele o processo social210”. Contudo, para Nietzsche, não é

a partir do pacto social que se forma o Estado. Para o autor de Para a Genealogia da Moral

a inserção de uma população sem normas e sem freios numa forma estável não foi gradual e

nem voluntária, foi “um salto, uma coerção, uma fatalidade inevitável, contra a qual não

havia luta e nem sequer ressentimento211”. O Estado “apareceu como uma terrível tirania,

209
NIETZSCHE, Der griechische Staat [O Estado grego] , In: KSA, vol. 1, p. 772. Tr. p. 49.
210
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 772. Tr. p. 49.
211
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral[ Para a Genealogia da Moral], II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 324.
Tr. p. 74.

84
uma maquinaria esmagadora e implacável212”, a saber, uma raça de conquistadores, “um

bando de bestas louras213”, que imprimiram a sua forma em uma “matéria-prima humana e

semi-animal214”.

Em Hobbes, apesar da natureza do homem ser essencialmente guerreira, que

luta incessantemente por mais poder, é pela paz, ou melhor, pela possibilidade de viver

“todo o tempo que geralmente a natureza permite215” que o homem escolhe ao renunciar

seu direito de tudo poder. A opção do homem é por este poder limitado ou, se preferir, pela

liberdade restrita garantindo, assim, a unidade e a continuidade do Estado Leviatã. Em uma

análise acerca do poder no Estado Leviatã, Ribeiro explica que o poder “é o outro nome da

desigualdade: impossível suprimi-la, e é por isso que a condição humana após o pecado

exige a salvação política” (1978, p. 19). A política em Hobbes tem a prerrogativa de

estabilizar o uso indiscriminado do poder no estado de natureza, assim, Estado Leviatã é

um corpo político isento de contestação e mudança (eternidade), instaura uma ordenação

política temporal, na qual o objetivo maior é a sobrevivência, em que o homem renuncia

aos seus desejos imediatos em vista a um bem maior, a saber, a proteção da sociedade

política.

O poder é, assim, um tema caro tanto a Hobbes quanto a Nietzsche. Em alguns

aspectos este tema parece aproximar a filosofia destes dois pensadores, mas há um espaço

limite para as possíveis aproximações, que se distinguem precisamente em seus objetivos.

A função do estado na filosofia de Hobbes, como afirmamos, é pôr fim à perpétua condição

de insegurança das relações de poder formadas no estado de natureza, com o objetivo

212
Ibid, II, 17, In: KSA, vol.5 p. 324. Tr. p. 74.
213
Ibid, II, 17, In: KSA, vol. 5 p. 324. Tr. p. 74.
214
Ibid, II, 17, In: KSA, vol.5, p. 324. Tr. p. 74.
215
HOBBES, Leviatã, cap. XIV.

85
principal de garantir a vida dos súditos. Desta forma, o Estado –Leviatã tem duas principais

prerrogativas, a saber, unidade e duração.

Nietzsche é, em comparação a este objetivo, o contraponto de Hobbes. Nascido

da violência, o Estado para Nietzsche deve manter a luta, não uma incessante guerra de

todos contra todos (era esta uma condição natural, inconcebível a um estado civil), mas um

combate entre forças que sejam um aumentar, crescer, desabrochar, transcender da cultura,

isto é, uma política que possibilite a auto-superação. Mas, para este filósofo, tal condição

de criação mostra-se incompatível com a democracia moderna que tende aos mesmos

propósitos da moral cristã. A democracia liberal desencadeia um processo inverso do

concebido por Nietzsche para uma sociedade de “culturas nobres”: é, a democracia uma

política voltada aos ideais cristãos que produz indivíduos particulares, que se fazem às

custas da cultura e da própria coletividade. Desta forma, para o filósofo alemão, a

individualidade fraca deve ceder lugar a um constante vir a ser de autocriação e

autodestruição, processo destituído de objetivo ou propósito utilitarista. Nietzsche busca

uma política que transcenda as bases atomistas da sociedade moderna, rompendo com o

individualismo estreito e massificador.

Diante disso, podemos concluir que, enquanto Hobbes tem como objetivo a

“auto-conservação da espécie” ao proclamar por um Estado –Leviatã; Nietzsche tem como

propósito a auto-superação, uma forma de emancipação da vida pela cultura, possível

apenas pela ética aristocrática. Esta busca pela auto-superação através da cultura parece

buscar redimir a vida dos efeitos de mais de dois mil séculos da moral-cristã que, para

Nietzsche, produziu uma moral de instintos fracos, uma “moral de rebanho”, que pretende

suprimir da vida o que é próprio a ela, a saber, a luta e o combate de forças A democracia

moderna, para Nietzsche, é a sobrevida dos ideais cristãos, cuja tarefa primordial consistiu

86
em adoecer o homem, em fazer com que o homem aristocrata, guerreiro, a “besta loura”, se

tornasse amansada e maleável, que seu poder de criação fosse substituído pela busca da

mesmice igualitária. Nas palavras de Nietzsche:

As coisas não se passam de modo diverso com o homem domado, que o


sacerdote “aperfeiçoou”. Na alta Idade Média, em que a Igreja era efetivamente,
acima de tudo, uma ménagerie, dava-se caça de preferência aos mais belos
exemplares da “besta loira” – “melhoravam-se”, por exemplo, os germanos
nobres. Mas, qual era, depois, o aspecto de um tal germano “melhorado”,
encerrado num claustro? O de uma caricatura de homem, de um aborto: tornara-
se “pecador”, fechava-se numa jaula, estava aferrolhado entre idéias terríveis. Ali
jazia ele, doente, triste, malévolo para consigo mesmo; cheio de ódio contra os
instintos da vida, cheio de suspeita contra tudo o que era ainda forte e feliz. Em
suma, um “cristão”... Em termos fisiológicos: na luta contra a besta, pô-la doente
pode ser o único meio de a enfraquecer. Bem o compreendeu a Igreja: estropeou
o homem, debilitou-o – mas pretendeu tê-lo “melhorada”...216.

Assim, a história relata um passado de exploração, mas uma exploração contra a

própria vida, ao eliminar a força de criação, o instinto de guerra, que fazia a vida crescer;

instituindo uma moral de resignação e mansidão, adoecendo o homem forte e guerreiro, que

dizia sim à vida para, em contrapartida, fortalecer uma moral, a saber, a moral escrava

(cristã) que aspira pela igualdade, pela felicidade e tranqüilidade. Assim, para Nietzsche, as

políticas modernas socialistas ou democráticas são décadents, pois: “quando o cristão

condena, calunia e conspurca o ‘mundo’ fá-lo a partir do mesmo instinto pelo qual o

trabalhador socialista condena, calunia e conspurca a sociedade: O ‘juízo-final’ é, pois, a

doce consolação da vingança – a revolução, tal como a aguarda o trabalhador socialista,

também, só que mais diferida217”, pois, conclui Nietzsche, “para quê uma além, se não

fosse um meio de conspurcar o aquém?...218”. Uma “época forte”, de beleza e instinto

guerreio foi solapada por uma moral fraca, cristã, que postulou a vida a partir de virtudes

debilitadas:

216
NIETZSCHE, Götzen-Dämmerung [Crepúsculo dos Ídolos], Os reformadores da humanidade, 2, In: KSA,
vol. 6 p. 99. Tr. p. 56-57.
217
Ibid, Incursões de um Extemporâneo, 34, In: KSA, vol.6, p. 133. Tr. p. 91.
218
Ibid, Incursões de um Extemporâneo, 34, In: KSa, vol. 6, p. 133. Tr. p. 91.

87
As épocas fortes, as culturas nobres, vêem na compaixão, no “amor ao próximo”,
na falta de identidade e de amor próprio, algo de desprezível. – As épocas devem
medir-se pelas suas forças positivas – e, por conseguinte, a época do
Renascimento, tão dilapidadora e fatal, surge como a última grande época e nós,
nós modernos, com a angustiante solicitude por nós mesmos e o amor ao
próximo, com as nossas virtudes do trabalho, da falta de pretensões, da equidade,
da cientificidade – acumuladores, econômicos, maquinais – como uma época
fraca. As nossas virtudes são condicionadas, são provocadas pela debilidade... A
“igualdade”, uma certa semelhança factual que se exprime na teoria dos “direitos
iguais”, pertence essencialmente à decadência: o abismo entre o homem e
homem, entre classe e classe, a multiplicidade dos tipos, a vontade de ser quem se
é, de se distinguir, aquilo que eu chamo o pathos da distância, é próprio de toda
época forte. A força de tensão, a amplitude de tensão entre os extremos torna-se,
hoje, cada vez mais pequena – os próprios extremos acabam por se esfumar até à
similaridade... Todas as nossas teorias políticas e constituições estatais, sem
exceptuar o “império alemão”, são conseqüências, necessidades conseqüentes da
decadência; o efeito inconsciente da décadence apoderou-se do próprio ideal das
ciências particulares.[...]. A vida declinante, a diminuição de toda força
organizadora, isto é, separadora, que abre abismos, subordinante e
superordinante, formula-se, hoje, na sociologia, como ideal ... Os nossos
socialistas são décadents219.

Parece assim, demonstrado, de que maneira Nietzsche entende os valores da

política moderna como princípios de uma moral fraca e decadente, balizada pelos ideais

cristãos que pregam a igualdade e a limitação das forças instintivas da vida. A democracia

moderna pretende uma política, como também desejou Hobbes, em que os opostos tornam-

se igualdade, a tensão torna-se tranqüilidade, a força torna-se compaixão e falta de

pretensão e a vida vira presa dos instintos fracos que tendem para a mesmice. Por isso, a

diferença de objetivos na filosofia de Hobbes e de Nietzsche: busca o autor de Leviatã

impor a desigualdade para preservar a vida; Nietzsche reflete na luta de forças em vistas a

uma transvaloração dos valores, um constante vir a ser, em que não há espaço para a

igualdade tal como pretendem os ideais cristãos e políticos (democráticos) de hoje.

219
Ibid, Incursões de um Extemporâneo, 37, In: KSA, vol, 6, p. 138. Tr. p. 96.

88
2.3 – AUTOCONSERVAÇÃO e AUTO-SUPERAÇÃO

Apontamos na seção anterior que o poder é um tema caro tanto na filosofia de

Hobbes quanto na filosofia de Nietzsche, até mesmo com algumas proximidades relevantes

entre os dois filósofos. No entanto, parece-nos necessário delimitar esta aproximação a um

espaço restrito a partir do qual não é mais possível convergir. Isto porque, como vimos na

seção anterior, Hobbes preocupa-se, sobretudo, em erigir um Estado que tenha como meta

principal a conservação da espécie. Em poucas palavras isso significa que, para o autor de

O Leviatã, o Estado deve garantir a supressão do conflito, da tensão que havia entre os

homens no estado de natureza, estabelecendo a paz na sociedade. Em oposição, Nietzsche

pretende, sobretudo, a auto-superação dos valores morais, o vir a ser de uma política

voltada à grandeza da cultura (ético-estética), e não à conservação da espécie.

Não é o caso, todavia, de afirmar que na filosofia nietzscheana o instinto de

autoconservação é preterido pela auto-superação, mas estabelecer, conforme a necessidade,

de que maneira a auto-superação deve prevalecer sobre o instinto de autoconservação. Há

uma evolução do estatuto do instinto da autoconservação que, segundo Assoun220,

consuma-se no texto A Gaia Ciência, de modo que o que era instinto fundamental torna-se

uma limitação do “verdadeiro instinto fundamental da vida”, como podemos perceber da

leitura do aforismo 349: “Querer preservar a si mesmo é expressão de um estado indigente,

de uma limitação do verdadeiro instinto fundamental da vida, que tende à expansão do

220
De acordo com a explicação de Assoun (1989, p. 151), no texto Freud e Nietzsche: Semelhanças e
Dessemelhanças, “assistimos, no entanto, a uma evolução clara e espetacular do estatuto deste instinto de
autoconservação em Nietzsche. Esta consuma-se em A Gaia Ciência,..., o que era instinto fundamental torna-
se então uma redução do instinto fundamental, doravante localizado na extensão de poder”.

89
poder e, assim querendo, muitas vezes questiona e sacrifica a autoconservação221”. Ainda

no mesmo aforismo, Nietzsche afirma que o instinto de conservação da vida é sintomático

para alguns filósofos, como Spinoza, que devido a sua saúde precária (tuberculose), tinha

que considerar como decisivo justamente este instinto, a saber, um instinto de homens “em

estado de indigência”. Contudo, acrescenta Nietzsche, “na natureza não predomina a

indigência, mas a abundância, o desperdício, chegando mesmo ao absurdo. A luta pela

existência é apenas uma exceção, uma temporária restrição da vontade de vida222”, uma vez

que para o filósofo “a luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderância, de

crescimento e expansão, de poder, conforme a vontade de poder, que é justamente vontade

de vida223”.

Há que se observar que a crítica nietzscheana acerca do instinto de

autoconservação pretende alcançar também a garantia científica do darwinismo, que se

apresenta na filosofia de Nietzsche como um conceito reativo utilitarista, centrado nas

noções de adaptação, conservação e reprodução, tanto no que diz respeito ao mundo

orgânico, quanto histórico e cultural. A autoconservação é, deste modo, um desejo da

escola darwinista e situa-se “em desfavor dos fortes, dos privilegiados, das exceções

felizes224”. Sendo a crítica nietzscheana ao instinto de conservação contemporânea ao

conceito de vontade de poder, eis que Nietzsche estabelece a exigência de um princípio de

expansão, de exploração, em detrimento ao instinto de conservação. Assim, em Para Além

de bem e Mal, Nietzsche adverte que “os fisiólogos deveriam refletir, antes de estabelecer o

221
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [A Gaia Ciência], 349, vol. 3, p. 585. Tr. p. 243.
222
Ibid, 349, In: KSA, vol. 3, p. 585. Tr. p. 243-244
223
Ibid, 349, In: KSA, vol. 3, p. 586. Tr. p. 244.
224
NIETZSCHE, Götzsen-Dämmerung [Crepúsculo dos ídolos], Incursões de um extemporâneo, 14, In: KSA,
vol. 6, p. 120. Tr. p. 79.

90
impulso de autoconservação como o impulso cardinal de um ser orgânico225”. Isto significa

que existe alguma força que age antes do próprio instinto de conservação, pois “uma

criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força226”.

Destarte, não nos parece que seja a negação do instinto de autoconservação o

objetivo de Nietzsche, mas a compreensão de que não é este instinto a regra da vida, pois a

vida é vontade de poder. Em Para além de bem e mal podemos observar que Nietzsche

pretende, para alcançar um novo sentido (extramoral) para a cultura, uma política que se

justifique pela “grande economia do todo” em oposição a um “otimismo econômico”

baseado em valores instrumentais e utilitários de um igualitarismo uniformizador - valor

gregário da autoconservação - que caminha para o crescente prejuízo de cada um, o que

dificulta a compreensão do homem moderno para a “economia global da vida”:

Supondo, porém, que alguém tome os afetos de ódio, inveja, cupidez, ânsia de
domínio, como afetos que condicionam a vida, como algo que tem de estar
presente, por princípio e de modo essencial, na economia global da vida, e em
conseqüência deve ser realçado, se a vida é para ser realçada – esse alguém
sofrerá com tal orientação do seu julgamento como quem sofre de enjôo do mar.
No entanto, mesmo essa hipótese está longe de ser a mais dolorosa e mais
estranha nesse desmesurado, quase inexplorável reino de conhecimentos
perigosos; e existe, de fato, uma centena de boas razões para que dele mantenha
distância todo aquele que – puder!227.

A “economia global da vida” insere-se tanto na concepção extramoral quanto na

crítica política nietzscheana dirigida aos afetos de uma unidade gregária que não se sujeita a

serviço de uma “economia global da vida”, mas à conquista de benefícios particulares que

condicionam a vida moderna a partir de valores decadentes que pretendem, sobretudo, um

nivelamento massificador. A concepção política nietzscheana acerca da “economia do

todo” complementa dois relevantes aspectos já analisados, a saber, que para Nietzsche a

225
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Bose [Para além de bem e mal], 13, In: KSA: vol. 5, p. 27. Tr. p. 20.
226
Ibid, 13, In: KSA: vol. 5, p. 27. Tr. p. 20.
227
Ibid, 23, In: KSA, vol.5, p. 38. Tr. p. 29.

91
vida deve ser compreendida como unidade e necessidade228, ou seja, um todo hierarquizado

que tem por objetivo a produção de uma cultura que até agora não foi atingida, em um

processo de auto-superação constante na promoção de um tipo homem excepcional, pelo

qual todo o resto deve se engajar229. Assim, a capacidade de refletir além do indivíduo da

política liberal atomizada, é pensar na sociedade em termos de unidade e necessidade, que

pretende superar a universalização das instituições democráticas e, conseqüentemente, o

nivelamento e a igualização da humanidade. A auto-superação está, portanto, estreitamente

relacionada à compreensão da vida em termos de vontade de poder, ou seja, exploração,

opressão e abuso de forças. Em virtude disto, a auto-superação deve ter valor

preponderante, pois, como afirma Nietzsche em Para a Genealogia da Moral: “exigir da

força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer,

um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo como

exigir da fraqueza que se expresse como força230”.

A autoconservação é apenas uma das “mais freqüentes conseqüências da

vontade de poder”, que é um mais, um crescer, como declara Zaratustra: “eu amo os que

não desejam conservar-se. De todo coração, amo os que estão no acaso: porque vão a

caminho do outro lado231”. Ainda, no texto Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche afirma: “No

tocante à famosa ‘luta pela sobrevivência’, parece-me, por agora, mais afirmada do que

228
Como afirma Ansell-Pearson: “Com a afirmação da ‘grande economia do todo’, Nietzsche convida-nos a
pensar sobre a vida além do ponto de vista do juízo moral fixo e absoluto. Devemos reconhecer que tudo é
uma unidade e necessidade. Pensar ‘acima’ ou ‘além’ de si mesmo é empregar criativa, não moralmente (onde
a moralidade implica uma ‘economia restritiva da vida’, oposta a uma de caráter ‘geral’) a paixão erótica, ou
pathos, que é a vontade de poder. É mediante a afirmação da economia geral da vida que um indivíduo atinge
uma perspectiva de vida que fica ‘além do bem e do mal’”. In: Nietzsche como pensador político: uma
introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1997, p. 60-61.
229
Este tema será melhor analisado no capítulo 3.
230
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], I, 13, In: KSA, vol. 5, p. 279. Tr.
p. 36.
231
NIETZSCHE, Zaratustra, terceira parte, Das velhas e novas tábuas, 6, In: KSA, vol. 4, p. 251. Tr. p. 238.

92
provada. Ocorre, mas como exceção; o aspecto global da vida não é o estado de

necessidade, a situação de fome, mas antes a riqueza, a abundância, e até a dilapidação

absurda, - onde se luta, combate-se pelo poder232”.

Muito próxima da análise presente no aforismo 23 de Para além de bem e mal, é

o aforismo 13, da primeira dissertação de Para a Genealogia da Moral, no qual Nietzsche

afirma: “não é de espantar que os afetos entranhados que ardem ocultos, ódio e vingança,

tirem proveito dessa crença senão a de que o forte é livre para ser fraco, e a ave de rapina

livre para ser ovelha233”, e dessa inversão de valores decorrente da impotência do rebanho

“por um instinto de autoconservação, de auto-afirmação, no qual cada mentira costuma

purificar-se, essa espécie de homem necessita crer no ‘sujeito’ indiferente e livre para

escolher234”. O princípio da autoconservação mostra-se eficaz também, afirma Nietzsche,

para o ideal ascético, pois “o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma

vida que degenera, a qual busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência”235,

assim “a vida luta nele e através dele com a morte, contra a morte, o ideal ascético é um

artifício para a preservação da vida236”. O sacerdote ascético representa aspiração a uma

outra vida, o desejo de estar em outro lugar, “mas precisamente o poder do seu desejo é o

grilhão que o prende aqui; precisamente por isso ele se torna o instrumento que deve

trabalhar para a criação de condições mais propícias para o ser-aqui e o ser-homem237”,

com este poder o sacerdote ascético “mantém apegado à vida todo o rebanho de

malogrados, desgraçados, frustrados, deformados, sofredores de toda espécie, ao colocar-se

232
NIETZSCHE, Götzsen-Dämmerung [Crepúsculo dos ídolos], Incursões de um extemporâneo, 14, In: KSA,
vol. 6, p. 120. Tr. p. 78-79.
233
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], I, 13, In: KSA, vol. 5 p. 280. Tr.
p. 36-37.
234
Ibid, I, 13, In: KSA, vol. 5, p. 280. Tr. p. 37.
235
Ibid, III, 13, In: KSA, vol. 5, p. 366. Tr. p. 109.
236
Ibid, III, 13, In: KSA, vol. 5, p. 366. Tr. p. 110.
237
Ibid, III, 13, In: KSA, vol. 5 p. 366. Tr. p. 110.

93
instintivamente à sua frente como pastor238”. Portanto, o sacerdote ascético, “este aparente

inimigo da vida, este negador – ele exatamente está entre as potências conservadoras e

afirmadoras da vida...”239.

Sem o instinto de conservação da vida pregado pelos ideais ascéticos não

haveria vida para os “sofredores de toda espécie”. Não que este entendimento acerca do

ideal ascético consista em uma apologia nietzscheana à conservação da vida, mas, como

afirmamos anteriormente, não é a recusa a este instinto que pretende Nietzsche. O instinto

de autoconservação se faz presente na filosofia de Nietzsche como exceção da regra, a

saber, da vida como vontade de poder, em um movimento constante de auto-superação e vir

a ser. Ilustrativa é a passagem em Ecce Homo, na qual Nietzsche confere clareza filosófica

ao estar doente, que é “em si uma forma de ressentimento. – Contra isso o doente tem

apenas um grande remédio – eu o chamo de fatalismo russo, aquele fatalismo sem revolta,

com o qual o soldado russo para quem a campanha torna-se muito dura finalmente deita-se

na neve240”. O ato de deitar-se não é uma entrega sem sentido, “a grande sensatez desse

fatalismo, que nem sempre é apenas coragem da morte, mas conservação da vida nas

circunstâncias vitais mais perigosas, é a diminuição do metabolismo, seu retardamento,

uma espécie de vontade de hibernação241”. Assim, o fatalismo russo é um caso de exceção,

no qual é imprescindível conservar a vida por uma lógica racional, a saber: “porque nos

consumiríamos muito rapidamente se reagíssemos, não reagimos mais: esta é a lógica242”.

238
Ibid, III, 13, In: KSA, vol, 5, p. 366. Tr. p. 110
239
Ibid, III, 13, In: KSA, vol. 5, p. 366. Tr. p. 110
240
NIETZSCHE, Ecce Homo, Por que sou tão sábio, 6, In: KSA, vol.6, p. 272. Tr. p. 53.
241
Ibid, Por que sou tão sábio, 6, In: KSA, vol. 6, p. 272. Tr. p. 53.
242
Ibid, Por que sou tão sábio, 6, In: KSA, vol. 6, p. 272. Tr. p. 53.

94
O instinto de autoconservação é “precisamente a essência da linhagem e

rebanho que somos243”, não por amor à espécie, mas simplesmente porque não há nada

“mais antigo, mais inexorável, mais insuperável que esse instinto244”. O que faz Nietzsche

afirmar que “não importa se contemplo os homens com olhar bom ou ruim, sempre os vejo

ocupados numa só tarefa, todos e cada um em particular: fazendo o que ajuda à

conservação da espécie humana245”. Desta forma, “até a pessoa mais nociva pode ser a mais

útil, no que toca à conservação da espécie; pois mantém em si ou, por sua influência, em

outras pessoas, impulsos sem os quais a humanidade teria há muito se estiolado e

corrompido246”. Assim, a autoconservação é, para Nietzsche - em contraposição à auto-

superação, ou mesmo um momento anterior à possibilidade efetiva de realizar a auto-

superação - a “economia da conservação da espécie, certamente uma economia muito

pródiga, dispendiosa e, no conjunto, extremamente insensata: - mas que, de modo

comprovado, até o momento conservou nossa estirpe247”. O homem tornou-se gradualmente

“um animal fantástico, que mais que qualquer outro tem de preencher uma condição

existencial: ele tem de acreditar saber, de quando em quando, por que existe, sua espécie

não pode florescer sem uma periódica confiança na vida!248”. Mas, afirma Nietzsche, “o

mais cauteloso dos amigos do humano acrescentará: ‘Não apenas o riso e a gaia sabedoria,

mas também o trágico e sua sublime desrazão fazem partes dos meios e requisitos para a

conservação da espécie’!249”. Assim, para Nietzsche, o instinto de autoconservação

preservou nossa espécie, mas a vida não deve se justificar como conservação, pois a vida na

243
NIETZSCHE, Die fröliche Wissenschaft [A Gaia Ciência], 1, In: KSA, vol. 3 p. 369. Tr. p. 51.
244
Ibid, 1,In: KSA, vol. 3, p. 369. Tr. p. 51.
245
Ibid, 1, In: KSA, vol. 3, p. 369. Tr. p. 51.
246
Ibid, 1, In: KSA, vol. 3, p. 369. Tr. p. 51
247
Ibid, 1, In: KSA, vol.3, p. 369-370. Tr. p. 51.
248
Ibid, 1, In: KSA, vol. 3 p. 372. Tr. p. 53-54
249
Ibid, 1, In: KSA, vol. 3 p. 372. Tr. p. 54.

95
filosofia nietzscheana é (essencialmente) vontade de poder. Mesmo assim, paradoxalmente,

é desta conservação que Nietzsche vislumbra um novo começo: “as mesmas condições

sobre as quais surgirão, falando em termos gerias, uma nivelação e uma mediocrização do

homem – um animal de rebanho, útil, laborioso, utilizável e adestrado em muitas coisas -,

são apropriadas, em sumo grau, para dar origem a homens de exceção, de uma qualidade

perigosíssima e muitíssimo atraente”250, como veremos no capítulo seguinte.

250
NIETZSCHE, F. Jenseits von Gut und Böse [Para Além de Bem e Mal], 242, In: KSA, vol. 5, p. 182s. Tr.
p. 150.

96
CAPÍTULO 3

CRISTIANISMO E DEMOCRACIA: A DECADÊNCIA DA MODERNIDADE


POLÍTICA E A SUA SUPERAÇÃO

-Foi assim que há tempos, quando necessitei,


inventei para mim os “espíritos livres”, aos quais é
dedicado este livro melancólico-brioso que tem o
título de Humano, demasiado humano; não existem
esses “espíritos livres”, nunca existiram – mas
naquele tempo, como disse, eu precisava deles como
companhia, para manter a alma alegre em meio a
muitos males (doença, solidão, exílio, acedia,
inatividade): como valentes confrades fantasmas,
com os quais proseamos e rimos, quando disso temos
vontade, e que mandamos para o inferno, quando se
tornam entediantes - uma compensação para os
amigos que faltam. Que um dia poderão existir tais
espíritos livres, que a nossa Europa terá esses colegas
ágeis e audazes entre os seus filhos de amanhã, em
carne e osso e palpáveis, e não apenas, como para
mim, em forma de espectros e sombras de um
eremita: disso serei o último a duvidar. Já os vejo que
aparecem, gradual e lentamente; e talvez eu contribua
para apressar sua vinda, se descrever de antemão sob
que fados os vejo nascer, por quais caminhos
aparecer.251

3.1- O “último homem”

Nietzsche afirma, no aforismo 350 de A Gaia Ciência, que foi apenas com a

Revolução Francesa que foi colocado “o cetro, de maneira total e solene, nas mãos do

‘homem bom’ (da ovelha, do asno, do ganso e de todos os irremediavelmente rasos,

ruidosos e maduros para o hospício das ‘idéias modernas’)”252 e, assim, a propagação dos

ideais revolucionários de uma política moderna que se formava, a saber, “liberdade,

251
NIETZSCHE, Menschliches, Allzumenschliches [Humano, demasiado humano] 2, prólogo, In: KSA, vol.
2, p. 15. Tr. p. 8-9.
252
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [A Gaia Ciência], 350, In: KSA, vol. 3, p. 586. Tr. p. 244.

97
fraternidade e igualdade”, continuaram atados a uma tradição de mais de dois mil anos: dos

valores cristãos. Este “progresso”, que entre os europeus de hoje é concebido como a boa

“humanidade”, ostentada como a grande virtude, é a grande “Ironia para com aqueles que

acreditam o cristianismo superado pelas modernas ciências naturais. Os juízos de valor

cristãos não foram, em absoluto, superados por elas. ‘Cristo na cruz’ é ainda o símbolo

mais sublime253”. O homem moderno acredita no “progresso”, mas esta “época que gosta

de ser chamada a mais humana, a mais suave, a mais justa que o Sol até hoje iluminou”254,

Nietzsche vê “apenas a expressão – e também a mascarada – do profundo enfraquecimento,

da fadiga, da idade, da força que decai!255”. Para o filósofo alemão, o canto do progresso

por: “‘direitos iguais’, ‘sociedade livre’, ‘nada de senhores e de servos’, isso não nos

atrai!”256, pois desejar que o “reino da concórdia seja estabelecido na Terra257”, seria o

mesmo que “o reino da mais profunda mediocrização e chineseria258”, o reino da pequena

política.

Giacóia (1999, p. 151) esclarece, no texto Crítica da moral como política em

Nietzsche, que a “pequena política” significa, tanto para o jovem quanto para o último

Nietzsche, “a confusão entre nacionalismo, imperialismo econômico ou militar, e

identidade, grandeza cultural de um povo”. “Pequena política” também significa os ideais

essencialmente democráticos que pretendem a felicidade, a segurança, ou seja, a ausência

de conflito e de dor. Essa identificação está presente no otimismo econômico do “homem

253
NIETZSCHE, Fragmento póstumo do outono de 1885 – outono de 1886, 2 [96], In: KSA, vol. 12, p. 108.
Tr. Oswaldo Giacóia, In: Crítica da Moral como Política em Nietzsche, p. 150
254
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [A Gaia Ciência], 377, In: KSA, vol. 3, p. 629
255
Ibid, 377, In: KSA, vol. 3, p. 629. Tr. p. 280.
256
Ibid, 377, In: KSA, vol. 3, p. 629. Tr. p. 280.
257
Ibid, 377, In: KSA, vol. 3, p. 629. Tr. p. 280.
258
Ibid, 377, In: KSA, vol. 3, p. 629. Tr. p. 280.

98
moderno”259, o indivíduo do utilitarismo, dos direitos iguais, que pretende um Estado que

possa servi-lo, sobretudo no que diz respeito ao bem estar social e à ausência de conflitos

Esse tipo homem da democracia moderna é caricaturado por Nietzsche como o

“último homem” que, de acordo com a explicação de Giacóia (1999, p. 152), é o homem

que se “interpreta como o fim da história, como o telos até então oculto e ora manifestado

do curso do mundo, como se toda história universal não fosse senão o prelúdio e a gestação

do advento de sua felicidade”, enfim assegurada num pacífico “reinado universal da razão”,

no qual acredita-se no fim de toda desigualdade, injustiça e sofrimento. O “último homem”

é, acima de tudo, incapaz de suportar a dor, é o homem da moral escrava, sua necessidade

consiste em justamente criar subterfúgios para amenizar a tragédia da existência, e por isso

seu ideal de felicidade está na moderação, no igualitarismo que suprime qualquer

manifestação de força contrária a seu ideal de felicidade e a sua verdade:

Ai! Chega o tempo do homem mais desprezível, que não pode mais desprezar a si
mesmo. Olhai! Eu vos mostro o último homem. Que é amor? Que é criação? Que
é anelo? Que é estrela – assim pergunta o último homem, e pestaneja. A terra se
tornou pequena então, e sobre ela saltita o último homem, que torna tudo
pequeno. Sua estirpe é indestrutível, como a pulga; o último homem é o que mais
tempo vive. ‘Nós inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens, e
pestanejam. Abandonaram as regiões onde é duro viver: pois a gente precisa de
calor. A gente ama inclusive o vizinho e se esfrega nele, pois a gente precisa de
calor. Adoecer e desconfiar, eles consideram perigoso: a gente caminha com
cuidado. Louco é quem continua tropeçando com pedras e com homens! Um
pouco de veneno de vez em quando: isso produz sonhos agradáveis. E muito
veneno no final, para ter uma morte agradável. A gente continua trabalhando,
pois o trabalho é um entretenimento. Mas evitamos que o entretenimento canse.
Já não nos tornamos nem pobres nem ricos: as duas coisas são demasiado
molestas. Quem ainda quer governar? Quem ainda obedecer? Ambas as coisas
são demasiado molestas.260

O “último homem” confundiu felicidade com segurança e bem-estar, reduziu a

vida a uma economia mínima de forças, a uma economia da espécie que consiste na

259
Tema analisado no capítulo 2, seção 2.3.
260
NIETZSCHE, Also sprach Zaratustra [Assim falou Zaratustra], prólogo 5, In: KSA, vol. 4, p. 19s. Tr. de
Oswaldo Giacóia Júnior, In: Crítica da Moral como Política em Nietzsche, p. 152-153.

99
redução de contrastes e diferenças, a um igualitarismo de rebanho. “Quem ainda governar?

Quem ainda obedecer?”, são questões pertinentes a uma política uniforme, igualitária, de

um governo popular, que suprimiu as diferenças e as distância entre um homem e outro.

Para Giacóia (1999, p. 153) “a felicidade inventada pelo último homem acoberta a

hipocrisia de uma vontade de poder inconsciente de si mesma, ou seja, a inocente tirania da

uniformidade, o despotismo dos ‘mais estúpidos e medíocres’, que sufoca e anatemiza a

singularidade encarnada em toda verdadeira e grande individualidade”. Desta forma, a

prática uniformizadora da democracia moderna tem, para Nietzsche, um propósito

específico de governo, a saber: “Nenhum pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo,

todos são iguais: quem sente de outra maneira vai voluntariamente para o hospício [...]

‘Nós inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens e pestanejam”261.

O “último homem” representa a principal crítica nietzscheana à modernidade,

além de ser o homem do igualitarismo uniformizador, é o homem da utilidade mercantil,

figura singular do liberalismo burguês. O apequenamento do homem moderno Nietzsche

denomina de “chinesismo superior”. Esta raça consiste, essencialmente, em nivelar,

equiparar as diferenças de tal forma que esses valores passam a ser virtudes, é a

racionalização de uma ideologia utilitarista de acomodação, que gostaria de alcançar a

“universal felicidade de rebanho em pastos verdes”:

Em todos os países da Europa, e também da América, existe atualmente quem


abuse desse nome, uma espécie bem limitada de espíritos, gente prisioneira e
agrilhoada, que quer mais ou menos o oposto daquilo que está em nosso intento e
nosso instinto – sem falar que, em relação aos novos filósofos que surgem, eles
com certeza serão portas fechadas e janelas travadas. Em suma, e
lamentavelmente, eles são niveladores, esses falsamente chamados “espíritos
livres” – escravos eloqüentes e folhetinescos do gosto democrático e sua “idéias
modernas”; todos eles homens sem solidão, sem solidão própria, rapazes
bonzinhos e desajeitados, a quem não se pode negar coragem nem costumes
respeitáveis, mas que são cativos e ridiculamente superficiais, sobretudo em sua
tendência básica de ver, nas formas da velha sociedade até agora existente, a

261
Ibid, prólogo 5, In: KSA, vol.4, p. 20. Tr. p. 153.

100
causa de toda miséria e falência humana: com o que a verdade vem ficar
alegremente de cabeça para baixo! O que eles gostariam de perseguir com todas
as forças é a universal felicidade do rebanho em pasto verde, com segurança,
ausência de perigo, bem-estar e facilidade para todos; suas duas doutrinas e
cantigas mais bem lembradas são “igualdade de direitos” e “compaixão pelos que
sofrem” – e o sofrimento mesmo é visto por eles como algo que se deve
262
abolir.

A crítica nietzscheana à figura do “último homem” pretende despertar a atenção

para a decadência da humanidade que com o igualitarismo uniformizador perdeu toda a sua

grandeza e singularidade e tornou-se refém da mediocridade do rebanho uniforme, dos

prazeres utilitaristas. Esse diagnóstico encontramos formulado no aforismo 202 de Para

além de bem e mal, que esclarece a atuação de uma vontade de poder específica e

responsável pelo rebaixamento do homem moderno. Isto porque, como afirmamos (seção

2.2), na democracia moderna não deixa de haver poder ao proclamar pela igualdade de

todos, há uma vontade de poder atuante, a saber, a vontade de poder da moral de rebanho

que consiste, sobretudo, no enfraquecimento da vontade de poder aristocrática.

Descobrimos que no tocante aos principais juízos morais a Europa se pôs de


acordo, e também os países de sua influência: evidentemente se “sabe”, na
Europa, o que Sócrates acreditava não saber, o que a velha e famosa serpente
prometeu ensinar: hoje se “sabe” o que é bem e mal. Deve então soar duro e
pouco agradável aos ouvidos, se de novo insistimos: o que aqui julga saber, o que
aqui se glorifica com seu louvor e reproche, e se qualifica de bom, é o instinto do
animal de rebanho homem: o qual irrompeu e adquiriu prevalência e
predominância sobre os demais instintos, fazendo-o cada vez mais, conforme a
crescente e assimilação fisiológica de que é sintoma. Moral é hoje, na Europa,
moral de animal de rebanho: - logo, tal como entendemos as coisas, apenas uma
espécie de moral humana, ao lado da qual, antes da qual, depois da qual muitas
outras morais, sobretudo mais elevadas, são ou deveriam ser possíveis.263

A moral de rebanho, a laicização da moral cristã, tornou-se o estatuto legítimo

da ordem social e política no mundo moderno. A glorificação do que é “bom” é a

assimilação “fisiológica” de uma moral, além da qual nenhuma moral deve existir. Desta

262
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Bose [Para além de bem e mal], 44, In: KSA, vol.5 p. 60-61. Tr. p. 47-
48.
263
Ibid, 202, In: KSA, vol. 5, p. 124. Tr. p. 101.

101
maneira, “a mentalidade modesta, equânime, submissa, igualitária, a mediocridade dos

desejos obtêm fama e honra morais”264. A tentativa do liberalismo burguês consiste em,

primeiramente, a universalização dos valores democráticos e, conseqüentemente, o

nivelamento e a igualização da humanidade até alcançar a forma de “rebanho autônomo”.

O apequenamento do homem é a conservação dos instintos que pretende a

neutralização das forças, a autoconservação da espécie. É, assim, uma vontade de poder

fraca porque consiste em eliminar a vontade de poder (aristocrática) violenta e selvagem,

resguardando a vida de qualquer manifestação que seja um além, um crescer e modificar-

se. O trabalho de propiciar a decadência “E destroçar os fortes, debilitar as grandes

esperanças, tornar suspeita a felicidade da beleza, dobrar tudo o que era altivo, viril,

conquistador, dominador, todos os instintos próprios dos mais elevado e mais bem logrado

tipo ‘homem’, transformando-os em incerteza, tormento de consciência, autodestruição”265;

foi uma tarefa que “a Igreja se impôs e teve que se impor, até que, em sua estimativa,

‘extramundano’, ‘dessensual’e ‘homem superior’ se fundiram num só sentimento”266. Desta

forma, “esses homens, com sua ‘igualdade perante Deus’”267, governaram o destino da

Europa, “até que finalmente se obteve uma espécie diminuída, quase ridícula, um animal de

rebanho, um ser de boa vontade, doentio e medíocre, o europeu de hoje...”268.

Para Nietzsche, a crença em Deus é requisito para que todos os “espiritualmente

limitados269” possam pregar pela igualdade, pois “eles lutam pela ‘igualdade de todos

perante Deus’”270, e com a ajuda da religião cristã a moral de rebanho foi capaz de alcançar

264
Ibid, 201, In: KSA, vol. 5, p. 123. Tr. p. 100.
265
Ibid, 62, In: KSA, vol. 5, p. 82. Tr. p. 66.
266
Ibid, 62, In: KSA, vol. 5, p. 82. Tr. p. 66.
267
Ibid, 62, In: KSA, vol. 5, p. 83. Tr. p. 66.
268
Ibid, 62, In: KSA, vol. 5, p. 83. Tr. p. 66.
269
Ibid, 219, In: KSA, vol. 5, p. 154. Tr. p. 125.
270
Ibid, 219, In: KSA, vol. 5, p. 154. Tr. p. 125.

102
o status de a moral, que julga saber que é bem e mal. O desenvolvimento do movimento

democrático em direção a um igualitarismo cada vez mais massificador, como o socialismo

e o anarquismo, é sintoma da estagnação, da mediocridade, que luta contra toda

possibilidade de uma nova moral, “sobretudo mais elevadas”271, e que afirma, “obstinada e

inexorável: ‘Eu sou a moral mesma, e nada além é moral!’”272. Assim, “nessa imbricação

entre a ideologia do igualitarismo uniforme e sua fundamentação político-religiosa pela

moral cristã que se esclarece o significado da figura nietzscheana do ‘último homem’”273.

Na boca de Zaratustra o “último homem” é o que “há de mais desprezível”274.

Como se suas virtudes fossem algo útil e desejável, a saber, a ingenuidade, a simplicidade,

o espírito coletivo, a modéstia, o amor ao próximo, a abnegação e a submissão a Deus. Nas

palavras de Nietzsche: “Modesto, aplicado, benévolo, moderado, cheio de paz e

cordialidade: assim quereis o homem? É assim que pensais vosso ‘homem bom’? Mas o

que se alcança com isso é apenas o chinês do futuro, o ‘carneiro de Cristo’, o socialista

consumado”275.

O homem decadente destaca-se, particularmente, pela obediência, é o indivíduo

preparado para ser comandado, e não comandar. A obediência é, para Nietzsche, o traço

fundamental da moral de rebanho, do instinto gregário, e a característica essencial do

“homem moderno”. Para Nietzsche, “desde que existem homens, houve também rebanhos

de homens (clãs, comunidades, tribos, povos, Estados, Igrejas), e sempre muitos que

271
Ibid, 202, In: KSA, vol. 5, p. 124.Tr. p. 101.
272
Ibid, 202, In: KSA, vol. 5, p. 124. Tr. p. 101.
273
GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Friedrich Nietzsche: A “Grande Política” Fragmentos. Clássicos da
Filosofia: Cadernos de tradução nº 3. Introdução, seleção e tradução Oswaldo Giacóia Júnior. IFCH:
UNICAMP, 2002, p. 11.
274
NIETZSCHE, F. Also sprach Zarathustra [Assim falou Zaratustra], Prólogo, 5, In: KSA, vol. vol. 4, p.
19s. Tr. p. 40.
275
NIETZSCHE, Fragmentos póstumos, 16 [13], In: KSA, vol. 13, p. 486. Tr. Carlos Alberto Ribeiro de
Moura, In: Nietzsche: Civilização e Cultura, p. 214.

103
obedeceram em relação ao pequeno número dos que mandaram”276, portanto, a obediência

foi até hoje longamente cultivada e, por isso, “é justo supor que via de regra é agora inata

em cada um a necessidade de obedecer, como uma espécie de consciência formal que diz:

‘você deve absolutamente fazer isso, e absolutamente se abster daquilo’, em suma, ‘você

deve’”277. Assim, “a singular estreiteza da evolução humana, seu caráter hesitante, lento,

com freqüência regressivo e tortuoso, deve-se a que o instinto gregário da obediência é

transmitido mais facilmente como herança, em detrimento da arte de mandar”278. Na

Europa de hoje, esses “bichos-de-rebanho” não fazem outra coisa senão apresentar o

homem de rebanho “como a única espécie de homem permitida, e glorifica os seus

atributos, que o tornaram manso, tratável e útil ao rebanho”279. A crítica de Nietzsche ao

prolongamento da moral cristã nas políticas modernas, sobretudo à democracia, tornar-se

ainda mais contemporânea quando ele afirma que “nos casos em que se acredita não poder

dispensar o chefe e carneiro-guia, fazem-se hoje muitas tentativas de substituir os

comandantes pela soma acumulada de homens de rebanho sagazes: eis a origem de todas as

Constituições representativas, por exemplo”280.

O juízo de valor que vigora no “progresso” da humanidade é aquele útil ao

rebanho, “dirigido apenas à preservação da comunidade”281, e que considera como “imoral

precisamente e exclusivamente o que parece perigoso para a subsistência da

comunidade”282, e assim “a felicidade lhe parece, de acordo com uma medicina e maneira

de pensar tranqüilizante (epicúrea ou cristã, por exemplo), sobretudo a felicidade do

276
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 199, In: KSA, vol. 5, p. 119. Tr. p.
97.
277
Ibid, 199, In: KSA, vol. 5, p. 199. Tr. p. 97.
278
Ibid, 199, In: KSA, vol. 5, p. 199. Tr. p. 97.
279
Ibid, 199, In: KSA, vol. 5, p. 120. Tr. p. 98.
280
Ibid, 199, In: KSA, vol. 5, p. 120. Tr. p. 98.
281
Ibid, 201, In: KSA, vol. 5, p. 121. Tr. p. 99.
282
Ibid, 201, In: KSA, vol. 5, p. 121. Tr. p. 99.

104
repouso, da não-perturbação, da saciedade, da unidade enfim alcançada”283. Desta forma, o

progresso almejado pelo homem “moderno” segue a tradição cristã, e “Tudo somado, o

‘amor ao próximo’ é sempre algo secundário, em parte convencional e arbitrário-ilusório,

em relação ao temor ao próximo”284. Qualquer manifestação superior e independente é

percebida, para moral de rebanho, como perigo, pois “tudo o que ergue o indivíduo acima

do rebanho e infunde temor ao próximo é doravante apelidado de mau”285.

Conseqüentemente, a questão relevante para o “progresso” do homem “moderno”, bem

como para o ideal ascético, é a mesma, a saber, eliminar qualquer possibilidade de

grandeza, de agressividade, exploração, de sujeição do mais fraco ao mais forte, não

(especificamente) por amor ao próximo, mas porque a moral de rebanho precisa se

resguardar, prevenir-se da moral aristocrática, e nada mais eficaz do que instituir como a

única moral possível a que pretende igualar na mesma medida de forças todos os homens.

Eis aqui o ideário cristão como promotor da debilidade do homem, da

domesticação dos instintos de maior grandeza e bravura, para a produção de um indivíduo

amansado, domesticado. Diante desta constatação (reveladora), podemos nos questionar de

que maneira a nossa civilização é, para Nietzsche, apenas a continuação dos velhos ideais

cristãos, da domesticação iniciada pelo cristianismo, sobretudo as conseqüências do

igualitarismo uniformizante tal como pretende a democracia “moderna”, como veremos na

seção seguinte; bem como (seção 3.3) as possibilidades de superação e transvaloração

desses valores decadentes que conduzem ao rebaixamento e apequenamento do homem

“moderno”.

283
Ibid, 200, In: KSA, vol. 5, p. 121. Tr. p. 98.
284
Ibid, 201, In: KSA, vol. 5, p. 122. Tr. p. 99.
285
Ibid, 201, In: KSA, vol. 5, p. 123. Tr. p. 100.

105
3.2- O movimento democrático: herança do movimento cristão

Ao auto proclamar-se moral absoluta a moral de rebanho, dos instintos

gregários, prolonga na civilização moderna a busca por um ideal de homem que seja a

imagem e a semelhança de seu “criador”. Subsiste, portanto, a crença de um “progresso”

que é, para Nietzsche, apenas a afirmação da moral cristã. Essa sobrevida dos valores

ascéticos no “progresso” da humanidade explica as críticas ferozes de Nietzsche à política

moderna, como o socialismo e a democracia, que devem ser compreendidas como figuras

do prolongamento do cristianismo, que adquiriram preponderância com a Revolução

Francesa, como vimos na seção anterior.

Desta forma, para Nietzsche, são os princípios e as “virtudes” cristãs que

permanecem no ideário sócio-político moderno e, assim, “com a ajuda de uma religião que

satisfez e adulou os mais sublimes desejos do animal de rebanho, chegou-se ao ponto de

encontrarmos até mesmo nas instituições políticas e sociais uma expressão cada vez mais

visível dessa moral: o movimento democrático constitui a herança do movimento

cristão”286. “Os cães anarquistas”287 que aparentemente se opõe ao ritmo “vagaroso e

sonolento”288 dos democratas e, “aos broncos e filosofastros e fanáticos da irmandade, que

se denominam socialistas e querem a ‘sociedade livre’, mas na verdade unânimes todos na

radical e instintiva inimizade a toda outra forma de sociedade que não a do rebanho

autônomo”289. Entre os possíveis rivais há uma essência em comum, a saber, o instinto

gregário, os mesmos valores da moral cristã e, por isso, são “unânimes na tenaz resistência

286
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 202, In: KSA, vol. 5, p. 124 - 125. Tr.
p. 102.
287
Ibid, 202, In: KSA, vol. 5, p. 125. Tr. p. 102.
288
Ibid, 202, In: KSA, vol. 5, p. 125. Tr. p. 102.
289
Ibid, 202, In: KSA, vol. 5, p. 125. Tr. p. 102.

106
a todo particular direito e privilégio”, sendo todos iguais ninguém mais precisa de direitos;

também são unânimes contra a justiça punitiva, compreendida como uma violência aos

mais fracos; “igualmente unânimes na religião da compaixão, na simpatia com tudo o que

sofre; todos unânimes na gritaria e na impaciência da compaixão, no ódio mortal ao

sofrimento, na quase feminina incapacidade de permanecer espectador; unânimes na crença

na moral da compaixão partilhada”290. Desta forma, a tarefa das políticas modernas

consiste em prolongar essa decadência de valores como forma de debilitação de toda

vontade de poder forte, aristocrática.

O projeto político da modernidade, que pretende estender de maneira

globalizada a igualdade da democracia como única forma de legitimidade ético-político,

reflete os valores de decadência e diminuição do homem, um “progresso” da humanidade

que se justifica a partir de uma diminuição do valor do homem. Para Nietzsche, o

movimento democrático não é “apenas uma forma de decadência das organizações

políticas, mas uma forma de ou diminuição do homem, sua mediocrização e rebaixamento

de valor”291 .

A igualdade entre os homens não tem, para Nietzsche, nenhum fundamento

natural, e por isso consiste em uma interpretação de uma vontade de poder, que remonta ao

cristianismo e tem nele a sua única garantia. A partir da crença de que todos são filhos de

Deus e, portanto, “como filho de Deus, cada um é igual a todos”292, o cristianismo passou a

semear o “veneno da doutrina dos direitos iguais”, e “fez uma guerra de morte a partir do

mais ocultos recantos dos maus instintos contra todo o sentimento de respeito e distância

290
Ibid, 202, In: KSA, vol. 5, p.125. Tr. p. 102.
291
Ibid, 203, In: KSA, vol. 5, p. 126. Tr. p. 103.
292
Ibid, 29, In: KSA, vol. 6, p. 200. Tr. p. 64.

107
entre um homem e outro homem, contra o pressuposto de todo crescimento da cultura”293.

Nesta guerra do cristianismo contra toda moral que não seja a moral de rebanho, “o

sentimento aristocrático foi o mais reconditamente minado pela mentira da igualdade das

almas”, pois o “cristianismo é uma insurreição de tudo o que rasteja contra tudo quanto está

elevado”294.

Assim, a política moderna não é senão a repetição dos mesmos valores da moral

cristã, pois “Quando se coloca o centro de gravidade da vida não na vida, mas no ‘além’ –

‘no nada’ -, tira-se da vida o seu centro de gravidade. A grande mentira da imortalidade

pessoal destrói toda a razão, toda a natureza do instinto”295, e tudo o que há no instinto de

grandeza, benéfico, vivificante, “tudo o que promete o futuro, suscita agora desconfiança”,

promovendo a domesticação e o apequenamento do homem. Para poder negar todo o

movimento de ascendência, de crescimento, de vir a ser, de diferença, beleza e auto-

afirmação, “era necessário que o instinto de ressentimento convertido em gênio fabricasse

para si próprio um outro mundo, onde essa afirmação da vida fosse considerada mal, o

reprovável por si”296. Esse tipo homem do cristianismo, bem como da democracia moderna,

aspira o poder da decadência, pois é “interesse vital dessa classe de homens tornar a

humanidade doente e perverter as noções de ‘bem’ e de ‘mal’, de ‘verdadeiro’ e de ‘falso’

num sentido mortal para a vida e infamante para o mundo”297.

Dito de outra forma, se a democracia moderna é herdeira dos valores cristãos, da

decadência do instinto gregário, da adaptação e conservação da espécie, foi com a

Revolução Francesa, como vimos no início da seção anterior, que o prolongamento do

293
Ibid, 43, In: KSA, vol. 6, p. 217-218. Tr. p. 79.
294
Ibid, 43, In: KSA, vol. 6, p. 218. Tr. p. 79.
295
Ibid, 43, In: KSA, vol. 6, p. 217. Tr. p. 78.
296
Ibid, 24, In: KSA, vol. 6, p. 192. Tr. p. 58.
297
Ibid, 24, In: KSA, vol. 6, p. 193. Tr. p. 58.

108
cristianismo legitimou-se como progresso humanitário dos valores gregários, a saber,

“liberdade”, “igualdade” e “fraternidade”. Assim, para Nietzsche, “Ao contrário do que se

afirma hoje, a humanidade não representa uma evolução para algo melhor, mais forte ou

mais elevado. O ‘progresso’ não passa de uma idéia moderna, ou seja, de uma idéia

falsa”298. O desenvolvimento da modernidade “não significa forçosamente elevar-se,

aperfeiçoar-se, fortalecer-se”299 . Se a tarefa de nossa civilização é a criação do homem

“bom”, altruísta, virtuoso por amar o próximo, igualitarista, seu produto final será um tipo

domesticado, manso e conservador da espécie. Mais nada será possível ao homem de

direitos iguais conquistar se ele continuar atado aos valores utilitaristas e cristãos. Não

podendo ir além de seus próprios valores morais o homem moderno irá conduzir a sua

própria degeneração. O diagnóstico de Nietzsche para o “progresso da humanidade” é

severo: a nossa civilização promove e intensifica a moral de rebanho, a diminuição do

homem é o perigo que está na “vontade de todos” e no “bem geral”.

Afinal de contas, todos eles querem que se dê razão à moralidade inglesa, na


medida em que justamente com ela é servida melhor a humanidade, ou “o
benefício geral”, “a felicidade da maioria”, não! a felicidade da Inglaterra; eles
querem provar a si mesmos, com todas as forças, que aspirar à felicidade inglesa,
quer dizer, a comfort [conforto] e fashion [estilo] (e, objetivo supremo, um lugar
no Parlamento), é também o caminho reto para a virtude, mais ainda, que toda
virtude até hoje havida no mundo consistiu precisamente em tal aspiração.
Nenhum desses graves animais de rebanho, de consciência agitada (que propõem
defender a causa do egoísmo como causa do bem-estar geral), quer saber e sentir
que o “bem-estar-geral” não é um ideal, uma meta, uma noção talvez apreensível,
mas apenas um vomitótio – que o que é justo para um não pode absolutamente
ser justo para outro, que a exigência de uma moral para todos é nociva
precisamente para os homens elevados, em suma, que existe uma hierarquia entre
homem e homem, e, em conseqüência, entre moral e moral.300

298
Ibid, 4, In: KSA, vol. 6, p. 171. Tr. p. 40.
299
Ibid, 4, In: KSA, vol. 6, p. 171. Tr. p. 41.
300
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 228, In: vol. 5, p. 164-165. Tr. p. 134.

109
Sobre nós modernos impera a virtude dos ideais cristãos. O que o homem do

“progresso” exclui da existência, a saber, a diferença, a distância, o pathos da distância, é a

possibilidade de uma existência ética e política de grandes e verdadeiras virtudes. A

tentativa global de nivelar o homem é o movimento em sentido inverso da auto-superação,

é o congelamento do tipo homem em uma figura medíocre e decadente. Nietzsche afirma,

no aforismo 203 de Para além de bem e mal, que a “degeneração global do homem,..., essa

degeneração e diminuição do homem, até tornar-se o perfeito animal de rebanho (ou, como

dizem eles, o homem da ‘sociedade livre’), essa animalização do homem em bicho-anão de

direitos e exigências iguais é possível”301. Mas, continua Nietzsche neste mesmo aforismo,

o homem “está ainda inesgotado para as grandes possibilidades”302, e quem refletiu, até o

fim, na decadência do homem em bicho anão de direitos e exigências iguais “conhece um

nojo a mais que os outros homens – e também, talvez, uma nova tarefa!”303. O ataque

estridente de Nietzsche à absorção completa do indivíduo pela moral de rebanho, que

suprimiu sua grandeza e singularidade tem, como contrapartida, a “grande política”, projeto

nietzscheano de superação da “pequena política” e dos valores decadentes do homem

Ocidental.

Assim, em oposição à moral (cristã) absoluta da modernidade, Nietzsche

apresenta uma nova perspectiva, que permite e incentiva o jogo, as tensões, o vir a ser, a

auto-superação em oposição aos valores decadentes de um igualitarismo massificador

presente no “progresso” da humanidade. É esta uma tarefa para os grandes espíritos do

próximo século que deve, acima de tudo, propiciar o surgimento da cultura, em detrimento

aos valores utilitários e atomistas da modernidade. Como contra-ideal à figura do “último

301
Ibid, 203, In: KSA, vol. 5, p. 128. Tr. p. 104.
302
Ibid, 203, In: KSA, vol. 5, p. 127. Tr. p. 104.
303
Ibid, 203, In: KSA, vol. 5, p. 128. Tr. p. 104.

110
homem” Nietzsche desenvolve seu conceito de “além-do-homem” (Übermensch), figura

oposta aos ideais modernos e impensável para a “pequena política” que, por sua vez, faz

prosperar a moral de rebanho. A “grande política” de Nietzsche refere-se, sobretudo, a uma

ética aristocrática, uma alternativa para a assustadora decadência globalizada do homem

“moderno”, e tem como objetivo o desenvolvimento, o crescimento da cultura e,

conseqüentemente, o vir a ser, a auto-superação do homem, como veremos na seção

seguinte.

3.3- A “Grande Política”

A oposição nietzscheana frente às políticas modernas consiste em superar a

herança dos valores cristãos, sobretudo no que se refere ao igualitarismo uniformizador, por

meio de uma política cultural que, prioritariamente, estabelece valores de grandeza e

desenvolvimento para as necessidades globais da humanidade. A cultura é a ordenação

ética que deve prevalecer, em oposição às determinações metafísicas ou dogmáticas.

Ilustrativo é o aforismo 25 de Humano, Demasiado Humano, no qual esta questão aparece

explicitamente desenvolvida:

Moral privada e moral mundial: Após o fim da crença de que um deus dirige os
destinos do mundo e, não obstante as aparentes sinuosidades no caminho da
humanidade, a conduz magnificamente à sua meta, os próprios homens devem
estabelecer para si objetivos ecumênicos, que abranjam a Terra inteira. A antiga
moral, notadamente a de Kant, exige do indivíduo ações que se deseja serem de
todos os homens: o que é algo belo e ingênuo; como se cada qual soubesse sem
dificuldades, que procedimento beneficiaria toda a humanidade, e portanto que
ações seriam desejáveis; é uma teoria como a do livre-comércio, pressupondo que
a harmonia universal tem que produzir-se por si mesma, conforme leis inatas de
aperfeiçoamento. Talvez uma futura visão geral das necessidades da humanidade
mostre que não é absolutamente desejável que todos os homens ajam do mesmo
modo, mas sim que, no interesse de objetivos ecumênicos, deveriam ser
propostas, para segmentos inteiros da humanidade, tarefas especiais e talvez más,
ocasionalmente. – Em todo caso, para que a humanidade não se destrua com um

111
tal governo global consciente, deve-se antes obter, como critério científico para
objetivos ecumênicos, um conhecimento das condições da cultura que até agora
não foi atingido. Esta é a imensa tarefa dos grandes espíritos do próximo
século.304

Eis aqui a apresentação nietzscheana de um governo global da Terra, cabendo

ao homem a tarefa de, conscientemente, almejar objetivos ecumênicos, e que por isso não

estejam presos às particularidades individuais, mas ao conhecimento das condições da

cultura que ainda não foram atingidas. Para Nietzsche, “os homens podem conscientemente

decidir se desenvolver rumo a uma nova cultura, ao passo que antes se desenvolviam

inconscientemente e acidentalmente”305. Como vimos (capítulo 1), o processo civilizatório

teve sua importância fundamental na superação da condição natural de selvageria e, apenas

a partir das formações psíquicas de responsabilidade e memória o homem tornou-se

autônomo, senhor de si. Assim, para Nietzsche, hoje os indivíduos podem gerir melhores

condições e qualidade de vida, “podem criar condições melhores para procriação dos

indivíduos, sua alimentação, sua educação, sua instrução, podem economicamente gerir a

Terra como um todo, ponderar e mobilizar as forças dos indivíduos umas em relação às

outras”306. Essa transformação consciente rumo ao conhecimento das condições da cultura

que ainda não foi atingido, pode ser pensada como um desenvolvimento ético (estético) da

civilização, em direção à criação constante de novos valores, ao desenvolvimento de uma

nova amplitude ética, da afirmação do devir no seu duplo movimento de criação e

destruição; em oposição às práticas políticas “modernas”, democráticas ou socialistas, que

progridem para a decadência em escala global da humanidade.

304
NIETZSCHE. Menschliches, Allzumenschliches. [Humano, Demasiado Humano], 25, In: KSA, vol. 2, p.
46. Tr. p. 33-34.
305
Ibid, 24, In: KSA, vol. 2, p. 45. Tr. p. 33.
306
Ibid, 24, In: KSA, vol. 2, p. 45. Tr. p. 33.

112
Giacóia esclarece (2002, p. 9) que este desenvolvimento nietzscheano acerca de

um governo global da terra, conscientemente assumido pela racionalidade filosófica, pode

ser considerado como a versão soft da política nietzscheana. Esta análise está bastante

distante daquela que será desenvolvida no último período da filosofia de Nietzsche, como

sua versão hard, quando o conceito de “Grande política” passa a der compreendido a partir

de uma perspectiva de domínio, pautado por um vocabulário bélico. Mas, ainda esclarece

Giacóia, “nossa hipótese de interpretação supõe que este acirramento do pathos dominador

e guerreiro, bem como a estridência do tom em que se desenvolve a polêmica, estão

estreitamente vinculados à radicalização de conjunto da crítica da modernidade política”,

especificamente pela iminência da catástrofe que Nietzsche identifica para o futuro do

Ocidente, “ameaçando com o rebaixamento de valor do homem e a conseqüente

banalização da existência”(GIACÓIA, 2002, p. 9).

O diagnóstico de Nietzsche para o “progresso” da humanidade não é outro senão

o “apequenamento do inteiro tipo ‘homem’, sua definitiva mediocrização307”. Para

Nietzsche não é o caso de desistir das possibilidades de instituir um novo governo, mas de

superar tanto o dogmatismo quanto o ceticismo através da “grande política”: “o tempo para

a pequena política passou; já o próximo século traz consigo a luta pelo domínio da terra – a

coerção à grande política”308. Este combate pelo domínio da Terra exigirá grandes

acontecimentos e os maiores pensadores para concretizá-la. Por essa razão, a superação dos

antigos valores da “pequena política” é “a imensa tarefa dos grandes espíritos do próximo

307
NIETZSCHE, Fragmento póstumo do outono de 1885 – outono de 1886, 2[13], In: KSA, vol. 12, p. 71s.
Tr. p. 32.
308
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 208, In: KSA, vol. 5, p. 140. Tr. p.
114.

113
século”309. Próxima a esta meta vislumbrada por Nietzsche em Humano, Demasiado

Humano, é o aforismo 203 de Para além de bem e mal:

Para novos filósofos , não resta nenhuma escolha: para espíritos suficientemente
fortes e originários para dar os impulsos e avaliações antagônicas e transvalorar
‘valores eternos’; a precursores, a homens do futuro, que atem no presente a
coação e o nó, que constranjam a vontade de milênios a seguir novas rotas. Para
ensinar ao homem que o futuro do homem é vontade sua, que depende de uma
vontade humana, e para preparar grandes ousadias e tentativas globais de
disciplina e seleção, destinados a acabar com aquele horrível domínio de absurdo
e acaso que até agora se chamou “história”310.

O filósofo do futuro, o “espírito livre”, é aquele que conscientemente assume o

encargo de determinar-se, pois “quanto menos sabe alguém comandar, tanto mais anseia

por alguém que comande severamente – por um deus, um príncipe, uma classe, um médico,

um confessor, um dogma, uma consciência partidária”311. O “espírito livre” deve estar em

harmonia com um perfil humano de grandeza, com aquele que estiver preparado para

“grandes ousadias e tentativas globais de disciplina e seleção”, já que caberá ao “espírito

livre” a responsabilidade de transvalorar “valores eternos”. Esses espíritos suficientemente

fortes, originários e ousados, capazes de transcender os valores (cristãos) decadentes da

modernidade serão possíveis, para Nietzsche, apenas na pessoa do filósofo, assim a

grandeza inovadora de dar novos rumos à história do homem, definir a figura do futuro

humano será uma tarefa para “novos filósofos”.

Nietzsche apresenta o filósofo como a má consciência do próprio tempo. O

filósofo é “por necessidade um homem do amanhã e do depois de amanhã, sempre se achou

e teve que se achar em contradição com o seu hoje: seu inimigo sempre foi o ideal de

309
NIETZSCHE, Menschliches, Allzumenschliches. [Humano, Demasiado Humano], 25, In: KSA, vol. 2, p.
46. Tr. p. 34.
310
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 203, In: KSA, vol. 5, p. 126. Tr.
Oswaldo Giacóia Júnior, In: Nietzsche & Para Além de Bem e Mal, p. 50.
311
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [A gaia Ciência], 347, In: KSA, vol. 3, p. 582. Tr. p. 241.

114
hoje”312. Questionador por excelência o filósofo esteve sempre além, em busca de uma

nova grandeza, de um caminho ainda não trilhado para elevar-se e criar novos valores. Por

isso, para Nietzsche, ao filósofo sempre competiu uma dura, indesejada e grande tarefa, a

saber, “A cada vez desvelaram o quanto de hipocrisia, comodismo, de deixar-se levar e

deixar-se cair, o quanto de mentira se escondia sob o mais venerado tipo de moralidade

contemporânea, o quanto de virtude era ultrapassada”313. A comodidade é uma “virtude” da

moral de rebanho, uma vontade de poder fraca que precisa crer na “verdade” de seus

valores decadentes e, sobretudo, manter a fé em suas convicções; em oposição, o filósofo é

o espírito da divergência, do questionamento, não almeja o equilíbrio, mas sim suscitar a

tensão, o conflito.

Nestes termos o “espírito livre” é o contraposto do “último homem” que, como

vimos (seção 3.1), é o tipo homem da democracia moderna, o herdeiro das “virtudes”

cristãs que prolongou o enfraquecimento da vontade de poder guerreira (aristocrática). Em

conseqüência, para Nietzsche, “no ideal do filósofo devem ser incluídas na noção de

‘grandeza’ justamente a força da vontade, a dureza e a capacidade para decisões largas”314.

Um projeto filosófico como a “grande política” exige grandes pensadores que estejam além

de seu tempo, desta forma “os autênticos filósofos são comandantes e legisladores”315, são

eles que determinam “o para onde? e para quê? do ser humano”316. Para Nietzsche,

enquanto hoje na Europa “somente o animal de rebanho recebe e dispensa honras, quando a

‘igualdade de direitos’ pode facilmente se transformar em igualdade na injustiça: quero

312
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 212, In: KSA, vol. 5, p. 145. Tr. p.
118.
313
Ibid, 212, In: KSA, vol. 5, p. 146. Tr. p. 119.
314
Ibid, 212, In: KSA, vol. 5, p. 146. Tr. p. 119.
315
Ibid, 211, In: KSA, vol. 5, p. 145. Tr. p. 118.
316
Ibid, 211, In: KSA, vol. 5, p. 145. Tr. p. 118.

115
dizer em uma guerra comum a tudo o que é raro, estranho, privilegiado”317; ao filósofo-

legislador318 caberá o dever de afirmar o oposto a esta tirania da moral de rebanho, deverá

criar noções de grandeza, assim revelará algo de seu próprio ideal quando afirmar:“‘Será o

maior aquele que puder ser o mais solitário, o mais oculto, o mais divergente, o homem

além do bem e do mal, o senhor de suas virtudes, o transbordante de vontade’”319 .

Se, para Nietzsche, a época da “pequena política” chegou ao fim e o próximo

século traz consigo a coerção para a “grande política”, podemos nos questionar pelo sentido

de uma ética aristocrática no mundo moderno. A aristocracia é, na perspectiva

nietzscheana, a condição de grandeza e excelência indispensáveis para a elevação do tipo

homem, sobretudo, para a superação da condição de animalidade natural. Giacóia (2002, p.

59) esclarece, no texto Nietzsche & Para além de bem e mal, que “ao se perguntar pelo

sentido de aristocracia no mundo moderno, Nietzsche indica que a resposta à questão não

pode consistir numa reacionária nostalgia das aristocracias passadas”. Isso porque, a

Revolução Francesa determinou um tipo de sociedade civil dela emergente que corrompeu

a aristocracia sã. Assim, as formas históricas de aristocracia desapareceram do horizonte

progressista das políticas “modernas”; e Nietzsche pretende vislumbrar uma possível

significação para uma vida aristocrática – “que se destaca pela excelência, que é

317
Ibid, 212, In: KSA, vol. 5, p. 147. Tr. p. 119-120.
318
Importante esclarecer que na filosofia nietzscheana o contraposto do “último homem” é o filósofo do
futuro, o “iconoclasta transvalorador” e que, não por acaso, o ideal da filosofia política de Platão estava
centrado na figura do filósofo legislador, o governante e legislador. A respeito desta aparente aproximação,
Giacóia (2005, p. 78) esclarece que: “Se Nietzsche, por sua vez, reivindica para o seu ‘contra-ideal’, para os
filósofos do futuro, contrapostos ao ‘último homem’, enfim, para o seu Übermensch, esse mesmo status de
‘legislador para futuros milênios’, ele o faz numa derrisória inversão paródica do ideal platônico, numa
espécie de estilização dramático-filosófica de um parricídio espiritual cuja vítima é o pai fundador da
metafísica ocidental, berço originário da moral cristã”. Ilustrativo é o aforismo 24, da segunda dissertação de
Para a Genealogia da Moral.
319
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 212, In: KSA, vol. 5, p. 147. Tr. p.
120.

116
reconhecida como liderança legítima e, como tal, se põe à frente e se imortaliza por suas

virtudes”320. Ilustrativo e polêmico é o aforismo 257 de Para além de bem e mal:

Toda elevação do tipo “homem” foi, até o momento, obra de uma sociedade
aristocrática – e assim será sempre: de uma sociedade que acredita numa longa
escala de hierarquias e diferenças de valor entre um e outro homem, e que
necessita da escravidão em algum sentido. Sem o pathos da distância, tal como
nasce da entranhada diferença entre as classes, do constante olhar altivo da casta
dominante sobre os súditos e instrumentos, e do seu igualmente constante
exercício em obedecer e comandar, manter abaixo e ao longe, não poderia nascer
aquele outro pathos ainda mais misterioso, o desejo de sempre aumentar a
distância no interior da própria alma, a elaboração de estados sempre mais
elevados, mais raros, remotos, amplos, abrangentes, em suma, a elevação do tipo
“homem”, para usar uma fórmula moral num sentido supramoral. 321

A polêmica deste aforismo está presente, sobretudo, na delicada tarefa de não

vincular o tom forte e agudo das palavras de Nietzsche com seu real propósito, caso

contrário poderíamos interpretá-lo inapropriadamente322. Neste aforismo a crítica

nietzscheana à modernidade alcança seu grau máximo de intensidade, são alvejados aqui os

valores mais intrínsecos à igualdade democrática. Talvez a necessidade de radicalizar a

polêmica esteja no fato de que apenas de maneira estridente é possível despertar a atenção

daqueles que concebem a igualdade como um valor em si. Contra o igualitarismo uniforme

Nietzsche propõe o seu pathos da distância. Um grau de hierarquia necessário para o

surgimento de uma classe dominante e de estados mais superiores, elevados e raros. A

hierarquia e a diferença entre um e outro homem são pressupostos para a elevação do “tipo

homem”; a ausência da hierarquia é o nivelamento, a massificação do homem, seu

apequenamento, tal como estrutura-se as sociedades modernas.

320
GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Nietzsche & Para além de bem e mal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2002, p. 59.
321
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 257. In: KSA, vol. 5, p. 205. Tr. p.
169.
322
Giacóia (2002, p. 60) explica que o aforismo 257 de Para além de bem e mal foi interpretado por muitos
comentadores de Nietzsche como característico do seu reacionarismo nostálgico. Assim, a nossa interpretação
pretende tornar claro o tom provocativo de Nietzsche e esclarecer de que maneira Nietzsche não legitima a
escravidão como fenômeno histórico e social, mas em um sentido metafórico, que consiste na hierarquia, no
pathos da distância, entre um e outro homem.

117
Como afirmamos anteriormente (capítulo 2), Nietzsche não pretende um

regresso histórico, e sim a superação. Nestes termos, a evocação nietzscheana a uma classe

aristocrata não deve ser compreendida como uma reacionária nostalgia das aristocracias

passadas, mas como um recurso metafórico que deve estar, necessariamente, em

consonância com o pathos da distância. É como recurso metafórico que Giacóia (2002, p.

62) interpreta o uso dos conceitos de hierarquia e dominação social na filosofia

nietzscheana: “Nietzsche emprega, pois, a distância e a dominação social como metáfora;

sua interiorização atua como meio para a aquisição de um tipo mais refinado de

distanciamento e domínio: introjetada, ela torna possível a elevação e a hierarquia psíquica,

ou espiritual”.

A distância e a dominação social são características distintivas para a formação

e surgimento da “grande política”; em outro extremo, por exemplo, a passividade, a

igualdade e a decadência são características da “pequena política”. Talvez a principal

distinção entre a “grande política” e a “pequena política” esteja no fato de que o abismo que

Nietzsche propõe entre homem e homem, entre classes, a multiplicidade de tipos, a

afirmação de si, a tensão entre os extremos, é próprio de toda época forte e, sobretudo, é

uma perspectiva que está para além de bem e mal. Isso significa que, diferentemente das

virtudes almejadas pela “pequena política”, a saber, reduzir os valores do homem à

bondade e igualdade, amansar sua vontade, submetê-los à condição de bicho-anão de

direitos e exigências iguais; a “grande política” estabelece a distância entre diferentes

configurações da “natureza humana” que correspondem a diferentes tipos de moral, de

118
maneira que à diversidade moral caberia determinar figuras diversas da natureza “humana”,

que corresponderiam à multiplicidade da vontade de poder323.

Nesta perspectiva, o “além do homem”, bem como a “raça senhorial”, não tem,

na filosofia nietzscheana, um sentido biológico ou social identificável324; as diferenças

hierárquicas de que fala Nietzsche não devem ser compreendidas como diferenças de

estratificação social ou econômica. Destarte, não se deve confundir os tipos nietzscheanos

como “nobre”, “senhor”, com qualquer espécie de estamento social. Esta interpretação

tornar-se legítima se pensarmos que além de ser o crítico da moral e o filósofo da cultura,

Nietzsche é um filósofo crítico da modernidade política325 e, por isso, as figuras (tipos)

nietzscheanas devem ser compreendidas, antes de tudo, como o contra-ideal da

modernidade.

Importante esclarecer que Nietzsche usa a visão trágica do mundo como

alternativa ética. O trágico, para ele, se torna uma afirmação integral da vida para além das

oposições morais de bem e mal. Desta forma, a oposição entre uma classe escrava e uma

323
Esta nossa interpretação apóia-se na explicação de Giacóia(2002, p. 66): “Em verdade, o resultado a que
Nietzsche pretende nos conduzir poderia se resumir na descoberta de que não existe ‘a’ moral, existem
morais. A diferentes configurações de ‘natureza humana’ correspondem diferentes tipos de moral – do mesmo
modo como, complementarmente, tipos diversos de moral modelam figuras diversas de ‘natureza’ humana,
em correspondência com o caráter proteiforme da vontade de poder”.
324
Muito esclarecedor é o manuscrito de impressão desse aforismo 257, não publicado por Nietzsche, e
recolhido pelos organizadores de edição histórico-crítica de suas obras e publicado no volume de comentários
histórico-filológicos, traduzido por Oswaldo Giacóia Júnior (2002, p. 64-65), que faz uma importante
interpretação acerca deste manuscrito: “ele torna inequívoco que ‘as naturezas mais naturais’, os homens de
rapina e as raças mais fracas e exauridas não são determinações biológicas, ou raciais, nem que tais figuras
indiquem uma ontologia natural da força”. Por ser esclarecedor e complementar às nossas análises, citamos o
manuscrito: “A ‘humanização’ de tais bárbaros é essencialmente um processo de enfraquecimento e
abrandamento e se completa precisamente à custa daqueles impulsos aos quais eles deviam sua vitória e
posse; e desse modo, enquanto se apropriam de virtudes ‘mais humanas’, completa-se também gradualmente,
do lado dos oprimidos e escravizados, um processo inverso. Na medida em que estes são mantidos como mais
brandos, mais humanos e, por conseqüência, prosperam fisicamente de modo mais profuso, desenvolve-se
neles o bárbaro, o homem fortalecido, o semi-animal com a avidez da selva, o bárbaro que um dia se sente
suficientemente forte para se defender de seus humanizados, isto é, enlanguescidos senhores. O jogo começa
de novo: estão dados novamente os inícios de uma cultura superior e aristocrática”.
325
Como afirmamos na introdução deste trabalho, concordamos com a afirmação de Ansell-Pearson (1997, p.
18), de que Nietzsche é primordialmente um filósofo político, e foi exatamente a crítica da modernidade
política nietzscheana que buscamos desenvolver neste trabalho.

119
raça aristocrática são proposições nietzscheanas cuja finalidade consiste em indicar as

possibilidades infinitas de sublimação das forças humanas, principalmente das mais

terríveis326. Diante disso, há ainda uma outra questão relevante que deve ser analisada a fim

de esclarecer de maneira coesa o entendimento acerca da necessidade de uma classe

aristocrática a promover a “grande política”. É preciso recordar a pesquisa genealógica

nietzscheana a respeito da crueldade empregada desde o início do processo civilizatório.

Foi apenas com atos de violência e crueldade (como vimos no capítulo 1, seção 1.1) que a

humanidade conquistou uma configuração aprimorada e refinada; caso contrário o homem

encontrar-se-ia ainda em seu estado selvagem natural. A excelência do espírito é

conquistada, para Nietzsche, nos momentos de tensão que exigem a coragem e a força de

uma vontade de poder que tem domínio de si mesma. Assim, no final do aforismo 257 de

Para além de bem e mal327, Nietzsche retoma as origens de uma sociedade aristocrática,

explicando que o surgimento de toda cultura foi possível apenas com atos de crueldade, e

não por contratos, tampouco pelo consenso entre os homens. Nas palavras do filósofo:

É certo que não devemos nos entregar a ilusões humanitárias, no tocante às


origens de uma sociedade aristocrática (ou seja, do pressuposto dessa elevação do
tipo “homem): pois a verdade é dura. Digamos, sem meias palavras, de que modo
começou na terra toda sociedade superior! Homens de uma natureza ainda
natural, bárbaros em toda terrível acepção da palavra, homens de rapina, ainda
possuidores de energias de vontade e ânsias de poder intactas, arremeteram sobre
raças mais fracas, mais polidas, mais pacíficas, raças comerciantes ou pastoras,
talvez, ou sobre culturas antigas e murchas, nas quais a derradeira vitalidade
ainda brilhava em reluzentes artifícios de espírito e corrupção. A casta nobre
sempre foi, no início, a casta de bárbaros: sua preponderância não estava
primariamente na força física, mas na psíquica – eram homens mais inteiros328.

326
Como explica Giacóia no texto Nietzsche & Para além de bem e mal, p. 62.
327
Este aforismo já foi citado e comentado no capítulo 1, seção 1.1. Sua repetição justifica-se pela sua
importância para concluirmos as nossas considerações acerca da aristocracia nietzscheana e da “Grande
política”.
328
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 257. In: KSA, vol. 5, p. 205s. Tr. p.
169-170.

120
O final deste aforismo pretende ser revelador: examina a partir de perspectiva

histórico-genealógica que o surgimento de uma classe aristocrática exigiu, desde seus

primórdios, a atuação rigorosa dos mais vigorosos instintos hostis, daquilo que

consideramos (moralmente) os “maus instintos”. Contudo, não podemos deixar de observar

a importância da advertência de Nietzsche no que se refere à casta de bárbaros: Nietzsche é

perspicaz ao afirmar que a preponderância dos bárbaros não estava primariamente na força

física, mas na psíquica. Disso concluímos que não pertence à filosofia nietzscheana

qualquer apologia à força bruta; a elevação de uma raça mais nobre, aristocrática é

determinada por uma ordem hierárquica psíquica, ou até mesmo “espiritual”.

Portanto, a referência à escravidão presente no aforismo 257 de Para além de

bem e mal é explicada pelas proposições de Nietzsche acerca da civilização moderna que

produziu o adestramento e o amansamento do “animal homem”. Nietzsche não pretende

legitimar a escravidão, ao que nos parece. Não se trata de criar uma classe nobre para fins

inescrupulosos de manipulação de uma moral de rebanho. A “maquinalização” e a

exploração da humanidade coube, segundo Nietzsche, ao “progresso da humanidade”,

sobretudo com o advento do capitalista burguês da revolução industrial que passou a

remunerar o trabalho escravo. O “além do homem” é o contraposto do capitalista liberal,

ele é o filósofo-legislador, o transformador cultural da sociedade. Ele deve atuar para o

crescimento e a promoção de um tipo-homem mais elevado, sendo assim uma alternativa ao

“último homem” do igualitarismo uniformizador das políticas “modernas”.

A provocação presente neste aforismo (257 BM) está particularmente

relacionada à crítica nietzscheana à moral cristã, à democracia e ao socialismo como

prolongamento dos valores da moral de rebanho, principalmente na forma com que o

“progresso” concebe o trabalho, a saber, uma administração econômica global da terra, na

121
qual o trabalhador transforma-se em rendimento. A condição econômica imposta pelo

igualitarismo moderno não é outra coisa senão a redução coletiva do homem à condição de

máquina. Esta proposição nietzscheana encontramos explicitamente formulada no aforismo

260 de Aurora:

A classe impossível – Pobre, feliz e independente! – tais coisas juntas são


possíveis; pobre, feliz e escravo! – isso também é possível, e eu não saberia dizer
coisa melhor aos trabalhadores da escravidão fabril; supondo que não sintam
como vergonhoso ser de tal forma usados, é o que sucede, como parafusos de
uma máquina e, digamos, tapa-buracos da inventividade humana. Ora, acreditar
que um pagamento mais alto pode remover o essencial de sua miséria, isto é, sua
servidão impessoal! Ora, ter um preço pelo qual não se é mais pessoa, mas
engrenagem! Serão vocês cúmplices da atual loucura das nações, que querem
sobretudo produzir o máximo possível e tornar-se o mais rica possível?
Deveriam, isto sim, apresentar-lhes a contra-partida: as enorme somas de valor
interior que são lançadas fora por um objetivo assim exterior! Mas onde está o
seu valor interior, se nem sabem mais o que significa respirar livremente? Se mal
têm a posse de si mesmos? Se com freqüência estão enjoados de si, como de uma
bebida esquecida e estragada?[...]. Em oposição a isso, cada qual deveria pensar
consigo: “É melhor emigrar, tentar ser senhor em regiões novas e selagens do
mundo, e principalmente senhor de mim mesmo; mudar de local, enquanto me
acenar alguma escravidão; não fugir à aventura e à guerra e ter a morte à mão
para os piores casos: tudo menos essa indecorosa servidão, esse tornar-se azedo,
venenoso e conspirador329.

A denúncia de Nietzsche pretende alertar a modernidade para o fato de que ao

erigir uma administração econômica global da terra, essa “modernidade” preserva uma

modalidade de escravidão, mesmo que inconsciente dela. A sociedade mercantilizada tem

sua herança na emergente revolução industrial da Europa, é a sociedade do rendimento

maximizado, da servidão involuntária alienante e, paradoxalmente, desumana. Ela abriga de

maneira inconsciente uma classe escrava que faz do trabalho humano instrumento de lucro,

de máximo rendimento e que, por isso, pode levar a formas bárbaras de dominação, a

inocente tirania uniformizadora das políticas democráticas é aqui desmascarada como

promotora do trabalho escravo. Contra esta política burguesa liberal que pretende sempre

329
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], 206. In: KSA, vol. 3, p. 183s. Tr. p. 151-152.

122
um emprego mais econômico do homem e da humanidade, Nietzsche elabora seu conceito

de “além do homem”:

Demonstrar a necessidade de que a um emprego sempre mais econômico de


homem e de humanidade, a uma sempre mais firmemente intricada ‘maquinaria’
de interesses e rendimentos pertence um contra-movimento. Eu o designo como
extração de um excedente de luxo da humanidade: nele deve vir à luz uma
espécie mais forte, um tipo mais elevado, que tem outras condições de
surgimento e de conservação que o homem mediano. Meu conceito, minha
alegoria para esse tipo é, como se sabe, a palavra ‘Além-do-homem’.
Sobre aquele primeiro caminho, que é agora plenamente abarcável com o olhar,
surge a adaptação, o nivelamento, o chinesismo superior, a modéstia do instinto, a
satisfação no apequenamento do homem – uma espécie de estado de repouso no
nível do homem. Se temos, primeiramente, aquela administração econômica
global da terra, inevitavelmente iminente, então a humanidade, como maquinaria,
pode encontrar, a serviço dela, seu melhor sentido: como um imenso mecanismo
de engrenagens sempre menores, sempre mais sutilmente ‘adaptadas’; como um
sempre crescente tornar-supérfluo de todos os elementos que dominam e
comandam; como um todo de imensa força, cujos fatores singulares representam
forças mínimas, valores mínimos. Em oposição a esse apequenamento e
adaptação do homem a uma utilidade mais especializada, há necessidade do
movimento contrário – a geração do homem sintético, somatório, justificador,
para o qual aquela maquinalização da humanidade é uma pré-condição de
existência, como uma armação sobre a qual ele pode inventar para si sua forma
superior de ser...
Ele necessita, na mesma medida, da hostilidade da multidão, dos ‘nivelados’, do
sentimento de distância em comparação com eles: ele se coloca sobre eles, vive
deles. Essa forma superior de aristocratismo é aquela do futuro. – Dito
moralmente, aquela maquinaria global, a solidariedade de todas as engrenagens,
representa um maximum na exploração do homem: porém, ela pressupõe aqueles,
por causa de quem essa exploração tem sentido. Em outro caso, ela seria, de fato,
meramente o rebaixamento global, rebaixamento de valor do tipo homem – um
fenômeno de regressão no maior estilo.
- Vê-se: o que eu combato é o otimismo econômico: como se, com o crescente
prejuízo de todos, também o proveito de todos necessariamente tivesse que
crescer. O contrário me parece o caso: o prejuízo de todos se soma numa perda
global: o homem se torna menor: - de modo que não se sabe mais para que
serviu, em geral, esse formidável processo. Um para que? Um novo ‘para que?’- é
disso que a humanidade tem necessidade...330.

Eis aqui a apresentação da “Grande política”: a exigência de um novo “para

que”, delineado por novas perspectivas políticas e culturais. Esse novo “para que”

apresenta-se como a esperança para um novo futuro que caberá aos filósofos, aos “espíritos

livres”, definirem. A “pequena política”, a política dos ideais modernos, consiste em uma

exploração econômica de forças e valores mínimos, que tem como meta um otimismo

330
NIETZSCHE, Fragmento póstumo – outono de 1887, 10[17]. In: KSA, vol. 12, p. 462s. Tr. p. 42-43.

123
econômico, no qual um imenso mecanismo de engrenagens sempre mais adaptadas, uma

soma de forças, caminha para o rebaixamento, para a perfeição instrumental do tipo homem

que, segundo Nietzsche, resulta em um prejuízo de todos e, assim, numa perda global.

Portanto, para Nietzsche, faz-se necessário um novo “experimento” oposto à administração

econômica da terra, capaz de romper com o congelamento do homem em bicho anão,

mesmo que para tanto seja necessário o uso da exploração, mas, note-se, uma exploração

que para Nietzsche tenha “sentido”, a saber, capaz de reintegrar à arte e à ciência um valor

singular de grandeza, aprimoramento.

Compete apenas ao filósofo realizar esta proeza de superação dos valores da

pequena política ou, em outras palavras, de instituir a grande política, projeto nietzscheano

de superação dos valores decadentes a partir de uma aristocracia (filósofos-legisladores) e

de valores hierárquicos. O filósofo é, nesta perspectiva nietzscheana, o espírito livre por

excelência, é a alma nobre que tem reverência por si mesma, representa a singularidade, a

exceção, por isso não sucumbe à tirania do comum, da vida fácil e feliz que é almejada pelo

homem comum da modernidade. Nestes termos é que a aristocracia é possível de ser

pensada para nós modernos:

O que é nobre? O que significa para nós a palavra “nobre”? Onde se revela, em
que se reconhece, sob o pesado e anuviado céu do incipiente domínio da plebe,
através do qual tudo fica opaco e plúmbeo, o homem nobre? – Não são os atos
que o apontam – os atos são sempre ambíguos, sempre insondáveis -; também
não são as “obras”. Entre artistas e eruditos encontram-se muitos que revelam,
com suas obras, o quanto um anseio profundo os impele em direção ao que é
nobre: mas precisamente este necessitar do que é nobre é radicalmente distinto
das necessidades da alma nobre mesma, e inclusive um sintoma eloqüente e
perigoso da sua ausência. Não são as obras, é a fé que aqui decide, que aqui
estabelece a hierarquia, para retomar uma fórmula religiosa num sentido novo e
mais profundo: alguma certeza fundamental que a alma nobre tem a respeito de
si, algo que não se pode buscar, nem achar, e talvez tampouco perder. A alma
nobre tem reverência por si mesma331.

331
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 287. In: KSA, vol. 5, p. 232-233. Tr.
p. 192.

124
A alma nobre não precisa buscar pela aristocracia, ela se distingue de maneira

“natural” da maioria comum e alienada. Assim, a alma nobre tem respeito por si mesma,

isso significa que ela representa a particularidade, a distinção, a exceção no pensar e agir. O

aristocrata é o tipo homem que permanece senhor do que Nietzsche denomina de “nossas

quatro virtudes”, a saber: “coragem, perspicácia, simpatia, solidão”332. Nas condições do

mundo moderno apenas na pessoa do filósofo é possível encontrar simultaneamente estas

quatro virtudes. Sendo a má consciência do seu tempo, o destino do filósofo é a solidão. A

distância que o filósofo (a exceção) estabelece com o comum é a condição necessária e

imprescindível para a sua preservação e, conseqüentemente, a reverência por si mesmo.

Assim, o filósofo precisa estabelecer uma distância (hierarquia) com o habitual e comum

para realizar grandes proezas, transvalorar os valores para além de bem e mal e permitir o

“conhecimento das condições da cultura que até hoje não foram atingidos”, como afirma

Nietzsche no aforismo 25 de Humano, Demasiado Humano.

Por fim, parece-nos apropriado concluir com uma pequena síntese do que foi

por nós apresentado, destacando que Nietzsche apresenta a “grande política”, acima de

tudo, como um projeto que pretende ser um contra-movimento, uma oposição à política

moderna. O ataque estridente de Nietzsche ao igualitarismo massificador das políticas

democráticas modernas, aos valores decadentes (cristãos) que conduzem ao apequenamento

e rebaixamento do homem, não deve causar mal entendidos: Nietzsche é o filósofo que está

para além de bem e mal, é o filósofo da transvaloração dos valores. Por isso, preocupa-se

com novas possibilidades de grandeza da cultura e, para tanto, é imprescindível diminuir a

solidez e subverter os valores do império da moral cristã, para que no lugar de uma única

332
Ibid, 284. In: KSA, vol. 5, p. 232. Tr. p. 191.

125
moral seja possível agir e pensar conforme a leveza do vir a ser constante de novos valores

morais.

O projeto nietzscheano de transvaloração dos valores exige um aprimoramento

cultural, um refinado processo de auto-reflexão do homem. O mesmo vale para a filosofia

política de Nietzsche, pois não se trata de legitimar uma classe escrava como condição

inexorável da cultura superior. Nietzsche não poderia limitar a sua reflexão filosófica-

política a uma hierarquia que se justificasse por classes econômicas ou sociais. Pretende,

este filósofo, superar o otimismo econômico presente nos ideais políticos do liberalismo

burguês e, conseqüentemente, evitar que o prejuízo de todos se some em uma perda global.

Assim, para Nietzsche, a humanidade precisa de um novo “para que?”, um novo sentido

que não seja aquele do humanitarismo cristão que almeja a domesticação dos instintos e a

conservação da espécie. Nas palavras do filósofo: “Um movimento é incondicional: a

nivelação da humanidade, grande formigueiros etc. O outro movimento: meu movimento:

é, ao contrário, o aguçamento de todos os antagonistas e abismos, eliminação da igualdade,

a criação de Ultra-Poderosos. Aquele gera o último homem. Meu movimento, o Além-do-

Homem”333.

O além-do-homem é o filósofo-legislador do futuro. O criador de novos valores,

bem como de um novo tipo-homem que represente uma alternativa (ética e estética) para o

horror do adestramento da humanidade em escala globalizada, sua definitiva

uniformização. O homem precisa autodeterminar-se e, para tanto, não é possível retroceder

a uma legalidade natural ou ordenação moral do mundo, o caminho é além, ascendente. O

último homem deve ser superado, o homem deve superar a si mesmo e deixar de se

comprazer com o próprio rebaixamento e mediocridade. É chegado o fim da “pequena

333
NIETZSCHE, Fragmento póstumo, primavera-verão de 1883, 7[21]. In: KSA, vol. 10, p. 244s. Tr. p. 26.

126
política”, dando lugar ao além-do-homem e à “grande política”. A meta de Nietzsche não é,

de modo algum, compreender o além-do-homem como senhor do último homem, “mas

duas espécies devem subsistir uma ao lado da outra – possivelmente separadas: uma delas,

como os deuses epicuros, não se ocupando da outra”334. Assim, nestes termos, é que a

‘grande política” apresenta-se como alternativa às políticas modernas (“pequena política”),

sobretudo à democracia moderna, que, segundo Nietzsche, promove o ajustamento global

com suas prerrogativas de direitos iguais, bem como a fragmentação do homem pela

divisão alienante do trabalho, adaptando o indivíduo ao adestramento do trabalho rentável,

utilizável como máquina, nivelado, enfim, inconsciente da sua condição escrava.

334
Ibid. Tr. p. 26.

127
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A política, como vimos, ocupa um lugar privilegiado na filosofia de Nietzsche.

Ao reconhecermos a sua importância no interior do seu projeto filosófico, não nos parece

que seja o caso de limitarmos este tema apenas por sua relevância, mas sim compreendê-lo

como um tema a ser ultrapassado, na constante auto-superação proposta pelo filósofo. Se

ainda somos criaturas da consciência, afirma Nietzsche no prólogo de Aurora, é pelo fato

de que “não desejamos voltar ao que consideramos superados e caduco, a algo ‘indigno de

fé’, chama-se ele Deus, virtude, verdade, justiça, amor ao próximo; de que não nos

permitimos fazer pontes de mentiras em direção a velhos ideais”335. Devemos, assim,

superar os antigos valores (cristãos) de pensar e agir.

As questões referentes à política estão intrinsecamente relacionadas com o

projeto nietzscheano enunciado no prólogo de Para a Genealogia da Moral, a saber:

“necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser

colocado em questão”336. Essa crítica, afirma o filósofo, é uma “nova exigência”. Mas,

mesmo antes de Para a Genealogia da Moral, como vimos ao longo da dissertação,

Nietzsche apresenta uma crítica radical da modernidade cultural em Para além de Bem e

mal. Foram estas as duas principais obras analisadas nesta dissertação, na tentativa de

tornar mais compreensíveis as estratégias e argumentações de Nietzsche a respeito da

política contemporânea.

335
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], prólogo, 4, In: KSA, vol. 3, p. 16. Tr. p. 13.
336
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], 6, prólogo, In: KSA, vol. 5, p.
253. Tr. p. 12.

128
Se até hoje as correntes filosóficas ocuparam-se em fundamentar os valores

morais, sem se preocupar com o valor desses valores, eis que Nietzsche apresenta-se como

a má consciência de seu tempo e se propõe a investigar o valor da civilização. A este

projeto nietzscheano pertence a crítica aos valores políticos da modernidade, sobretudo da

democracia. No combate teórico à modernidade assumido por Nietzsche são evidenciadas

as fragilidades das hipóteses dogmáticas anteriores à filosofia nietzscheana e são retomadas

velhas questões presentes na tradição filosófica a partir de uma nova perspectiva: Nietzsche

passa a investigar a gênese dos valores morais, procedimento que implica em retomar, por

exemplo, o surgimento do Estado, do castigo, da culpa, da memória, da responsabilidade,

da má consciência. Enfim, trata-se de uma nova perspectiva que considera a cultura como

um conjunto, e por isso ocupa-se da teoria do conhecimento, da arte, da ciência, da

metafísica, da economia, da educação, da ética e da política, esta última considerada em

destaque nas reflexões (primárias) desta dissertação.

No que se refere à filosofia de Nietzsche, uma advertência se faz necessário: os

escritos nietzscheanos não pretendem erigir um novo ídolo. Não se trata de propor uma

meta, um novo ideal, mas sim de apresentar um contra-discurso aos valores decadentes da

modernidade A busca por ídolos não é um desejo do “espírito livre”, mas de seu

antagonista, o “último homem”, que ainda precisa crer em algo além para dar sentido a sua

existência. Portanto, distanciando-se da argumentação que pretende justificar as garantias

do mundo idealizado pela moral escrava, tal como fizeram até hoje os filósofos dogmáticos,

Nietzsche opera o árduo trabalho de “caluniar” a moral.

Esclarecemos melhor esta afirmação: Nietzsche reconhece a dificuldade para

nós modernos, que nascemos tardiamente, identificarmos “as percepções fundamentais

sobre a gênese da moral”, uma vez que o sentimento de moralidade ficou “tão refinado e

129
posto nas alturas”337 que, para Nietzsche, a moral se “volatilizou”. Desta forma, o

questionamento acerca dos valores morais quando realizado pode “soar” grosseiramente, ou

parecer caluniar a moralidade338. Mas esta percepção restringe-se a uma leitura talvez

apressada e desatenta dos escritos do filósofo, pois como há pouco mencionamos, ao

combater o dogmatismo bem como a decadência dos valores da modernidade, a filosofia de

Nietzsche permanece, sobretudo, como um contra-discurso para além de bem e mal.

Assim, ilustrativa é a comparação do projeto nietzscheano com as implicações

do “bom selvagem” de Rousseau. O que preocupava Rousseau, por exemplo, no primeiro

Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens? A civilização

é aí estigmatizada como corruptora da bondade natural, e a preocupação de Rousseau é,

sobretudo, “melhorar” a humanidade. Se a civilização corrompe, consciente de seu perigo,

os homens devem alcançar o aperfeiçoamento da humanidade, restabelecendo a bondade

natural do homem. Ponderemos aqui (de forma simplificada) a divergência entre as teorias

filosóficas: quando Rousseau propõe um melhoramento da humanidade, o faz a partir das

categorias de bem e mal; Nietzsche, ao contrário, não pretende melhorar a humanidade,

como afirmamos na seção 1.1, e isso ele claramente afirma em Ecce Homo: “a última coisa

que eu prometeria seria ‘melhorar’ a humanidade”339. Querer melhorar a humanidade é

mais uma otimista hipótese que pretende erigir um novo ídolo, uma nova meta a ser

atingida.

Nestes termos é possível compreender que o que separa Nietzsche dos filósofos

dogmáticos: a pretensão destes em formular uma verdade universal. Por isso, a necessidade

de filósofos do futuro, para quem será “preciso livrar-se do mau gosto de querer estar de

337
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], 9, In: KSA, vol. 3, p. 21. Tr. p. 17
338
Ibid, 9. In: KSA, vol. 3, p. 21. Tr. p. 17.
339
NIETZSCHE, Ecce Homo, prólogo, 2. In: KSA, vol. 6, pg. 257. Tr. p. 40.

130
acordo com muitos. ‘Bem’ não é mais bem, quando aparece na boca do vizinho. E como

poderia haver um ‘bem comum’?”340. O filósofo do futuro sabe que a unanimidade não

existe porque não existe o mundo verdadeiro, da realidade só é possível apreender

perspectivas sobre as coisas, sobre os fatos, nunca de maneira universalizada. Se não há

uma coisa em si é preciso reconhecer também que não há fato em si. Portanto, Nietzsche

contesta a teoria positivista que insiste em afirmar que só há fatos. Para o filósofo

imoralista o mundo não tem um sentido unívoco, “não existem fenômenos morais, apenas

uma interpretação moral dos fenômenos...”341.

Ao questionar-se pelo valor da modernidade um dos temas relevantes que passa

pelo exame crítico de Nietzsche são os valores decadentes exaltados pela democracia

moderna, que ao pretenderem a igualdade entre os homens, ou seja, as supressões dos

conflitos e das diferenças, conduzem de maneira globalizada ao enfraquecimento e ao

apequenamento do homem. O mesmo homem bom promovido pelos ideais do cristianismo

continua como a figura promissora da democracia para dar continuidade ao

“melhoramento” da humanidade. Mas quem é este homem bom? É o homem corrompido

pelas instituições, o homem que elege a razão como autoridade, acredita na “virtude” do

amor ao próximo, da compaixão, do altruísmo, do desinteresse. É ele o animal de rebanho,

que busca distinguir-se pelas virtudes de rebanho, pelo sentimento de coletividade e

patriotismo. Enfim, é o homem da democracia moderna.

Se há uma origem para o enfraquecimento das virtudes aristocráticas do

indivíduo não é outra senão o cristianismo. Esta religião sempre atuou na domesticação dos

instintos, ocupou-se da tarefa de promover a debilidade do homem fazendo com que a boa

340
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 43. In: KSA, vol. 5, p. 60. Tr. p. 47.
341
Ibid, 108, In: KSA: vol. 5, p. 92. Tr. p. 73.

131
consciência estivesse sempre ao lado da boa obediência342. Foi o cristianismo que colocou

em descrédito as virtudes mais preciosas do homem, associando as virtudes aristocráticas

como nobreza, forte,“espiritualmente bem nascido”, ao lado dos valores que devem ser

excluídos, reprováveis, por serem instintos do homem “mau”.

A teoria cristã da igualdade dos homens perante Deus é validada pelo homem da

modernidade, que acredita na crença da igualdade como condição única para alcançar o

“melhoramento” da humanidade. Portanto, como vimos no capítulo terceiro, o homem bom

do cristianismo é o mesmo homem bom dos ideais democráticos. Contudo, não nos parece

necessário retomar as explicações no que se refere às conseqüências do movimento

democrático ser, para Nietzsche, herdeiro do movimento cristão.

As análises que poderíamos fazer estão presentes nas reflexões que fazem parte

desta dissertação. Que são, sobretudo, reflexões iniciais, despretensiosas por reconhecer a

complexidade dos escritos de Nietzsche. Não seria exagero afirmar que, ao final de nossas

reflexões acerca do pensamento político de Nietzsche a impressão destas considerações

finais não é outra senão a de que muito ainda temos que nos dedicar às leituras de

Nietzsche, e que muitos aspectos e temas importantes foram adiados para um trabalho

futuro. Assim, parece-nos mais apropriado e interessante, como considerações finais,

apresentar uma questão que tem a vantagem de explicar de modo mais conciso o

pensamento político de Nietzsche. Vejamos de que maneira.

Ao questionar o valor dos valores morais presentes na democracia moderna

Nietsche tem êxito ao comprovar que a modernidade caracteriza-se pelo prolongamento dos

342
Como afirma Moura (2005, p. 216): “Quem promoveu esta valorização da obediência, esta desvalorização
do comando? É este o trabalho fundamental de nossos ideais civilizadores: fazer com que a boa consciência
esteja apenas ao lado da boa obediência. O ‘homem bom’ é o escravo ideal, alguém preparado apenas para
obedecer”.

132
valores cristãos, mas que ainda é possível superá-los, pois é chegada a hora para o fim da

pequena política. Contudo, como grande psicólogo, Nietzsche reconhece que mesmo sendo

a má consciência de seu tempo e refutando o valor em si atribuído aos valores da moral de

rebanho, parece que na Europa de hoje as pessoas ainda necessitam do cristianismo, pois

ele continua a ser alvo de crença. “Pois assim é o homem: um artigo de fé poderia lhe ser

refutado mil vezes – desde que tivesse necessidade dele, sempre voltaria a tê-lo por

‘verdadeiro’”343.

O que estamos pretendendo formular é a reflexão de que o movimento

democrático não é simplesmente objeto de repúdio e contestação na filosofia de

Nietzsche344. É necessário compreender a sua emergência histórica e determinar o seu

sentido e, dessa maneira, fazer uma análise apropriada da democracia como um movimento

de aprofundamento do niilismo europeu. O que se percebe na oposição nietzscheana das

figuras antagônicas como o “nobre” e o “escravo”, o “além do homem” e o último

homem”, é que a filosofia política de Nietzsche é construída, sobretudo, no interior de cada

uma dessas figuras. A tensão é essencial para Nietzsche, sem os opostos a sua filosofia

seria caracterizada pela unidade, e se há um conceito que consideramos essencial na

filosofia nietzscheana é exatamente a dualidade, a necessidade de tipos antagônicos.

Nestes termos, não nos parece possível identificarmos na filosofia política de

Nietzsche qualquer indício de uma unidade pacificadora, mas, ao contrário, uma

pluralidade de perspectivas que culmina, em seu projeto filosófico alternativo às políticas

decadentes, em uma hierarquia de todos os valores, uma escala valorativa definida

conforme a vontade de poder, que não pode ser compreendida a partir dos nossos juízos

343
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [A gaia ciência], 347. In: KSA, vol. 3, p. 581. Tr. p. 240.
344
Como afirma Giacóia no texto Crítica da Moral como Política em Nietzsche, p. 166.

133
(preconceitos) morais, mas sim sob uma nova perspectiva para além de bem e mal. Mas,

não é esta ainda a questão relevante que pretendemos elaborar.

Essas oposições constantes presentes nos tipos nietzscheanos não são eliminadas

por Nietzsche. Tampouco Nietzsche se ocupa das figuras antagônicas para a promoção

social ou econômica de uma classe favorecida, ou para produzir a compaixão pelos

“sofredores”. Essa dualidade sempre vai existir, salvo os momentos de equilíbrio, como

Nietzsche explica no aforismo 112 de Aurora:

Onde o direito predomina, um certo estado e grau de poder é mantido, uma


diminuição ou um aumento é rechaçado. O direito dos outros é a concessão, feita
por nosso sentimento de poder, ao sentimento de poder desses outros. Quando o
nosso poder mostra-se abalado e quebrantado, cessam nossos direitos: e, quando
nos tornamos muito mais poderosos, cessam os direitos dos outros sobre nós, tal
como os havíamos reconhecido a eles até então. – O “homem justo” requer,
continuamente, a fina sensibilidade de uma balança: para os graus de poder e
direito, que, dada a natureza transitória das coisas humanas, sempre ficarão em
equilíbrio apenas por um instante, geralmente subindo ou descendo: - portanto,
ser justo é difícil, e exige muita prática e boa vontade, e muito espírito muito
bom.-345

Este aforismo é significativamente ilustrativo. Nietzsche trata aqui de um

possível equilíbrio, subindo ou descendo, entre as forças. Mas, como pensar em um

equilíbrio se, a todo o momento, deparamos-nos com a dualidade e a multiplicidade de

forças que, como vimos acima, são intrínsecas ao pensamento de Nietzsche? Se há em

algum momento, “dada a natureza transitória das coisas humanas”, a igualdade de forças,

este momento é, olhos de Nietzsche, um equilíbrio instantâneo, momentâneo, subindo ou

descendo, ou seja, em uma escala hierárquica de valores. A verticalidade entre os poderes é

aqui assumida como condição singular para promover o equilíbrio. Contudo, por mais que

possamos apreender o significado desta hierarquia na determinação do poder como

característica da impossibilidade de equiparar vontades de poder diametralmente opostas,

345
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], 112. In: KSA, vol. 3, p. 101s. Tr. p. 83.

134
parece-nos pertinente esclarecer o que Nietzsche entende, neste aforismo, por equilíbrio e

em quais condições este equilíbrio é realmente alcançado.

Deste aforismo citado acima o que nos é esclarecedor é a tensão contínua da

mensuração do poder na filosofia de Nietzsche. Nossa relação com o outro estará sempre

marcada por uma relação antagônica de poder. O direito dos outros sobre nós é a concessão

feita pelo nosso sentimento de poder ao sentimento de poder do outro. E, assim, quando nos

sentimos muito poderosos cessa o direito do outro sobre nós, tal como havíamos

reconhecido a ele até então. O equilíbrio, ao que nos parece, não está, portanto, na

estabilidade, mas precisamente no momento em que há esta inversão de poder.

Sejamos mais claros, trata-se de um equilíbrio fundado nos antagonismos, e não

em uma permanência constante de neutralização de forças, tal como pretende a moral

cristã. Um equilíbrio que incita à afirmação e à superação de si, um incitamento a mais

poder, tal como requer a boa Eris. Os gregos tinham um conceito ético com relação à

disputa que nós modernos moralizamos para predicativos da moral de rebanho, como

maldade, crueldade e desumanidade. Como afirma Nietzsche, no texto A disputa de

Homero:

[...] a antiguidade grega em geral pensa de modo diferente do nosso sobre rancor
e inveja, julgando como Hesíodo, que aponta uma Eris como má, a saber, aquela
que conduz os homens à luta aniquiladora e hostil entre si, e depois enaltece uma
outra como boa, aquela que, como ciúme, rancor, inveja, estimula os homens para
a ação da disputa. O grego é invejoso e percebe essa qualidade, não como uma
falha, mas como a atuação de uma divindade benéfica: - que abismo existe entre
esse julgamento ético e o nosso!346

Também em Aurora, no aforismo intitulado “Os instintos transformados pelos

juízos morais”, Nietzsche retoma este tema:

346
NIETZSCHE, A Disputa de Homero, In: Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern. In: KSA, vol.
1, p. 787. Tr. p. 70.

135
O mesmo instinto torna-se o penoso sentimento de covardia, sob efeito da
recriminação que os costumes lançaram sobre tal instinto; ou o agradável
sentimento de humildade, caso uma moral como a cristã o tenha encarecido e
achado bom. Ou seja: ele é acompanhado de uma boa ou de uma má consciência!
Em si, como todo instinto, ele não possui isto nem um caráter e denominação
moral, nem mesmo uma determinada sensação concomitante de prazer e
desprazer: adquire tudo isso, como sua segunda natureza, apenas quando entra em
relação com instintos já batizados de bons ou maus, ou é notado como atributo de
seres que já foram moralmente avaliados e estabelecidos pelo povo. – Assim, os
mais antigos gregos olharam a inveja de modo diferente de nós; Hesíodo a inclui
entre os efeitos da boa, benéfica Eris, e não era ofensivo reconhecer algo de
invejoso nos deuses: compreensível num estado de coisas que tinha por alma a
competição; mas a competição era avaliada e estabelecida como algo bom.347

Os juízos morais ocuparam-se, portanto, em “transformar” os instintos. Deram

aos instintos uma segunda natureza: uma boa ou uma má consciência. Para os gregos essas

distinções não existiam nestes termos, a inveja, por exemplo, era um sentimento que

estimulava o homem grego para a ação, não era um sentimento que voltava contra o próprio

homem, mas que o incitava ao combate, a querer mais e a aspirar pelo poder. Ao que nos

parece, não há nenhuma caracterização deste agir com um individualismo egocêntrico, seria

este um juízo moral deste instinto. A disputa presente na boa Eris não é uma selvageria do

ódio e do desejo de aniquilamento; a disputa é a essencialidade de uma condição sadia de

vida para os gregos. Tanto que Nietzsche afirma, no último parágrafo do texto A disputa de

Homero: “sem inveja, ciúme e ambição de disputa, tanto a cidade grega como o homem

grego degeneram”348.

Compreendida a importância da disputa para o homem grego, retomemos as

proposições presentes no aforismo 112 de Aurora. O equilíbrio a que se refere Nietzsche

neste aforismo assume a caracterização da justiça, nos mesmos termos da praticada pelo

homem grego. Trata-se, portanto, de um equilíbrio fundado no antagonismo do “espírito”,

347
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], 38. In: KSA, vol. 3, p. 45. Tr. p. 36-37.
348
NIETZSCHE, A Disputa de Homero, In: Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern. In: KSA, vol.
1, p. 792. Tr. p. 76.

136
ditado pela boa Eris. Era esse movimento constante de “troca” de poder, ou, se preferir, de

direito dos outros sobre nós e vice-versa, que mantinha os gregos em equilíbrio. A

dificuldade de estabelecer o equilíbrio dá-se justamente pelo fato dele não ser rígido, mas

construído e reconstruído a todo instante. É o movimento inerente a uma hierarquia de

poder, marcado pela oscilação de ascensão e queda, ou seja, o próprio movimento da luta

dos instintos. A desarmonia social não está, seguindo este pensamento nietzscheano, nas

diferenças entre poder ou nas manifestações dos instintos, mas na possibilidade de

pretender estabelecer uma igualdade constante, permanente e inalterável de poder, bem

como na transformação dos instintos pelos juízos morais que, como pretendeu o

cristianismo, acabam por domesticar e adestrar o dinamismo vital do homem.

Nossa relação com o outro, embora antagônica, é fundamental ao nosso

desenvolvimento, isso não significa que Nietzsche aqui esteja prescrevendo a fórmula para

o melhoramento do tipo “homem” tão almejado pelos utilitaristas que, erroneamente, sob a

perspectiva do filósofo, confundiram melhoramento com passividade, mansidão, enfim,

uma economia da vitalidade do homem. A questão não é estabelecer uma economia de

forças, mas excitar o esbanjamento de forças e energias “naturais” do homem. A crueldade

contra o próprio homem consiste, respectivamente, na estagnação da força, da vontade de

poder, de modo que eternamente o outro tenha direitos sobre nós. Este pensamento é da

essência da moral de rebanho, já que a obediência é característica singular do instinto

gregário.

Assim, correspondendo à dualidade presente em seus escritos, Nietzsche afirma,

ainda no aforismo 112 de Aurora, que os direitos surgem a partir de graus de poder

reconhecidos e assegurados e, assim, “se as relações de poder mudam substancialmente,

137
direitos desaparecem e surgem outros”349. Portanto, nestes termos, se há um equilíbrio na

filosofia política de Nietzsche, ou mesmo um possível momento de igualdade, por mais

ínfimo que seja o seu instante, ele é alcançado apenas no interior da dualidade, dos opostos,

da multiplicidade de forças que sustentam a filosofia nietzscheana. Este equilíbrio, se não

estivermos enganados em nossa análise, não significa uma unidade pacificadora na obra de

Nietzsche, mas a possibilidade efetiva de uma justiça (trágica), que preserva e intensifica a

tensão entre os extremos que movem a filosofia nietzscheana.

Por fim, se Nietzsche tem uma postura crítica com relação à democracia

moderna, não é pura e simplesmente um repúdio sem justificativa. Enquanto a justiça do

homem moderno foi sempre estimulada conforme o sentimento de impotência e medo350, o

que assegurou o exercício de uma atividade de preservação, Nietzsche formula seu projeto

político alternativo à decadência das políticas modernas a partir de proposições afirmativas

e construtivas, o que faz com que a conservação da espécie não ocupe posição de destaque

na filosofia de Nietzsche, mas sim a autosuperação. Deste modo, além de seu contra-

discurso aos ideais da modernidade, Nietzsche apresenta uma nova ética para a

modernidade, na qual o homem assume o ônus de determinar-se, enquanto homem, sob o

risco de ter que renunciar a sua autonomia e ser determinado por outrem, pelos deuses ou

pelos outros homens351. A filosofia de Nietzsche diz respeito, portanto, à afirmação e à

superação de si. Esta conclusão, que pode ser revista e repensada, pretende expressar a

forma com que buscamos refletir as (o)posições nietzscheanas frente ao valor da política

moderna.

349
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], 112. In: KSA, vol. 3, p. 101s. Tr. p. 83.
350
Ibid, 23. In: KSA, vol. 3, p. 34. Tr. p. 28.
351
Esta afirmação está presente no texto de Giacóia: Nietzsche & Para além de bem e mal, p. 51.

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