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252 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Avaliação da qualidade do acesso


na atenção primária de uma grande cidade
brasileira na perspectiva dos usuários
Assesment of quality of access in primary care in a
1 Doutora em Saúde
large Brazilian city in the perspective of users
Coletiva pela Universidade
Estadual de Campinas
(Unicamp) – Campinas Rosana Teresa Onocko Campos1, Ana Luiza Ferrer2, Carlos Alberto Pegolo da Gama3,
(SP), Brasil. Professora da
Faculdade de
Gastão Wagner de Sousa Campos4, Thiago Lavras Trapé5, Deivisson Vianna Dantas6
Ciências Médicas da
Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) –
Campinas (SP), Brasil.
rosanaoc@mpc.com.br

2 Doutora em Saúde RESUMO Este artigo visa compreender como usuários do sistema de saúde de uma metrópole
Coletiva pela Universidade
Estadual de Campinas brasileira avaliam o acesso aos serviços de atenção primária. Está é uma avaliação participa-
(Unicamp) – Campinas tiva de quarta geração, guiada pela metodologia hermenêutica Gadameriana. Foram conduzi-
(SP), Brasil. Professora
adjunta do Centro de dos quatro grupos focais com usuários. Narrativas foram construídas a partir das transcrições
Ciências da Saúde da usando o arcabouço teórico de Ricoeur. A atenção primária é reconhecida como a porta de
Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM) – entrada do sistema de saúde, mas o acesso é dificultado por: problemas de organização; uso do
Santa Maria (RS), Brasil. acolhimento como barreira ao acesso; falta de recursos humanos; dificuldades em dar segui-
aluizaferrer@gmail.com
mento ao tratamento. O modelo centrado na doença e a falta de análise crítica podem induzir
3 Doutor em Saúde Coletiva a descrença nos resultados da atenção primária.
pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp)
– Campinas (SP), Brasil. PALAVRAS-CHAVE Atenção Primária à Saúde; Saúde coletiva; Acesso aos serviços de saúde;
Professor adjunto da
Faculdade de Medicina Avaliação de programas e projetos de saúde; Participação social.
da Universidade Federal de
São João del-Rei
(UFSJ) – São João del-Rei ABSTRACT The article aims to understand how users of the health system of a Brazilian metropo-
(MG), Brasil. lis evaluate the acces s to primary care services. This is a participatory evaluation of the fourth
carlosgama@terra.com.br
generation type, guided by the Gadamerian hermeneutic methodology. We conducted four focus
4 Doutora em Saúde groups with users; narratives were constructed from the transcriptions using the theoretical fra-
Coletiva pela Universidade
Estadual de Campinas mework of Ricoeur. The primary care is recognized as the gateway of the health system; but ac-
(Unicamp) – Campinas cess is hampered by: problems of organization; using the reception as a barrier to the access; lack
(SP), Brasil. Professor
titular da Faculdade de of human resources; difficulties in following the treatment. The model centered on the disease
Ciências Médicas da and the lack of critical analysis may induce disbelief in the outcomes of primary care.
Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) –
Campinas (SP), Brasil. KEYWORDS Primary Health Care; Public health; Health services accessibility; Program evalua-
gastaowagner@mpc.com.br
tion; Social participation.
5 Doutorando em
Saúde Coletiva pela
Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) –
Campinas (SP), Brasil.
thitrape@gmail.com

6 Doutor em Saúde Coletiva


pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) –
Campinas (SP), Brasil.
deivianna@gmail.com

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 38, N. ESPECIAL, P. 252-264, OUT 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.2014S019
Avaliação da qualidade do acesso na atenção primária de uma grande cidade brasileira na perspectiva dos usuários 253

Introdução saúde coletiva. Há marcos conceituais im-


portantes da saúde coletiva: o cruzamento
Existe consenso sobre a importância da entre diferentes saberes e práticas; a ênfase
Atenção Primária à Saúde (APS) na melhora à integralidade e equidade na lógica do SUS;
dos indicadores de saúde de uma dada popu- a superação do biologicismo e do modelo clí-
lação. Ela funciona como porta de entrada do nico hegemônico (centrado no saber e prá-
sistema de saúde ofertando serviços próxi- tica médica, na doença, nos procedimentos,
mos ao local de moradia, favorecendo o aces- no ‘especialismo’ e na orientação hospita-
so, o vínculo e a atenção continuada centrada lar); a valorização do social e da subjetivi-
na pessoa e não na doença. Estudos apontam dade; a valorização do cuidado e não só da
que a APS tem capacidade para resolver 80% prescrição; o estímulo à convivência e ao
dos problemas de saúde de uma dada popu- estabelecimento de laços entre a população
lação e deve conciliar ações de assistência e os profissionais de saúde; a atenção à saú-
com prevenção e promoção da saúde além de organizada a partir da lógica de linhas do
de coordenar a atenção prestada nos outros cuidado e não da doença; a crítica à medica-
níveis do sistema, agindo como a base para lização e ao ‘mercado da cura’, entre outros
o trabalho dos níveis secundário e terciário princípios (CECCIM, 2008).
(OPAS, 1978; STARFIELD, 2002). O Sistema Único de Outro ponto fundamental nesse processo
Saúde (SUS) incorpora esses princípios e re- relaciona-se à questão da participação social
conhece que é a partir dos valores e deman- nas decisões referentes aos serviços de saú-
das da atenção primária que o planejamento de ofertados à população. Essa participação
de suas ações deve ser feito: é o planejamen- é um princípio doutrinário assegurado na
to ascendente (OPAS, 1978; STARFIELD, 2002). Constituição e nas Leis Orgânicas da Saúde
A expansão da atenção primária no país (8.080/90 e 8.142/90), no entanto, apesar
vem se dando, prioritariamente, por meio de representarem um inquestionável avan-
da implantação de equipes da Estratégia ço no plano legal, ainda encontram muitos
Saúde da Família (ESF), que atuam com desafios para a sua efetivação. As evidências
ações de promoção, prevenção, recupera- demonstram que a existência formal dos es-
ção, reabilitação e na manutenção da saúde paços de controle social não garante a parti-
da comunidade, sendo cada equipe respon- cipação política (MARTINS ET AL. 2008).
sável pelo acompanhamento de um número Apesar dos inúmeros avanços obtidos
definido de famílias em um território ads- nesse processo de ampliação da APS (BEZERRA,
crito. É diretriz da ESF trabalhar com ênfa- 2004; MACINKO ET AL., 2006), constata-se que exis-
se na formação de vínculo com a população tem dificuldades em superar a intensa frag-
e o envolvimento das equipes no cotidiano mentação das ações e serviços de saúde e
da comunidade, procurando garantir a inte- qualificar a gestão do cuidado (CAMPOS, 2003;
gralidade da atenção prestada e melhorar a CAMPOS; CHAKOUR; SANTOS, 1997; ONOCKO-CAMPOS ET
sua condição de vida (BRASIL, 2007). Na prática, prio-
AL., 2012; ONOCKO CAMPOS, 2005).
A proposta de mudança na APS vem rizam-se ações curativas e condições agu-
acompanhada da mudança no próprio pa- das, centradas na atuação do médico a par-
radigma que embasa as concepções sobre o tir da demanda e não nas reais necessidades
processo saúde-doença. Os idealizadores do dos usuários (COELHO; JORGE, 2009; TRAVERSO-YEPEZ;
SUS ligados ao Movimento Sanitário pro- MORAIS, 2004). Aliado a isso existem lacunas
põem mudanças radicais na concepção de assistenciais, financiamento público insufi-
saúde e, consequentemente, na organização ciente, distribuição inadequada dos serviços,
da atenção. Essas propostas podem ser sinte- com importante grau de trabalho precário e
tizadas no campo que emerge, denominado carência de profissionais para concretizar as

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254 CAMPOS, R. T. O.; FERRER, A. L. GAMA, C. A. P.; CAMPOS, G. W. S.; TRAPÉ, T. L.; DANTAS, D. V.

propostas da ESF (GIOVANELLA, 2008; MENDES, 2011). atendimento é positiva e o problema, quan-
Starfield (2002) diferencia acesso de acessi- do relatado, refere-se a obter acesso ao aten-
bilidade. A acessibilidade relaciona-se com a dimento, ou ao medicamento necessário, em
possibilidade das pessoas chegarem aos ser- um período de tempo considerado razoável.
viços e o acesso permitiria o uso oportuno A falta de médicos e a demora no atendimen-
dos serviços de forma a atender as necessi- to foram os problemas mais mencionados. A
dades do usuário. Souza et al. (2008) apontam principal razão para a adesão a um plano de
que o acesso envolve a consecução do cuida- saúde suplementar está relacionada com a
do a partir das necessidades e está vinculado maior rapidez para realizar consulta ou exa-
com a resolubilidade, extrapolando a sim- me e à liberdade para a escolha do médico
ples dimensão geográfica e incluindo outros que fará o atendimento. Esses achados suge-
aspectos de ordem econômica, cultural, or- rem que a população almeja um acesso mais
ganizacional e de oferta de serviços. fácil, rápido e oportuno aos serviços.
Jesus e Assis (2010), Assis e Jesus (2012), Dentro desse contexto, a questão do aces-
baseados em Giovanella e Fleury (1995) vão so ganha importância e começa a ser aborda-
propor um modelo de análise do acesso aos da de maneira mais complexa na medida em
serviços procurando uma compreensão mul- que, apesar da garantia da lei, na prática ain-
tidimensional do problema levando em con- da existe um acesso seletivo, focalizado e ex-
ta aspectos sociais e políticos. São propostas cludente em várias regiões e serviços vincu-
cinco dimensões: política, econômico-social, lados ao SUS (ASIS; JESUS, 2012). Observa-se uma
técnica, organizacional e simbólica. Essas di- tendência de ampliação da abrangência do
mensões teriam como orientadores os prin- conceito de acesso, deixando de enfocar so-
cípios da responsabilização, resolutividade e mente a questão da entrada nos serviços para
equidade funcionando como norteadores na incorporar também os resultados dos cuida-
construção das políticas públicas. dos recebidos, dando importância à discus-
Em fevereiro de 2011, o Instituto de são da justiça social e da equidade (TRAVASSOS;
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divul- MARTINS, 2004). Percebe-se também que ele
gou pesquisa domiciliar realizada junto às deixa de ser tratado em bases estritamente
famílias brasileiras utilizando o Sistema de quantitativas (número de atendimentos e
Indicadores de Percepção Social (SIPS) (IPEA, rendimento das horas profissional), passan-
2011). Essa pesquisa trabalha com um sistema do a levar-se em conta aspectos qualitativos
de indicadores sociais para verificação de ligados ao acolhimento e seguimento do tra-
como a população avalia os serviços de uti- tamento no sistema, envolvendo elementos
lidade pública e o grau de importância deles tanto da população adstrita quanto dos ser-
para a sociedade. Dentre os serviços avalia- viços que lhe são ofertados, bem como os va-
dos no SUS, o atendimento na ESF foi avalia- lores que existem no território (STARFIELD, 2002).
do por 80,7 % dos entrevistados como bom Vários estudos (GOMES; PINHEIRO, 2005; RAMOS;
ou muito bom. O atendimento prestado em LIMA, 2003; SCHIMITH; LIMA, 2004; TAKEMOTO; SILVA, 2007;
centros de saúde e o atendimento de urgên- TESSER; POLI NETO; CAMPOS, 2010) apontam
o acolhi-
cia ou emergência foram os serviços com mento na APS como mais um procedimento
avaliações mais negativas. Foram bem avalia- técnico burocratizado, geralmente realizado
dos os serviços em que o acesso é previamen- por técnicos de enfermagem, servindo como
te agendado ou rotineiro, como consultas um filtro para definir o acesso aos serviços.
com médicos especialistas acessíveis, dis- Essa concepção não condiz com a diretriz
tribuição gratuita de medicamentos e aten- do acolhimento, que deveria proporcionar
dimento em saúde da família. Nesses casos, uma ação de aproximação às reais neces-
a percepção da qualidade (ou satisfação) do sidades dos usuários, tecendo uma rede de

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Avaliação da qualidade do acesso na atenção primária de uma grande cidade brasileira na perspectiva dos usuários 255

conversações (TEIXEIRA, 2003) em toda a atividade índices socioeconômicos e alta taxa de vulne-
assistencial, servindo como uma ferramenta rabilidade social (IBGE, 2006). Também foram in-
para organização dos serviços, principalmen- cluídas características estruturais e dados de
te para o atendimento da demanda espontâ- produção semelhantes das UBS, a fim de evi-
nea. Barbosa et al. (2013) propõe que o acolhi- tar dimensões díspares quanto aos recursos
mento deve ser entendido em três sentidos: instalados e à área de abrangência.
como postura assumida pelos profissionais, Foram realizados quatro GF com usuários
como técnica capaz de gerar procedimentos dos serviços pesquisados. A seleção dos usu-
organizados e como princípio orientador re- ários incluiu adultos de ambos os sexos, que
velando um projeto institucional. conhecessem a UBS há mais de seis meses,
O objetivo deste artigo é apresentar como que tivessem utilizado o serviço de saúde pelo
os usuários de Unidades Básicas de Saúde menos três vezes no último semestre (antes
(UBS), com cobertura da ESF em uma gran- da realização dos grupos) e que apresentas-
de cidade brasileira, avaliam o acesso a esses sem interesse e desejo em participar do estu-
serviços e quais suas percepções a respeito do. Pretendeu-se, assim, selecionar verdadei-
da qualidade da assistência prestada pelas ros utilizadores dos serviços em estudo.
equipes de saúde que consideramos elemen- Para contemplar os objetivos da pesqui-
to fundamental para legitimação, ou não, da sa avaliativa que pretendia avaliar arranjos e
APS como porta de entrada do sistema de estratégias inovadores implantados na rede
saúde brasileiro. de atenção primária em busca da melhora da
eficácia do SUS através da melhora do segui-
mento clínico pela avaliação da frequência
Metodologia de acidente vascular cerebral (AVC); da ar-
ticulação entre as redes de APS e de saúde
Neste artigo, apresenta-se parte dos resulta- mental e da efetiva implantação de estraté-
dos de uma pesquisa avaliativa sobre arran- gias de promoção à saúde optou-se por con-
jos e estratégias inovadoras na organização vidar seis usuários com hipertensão e seis
da atenção primária em uma grande cida- usuários portadores de transtornos mentais
de do estado de São Paulo, financiada pelo para cada GF.
Programa de Pesquisa em Políticas Públicas Além dos critérios de seleção descritos
do Sistema Único de Saúde, através do convê- acima, considerou-se que um dos quatro
nio entre a Fundação de Amparo à Pesquisa GF foi composto exclusivamente por usu-
do Estado de São Paulo, o Conselho Nacional ários que compunham os Conselhos Locais
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico de Saúde (CLS), convidados pelos gestores
e o Sistema Único de Saúde. Tal estudo rea- das unidades envolvidas. Os outros três GF
lizou-se como uma avaliação de quarta ge- não continham usuários dos CLS. A escolha
ração (GUBA; LINCOLN, 1989), de caráter partici- desses usuários foi realizada pelo próprio
pativo (FURTADO; CAMPOS, 2008), conduzido com serviço, que elegeu um dia para convidar os
base na hermenêutica Gadameriana (GADAMER, usuários que chegassem ao serviço para par-
2007) como postura metodológica, cujo dese- ticipar do estudo, caso estivessem dentro dos
nho qualitativo utilizou a técnica de Grupos critérios de inclusão. Tentou-se dessa ma-
Focais (GF) (GONDIM, 2002; MIRANDA; FERRER; ONOCKO neira evitar uma indicação direta do usuário
CAMPOS, 2008) para a coleta de informações. pelo profissional do serviço.
Foram analisadas seis UBS dos dois distritos Todos os grupos tiveram um coordenador e
de saúde mais populosos da cidade, que apre- um anotador e obedeceram a um roteiro pre-
sentavam — no momento de coleta das in- estabelecido. Cada grupo, em média, teve oito
formações para escolha das UBS — os piores participantes e foram realizados em locais

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256 CAMPOS, R. T. O.; FERRER, A. L. GAMA, C. A. P.; CAMPOS, G. W. S.; TRAPÉ, T. L.; DANTAS, D. V.

próximos das UBS estudadas a fim de facilitar principalmente quando é o caso de alguma espe-
a participação dos sujeitos da pesquisa. cialidade. O problema é que os encaminhamentos
Os encontros dos grupos foram gravados são muito demorados, leva até um ano pra gente
em áudio e transcritos na íntegra. Para aná- ser atendido. (narrativa de usuários).
lise e interpretação, foram construídas nar-
rativas (ONOCKO CAMPOS; FURTADO, 2008) a partir Os usuários descrevem o acesso ao serviço
das transcrições, utilizando-se o referencial da APS como algo burocrático e demorado,
teórico de Ricoeur (1990). Os núcleos argu- desde o tempo de espera do agendamento
mentais de cada narrativa foram analisados, até o dia da consulta, como também o pró-
realizando-se, posteriormente, uma compa- prio processo de atendimento no serviço
ração entre as narrativas, a fim de identificar (seja este agendado ou não). Atribuem essas
as diferenças e semelhanças entre elas. Esse dificuldades à falta de profissionais médicos
processo longo e trabalhoso obrigou os pes- e à alta rotatividade dos mesmos nas UBS. O
quisadores envolvidos a passar várias vezes acolhimento é apontado como um espaço de
pelo mesmo lugar, trabalhando os conteúdos escuta aos seus problemas e de orientação,
avaliados repetidas vezes, gerando o movi- mas o criticam por constituir-se em uma for-
mento da espiral interpretativa, como pro- ma de controlar o acesso àquilo que é mais
põe a hermenêutica de Gadamer (2007). esperado: a consulta com o médico.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de
Ética (em 25/9/2007, registro nº 562/2007) Quando chegamos ao posto com algum proble-
e todos os sujeitos que aceitaram participar ma, primeiro passamos pela recepção, que defi-
assinaram o Termo de Consentimento Livre ne se vamos passar com o enfermeiro. Este, por
e Esclarecido (TCLE) conforme a declara- sua vez, vai escutar nosso problema e decidir se
ção de Helsinki. passamos pelo médico ou não. Muitas vezes, o
enfermeiro conversa com o médico que nem nos
examina e já passa o remédio, ou manda pro
Resultados e discussão pronto socorro ou marca uma consulta. Esse é o
modo como funciona o acolhimento, mas quan-
Os usuários declaram procurar as UBS quan- do o caso é grave chamam o médico. (narrativa
do apresentam algum problema de saúde, de usuários).
pois consideram o atendimento melhor do
que em outros locais a que têm acesso. No No posto, não gostamos deste negócio de fichi-
entanto, queixam-se da demora do atendi- nha ou senha, é muito número e burocracia, é
mento e, consequentemente, da resolução de numero pra isso, número pra aquilo; você chega
seus problemas de saúde: pra medir pressão e tem que ficar 3 horas espe-
rando. Imagina quem mede 3 vezes ao dia, fica
Quando estamos com algum problema procura- o dia todo no posto. A gente acha que é rápido,
mos o médico daqui do posto. Eles são bons, o 30 minutos, mas demora; pra pegar remédio é a
problema é a tal da agenda que demora pra ser mesma coisa (...). (narrativa de usuários).
aberta, então às vezes vamos ao Pronto Socorro.
(narrativa de usuários). Marques e Lima (2007) também apontam
a burocratização das ações e procedimentos
Quando ficamos doentes, alguns de nós vamos ao na atenção primária, afirmando que muitas
Pronto Socorro, pois achamos que tem mais con- vezes se perde a noção das necessidades da
dições que o Posto. Mas, a maioria vai ao posto pessoa (cidadão), das potencialidades do sis-
mesmo, por que consideramos o atendimento me- tema e da possibilidade de formação de re-
lhor. Quando eles não dão jeito, nos encaminham, des de atendimento.

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Avaliação da qualidade do acesso na atenção primária de uma grande cidade brasileira na perspectiva dos usuários 257

Em alguns grupos, os usuários referem Tal postura dos usuários, com certeza,
chegar ainda de madrugada no serviço para contribui para o excesso de demanda dos
garantir uma senha de atendimento. No en- prontos-socorros, que deveriam dedicar-se
tanto, nem sempre conseguem uma consulta ao atendimento das urgências/emergên-
médica, ou mesmo um ‘acolhimento’ inicial cias. No entanto, parece presumível que,
às suas queixas. diante das dificuldades de acesso aos servi-
ços da Atenção Básica, os usuários tentem
Temos que chegar de madrugada, por que às 7h outras formas para conseguir atendimen-
já não tem mais senha. E mesmo com a senha, to. A cultura de procurar os hospitais para
na maioria das vezes somos atendidos depois atendimento de casos que deveriam ser
das 10h. À tarde, é praticamente impossível con- resolvidos pela Atenção Básica não é uma
versar com alguém do posto, caso a gente tenha questão inerente ou exclusiva do sistema
algum problema de saúde e não tenha consulta de saúde brasileiro. Estudos (LEGA; MENGONI,
agendada. Achamos que todo mundo que chega 2008; STEEL, 1995) apontam que essa situação é
ao posto de saúde, seja às 4 horas da manhã ou frequente, sendo difícil reverter essa ten-
ao meio dia, tem que ser atendido, pelo menos dência. Lega e Mengoni (2008) apostam que
pelo acolhimento de um auxiliar de enfermagem. talvez fosse necessário potencializar algu-
(narrativa de usuários). mas características próprias da APS (como
o vínculo, a longitudinalidade da atenção),
Na visão dos usuários, a super-regulação do a fim de incentivar as pessoas a procurarem
acesso à consulta médica feita pelos profissio- os médicos de família. a coordenação de ca-
nais da enfermagem, aliada à impressão pessoal sos pela APS poderia estreitar as relações
de que o seu problema de saúde seja urgente, com o nível secundário, viabilizando aces-
faz com que busquem outra maneira de resolver so mais rápido a exames e procedimentos
seus problemas, preferindo buscar atendimento diagnósticos. Barbosa et al. (2013) apontam
na urgência ou no nível secundário: que alguns profissionais que trabalham na
APS apresentam baixa capacidade de tomar
Só quando é consulta a gente acompanha lá no decisões e de visualizar problemas e suas
posto. Se for coisa simples a enfermeira mesmo possíveis soluções. Schwartz et al. (2010) se
resolve. Ela faz a consulta, conversa, faz as ano- deparam com questões muito semelhantes
tações na ficha. Se ela não puder resolver, ou ela e ressaltam a importância do diálogo e do
fala com o médico e ele dá a receita, ou o médico acolhimento das demandas da população
vem te atender. Funcionário, até que tem bastan- adscrita da ESF aproveitando esse momen-
te no posto. O que falta é médico. Quando a gente to para informar de maneira clara e acessí-
precisa de alguma coisa mais urgente, é melhor ir vel a respeito da hierarquização dos servi-
direto no hospital, porque chega lá no posto eles ços de saúde, o poder de resolução da APS,
querem te passar com a enfermeira, aí joga para a forma de organização e o cardápio de op-
um, joga para outro, até que a enfermeira diz que ções que o serviço tem a oferecer. Para eles,
vai te fazer a receita. Mas cadê o médico? Nem não está claro para a população o processo
conversar com ele ela conversou... Como é que de descentralização da rede de serviços, ha-
pode atendimento assim? Não é que o posto re- vendo falta de informação e dificuldades na
jeite paciente, mas se um exame complicou eles questão da referência e contrarreferência.
vão te mandar para qualquer outro canto, porque Outra questão que se destaca a partir da
geralmente coisas complicadas têm que resolver fala dos usuários é a referência biomédi-
fora. E também tem uma ordem:primeiro você ca para o próprio cuidado em saúde, que
tem que chegar no seu posto de saúde, só depois aparece quando afirmam que só os médi-
você é encaminhado. (narrativa de usuários) . cos poderão resolver seus problemas de

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258 CAMPOS, R. T. O.; FERRER, A. L. GAMA, C. A. P.; CAMPOS, G. W. S.; TRAPÉ, T. L.; DANTAS, D. V.

saúde. Isso também repercute na manei- Os usuários sabem quais são as pessoas
ra como lidam com a autonomia e formas que os atendem e demonstram conhecer o
de negociação do tratamento, uma vez que funcionamento dos serviços, referindo-se às
delegam quase tudo ao saber médico. Tal equipes de referência divididas por regiões.
achado também se apresenta no estudo de Reclamam quando falta médico nas equipes
Coelho e Jorge (2009). de referência, sobrecarregando os médicos
A partir dessa posição de ‘usuários/pa- das outras equipes. Também referem que
cientes’, resignados à espera de uma resposta gostariam de poder escolher o profissional
médica aos seus problemas de saúde, é pos- que vai atendê-los:
sível entender quando eles próprios se cul-
pam pelo mau atendimento nos serviços da Às vezes temos mais empatia por um médico
Atenção Básica. Essa culpa e conformismo que atende na equipe diferente da nossa e isso é
dos usuários pelo descaso na qualidade da ruim, porque gostaríamos de ser atendidos por
assistência foram achados em outra pesquisa ele, pois nos sentimos melhores, mais acolhidos
(TRAVERSO-YEPEZ; MORAIS, 2004). (narrativa de usuários).

Achamos que as pessoas que seguem direitinho Há o reconhecimento positivo sobre o


as recomendações são mais bem tratadas do que trabalho das equipes de referência (CAMPOS,
as que não tomam os remédios direito, não par- 1999): afirmam que é eficaz e contribui para
ticipam de algum grupo indicado, etc. Por isso, a formação de vínculo entre profissionais e
para alguns de nós, a culpa pelo mau atendimen- usuários. No entanto, seria necessário pen-
to no posto é dos próprios pacientes, pois se fize- sar modelos de organização com maior fle-
rem o tratamento que o médico manda certinho, xibilidade na atribuição dessas referências,
eles vão ficar contentes e nos atenderão bem. levando-se em consideração o respeito à es-
(narrativa de usuários). colha do usuário e seu desejo de querer ser
atendido por determinado profissional.
Por outro lado, os usuários parecem re- Os usuários atribuem muita importân-
conhecer que a organização do trabalho na cia às consultas médicas e, quando as con-
APS proporciona maior agilidade para os ca- seguem, afirmam que esperam por um bom
sos de maior risco e vulnerabilidade: atendimento, sobretudo por mais atenção
durante as consultas:
O padrão é fazer o exame e caso dê alterado al-
guém liga na casa convocando e marcando com Quando vamos à consulta com o médico, falamos
o médico.se não der alterado você só vai saber sobre nossa doença. Esperamos um bom atendi-
na próxima consulta, e é sempre com o mesmo mento e também que nossos problemas sejam so-
médico (narrativa de usuários). lucionados. (...) Tem médico que nem olha na cara
da gente, não diz o que a gente tem e já passa re-
Tem que ter paciência, o posto não é particular, médio. Tem médico que é uma delicadeza: conver-
é atendimento do SUS. (...) Mas o pessoal lá sa, escuta, é assim muito amigo, conversa de outro
do posto nunca esquece do nosso endereço, da assunto, tem um diálogo. Não está ali como um
nossa casinha, vão sempre avisar do que precisa, robô, só para te dizer: “olha, você está isso e aquilo,
vão na nossa casa com o maior cuidado. Demora precisa parar de comer isso e tchau, acabou sua
sim, as consultas demoram. Caso urgente logo consulta”. Eles têm que ser mais prestativos. Têm
tem resposta, os outros é que vão ter que esperar. que nos escutar e perguntar (...). E mesmo assim,
Ainda bem que nem todo mundo fica doente no ele pode perguntar de tudo, mas eu só vou falar
mesmo dia! (narrativa de usuários) sobre o que eu quiser falar com ele. Para a gente se
abrir, vai depender do médico, não é com qualquer

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Avaliação da qualidade do acesso na atenção primária de uma grande cidade brasileira na perspectiva dos usuários 259

médico que a gente fala. você não vai se abrindo P.S. sabemos que eles irão exigir um documen-
só porque ele é médico. tem que ter confiança... to comprovando nossa passagem primeiro pelo
(narrativa de usuários). posto. Somos encaminhados quando precisamos
de consulta de um especialista, ou mesmo quan-
Barbosa et al. (2013) destacam a importân- do precisamos fazer um exame mais específico.
cia da escuta e do diálogo entre o sujeito de- Achamos que os postos que frequentamos dão
mandante e o profissional de saúde, pois esse o atendimento necessário para a população. É
diálogo possibilitaria que a intersubjetivida- claro que problemas sempre existem e são ‘nor-
de entrasse em ação ajudando a combater mais’, como falta de remédios e de médicos. A
as práticas de fragmentação da assistência população também nunca se contenta com o
e objetivação dos sujeitos, concretizadas em que tem, sempre reclama de alguma coisa, mas
ações mecanizadas e desumanas. Apontam a gente vê o esforço das coordenadoras para con-
que apesar dos profissionais demonstrarem seguir melhorias, completar as equipes e sempre
afinidades com o trabalho executado, re- procuramos levar isso para a população. Para nós
velam pouca sensibilidade com relação às o atendimento é muito bom. (narrativa de usuá-
necessidades reais da comunidade e iden- rios, conselheiros).
tificação dos verdadeiros problemas, o que
permitiria uma transformação no sentido de Chama atenção a facilidade com a qual
melhorar o acesso e o cuidado da população. ‘normalizam’ as faltas e a sua solícita compre-
A relação usuário-profissional deveria es- ensão com os problemas da gestão e, por outro
tar baseada na mudança de paradigma, isto lado, culpam a população. Sanchez e Ciconelli
é, encampar os princípios da saúde coletiva, (2012) apontam alguns estudos que demonstram
tendo como foco a saúde e não a doença. que o nível educacional, a bagagem cultural, as
Percebemos diferenças entre as narrati- crenças e a relação do indivíduo com o sistema
vas dos grupos de usuários sem história de de saúde definirão a liberdade e o modo de uti-
participação na gestão e narrativa do grupo lização dos serviços de saúde, o que se traduz
de usuários que desempenhavam função de em melhores ou piores condições de acesso.
conselheiros de saúde. Ocorreram diferen- McIntyre e Mooney (2007) afirmam que o tipo
ças em relação à avaliação dos serviços pes- de informação que o profissional de saúde e
quisados, principalmente no tocante ao aces- o usuário possuem é um importante determi-
so, à qualidade do atendimento e à resolução nante da qualidade da interação entre o siste-
dos problemas de saúde da população. ma de saúde e o indivíduo.
Os problemas relatados pelos usuários dos Os usuários conselheiros afirmam que a
três grupos não eram enfrentados pelos usu- maioria das queixas que recebem é em rela-
ários conselheiros, que disseram não sentir ção à demora pelo atendimento na UBS, de-
dificuldades em conseguir uma consulta mé- mora em conseguir consulta com especia-
dica. Os usuários conselheiros afirmaram es- listas e também para realização de exames.
tar satisfeitos em relação ao atendimento de Concordam que esses pontos deveriam ser
suas necessidades. Alegavam, todavia, não melhorados e dizem lutar por isso. Afirmam
possuir nenhuma regalia no acesso aos ser- que essa demora tem a ver com a falta de
viços pelo fato de desempenharem tal fun- profissionais (principalmente de médicos)
ção de representação social. Demonstraram nas UBS. Outro problema levantado pelos
conhecer o funcionamento dos serviços e os conselheiros refere-se à continuidade do
fluxos de encaminhamentos: tratamento, pois alegam que muitas pes-
soas ficam à deriva, sem referência algu-
Quando precisamos de atendimento procura- ma quando um profissional sai do serviço,
mos primeiro o posto de saúde, pois se formos no prejudicando sobremaneira as pessoas que

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sofrem de doenças crônicas e que necessi- Conclusão


tam de acompanhamento sistemático.
Os usuários conselheiros dizem que é Um problema crônico do SUS está ligado à
muito difícil a população participar das reu- inadequada política de pessoal em geral e à
niões do Conselho Local de Saúde, mesmo falta de profissionais médicos em particular.
utilizando recursos como convites, cartas A definição em manter a porta aberta para
e agendamento prévio. No entanto, sentem quem chega com demandas na APS não deve
que representam as necessidades da popula- ser confundida, necessariamente, com ga-
ção, referindo orientar as pessoas, fiscalizar rantia de acesso. O acesso estaria ligado à ob-
o dia a dia dos serviços e acompanhar o an- tenção de determinado tipo de ação que seja
damento das reclamações. resolutiva para o tipo de problema de saúde
Por outro lado, foi recorrente a fala de do usuário. As dificuldades para marcação de
usuários nos três outros grupos focais dizen- consultas com alguns especialistas e a demo-
do que não se sentem representados pelos ra na realização de alguns exames criam uma
seus pares conselheiros, muitos nem sabem descrença no papel ordenador da APS e aca-
quem são as pessoas que ocupam esse lugar. bam servindo como álibi para as tentativas de
Acham o Conselho lento e burocrático e di- deslocar a APS como porta de entrada do SUS.
zem que quando querem reclamar procuram Concebemos acesso como acesso ao sistema
o coordenador do serviço ou a ouvidoria da de saúde nos seus diversos níveis de atenção.
prefeitura. No entanto, também não sentem Nas narrativas dos usuários, percebe-se
que seus problemas sejam ouvidos, alegan- que não está consolidada a incorporação
do que: “quando a gente queixa, eles [coorde- do modelo proposto pela ESF. Identifica-se
nadores] podem fazer o que quiser conosco” uma oscilação entre demandas muito cen-
(narrativa de usuários). tradas no paradigma biomédico, cujas ações
Martins et al. (2008) identificam uma série exigidas são curativas e sempre centradas na
de problemas na questão da participação so- figura do médico e outras demandas que re-
cial e da representatividade dos conselhos, velam a incorporação de um modelo ligado
na medida em que muitas vezes acontecem à proposta da saúde coletiva, que conside-
ingerências políticas na escolha de conse- ra a prevenção. Percebe-se ainda que, para
lheiros, o que levam estes a não represen- muitos usuários, o acesso ao sistema de saú-
tar verdadeiramente os interesses dos cida- de é sinônimo de acesso ao profissional mé-
dãos comuns. Apontam também o fato de dico, sendo que as diversas ações realizadas
os conselhos serem pouco conhecidos e seu antes desse contato são entendidas como
trabalho pouco divulgado. A maioria da po- formas de triagem, de represamento da de-
pulação desconhece os objetivos, as funções manda com relação a um tipo de profissio-
e a atuação do conselho, o que produz um nal que é escasso. A ESF tenta contrapor essa
distanciamento e não participação nas de- lógica ainda dominante, inserindo na equipe
cisões. Essa situação induziria os gestores e multiprofissional aspectos preventivos e de
autoridades públicas a desqualificarem o pa- promoção à saúde, além de uma relação hu-
pel dos conselheiros, assumindo o controle manizada, valorizando o vínculo entre pro-
das atividades e transformando o conselho fissionais e população.
em instâncias meramente homologatórias É possível que a mudança de compreen-
das decisões do gestor, não potencializando são por parte da população, a respeito da
o conselho como dispositivo de alteração das importância das diversas ‘clínicas’ na área
relações de poder entre sociedade e Estado. da saúde e da necessidade do estabeleci-
mento de fluxos e regulações, possa melho-
rar por meio de uma atividade pedagógica

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Avaliação da qualidade do acesso na atenção primária de uma grande cidade brasileira na perspectiva dos usuários 261

desenvolvida pela própria equipe no sentido para os usuários, como demonstrado neste
de apresentar para os usuários evidências estudo. Essa constatação confirma diver-
de eficácia de práticas que se contraponham sos outros estudos sobre a questão do aco-
a lógica biomédica. Como já foi apontada, lhimento (GOMES; PINHEIRO, 2005; RAMOS; LIMA, 2003;
a questão da informação do usuário pode- SCHIMITH; LIMA, 2004; SOUZA ET AL., 2008).
ria ser pensada como uma estratégia contí- Percebeu-se uma distância entre as opi-
nua de transformação da lógica do sistema. niões do GF dos usuários participantes dos
Percebe-se a necessidade de trocas e diálo- CLS e os usuários dos demais GF. Quando se
gos entre os profissionais — que são portado- construiu a proposta da pesquisa, pensou-
res de saberes técnico-científicos — e a po- se em formar um GF com conselheiros para
pulação, de modo que possa ser construído identificar a postura desse grupo, pois tinha-
de forma compartilhada um conceito sobre se como hipótese que ele seria mais esclare-
o processo saúde-doença. Barbosa et al. (2013) cido e mais crítico, haja vista o engajamento
identificam a necessidade de que esse conta- político e a proximidade maior com os pro-
to não seja baseado numa relação de poder fissionais, com a lógica de funcionamento
autoritária onde haja imposição e persua- da UBS e do SUS. No entanto, algumas falas
são pela autoridade do profissional, mas, ao dos usuários conselheiros surpreenderam a
contrário, seja uma relação dialógica em que equipe de pesquisa. Apesar da participação
haja espaço para uma verdadeira troca, pos- no GF confirmar que os conselheiros conhe-
sibilitando a construção de novos sentidos, ciam mais profundamente a estrutura de
significados individuais e coletivos sobre o funcionamento da unidade e esse conheci-
processo ‘saúde-doença-cuidado’. mento propicia, inclusive, maior condição
O estudo sugere, porém, alguns aspec- de acesso ao sistema, algumas de suas falas
tos que podem explicar as críticas apresen- revelaram um descolamento com relação ao
tadas aos serviços da APS pela população. fato de continuarem a ser usuários do siste-
Nenhum sistema universal do mundo fun- ma e uma identificação com o discurso de
ciona sem garantir, com agilidade, o acesso uma parcela dos profissionais dos serviços
ao médico generalista. Discussões sobre a que culpam a própria população pela dificul-
ampliação e qualificação da clínica não de- dade de acesso. A falta de educação do povo
veriam ofuscar esse grave entrave do siste- e certa desorganização impediriam que os
ma brasileiro. A adscrição de usuários rea- usuários ‘obedecessem’ as regras do serviço.
lizada em base territorial, como estimula a Percebe-se uma retórica que, de certa ma-
ESF, também poderia ser flexibilizada. Os neira, justifica a postura ‘obediente’ frente
usuários se manifestaram claramente contra aos trabalhadores da saúde e particularmen-
a impossibilidade de escolher o seu médico te aos médicos e que aponta para a necessi-
e sua equipe em particular. Outros sistemas dade de se trabalhar muito ainda em termos
universais operam também com a lógica da de consciência sobre os direitos cidadãos na
adscrição, porém liberam os seus usuários população brasileira. Chama atenção esse
para se cadastrar onde e com quem prefe- achado em se tratando de uma grande cidade
rirem e aceitam mudanças com certa perio- da região sudeste do país, com uma tradição
dicidade. A longitudinalidade (e, portanto, de rede de serviços consolidada, o que faz
a construção de vínculo) mostrou-se fragi- pensar que a situação em regiões desfavore-
lizada pela não fixação dos profissionais. O cidas possa ser ainda mais grave.
recurso ao acolhimento, inicialmente pensa- Ponto forte: Este estudo trouxe à tona as re-
do para humanizar o primeiro contato com flexões e pensamentos da população usuária
os usuários e para qualificar a avaliação de sobre o acesso possível em UBS de uma gran-
risco, transformou-se em mais uma barreira de cidade de forma crítica superando a mera

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categoria de ‘satisfação’ dos usuários. A rela- Possível viés: O convite aos membros do
tiva complacência com que esses usuários se grupo de usuários conselheiros pela gestão
declaram em relação às dificuldades de aces- das UBS pode ter influenciado as declarações
so e continuidade da atenção faz-nos refletir destes usuários conselheiros, excessivamente
sobre a fragilidade da categoria satisfação de empáticos com os problemas da gestão. s
usuários para estudos da realidade brasileira.

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