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H. A. KIPPER

A HAPPY
HOUSE
IN A BLACK
PLANET 2:
UMA
INTRODUÇÃO
À SUBCULTURA
GÓTICA
1ª ediÇÃo

SÃO PAULO
2018
HENRIQUE ANTONIO KIPPER

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Agradecimentos desta obra

Agradeço a toda cena gótica paulista e brasilei-


ra pela energia e alegria que tem compartilhado
comigo ao longo dos anos desde que pus os pés
pela primeira vez em uma festa desse estilo, em
1990. Vocês são uma segundo lar para mim, um
lar que não pode ser demolido ou fechado, pois
é feito de ideias e pessoas. Agradeço ao carinho
e gentileza com que vocês prestigiam e compar-
tilham nosso trabalho.

Agradeço minha amada esposa Flávia não só


pelo companheirismo no dia a dia, mas por to-
dos os insights e ideias surgidos de nossas con-
versas sobre a cultura gótica e sobre as comple-
xidades do ser humano.

E agradecimentos a amiga Thaís de Paula que


fez um grande trabalho de revisão textual (e sal-
vou vocês de minhas bagunças...) tornando este
livro muito mais agradável.

Guarulhos, SP, verão de 2018

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SUMÁRIO:

- Introdução: Por que um 2º volume


de Happy House? 9

PARTE 1:
MÚSICA, POLÍTICA SUBCULTURAL & VISUAL

1. Carta aos Neófitos 14


2. 10 Coisas que os Góticos não são 18
3. Mais Perguntas do FAQ Gótico 20
4. Origens do Visual e Gótico 25
5. 60 Bandas para Começar a Conhecer 28
6. Bandas mais Recentes 30
7. Subcultura Gótica: Diversificada no Visual e Na Música 31
8. Lacrimosofobia ou Goticofobia? 33
9. O Gótico “não veio” do “Punk” 39
10. Goticismo, uma palavra Torturada 50
11. As Catedrais eram Góticas? 51
12. Liberdade Religiosa na Subcultura Gótica 54
13. Os Ciclos na Cena Gótica 55
14. Drogas: Careta, Alternativo, Pessoal ou Social? 58
15. O Machista que se acha Alternativo 60

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PARTE 2:
ARQUEOLOGIA SIMBÓLICA
& LITERATURA GÓTICA

- Introdução da Parte 2: This Corrosion of Body And Soul 64


1. Cidades dos Condenados: Foucault e as Origens
do Imaginário de Medo Ocidental 66
2. Cronologia de Obras Góticas do Século XVIII e XIX 74
3. Contexto Histórico da Literatura Gótica 76
4. Características da Literatura Gótica (versus Romantismo) 79
5. Recepção e Crítica Literária do Estilo Gótico 86
6. O Início: Otranto, Vathek e o Monge 90
7. Relações entre o Gótico Subcultural e a Literatura Gótica 93

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PARTE 3:
GÓTICO E SUBCULTURAS
NO SÉCULO XXI

1. Diferenças entre os conceitos de Tribo e Subcultura 98


2. Culturas e Subculturas nunca estão “Prontas” 102
3. O que é Homologia: o Significado dos Estilos 104
4. O que é Resignificacao & Reapropriação 108
5. Translocalidade da População Gótica 110
6. Micromídia e Microcomércio nas Subculturas Translocais 114
7. O Tempo & o Ritmo na Economia Subcultural 117
8. O Conhecimento “Deslocalizado” 124
9. Colapso do Capital Subcultural
como Instrumento de Poder 125
10. Sobre Azeitonas, Rótulos e Hamlet:
questão ontológica x questão social 130
11. O Rolê não é a Cena: A Ponta do Iceberg 133
12. As ideias de Underground
que prejudicam o Underground 135
13. Existe uma Ideologia Gótica? 143

PARTE 4:
CONTEXTO SOCIOLÓGICO

1. Glocal: Etnopaisagens e Dromocracia 146


2. Etnofobia: A Demonização do Conceito de Identidade
na Ideologia Pós-Moderna 149

- BIBLIOGRAFIA 162
- Biografia do Autor 166

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INTRODUÇÃO:

POR QUÊ UM SEGUNDO VOLUME


DE HAPPY HOUSE?

Em 2008, o primeiro volume de “Happy House” foi lançado em um


clima de urgência, tanto na versão impressa quanto na online, que
foi disponibilizada na íntegra para download gratuito.

Urgência provocada pela percepção de que a informação relativa a


subcultura gótica se perdia a cada virada de geração. Tendo acom-
panhado a cena gótica local desde 1990, já presenciei várias gera-
ções que chegaram a um nível grande de informação não conseguir
fazer a passagem geracional.

E toda vez recomeçávamos do zero, o que havia acabado de se mos-


trar uma tragédia no período anterior a 2008, quando fomos atin-
gidos pela moda Gothic Metal – e teorias relacionadas - sem que
a subcultura gótica tivesse uma base de informação minimamente
estruturada e acessível a todos para mostrar não só que ainda exis-
tia, mas que tinha seus conceitos e tradições.

Felizmente na época já tínhamos conseguido estabelecer uma co-


municação mínima, e apesar de não ser uma obra perfeita, alcançou
seu objetivo de ser uma introdução didática que deixava indicações
de leituras e pesquisas para cada um seguir seu caminho depois. A
intenção era exatamente essa, como indicado na introdução daquele
volume.

Passados dez anos, muita coisa mudou, as questões urgentes são ou-
tras e não temos mais certos problemas, que deram lugar a outros.
Senti que chegava a hora de aprofundar alguns temas que foram
tocados intencionalmente de forma apenas introdutória na época.
De fato, alguns capítulos que foram retirados do primeiro volume
para que ele não ficasse muito longo ou complexo, agora ganham
seu espaço neste novo volume.
Uma das partes que foi apenas citada no primeiro capítulo foi me-
lhor desenvolvida neste volume 2: o tema sobre a formação do ima-
ginário gótico na história e literatura. Uma outra parte se dedica as
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questões subculturais mais complexas.

Também novas questões que não existiam naquela época precisam


ser abordadas. Alguns textos da primeira edição também precisa-
vam de um complemento do que aconteceu nos últimos 10 anos.

Apesar de manter o nome “Introdução”, este volume é um pouco


menos fácil de ler que o primeiro, e algumas partes exigirão que o
leitor relembre o que já leu no primeiro volume.

Mas vamos relembrar o que já vimos e saber o que veremos agora.

O QUE VOCÊ JÁ VIU NO PRIMEIRO VOLUME


E O QUE VOCÊ VAI LER AGORA

A parte I deste volume é a de leitura mais leve, traz um apanhado


temas, desde os complementos e atualizações do primeiro volume,
novas polêmicas e questões sociais sobre a subcultura gótica atual
e música, indicações de bandas e textos de cultura geral.

Ainda no volume 1 de “Happy House in a Black Planet” citamos


muitas obras literárias que os góticos gostam, e características e
símbolos de nossa querida subcultura, mas não descrevemos suas
origens e historicidade. Neste volume, dedicamos todos os capítu-
los da parte II para mostrar como, o conceito do que consideramos
hoje como gótico, foi gradualmente formado ao longo dos séculos,
muito antes da subcultura gótica efetivamente ter seu início e se
apropriar de toda essa simbologia, criando seu sistema subcultural
a partir deste material da cultura geral.

No primeiro volume também vimos qual é a definição moderna


de subcultura e subcultura translocal, como são definidas desde o
final dos anos 1990 e no século atual, em oposição a conceitos an-
tigos de subcultura ou de tribo pós-moderna. Neste volume, na par-
te III aprofundaremos uma série de questões sobre as subculturas
translocais e pós internet: questões sobre micromídia alternativa,
microcomércio subcultural e as formas como as subculturas atuais
resistem a massificação da cultura global e ao aumento da velocida-
de nas relações humanas.

A parte IV é quase um livro a parte, não especificamente sobre sub-


culturas. Talvez nem devesse estar aqui, mas vários textos do livro
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apontam para problemas comentados nele. Recomendo uma leitura
em separado do restante do livro. De leitura mais difícil, versa sobre
a questão da identidade em um mundo globalizado e as implicações
sociais da negação das identidades duradouras e grupais.

No final, como no primeiro volume, há uma bibliografia de obras


citadas de alguma forma, ou indicações de leituras.

Não há uma ordem específica para ler essas partes e você pode ler
conforme seu interesse, supondo que já leu o volume 1.

Espero que goste e que este livro o ajude a encontrar novas curio-
sidades e interesses na subcultura gótica.

E continue se divertindo.

Grande abraço e boa leitura!

Kipper, 2018

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PARTE 1:
MÚSICA,
POLÍTICA
SUBCULTURAL,
& VISUAL

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1. CARTA AOS NEÓFITOS*
NA SUBCULTURA GÓTICA

Seja bem-vindo!

Que bom que você se interessou pela subcultura gótica! Que bom
que a música, as roupas, as maquiagens, as festas, a literatura ou
qualquer outra coisa te encantou e apaixonou.

Esse gostar verdadeiro pode fazer você permanecer entre nós.

Agradeço sua chegada, pois sem você e outros novos interessados,


o espaço alternativo gótico desapareceria como algo vivo, perma-
necendo apenas como fato histórico ou revivalista.

Felizmente cada vez mais a população gótica cresce no mundo, com


novos estilos, roupas, bandas e festas, como vemos em grandes
festivais europeus e eventos pelo mundo todo.

Contudo, nem tudo são rosas negras e belos luares. Você pode en-
frentar alguns problemas e frustrações no começo, como todos nós
que vivemos a subcultura gótica há mais tempo também enfrenta-
mos no passado.

A boa notícia é que hoje é muito melhor do que no passado. Você


já deve ter percebido que há muito mais liberdade e mais acesso a
informação. Isso é muito bom.

Mas algo chato que ainda pode acontecer é você ser julgado ou
rotulado por algumas pessoas. Eu as chamo de “caça posers” ou
“polícia gótica”, pessoas que podem te fazer pensar que têm algu-
ma autoridade para te julgar e ofender, mas não têm.

Os caça posers e a polícia gótica prejudicam nossa cultura alterna-


tiva. Estão interessados apenas em adquirir status fácil rebaixando
outras pessoas. Aparentemente ficariam felizes se a subcultura
gótica se reduzisse a meia dúzia de saudosistas para comprovar sua
tese de que “o gótico está acabando”.

Meu conselho? Simplesmente ignore-os.

14 * Neófito é uma palavra antiga para novato, aquele recém-chegado.


Vou te contar uma coisa: há mais de 25 anos escuto a frase “A cena
gótica está acabando, precisa ser salva e blá, blá, blá”. Entretanto,
passaram-se várias gerações, a subcultura gótica cresceu e prolife-
rou pelo mundo todo.

É que as pessoas veem a subcultura gótica e seu desenvolvimento


de duas formas principais: o modelo de seita ou elite, e o modelo
cultural ou subcultural.

1- O primeiro modelo – que criticamos aqui – é o modelo de seita


secreta ou elite alternativa. Esse modelo de relacionamento pode ser
visto também em grupos especiais do exército, no mundo acadêmi-
co ou em grandes empresas. Seitas e elites buscam de toda forma
garantir que o grupo mantenha um número reduzido de integrantes,
pois isso garante o status elevado dos “poucos conhecedores”.

Grupos deste tipo desenvolvem sempre uma forte polícia de con-


trole que fiscaliza a entrada de novos membros com estratégias de
seleção, punição e/ou ridicularização. Claro que o novo integrante
aceita esses rituais de passagem com a perspectiva de ganho de
status futuro e poder se tornar um novo sádico ou fiscalizador da
entrada dos novatos.

2- O segundo modelo é o cultural ou subcultural. Nesse o status


pessoal vem da participação e construção de um grupo social com
características específicas, e quanto maior seu desenvolvimento em
qualidade e quantidade, melhor. Quanto mais bandas, mais e me-
lhores eventos, mais lojas, mais pessoas, melhor. Nesse caso você
não é “grande” por ser único ou parte de uma pequena elite, mas
porque você faz parte de algo grande e especial. Nesse modelo a
recepção de novos integrantes é de formação e integração.

Se queremos no futuro ter algo vagamente parecido com o que ve-


mos nos grandes festivais góticos pelo mundo, ou desde já ter uma
vivência gótica minimamente saudável, o modelo que faz sentido é
o segundo.

Assim, toda vez que alguém agir contra você como se fosse o sumo
sacerdote de uma seita ou membro de alguma elite, simplesmente
ignore. Continue seguindo seu prazer e interesse pela subcultura
gótica. É o prazer que levara a busca por conhecimento, não qual-
quer fiscalização.

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Você não precisa beijar a mão de ninguém para poder ser gótico.
Ninguém tem o direito de aplicar um teste de “verdadeiro gótico”
em você. Você não depende de ninguém para ter informação. Posso
apontar caminhos possíveis para ajudar, mas quem vai trilhá-los ou
não é você.

Mas é impossível adivinhar quem vai continuar a se identificar com


a subcultura gótica ao longo do tempo. Por isso, ninguém pode te
prejulgar. Ser qualquer coisa é um vir-a-ser, um se tornar.

Outras pessoas vão dizer que você não pode ser gótico porque vive
em uma cidade sem “cena” gótica. Isso é outra bobagem: em pleno
século XXI, você pode ter mais identificação com música, estética e
cultura gótica via internet do que se tinha dançando em um porão
dos anos 1980.

Além disso, boa parte das pessoas que frequentam as festas góticas
em determinado período se afastam e desinteressam depois. Isso
se deve ao fato de que estavam apenas saindo com os amigos e a
galera. Portanto, a vivência presencial não é o que vai determinar
sua identificação subcultural no longo prazo.

Vivi os anos 1980 e 1990. Vou contar um segredo: vocês tem um


mundo gótico mais interessante, rico e variado hoje. Atualmente,
vocês já chegam com um alto nível de conhecimento musical e cul-
tural, algo que era impossível antes da popularização da internet.

Vocês também não dependem mais dos DJs, amigos influentes ou


críticos musicais para chegar até a informação. E melhor: você não
precisa ser rico para comprar todos aqueles CDs importados. Você
pode ter toda informação mesmo sendo pobre.

Sim, góticos não têm classe social definida. Não importa se você é
pobre, classe média ou rico. Ninguém tem o direito de te olhar torto
por isso.

Não tenha pressa em aprender e conhecer tudo. Você não precisa


saber tudo e conhecer tudo para “ter o direito” de desfrutar da sub-
cultura gótica. Lembre-se, ninguém tem o direito de te aplicar um
teste surpresa. Por que teria?

Primeiro se vive, depois se sabe.

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Outra coisa: não conheço ninguém com mais de dois neurônios que
curta um único estilo musical.

Pode acontecer de alguém tentar te convencer a deixar de gostar


de todas as bandas “não góticas” para poder ter o direito de curtir
bandas góticas ou se dizer gótico. Isso é outra grande bobagem.
Da mesma forma que não andamos com um supervisual gótico o
tempo inteiro, também não vivemos em um mundo musical fecha-
do.

Até porque a subcultura gótica tem uma variedade musical incrível,


indo do rock ao eletrônico, do folclórico ao industrial, do ethereal
ao synth etc. Isso sem falar nas bandas e estilos “adotados”.

E se alguém disser que existe um único estilo musical gótico, tam-


bém ignore. Não lembro de ter existido no Brasil, algum dia, pure-
za musical gótica, principalmente partindo dos anos 1980 quando
diversos estilos paralelos eram adotados e curtidos pelos góticos.

Ah, antes que eu esqueça: o gótico não acabou nos 1980. Mas isso
você já deve saber.

Finalmente, algo que hoje acontece menos, mas é bom prevenir:


alguém pode dizer que gótico “tem que ser branco ou ariano”. Isso
é uma bobagem total, sem nenhum fundamento. Ainda mais no
Brasil, em que somos um caldeirão étnico, temos góticos de todas
as etnias e origens.

Ninguém pode te julgar por gosto, classe social, etnia, tamanho,


peso, identidade de gênero ou orientação sexual.

Assim, ignore qualquer um que te chame de poser e olhe feio, ou


qualquer bobagem desse tipo. Ignore a polícia gótica e os caça po-
sers e simplesmente siga a busca cultural que te dá prazer.

Talvez esta busca te leve a celebrarmos junto a noite na subcultura


gótica por muito tempo. Ou talvez te leve a celebrar também em ou-
tros meios ou se afastar para círculos culturais sem nenhum contato
com a subcultura gótica.

Quem vai saber, quem pode prever ou julgar? Ninguém. Só o tempo


e suas escolhas dirão. Por isso, desfrute do presente e não deixe
ninguém estragar sua experiência.
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2. 10 COISAS QUE
OS GÓTICOS NÃO SÃO!
Salvo poucas exceções, ao longo dos anos, muitas TVs e jornais
tem divulgado alguns estereótipos e caricaturas, ou generalizando
casos isolados sobre Góticos a tal ponto que isto faz com que pes-
soas acabem se sentindo atraídas ou tendo preconceito contra os
Góticos… pelos motivos errados! Se você vai rejeitar e criticar ou se
sentir atraído é melhor que seja pelos motivos corretos.

1- GÓTICO NÃO É RELIGIÃO NEM SEITA – Somos parte de uma


subcultura – ou cultura alternativa – que não proíbe nem determina
a escolha que uma pessoa pode fazer ou deixar de fazer a respeito
de religião. Por isso, existem Góticos de todas as religiões: cristãos
(católicos, evangélicos, protestantes, pentecostais etc), espíritas,
budistas, judeus, umbandistas, wiccans, agnósticos, ateus etc. Por
isso, podemos dizer que a subcultura Gótica é “laica”: um espaço
aberto para pessoas de qualquer religião ou sem religião, desde que
estas se respeitem mutuamente.

2- GÓTICO NÃO É SÓ FASE DA ADOLESCÊNCIA OU MODA PAS-


SAGEIRA – Existem góticos e góticas de todas as idades, da ado-
lescência até 50 anos ou mais. Somos homens e mulheres traba-
lhadores, pais responsáveis e que sustentam suas famílias e filhos.
Apesar de existirem muitos adolescentes modistas, nem todo ado-
lescente se torna gótico somente por modismo ou revolta adoles-
cente. A subcultura gótica como a conhecemos hoje já se desenvol-
ve há mais de 30 anos ininterruptamente, continuando a evoluir no
século XXI. Além disso, muitas das referências culturais das quais
nos reapropriamos surgiram há mais de 200 anos.

3- GÓTICO NÃO É ORIENTAÇÃO SEXUAL NEM OPÇÃO DE RE-


LACIONAMENTO – Existem góticos e góticas de todas as orien-
tações sexuais, e respeitamos todas elas, pois isso é uma questão
privada. Nossa opção ou orientação sexual não tem nada a ver com
ser ou não Gótico, nem com ser ou não alternativo, mas com respei-
tar todas as opções. O tipo de visual que usamos não tem relação
com nossas orientações sexuais ou de tipo de relacionamento. Gó-
ticos e góticas fazem as mesmas opções de relacionamento, como
em todos os grupos sociais: alguns são casados, outros noivos ou
tem relacionamentos estáveis ou abertos, outros namoram ou só
“ficam”, outros são celibatários e outros são promíscuos.
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4- GÓTICOS NÃO TÊM UM TIPO FÍSICO DEFINIDO – Ter certo
tipo físico ou étnico não faz de você mais ou menos Gótico! Góticos
podem ser mulatos, brancos, negros, orientais, cafuzos, mamelu-
cos, albinos, aliens verdes, aliens listrados etc! E podem ser gordos,
baixos, magros, altos, fortes, franzinos, ter olhos claros ou escuros,
ou qualquer combinação de tipo físico imaginável.

5- GÓTICOS NÃO SÃO VÂNDALOS DE CEMITÉRIO – Valoriza-


mos a arte das esculturas e arquitetura dos cemitérios. Os cemité-
rios, além de ótimos lugares para um passeio tranquilo, são também
ótimos espaços para a reflexão sobre o sentido de nossas vidas em
meio a correria e velocidade desumanizante do mundo atual. Por
isso, seria totalmente incoerente para um Gótico depredar ou van-
dalizar um Cemitério. Importante: existem outros grupos de pesso-
as que visitam cemitérios, não só Góticos! (E nem todos os Góticos
visitam cemitérios).

6- GÓTICOS NÃO SÃO DEPRIMIDOS – Depressão é uma doença,


que pode ter origem através de um desequilíbrio biológico ou ser
causada por fatos de sua vida. Em qualquer um dos dois casos você
precisa de um psicólogo e/ou psiquiatra, não se tornar Gótico. Nós
Góticos gostamos muito de nos divertir, rir, encontrar os amigos e a
música em nossos eventos é dançante. Temos outro tipo de humor,
como acontece com pessoas de outros grupos sociais no Brasil ou
em outros países ou culturas, que riem de coisas diferentes.

7- GÓTICOS NÃO SÃO DROGADOS – Da mesma forma que fumar


ou beber não faz de você “alternativo” ou “cool”, o consumo de
substâncias legais ou ilegais não faz de ninguém mais ou menos gó-
tico. Isso é uma questão pessoal e privada que hoje em dia não está
diretamente vinculada a nada de alternativo ou contestatório. O uso
de drogas legais ou ilegais entre góticos não é maior nem menor do
que entre tantos outros segmentos sociais considerados “normais”.
(ver texto o “Drogas: careta, alternativo, pessoal ou social?)

8- GÓTICOS NÃO SÃO O ÚNICO GRUPO QUE VESTE PRETO,


NEM SÓ VESTEM PRETO – Muitos outros grupos e pessoas tam-
bém vestem preto: padres, guardas do metrô, emos, headbangers,
policiais, punks, roqueiros em geral etc. Não confunda! Góticos
também não usam o mesmo visual gótico o tempo inteiro, usando
roupas adequadas a sua situação cotidiana, exigida pelo trabalho,
escola etc. Os visuais góticos são muito variados, incluindo outras
cores e também o branco.
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9- GÓTICOS NÃO SÃO SUICIDAS – Se todos nós (góticos) fôsse-
mos suicidas não existiriam mais Góticos! O suicídio é um ato, mui-
tas vezes resultante de problemas médicos ou psicológicos, que não
tem nada a ver com ser ou não ser Gótico. Todo dia muitas pessoas
se suicidam, mas entre elas não há mais góticos do que pessoas de
outros segmentos sociais. Pessoas com tendências ou ideias suici-
das devem procurar ajuda psicológica e médica urgente!

10- GÓTICOS NÃO SÃO PESSOAS QUE SÓ GOSTAM DE SOFRER


– Ninguém gosta só de sofrer, a questão é que o sofrimento e as
perdas fazem parte da vida, mas a cultura de consumo de massa
em que vivemos esconde ou não se relaciona muito bem com isso.
Todos precisamos saber rir e superar as tristezas – superar, e não
fugir delas – e aceitar as partes doloridas de nossa memória, com
arte e criatividade.

3. MAIS PERGUNTAS DO FAQ GÓTICO


No volume 1 temos um FAQ com 55 perguntas e respostas rápidas.
Aqui temos mais algumas.

56 – Como eu sei que vou ser gótico para sempre


ou se é apenas uma fase?
Ora, simplesmente não adianta pensar sobre isso, porque em ambos
os casos o começo será igual. Não haverá diferença nenhuma nos
primeiros três anos se forem apenas uma fase de três anos ou esses
três anos forem os primeiros três anos do resto de sua vida como
gótico. Então, viva e não se preocupe com isso, senão seja o que for,
você estragará. Se por acaso for só uma fase, então que seja uma
fase inesquecível!

57 - Eu me identifico com a Subcultura Gótica, gosto de muitas


bandas góticas e Darkwave, mas também curto outros estilos
musicais além do Gótico. Isso é um problema?
Não. Se você curte e conhece música gótica, não tem nenhum pro-
blema você gostar de estilos que não tenham nada a ver com o
gótico. Só precisa saber diferenciar as coisas e, principalmente, en-
tender que subculturas diferentes têm hábitos e comportamentos
sociais diferentes.
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58 - Eu moro em uma cidade que não tem cena nem gótica nem
eventos e eu sou o único gótico. Eu sou menos gótico por isso?
Claro que não! Hoje você pode se vincular e se identificar também
de outras formas. A internet permite que você tenha informação e
vivência de qualidade em qualquer lugar. Além disso, muitos dos
que tem vivência presencial acabam desistindo ou não se vinculan-
do, então a presencialidade não garante nada também. Ir a festas,
apesar de divertido e ser uma experiência importante, não vai te dar
“carteirinha de gótico” (o que não existe).

59 - Se uma pessoa tem um sub-estilo gótico ela só vai curtir


o estilo de som relacionado? Por exemplo, pessoas de estilo
medieval só curtem Medieval e Folk etc?
NÃO! Em 14 anos na cabine como DJ vendo as pessoas se diverti-
rem, o mais legal é ver que as pessoas não são bitoladas: você vê
um cyber dançando Gothic Rock, uma moça medieval dançando
eletrônico, o cara com camiseta do Joy saltitando como um fauno
ao som medieval, um Headbanger rebolando com Depeche Mode,
Deathrockers catando uvas imaginárias ao som de Ethereal…

60 - As mesmas pessoas se vestem sempre no mesmo estilo


gótico relacionado ao tipo de som que gostam?
Não necessariamente. Muitas pessoas variam de um dia para outro
ou misturam estilos. Não há uma ligação fixa ou obrigatória entre os
estilos musicais que uma pessoa prefere e suas escolhas de estilos
de visuais, mesmo que isso aconteça muitas vezes. Apesar de exis-
tir uma homologia nos estilos (ver capítulo sobre Homologia) e ele
ser perceptível intuitivamente, é normal góticos terem uma atitude
aberta em relação aos visuais, inclusive valorizando misturas e res-
significações (ver capítulo sobre Ressignificação).

61 - Eu posso ir a festas ou shows de outros estilos?


Claro que sim! A única coisa importante é não confundir o que é o
que, um estilo com o outro, ou confundir as características compor-
tamentais de cada ambiente.

62 - Existe alma gótica?


Cultura não é algo biológico nem espiritual. Logo, não há como
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nascer com alguma cultura. Nascemos com o “hardware” para ins-
talação do sistema de qualquer cultura e “programas opcionais” de
qualquer subcultura. Dizemos que alguém tem alma gótica apenas
poeticamente, da mesma forma que dizemos que alguém tem alma
brasileira: por ter adquirido aquelas características culturais com o
tempo.

63 - A subcultura gótica é feminista ou feminina?


Essas são duas coisas diferentes. Veja no volume 1 as características
da subcultura ligadas o feminino simbólico e cultural. Sem dúvida a
maioria dos símbolos e imaginário da subcultura gótica nos coloca
no campo do que historicamente se chama de feminino ou “ying”.
Os visuais góticos femininos e masculinos, como já comentamos,
reforçam arquétipos e valores conhecidos como femininos em nossa
cultura. Por isso há também uma certa coerência com o Feminismo
quando esta palavra significa um movimento político que busca a
igualdade de oportunidades, direitos e deveres entre todos os seres
humanos de qualquer gênero. Assim, a feminilidade estética e ar-
quetípica é uma característica subcultural, e o feminismo uma op-
çõa política que independe da questão subcultural, mas que acaba
sendo coerente.

64 - Emos, Headbangers e mesmo a moda comercial usam ele-


mentos góticos. Eles roubaram nossas coisas?
Não. Uma cultura não existe em seus elementos isolados (uma bota,
um tipo de cabelo, uma cor, uma banda, um estilo musical, etc). Os
elementos isolados não pertencem a nenhuma cultura ou subcultu-
ra. Uma cultura ou subcultura é um conjunto que dá significado e
peso diferente a cada elemento. É o mesmo quando abrasileiramos
uma palavra do inglês: continuamos a usar toda gramática e voca-
bulário do português com aquela palavra nova.

65 - Todos que gostam de música gótica são góticos?


Não, algumas pessoas só gostam do estilo musical, entre muitos
outros. A pessoa pode ser gótica ou não, dependendo do caso.
Mas, provavelmente, ela vai consumir música gótica, seja via down-
load, CDs ou indo a shows e festas, contribuindo com a manutenção
do sistema econômico subcultural. E acontece de a música ser uma
porta de entrada para a pessoa se interessar também por outros
aspectos da subcultura gótica. É preciso respeitar esses simpati-
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zantes, pois eles também ajudam a subcultura gótica a continuar
existindo.

66 - Todos que usam visual gótico são góticos?


Não, algumas pessoas só gostam do estilo de visual, entre muitos
outros. A pessoa pode ser gótica ou não, dependendo do caso. En-
tretanto, ela consumira elementos de visual gótico, contribuindo
com a manutenção do sistema econômico subcultural. E muitas ve-
zes acontece de o visual ser uma porta de entrada para a pessoa se
interessar também por outros aspectos da subcultura gótica.

67 - Tem idade para se tornar gótico?


Não. Você pode começar a conhecer e se identificar com os elemen-
tos culturais da subcultura gótica em qualquer idade, independente
de você não ter ainda idade para ir a festas, ou já estar em uma idade
em que os compromissos familiares e profissionais não permitem
tanto uso de visual ou saídas noturnas e outras atividades coletivas.

68 - Eu sou misantropo e não gosto de festas. Posso ser gótico?


Se você joga um brasileiro em uma ilha deserta no pacífico, ele
continua sendo culturalmente brasileiro, mesmo que nunca mais
volte ao Brasil. Depois que você conheceu e se identificou com uma
cultura, sua vivência e como você vê o mundo não depende apenas
de relações pessoais.
69 - O estilo de visual ou música Gótica está moda entre “POPs”
ou no “mainstream”, e agora?
Isso acontece periodicamente, acostume-se. A moda comercial ou
mesmo a alta-costura tem a característica de ter que mudar de es-
tilo todo ano ou todo semestre, então precisa toda hora achar algo
novo e logo depois descartar. Não confunda Moda comercial de
estação com Moda Cultural ou Subcultural: este segundo tipo tem
um modelo de evolução lento e não muda a cada estação, além ter
uma estética relacionada a outros aspectos da subcultura.

70 - Góticos ouvem só música gótica?


Em geral, não apenas, e ainda bem! Mesmo uma pessoa que seja
apaixonada por música gótica não vai ser bitolada a ponto de limi-
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tar seu gosto a um estilo só. Há tantas variantes de estilos musicais
aceitas na subcultura gótica ou produzidas por bandas góticas, que
as vezes é possível passar a vida ouvindo todas essas variantes.

71 - Em festas góticas rola só música gótica?


Desde os anos 1980, há uma tradição de “estilos relacionados” que
são aceitos em festas góticas, por parentesco musical ou outra ra-
zão, como é o caso da New Wave, Indie, Synth Pop, Industrial,
Medieval, Ethereal, Ethno, Dark Electro, EBM, etc. Nunca tivemos
“pureza musical” como acontece em outros segmentos ou em ou-
tras cenas musicais.

72 - Então o que é música Gótica?


É uma questão polêmica. Alguns acham que só o Gothic Rock é a
verdadeira música Gótica. Outros acham que qualquer banda que
inclua elementos de arranjos e letras góticas pode ser considerada
Gótica. Quem está com a razão? Se observarmos as raízes musicais
da subcultura gótica temos as origens de todos os subestilos atuais,
do Eletro Goth ao Medieval, da Darkwave ao Cyber Goth, do Gothic
Rock ao Ethereal Wave, do Industrial Rock ao Dark Cabaret, do
Deathrock ao Ethno etc. O que aconteceu nestes quase 40 anos de
história foi uma especialização de tendências já presentes nos anos
1980, algumas chegando a ponto de formar segmentos separados,
apesar dos góticos gostarem desses estilos também.
73 - Pessoas que querem ser góticas, mas gostam de bandas
trevosas populares de outros estilos que não são góticas
devem ser execradas?
Não, e por um motivo bem simples: nos anos 1980 bandas de estilo
Post Punk, New Wave e góticas eram os estilos “pops” da época,
aparecendo na TV, tocando na rádio etc. Então, a primeira informa-
ção de bandas mais populares e conhecidas que os novatos tinham
era de bandas que eram de alguma forma relacionadas aos estilos
da subcultura gótica. Desde os anos 1990 (e hoje) bandas góticas
não aparecem mais na mídia comercial, então qualquer adolescente
que se interesse por aspectos góticos ou obscuros tem sua primeira
identificação com o que está na mídia “Mainstream”, da mesma
forma que acontecia nos anos 1980. Não podemos culpá-los por ter
essa primeira informação distorcida pela mesma mídia em que os
antigos tiveram a informação correta. Nos últimos 20 anos ou mais,
24
a grande maioria das pessoas que se identificou com a música e
subcultura gótica se aproximou através de algum outro estilo mu-
sical ou de visual.

74 - Todos que vão a festas góticas são góticos?


Não necessariamente. Historicamente, desde os anos 1980, temos a
presença de simpatizantes e pessoas de outros estilos alternativos.

4. ORIGENS DO VISUAL GÓTICO


Desde o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, duas peças
musicais que, devido ao seu sucesso, tornaram-se filmes ainda mais
bem-sucedidos (Cabaret e The Rocky Horror Picture Show, lança-
dos no cinema respectivamente em 1972 e 1975).

Elas estabeleceram a moda de “vaudeville obscuro” e horror gó-


tico misturado ao estilo glam. Em meio a isso, um terceiro filme,
também ligado à música, é estrelado por David Bowie durante sua
fase musical mais influente: The Man Who Fell to Earth (1976).

Em 1928, W.H.Auden, um dos principais nomes da poesia de língua in-


glesa do século XX, interessou-se por Berlim, talvez, menos pelo fato
de ser “um centro de ativismo político de esquerda e de experimenta-
ção musical” e mais pela “tolerância com que a cidade na época costu-
mava encarar a sexualidade não-ortodoxa”. Além de desfrutar destas
liberdades, Auden também trabalhou com Christopher Isherwood.

O musical “Cabaret” baseado na obra de Christopher Isherwood


“Goodbye Berlim” (1939) estreou na Broadway em 1966. A persona-
gem principal, Sally Bowles, é uma performer de um cabaré na fase
decadente da República de Weimar (1919-1933) durante a ascensão
do Nazismo. O parceiro de palco de Sally é o Mestre de cerimônias
(ou Mr. EmCee), que recebeu uma caracterização satírica entre o
vaudeville e o macabro, mantida na versão cinematográfica.

Com o sucesso do musical, o filme foi lançado em 1972 com Liza


Minelli eternizando o visual de Sally e Joel Grey fazendo um Mestre
de Cerimônias que influenciou o visual de artistas com Klaus Nomi,
Bowie e Peter Murphy, sem falar em todos os artistas de Dark Ca-
baret até hoje, como o “Dresden Dolls”.
25
Em 1973, a peça musical “The Rocky Horror Picture Show” estreia
em Londres e também logo se torna um grande sucesso e referência
cult. A peça de Richard O’Brien mistura glam-rock e travestismo a
elementos de horror gótico e de ficção científica de filmes B dos
anos 1930 aos 1970.

Também na versão cinematográfica de 1975, o personagem principal


é o Dr. Frank N. FurteR, um alien do planeta transexual Transilvânia,
que busca criar uma forma de vida humana enquanto reside em uma
mansão gótica com servos ainda mais peculiares. O visual dos per-
sonagens se tornou moda, e nos anos seguintes também objeto de
culto e performances ao redor do mundo. No filme de 1975, Frank
N. Furter é interpretado pelo ator Tim Curry.

O musical “Cabaret” (1972) inspirado na obra de Isherwood resga-


ta e glamoriza o tema, mas a corista vamp interpretada por Liza
Minelli agora usa botas combinando com o corpete, a cinta-liga e
chapéu coco, uma Louise Brooks atualizada. Patrice Bollon (“A Mo-
ral da Máscara”, 1990) comenta que este musical e o filme geraram
uma moda em Londres que influenciou um novo grupo: O “Bromley
Contingent” (1976).

Mas antes, ainda em 1976, é lançado o filme “O Homem que Caiu


na Terra” (The Man Who Fell to Earth). Nele David Bowie represen-
ta o alien Thomas Jerome Newton que chega a terra com a missão
de levar água para salvar seu planeta e a família que deixou lá. Po-
rém, aos poucos Jerome vai se envolvendo com a vida na Terra e em
um processo de degeneração esquece completamente de sua mis-
são. Acaba se tornando, ao final, mais um dos alter-egos de Bowie,
tanto que a capa do álbum “Low” traz uma ilustração baseada na
imagem de Jerome.

A temática de isolamento e alheamento desse filme dialoga com


a fase mais influente do trabalho de Bowie, produzida na mesma
época. São os anos da sua famosa Trilogia de Berlim: “Low” (1977),
“Heroes” (1977) e “Lodger” (1979). Não bastasse isso, na mesma
época Bowie co-escreveu e produziu dois outros álbuns do parceiro
Iggy Pop: “Lust For Life” e “The Idiot”, ambos de 1977.

Bowie estava obcecado pelo Krautrock do “Kraftwerk”, que tam-


bém em 1977 lança “Trans-Europe Express”. Na soma, entre 1977 e
1979 são seis álbuns que influenciaram muito o Post-Punk, Darkwa-
ve, Coldwave, Música Gótica, Synth e outros estilos.
26
Ainda em novembro de 1977, a revista Sounds faz uma capa com
a banda Kraftwerk, e tem como tema um especial intitulado “Col-
dwave”. Nesta famosa entrevista o Kraftwerk também conceitua o
comenta o termo EBM (Electronic Body Music): “Electronic Body
Music you can dance to”. (Sounds, 1977)

O universo estético destes três filmes, tanto o musical quanto o


visual, serviu de inspiração para as subculturas que emergiram no
final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, especialmente a Punk
e a Gótica.

OS NOVOS POSERS DAS TREVAS:

Em 1976, surge o grupo de posers chamados “Bromley Contingent”,


ligados à loja Sex de Malcolm McLaren e da ousada estilista Vi-
vienne Westwood, e a banda produzida por este, os Sex Pistols. Os
Bromleys reciclaram vários visuais do Bowie e outros Glam Rockers.

Mas esse visual ainda não tinha todos os elementos nem a especia-
lização que veríamos no gótico dos anos 1980.

Além deles, havia Dave Vanian - e a esposa Laurie Glendon (procu-


rem fotos do casamento deles em 1977, por exemplo) - que já usava
itens pseudovitorianos desde 1976, no típico estilo Família Addams.
Contudo, cansados da padronização do punk, em 1979 um grupo de
jovens criativos conhecidos como “Blitz Kids” e depois chamados
de “New Romantics” introduziu uma série de elementos originais,
influenciando o que seria depois conhecido como visual Gótico dos
anos 1980.

Já entre 1980 e 1984, integrantes de bandas como “Siouxsie & The


Banshees” e “The Cure” pareciam muito mais New Romantics do
que com seu visual Post-Punk ou New Wave do final dos anos 1970.
A inclusão de um repertório visual e musical mais variado assim vai
se estabelecendo na tradição da subcultura gótica.

Em 1980, na sua formatura da Saint Martins, Stephen Linard criou


um desfile de inspiração gótica e eclesiástica, onde desfilaram Boy
George, Princess Julia, Myra, entre outras figuras renomadas do
Blitz club. (Fotos podem ser vistas no livro “We Can Be Heroes”
de Graham Smith, na biografia de Boy George ou na revista Gothic
Station 3). Também podemos ver os integrantes do Blitz Club com
um visual original no vídeo clip de “Ashes to Ashes”, de David
27
Bowie (1980). Mas é possível encontrar exemplos desse visual em
Boy George ainda em 1979.

Os Blitz Kids incluiram em seus visuais elementos originais de pes-


quisa histórica, incluindo elementos barrocos, medievais, vitorianos
e muitos outros, mas criando obras originais e atuais de vestuário.
A maquiagem característica que ficamos conhecendo depois como
gótica pode ser vista já neste grupo.

A influência de David Bowie, em suas diversas fases, é marcante


em todas as gerações. Após 1980, com essas influências e outras, o
visual, música e conceito de bandas góticas passa a mudar e a ficar
com as características marcantes que conhecemos como “gótico
dos anos 80”.

5. 60 BANDAS PARA VOCÊ COMEÇAR


A CONHECER O UNIVERSO MUSICAL
DA SUBCULTURA GÓTICA
É claro, você não “tem que” gostar de tudo! É natural você gostar
de alguns estilos e bandas e não de gostar de outros. São 20 de
cada período (anos 1980, 1990 e agora no século XXI). Dividimos a
lista por década e com poucos itens para não causar confusão nem
“assustar”. Tentamos escolher bandas originais e que serviram de
modelo para outras posteriormente. Mas tem muito mais!

Buscamos mostrar um pouco da diversiadade musical popular entre


góticos do mundo todo. Sem dúvida é difícil definir as atuais, pois
ainda não temos distanciamento histórico, mas é um ponto para
começar.

Ser gótico não significa que você vai gostar de tudo, mas que vai
gostar muito de pelo menos uma parte. Alguns góticos apreciam
apenas algumas vertentes musicais goth/wave, e não gostam de ou-
tras, isso é normal. Isso não significa que você vai deixar de gostar
também de estilos não aceitos nas cenas góticas.
Divirta-se, comece conhecendo estas e depois procure mais bandas
dos estilos que você mai s gostar! Veja mais em nosso site:
www.gothicstation.com.br
28
ANOS 1980: ANOS 1990: SÉCULO 21:
SIOUXSIE AND SOPOR AETERNUS DIVA
THE BANSHEES* DESTRUCTION*
DIARY OF DREAMS
CLAN OF BLUTENGEL
XYMOX LONDON
AFTER MIDNIGHT MONO INC.
OPERA
MULTI STEEL SWITCHBLADE L’AME
SYMPHONY IMORTELLE*
POESIE NOIRE
DAS ICH THE BEAUTY
THE CURE* OF GEMINA
WOLFSHEIM*
THE SISTERS OTTO DIX
OF MERCY CRUXSHADOWS
FAUN
BAUHAUS* QNTAL
EGO LIKENESS*
DEAD FAITH AND
CAN DANCE THE MUSE ANGELS
OF LIBERTY
THE MISSION TWO WITCHES
TIRAMIST
THE FIELDS LACRIMOSA
OF THE NEPHILIM GOLDEN APES
COLLECTION
DEINE LAKAIEN D’ARNELL- TROBAR DE
ANDREA* MORTE
CASSANDRA
COMPLEX PROJECT THE EDEN HOUSE
PITCHFORK
SPECIMEN KRIISTAL ANN
THE HOUSE OF
JOY DIVISION* USHER THE HAXANS
CHRISTIAN THE FROZEN LEBANON
DEATH AUTUMN HANOVER
DIE FORM ROSETTA STONE LORD OF
THE LOST
ALIEN SEX FIEND THE AWAKENING
DRAB
THE DAMNED* LYCIA* MAJESTY
TRISOMIE 21 GARDEN SHE PAST AWAY
OF DELIGHT
X MAL CINEMA
DEUTSCHLAND ATARAXIA STRANGE
* = começaram no final década anterior, mas marcaram décadas nas seguintes.
29
6. BANDAS GÓTICAS MAIS RECENTES
No primeiro volume listamos bandas góticas, divididas por gera-
ções, até aproximadamente 2008. Veja as gerações anteriores no
volume 1. Seguindo os mesmos critérios, vamos atualizar essa lista
com algumas das mais recentes.

Estas listagens não buscam ser nem perfeitas nem completas, mas
apenas dar um panorama da riqueza do cenário musical Gótico/
Darkwave e, principalmente, de sua renovação.

2005-2018: ESPECIALIZAÇÃO e REVIVALS

Temos um movimento de especialização, em que tendências presen-


tes em bandas góticas/wave dos anos 1980 são levadas as últimas
consequências, muitas vezes quase formado subcenas. Ao mesmo
tempo que a música gótica incorpora elementos modernos e de ou-
tros estilos musicais. Por outro lado há um movimento revivalista
mais forte que na década anterior, retomando sonoridades dos anos
1980.

BANDAS DO PERÍODO 2004-2018


NO CENÁRIO INTERNACIONAL
(ver períodos anteriores e mais bandas do início
do século XXI no volume 1):

Merciful Nuns, Drab Majesty, Mono Inc., Faun, La Scaltra, The Be-
auty of Gemina, Omnia, Numa Echos, Soror Dolorosa, Kriistal Ann,
The Eden House, Trobar de Morte, Ash Code, Markus Midnight,
Angels of Liberty, Eisbrecher, Omnia, Snakeskin, Tiramist, Ariel
Maniki and The Black Halos, Theodor Bastard, Grausame Tochter,
Aesthetic Perfection, Lebanon Hanover, Noblesse Oblige, Demonia
Nymphe, Haxans, Lizette Lizette, Seelennacht, Then Comes Silen-
ce, Heimataerde, Golden Apes, The Spitirual Bat, Global Citizen,
Selofan, Descendants of Cain, Frank The Baptist, Gothzilla, Rabia
Sorda, She Past Away, Aeon Sable, Otto Dix, Principe Valiente, Ter-
minal Gods, Zanias, William Control, Kælan Mikla, Astari Nite… e
muitas mais.

BANDAS DO PERÍODO 2004-2018


NO CENÁRIO NACIONAL
(além das já citadas no volume 1):

30
Das Projekt, Back Long Arch (retorno), Les Chat Noirs, The Knutz,
In Auroram, Electro Bromance, Blue Butterfly, Euphorbia, Among
The Machines, Jardim do Silêncio, Noturna Régia, Almas Mortas,
Gangue Morcego, Orquídeas Francesas, Pecadores, Wonder Dark,
Fake Angel, Outro Destino, Sitético Ministério, Gargula Valzer, Si-
glo XIII, Drei Hexen, Desroche, Modus Operandi, Poemas de Maio,
Black Night Frequency, Gattopardo, e muitas mais.

7. SUBCULTURA GÓTICA:
DIVERSIFICADA NO VISUAL E NA MÚSICA
A subcultura gótica é bastante diversificada tanto no visual como
nos gêneros musicais. Apesar de alguns estilos musicais terem seu
equivalente visual (como comentamos no texto sobre Homologia
Subcultural) , é comum os góticos curtirem diversos dos subestilos
musicais góticos e usarem diversos tipos de visual. O gótico não se
prende sempre a um único tipo de visual ou música, nem as combi-
nações da música com o visual são fixas ou restritivas.

Neste aspecto, a Gótica é uma das subculturas mais flexíveis e va-


riadas, dentro do seu cânone “a criatividade e um certo nível de
contravenção” em relação ao que é considerado o “visual padrão”
de certa época na própria cena Gótica, é algo geralmente visto como
positivo.

A herança de princípios do “faça você mesmo” ainda perdura, ape-


sar da proliferação atual de artesãos e grifes especializadas na esté-
tica Gótica.” A “contravenção criativa” em relação a regras de visual
acontece na mistura e recombinação de estilos, mesmo que as peças
isoladas de vestuário sejam tomadas de uma linha industrializada:
aquela peça preta da bacia promoção de 10 reais pode se tornar um
visual que só você tem.

Já nas pistas você verá um gótico com visual mais Deathrocker dan-
çando Ethereal ou Electro Goth, ou uma fada de visual Ethereal sal-
titando ao som de Gothic Rock ou ainda um gótico de visual Cyber
Goth agitando Deathrock ou Medieval e várias outras combinações
imagináveis.

Aliás, uma das grandes diversões das cenas góticas pelo mundo é
ver como as pessoas misturam as várias sub-tendências de visual
31
gótico, demonstrando sua criatividade e individualidade. Também
muitas pessoas variam de subestilo de visual gótico ao longo do
tempo, do humor ou… do tempo disponível para se “montar”.

A diversidade é fascinante: ver o visual medieval lado a lado com o


Cyber e um Goth Deathrocker, e o Vitoriano ao lado do Pos Punk,
junto como pessoal “pretinho básico Synth Pop” ao lado de um
“rivet” etc, curtindo vários estilos musicais diferentes e, principal-
mente, respeitando-se. Vários ramos da árvore Gótica.

OUTROS ASPECTOS:

É mais fácil definir o que não é Gótico do que aquilo que é Gótico,
exatamente como Patrice Bollon comenta em “A Moral da Máscara”
e aborda a questão da recusa ao comentar sistemas estéticos:

“Mais do que sistemas de normas, são sistemas de tabus. Podemos


dizer o que absolutamente não seriam; mais difícil seria dizer o que
são.(…) Seu código…não estabelece uma sensibilidade, um signi-
ficado, ou uma ideologia; ele delimita um espaço de sensibilidade,
uma área de significados, um feixe de atitudes, uma constelação de
ideias no interior dos quais todas as modulações são permitidas, ou
até requisitadas.(…) A meta foi atingida: criar uma concepção do
mundo, circunscrever uma visão passível de evoluções que permi-
tam a expressão pessoal.(...) Com efeito, o que as (modas e culturas)
aproxima é que nenhuma delas oferece ‘respostas’ às perguntas:
elas se contentam em delimitar espaços onde simplesmente essas
perguntas não são mais feitas.” (Patrice Bollon, 1990).

A música e o visual, bem como o comportamento e atitude, consti-


tuem um discurso estético, como cita Durafour:

“No seio do movimento gótico, o visual, a dança, as atitudes e as


posturas formam uma linguagem estética codificada que concorda
com uma nova percepção da corporeidade (conjunto dos traços con-
cretos do corpo como ser social): perceber os corpos como ‘obra
de arte’ é reconsiderar seu valor em um mundo onde nossos corpos
não nos pertencem mais verdadeiramente”. (Durafour, 2005) Veja
no volume 1: D) A Teatralização e o Corpo.

Dessa forma, também nos “reapropriamos” do nosso corpo em so-


ciedade, ou nos reapropriamos – conscientemente - do discurso de
nosso corpo.
32
8. LACRIMOSOFOBIA...
OU GOTICOFOBIA?

No balaio comercial do rótulo “gothic metal” muitas bandas foram


jogadas: realmente a maioria não tinha nada a ver com a cena gó-
tica, mas muitas bandas (ou álbuns) que assim foram classificados
tinham realmente relação com a história musical da cena gótica e
darkwave.

Assim, é totalmente coerente que naquela época tantos góticos


mais antigos- e também novatos- seguindo apenas a sua sensibi-
lidade musical, gostassem dessas bandas também, pois pareciam
musicalmente com outras já aceitas na cena gótica.

O que é binarismo? Acreditar que as coisas se dividem em sim e


não, bom ou mal (maniqueísmo), preto ou branco... e que uma vez
algo classificado de uma forma, não é preciso mais pensar pois essa
coisa estará sempre com essa classificação.

Porém, no mundo real, as coisas mudam de significado de acordo


com o contexto, da mesma forma que a frase “é dando que se rece-
be” muda de significado se proferida por um religioso franciscano,
por um político corrupto ou por uma profissional do sexo... :-)

Atualmente podemos ver, ironicamente, jovens góticos criticando


estilos e bandas que já eram bem aceitos por góticos bem mais ve-
lhos. Um purismo binário e desnecessário, que esquece a história da
cena gótica. Mas vamos ver como essa situação estranha começou.
Lacrimosofobia é só um exemplo. O que a “Lacrimosofobia” (fobia
ou ódio pela banda Lacrimosa) esconde, além de ser uma fonte de
status fácil para troos e trolls? Há mais enterrado nessa história: al-
guns conflitos musicais internos da cena gótica que remontam aos
anos 80. Vamos relembrar:

GUITARRAS PESADAS NO GOTHIC ROCK DOS ANOS 80 E 90:


ANTES DO GOTHIC METAL
Existe o mito de que antes da avalanche do gothic metal (no Brasil,
com um auge entre 2001 e 2006) a cena gótica era um paraíso de
pureza post punk ou minimal. Nada mais longe da verdade.
33
Esse mito esconde um conflito que já se desenvolvera dentro da
própria cena gótica: o gothic rock e outras linhas de base wave ele-
trônica tinham incorporado novos elementos musicais ainda nos
anos 80.

Por exemplo, o álbum “Vision Thing” (1991) foi rejeitado por puris-
tas por abraçar um sonoridade mais hard rock. Algo que o Fields of
the Nephilim já mostrara nos primeiros álbuns (desde 1987). Nesse
momento, na virada dos anos 80 para os anos 90 já temos um con-
flito entre gothic rockers e os que consideravam apenas post punk e
minimal eletronics como aceitáveis.

O fato é que passado o auge da onda post-punk, no início dos anos


80, as influências musicais pessoais de muitos artistas começara a
prevalecer em seus trabalhos e, pela idade deles, essas influências
remontam ao rock dos anos 60 e começo dos anos 70. Além dis-
so, essa pureza esquece a presença de bandas como Fields of the
Nephilim, The Young Gods, Skinny Puppy, Ministry e tantas outras
que desde os anos 80 já tinham como elementos guitarras pesadas
e o que chamamos hoje de industrial-rock.

No começo dos anos 90 toda uma geração de bandas Gothic Rock


mais hard rock também marca sua presença: Rosetta Stone, The
House of Uhser, Garden of Delight, Two Witches, Nosferatu, Love
Like Blood, The Awakening… e o próprio Sisters of Mercy, em sua
versão mais hard (misturando Motorhead e Suicide, como diz o pró-
prio site oficial da banda).

Não foi só ironia a banda ícone da Batcave, o Specimen, usar riffs


ao estilo Marilyn Manson e NIN no seu mais recente álbum. Para
quem cresceu influenciado por glam rock dos anos 1970, é uma
opção óbvia.

Desde o final dos anos 80 faixas industrial rock do Ministry foram


hits nas pistas góticas de São Paulo. Em uma cena já acostumada
ao Skinny Puppy foi fácil receber bem o NIN inicial, e seu pupilo
com maquiagem gótica e glam, o então pouco conhecido Marilyn
Manson.

Lacrimosa era uma banda popular, como eram Sisters e Fields. Gar-
den of Delight tem uma grande produção nos anos 90, e sua conti-
nuação atual com o vocalista Artaud, o Merciful Nuns, segue com
uma sonoridade característica.
34
Paradise Lost fez alguns álbuns entre 1997 e 2002 que se pareciam
mais com Depeche Mode e Sisters of Mercy do que com algo metal.
Seus álbuns “One Second” (1997) e Symbol of Life (2002) se insere
perfeitamente na tradição Sisters/Fields. Os dois intermediários (de
1999 e 2001) são até mais “Depechianos”. Para quem aceita hoje
Suicide Commando e Hocico, todas essas são bandas água com
açúcar...

Ao lado disso, ainda nos anos 80, a darkwave se misturava bem a


tendências eletrônicas com bandas como Poesie Noire, Cassandra
Complex, Clan Of Xymox, Wolfsheim, Silke Bischoff e similares.
Nos anos 90 evoluímos para uma diversidade musical: gothic rock,
post punk, synth, darkwave, eletro goth, coldwave, eletro goth, in-
dustrial rock, electro-medieval, celtic, ethereal, ethno... etc.

Ainda nos anos 90, também quem estava acostumado com Dead
can Dance e Sisters of Mercy/ Fields, continuou “catando uvas” ou
“limpando teias de aranha” (dois estilos de dança ethereal/gótica)
com o álbum “Aegis” do Theatre of Tragedy. O feeling mudava
muito pouco em relação a outras bandas ethereal/wave, comparado
a bandas com influência de doom mais arrastado. Algo bem diferen-
te da vertente black metal mais extrema.

Também várias críticas são possíveis a HIM, mas excluir os primei-


ros álbuns do HIM por ser “metal” (além de horrorizar headban-
gers, rs) excluiria também bandas como The Cult, Sisters Of Mercy,
Fields e muitas que já citamos. Valo fazia um típico glam-rock (de-
vido as origens Bowiescas do estilo gótico, algo que acaba sempre
nos atraindo), as vezes hard, e seus primeiros álbuns embalaram
góticos com suas melodias românticas estilo rock anos 60 no estilo
The Mission mas com mais distorção (não por coincidência Valo e
The Mission gravaram juntos em 2016 combinando muito bem mu-
sicalmente).

Também o Tipe O Negative, tanto com suas faixas cômicas quanto


sérias, fez alguns álbuns que agradaram muitos góticos que eram a
“nova geração” de 20 e poucos anos atrás. Porém, posteriormente,
tanto HIM, TON e Paradise Lost se afastam do estilo que os fez po-
pulares na cena gótica no final dos anos 90 e comecinho dos 2000.

Já o Lacrimosa é um caso anterior e a parte: tanto Tilo quanto An-


nie tem uma formação como góticos nos anos 80, e todo repertório
típico do estilo. Annie veio de outra banda de gothic rock, o Two
35
Witches. Estreiando em 1990, Lacrimosa participa de toda uma ge-
ração que renovou o estilo gótico na Alemanha desde o início dos
anos 90 manteve uma coerência de temáticas ligadas a cena gótica.

Na cena Brasileira, a banda era muito bem aceita nas casas de São
Paulo já nos anos 90, inserida em sets tradicionais de música gótica,
e compartilhando especiais com Christian Death, Siouxsie, etc,
como comprovam flyers de época, e claro, muitos góticos que hoje
já estão na faixa dos 40 anos ou mais. Lacrimosa é um fenômeno
mais antigo e duradouro dentro da cena gótica, tanto nacional como
internacional.

AVALANCHE GOTHIC METAL: PÓS 2000

O problema pós 2000 é outro: uma cena gothic-metal cresceu mui-


to em um movimento de moda mainstream, colocando o rótulo
gothic metal (naquele momento tão vendável quanto “grunge” em
1991 ou “brit pop” em 1994/5) em inúmeros gêneros de metal sem
relação com o gothic rock.

E rotulou como gothic metal alguns álbuns e bandas gothic rock,


como forma de vender mais essas bandas. E essa avalanche pegou
a cena gótica em mais um de seus momentos de transição de ge-
rações, em que, como tantas até então, as informações se perdiam
devido ao modelo único de relações presenciais.

Por isso no período 2000-2006 muita gente nova simplesmente


imaginou que a nova cena gothic-metal era a única cena gótica exis-
tente, fazendo a cena gótica local praticamente desaparecer musi-
calmente e conceitualmente.

É conhecido o caso dos criadores do site Spectrum, que depois edu-


cadamente incluíram uma parte sobre a subcultura gótica quando
ficaram sabendo que existia uma “outra” subcultura gótica ainda
viva: a nossa! A pergunta é: se estavam preparados para entender,
como é possível que não soubessem? Como aconteceu na época
uma total ausência de contato e comunicação entre gerações?

Nesse momento do auge do gothic metal o problema não era mais


alguns estilos ou bandas dentro da cena gótica, mas, aqui no Brasil,
uma situação diferente: a cena gótica INTEIRA tinha sido substituí-
da por uma cena metal com nosso nome.
Ter bandas com The Sins of Thy Beloved, Dimmu Borgir ou Cradle
36
of Filth como “padrão de gótico” é algo totalmente diferente de ter,
como antes, o Paradise Lost fazendo um álbum com som Sisters/
Depeche, ou Fields fazendo álbuns com elementos pesados.

Mais: subculturas como a headbanger, a gótica, a punk, hip hop,


etc, todas tem uma série de dinâmicas sociais e características de
comportamento e valores bem diferentes, portanto o problema era
mais que musical apenas.

O lapso de informação entre gerações na virada do século permitiu


a criação das teorias mais absurdas e mirabolantes sobre gótico (foi
quando percebemos que era preciso manter uma base de informa-
ções básicas, como góticos ingleses já tinham feito antes pela in-
ternet). Vimos mais de uma geração bem informada não conseguir
passar essas informações para a geração seguinte.

Daí a importância de mantermos sempre um trabalho informativo


didático sobre a subcultura gótica, em plataformas de mídia acessí-
veis a todos, deixando placas indicativas para pesquisas posteriores.

Foi uma grande luta explicar que uma cena metal não era a cena gó-
tica. Tivemos que lembrar a maioria de novos chegados que já tinha
alguém morando naquela “casa” há bastante tempo, e mostrar que
tínhamos a nossa própria tradição musical atual.

Mas esperneamos e o auge da moda também passou. Hoje mesmo


quem gosta tanto de gothic metal quanto de outras linhas góticas
e wave sabe diferenciar os estilos e, principalmente, as respectivas
cenas. Mas, no passado, o problema do gothic metal foi agravado
por nossa própria culpa, devido à desorganização interna da cena
gótica local e incapacidade de transmitir informação e incluir de
forma positiva estilos e novas gerações.

Precisamos tomar cuidado para não repetir esses erros. Por isso
tudo é importante não aceitar a negação de partes da própria evolu-
ção musical dentro da subcultura gótica, nem de segmentos de esti-
lo tradicionais, caindo em purismos radicais de uma ou outra parte
da tradição histórica da subcultura gótica. E, muito menos, negação
de estilos e segmentos de pessoas, como muitas vezes ocorre, sob
o disfarce de preconceito estilístico ou musical.

A subcultura gótica é diversa da subcultura headbanger, punk, hip


hop ou outras, por isso é preciso preservar nossas peculiaridades e
37
diferenças mas, musicalmente é preciso avaliar caso a caso, álbum a
álbum, e por vezes música a música. Compartilhamos músicas com
diversas subculturas, e muitas vezes, pela convivência há intercâm-
bio musical entre estilos gerando obras artísticas bastante criativas
e novas. Algo muito positivo em termos artísticos.

O MITO “VIEMOS DO PUNK” x METAL: FAIL

Um argumento ruim tira a razão até de quem está certo...

Durante aquele período (2001-2006) se popularizou um slogan mí-


tico de “batalha” mas que era uma meia verdade: “o gótico veio
do punk, logo metal não pode ser gótico porque punk se opõe ao
metal”.

O problema é que isso carrega um grande desconhecimento musical


tanto da história do metal quanto da música gótica. De fato o punk
se opunha ao metal e “rock de arena” nos anos 1970, mas já na vira-
da para os anos 80 bandas de metal absorveram influência do punk,
gerando o metal moderno, como o conhecemos hoje.

Então a presença de influência punk seria um argumento a favor do


metal na cena gótica, não contra. Sem falar no hardcore... e emoco-
re, também influenciados ou derivados do punk e punk rock.

Mas os dois argumentos são irrelevantes, para um lado ou outro: a


lógica de inclusão de estilos musicais em subculturas é muito mais
complexa do que um mero determinismo musical desse tipo.

Porém, aquele slogan foi tão repetido que se começou a esquecer


parte da história musical da cena gótica. Assim, o trauma metálico
e uma nova geração fez com que surgisse um fenômeno de “jogar
o bebê fora junto com a agua suja” como diz o provérbio (significa
jogar algo que faz parte junto com a limpeza).

Por outro lado quem sempre odiou as “guitarras pesadas estilo Sis-
ters e Fields”, ou estilos darkwave, synth goth ou eletrônicos, apro-
veitou para tirar sua casquinha...

Assim, podemos ver jovens criticando estilos e bandas que já eram


aceitos por góticos bem mais velhos. Um purismo binário e desne-
cessário, causado por desinformação, que esquece a própria história
e evolução da cena gótica.
38
Aliás, o purismo binário e maniqueísta parece ser a marca no final
da década de 10.

Felizmente a realidade não é binária.

Nota: Em São Paulo- SP o DJ Marcelo KPT (Deepland) comenta ter


sido o primeiro a tocar Lacrimosa (faixa AllesLuge) no Brasil em
1994 na casa: Morcegovia (nome da época do Madame Satã) ten-
do conhecido a banda através da coletânea German Mystic Sound
Sampler e outras. E o Primeiro especial de pista também em 1996
no The The (OUTRO nome da época do Madame Satã...) no lança-
mento do álbum Stille e também no lançamento do álbum (live) no
clube Umbral em 1998 e fechando com Elodia em 2000 no clube
Deja Vu.

9. O GÓTICO
NÃO “VEIO DO” PUNK
O fato autoevidente é que Punk e Gótico se tornaram já nos anos
80 subculturas com valores, características e estéticas radicalmente
diferentes, quando não divergentes ou conflitantes. Por que então
existe o mito de “o gótico veio do punk”?

As características centrais da subcultura gótica não são encontrá-


veis no punk: se fosse apenas pelo punk, góticos não teriam exis-
tido. Ao mesmo tempo se fala muito pouco de outras influências
importantes da subcultura gótica. Por quê?

Então... O que significa “veio do”?

E o que significa “punk”? Qual Punk?

O “Vir” que nos interessa aqui tem a ver com os conteúdos: símbo-
los, musicalidades e discursos que o gótico adotou como seus nos
anos 1980 e nas décadas de 1990 e até hoje. Conteúdos que são
singulares e peculiares na forma que tomam na subcultura gótica.

Aqui queremos apontar que as principais características e conceitos


que fizeram do gótico uma cultura alternativa desde os anos 1980
não estão no que hoje entendemos como punk (ou do que entende-
mos como punk pelo menos desde o final dos anos 70...) nem no
“conteúdo” que se define geralmente como punk desde então.
39
Em 1976 o termo “punk” foi aplicado a um estilo como o do Bromley
Contingent, grupo de fãs do Sex Pistols e divulgadores da loja de
roupas Sex de Malcolm McLaren e Vivienne Westwood. O artigo
abaixo do blog Moda de Subculturas de Sana Skull conta bem essa
história:
http://www.modadesubculturas.com.br/2016/09/punk-influencia-
-lojas-viviennewestwood-malcolmmclaren.html

Porém rapidamente o punk deixou de ser um fenômeno fashion de


classe média para se tornar uma cultura mais suburbana e estere-
otipada tanto no visual quanto na ideologia, que se definiu politi-
camente (e se fragmentou logo em grupos que vão do anarquismo
e socialismo, até setores que flertam com a extrema direita). No
visual, é interessante lembrar que o visual com moicano não existia
no começo.

O DJ Pete Scathe, de Portsmouth (e criador do site gótico Scathe),


também comenta, e mostra bem essa diferença entre as subculturas
que se formavam:

“A cena punk ficou velha muito rapidamente (...)


bem no início era feita de pessoas mais bem vestidas,
glamourosas – fans do Bowie. Depois foi tomada por (...)
o que as pessoas entendem como punk hoje em dia –
punks estereotipados com moicanos.
O pessoal estiloso migrou, alguns foram para o
New Romantic, outros migraram para o que
se tornou a cena gótica.”
De entrevista ao jornal the Guardian (2008):
https://www.theguardian.com/music/2008/feb/17/popandrock.
shopping9

O que importa é que já em torno de 1979 o próprio punk que se


“consolidou e estereotipou” e perdeu esse “desregramento” e cria-
tividade originais, gerando uma subcultura específica e importante
- como as outras- que permanece até hoje, mas com regras, estética
e padrões próprios de comportamentos (atitude, moicano, jaqueta,
orientação ideológica e política específica, etc).

Esse texto da Sana Skull mostra isso – e mais – de forma precisa:


http://www.modadesubculturas.com.br/2016/09/punk-ingles-
-1976-1979-moda-punk.html
40
QUESTÕES DIFERENCIAIS ENTRE GÓTICO E PUNK

Se você já está há algum tempo em contato com a subcultura gó-


tica, já deve ter ouvido a teoria de que “o gótico veio do punk” ou
do “positive punk”. O que existe de realidade e de exagero nessas
histórias?

Temos vários lados nessa polêmica, entre eles:


1) QUESTÃO MUSICAL E LÍRICA
2) QUESTÃO DAS CARACTERÍSTICAS DA SUBCULTURA GÓTICA
3) QUESTÃO DO SIGNIFICADO SOCIAL E POLÍTICO

Vamos por partes, como gostaria o velho Jack estripador:

1) QUESTÃO MUSICAL E LÍRICA:

Aqui nos referimos como punk especificamente ao que surgiu em


1976/77 na Inglaterra, e derivados posteriores, como hardcore. Im-
portante lembrar que vários estilos de metal foram também influen-
ciados pelo punk e hardcore.

Se tomarmos a maioria das bandas do repertório gótico dos anos


80, a maioria tem influências musicais que são anteriores ou além
desse punk. Algumas das bandas que começaram nos anos 70, no
auge da moda punk ou no post-punk, mudam de estilo nos anos 80.
Como já comentamos as pricipais influências musicais podem ser
localizadas no rock do final dos anos 60 e “proto-punk dos EUA”
(1967-1975), glam rock (aprox. 1970-1975), krautrock (aprox.. desde
1969) e outras influências posteriores que foram incorporadas já
entre 1979 e 1984.

Sem falar em inúmeras influências do cinema dos anos 70, que atu-
alizaram vários temas do cinema expressionista e cine B: Cabaret
(1972), Rocky Horror Picture Show (1975) e o Nosferatu de Herzog
(1979), etc. Claro, e tudo que David Bowie fazia.

Por exemplo, bandas cultuadas pelos góticos desde os anos 80


como: Poesie Noire, Opera Multi Steel, Clan of Xymox, The Sis-
ters of Mercy, The Mission, The Fields Of The Nephilim, Dead Can
Dance, This Mortal Coil, Black Tape for a Blue Girl, Die Form, Cas-
sandra Complex, Deine Lakaien, etc, mostram uma diversidade de
influências e estilos que simplesmente não tem como terem sido
derivadas apenas do punk musical. Vemos influências que vão do
41
Folk, Glam-Rock, rock clássico, música étnica, música eletrônica ex-
perimental, synth, new wave, hard rock, etc. Isso se ficarmos só nas
bandas dos anos 80.

BATCAVE: PÓS-BLITZ & NEW ROMANTICS

“...tinha algo de diferente na Batcave. Um novo ambiente.


Durante nossa primeira visita nesse lugar, foi a primeira vez que
vimos uma pista de dança se esvaziar quando
o DJ Hammish rolou Sex Pistols!”
(Sra. Fiend, entrevista junto com Nick Fiend, Alien Sex Fiend).
em “ The Batcave : 1982-1985: du post punk au goth”
É importante lembrar que o estilo gótico não tinha construído seu
repertório básico até o começo dos anos 80. Primeiro post-punk e
new wave (1978) e logo em 1979 as raízes Glam e fashion ressurgem
com força nos Blitz Kids e New Romantics, que já em 1980 desen-
volvem estilos que logo depois chamaríamos de góticos e influen-
ciam o visual das principais bandas.

A sonoridade das bandas muda também. Os Blitz kids recuperaram


o dandismo e criatividade, incluindo o resultado de pesquisa his-
tórica em visuais modernos, com elementos medievais, barrocos,
vitorianos, renascentistas, etc, embalados por música new wave,
synth e post punk. O clube Batcave surge após os Blitz, incorporan-
do parte do público new romantic. Ao mesmo tempo, essas ideias,
visuais e musicalidade já estavam sendo incorporadas ao que en-
tendemos como gótico.

Um desfile feito por estilistas do grupo Blitz Kids em 1980 foi im-
portante neste sentido, ao usar imaginário eclesiástico, penteados e
maquiagens que não existiam na época, definindo o visual tradicio-
nal gótico posteriormente.

Em meados dos anos 80, fica claro ver o visual padrão gótico -e ati-
tudes- como fortemente influenciado pelos Blitz Kids, entre outras
influências. Não vemos muita diferença de inspiração estre estes e
os visuais góticos atuais.
BANDAS:

Quem foi um adolescente interessado por música nos anos 1970


teve diversas influências, o comentário de Ian Astbury na época da
42
Batcave é só um exemplo:

“Eu fui ao mesmo tempo influenciado por Led Zeppelin, Velvet


Underground, Love, The Stooges, música psicodélica do fim do
anos 60, Hendrix, Cream, Pink Floyd. A música pós moderna me
entediava. O punk tinha acabado, os Pistols, The Clash...
Ian Curtis tinha morrido muito jovem e não tinha
mais nada de interessante”.
(Ian Astbury, vocalista do Southern Death Cult, Death Cult, The
Cult e do The Doors na versão mais recente). Entrevista em “ The
Batcave : 1982-1985: du post punk au goth”
Dos artistas das bandas iniciadas no final dos anos 70 e começos
dos 80 muitos foram motivamos pelo ambiente da moda punk e
depois post-punk/new wave (e outras ideias experimentais dos anos
60 e 70), de fazer qualquer coisa com seus recursos, mesmo se você
não tivesse técnica. Mas isso motivou artistas de diversos estilos
diferentes, não definindo o estilo e conceitos que seguiriam depois,
nem suas ideologias.

Mas mesmo nestes casos vemos outras influências envolvidas: o


Bauhaus foi criticado pelas revistas musicais da época como sendo
mera cópia do Bowie da fase Glam, tanto que a banda respondeu
com uma cover de Ziggy Stardust idêntica e a marca de Bowie sobre
o logo do Bauhaus na capa.

The Damned começou punk, mas na virada para os anos 80 Dave


Vanian muda para um estilo mais pop ou gothic rock. Siouxsie co-
meçam como modelos da loja Sex e dos Sex Pistols, no Bromley
Contingent, mas seu estilo muda nos anos 80, tanto visual como
musicalmente. Robert Smith também define seu estilo nos anos 80.

Os membros do Dead Can Dance podem ter tido antes uma banda
post-punk/new wave na Austrália, mas a sonoridade e lírica da ban-
da que encantou os góticos e se tornou modelo para várias gerações
de bandas (e tendências inteiras) não tinha mais nada que se possa
chamar de punk.
Com o fim do Bauhaus, também Love and Rockets e Peter Murphy
solo mostram uma grande diversidade de influências pré-punk, es-
pecialmente Glam e 60’s. The Mission e The Cult idem. A mesma
lógica se aplica a maioria dos casos.
43
Da mesma forma Andrew Eldritch cita Motorhead e Suicide como
influências em seu site oficial do The Sisters Of Mercy. Franck Ló-
pez do Opera Multi Steel tinha uma banda folk tradicional (chama-
da Avaric) e gravou vários álbuns com ela antes de 1983, e depois
misturou sons folk, eruditos a new wave e synth, criando um tipo
de mistura que se tornou tracional na cena gótica, gerando outras
bandas que misturam música eletrônica e antiga.

A lista é enorme, se pegarmos banda por banda, veremos essa di-


versidade de influências musicais e estilísticas desde os anos 80.
Por isso hoje temos bandas góticas das mais variados, com influ-
ências e misturando estilos musicais dos mais variados, que vão do
eletro ao ethereal, do hard rock ao punk, do folk ao industrial, me-
dieval ou synth, do trip hop ao EBM, etc. Musicalmente, as influên-
cias diversificadas já estavam no repertório pessoal dos artistas no
final dos anos 70 e nos anos 80, e outros movimentos posteriores
reforçaram essas características.

E A POLÊMICA DO POSITIVE PUNK?

Também, para entender isso é preciso lembrar a atitude de alguns


jornalistas e revistas musicais ingleses nos anos 70 e 80. Alguns
deles não gostavam do conceito de gótico. Como hoje, a mídia mu-
sical já tentava controlar e determinar os movimentos. Algo que fica
notório lendo coletâneas de resenhas musicais da época (como Post
Punk Diary 1978-1982 de George Gimarc) ou revistas da época, é
uma má vontade com bandas que adotam um estilo mais “excessi-
vo” e se denominam góticas.

Uma fofoca da época, que ninguém é de ferro: o jornalista Richard


North, da NME, teria interesse pessoal em inventar um novo mo-
vimento, visto que se juntou a banda que estava divulgando, o Bri-
gandage? Podemos ver quando ele começou a fazer parte do grupo
na página da própria banda:
http://www.brigandage.com/brigandageimagecafe/briganda-
gehistory.html

Assim, como podemos ver nas revistas abaixo, de fevereiro de 1983,


o desprezo por bandas como Bauhaus, Siouxsie e Southern Death
Cult era uma questão pessoal para esses jornalistas (fica mais evi-
dente ainda no texto da THE FACE, de Marek Kohn. E a NME – tex-
to de Richard North- sugere um novo Punk:
http://punkrocker.org.uk/punkscene/positivepunk.html
44
Primeiro, vamos lembrar que bandas, público e jornalista já vinham
usando o termo gótico pelo menos desde 1978, como comentamos
no capítulo 18 do livro Happy House in a Black Planet (volume 1,
2008) no capítulo “Cronologia do uso Subcultural do termo Góti-
co”. Claro que o termo ser usado não significa que já existia uma
subcultura gótica formada antes, mas indica que ideia geral de “gó-
tico” já estava espalhada socialmente.

Mas em 1983 era muito tarde para tentar colar outro rótulo em um
movimento que já tinha se disseminado e absorvidos conceitos que
não cabiam mais no que o punk já se tornara há anos. E meses de-
pois veríamos que a ideia de gótico torna algo espalhado pelo mun-
do. Como Mick Mercer comenta em relato do site Scathe:

“...Richard não estava falando de nada mais do que a atitude de


umas poucas bandas e ele não tinha qualquer intenção além de
proclamar um movimento. Ele ficou tão surpreso quanto os outros
ao ver que o artigo foi parar na capa (...). Foram os sub-editores,
possivelmente em uma semana fraca, que aprontaram essa. Ele
estava apenas considerando uma linha mais criativa de Punk,
não um movimento”
http://www.scathe.demon.co.uk/posipunk.htm

De uma forma ou de outra, reduzir o Gótico a Positive punk seria


amputar as principais características de nossa subcultura, não só
musicais, mas em outros aspectos simbólicos e de significado so-
cial, como comentaremos a seguir.

2) QUESTÃO DAS CARACTERÍSTICAS


DA SUBCULTURA GÓTICA
“O Gótico é uma estética de excesso” (Fred Botting)
Subculturas não são apenas cenas musicais, algumas subculturas
não tem música própria ou são baseadas em outras questões. No
caso da subcultura gótica, temos uma convergência de uma tradição
musical (da qual já falamos um pouco acima) e do conceito de gó-
tico como conhecido na cultura geral desde os século XVIII. É im-
portante lembrar que essa junção não é acidental: se pesquisarmos
a fundo as características e ideias envolvidas na literatura gótica
original –que é bem diferente do Romantismo- especialmente no
período 1764-1821.
45
Assim, as principais temáticas e características desenvolvidas pela
subcultura Gótica foram absorvidas e resignificadas a partir dos
temas (e tropos) da literatura gótica.

Já descrevemos algumas das características da subcultura Gótica


no capítulo 7 de Happy House, vol. 1, (2008).

Essas carcaterísticas estão ligadas a outros “tropos” (temas recor-


rentes) típicos originários da literatura gótica, que explicamos me-
lhor na parte 2.

Algumas características principais dessa literatura gótica são aque-


las que aprofundamos no capítulo “Características da literatura gó-
tica” deste livro. Aqui deixamos apenas os títulos:

- Caráter Prometeico
- Ausência de maniqueísmo típico do Romantismo tradicional (OU
“herói Byroniano”)
- A linguagem mais crua (em relação ao Romantismo)
- Personagens com corpos e sensações, erotismo e sensualidade
expressos de forma escandalosa para os padrões da época, in-
cluindo sadismo, perversão, incesto, etc.
- O mal interior se apresenta como degeneração físico-moral da
alma e do corpo.
- Anticlericalismo e iconoclastismo
- Busca do Sublime

Também comentamos as origens dessas características no capítulo


“Cidades dos Condenados”.

Assim, podemos ver que as principais características e simboliza-


ções que definem a subcultura gótica tem origem na literatura góti-
ca, e seus derivados no cinema e outras artes. A subcultura gótica
se apropriou desse repertório para construir sua visão de mundo e
posicionamento político próprio e único (em um sentido de que toda
ação humana é política, pois é social). Vamos ver isso a seguir.

3) SIGNIFICADO SOCIAL E POLÍTICO

A literatura gótica já foi severamente criticada pelos críticos “sé-


rios” e pelo bom gosto romântico de sua época. Como vamos ver
em detalhe no capítulo “Recepção e Crítica Literária do Estilo Góti-
co”, na própria Inglaterra do século XVIII e XIX o estilo Gótico foi
46
depreciado pela crítica literária, gerando um conflito entre as três
partes interessadas em literatura: os leitores, os autores e os críticos
literários.

As temáticas dos romances góticos abordavam questões proibidas


de sexualidade, morte, críticas à aristocracia e clero, etc. Não é
coincidência que uma subcultura do final do século XX tenha es-
colhido essa simbologia para expressar um discurso libertário de
grupo.

Assim como a literatura da qual se apropriou e resignificou, a Sub-


cultura Gótica tem sua própria construção e significação política
e social, que é expressa pela sua estética (música, roupas, letras,
poesias, maquiagens, pinturas, comportamentos, etc). Essa posição
é claramente libertária e questionadora de vários padrões de com-
portamentos tradicionais da cultura dominante (explicamos isso na
parte 2, das características da subcultura).

A CRÍTICA DA CRÍTICA:

A crítica musical do final dos século XX fez com o Punk algo pa-
recido com que a crítica literária fez com o Romantismo no final do
século XVIII e início do XIX, em ambos os casos, curiosamente, em
detrimento do estilo gótico (antes literário, depois como subcultu-
ra): determinou que um estilo era sério e importante na cultura e o
outro era “de mau gosto e popularesco, algo superficial e exagera-
do”. Como no século XIX, autores e artistas ficam no fogo cruzado
entre crítica e público.

Provavelmente podemos culpar setores da crítica musical especia-


lizada (mas não só eles) por terem buscado apagar tanto a história
quanto ignorar desenvolvimentos posteriores do gótico até hoje,
como se esta subcultura tivesse acabado nos anos 80. É notório
como a crítica musical ignora os grandes festivais e todas as bandas
góticas e darkwave pelo menos desde 1990.

Provavelmente se trata de uma estratégia de manutenção de “status


de conhecedor da crítica”, semelhante ao adotado pelos críticos
literários do início do século XIX que desvalorizaram a literatura
gótica. Em ambos os casos, algo que tem mais a ver com os críticos
do que com arte ou realidade. Felizmente, em ambos os casos, a
“crítica especializada, de bom gosto e culta” não conseguiu nem
apagar a realidade da continuidade da produção cultural de estilo
47
gótico e nem eliminar o gosto popular por ele.

E NO BRASIL? GÓTICO x DARK

No Brasil, devido a ditadura militar (1964-1985), muita coisa chegou


atrasada, junta e misturada. Assim, não acompanhamos as fases
de oposição conceitual dos movimentos originais. Por isso às vezes
equacionamos o punk (ou mesmo o gótico) como uma unidade,
quando o próprio punk 80 já não se parece com as ideias de 1976, ou
de 1971 (se aceitarmos bandas dessa época como punks). E entre
1978 e 1983 aconteceu muita, muita coisa importante.

Na Europa todos os movimentos que comentamos antes surgiram


em certa ordem e contexto, com características mais específicas e
muitas vezes se opondo um ao outro. Entre um e outro há espaço
de anos e muitas mudanças.

O post-punk também chega atrasado e dura muito. Até hoje vemos


um oitentismo que teima em não passar. Por isso aqui o gótico pa-
rece tão próximo da chegada do punk, com tudo condensado.

Além disso, nos anos 80 jornalistas brasileiros difundiram um ter-


mo que não tem em outros lugares o significado que demos aqui:
“dark”. Acabamos criando momentaneamente nos anos 80 uma
subcultura que talvez só tenha existido aqui com características lo-
cais. Isso explica o conflito de gerações e informações que acontece
quando a gerações posteriores chegam com as informações mais
completas de fora do Brasil sobre a evolução que o gótico continuou
tendo lá.

Mas ambos os lados estão corretos: o dark brasileiro se aproxima


do que foi uma mistura de post-punk/new wave/no wave lá fora, mas
com toques característicos do Brasil que – coerentes ou não com o
gótico europeu, não importa – criaram uma peculiaridade. Mas em
termos comparativos, o dark brasileiro seria algo mais restrito esti-
listicamente do que o gótico, não incluindo todas as características
musicais, estéticas e sociais que temos na subcultura Gótica. E,
claro, tem outras que não encontramos no gótico.

O Dark brasileiro não foi o que o Gótico era na Europa na mesma


época (desde a segunda metade dos anos 80), por isso não pode-
mos dizer que o gótico é simplesmente “um novo nome” que foi
dado ao “dark” (outro mito confuso difundido no Brasil). Essa ideia
48
restringiria o gótico a um fenômeno revival e eliminaria grande par-
te de suas características.

Porém, em toda sua diversidade, a subcultura gótica continua a cul-


tivar também os estilos musicais – e visuais - dos anos 80, mas
sem se restringir a eles. É importante valorizar essa peculiaridade
brasileira, o “dark”, mas sabendo que é uma “palavra” e ideia sem
tradução no contexto da subcultura gótica global hoje.

Mas isso não faz do “dark” um fenômeno menor: no século XX,


muitas subculturas foram ou tiveram variações locais especializa-
das, devido a ausência ou precariedade das comunicações globais.
É importante conhecer essa história da cultura alternativa brasileira.
Além disso temos uma importante intersecção musical entre o dark
e o gótico, assim com temos entre o gótico e outras cenas musicais
como a guitar/indie, EBM, synthwave, etc.

Apenas a partir da segunda metade dos anos 90 as subculturas


começam a se transformar em fenômenos translocais ou glocais
como as conhecemos hoje, em que todos temos informação atuali-
zada sobre o que acontece hoje em nossas subculturas no mundo
inteiro (veja os capítulos “A Translocalidade Da População Gótica”
e “Glocal”).

CONCLUSÃO:

Subculturas diferentes tem núcleos de significado, hábitos e formas


de representar o mundo diferentes, e é importante perceber e man-
ter essa diversidade.

O Post punk foi um ninho para muitos estilos diferentes. Apesar


da subcultura gótica ter dado seus primeiros passos ao lado da
explosão de criatividade do post punk, nossa tradição, tanto mu-
sical, quanto simbólica quanto libertária, são muito mais amplas,
diversificadas e tem origens anteriores ao punk. Nossas caracterís-
ticas principais e formas de expressar questões sociais também são
diferentes.

Poderíamos dizer que também absorvemos e resignificamos alguns


elementos do punk, da mesma forma que fizemos isso com muitas
outras influências. A própria questão do DIY não pode ser reduzida
a uma identidade com o punk, não só por ser um erro de lógica (re-
lacionar dois todos por um elemento menor), mas também porque
49
o DIY deu origem a muitas coisas diferentes, alternativas ou não.

Da mesma forma que é um equívoco dizer que o gótico é um “godo


moderno”, é um equívoco nos colocar como “um punk de preto”:
isso anularia as principais características do gótico, além de nos
colocar como subtendência de outra subcultura.

É importante que lutemos para manutenção de espaços sociais e


conceituais de diferença na forma de subculturas, como o Gótico,
Hip Hop, Metal, Punk, Emo, etc etc. Mas cada uma dessas subcultu-
ras não pode ser reduzida ou descaracterizada como parte ou mera
subtendência da outra. Isso seria pasteurizar e reduzir a variedade
de escolhas pessoais dos indivíduos.

“Veio do”, no sentido da frase no título, geralmente quer dizer que


as características principais ou essenciais de algo vem de uma ori-
gem específica, e que isso explica o estado atual.

Nesse sentido, definitivamente, o gótico não veio do punk.

Nem dos godos.

10. GOTICISMO:
UMA PALAVRA
TORTURADA...
Crie um filho de brasileiros em uma família chinesa no interior da
China e ele será culturalmente Chinês e se comportará, moverá,
sentirá e pensará como um Chinês.

Logo, nada relacionado a cultura é biológico ou espiritual: não se


nasce com determinada cultura, nem por patrimônio genético, nem
por característica espiritual.

Portanto, não há gene gótico, nem alma gótica nem nenhum tipo de
essência que exista antes da vivência.

Costumamos dizer que “nascemos assim” apenas porque não lem-


bramos da nossa primeira infância, quando nossas tendências e sen-
timentos mais profundos foram moldados. A essência é a sombra
projetada pela nossa história (pensamento que devemos a Sartre).
50
Produções culturais são sempre estéticas: o que faz um poema ser
simbolista é ele usar a estética simbolista, senão seria um poema
arcadista, barroco, romântico, concreto ou de qualquer outra esté-
tica.

Assim, “estética” é o ramo da filosofia que estuda o significa-


do nas artes e outras manifestações humanas. A maioria das
estéticas artísticas recebem o mesmo sufixo: romantISMO,
surrealISMO, expressionISMO, cubISMO... etc. Neste aspec-
to, a palavra goticISMO está correta e é apenas isso: o nome de
uma tradição estética, como tantas outras que citamos acima.

Neste caso, pode ser aplicada a literatura gótica desde o século


XVIII, a arquitetura Neo-gótica do século XIX (Big-Ben etc) ou mes-
mo à arte Gótica medieval, apesar desta ser nomeada apenas como
Gótica posteriormente.

Nós, adeptos da subcultura gótica, apropriamos-nos de elementos


“goticistas”, isso é inegável, mas junto com muitas outras coisas.
Portanto, não podemos reduzir a subcultura gótica ao goticismo,
mas dificilmente a subcultura gótica existiria sem esse aporte es-
tético.

Tanto que esse mesmo aporte estético é explorado por outras sub-
culturas, com outros resultados e significados. O que mostra que
não se pode reduzir (nem estudar) nenhuma subcultura a um de
seus elementos.

Neste sentido, a palavra goticismo (“Gothicism”, em Inglês) aparece


em dicionários e livros, alguns inclusive de décadas atrás.

Outros sentidos atribuídos a esta palavra não tem nenhuma relação


com a subcultura Gótica.

11. AS CATEDRAIS
ERAM GÓTICAS?

As catedrais Góticas são “Góticas”?


Não. Essas catedrais só foram chamadas de góticas séculos depois de
construídas. Na época de sua construção (século VIII ao XVI) eram cha-
51
madas de “Opus Francigenum” (Obra Francesa) ou ainda “Opus Mo-
dernum” (Obra Moderna) ou “Maniera Tedesca” (Estilo Germânico).

Essas catedrais foram chamadas de “góticas” mais tarde, pelos ar-


quitetos e intelectuais renascentistas (após século XVI), como adje-
tivo pejorativo e como crítica ao seu estilo.

Como no Renascimento se buscava um retorno ao estilo e filosofia


antropocêntrica da época clássica Greco-romana (anterior a Idade
Média) se fazia oposição a tudo que era Medieval. Assim, para os re-
nascentistas, a arquitetura europeia teria sido “estragada” na Idade
Média e, para eles, “Gótico” era um sinônimo de grotesco, bárbaro
e desarmônico.

Na verdade, o estilo dessas catedrais se desenvolveu gradualmente


a partir do estilo Românico (remanescente do Império Romano) e,
provavelmente, por posterior influência oriental ou islâmica, devido
ao restabelecimento do contato comercial com Oriente e a ocupa-
ção Islâmica na parte sul da Europa (de 711 a 1492).

Então as catedrais “Góticas”


não foram
construídas pelos “Godos”?
Não. Os vários povos que invadiram e derrubaram o Império Roma-
no não trouxeram influência significativa para a arquitetura. Tanto
que as catedrais desse novo estilo só surgem o século XII na França.
Ou seja: cerca de sete séculos depois da queda do Império Romano.

Para efeito de comparação, o Brasil existe há menos tempo que isto:


só cinco séculos.

A frase acima serve bem para ilustrar como funciona nossa mente
em relação a nomenclaturas do passado: projetamos as classifica-
ções do presente sobre o passado, imaginando que elas sempre
foram assim. Mas a verdade é que Cabral não descobriu o Brasil:
“o Brasil” só vai existir muito tempo depois pela junção de vários
territórios invadidos por Portugueses e Espanhóis no século XVI.
Da mesma forma, referimo-nos às Catedrais como “Góticas” e a
Idade Media como “Idade das Trevas”: estamos repetindo o concei-
to que Renascentistas e depois a literatura Gótica desenvolveram e
Românticos popularizaram.
52
A forma como a ficção literária do século XVIII e XIX descreveu a
Idade Média molda nossa visão do passado até hoje. É importante,
portanto, não confundir história com ficção, nem ficção com ideo-
logia de época. Toda arte é influenciada pela ideologia de sua época
(e a expressa, a favor ou contra), usando o passado, o futuro e o
desconhecido para falar o que pensa do seu “aqui” e “agora”.

Então, por que os góticos (da subcultura gótica)


gostam tanto da estética das catedrais góticas?
Simples: a subcultura gótica absorveu a maior parte de seus ele-
mentos e discursos estéticos da estética desenvolvida pelas novelas
góticas do século XVIII.

O primeiro desses romances foi lançado em 1764, “O Castelo de


Otranto”, seguindo-se vários outros que foram crescendo em popu-
laridade até que, na década de 1790, os estilo de romances góticos
se tornaram o primeiro caso de Best-sellers da história da literatura
inglesa.

A estética desses romances reforçou o imaginário do período me-


dieval e sua arquitetura como “góticos” e obscuros, uma ideia já
desenvolvida antes quando renascentistas citaram a Idade Média
como “Idade das trevas”.

Essa moda gótica chegou ao século XIX e influenciou a literatura


romântica. No século XIX ainda floresceu na arquitetura um revival
“Neogótico”, em que novos prédios eram construídos em um estilo
inspirado no estilo decorativo das catedrais góticas, em oposição ao
estilo limpo do Neoclássico, que, inspirado na cultura Greco-roma-
na, era mais associado a ideia de república e liberalismo.

Na Inglaterra esse revival arquitetônico Neogótico floresceu espe-


cialmente durante o período Vitoriano (1836-1901) criando a asso-
ciação entre estilo vitoriano e arquitetura neogótica que temos em
nosso imaginário, e que é reproduzida na maioria dos filmes de
época.

Esse imaginário da literatura e arquitetura do século XIX continuou


a alimentar o cinema e a literatura góticos e de horror do século XX.
Assim, quando a subcultura gótica se desenvolve no final dos anos
1970 e anos 1980, ela se apropria de toda essa bagagem estética e
constrói sua grande salada ou bricolagem de significados.
53
Não por acaso, a maioria dos temas musicais e estéticos da sub-
cultura gótica coincidem com os dos primeiros romances góticos,
como veremos na parte de literatura.

Claro que a subcultura gótica acrescentou muitos temas e questões


do século XX e atuais na sua bricolagem gótica, mas o gosto por
prédios góticos sombrios e roupas vitorianas têm uma história line-
ar e recente até chegar até nós no século XXI.

12. LIBERDADE RELIGIOSA


NA SUBCULTURA GÓTICA

O grupo social Gótico não é religião nem seita, nem prescreve ou


proíbe religião alguma.

Por isso, cada gótico ou gótica tem a liberdade de ter ou não ter –
enquanto escolha pessoal e privada – a religião ou crença que bem
entender. Apenas é importante respeitar a escolha do outro, pois
este respeito é que garante a tua liberdade pessoal.

Religião é uma escolha privada e pessoal de cada um. E é muito


bom que hoje, depois de séculos de lutas e massacres, cada um
possa escolher qualquer religião ou mesmo escolher não ter nenhu-
ma religião.

Existem Góticos de todas as religiões: umbandistas, cristãos, espíri-


tas, pagãos, islâmicos, budistas, hinduístas etc. E também existem
Góticos agnósticos ou ateus, crenças que, da mesma forma que as
religiões, são escolhas privadas.

Assim, ter essa ou aquela religião, ou não ter nenhuma, não faz de
você mais ou menos Gótico ou Gótica. A subcultura gótica não
prescreve nenhuma religião, nem proíbe nenhuma.

O mesmo acontece com as bandas Góticas. Encontramos algumas


que escolhem professar, em sua arte, alguns conceitos religiosos
desta ou aquela religião. Da mesma forma, outras fazem letras ateís-
tas ou heréticas. Outras simplesmente não comentam sobre religião
em sua arte. Não é isso – ter ou não temática religiosa ou mística –
que as define como Góticas ou não Góticas.
54
Por isso podemos até dizer que o grupo social gótico é um espaço
ou subcultura “laico”. Mas o que significa “Laico”?

O QUE É LAICO?

Por exemplo: o Estado moderno se separou da Religião do Esta-


do na grande maioria das Repúblicas do mundo. Para preservar a
liberdade de escolha religiosa e evitar conflitos, estes Estados se
declararam “Laicos”.

Laico, simplificadamente, significa não tornar obrigatória nem proi-


bir nenhuma religião e garantir que todas respeitem os espaços uma
das outras. Também garante que o Estado (seja qual for o governo
no poder) não seja subordinado a alguma religião.

Para isso, é importante que os espaços públicos ou órgãos do gover-


nos sejam neutros, ou “laicos”. Isso garante que nenhuma religião
seja privilegiada e que nenhuma seja prejudicada, assim evitando
conflitos. Isso garante a liberdade de todos.

Por outro lado, no passado ou hoje temos casos de estados antir-


religiosos (ex: União Soviética) e religiosos (ex: Iraque), que per-
seguiam ou perseguem uma ou outra parcela de suas populações.
Nestes casos vemos como pode ser ruim quando um Estado adota
esta ou aquela postura religiosa ou antirreligiosa.

Algo muito importante no Laicismo (característica do que é laico) é


preservar espaços públicos neutros, ao mesmo tempo que o espaço
separado de cada religião ou crença deve ser preservado. Por isso,
escolas públicas não podem doutrinar os alunos para uma única reli-
gião, mas escolas privadas religiosas têm liberdade de estar abertas
para aqueles que escolherem dar esta educação a seus familiares.
É exatamente o laicismo que permite que hoje existam religiões mi-
noritárias ou alternativas no Brasil e muitos outros países.

13. OS CICLOS NA CENA GÓTICA


Acompanhando a cena Gótica paulistana há quase três décadas
vimos muitas coisas se repetirem periodicamente. Ciclos se suce-
dem. Gerações surgem, crescem e são substituídas – em parte – por
outra. Acontece algo semelhante a outros setores brasileiros, que
não têm ou não tinham registros de sua história: as novas gerações
55
sempre têm a impressão de que estão enfrentando certas situações
pela primeira vez, quando na verdade enfrentam repetição de ciclos.

1. INFLAÇÃO E DEFLAÇÃO POPULACIONAL PERIÓDICAS

Um dos padrões periódicos é a inflação e deflação “populacional”


da cena Gótica. Entre cada ciclo, uma parte dessa população aban-
dona a cena e é substituída, no médio prazo, por outras pessoas,
sendo que um percentual permanece ao longo das gerações. Outros
retornam depois de anos. Mas sempre cabe aos que permanecem
de uma geração para outra a responsabilidade de passar as informa-
ções. Na primeira vez que conhecemos a cena, sempre imaginamos
que nunca sairemos, ou que se sairmos, não voltaremos.

Ambas as crenças são ilusórias: se você é vinculado afetivamente a


subcultura Gótica, as vezes você vai odiar, as vezes você vai amar,
vai dizer que nunca vai voltar ou que nunca vai sair. Mas você sem-
pre estará por perto…ou de repente tem uma “recaída”.

2. OS QUE FICAM E OS QUE SAEM

Quanto aos que saem, invariavelmente o fazem pelos mesmos mo-


tivos de sempre: estavam envolvidos apenas com amizades ou al-
gumas galeras que se dispersaram, e/ou apenas satisfaziam na cena
Gótica uma necessidade natural da adolescência que poderiam sa-
tisfazer em qualquer outro grupo: de adquirir uma identidade provi-
sória que sirva para a ruptura inicial com o núcleo familiar.

É muito comum que os que abandonam a cena por estes motivos


saiam falando “mal dos góticos”, dizendo ser coisa de adolescente
etc. De fato, para estas pessoas foi apenas isso. O erro destas está
em transferir o que é verdade no seu caso pessoal para todos.

3. EX-NOVOS E JOVENS OLD-SCHOL

Uma curiosidade é o comportamento de muitos “ex-novos” (por


exemplo, alguns que estão entre um e cinco anos na cena) que em
um período muito curto se tornam críticos dos “novos novos” (ge-
ração de até um ano ou dois). Um comportamento típico de autoa-
firmação que tende a se tornar mais moderado com a maturidade.

O engraçado é ver que o que foi “modismo” dez anos atrás ser
considerado símbolo de status “old-school” hoje. Seria interessante
56
um pouco mais de senso crítico, pois subculturas, como qualquer
cultura, dependem da boa relação entre as gerações.

4. O GÓTICO ACABOU… DE NOVO?!

Alguns dizem que estes ciclos duram 4 anos. Outros falam em 5


anos. Talvez não tenham um tempo exato, mas um padrão de de-
senvolvimento. O fato é que no final deles sempre surge a conversa
de que “o gótico acabou”. E no começo dos ciclos, quando ocorre
a inflação de pessoas, se repetem os protestos contra “a invasão da
cena” e “não tem mais góticos verdadeiros como antes”.

Descontada a tendência histórica dos Góticos para a idealização do


passado, ao final de décadas começa a ficar um pouco entediante
ouvir as mesmas teses e frases periodicamente. Talvez fosse mais
saudável aceitar os ciclos, os neófitos e as dissenções e as usarmos
a favor do desenvolvimento da cena.

5. APROXIMAÇÕES E AFASTAMENTOS DO MAINSTREAM

Outro fato curioso é que periodicamente, alguma subcena busca se


firmar como uma cena independente, ou se aproximar do mainstre-
am. Ou o mainstream resolve adotar alguma característica gótica
por seis meses.

Dependendo dos estilos mais comerciais de dada época, segmentos


historicamente ligados ao Gótico buscam formar cenas indepen-
dentes usando o público transitório desta onda. E repetidamente é
usado o discurso de que Gótico é “ultrapassado”.

Mas, em um momento seguinte, com a queda da moda em questão,


este segmento volta a sua tradicional ligação “de subsistência” com
a cena Gótica.

6. GERAÇÕES MUSICAIS E VELHAS NOVIDADES

Também o ciclo de conhecimento musical, que se torna um pesade-


lo para alguns Djs, acompanha mais ou menos as inflações e defla-
ções populacionais na cena.

Dentro de um ou mais ciclos, certas bandas e músicas que antes


eram “babas” ou muito conhecidas se tornam as vezes desconhe-
cidas. Assim, a cada nova geração, junto com a produção musical
57
atual, toda a tradição passada precisa ser reapresentada pois para
quem está chegando ela é novidade.

Devido aos ciclos, a informação básica não pode ser considerada


garantida jamais. Mas é com os ciclos que a cena Gótica e Darkwave
evolui e se renova, tando no Brasil quanto no mundo. Quem tem
apenas história é museu, mas quem não tem história nenhuma não
tem caráter para evoluir coerentemente.

O importante é conhecer sua história, seu presente e o futuro: todos


são igualmente importantes. Senão, somos vítimas fáceis da desca-
racterização e desaparecimento de nossa diversidade subcultural.

14. DROGAS: CARETA, ALTERNATIVO,


PESSOAL OU SOCIAL?

“Ninguém se torna mais ou menos ‘alternativo’ por usar ou não


usar drogas ilícitas, da mesma forma que usar drogas lícitas como
álcool ou cigarro não tem – em si – significado cultural nem domi-
nante nem alternativo.”
“MEU NOME NÃO É JOHNNY” *

Não somos ingênuos e sabemos que desde que o mundo existe o


ser humano usa as mais diversas substâncias para alterar a consci-
ência, seja culturalmente, religiosamente ou individualmente. Em
cada época da história, tais substâncias tiveram papéis diferentes:
as vezes permitidas, outras proibidas, outras libertárias, outras con-
servadoras. Hoje, esse papel é eminentemente (do hedonismo) pes-
soal e privado, sem significado social “alternativo” em si.

DA CONTESTAÇÃO ATÉ A CARETICE

Nos anos 1960 e 1970 do século passado, o uso de algumas drogas


esteve associada a movimentos de mudança e vanguarda social.
Posteriormente, as mudanças sociais realizadas foram difundidas
pela sociedade e absorvidas como novo padrão de comportamento
social normal e consumo. Principalmente a partir dos anos 1980 e
1990, o uso de drogas se tornou algo de conteúdo neutro em várias
58 * Filme brasileiro sobre a história de um jovem traficante (2008).
camadas sociais, desvinculando-se de movimentos sociais de mu-
dança.

Simultaneamente, cresceram as multinacionais do comércio inter-


nacional de drogas e o tráfico entrou em processo de “profissiona-
lização” e organização de poder paralelos ao Estado, (em alguns
países chegando a controlar territórios das cidades ou setores do
governo).

Já há duas décadas as drogas são uma realidade tanto em diretorias


de grandes empresas quanto na festa funk ou pagode da esquina,
tanto nas classes altas quanto nas médias e baixas, tanto na balada
comercial quanto em eventos alternativos. Portanto, esse comporta-
mento não define alternatividade ou “contraculturas”. Se tornaram
ser um elemento genérico.

SUPERANDO O PRECONCEITO

Até certa altura do século passado as subculturas alternativas eram


associadas a criminalidade e contravenção por quem desejava des-
merecê-las. Esses críticos e analistas deixavam de lado os aspectos
culturais.

Posteriormente, o avanço dos estudos sociais desconstruíram este


preconceito, alguns re-situando as subculturas urbanas nos estudos
de identidades culturais, enquanto outros as re-situaram na análise
de consumo. Estudos posteriores fundem as duas questões como
complementares.

Paralelamente, o consumo de drogas perdeu sua ligação a compor-


tamentos contestatórios, proliferando por classes ricas, empresa-
riais ou pobres e conservadoras da sociedade.

DROGAS: ESCOLHA PESSOAL SEM CARÁTER ALTERNATIVO

Qual seria então, hoje, o significado do antigo discurso “drogas são


algo alternativo” em si? Passa a ser algo totalmente diferente da
função social do “sexo, drogas e rock´n´roll” do passado. Temos o
produto “drogas” em uma embalagem alternativa, sem uma valori-
zação de qualquer coisa “diferente” de fato.

Quando isso acontece, o estilo alternativo que é “parasitado” por


59
estas estratégias se tornam irrelevantes culturalmente. Também o
tipo de consumidores atraídos por esse tipo de discurso, em geral
não têm muito interesse em algo culturalmente alternativo. Con-
sumirá um simulacro de cultura alternativa da mesma forma que
alguém sem ligação cultural a estas cenas compra uma peruca ou
camiseta “Gótica” ou “Punk” pela simples aparência destas.

Por outro lado, existem nas subculturas alternativas algumas pes-


soas que fizeram a escolha pessoal e privada de usar alguma subs-
tância que produz dependência química e alteração de consciência.
Esta opção madura deve ser respeitada tanto quanto aquela opção
da pessoa que em uma cena alternativa opta por não ser usuário de
nenhuma droga lícita ou ilícita.

Continuam a existir as consequências e prazeres pessoais que sem-


pre existiram no consumo destas substâncias. Essa escolha cabe a
cada um em sua esfera pessoal e privada, de forma consciente.

15. O MACHISTA QUE SE ACHA


ALTERNATIVO
Se não for consensual, não tem a menor chance de ser sensual.

Se não for consensual, não está nem sendo humano, logo não tem a
menor chance de ser alternativo.

Isso é óbvio, mas precisamos prestar atenção: o que nossa socieda-


de machista ensinou aos homens que é “consentimento” feminino
pode estar completamente errado.

O básico: uma mulher pode ser simpática e sorridente, estar inte-


ressada na conversa de alguém, mas não estar interessada sensual-
mente na pessoa.

Ou seja: o pressuposto de que esses comportamentos simpáticos


indicam que “está no papo” ou “está tentando seduzir” não são
apenas machistas, mas também são base da cultura do estupro.
A mesma cultura machista que acha que uma mulher com um de-
cote amplo ou uma roupa mais sexy está “pedindo” para ser abor-
dada... e se ela sofrer violência ou assédio é porque ela “provocou”.
60
Mas se é assim na sociedade tradicional que se considera “normal”,
esses comportamentos “normais” são ainda mais inaceitáveis em
ambientes alternativos ou subculturais.

Aqui vamos falar especialmente do machismo em festas e outros


ambientes.

Sedução e pegação fazem parte de festas noturnas, mas se alguém


acha que afirmar sua masculinidade é pegar alguém a força, ou se
acha tão irresistível que se uma mulher (cis ou trans) está dizendo
“não” é porque a investida ainda não foi “viril” o bastante... Bem,
essa pessoa está sendo, no mínimo, machista.

O machista brasileiro padrão acha que pode ficar investindo verbal


e fisicamente sobre uma ou várias mulheres na mesma noite e, se a
mulher está tentando fugir dele, isso é apenas parte do jogo.

Mas não é: isso se chama violência, coação, assédio ou, no mínimo,


estragar a noite de outra pessoa.

Quando alguém diz “não” (verbal ou fisicamente) a uma investida


sensual isso simplesmente quer dizer… “NÃO”. Não é que a pessoa
não entendeu ainda, ou que a insistência não foi suficiente. É que ela
não está a fim mesmo. Lamento destruir algumas ilusões…

Além disso, se uma mulher está dançando ou falando com alguém,


isso não quer dizer que ela “tá no papo” ou está tentando sedu-
zir. Se ela está conversando alegremente, já pensou que ela apenas
pode ser uma pessoa amigável e sociável?

Além disso, algumas pessoas são simpáticas e educadas até com


desconhecidos... Sim, sei que isso pode ser uma surpresa para al-
guns!

Ou pode estar se divertindo com a música e com a dança em si, pois


saiu para isso. Sim, sei que isso também pode ser uma surpresa
para alguns…

Não é incomum uma gótica ir a uma festa sozinha, ficar e voltar


sozinha, porque, simplesmente, saiu para dançar e se divertir, só ou
com amigos.

Portanto, se uma gótica estiver dançando sozinha, não quer dizer


61
que ela está “facinha”, como é o código tácito em certos circuitos de
festas. Ela pode estar curtindo sua música preferida… e sendo feliz.
E isso não vale só para góticas…

Reforçamos o foco aqui nos ambientes góticos e alternativos, pois


não há festas desse tipo em cada esquina, logo nelas há mais pes-
soas que estão lá mais pela música e estilo. Por isso, pessoas com
comportamentos tradicionais inconvenientes estragam o ambiente
dos poucos lugares alternativos que temos.

Não é como nos inúmeros eventos “genéricos” em que a chapação e


a pegação são a atração principal e o ambiente, a música e estilo são
secundários, terciários… ou nem mesmo importam.

É claro que algumas pessoas estão também a fim de conhecer al-


guém, seja por uma noite ou para um relacionamento duradouro.
Mas quem está a fim de alguém em uma festa indica isso de forma
agradável: uma palavra ou um gesto podem bastar. Quando alguém
está a fim, é muito fácil perceber.

Quando não está, não significa que não houve insistência suficiente
ou falta de “virilidade”. O pretendente pode exatamente ter sido
muito insistente e pegajoso. Ou, simplesmente, ele pode não ter
sido o escolhido. Porque as mulheres escolhem… Desculpe surpre-
ender mais alguns!

E as vezes escolhem que ficar só é melhor do que mal acompanha-


da.

Isso tudo é importante para todos os espaços sociais, mas especial-


mente em ambientes da subcultura gótica, que tem uma tradição e
algumas características próprias na área da interação. Provavelmen-
te existem outros ambientes, tradicionais e conservadores, em que o
comportamento machista, infelizmente, vai ser bem-aceito...

Mas não faz o menor sentido bancar o alternativo enquanto pensa


e age igual à massa padronizada. Liberdade é bom para todos: res-
peitemos a dos outros.

62
PARTE 2:
LITERATURA
GÓTICA
&
ARQUEOLOGIA
SIMBÓLICA

63
INTRODUÇÃO DA PARTE 2:

THIS CORROSION
OF BODY AND SOUL*

“O Gótico não é como as outras subculturas, pois ela se desenvol-


ve não apenas a partir seus precedentes subculturais imediatos,
mas também a partir de uma tradição de 250 anos e ela (a sub-
cultura Gótica) tem uma presença na cultura contemporânea que
transcende seus participantes individuais e ultrapassa a presença
de virtualmente qualquer outra subcultura até hoje.”
(Spooner, 2012)

A forma como imaginamos o mundo hoje tem menos de 250 anos,


isso para as coisas mais estáveis, já outros imaginários são bem
mais recentes. Mesmo que falemos de época anteriores, elas são
recriadas para abordar questões das últimas décadas ou dos dois
séculos passados.

Da mesma forma, quando o Romantismo e o Romance Gótico es-


creveram sobre o passado medieval ou oriental, estavam recriando
esses passados e realidades como um comentário do espírito de
sua época. E “sua época” é “nossa época”: significa os últimos 250
anos mais os menos.

Outras questões mudaram mais recentemente. Há apenas 100 anos


perdemos nosso orgulho racional com Freud e o “inconsciente”.
Neste mesmo período ou menos deixamos de acreditar em eugenia
como ciência (apesar dos retardatários…).

Há apenas 150 anos Darwin nos ensinou sobre nosso lugar na fa-
mília da natureza. Há pouco mais de 50 anos as mulheres votam e
vestem calças no ocidente. Há só duas décadas “descobrimos” que
a homossexualidade não é doença nem crime no Brasil.
O Romance como forma de leitura popular tem pouco mais de 200
anos. Nosso imaginário sobre arte, loucura e o que é gótico não
passa de 250 anos. O Brasil como o conhecemos tem menos de 200
anos.
64
Portanto, não faz sentido imaginar que as referências históricas usa-
das pela ficção gótica faz com que aqueles períodos mais antigos
sejam góticos.

Da mesma forma, quando um escritor naturalista escreve sobre a


Idade Média, não fará com que o passado mude e a Ideologia desta
era se torne naturalista. Pensar que isso acontece se chama ana-
cronismo: projetar os valores e imaginários do presente sobre o
passado.
Todo movimento literário fala do presente, mesmo que cite o passa-
do ou o futuro. Todo movimento literário fala da realidade, mesmo
quando cria seres fantásticos ou espirituais.

Quando a realidade é intolerável, o comentário da arte muitas vezes


é evitá-la. Por isso períodos muito conturbados mas sem solução
evidente geram movimentos artísticos que criam um espaço de es-
capismo, fantástico. A arte popular do começo do século XXI é um
exemplo tão bom disso quanto a do começo do século XIX.

O mundo como o conhecemos é recente. O Gótico como o enten-


demos hoje faz parte deste mundo recente. Vamos olhar para essa
criatura nas próximas páginas.

* Como o título deste livro, o subtítulo deste capítulo também é uma brincadeira
juntando o nome de duas músicas famosas na cena gótica: This Corrosion e Body
and Soul, do The Sisters of Mercy

65
1. CIDADES DOS CONDENADOS:
FOUCAULT E AS ORIGENS
DO IMAGINÁRIO DO MEDO OCIDENTAL
Por que os mais populares personagens ligados ao horror possuem
as características de transmissibilidade, como em uma doença con-
tagiosa? Vampiros, Zumbis e Lobisomens nos transmitem suas ca-
racterísticas por mordidas ou ferimentos. Ou morremos ou nos tor-
namos um deles ou ambas as coisas. Com eles, algumas perguntas
tentam sair daquela sala proibida e trancada que fica nas profunde-
zas escuras de um labirinto subterrâneo:

• Quando e por que construções antigas em locais isolados


passaram a ser sinônimo de um cenário que pode ser habitado por
criaturas que ameaçam não só nosso corpo mas também nossa
alma?
• Quando locais de confinamento se tornaram locais cujo pró-
prio ar tememos respirar com medo de nos contaminar com algo
que não sabemos bem discernir se é um mal físico, moral ou espiri-
tual?

Como a corrupção da alma passou a ser novamente espelhada na


corrupção do corpo, depois de mais de um milênio de ideologia da
idade média baseada na separação do material e espiritual, de apar-
tamento do corpo e da alma? Dorian Gray e Mr. Hyde não poderiam
ter surgido sem essa reunificação.

Em seu livro “Origens da Loucura e Civilização” Michael Foucalt


faz uma arquelogia da formação do imaginário de medo e horror
europeu, que foi levado também para as colônias americanas. Vale
lembrar que essa arqueologia não inclui culturas milenares como a
indiana, chinesa, nativo americana ou culturas africanas que têm
um histórico simbólico diferente do europeu. Vejamos como Fou-
cault desenterra gradativamente as peças deste quebra-cabeça.

1. AS CIDADES DOS CONDENADOS:


Da Alta Idade Média (que finda aproximadamente no século X) até
o fim das Cruzadas (século XIII) os leprosários se multiplicaram
pela Europa. Segundo registros, cerca de 19000 deles em territórios
cristãos, mais de 2000 somente nos registros oficias em território
66
Francês, quando por volta de 1226, Louis VIII estabeleceu as leis
para os Leprosários franceses, consideradas como as “cidades dos
condenados”. Apenas em Paris, havia 43 desses lugares.
Do século XV (a partir de 1401) em diante estes lugares foram esva-
ziados gradualmente e, posteriormente, foram usados abrigar os no-
vos nomes dos amaldiçoados sociais, segundo a ideologia de cada
época: os criminosos, os loucos, os depravados e prisioneiros políti-
cos que se enquadravam em alguma das categorias anteriores.

Mas a lepra não “desapareceu” de repente. Houve um período de


transição até que os excluídos fossem reclassificados simbolicamen-
te. De qualquer forma, no século XVII (1601-1700) existem registros
de procissões agradecendo a Deus a extinção da lepra. Agora os
locais de confinamento estavam cheios com outros tipos de pessoas
que “não devemos tocar” e que deviam ser mantidas a distância.

A regressão da lepra aconteceu em outros lugares como Inglater-


ra, Escócia ou Alemanha seguindo o mesmo padrão, as vezes mais
precocemente. Os leprosários foram esvaziados, mas o imaginário
popular ligado àqueles lugares proibidos em que aqueles marcados
– segundo a vontade de Deus – por uma praga contagiosa, mante-
ve-se.

A lepra desapareceu, mas nos séculos seguintes os mesmos lugares,


muitas vezes, passaram a ser usados para exclusão social de outros
tipos de pessoas. E, como veremos, em muitos casos por doenças e
desequilíbrios que nem existiam anteriormente. Vagabundos, crimi-
nosos, mentes desarranjadas…

OS NAVIOS DOS LOUCOS: stultifera nave


Algo novo surgiu em torno do ano 1500: os navios de loucos, (“ship
of fools” ou “stultifera nave”), em que loucos, desajustados, vaga-
bundos e criminosos eram misturados em navios que ficavam cir-
culando de cidade em cidade. Temos desta época as obras de Hie-
ronimus Bosh, “The Ship of Fools”, além da “Dança da Morte” de
Brueghel e a “La Danse Macabre” de Guyot Marchant (1485).
Rumo final do século XV, o tema da morte vai sendo gradualmente
sobrepujado pelo tema da loucura. A ameça deixa de ser material e
a pestilência paira imperceptível sobre nós, podendo estender suas
garras de dentro de nós a qualquer momento.

67
O CRIME ORIGINAL

Ainda segundo Foucault, a aurora do conceito de loucura durante


a Renascença se dá exatamente pela decadência do simbolismo da
arte gótica (medieval).

Atenção: essa arte só foi chamada de Gótica séculos depois, como


comentamos no capítulo sobre as catedrais góticas ou no primeiro
volume do livro “Happy House in a Black Planet”.
Esta arte era composta por intrincado simbolismo em que cada
coisa tinha seu significado simbólico, formando um sistema de co-
nhecimento. Porém, esses significados foram se confundindo e se
perdendo, virando um caleidoscópio vertiginoso que só tem parale-
lo no sonho e no mágico.

Podemos traçar um paralelo com o que acontece com a palavra “her-


mético”: o que significava um sistema de conhecimento elaborado e
sistematizado (referente ao deus Hermes, portador do conhecimen-
to) se tornou hoje sinônimo o que não se consegue entender, ou é
ininteligível ou fechado.

Na transição do final da Renascença até o início da industrialização


nos principais países da Europa (do século XVI ao XVIII ou entre
1501 a 1800) temos uma gradual mudança no significado do enclau-
suramento social.

Se durante a Idade Média o maior pecado seria o orgulho e a so-


berba, já em uma sociedade que começa a se pautar pela ética do
trabalho e da produtividade – e em que o lucro deixa de ser pecado
– o pior pecado passa a ser a preguiça e a improdutividade.

Inicialmente os “hospitais gerais” e “casas de correção” são locais


que acolhiam os miseráveis, abandonados e todos que não se in-
seriam socialmente. Depois, essa visão de simplesmente resolver
um problema, passa a ser parte de um sistema de regulação social
ligado a um sistema policial.

Nas épocas em que o número de mendigos urbanos subia muito,


serviam de forma de coerção e controle. Já nos períodos normais,
serviam como fonte de trabalho barato, pois o trabalho era uma
medida corretiva – e, claro, lucrativa e aplicada as casas de confi-
namento.
68
Assim, entre o trabalho e a improdutividade, o mundo Clássico
(circa século XVII) estabeleceu uma linha divisória que substituiu a
anterior exclusão pela lepra e pela pura loucura “animal ou santa”.
A improdutividade era a nova lepra e a nova loucura e, muitas vezes,
os locais de exclusão e reclusão eram os mesmos que no passado
recolheram os leprosos. Mudaram os nomes com os séculos, mas
em uma nova moralidade a função permanecia mesma.

Ainda no reino da moral, foi associada aqueles que “pecavam” pela


preguiça ou inutilidade social, também a acusação de não seguirem
os mínimos preceitos de moral social ou sexual.

Assim, os reclusos passam de vítimas ou especiais (como eram no


caso da lepra ou loucura mágica), a serem de alguma forma culpa-
dos por algum crime social.

De qualquer forma, os loucos e improdutivos, depois de recolhidos


das ruas, agora estavam presos juntos, sujeitos a trabalhos força-
dos, fossem homens, mulheres ou crianças de ambos os sexos.

POBRES LOUCOS: A MARCA DA VERGONHA

Assim, no século XVII (entre 1601 e 1700) teríamos uma fronteira


decisiva: o momento em que a loucura passou a ser percebida no
horizonte da pobreza, da incapacidade de trabalhar e de interagir
socialmente, sendo um problema da cidade.

Diferente da Renascença (aproximadamente 1400-1600, dependen-


do do local) que podia imaginar a loucura como um tipo de liberda-
de extrema, o período clássico na aurora da era da Razão só tinha
uma resposta para esse grupo social: bani-lo da cidade.

Então o mal passa a ser confinado com a marca da vergonha. Nem


mágica nem santa, a loucura – englobando diversas formas de de-
sajuste social – recebeu a imagem de uma animalidade negativa:
daquela menos que humana.

Por isso os grilhões, as correntes e as celas passam a ser uma medi-


da considerada necessária para conter essas terríveis ameaças a or-
dem social da família burguesa, da moralidade religiosa e da razão.
Indivíduos que praticavam atos escandalosos, agora, envergonham
suas famílias de uma forma que um julgamento público puniria a
todos, portanto é preciso “esconder e esquecer” esses indivíduos
69
junto com as possibilidades que representam. (até final do século
XVIII – 1701 a 1800).

Segundo Foucault, o Classicismo sentia uma vergonha na presen-


ça do inumano que a Renascença jamais experimentara. Para este
período, a loucura não tinha a marca da doença, mas de um escân-
dalo exemplar. Em uma época que definia a característica humana
essencial como sendo a Razão, o status desses “loucos” era o seu
oposto: a animalidade.

No começo do século XVIII (1701 a 1800) ainda era possível encon-


trar esses lugares onde tantas pessoas foram isoladas como “ani-
mais saudáveis” e desprovidos de razão, o que retirava a necessi-
dade das proteções que os humanos racionais receberiam. Foucault
relata como em 1811 um pesquisador encontrou os “loucos” presos
em celas às vezes sem teto e sem porta e mulheres nuas dormindo
na palha, todos expostos ao clima rigoroso. É o mundo que Pinel
(1745-1826) inicialmente encontrou, mas que foi mudando.

Até esse ponto a loucura não era um problema médico. Era uma
“imprevisível liberdade” animal. Era o homem ligado a besta, a
fera. O confinamento era destinado a controlar “a animalidade da
loucura e a imoralidade da desrazão”. Coisas a serem temidas. Uma
ameaça a todos, mas distante e separada da humanidade e da so-
ciedade.

Porém, isso estava para mudar.

3: O GRANDE MEDO SOCIAL: CORROSÃO DE CORPO E ALMA

De repente, lá pela metade do século XVIII (em torno de 1750) surge


um grande medo social. As pessoas estavam com medo de alguma
estranha doença que emanava das casas de confinamento e ame-
açava as cidades. Estranhas febres, emanações que podiam chegar
até os centros urbanos quando os vagões de loucos acorrentados
passavam perto a caminho das casas de confinamento.

É importante lembrar que as primeiras observações de micro-orga-


nismos com microscópios tinham acabado de acontecer, mas ainda
não era algo que estivesse disseminado no senso comum. Então, as
ideias de contágio ainda eram muito mágicas, quando não tingidas
de moralidade religiosa.
70
Se dizia que o próprio ar, pervertido pela doença, poderia contami-
nar os quarteirões próximos. Era uma ideia de contágio que mistu-
rava elementos de doença física e moral.

Curiosamente muitos destes locais de confinamento eram os mes-


mos que na Idade Média abrigaram os leprosários. E não por aci-
dente essa imagem simbólica de “contaminação” e “contagioso” se
misturou na imagem dos novos habitantes das casas de confina-
mento, séculos depois da lepra ter desaparecido.

A cidade então aparecia como uma cidadela da razão e ordem em


que os cidadãos “de bem” estariam protegidos desses eflúvios que
misturavam o mal moral e físico. O ar dos lugares de confinamento
poderia transmitir sua corrupção, corrosão e “apodrecimento” físi-
cos, morais e espirituais. A ideia de decomposição da carne aparen-
temente se misturou nesse imaginário como herança imagética dos
leprosários e metáfora da questão moral.

Esse ar maligno é chamado de corrompido, e é contagioso. Ele pode


penetrar os corpos e almas, e ficar preso a eles, corrompendo-os fí-
sica e moralmente, com as características atribuídas aos ácidos pela
química do século XVIII (1701-1800). Assim, um cenário de medo e
horror está socialmente estabelecido, e a razão está ameaçada em
suas frágeis fortalezas urbanas.

E os locais de confinamento, finalmente, no século XVIII conjugam


e encaixam todos os elementos imaginários e simbólicos que logo
a seguir começariam a ser descritos na literatura gótica como ele-
mentos de horror!

Assim, o leitor daquele século pode perceber todos esses elementos


simbólicos como atemorizantes e de horror, pois havia um imaginá-
rio específico que fora completado naquele século e que comparti-
lhamos nos últimos 250 anos aproximadamente (desde 1750).

A ameaça da impregnação dos corpos e almas com o mal e apodre-


cimento foi, assim, simbolicamente articulada no imaginário social.

Nas casas de confinamento são jogados e se amalgamaram todos


os elementos rejeitados pela moral dos séculos XVIII e XIX: todas
as formas de sexualidade não aceitas (especialmente as femininas),
descontentes sociais, pessoas que não aceitavam as novas formas
de trabalho, presos políticos etc.
71
A loucura ou a desrazão agora ameaçava as pessoas com a marca
de doença contagiosa. Isso aumentou sua força simbólica de horror,
corrupção e perversão. Assim, os locais de confinamento, afastados
da cidade, passaram a parecer extremamente perigosos.

FORTALEZAS DA INSANIDADE: ESTERILIZAÇÃO & MORAL

Mais para o final do século XVIII (próximo a 1800) evolui a ideia de


que esses “Asilos” sejam lugares esterilizados, em que o mal possa
servir de exemplo moral, mas sem ameaçar os cidadãos. O trecho a
seguir, relatório copiado de 1789, explica muito bem o imaginário da
época sobre os asilos, de um ponto de vista não literário:

“Estes asilos guarnecidos… dos mesmos atos reprováveis os des-


vios de uma juventude licenciosa demais; é prudente que as mães
e os pais familiarizem suas crianças já em uma idade precoce com
estes horríveis e detestáveis lugares, onde a vergonha e torpidez
supuram crime, onde o homem, corrompido em sua essência, fre-
quentemente perde para sempre os direitos que ele tinha adquirido
em sociedade”. (Foucault)

Aqui o asilo passa a ser um exemplo de tudo que é negativo e proi-


bido socialmente, o horror de suas instalações e de seus habitantes
serve como um aviso: isso pode acontecer a você. Mas a proibição
povoa o imaginário com os desejos proibidos e logo as fantasias do
que acontece atrás dos muros se torna um par de atração/repulsa.

Se a medicina em cumplicidade com a moralidade (social e reli-


giosa) se uniram para estabelecer um exemplo negativo, criaram
também um universo fantástico de imaginação sombria. Assim, o
horror que cercava as fortalezas da insanidade foi povoada com
todos os prazeres e voluptuosidade proibidos por uma época que
glorificava a razão. Neste ninho imaginário florescem as fantasias
como a do Marquês de Sade.

SADISMO: O DESEJO NO CALABOUÇO

Não é um acidente que a desrazão reapareça na segunda metade


do século XVIII (1750-1800) como “linguagem e desejo”, nem é aci-
dente que o sadismo, um fenômeno com o nome desse autor, tenha
nascido do confinamento e que toda obra de Sade seja dominada
por imagens de confinamento: a fortaleza, a cela, a adega, o conven-
to, a ilha inacessível etc.
72
Mas não foi Sade o primeiro nem o único a elaborar essas imagens e
associá-las ao horror e a fazer outras associações originais que hoje
consideramos “naturais” e como dados estabelecidos de estéticas
fantásticas, de loucura, de horror ou góticas.

Já a partir do “Castelo de Otranto” de Horace Walpole (1764) temos


o padrão dos labirintos subterrâneos do castelo, da punição eterna
na caverna em Vathek (1786, versão inglesa), o convento e as salas
fechadas em O Monge (1796) e tantos outros exemplos que vamos
encontrar no século seguinte (1800-1900) nas obras de Maturin,
Byron, Mary Shelley, Poe, Le Fanu.

Além deles, tantos outros até 130 anos depois de Otranto, o literal
asilo de Drácula, de Bran Stoker: aí a metáfora é explícita. Mesmo
quando temos a descrição de um sanatório em o “Triste Fim de Po-
licarpo Quaresma” (1915), o imaginário gótico emerge na narrativa.

Ainda hoje, Batman, o cavaleiro negro da razão, descendente dos


investigadores Auguste Dupin (de E.A.Poe, 1809-1849) e Sherlock
Holmes (C. Doyle, 1859-1930), hesita em adentrar a moderna forta-
leza da loucura, o Asilo Arkhan. Não por medo da morte, mas por
medo de encontrar lá seu verdadeiro lar.

Além disso, todos nós podemos nos lembrar das características co-
muns atribuídas aos personagens góticos em seu caminho para as
trevas e da perda de sua mente ou alma: doenças nervosas, cala-
frios, membros enrijecidos, olhos vítreos, decadência física paralela
a corrosão moral etc. Todo um vocabulário ilustrativo da perda da
razão.

As convulsões e mudanças sociais do século XVIII também conver-


giram para esse imaginário de horror, acrescentando novos medos
coletivos e novos sentidos a eles.

Assim foi formado todo imaginário simbólico que vai ser conjurado
pela literatura gótica e que é compartilhado por nós até hoje.

Também fica muito claro perceber que o fato da subcultura gótica


ter recebido o nome “gótico” nome não é um mero acidente: todo
sistema de referências, valores e representação de mundo desta sub-
cultura, herdados da literatura gótica e seus descendentes na cultura
popular, está mergulhada nestas ligações simbólicas e significados
cuja arqueologia comentamos aqui.
73
2. CRONOLOGIA DE OBRAS GÓTICAS
do SÉCULO XVIII E XIX
Esta é uma cronologia de algumas obras essenciais que definem
o que chamamos de gótico na literatura, ou que foram fortemen-
te influencidas por este estilo mesmo que misturando-o a outros.
Conhecendo estes elementos, é mais fácil entender como no final
do século XX a Subcultura Gótica se apropriou desse estilo, resig-
nificando seus elementos e usando-os para construir um discurso
moderno e libertário que segue significativo no século XXI.

O objetivo desta cronologia é também localizar você no tempo du-


rante a leitura dos próximos capítulos. Vamos citar apenas algumas
obras mais importantes, e os livros influenciados mais famosos. Em
negrito, sugestões de por onde começar a ler.

No século XX muitos autores continuaram essa tradição, e o cinema,


a nova arte narrativa popular que surge nesse século, se inspira na
tradição gótica em muitos de suas primeiras produções e até hoje.

Parte 1 (1764-1800):

1749- Horace Walpole compra a mansão Strawberry Hill e começa


a goticizá-la
1754- Edmund Burke publica seu ensaio filosófico “Uma Investi-
gação Filosófica Sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do
Belo” (obra teórica)
1764- O Castelo de Otranto- de Horace Walpole (The Castle of
Otranto)
1774- Lenore (poema balada)- Gottfried August Bürger
1774- Necromancer, ou o conto da floresta negra- Peter Teuthold
(autoria disputada)
1786- Vathek- Willian Beckford (Vathek)
1790- Um Romance da Sicília- Ann Radcliffe (A Sicilian Romance)
1791- O Romance Da Floresta- Ann Radcliffe (The Romance Of
The Forest)
1793- William Beckford começa a constuir sua catedral gótica, a
Fonthill Abbey
1794- Os Mistérios de Udolpho- Ann Radcliffe (The Mysteries de
Udolpho)
1796- O Monge- de Matthew G. Lewis (The Monk)
1797- O Italiano- Ann Radcliffe (O Italiano)
74
Parte 2 (1800-1900):

1808- Fausto (versão definitiva) – Goethe( Faust, eine Tragödie )


1813- O Renegado, Fragmento de um Conto Turco – Lord Byron
1817- O Homem de Areia – Ernst T. A. Hoffmann (Der Sandmann)
1818- Northanger Abbey – Jane Austen
(paródia dos romances góticos)
1818- Frankenstein ou O Moderno Prometeu – Mary Shelley
(Frankenstein: or the Modern Prometheus)
1819- A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça – Washington Irving
1819- O Vampiro- John Polidori (The Vampyre)
1821- Melmoth o Viandante- Charles Maturin
(Melmoth the Wanderer)
1835- O Jovem Gordon Brown – Nathaniel Hawthorne
(Young Master Brown)
1936- A Morte Amorosa- Theóphile Gautier
(La Morte Amorouse)
1840- Tales of the Grotesque and Arabesque - E. A. Poe
(contém A Queda da Casa de Usher e outros contos importantes)
1842- A Máscara da Morte Vermelha- E. A. Poe
(The Masque of Red Death)
1846- Musgos de um Velho Solar- Nathaniel Hawthorne
(Mosses from an Old Manse)
1847- O Morro dos ventos Uivantes- Emily Brontë
(Wuthering Heights)
1847- Varney, the Vampire, or The Feast Of Blood-
James M. Rymer
1850- A Letra Escarlate- Nathaniel Hawthorne
(The Scarlett Letter)
1857- As Flores do Mal- Charles Baudelaire (Les Fleurs du Mal)
1868- Os Cantos de Maldoror -Conte de Lautréamont ou Isidore
Lucien Ducasse (Les Chants de Maldoror)
1886- O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde
Robert Louis Stevenson (Dr. Jekyll and Mr. Hyde)
1872- Carmilla e outros Contos - Sheridan Le Fanu
(no livro “In a Glass Darkly”)
1891- O Retrato de Dorian Gray – Oscar Wilde
(The Picture of Dorian Gray)
1897- O Homem Invisível- H. G . Wells
(The Invisible Man)
1897- Dracula- Bram Stoker
1898- A Volta do Parafuso- Henry James
(The Turn of The Screw)
75
3. CONTEXTO HISTÓRICO
DA LITERATURA GÓTICA

“O Gótico é uma estética de excesso” (Fred Botting)

Por volta do ano 1790, o rei francês perdia a cabeça na guilhotina e


na Inglaterra o rei perdia a cabeça para a insanidade.

Enquanto isso, muita gente, que não devia aprender a ler, estava
aprendendo e esses novos leitores fizeram do estilo gótico o primei-
ro caso do que chamaríamos hoje de “Best-sellers”, para a infelici-
dade dos críticos literários que defendiam o bom gosto aristocrático
e, principalmente, o seu próprio status como especialistas.

Mas as mulheres, burgueses e trabalhadores que estavam aprenden-


do a ler adoravam as “gothic novels” (romances ou novelas góticas).
Algumas mulheres estavam até escrevendo romances! Walpole, Be-
ckford, Lewis e Radcliffe eram nomes incontornáveis dessa onda
inicial, sendo seguidos por uma grande quantidade de escritores
que reproduziam este estilo.

Todos esses autores flutuavam entre as opiniões, muitas vezes di-


vergentes, dos críticos e dos leitores. Esse conflito marcou a forma
como o estilo gótico foi registrado na história da literatura e a forma
como até hoje o percebemos em relação às demais escolas literárias.

Contudo, a moda gótica no século XVIII (1700-1799) começara bem


antes. Floresceu poderosamente na segunda metade desse século
especialmente devido aos esforços de Horace Walpole na arquite-
tura, decoração e literatura. A obra e a vida pessoal de Walpole
e de William Beckford (1760-1844, autor de Vathek) reforçaram o
imaginário de excesso, excentricidade, ironia e exotismo ligados ao
estilo gótico.

Só para nos posicionar historicamente: em 1750 estávamos quase


90 anos antes da Era Vitoriana (1837-1901), mais de 50 anos antes
de Byron (Lord Byron 1788-1824) escrever qualquer coisa e quase 60
anos antes de Poe (Edgar Allan Poe, 1809-1849) nascer. Balzac nas-
ce somente em 1799. Drácula de Bran Stoker vem à luz (sic) em 1897,
mais de 130 anos depois de Walpole lançar O Castelo De Otranto.
76
No século XVIII, que vai de 1701 a 1800, algumas coisas começam a
mudar. As monarquias eram inquestionáveis e, de repente, começa-
-se a falar em república na Europa e em independência nas colônias,
o que gera um clima de insegurança geral. No final desse século
a Revolução Francesa (1789) derruba a monarquia francesa com a
ideia de República, degenerando depois em um regime de horror.

Um pouco antes, a Inglaterra tinha perdido a guerra e sua grande co-


lônia na América tinha se tornado independente (1777) exatamente
como República. O rei Inglês na época também não era muito bom
da cabeça, o que não ajudava, mas não chegou a “perder a cabeça”
literalmente como a nobreza francesa da mesma época, decapita-
dos pela Revolução em Paris.

Portanto, no século XVIII as pessoas ousaram se rebelar contra a


instituição da Monarquia, lembrando que anteriormente os reis e
rainhas eram considerados como tais por direito divino. O que nos
leva a uma das características principais do romance Gótico, que é
o caráter Prometeico das obras, que comentaremos mais adiante.

Outras coisas estão acontecendo simultaneamente nessa época: a


decadência da Nobreza, a industrialização e urbanização, com a
consequente criação de uma classe de trabalhadores e, por outro
lado, uma classe de novos-ricos que não tinham status de nobres.

Mas o que nos importa é que na segunda metade do século XVIII


acontece um processo de alfabetização de pessoas que anterior-
mente “não deveriam ter acesso à cultura”, no caso, trabalhadores
da cidade e mulheres de diversas classes.

Isso motivou a ascensão comercial de um novo modelo de leitura: o


romance, cujas vendas aumentaram muito e, na década de 1790, o
primeiro gênero a ser um sucesso de vendas na Inglaterra foi exata-
mente as Gothic Novels, os nossos queridos romances góticos.

A CRÍTICA

O desprezo dos críticos por um estilo que era sucesso popular é só


uma parte do raio-X do estilo gótico que faremos. Este corpo des-
morto segue causando polêmicas vigorosas e inseminando diversas
escolas literárias com seu vigor nos últimos 250 anos. Alguns ma-
nuais de literatura colocam o estilo e estética gótica como variantes
menores do Romanticismo. Por isso, vamos também comparar as
77
diferenças marcantes desses dois movimentos estéticos, comentar
suas semelhanças e interações.

Já vimos no texto sobre formação do imaginário como um lugar


isolado e sombrio se tornou um local de um mal contagioso a ser
temido. Hoje, isso pode nos parecer natural, da mesma forma que
vemos a Idade Média como sombria.

Mas essas duas imagens são construções culturais que consumimos


há mais de dois séculos e não são nem naturais nem fatos históricos.
São importantes como construções artísticas e ideológicas sobre
o mundo passado e o atual em que vivemos, mas só desnatura-
lizando-as e percebendo sua construção poderemos entender seu
sentido e poder.

Porém, o estilo gótico é mais que um cenário sombrio com seres


ameaçadores. Um cenário e personagens podem ser adaptados a
qualquer estilo. Muito além de cenários enevoados, seres com uma
imortalidade problemática (Frankensteins, Zumbis, Vampiros, Do-
rian Grays etc) e atitudes heréticas, o gótico possui uma estrutura
interna que permite o desenvolvimento de narrativas góticas em
qualquer cenário ou época.

Finalmente, como a literatura de estilo gótico é ignorada pela maio-


ria dos manuais de literatura, listamos também uma breve cronolo-
gia de obras e biografia dos principais autores que estabeleceram os
padrões da estética que chamamos de gótico até hoje.

Portanto, tome seu carretel de barbante e archote, desça as esca-


darias pelos vários subsolos e nos acompanhe por este labirinto
escuro. Que seres monstruosos encontraremos?

Todos eles, com certeza, mas os mais ameaçadores serão aqueles


que nos habitam.

78
4. CARACTERÍSTICAS
DA LITERATURA GÓTICA
E DIFERENÇAS ENTRE ROMANCE GÓTICO E ROMANCE
ROMÂNTICO (GOTHIC NOVELS X ROMANTIC NOVELS)

As características principais do romance Gótico e do romance Ro-


mântico podem ser vistos como reações diferentes as mesmas ques-
tões de sua época.

Uma destas questões é “falta de fé na adequação da razão ou das


crenças religiosas para fazer compreensíveis os paradoxos da exis-
tência humana” (Robert D. Hume, 1969) na segunda metade do
século XVIII e começo do XIX. Inicialmente a estética gótica dará
uma resposta, e a estética Romântica uma outra, apesar dos pontos
de contato.

Como já vimos, esta crise de valores tanto na razão científica quan-


to nas crenças religiosas acontece em um período histórico em que
modelos sociais estáveis por séculos começam a mudar. Nesse mes-
mo período cresce o número de pessoas alfabetizadas que anterior-
mente “não deviam ler”, pois leitura era um privilégio de classes
privilegiadas e com “bom gosto”.

WALPOLE

Horace Walpole foi um abastado filho de um longevo primeiro-mi-


nistro Inglês. A partir de 1747 começa a história de Strawberry Hill.

Apreciador de antiguidades, Walpole decide “goticizar” a mansão


da propriedade (que não era de estilo gótico), jardins e arredores.
A concepção de Walpole de goticizar era agregar toda uma série
de artefatos antigos para criar uma ilusão de passado fantástico.
Assim, foi acrescentando gradualmente os mais diversos e incoe-
rentes adornos a sua mansão e jardins, criando, finalmente um todo
impressionante que começou a atrair curiosos e admiradores, e até
hoje é ponto turístico muito visitado, como podemos ver no site
oficial da Strawberry Hill:
http://www.strawberryhillhouse.org.uk/

A propriedade de Walpole reforçou e espalhou pela Inglaterra uma


moda gótica na decoração e jardinagem. Finalmente, em 1764, Wal-
pole lança a primeira versão de seu “O Castelo de Otranto”. Quan-
79
do o editor aprecia o trabalho, assume a autoria e já na edição de
1765 acrescenta o subtítulo “a gothic novel” (um romance gótico).
Mais importante, na introdução ele explica sua teoria sobre o novo
modelo de romance que criou.

O “Castelo de Otranto” faz sucesso mas atrai muitas resenhas ne-


gativas de críticos especializados, o que será um padrão em relação
aos demais romances góticos, pois a crítica literária pertencia a uma
classe social diferente dos leitores de romances góticos daquela
época.

Assim, a escatologia estética, as ofensas morais e o suposto “mau


gosto e inverossimilhança” literária castigam o livro de Walpole (e
outros romances góticos) por décadas e talvez até hoje. Mas, como
sabemos, isso não teve influência sobre os leitores…

Walpole afirma buscar a junção de diversas tradições literárias, da


mesma forma que juntava artefatos de diversas épocas na brico-
lagem decorativa e arquitetônica de sua mansão Strawberry Hill.
Sua linguagem se aproxima em alguns pontos mais da crueza de
Shakespeare (que, na época, fora copilado em livro há pouco mais
de um século) do que em relação ao texto esperado pelo bom gosto
da época.

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS
DA LITERATURA GÓTICA:

“O Gótico tem sido e permanece necessário à cultura ocidental


moderna, porque ele nos permite, no fantasmagórico de uma fic-
cionalidade descaradamente falsa, confrontar as raízes de nossos
seres em contraditórias multiplicidades (da vida se transformando
em morte aos gêneros se confundindo até o medo se transforman-
do em prazer e muito mais) e a definir nossos seres em oposição a
essas assombrosas contradições, ao mesmo tempo que nos senti-
mos atraídos por elas, tudo isso em um tipo de atividade cultural
que, enquanto o tempo passa, pode continuar inventivamente a
mudar seus fantasmas de mentira para que abordem anseios e me-
dos culturais e psicológicos mutáveis”. (Jerrold e. Hogle)
As caraterísticas principais dessa literatura estabeleceram o sentido
da palavra “Gótico” nos últimos 200 anos. Toda literatura poste-
rior que foi influenciada segue esse sentido da palavra Gótico, bem
80
como o cinema no século XX, desde seu surgimento. Posteriormen-
te a subcultura gótica se apropriou desse repertório todo, resigni-
ficando-o.

Algumas características principais da literatura gótica são:

- CARÁTER PROMETEICO: como no mito de Prometeu, algum


personagem tende a desafiar os deuses, mesmo que seja para me-
lhorar o mundo, sendo depois eternamente punido por isso. Por
consequência, o mito de Lúcifer acaba sendo assimilado a essa ideia
no século XVIII, especialmente pela obra Paraíso Perdido de Milton.
Não por acaso, Mary Shelley chama seu Frankenstein de “Moderno
Prometeu”.

Por isso, tantos “anjos caídos” e “anjos negros” na estética gótica. O


Mito de Prometeu tem várias versões. Em uma das mais conhecidas
o titã Prometeu rouba o fogo dos deuses (a cultura) para trazer aos
humanos e melhorar nossas vidas. Ele é descoberto pelos deuses e
recebe uma punição exemplar e eterna: ser amarrado a uma rocha e
ter seu fígado comido todo dia por uma águia, sendo que todo dia
seu fígado se regenera para que o suplício possa se repetir…

Prometeu se torna, assim, um modelo daquele que ousa desafiar a


ordem estabelecida (da sociedade, da religião, dos deuses, do uni-
verso etc) para realizar uma melhoria humana ou se colocar acima
dos deuses, incorrendo em algum erro nesse processo que causa
mais danos que bem (muitas vezes enlouquecendo no processo) e
sendo exemplarmente punido no final, muitas vezes, com uma pu-
nição eterna.

- HEROI X MUNDO/ EU X EU: Ao contrário do Romantismo tradi-


cional, o conflito não é entre um herói bom e um mundo mau que
atrapalha a realização do bem e do amor. O conflito na estética
Gótica é interno, pois o mal e a loucura ameaçam o protagonista
a partir de dentro de si. Posteriormente esse modelo vai inspirar o
será chamado de herói Byroniano.

O “herói” (se o podemos chamar assim…) gótico tem uma moral


dúbia: seu conflito entre bem e mal é interior, não exterior. Já o herói
romântico é (ou se vê) uma alma pura e boa, e o conflito acontece
com um mundo mau ou decadente, que o impede de realizar sua
perfeição e bondade (geralmente através do amor). Podemos per-
ceber que o que passa a ser chamado de herói Byroniano décadas
81
depois não é mais que uma versão romântica desse personagem
gótico seminal.

É assim com Manfred, Vathek, Monge, o Judeu errante, Frankens-


tein e todos os Vampiros e anjos caídos que possamos imaginar.
Exatamente a imagem de Lúcifer como um “rebelde positivo” só
pode ser possível a partir do século XVIII ajudada pela obra “Para-
íso Perdido” (1667/1774), de Milton, que traz uma versão de Lúcifer
simpática ao imaginário dessa época.

Também Fausto, tanto na versão popular quanto na peça de Mar-


lowe, tem um fundo prometeico. Tanto que Goethe, depois de ter
realizado um dos livros fundadores do Romantismo (Werther) de-
senvolve sua obra mais gótica no século seguinte, com Fausto.

Aliás, lembrar de Werther como essencialmente Romântico é opor-


tuno para ressaltar outra característica romântica. O personagem
Romântico acredita que o mal está no mundo material, em oposição
a sua alma pura, que pode ter sua realização no mundo espiritu-
al idealizado (da mesma forma que o passado é idealizado), logo
muitas vezes o suicídio aparece como libertação, em que a alma é
libertada dos males do corpo e mundo material.

Frankenstein (1819) já uma obra da fase seguinte do Romance Góti-


co, e talvez seja o exemplo mais conhecido de trajetória prometeica:
cientista desafia religião, moral e ciência para recriar a vida, enlou-
quece e perde a humanidade no processo, que não dá muito certo…
e é eternamente perseguido pelo resultado.

- A LINGUAGEM: no Romance Gótico ela se aproxima mais da


crueza e realismo Shakespeariano do que da assepsia e idealização
do Romantismo. Walpole inclusive cita Shakespeare como referên-
cia em sua introdução a Otranto (1764). Mesmo que poetas român-
ticos posteriormente reciclem imagens de romances góticos de uma
forma mais aceitável.

Como já foi dito, o “Gótico é uma estética do excesso” e sua lin-


guagem nem sempre tem a limpeza e pureza que encontramos no
romantismo. A linguagem do Romance gótico vai descrever o feio e
o escatológico quando o encontra.

No século XIX muitos romances misturarão elementos gótico e ro-


mânticos. Tanto que, como o Romantismo chega no Brasil quando
82
já está terminando na Europa, a versão do romantismo recebida por
nós aqui traz o Gótico como característica já misturada ao Roman-
tismo

- O CORPO: Algo escandaloso para os padrões do século XVIII e


começo do XIX, nos romances góticos a sensualidade física é ex-
pressa, e os personagens têm um corpo e uma sexualidade que se
busca realizar, não necessariamente baseada no amor. Temos casos
em que a relação sexual se realiza, ou mesmo tentativas ou realiza-
ção de estupro. Não há uma idealização da mulher.

No caso dos romances Românticos, temos muitas vezes uma ide-


alização da mulher, e uma descorporificação dos personagens. Os
personagens em geral buscam um amor idealizado, baseado no
amor platônico ou religioso, sendo que em muitos casos essa am-
bição só “se realiza” idealmente na união das almas após a morte.
No Romantismo original vemos personagens que praticamente não
apresentam corpos, amor platônico e realização do amor apenas
“entre as almas”, muitas vezes realizado com a morte. (Ex: “Wer-
ther” ou “Amor De Perdição”).

O sucesso da primeira leva de romances góticos é contemporâneo


de outra polêmica, aquela lançada pelas obras do Marquês de Sade
(1740-1814). A obra de Sade não é gótica em si, mas romances góti-
cos da mesma época como Otranto (1764), Vathek (1786) e o Monge
(1796), entre outros, compartilham elementos como incesto, assédio
sexual, luxúria e confinamento, que se aproximam mais das perver-
sões sádicas do que do idealismo e incorporeidade românticos.

Tanto autores góticos quanto Sade sofreram críticas pelos seus aten-
tados contra a moral e o bom gosto. Sade, como se sabe, passou
por isso muito tempo enclausurado.

Se tomarmos a obra de Goethe que marcou o início do romantismo,


“Os Sofrimentos do Jovem Werther” (1774), notamos significativa
diferença em relação aos romances góticos. Goethe só no século
seguinte nos presentearia com uma releitura mais gótica de uma
peça clássica de Marlove (1563-1593) sobre uma lenda popular, com
a parte inicial de “Fausto” (1808).

- O MAL INTERIOR: na narrativa gótica o mal interior se apresenta


como degeneração física e moral da alma e do corpo, sendo mui-
tas vezes representado por imagens tomadas das doenças nervosas
83
como descritas na medicina da época. Um dos casos mais conhe-
cidos disso se apresenta em “A Queda da Casa de Usher”, de Poe,
que seguiu o modelo gótico que vinha do século XVIII. A questão
da ameaça ou processo de enlouquecimento nos Romances Góticos
é outro imaginário recorrente que influencia aspectos tanto de per-
sonagens quanto cenários.

A imagem da natureza também pode divergir muito no Goticismo


e no Romantismo. No Romantismo a natureza tende a representar
algo bom, um espelho da alma imaculada do herói. Já no romance
gótico a alma do herói é conturbada e ambígua, e seu conflito, in-
terior. Então a natureza e a noite vão aparecer como os lugares do
mistério e guardando ameaças potenciais.

-ANTICLERICALISMO: seja contra religiões orientais, como em Va-


thek, ou religiões e crenças ocidentais, a narrativa gótica estará de
alguma forma desafiando a religiosidade e morais estabelecidas,
mesmo que essa “religião” seja a Ciência. Manfred (Otranto) perse-
gue a noiva do filho morto, Vathek desafia todos os deuses, O Mon-
ge desafia tanto Deus com sua soberba como com seus pecados,
Frankestein desafia inúmeros valores morais ao tentar criar vida a
partir da morte.

Este aspecto se une a questão Prometeica, e Melmoth vagueia sé-


culos com sua maldição. O personagem vampiro é mais um caso de
maldição Prometeica ou Luciferiana. De uma forma ou outra, por
desafiarem algum sagrado, todos são punidos eternamente ou por
um tempo que parece eterno.

Na percepção da insuficiência da razão e da religião, os autores gó-


ticos não oferecem uma solução, apenas apresentam os elementos
contraditórios e paradoxais.

Assim a moral dúbia e ambígua dos personagens e do texto gótico


tem essa base. Ao contrário, os autores românticos buscam através
da imaginação e beleza criar uma forma de reconciliação que a ra-
zão e a religião não podem oferecer. Para o romântico, o belo e o
sublime vão desempenhar essa função.

O caráter prometeico (ou luciferiano ou fáustico) do Romance Gó-


tico não ajudou na sua popularidade entre as autoridades e críticos
também devido a outra característica recorrente: o desafio a reli-
gião ou moral, seja ela qual for.
84
Com muitos personagens locados na Europa Latina e Católica Me-
dieval, as críticas ao Catolicismo são evidentes, mas este aspec-
to atinge outras religiões cristãs ou mesmo o Islamismo e crenças
exóticas, como vemos em Vathek, que consegue desafiar diversas
crenças na mesma obra. Pelo contrário, em romances Românticos,
vemos muitas vezes um reforço das crenças religiosas, com uma
solução por vezes espiritual.

-O SUBLIME: No Terror Gótico se busca pelo sublime no terror da


antecipação, e não no susto ou violência. A vertente do Horror Gó-
tico, por sua vez, expõe o protagonista a situações extremas morais
e físicas que ameaçam sua sanidade.

Uma teoria do sublime de influenciou a narrativa e os efeitos busca-


dos pelos primeiros autores góticos, entre 1760 e 1800 e posterior-
mente. Burke publicou em 1754 “Uma Investigação Filosófica Sobre
a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo”, que se tornou um
clássico já em sua época.

A teoria é complexa e sua consequência é que os autores góticos


procuravam despertar o efeito de sublime nos seus leitores explo-
rando recursos de suspense, terror, vastidão, obscuridade. Era bus-
cado um efeito de “expansão do espírito”, como quando entramos
em uma grande caverna ou catedral. Algo bem diferente do que ve-
mos em filmes “de susto” modernos. De fato, boa parte dos roman-
ces góticos, apesar de insinuar ou relatar grandes horrores, mostra
pouco.

NÃO APENAS UM CENÁRIO

Assim, é importante notar que a estética gótica não se resume a


um sistema de cenários (castelos em ruínas, cemitérios, noites en-
fumaçadas etc) e alguns personagens padrão (zumbis, múmias e
vampiros, entre outros). Isso tudo faz parte da tradição gótica, mas
estes elementos de cenário e personagens podem e são muitas vezes
usados em obras que não são góticas.

Estes cenários fazem sentido em uma obra gótica, porque são uma
expressão na forma da estética do conteúdo mais estrutural.

Muitos livros, filmes, estilos de roupa, séries, quadrinhos e jogos


foram desenvolvidos a partir da estética gótica e isso é algo que faz
parte da cultura universal e domínio público de qualquer pessoa,
85
gótica ou não. O que nos interessa aqui é ver o que a subcultura
gótica fez com esses elementos da cultura universal, pois sem en-
tendermos esses elementos da cultura universal não temos como
entender o que foi feito deles na subcultura gótica.

5. RECEPÇÃO
E CRÍTICA LITERÁRIA
DO ESTILO GÓTICO
Se Shakespeare tivesse usado a forma de romance e publicado Ma-
cbeth no final do século XIX, com certeza receberia críticas morais
e literárias negativas, tendo sua obra classificada como gótica.

Mas com certeza também faria sucesso popular como fizera com
suas peças antes. Então, por que no final do século XIX Shakespe-
are era endeusado e os romances góticos criticados?

Simples: as peças de Shakespeare foram encenadas para populares,


mas quando suas obras foram publicadas depois (lá por 1620), li-
vros eram ainda algo reservado a uma pequena aristocracia ou elite
que sabia ler.

Já o fenômeno que acontece em 1790 é o de novas classes sociais


aprendendo a ler e consumindo as Gothic Novels e Penny Dreadfuls
(impressões em versões mais baratas). Assim, a avaliação da crítica
da época tem mais a ver com uma crítica da classe de leitores do
que com uma avaliação das obras em si.

Um caso em que meio e público são avaliados como parte da men-


sagem e obra, como quase sempre ocorre.

Esse comportamento da crítica se repete ao longo da história, como


nos explica Pierre Bordieu e não é muito diferente do que acontece
com a avaliação da música gótica em setores da crítica musical es-
pecializada ou mesmo no mundo alternativo brasileiro. Mas sobre
isso comentamos no capítulo sobre Capital Subcultural.
Agora vamos ver essa história literária do começo.

86
A ETERNA GUERRA ENTRE LEITORES,
CRÍTICA E AUTORES

Há bons motivos para não seguirmos aqui a classificação de escolas


literárias usada pela maioria dos manuais de literatura brasileira.

A primeira razão é esses manuais privilegiarem uma divisão mais


cronológica do que estilística da literatura. A segunda se deve ao
fato de que – seguindo a definição de Antonio Candido – o Brasil
vai ter uma literatura de fato - e não apenas manifestações literárias
isoladas - somente a partir do Romantismo e, no nosso caso espe-
cífico, um Romantismo tardio. O terceiro motivo é que a divisão
sacramentada de escolas literárias brasileiras foi cristalizada ainda
no século XIX e foi fortemente influenciada pelas ideologias – e
preconceitos – das críticas literárias daquela época.

“… pelo menos, desde 1881, as práticas de ensino de língua por-


tuguesa já eram muito próximas das práticas de ensino que há
décadas vêm fazendo parte das escolas brasileiras e que temos
chamado de ‘práticas cristalizadas’ de ensino, seja com relação à
divisão entre literatura, gramática e produção de texto”.
(William Cereja)
Esses três motivos são especialmente preocupantes quando vamos
falar do estilo Gótico na literatura. As obras essenciais do Goticismo
literário foram publicadas ainda no século XVIII (a partir de 1764),
tiveram seu auge de popularidade na década de 1790, influenciando
o Romantismo europeu, surgindo posteriormente obras com ele-
mentos góticos em obras mais românticas. Mesmo assim os roman-
ces góticos não aparecem nos “clássicos” indicados. O próprio esti-
lo gótico só aparece como subgênero do romantismo.

Essa concepção pode derivar da própria crítica literária Inglesa e eu-


ropeia. Na própria Inglaterra do século XVIII e XIX o estilo Gótico
foi depreciado pela crítica literária não apenas pelas suas caracterís-
ticas. mas muitas vezes pela classe social que fez esse estilo literário
popular na época.

Como vimos, a urbanização e industrialização do final do século


XIX fez com que muita gente que “não deveria saber ler” (segundo
algumas opiniões das elites da época) começassem a aprender a ler.
E a literatura que se popularizou no final do século XIX entre estes
novos leitores foi principalmente o Romance Gótico (Gothic Novel).
87
Isso criou um conflito entre as três partes interessadas em literatura:
os leitores, os autores e os críticos literários. Ironicamente, na vira-
da do século XVIII para o XIX (entre 1790 e 1810), escrever roman-
ces góticos ou com influência gótica dava popularidade e dinheiro,
mas falar mal dessas obras garantia status frente a elite intelectual
e aristocrática.

O romance gótico era considerado literatura popularesca, indigno


de uma mente refinada e bem-educada. Esse discurso, obviamente,
era apenas a manifestação de um preconceito de classe.

A situação ficou paradoxal para alguns autores que eram também


críticos literários, chegando a esquizofrenia de criticar o próprio
estilo que o influenciou ou em que trabalhava. O caso mais famoso
dessa contradição é o do romancista Sir Walter Scott.

Essa visão elitista da crítica literária dessa época a respeito dos


romances góticos influenciou a crítica até o século XX e em muitos
casos até hoje. Porém, felizmente, isso não mudou o gosto dos lei-
tores que seguiram século XIX e XX adentro ávidos por qualquer
sombra de estética gótica que se esgueirasse das catacumbas infec-
tadas da literatura.

Em 1800, o que era intelectualmente elegante na Europa era ser


Romântico. Não é acaso, portanto, que o Romantismo (ou Romanti-
cismo) apareça retratado nos manuais de literatura de forma muito
mais abrangente e simpática.

O Goticismo, ou Romance Gótico, por sua vez, aparece frequente-


mente reduzido por críticos a uma ramificação menos importante
do Romantismo, mesmo tendo sido influenciador do Romantismo
e em muitos casos anteriores cronologicamente. Além disso, mui-
tas das características essenciais do estilo gótico diferem muito do
romantismo.

Por isso é importante que olhemos com mais atenção para as carac-
terísticas essenciais do romanticismo e do goticismo, para perce-
bermos suas características, semelhanças e diferenças.

CRÍTICA E ENSINO NO BRASIL

A maioria dos manuais de literatura do Brasil traz nenhuma ou pou-


ca informação sobre as primeiras obras da literatura gótica do perí-
88
odo 1764-1821, limitando-se a comentar autores românticos do final
desse período ou muito posteriores com influência Gótica.

Um motivo disso é que o próprio Romantismo começa tarde no Bra-


sil, quando já quase acabava na Europa, chegando aqui já como um
pacote de várias fases e outras influências.

Outro motivo é que a própria crítica literária Europeia do século


XIX fez um trabalho de desvalorização e apagamento da história
dos romances góticos e, como era de se esperar, aqueles que mon-
taram os primeiros manuais de literatura no Brasil seguiram essa
tendência.

A importância da literatura Gótica só seria recuperada por estudio-


sos muito depois, mas como a maioria dos manuais de literatura
brasileiros seguem preguiçosamente, até hoje, nossos modelos do
século XIX, continuamos não tendo uma descrição ou análises de-
centes sobre o começo dos romances góticos e sua importância na
formação do público leitor na época em que os romances, enquanto
objeto de consumo, popularizavam-se entre classes menos abasta-
das da sociedade, na Europa do final do século XVIII.

As obras do período 1764 a 1821 consolidaram uma série de padrões


(tropos) e modelos que são reproduzidos e reconhecidos até hoje,
mais de 250 anos depois, como “góticos”.

Posteriormente traços, tropos, arquétipos e outros elementos góti-


cos vão ser misturados a outras escolas literárias, como o Roman-
tismo, Simbolismo, Naturalismo, Realismo etc. No século XX são
incorporados também em outras formas de arte, como o cinema e
os quadrinhos.

Importante lembrar que muitos destes autores não foram apenas


autores: foram desenvolvedores de tendências estéticas em outras
áreas, criando uma moda gótica no final do século XVIII que abran-
gia diversos aspectos da sociedade.

89
6. O INÍCIO:
OTRANTO, VATHEK E O MONGE
Dois nomes são essenciais para entender o começo da estética Gó-
tica entre 1764 e 1800: Horace Walpole e William Beckford. Estes
dois autores não apenas criaram o Gótico como um estilo literário,
mas criaram a estética Gótica como a entendemos desde aquela
época, envolvendo recriação arquitetônica, paisagismo, decoração,
design, vestimenta e outros detalhes.

Antes deles “Gótico” era ainda apenas um adjetivo negativo usado


pelos renascentistas para denegrir a arquitetura escolástica da baixa
idade média. Com sua obra, Walpole lança uma moda que se torna
popular, criando um “novo estilo Gótico” que não existira até então.
Ele explica conceitualmente seu plano estético em um texto intro-
dutório ao seu romance.

É preciso lembrar que Walpole era um rico aristocrata filho de um


poderoso primeiro ministro Inglês e que Beckford era extremamen-
te rico também. Com suas excentricidades literárias e arquitetônicas,
popularizaram um novo estilo feito da bricolagem de diversos esti-
los antigos, dando o nome de “Gótico”.

Suas construções se tornaram pontos turísticos enquanto permane-


ceram em pé (especialmente no caso de Beckford, pois suas últimas
recriações arquitetônicas ruíram no começo do século seguinte). A
“mansão gótica” de Walpole pode ser visitada até hoje, apesar de
alguns detalhes ornamentais feitos em material perecível terem se
perdido.

A Literatura Gótica tem seu início oficial em 1764 quando Walpole


publica “O Castelo de Otranto” com o subtítulo “a gothic novel”
(um romance gótico). A obra foi um sucesso literário e comercial
gerou diversos seguidores e imitações até o final do século XVIII
(século dezoito: 1701-1800).

Mas antes de escrever, Walpole já tinha iniciado a moda Gótica na


jardinagem, “arquitetura” e decoração, desde que comprou a pro-
priedade batizada de Strawberry Hill em 1749 e imediatamente co-
meçou a “goticizá-la”. Walpole ignorou o fato de que a mansão era
de outro estilo arquitetônico e foi acrescentando os adereços, refor-
mas e decorações passadistas. A moda pegou e pessoas visitavam
90
sua mansão para aprender como goticizar suas propriedades.

Ainda no século XVIII William Beckford, cujo estilo de vida es-


candaloso não era muito diferente do hedonismo e heretismo de
seu mais famoso protagonista, escreve “Vathek” ou “Vathek, an
Arabian Tale or The History of the Caliph Vathek”. Existem versões
originais publicadas em Inglês e Francês, devido as idas e vindas e
confusões do autor em sua conturbada vida de milionário. Mas po-
demos datar as versões iniciais entre 1782 e 1787. Beckford também
investiu em “arquitetura simulacral”, como Walpole, e gastou boa
parte de sua fortuna construindo impressionantes reproduções de
prédios e ambientes góticos.

As características do Gótico literário não podem ser confundidas


nem reduzidas a meras variantes do Romantismo (apesar de pontos
em comum).

A fase formadora do estilo Gótico tem sua origem em 1764 e de-


senvolvimento até o final do século XVIII, portanto, antes da Era
Vitoriana (1837-1901) no século XIX. É importante fazer essa dis-
tinção, pois as obras Góticas desenvolvidas no período Vitoriano
foram as mais popularizadas pelo cinema do século XX, criando
uma confusão de sentido entre gótico e vitoriano. Confundir essas
duas estéticas, todavia, seria reduzir o estilo Gótico a apenas um de
seus vários momentos.

Observando as obras Castelo de Otranto e Vathek temos um prota-


gonista que é atacado pela “síndrome de prometeu” ou “complexo
de lúcifer” (ou o Fausto de Marlowe).

Vathek em sua busca por prazer sensual, conhecimento e poder


místico não reconhece nenhum limite, desafiando suas próprias di-
vindades e não respeitando a vida humana. Manfred também passa
a ignorar regras sociais e religiosas e decide publicamente transfor-
mar em sua amante a jovem noiva do filho que acabara de morrer,
iniciando uma caçada implacável pelos corredores e porões de seu
castelo.

Em ambas as obras o sobrenatural é apresentado como fato na-


tural. Walpole explica isso teoricamente, dizendo que um homem
da “idade média” não buscaria explicação para fatos sobrenaturais:
eles existiam da mesma forma que os fatos naturais. De fato, a di-
visão entre fatos naturais e sobrenaturais soaria sem sentido para
91
um indivíduo da época anterior ao desenvolvimento do pensamento
científico e racional.

1796: O MONGE de Matthew G. Lewis: Além de redefinir o estilo


na época, a obra fez tanto sucesso que o autor passou ser chamado
de “Monk Lewis”, como se o nome dessa obra fizesse parte de seu
nome. Porém, o sucesso não diminuiu o choque que a obra causou,
ainda mais vindo de um membro do parlamento britânico. A obra
foi denunciada como blasfêmia pornográfica (para os padrões da
época).

De fato, além de incesto, escatologia, sequestro, assassinato, ter


como uma das tramas a história de um monge com aspirações de
perfeição que sucumbe aos prazeres da carne com um noviço que
na verdade é uma moça disfarçada é apenas uma parte da história.

A obra de Lewis foi considerada referência de qualidade literária


por escritores da época, o próprio Marquês de Sade escreveu que
preferia o estilo de Lewis ao gótico mais refinado de Ann Radcliffe.
Contemporâneos, de fato, o gótico de Lewis se aproxima de Sade
e afasta da estética romântica mais bem-aceita na época. Mas “O
Monge” posteriormente conquistou também a admiração de Walter
Scott, Byron, Keats e muitos outros.

Em 2011, “O Monge” também virou filme, em uma produção fran-


co-espanhola com Vincent Cassel. Vale a pena conferir.

Os personagens O Castelo de Otranto, Vathek e O Monge servirão


de molde para anti-heróis góticos e, no começo do século seguinte,
inspirar a formação do que ficou conhecido como “Herói Birônico”,
nomeado assim pela vida e personagens do autor Lord Byron (1788-
1824). O escritor foi fortemente influenciado pelas obras e vidas de
Walpole e Beckford. Mas na época em que Byron publicou (1807-
1824), a moda medievalista ou gótica já tinha se espalhado pela
Europa, sendo forte também na restauração francesa.

O SOBRENATURAL EXPLICADO

Ann Radcliffe (1764-1823) foi um sucesso literário no final do século


XVIII (década de 1790) e é um dos melhores exemplos de como o
conceito de sublime de Burke é aplicado em romances góticos.

Suas obras também se aproximavam mais do gosto romântico e


92
eram menos socialmente ofensivas e escandalosas do que as de
Horace Walpole, William Beckford e Matthew Lewis.

Ela popularizou também um modelo de “sobrenatural explicado”,


em que uma aparente ameaça sobrenatural tem ao final uma expli-
cação racional, modelo mais adequado ao “bom gosto” racionalista
da época. Décadas depois o sobrenatural explicado será explorado
por Edgar A. Poe em muitos de seus contos. A autora influenciou
muitos escritores românticos do começo do século XIX.

O sucesso do Romance Gótico gerou muitos imitadores, levando a


escritora Jane Austen a satirizar os clichês do gênero em “Northan-
ger Abbey”. A protagonista é uma ávida leitora desse estilo e cita
obras que por muito tempo se pensou serem fictícias. Mas depois
descobriu-se que todas existiram, sendo recuperadas e republica-
das em conjunto – ou separadamente - sob o título “Northanger
Horrid Novels” ou “The Northanger Novels”.

7. RELAÇÕES ENTRE
O GÓTICO SUBCULTURAL
E A LITERATURA GÓTICA
Há 250 anos o estilo Gótico comenta o presente olhando para o fu-
turo, vestindo passados cerzidos em uma manta de retalhos.

Também a subcultura gótica se chama “gótica” por motivos bem


significativos: qualquer outro nome não agregaria a pluralidade e
profundidade de significados atuais que o discurso subcultural gó-
tico produz e invoca hoje.

Se as pessoas escolheram primeiro o nome, ou o nome depois in-


fluenciou a subcultura, cabe a resposta que se dá sobre qualquer
poema ou obra de arte: forma e conteúdo surgem como um todo
que não é separável na realidade. E sendo coletivo, processo é con-
tínuo.

Para qualquer Inglês com cultura média das décadas de 1960 ou


1970 o adjetivo “gótico” (gothic) remetia a uma parte bem conhe-
cida da literatura de língua inglesa ou a filmes por ela inspirados.
Assim, quando bandas e pessoas se autodenominaram góticas na
93
Inglaterra entre 1978 e 1984, se referiam a uma estética artística de-
finida e encontrável em qualquer biblioteca, TV ou cinema.
O gótico permanece necessário para a cultura ocidental pois o:

“uso do passado esvaziado em fantasmas simulacrais,


consequentemente, permite que o neogótico seja preenchido
com antiquados repositórios dentro dos quais os dilemas
modernos podem ser ao mesmo tempo projetados
e rejeitados. Por conseguinte, Gótico tem sido há muito
tempo um termo usado para projetar preocupações
modernas dentro de um passado deliberadamente
vago, e até ficcionalizado.”
(Hogle, 2002)
Podemos ver esse processo - de injetar questões insolúveis ou pro-
blemáticas da cultura dominante - tanto nos primeiros romances
da tradição literária Gótica - como em “O Castelo de Otranto” de
Walpole, “Vathek” de Beckford e seus seguidores, como na estrutu-
ração da subcultura Gótica no final do século XX. A diferença é que
ela se apropriou e continua se apropriando de outros elementos do
século XX e XXI e incluindo-os no esqueleto Gótico.

O Gótico, como o conhecemos, surge no imaginário do ocidente por


meados do século XVIII. Já a subcultura Gótica emergiu nos anos
1980.
“O Gótico não é como as outras subculturas, pois ela
se desenvolve não apenas a partir seus precedentes subculturais
imediatos, mas também a partir de uma tradição de 250 anos
e ela (a subcultura Gótica) tem uma presença na cultura
contemporânea que transcende seus participantes
individuais e ultrapassa a presença de virtualmente
qualquer outra subcultura até hoje.”
(Spooner, 2012)
A diferença é que no final do século XX e começo do XXI há mais
repertório para servir a este propósito do que 100 ou 250 anos atrás.

Assim, verificamos um imaginário social com um funcionamento


estrutural semelhante que vem desde romance Gótico original (Fi-
nal do século XVIII: Walpole, Beckford, Radcliffe…) atravessando
e influenciando sucessivamente o Romantismo, seguindo pelo sim-
bolismo, decadentismo e neogótico da segunda metade do século
94
XIX, continuando no expressionismo do início do século XX, sendo
retomado pela subcultura Gótica.

Temos aproximadamente 250 anos de uma expressão estética re-


solvendo simbolicamente as mesmas questões em seus respectivos
contextos históricos. Assim,

“A riqueza da longevidade da cultura Gótica é dependente


de sua habilidade de canibalizar novos estilos e incorporá-los
ao seu repertório (...)” (Spooner, 2012).
Já tínhamos visto esta dinâmica canibalizante no capítulo Absorção
de Elementos de Estilos Relacionados, no volume 1.

Os góticos do século XX coletam e colam em sua estrutura estética


Gótica elementos de sistemas estéticos não góticos da mesma forma
que Horace Walpole criou sua estética “Gótica” a partir de elemen-
tos das origens mais incongruentes do passado, e ainda – no caso
de sua mansão - sobre um prédio não-gótico.

Walter Scott (autor de “Os Três Mosqueteiros”) em um ensaio em


que comenta a influência de Walpole sobre ele, escreve sobre o ro-
mance “O Castelo de Otranto”:

“se assemelharia a uma roupa moderna, decorada artificialmente


com ornamentos antigos”. (Walter Scott).
O mesmo que Walpole fez com sua mansão e góticos fazem até hoje,
mantendo o estilo atualizado e continuamente comentando o pre-
sente através e uma estética de bricolagem que faz questão de deixar
claras suas montagens, excessos e “mau gosto” programático.

É importante não confundir a estrutura da estética Gótica com as


características dos movimentos influenciados por ela, nem confun-
dir os movimentos e estéticas “canibalizados” pela subcultura Gó-
tica com as origens destes “pedaços” comidos e resignificados. Es-
tes novos itens são absorvidos e recontextualizados pelos Góticos,
gerando um novo significado (veja o capítulo sobre Resignificação).

Porém o caráter libertário, criativo e questionador da subcultura gó-


tica é demarcado tanto pelos próprios sentidos de gótico na cultura
geral quanto pelo recorte e reforço que o grupo social gótico faz
desses sentidos.
95
Como em um poema, significado e forma surgem juntos, e não é
possível separar forma e conteúdo sem destruir o significado.
Essa separação seria uma abstração apenas didática: como nos en-
sina o linguista Louis Hjelmslev, há um conteúdo da forma, e uma
forma do conteúdo, inseparáveis. Não existe expressão sem conteú-
do: nem conteúdo sem forma.

FUTURO

Por isso, “(a subcultura Gótica) é provavelmente a única subcultura


a manter uma cena de escala internacional por um período de tem-
po tão longo”. (Spooner, 2012)
Assim, podemos esperar que a subcultura Gótica continue a se de-
senvolver, modificar-se e ver novos galhos florescerem como vem
acontecendo há mais de 30 anos, da mesma forma que literatura
Gótica faz nos últimos 250 anos.

Além disso, nos últimos 30 anos, vemos indícios da subcultura e da


literatura terem uma reação dialética, não apenas de descendência
ou influência em uma só direção: elementos e conceitos da subcul-
tura gótica são absorvidos também pela produção cultural Gótica
não subcultural, que atinge a sociedade como um todo, como ve-
mos por meio da popularidade dos filmes de Tim Burtom e roteiros
e livros de Neil Gaiman, apenas para citar dois autores conhecidos
fora da subcultura Gótica.

96
PARTE 3:
GÓTICO
E
SUBCULTURAS
NO SÉCULO
XXI

97
1. ALGUMAS DIFERENÇAS
ENTRE OS CONCEITOS
DE “TRIBO” E “SUBCULTURA”
No volume 1 fizemos uma introdução explicando o conceito de sub-
cultura e subcultura translocal. Aqui vamos partir deste ponto e
aprofundar esses temas com novas questões relativas ao século XXI.

Michel Maffesoli popularizou o termo “tribos pós-modernas” com


seu livro “Tempos das Tribos” de 1986. Na onda da ideologia pós-
-moderna e ascensão do neoliberalismo, como e por quê esse con-
ceito se tornou moda nos anos 90? Qual a diferença entre o termo
subcultura como usado nos anos 1970 e a reformulação do conceito
de subcultura do final dos anos 1990 até hoje?

Para entender esse processo é preciso recapitular alguns fatos his-


tóricos e teorias desse período e posteriores. David Harvey e Fredric
Jameson definem pós-modernidade como o estágio do capitalis-
mo avançado de consumo e pós-modernismo como a ideologia que
sustenta a fase avançada deste capitalismo - no final do século XX
- que precisa de uma ideologia de identidades flexíveis (tanto para
viabilizar modas consumistas cada vez mais rápidas, quanto para
designar a precarização das condições de trabalho e salários piores).

De um momento para outro ter uma identidade pessoal ou social,


trabalho ou utopia se tornou “conservador e ultrapassado”, segun-
do a ideologia pós-moderna.

Se teoria de Maffesoli não foi cunhada especialmente para este con-


texto, caiu como uma luva e foi adotada sequiosamente por setores
da mídia e da comunicação (publicidade, jornalismo etc) populari-
zando-se rapidamente no meio acadêmico destas áreas e caindo no
senso comum. Como nem tudo que se fala sobre tribos estava na
sua teoria, vamos analisar alguns de seus detalhes.

Importante lembrar que, na mídia de massa, muitos usam o ter-


mo “tribos” desconhecendo a teoria Maffesoliana e usam o termo
como algo referente às tribos indígenas ou autóctones do Brasil ou
outro lugar. Assim o termo tribo, além de não ser adequado para
todos os tipos de grupos sociais alternativos, muitas vezes é usado
de forma errada ou pejorativa.
98
Também o termo subcultura é considerado às vezes de forma equi-
vocada: é preciso lembrar que o prefixo “sub” não se refere aqui a
“inferior”, mas sim a algo que faz parte de outras coisas. Subcultu-
ras fazem sentido somente em relação ao pano de fundo das cultu-
ras “dominantes” das épocas e regiões em que se desenvolvem ou
desenvolveram.

Vejamos então as diferenças essenciais entre o conceito de “tribo


pós-moderna” e de “subcultura translocal”:

CARACTERÍSTICAS DAS NEO-TRIBOS


PÓS MODERNAS:

Maffesoli descreve “neo-tribos pós modernas” como:

-fluidez, ajuntamentos pontuais e dispersões (p. 132);

-não são estáveis, são efêmeras;

-pensamento de massa em detrimento do indivíduo – a mas-


sa ou o povo não se apoiam em uma lógica de identidade, logo, o
vão e vem entre várias identidades ou tribos (p.31, 243) “mudando
o figurino ela vai…assumir seu lugar a cada dia, nas diversas peças
do ‘theatrum mundi’ ”(p.133);

-a metáfora da tribo permite dar conta do processo de desin-


dividualização (o autor comemora o fim do individualismo moder-
no, ou seja, do indivíduo como uma identidade estável);

-as tribos são grupos afetuais (p. 31);

-proxemia como elemento essencial desse tipo de sociabili-


dade, presença próxima ou localismo (p. 227).

CARACTERÍSTICAS DAS SUBCULTURAS TRADICIONAIS


X SUBCULTURAS TRANSLOCAIS

Anteriormente, no volume 1, (2008) indiquei algumas característi-


cas da definição atual de “subcultura” alternativa, especialmente
de “subcultura translocal”, baseado especialmente em Hodkinson.
Vamos repassar o básico:
99
Subcultura pode significar uma “parte de uma cultura” que possui
um conjunto diferenciado de “valores, crenças, normas e padrões
de comportamento, portanto, um modo de vida compartilhado por
parte de uma população” (Vila Nova, 2004).

Podemos dar como exemplo as subculturas regionalistas tradicio-


nais do Brasil, como a nordestina ou a gaúcha. Elas estão inseridas
na sociedade brasileira e em sua cultura, mas, ao mesmo tempo,
possuem um sistema de significação e representação do mundo
próprio e único. (Kipper, 2008)

O QUE É SUBCULTURA URBANA E TRANSLOCAL?

“Com a industrialização, urbanização e globalização das informa-


ções, a situação das culturas mudou bastante. Principalmente na
segunda metade do século XX, com o aparecimento da televisão e
outros métodos de radiodifusão e, mais tarde, com o surgimento da
Internet.

Temos um cenário no qual a cultura das zonas urbanas industriali-


zadas tende a perder características locais e a adotar característi-
cas de uma cultura global economificada: a cultura da sociedade
de consumo contemporânea. Neste contexto, depois da Segunda
Guerra Mundial (1939-1945), começam a surgir algumas subculturas
urbanas, como os Beats, Rockers, Mods, Skinheads, Hippies, Glam-
-Rockers, Punks, Góticos etc.

Algumas delas desapareceram em pouco tempo, mas outras per-


maneceram e mantiveram coerência interna por um longo tempo.
Hoje, estas subculturas apresentam diversas características, entre
elas, a translocalidade (não serem limitadas geograficamente).
Da mesma forma que as subculturas tradicionais ou regionais, o
participante de uma subcultura translocal continua participando, de
alguma forma, da cultura dominante local.” (Kipper, 2008)

Paul Hodkinson (2002) identifica na subcultura Gótica (e outras),


quatro fatores interligados e complementares de consistência sub-
cultural:

- DIFERENCIAÇÃO CONSISTENTE
- IDENTIDADE
- COMPROMETIMENTO
- AUTONOMIA
100
Esses fatores são explicados um por um no capítulo 6.1) Indicadores
de Consistência Subcultural de “A Happy House in a Black Planet”.

Exatamente devido ao fato do conceito de tribo ter este significado


específico que optamos neste livro por usar o conceito de subcultu-
ra como definido modernamente como por Paul Hodkinson.

Este é um conceito de subcultura atualizado, que leva em conta os


avanços da teoria sociológica e etnográfica do final do século XX.
Ken Gelder em seu livro “Subcultures Reader” (1997/2002) edita um
histórico do uso do termo subcultura ao longo do século XX e seus
desenvolvimentos no século XXI.

Por isso, convém não tomar o termo subcultura como usado ante-
riormente: os conceitos ultrapassado da teoria subculturalista já
foram criticados e revisados pelos próprios autores que hoje usam
o termo atualizado e contextualizado para o século XXI.

Hodkinson (2002) sugere o uso de “tribos” para o tipo de grupa-


mento social definido por Maffesoli (1986, 2010) e de “subcultura”
para o tipo de grupamentos sociais com maior consistência e pere-
nidade.

O “sub” de subculturas não indica de forma alguma, portanto, “in-


ferioridade”, mas sim, subdivisão ou divergência em relação a algo.

Assim, podemos também chamar as subculturas de “culturas” ou


“culturas alternativas” se tivermos em mente que são “culturas al-
ternativas” e “alternativo” exige que seja algo “alter” ou outro, dife-
rente em relação a uma cultura de referência, geralmente dominante
ou hegemônica em determinada época, região e contexto social.

E sempre lembrando que nos referimos a um tipo de vivência hu-


mana que tende mais a perenidade e vinculação significativa de
relações sociais, e menos à transitoriedade e relações impessoais
que marcam o capitalismo de consumo, o descarte e a ideologia
pós-moderna, como comentamos mais longamente no artigo “Et-
nofobia”.

Nos próximos capítulos vamos também falar mais sobre o conceito


de translocalidade cultural.

101
2. CULTURAS E SUBCULTURAS
NUNCA ESTÃO “PRONTAS”
Existem dois tipos principais de mudança em uma cultura: os mo-
tivados internamente e os motivados (ou impostos) externamente.
No primeiro caso, da motivação interna, imagine se, por um aci-
dente histórico, uma sociedade de habitantes indígenas da América
tivesse permanecido isolada desde 1400 até hoje sem colonização
de nenhum tipo.

Ela não estaria igual à 500 anos atrás: teria continuado a mudar e
a evoluir coerentemente de acordo com seus valores e dinâmicas
internas. Ou seja: mesmo uma cultura mantida em um estado ideal
de “pureza” mudaria com o tempo. (R. B. Laraia, 2009)

Fenômeno semelhante ao que acontece com as línguas, mesmo a


mais “pura”: o Inglês ou Português de hoje são diferentes de 500 ou
200 anos atrás, mas continuam sendo Inglês ou Português, mesmo
tendo absorvido e deglutido palavras e expressões de outras lín-
guas, inserindo-as no sistema do Português e do Inglês.

Este seria um exemplo de mudança por contato com fatores exter-


nos. Podemos compará-lo com o que acontece com uma cultura
ou subcultura ao “deglutir” e ressignificar elementos isolados de
outras culturas, mantendo, todavia, a coerência própria de seu sis-
tema.

Também, ninguém sustentaria que o “verdadeiro brasileiro” é só o


do século XVIII, sendo o brasileiro do século XX e XXI “deturpa-
ções ou descaracterizações”. Várias características culturais que te-
mos como brasileiros hoje foram consolidadas no século XVIII, mas
estas características foram adquirindo novas formas de expressão e
incorporando outros elementos.

Seria absurdo querer que os brasileiros de hoje vivessem como os


brasileiros do século XVIII ou XIX para provar que são “verdadeiros
brasileiros”. Ignoraríamos, por exemplo, Portinari, Carlos Drum-
mond e Guimarães Rosa. Mesmo o carnaval e o futebol são fenô-
menos historicamente recentes na cultura brasileira (final do século
XIX e começo do XX).

Logo, não faz sentido dizer que o “verdadeiro gótico” é só o dos


102
anos 80, tanto no sentido de estilo musical quanto de modelo de
cena subcultural. Da mesma forma que a cultura brasileira conti-
nuou evoluindo e absorveu novos elementos ao longo dos séculos
sem deixar de ser brasileira, também a subcultura Gótica continuou
a evoluir e absorver novos elementos nos últimos 20 anos sem per-
der sua identidade.

Uma cultura ou subcultura nunca está pronta, principalmente no


caso de culturas jovens como a brasileira ou subculturas ultra-no-
vas como a subcultura Gótica (mais de 30 anos). Vários elementos
novos da cultura brasileira tem em torno de 100 anos e ainda estão
em processo de mistura e re-significação dentro do sistema cultural
que já existia.

O mesmo pode ser dito do Gótico, que continuou e continua incor-


porando novos elementos. Poderíamos dizer apenas que, em certos
momentos uma cultura ou subcultura, está mais ou menos consoli-
dada ou definida.

Isso não significa confundir características de uma cultura com as


de outra. Nem com consumo de “cultura erudita” estrangeira, algo
que não muda nossas características culturais: consumir música ale-
mã ou pintura francesa ou literatura russa não faz com que deixe-
mos de ser culturalmente brasileiros. Seremos apenas brasileiros
“cultos” e não alemães, franceses ou russos.

Importante também não confundir evolução de uma cultura com


avanço tecnológico. Tecnologia não é sinônimo de cultura. Culturas
com “menos” tecnologia (ou tecnologias baseadas em valores dife-
rentes) possuem sistemas culturais tão complexos quanto as outras.

Por isso, não devemos nos preocupar com as atualizações na for-


ma do discurso da subcultura Gótica através de elementos que não
existiam ainda nos anos 1980: isso só prova que esta subcultura
está viva. Se permanecesse exatamente igual à origem, seria apenas
revival de uma cultura ou subcultura morta.

Saindo da questão antropológica: é natural de toda geração ideali-


zar a época de sua juventude, independente do presente ser melhor
ou pior. Mas isso já é questão psicológica e de saudosismo pessoal.

103
3. O QUE É HOMOLOGIA:
O SIGNIFICADO DOS ESTILOS
“… quando aquele objeto é colocado dentro de um conjunto total-
mente diferente, um novo discurso é constituído, uma nova men-
sagem é veiculada.” (Clarcke, 1976, em Hebdige, 1979)
Uma das principais diferenças entre o estilo em uma subcultura e o
estilo no mercado de massas é a questão da homologia subcultural.
Subculturas e culturas estabelecem redes de símbolos homólogos,
historicamente fundados e mais estáveis (apesar da atualização
constante e absorção de novos elementos). Já o mercado de massa
trabalha com fragmentos mais desconectados que são descartados
por outro fragmento sem ligação no próximo ciclo e este por outro
e assim por diante.

“Homologia é o estudo das coisas homólogas. Coisas homólogas
seriam aquelas que, apesar de diferentes na forma, guardam uma
relação de significado ou, ainda, a relação entre um conceito ou
ideia e suas formas e símbolos.

Muito importante salientar que a homologia em um sistema cultu-


ral ou subcultural não é uma relação nem fechada nem estática. De
forma comparável à língua de um povo, ela evolui de acordo com a
sua utilização pelo grupo social e também tem um espaço grande
de ‘ruído’ que permite a sua renovação coerente e a criatividade dos
indivíduos.” (Kipper, 2008)

A HOMOLOGIA NAS SUBCULTURAS

“Paul Willis (1978) aplicou a palavra ‘homologia’ a


uma subcultura no seu estudo dos hippies e motociclistas,
usando o termo para descrever a relação/adequação simbólica
(symbolic fit) entre os valores e o estilo de vida de um grupo,
sua experiência subjetiva e as formas musicais que este grupo
usa para expressar ou reforçar o que considera importante.
No texto ‘Profane Culture’, Willis mostra como (...)
a estrutura interna de qualquer subcultura é caracterizada
por uma extrema ordenação: cada parte é organicamente
relacionada a outras partes e é através da adequação entre
elas que os membros de uma subcultura entendem o
sentido do mundo.” (Dick Hebdige, 1979)
104
Culturas e subculturas nunca estão prontas. Os estilos nas subcul-
turas evoluem (e se atualizam) dentro do mesmo sistema e mais
lentamente. Ao contrário, os estilos no mercado de massa são subs-
tituídos cada vez mais rapidamente e por fragmentos de estilo ge-
ralmente diferentes do anterior.

Cada subcultura possui seu micromercado e sua micro-mídia, mas


estes estão a serviço do sistema subcultural e não o contrário: a par-
tir do momento que um agente subcultural busca desenvolver uma
dinâmica fragmentada e acelerada de mercado de massa, ele acaba
desacreditado ou expelido do sistema subcultural.

Já no mercado de massa em geral o estilo das obras e objetos não


está relacionado a nenhum contexto, pois devem ser substituídas na
próxima estação ou tendência: um estilo musical ou banda deve ser
vendido apenas como “música” e uma roupa deve ser todo o estilo
(e “experiência”) em si, sem necessitar de mais nada. Exatamente
por isso essas modas satisfazem por pouco tempo: é aplicação do
princípio de insatisfação programada ao mercado do estilo. É assim
para que o círculo de consumo seguido de descarte e novo consumo
continue girando.

Importante não confundir homologia com ressignificação, um pro-


cesso relacionado mas diferente.

Vamos analisar e comparar apenas algumas poucas características


e valores relacionados em algumas subculturas. Importante lembrar
que aqui não estamos comentando nem estilos musicais de mesmo
nome, nem indivíduos mas, isto sim, a estética e valores vinculados
ao estilo (músicas, visuais, design, pôsteres, maquiagem, compor-
tamentos, letras, padrões de beleza etc) de cada grupo social. Resu-
mimos alguns pontos bem básicos abaixo:

-PUNK: o Punk (1977) tem um discurso estético urgente, literal e


fragmentado: a estética dos fanzines é intencionalmente descuida-
da e “tosca”, assim como a música, a atitude, a roupa e maquiagem.
Tudo negligente, com partes sobrepostas e “remendadas” (seja zine
ou roupa). As letras geralmente são diretas (sem muitas metáforas e
figuras de linguagem), explícitas e muitas vezes agressivas (como a
música, a atitude, as roupas e os zines). “Havia uma relação homo-
lógica entre as roupas toscamente remendadas, o cuspir, o vomitar,
o formato dos fanzines, as poses insurgentes e a música conduzida
freneticamente” (Hebdige, 1979)”. Tudo que for muito elaborado
105
e planejado é geralmente rejeitado no plano do discurso punk. É
comum em alguns grupos punks um discurso político explícito (às
vezes anarquista, outras vezes anarco-sindicalista ou comunista, en-
tre outros).
Na questão da aparência de gênero (masculino/feminino), o estilo
punk subverte o modelo dominante no sentido da androginia, ou
seja, do neutro: o visual punk não diferencia muito o que deve ser
visual masculino e o que é visual feminino, mas a atitude compor-
tamental, seja para homens ou mulheres punks, é a mesma. No esti-
lo punk a força física não é valorizada na forma de massa muscular
nem do tipo “saudável”.

-EBM: o estilo ligado ao EBM tradicional tem, historicamente, um


discurso ligado a estética marcial (militar) ou do homem marcializa-
do no trabalho industrial: isso fica claro na estética dos elementos
musicais, visual das bandas e iconografia do material gráfico etc. As
letras em geral são curtas ou simulam slogans. Símbolos políticos
são muito usados. É comum um discurso distópico (utopia negativa
sobre o futuro). O uso farto de roupas camufladas e outros elemen-
tos militares também faz parte deste sistema estético. Da mesma
forma, máquinas, sejam de produção industrial ou destruição in-
dustrial são fetichizadas. Os uniformes podem ser de trabalhadores
industriais ou militares.

O uso de cortes de cabelo em estilo militar complementa o quadro.


Isso muitas vezes é usado como crítica ao militarismo, porém al-
guns não se atraem por isso no contexto metalinguístico e sim no
contexto de apologia ao militarismo. Na questão da aparência de
gênero (masculino/feminino), esta estética reforça caracteres histo-
ricamente relacionados ao masculino, como força, rigidez de movi-
mento e massa muscular. Um padrão estético seria do tipo “herói da
classe trabalhadora” que se via, por exemplo, em cartazes soviéti-
cos de meados do século XX. Não por coincidência, no Cyber-Goth
esse padrão estético migra mais para o padrão gótico.

-SKIN-HEADS (1969): Stuart Hall comenta que “as botas, os sus-


pensórios e o cabelo raspado só foram considerados apropriados
e, consequentemente, significativos, porque eles comunicavam as
qualidades desejadas, como dureza, masculinidade e a classe tra-
balhadora local. Desta forma, os objetos simbólicos - roupa, apa-
rência, linguagem, ocasiões de ritual, estilos de interação, música
- foram feitos para formar uma unidade com as relações, situações
e experiência do grupo” (Hall, 1976).
106
-GÓTICO: o estilo Gótico tem, historicamente, um discurso de re-
jeição ou desencanto com o presente e idealização do passado (per-
dido). Dificilmente vemos um discurso político explícito e direto
como é mais comum no punk ou EBM: a subversão do estilo gótico
percorre outros caminhos. Vemos todo um discurso com ligação
com uma estética lunar (ou predominantemente Ying nos símbolos
mais recorrentes): isso fica claro tanto em elementos musicais, visu-
al das bandas, obras literárias cultuadas, comportamento, estética
e iconografia do material gráfico etc. E, nos símbolos usados, prin-
cipalmente organizado em torno dos eixos O Sombrio e o Macabro
/ O Feminino e o Ambíguo. Por comparação, vemos uma apologia à
cultura erudita (como valor) que não encontramos no Punk e EBM.
Como o punk, o gótico também confunde o sistema de caracteres
sexuais estabelecidos, mas no sentido da feminilidade e não do
neutro.
O padrão de beleza tende a reforçar ainda mais elementos femi-
nilidade nas mulheres, seja de forma tradicional ou alternativa,
mas sem determinar um tipo físico padrão. Já no padrão de beleza
masculino não há necessariamente uma valorização simbólica da
força, músculos e outras características historicamente associadas
ao masculino. Detalhamos essas características no volume 1 e em
outros capítulos deste livro.

-HEAVY-METAL: o estilo do METAL tradicional tem, historicamen-


te, um discurso de resgate do masculino: o padrão de fotos geral-
mente traz homens em poses másculas (braços cruzados, maxilares
projetados, pernas entreabertas, muitas vezes musculosos etc). Em
muitos subestilos de heavy-metal é usada a simbologia de guerrei-
ros de algum tipo, com os tradicionais cabelos longos. Uma estética
de agressividade exteriorizada é comum e fica clara em alguns ti-
pos de vocais e instrumentação. Mesmo em bandas com vocalistas
mulheres a divisão de estética de masculino e feminino permanece
a tradicional. Letras e músicas tendem a ser mais elaboradas, com
uma valorização da técnica musical clássica, em oposição a valo-
rização do minimalismo que encontramos no punk e EBM e, de
forma menos generalizada, no Gótico e Darkwave.

Estes são exemplos generalizantes e didáticos. É claro que existem


subtipos e muitas variantes. Mas, de forma mais sutil, ou mais ex-
plícita como nestes exemplos, podemos verificar o funcionamento
de relações homólogas entre os diferentes elementos estéticos de
uma subcultura. O mesmo tipo de análise pode ser feito em outras
subculturas de longa duração.
107
“…podemos dizer que um estilo nos atrai, pois de alguma forma
– provavelmente não consciente – reconhecemos afetivamente em
seus símbolos algo que buscamos, talvez a simulação ou a realiza-
ção de um dos artigos mais raros atualmente: o sentido. Quando nos
sentimos atraídos por uma subcultura, muitas vezes intuitivamente
ou apaixonadamente, somos envolvidos pelas representações da vi-
são de mundo que ela engloba e combina parcialmente ou produz
uma integração na nossa visão de mundo pessoal”. (Kipper, 2008)

4. O QUE É RESSIGNIFICAÇÃO
E REAPROPRIAÇÃO
Como o mesmo significa outra coisa?

“É dando que se recebe”. Essa frase tem significados diferentes se


for dita por um monge franciscano, por um político ou por uma
meretriz. Ou seja, o mesmo elemento estético (no caso, texto ou
fala) pode ter mais de um significado. Mas não qualquer um: esse
significado depende do restante da frase e de quem a enuncia.

De forma semelhante o símbolo suástica (ou swastika) é original-


mente um símbolo religioso comum em várias culturas da ásia. Nos
anos 1930, porém, ela foi reapropriada e ressignificada pelo regime
nazifascista, tornando-se no ocidente símbolo deste regime, desco-
lado do primeiro sentido.

Posteriormente, nos anos 70 do século XX, neonazistas e punks se


reapropriam e ressignificaram a suástica, mas com sentidos dife-
rentes: os primeiros no mesmo sentido dos nazistas originais, en-
quanto alguns punks se apropriam do símbolo como elemento de
choque, buscando explorar o fato de que apenas 30 anos depois
do final da segunda guerra mundial a suástica provocava choque,
repulsa e ódio à qualquer inglês.

Acontece da mesma forma com a formação de culturas como a


Brasileira (construída a partir de elementos de diversas outras) ou
subculturas como a Gótica, a Hip-hop, a Punk, a Hippie etc. Esses
elementos estéticos, sejam símbolos ou estilos musicais, sejam es-
tilos de roupa ou comportamentos etc, podem ter seu sentido origi-
nal reforçado ou alterado, dependendo por qual sistema cultural ou
subcultural for reapropriado e ressignificado.
108
RESIGNIFICAÇÃO X HOMOLOGIA:

Homologia e resignificação são dois processos diferentes mas que


convergem dinamicamente na bricolagem que constitui todas as
culturas e subculturas vivas, assim como qualquer sistema estético
vivo.

É um processo sem começo e sem fim, podemos apenas escolher


o momento histórico em começamos a observá-lo. Mas dentro de
recortes históricos bem definidos os significados são bastante bem
identificáveis dentro de seus contextos.

• No processo de homologia elementos diferentes apontam


para significados semelhantes em uma mesma subcultura, cultura
ou outro contexto.

• Já no processo de ressignificação/reapropriação, o mesmo


elemento aponta para significados diversos em diferentes subcul-
turas, culturas ou outro contexto.

Por exemplo, na subcultura Gótica, o símbolo Ankh foi ressignifi-


cado e reapropriado a partir da religião Egípcia antiga. Além disso,
a partir do significado que tudo que é egípcio ou oriental pode ser
adotado como símbolo de fantástico e não-europeu desde o roman-
tismo. No caso deste símbolo temos um deslocamento de sentido: o
sentido original ligado à imortalidade é reforçado e enfatiza outros
símbolos sobre a questão vida/morte na subcultura Gótica.

O mesmo acontece com itens de vestuário e estilos musicais. Um


estilo musical ou item de vestuário pode aparecer em mais de uma
subcultura com significados diferentes. Por isso, não adianta anali-
sar apenas o elemento isolado para tentar entender seu significado
em uma cultura ou subcultura.

O mesmo elemento pode aparecer ainda descolado de qualquer


contexto como produto de alguma moda passageira.

Por isso, o significado do discurso estético de uma cultura ou sub-


cultura deve ser buscado na relação ativa entre seus vários elemen-
tos reapropriados e ressignificados, e não apenas nas “profunde-
zas” de um desses elementos isolados.

Como na frase do começo desse texto, não adianta apenas saber


109
tudo sobre o verbo “dar”: sem análise dos outros elementos da
frase e também da posição e interesse de quem fala a frase, não
chegaremos jamais ao significado da frase. O enunciador é tão sig-
nificante quanto o contexto e a frase.

Seja qual for a “frase”.

5. A TRANSLOCALIDADE
DA POPULAÇÃO GÓTICA
Desde o final do século XX, as subculturas ou culturas alternativas
são translocais ou glocais. O que significa translocal e glocal?

Significa que você participa de uma comunidade que pode ser ao


mesmo tempo local e global, ou espalhada geograficamente, ou em
mais de um local:

“As subculturas hoje se estendem pelo mundo todo, sem que ne-
cessariamente um indivíduo dependa de uma ‘liderança’ ou ‘gru-
po’ local para mediar sua participação subcultural. Esse processo
se torna mais notável nas subculturas substanciais e de longa
duração, como a Gótica.” (Paul Hodkinson, 2002)
Isso é diferente do que acontecia até os anos 1950 ou 1960. Por
exemplo, os “Zoot-Suiters” tinham uma delimitação local nos EUA.
Os “Teds”, igualmente, na Inglaterra. Com o advento da televisão,
nos anos 1950, estilos começam a ser conhecidos globalmente, mas
a comunicação entre os membros continua extremamente local, até
com disputas, como vimos entre “Mods” e “Rockers”. “Beatnicks”
e “Hippies” seguem na mesma estrutura.

Nos anos 1970, 1980 e início dos 1990 do século passado subcul-
turas como a Glam, Gótica e Punk também são divulgadas global-
mente, mas a comunicação entre membros continua local e limitada
pela presencialidade.

No final dos anos 1990, a internet se populariza e fornece algo


que as subculturas esperavam há muito tempo: micromídia a custo
quase zero e pontos de troca de informação sem limites espaciais.
Especialmente no caso da subcultura gótica, isso gera um boom
global na virada do século.
110
Hoje, no século XXI, vivemos a era das subculturas translocais.

Você pode participar de uma subcultura sem representação local


além de você e pode ser o único em sua cidade. E pode interagir com
pessoas de uma cidade próxima ou da Europa da mesma forma. Sua
interação poderá até ser mais rica afetiva e culturalmente do que se
você tiver apenas presença física sem maiores identificações.

Então, no século XXI a população gótica pode interagir virtual-


mente mesmo estando na mesma cidade ou estando a centenas ou
milhares de quilômetros.

Essa população gótica pode interagir presencialmente ou não. Essa


população pode interagir com regularidade ou raramente ou mesmo
nunca se encontrar.

“SMALL TOWN GOTH”:


GÓTICOS EM CIDADES PEQUENAS
OU SEM CENAS

Hoje, mesmo isolado em uma cidade distante, você pode ter acesso
a toda música, literatura, visuais, vídeos e interação social virtual
que desejar e sua identificação com a subcultura gótica (ou qualquer
outra) dependerá apenas de você.

Assim, a vivência presencial não é mais uma exigência para sua


identificação subcultural. A vivência presencial é uma consequência
opcional. Sem dúvida positiva e enriquecedora se você for do tipo
de pessoa mais sociável, mas, de forma alguma, obrigatória.

E entre as interações sociais há vários tipos, para todos os gostos:


pic-nics, passeios, festas, baladas, festivais musicais, shows, saraus,
compras em lojas especializadas em música ou visuais góticos, fes-
tivais de cinema etc.

Também, a interação online permite uma especialização subcultu-


ral. Se você se interessa apenas por temas relacionados a subcultura
gótica, pode se concentrar nisso.

Assim, temos hoje uma população gótica espalhada, com alto nível
de acesso a informação e interação social cotidiana virtual e afetiva.
Parte dela tem interação presencial com periodicidade que varia de
acordo com diversos fatores e outra parte não.
111
Entre os que tem participação presencial, essa varia de acordo com
vários fatores: idade, condição econômica, trabalho, formação de
família etc.

Contudo, ninguém jamais pensaria em avaliar a quantidade ou as


características da população brasileira ou chinesa apenas por aque-
les que “participam regularmente do carnaval ou vão a estádios”
ou “aqueles que visitam shoppings regularmente”. Seria um grande
erro de recorte estatístico. E nos daria informações parciais e erra-
das sobre a cultura brasileira ou chinesa.

Da mesma forma seria equivocado calcular a quantidade ou caracte-


rísticas da população gótica apenas pelas interações presenciais em
determinados pontos geográficos.

Podemos, então, pensar em uma cena translocal, com polos de con-


centração periódica em locais específicos, em que parte da popula-
ção gótica se encontra. Entretanto, muitos góticos não tem interação
presencial e isso não muda seu nível de identificação.

A diferença em relação ao século passado é que a quantidade da


interação presencial não é a base de definição cultural. Aliás, como
nunca foi: grande parte das pessoas interagindo presencialmente
do passado não se identificavam com a subcultura gótica ou sim-
plesmente não se identificaram a longo prazo.

A participação diária virtual ou translocal tende a reforçar a partici-


pação no longo prazo.

Outra boa notícia é que não há mais locais específicos para ser
aceito ou não. Sua identidade depende de sua identificação afetiva e
cultural. E isso depende só de você, não depende de local, tempo,
idade, geografia ou de qualquer outra pessoa.

Isso não significa que “qualquer coisa seja Gótico”, mas significa
que qualquer um, em qualquer lugar, pode ser Gótico.

TRASNLOCALIDADE X PROXEMIA NO SÉCULO XXI

A ideia de proxemia ou relações proxêmicas (Edward T. Hall, 1977,


1966) concebia que a proximidade física entre as pessoas em zonas
urbanas determinava o tipo de relação e de comunicação entre elas,
112
tanto em termos de poder quanto relações afetivas e políticas. Esse
conceito pode ainda se relacionar com a ideia de tribo urbana .

Não é preciso dizer que o advento das relações virtuais e redes


sociais no final do século passado faz com que esses conceitos pre-
cisem ser reavaliados e reaplicados para as novas realiadades de
grupos sociais translocais.

Mas se a geração pós internet não tem informação via mídia de mas-
sa como no passado, tem várias outras vantagens.

Desde o final dos anos 1990, o acesso direto a informação permitiu


o desenvolvimento de comunidades translocais ou glocais (aquilo
que é global e local ao mesmo tempo) ou mesmo dispersas geogra-
ficamente. Simplesmente o local geográfico em que você está não
importa mais.

A Internet trouxe também a ética do compartilhamento. Se ante-


riormente havia a ética da competição e acúmulo por informação
exclusiva ou rara, hoje temos a ética de quem compartilha mais.

Paralelamente, as comunidades online permitiram a especialização:


comunidades góticas acabam agregando cada vez mais góticos e,
cada vez, mais se especializando em todos os seus aspectos.

A ideia geográfica de “cena” perde o sentido a menos que nos refi-


ramos a algum lugar específico. Mas faz sentido falar em “góticos
de São Paulo” ou “góticos de Belo Horizonte” se todos estão em
contato diariamente?

Hoje você pode ser um gótico isolado em uma cidade sem outros
góticos e talvez tenha mais identificação e conhecimento sobre a
subcultura gótica do que alguém que frequente uma festa em uma
grande cidade e não tenha outro interesse além de sair com os ami-
gos (o que também é muito bom e saudável, mas existe desde que
o mundo é mundo e não é um comportamento alternativo ou sub-
cultural em si).

O interesse e identificação subcultural inclui esses comportamen-


tos, mas vai além.

113
6. MICROMÍDIA E MICROCOMÉRCIO
NAS SUBCULTURAS TRANSLOCAIS
Nas últimas duas décadas, a existência de redes de micromídia e
microcomércio mostrou ser um dos elementos essenciais para a
existência (1) de subculturas alternativas com as características de:
diferenciação, translocalidade, identidade, comprometimento e au-
tonomia (ver Happy House 1, capítulo 6.1) . Aqui falamos especial-
mente da subcultura Gótica, mas estes conceitos podem ser aplica-
dos a outras subculturas.

No aspecto específico das mídias e comércio, foi exatamente a


constituição de redes de micromídia e microcomércio que permi-
tem a existência de grupos subculturais independentes e alternati-
vos consistentes e mais duradouros. Isso acontece simplesmente,
pois estas redes são colocadas a serviço dos valores subculturais
destes grupos sociais, e não apenas a serviço das redes do mercado
de massa e mídia de massa. As redes de comércio e mídia subcultu-
rais permitem que as subculturas resistam ao processo de acelerado
obsolescência planejada (e descartabilidade) que caracteriza o capi-
talismo e a propaganda (e modas) dos últimos 30 anos.

Não por coincidência, a principal crítica da mídia de massa em re-


lação as subculturas é que estas são “ultrapassadas” ou “fechadas
e bitolantes”. Em geral, a mídia de massa só acredita nas verdades
e preconceitos que cria, e o que ela não mostra, crê que não de-
veria existir. Assim, não consegue conceber o fato de subculturas
consistentes e substanciais terem continuado não só a existir mas
também a evoluir e se desenvolver sem aparecerem na grande mídia
ou grande comércio.

Também uma outra previsão do início dos anos 1990 de que as


pessoas usariam a internet para pulverizar seus interesses, inviabi-
lizando grupos sociais consistentes, mostrou-se insustentável. Essa
previsão fazia parte da propaganda ideológica para que as pessoas
descartassem suas identidades de grupo, algo que interessa ao con-
sumismo de descarte e outras formulações políticas.
Se algumas pessoas pulverizaram seus interesses, ao mesmo tempo
a internet serviu de instrumento para que pessoas ligadas a gru-
pos sociais alternativos conseguissem viabilizar interesses pessoais
centrais e especializados que eram antes inviabilizados, pois não
114
podiam contatar de forma barata e rápida outras pessoas que ti-
nham esses mesmos interesses alternativos.

Esta rede de micromídia especializada também ajudou o fortaleci-


mento de uma rede de microcomércio subcultural que permitiu um
nível de diversificação e aprofundamento cultural sem precedentes,
tanto na música (CDs, DVDs, shows, festivais, festas) quanto em
revistas, roupas, livros, visuais etc.

Revistas de baixa tiragem, sites especializados, blogs e redes de re-


lacionamento online. Estes são alguns elementos de micromídia que
complementam o microcomércio dos pequenos selos musicais, ar-
tesãos especialistas, eventos segmentados, bandas diversificadas e
lojas especializadas dos mais variados itens subculturais. Podemos
notar que este comércio e esta mídia seguem estruturas e padrões
diferentes da grande mídia e comércio de massa, apesar dos pontos
e áreas de contato entre os dois sistemas.

De forma diferente, a mídia e comércio de massa tendem a progra-


mar sua obsolescência (troca de modas e descartabilidade) em um
ritmo cada vez mais acelerado, sendo que nestas trocas a sequência
dos estilos trocados não guarda uma ligação de coerência entre si.
Pelo contrário, é importante que a troca seja feita por uma “novida-
de totalmente nova”. Também, por isso, é importante que cada item
de consumo não tenha ligação de significado com outras coisas,
pessoas ou produtos. A aceleração da troca de modas e sua diver-
sificação serve única e exclusivamente ao aumento da rentabilidade
econômica e a novas formas de controle social.

De formas diferentes, se nos grupos subculturais também vemos


ciclos de moda, estes são muito mais lentos e regidos em grande
parte por pressões internas. E, principalmente, seguem uma linha
evolutiva que tira seu valor exatamente do fato de manter uma liga-
ção com o passado subcultural e de manter ligação de significado
com outros elementos estéticos daquela subcultura. Não ignoramos
que as relações de custo/lucro funcionam da mesma forma que na
mídia e mercado de massa, a diferença é que aqui estes são coloca-
dos em uma posição semelhante aquela que a economia tinha em
culturas antigas: como um elo da cadeia social que servia aquela
cultura, e não como um fim em si.

Vemos, assim, que é exatamente a existência de um microcomér-


cio e uma micromídia especializada e subcultural que permite e
115
permitiu, especialmente nos últimos 20 anos, que subculturas di-
ferenciadas se viabilizassem com autonomia e autossuficiência. É
exatamente esta autossuficiência econômica e midiática que per-
mite que estas subculturas se aprofundem nas suas características
diferenciais e durem, resistindo à diluição no sistema dominante de
consumo e descarte (baseado na ausência de identidades significa-
tivas de grupo).

E, também, permite que subculturas se mantenham independen-


tes dos rótulos fragmentadores da mídia e mercado de massa, que
buscam sistematicamente dessubstancializar qualquer fenômeno
cultural e social como forma de inseri-lo em seu sistema de mídia
e comércio que – devido à velocidade e foco apenas lucrativo - só
funciona com elementos desconectados. (Os elementos não são des-
cartáveis em si: são descartáveis, porque são desconectados de nos-
sa história pessoal e social. Assim, deixam de significar. Tudo que
não significa é descartável, sejam pessoas, carros, relacionamentos,
música, prazer, livros etc.)

Com esta nova estrutura, é muito provável que as subculturas signi-


ficativas que existem hoje não venham a acabar em um futuro pre-
visível. Simplesmente porque, cada vez mais, estão independentes
da mídia e mercado de massa. O segundo motivo pelo qual estas
subculturas permanecerão é o fato de serem, de fato, alternativas
no sentido de elaborarem conteúdos culturais que não são tão valo-
rizados nas culturas mundiais majoritárias.

Sobre essa segunda questão comentamos na parte 2, sobre história


e literatura.

(1) Esse fato ficou mais claro nos últimos 25 anos, contradizendo a teorização
e previsões de duas das principais e antagônicas correntes de pensamento dos
últimos 50 anos. Tanto os descendentes da teoria crítica da cultura de massa
quanto os apologistas da pós-modernidade (e também os pós-subculturalistas ou
antisubculturalistas, deles derivados). Os primeiros acreditavam que a existência
circuitos de mídia e comércio condenavam a cultura a degeneração e os segun-
dos celebravam estes circuitos, mas acreditavam que não existiria mais culturas
substanciais neste contexto. No ponto específico das subculturas alternativas,
ambos falharam pelo extremismo de suas previsões e podemos dizer que outro
caminho tem sido buscado por uma nova teoria subculturalista desde o final dos
anos 1990.
116
7. O TEMPO & O RITMO
NA ECONOMIA SUBCULTURAL
“A velocidade é a velhice do mundo... carregados por sua violên-
cia, nós não vamos a lugar algum, nós nos contentamos de partir e
nos separar do vivo em proveito do vazio da rapidez” (Paulo Virilo,
1977, Vitesse et Politique)
A ideia de underground foi desenvolvida no século passado como
resistência ou alternativa a outro modelo de sociedade. Sua trans-
posição para nosso século traz inúmeras inadequações, pois as rela-
ções sociais são diferentes hoje.

Mas outro nó dessa questão é a relação entre arte e economia. A


forma de mercado dominante do mundo hoje é o consumismo de
massa e descarte, em que as pessoas consomem as atualizações,
não mais produtos. Isso exige uma aceleração da realidade. O mer-
cado atual incorporou a ideia de mudança dentro de seu modelo
conservador e, pela primeira vez na história, a ideia de mudança
constante serve ao status quo.

O florescimento de subculturas desde a popularização da internet


se deve ao fato desta ter permitido uma mídia quase gratuita e
uma forma de pessoas com interesses culturais semelhantes se en-
contrarem e se reforçarem mutuamente contra a pressão da cultura
hegemônica global por homogeneização, que busca nos convencer
que não devemos nos rotular e não ter identidades para sermos um
consumidor adequado ao modelo acelerante de consumismo e des-
carte.

Assim, a velocidade e a mudança compulsória são hoje a essência


da homogenização cultural global: ela só pode existir em uma so-
ciedade individualista, mas sem individuação, ou seja, de egoísmo
sem identidade. Nessa realidade o indivíduo é obrigado a aceitar se
tornar qualquer coisa para ser aceito em um mercado de trabalho e
social muito mais violento do que na segunda metade do século XX.

Esse é um modelo socioeconômico muito diferentes daquele que


as primeiras subculturas encontraram: no passado, o modelo eco-
nômico era baseado em identidades fixas e imutáveis (tanto que
mudança, no passado, era sinal de rebeldia, hoje é algo exigido nos
currículos pessoais pelas empresas).

117
MICRO MÍDIA E MICRO COMÉRCIO
A SERVIÇO DAS SUBCULTURAS

A internet também permitiu um desenvolvimento de um microco-


mércio subcultural, com padrões e ritmo diferentes das empresas
reguladas pelo modelo de consumo/descarte.

Essa microeconomia subcultural se parece mais com a economia


das antigas culturas integradas, em que as trocas econômicas eram
apenas uma esfera que servia, como as outras esferas de conheci-
mento (artes, mitologia, educação, trabalho, esporte, ciências etc),
aos valores e conceitos daqueles grupos sociais. Ao contrário do
que acontece hoje na cultura global hegemônica, em que o mer-
cado é a esfera central de valor, que esvaziou e transformou todas
as demais de sentido/valor, reduzindo-as a produtos sem sentido e
descartáveis. Assim, a resistência das economias subculturais está
exatamente em:

A) Ter um ritmo de atualização orgânico dos produtos, ou


seja, suas mudanças são evoluções naturais dos estilos e concei-
tos, sem pressão por trocas periódicas por algo “totalmente novo”
como acontece no mercado de consumo/descarte;

B) Ter coerência interna com valores e visões de mundo (ho-


mologia) da subcultura em questão, diferente da “cultura” global
dominante, em que o valor central é um valor abstrato, o valor
econômico, logo permite qualquer incoerência.

No modelo hegemônico de cultura de consumo/descarte, um pro-


duto é um item isolado de quaisquer relações de significação com
outras esferas de conhecimento ou identidade pessoal mais perma-
nente, tornando-se um avatar vazio de um conceito, logo facilmente
descartável, pois insatisfatório. Permite que nova moda seja inciada
a cada seis meses ou periodicamente.

Já nas subculturas modernas, o desenvolvimento de micromídias e


microcomércio subculturais permitem exatamente que subculturas
alternativas floresçam como espaços culturais independentes (Ho-
dkinson, 2002) e não sejam dissolvidas no modelo fluido da econo-
mia hegemônica atual, de consumo e descarte acelerado.

A manutenção de espaços de diversidade cultural coerentes e está-


veis depende disso.
118
O consumo subcultural tende a ser mais lento na atualização e ho-
mológico. Não há mudança de estilo a cada estação. Não é a cultura
servindo a produção de valor econômico abstrato, mas um sistema
microeconômico servindo a sobrevivência de uma subcultura.

Isso entra em certo conflito não só com o modelo de economia de


consumo/descarte atual, mas também com o conceito de under-
ground do século passado. No século passado, a ideia de under-
ground era geograficamente localizada, anticomercial e antimídia,
focada em grupos locais e pequenos de pessoas, com acesso e troca
de informações locais e personalizadas. Era um modelo romântico,
adequado a resistência a um modelo de capitalismo global mais
lento e, por vezes, mais localizado e com alguns valores morais.

Esse modelo de underground sobrevive apenas como relíquia ou


revival, porém seu conceito, aplicado ao século XXI, pode prejudi-
car seriamente a necessidade de resistência subcultural a formas de
relações sociais e culturais muito mais aceleradas e despersonali-
zantes do que a cultura dominante do século passado.

CONSUMO SUBCULTURAL INTEGRADO X


CONSUMO FRAGMENTADO E DESCARTÁVEL

Já uma multiplicidade de redes subculturais translocais (global)


pode incluir uma parcela significativa de população. Não há mais a
necessidade de subculturas serem grupos com pequena população
em um local determinado, pois hoje podem estar conectadas por
redes de comunicação e mídia (via internet) que não impõe seus
padrões de gosto e custo econômico. A internet não é neutra, mas
pode ser usada de forma muito mais independente do que as mídias
do século passado.

Contudo, isso não é apenas diversificação de consumo? A questão é


importante: o que diferencia uma vivência subcultural não é apenas
“o quê” você está consumindo, mas sua relação de integração ho-
mológica e a significação dos objetos. Uma pessoa pode consumir
um CD e isto não significar nada para ela além de “mais um produto
música” dentro de “seu gosto musical fluido”, provavelmente des-
cartável.

Por outro lado, outra pessoa pode consumir aquele CD como parte
de seu sistema de visão de mundo da subcultura X ou Y. Prova-
velmente neste segundo caso o produto não vai ser tão facilmente
119
descartado, porque significa algo mais para o indivíduo.

Uma diferenciação do consumo subcultural está exatamente nesta


lentidão e significação do padrão de consumo, paralela e comple-
mentar aos sistemas de micromídia e microcomércio subculturais
que permitem que as subculturas permaneçam coerentes conceitu-
almente ao mesmo tempo em que integram uma população maior
que não é limitada nem geograficamente nem em quantidade.

Assim, na realidade do século XXI, o modelo de underground po-


pularizado pelas subculturas do século passado vai parecer natu-
ralmente elitista se comparado ao modelo subcultural translocal e
inclusivo do século XXI. Mas apesar do romantismo envolvido no
saudosismo de um modelo do passado, é preciso entender como o
modelo de underground do século passado prejudica a capacidade
de resistência das subculturas contra um capitalismo global que
hoje é muito mais veloz, violento e brutal.

Assim, a questão não é demonizar o consumo, mas identificar que


tipo de relação de consumo estamos estabelecendo. As empresas
que estamos apoiando tem um compromisso com coerência sub-
cultural? Respeitam o público específico, artesãos e apoiam outras
esferas subculturais?

CUSTOMIZAÇÃO E ANTROPOFAGIA CULTURAL

Por outro lado, temos uma tradição na cena gótica de incorporar


e customizar produtos não específicos. Então, em última análise,
cabe ao indivíduo fazer sua seleção, lembrando que ao apoiar re-
des comerciais subculturais (artesãos, artistas, lojas, selos musicais,
editoras, eventos, shows etc) está fomentando e ajudando a sub-
cultura X ou Y a sobreviver, a resistir a absorção, assimilação e
desaparecimento em uma cultura hegemônica global baseada na
fragmentação, fluidez e descartabilidade (de produtos e pessoas).

A cultura hegemônica periodicamente oferecerá produtos fragmen-


tados inspirados em uma ou outra subcultura, para logo substituir
por qualquer outra coisa. Isso não nos ameaça nem ajuda, pois não
significa que a cultura global está mais tolerante a diversidade, ape-
nas que precisa simular e apresentar “novas novidades” a um ritmo
cada vez mais acelerado de troca e descarte.

Porém, indivíduos que se interessam por estética gótica ou alterna-


120
tiva fragmentada em alguma moda mainstream passageira podem
vir a se interessar realmente por outros aspectos e se identificar
com alguma subcultura de forma mais consistente, saindo assim do
modelo de modas indefinidas e substituíveis da cultura dominante.

Provavelmente, a maioria dos góticos atuais deve ter começado a


se interessar por algum elemento solto e fragmentário que identi-
ficou em alguma mídia mais massificada, buscando depois a rede
de mídia subcultural onde encontrou informações coerentes e du-
radouras.

Precisamos entender que esse é um processo normal de entrada em


subculturas hoje, pois a música e estética gótica não são mais moda
mainstream nem estão na mídia de massa como nos anos 1980.
Ao mesmo tempo, o acesso não é mais regulado presencialmente,
sendo que temos boa parte de nossa experiência subcultural online
e no mais das vezes, individual e isoladamente. Hoje, quando parti-
mos para vivências presenciais e locais, geralmente já trazemos uma
grande bagagem.

Como comentamos no texto sobre formas de acesso no undergrou-


nd, hoje fazemos a seleção e coisas novas online, e partimos para
experiências presenciais somente daquilo que já sabemos que gos-
tamos. É utópico e deletério esperar que alguém atualmente tenha
uma experiência de acesso de informação como nos anos 1980, pois
as realidades sociais e de acesso a informação são muito diferentes.

ASSEMBLAGE, BRICOLAGE, DIY e DIT

Após a segunda guerra, no final dos anos 50 e começo dos 60


o termo “faça-você-mesmo” (Do it Yourself) entra na linguagem
popular. Os Beatnicks e depois Hippies popularizaram a poesia es-
pontânea, ready-mades e música improvisada. Na música, perfor-
mances e outras artes, o movimento Fluxus definiu uma nova forma
de fazer arte:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3652/fluxus

Mais tarde, nos anos 1970 e 80 o Punk e outras subculturas também


resignificam o DIY, cada uma no seu contexto, desenvolvendo-o
msmo até uma forma de empreendimento cultural focado na in-
dependência artística. Mais recentemente surgiu o conceito de DIT
(Do It Together, ou “faça junto”). Nos últimos 20 anos, após o sur-
gimento da internet e de diversas formas de crowdfunding e finan-
121
ciamento coletivo, vimos artistas e criadores dos segmentos mais
pulverizados e alternativos conseguirem viabilizar suas produções
e levar seus conteúdos até as pessoas em escalas e quantidades que
seriam inviáveis até o final do século XX.

Hoje a resistência não se dá mais apenas no modo de produção,


mas na velocidade, integração e seleção pessoal e no próprio uso de
tecnologia, redes de comunicação e mercado para uma finalidade
que é culturalmente motivada.

A questão é: você usará todos os recursos sociais tecnológicos atu-


ais para viabilizar uma produção cultural que faz sentido para você
e seu grupo social, no seu ritmo pessoal e interno, ou usará tudo
isso para se integrar de forma submissa em uma cultura global de
velocidade, consumo e descarte (tanto de produtos, pessoas quan-
to de profissionais)? A quantidade e forma técnica da reprodução
não é determinate neste novo contexto histórico, importando muito
mais os conteúdos e formas de troca.

Os meios ainda são parte da mensagem, mas novos meios mais


livres de pressão e custo não determinam relações de poder econô-
mico específicas.

SUBCULTURAS: RESISTÊNCIA
CONTRA A “CULTURA” DA “NÃO-CULTURA”

Dessa forma, as subculturas translocais globais são uma resposta e


resistência a uma cultura hegemônica igualmente global, mas com
características opostas: fragmentariedade, velocidade, consumo e
descarte, repúdio a identidades e a sistemas culturais significativos.

Subculturas, por sua vez, tendem a construir sistemas de integra-


ção parciais ou totais entre as esferas de conhecimento (homologia
simbólica), seu ritmo de atualização é orgânico, mais lento e inter-
namente motivado, e suas redes de micromídia e microcomércio
servem aos valores e conceitos da subcultura em questão.

CONCLUSÃO SOBRE MÍDIA, ECONOMIA


E RITMO SUBCULTURAL

Os espaços de identidade subcultural são uma forma positiva de


manutenção da diversidade e liberdade individual. A manutenção
122
social de identidades públicas e classificação pessoal é uma neces-
sidade social (pública) de resistência para garantir nossa liberdade
ontológica (essa sim, sempre autoquestionante) contra uma homo-
genização identitária global realizada pela aceleração da mudança,
consumo e descarte. As subculturas têm uma economia integrada
e um mercado a serviço dos valores de sua subcultura, como nas
sociedades integradas do passado.

Nas subculturas o processo de evolução e mudança é internamente


motivado, tendo um ritmo não previsível, diferente da mudança ex-
terna e artificialmente motivada do mercado de consumo e descarte
globalmente dominante hoje, que precisa forçar mudanças ou atua-
lizações a cada seis ou 12 meses para forçar o descarte.

Além disso, as mudanças no mercado de descarte podem não se-


guir lógica alguma, especialmente na moda e na música, mudando
de um conceito para outro sem nenhuma ligação. Isso só é possível,
pois no mercado de consumo e descarte as esferas de conhecimen-
to são fragmentadas, um CD, roupa ou sapato não tem nada a ver
com qualquer outra coisa ou significado, podendo ser tomado ou
descartado isoladamente, sem comprometimento ou identificação
significativa.

Assim, diferenças estruturais da economia subcultural:

• O mercado subcultural é motivado interna e organicamen-


te, é mais lento na sua evolução e mudança;

• Os objetos de consumo (roupas, CDs, calçados, livros,


shows, maquiagens etc) formam um sistema e se referem homo-
logicamente aos mesmos conceitos, como nas culturas integradas;

• Não há “estações” periódicas em que novos produtos são


lançados, ou atualizações necessárias têm que ser adquiridas;

• Artistas, artesãos e empresas tem maior identificação e um


compromisso de longo prazo com o estilo e a subcultura em ques-
tão.

“Temos nosso próprio tempo”, como diz a canção do Legião Urbana, e esse
tempo é motivado internamente, tem duração de vida (Bergson) e é geralmente
mais lento.

123
8. O CONHECIMENTO
“DESLOCALIZADO”

Qual a semelhança entre bibliotecas, shows de bandas autorais e


baladas alternativas?
No século passado, eram o único caminho para conhecer algo novo.

Porém, hoje conhecemos coisas novas via internet e em um univer-


so de informações muito maior e diversificado do que no século XX.
Não estamos mais presos ao nosso universo local de conhecimento.
Acessamos o local e o global “aqui” e “agora”.

Ainda existem bibliotecas, shows locais e eventos alternativos, mas


só vamos a eles depois que já conhecemos muita coisa e depois que
selecionamos o que nos interessa desse oceano de informações.

Hoje posso ouvir ou baixar a maioria dos livros e músicas online,


em meu computador ou smartphone, sem depender de ninguém. O
mesmo que acontece com filmes e séries. Fico conhecendo pessoas,
estilos e sua história acessando redes sociais alternativas.
E posso fazer isso através do conceito ou palavra, não através de
pessoas e locais físicos.

Por isso, ficamos cada dia mais exigentes com o acesso as novida-
des do mundo inteiro como se estivéssemos lá. Aliás “lá” e “aqui”
deixam de fazer sentido.

A atividade presencial ficou hoje mais destinada a diversão e ce-


lebração pura daquilo que já se conhece virtualmente. Incluindo,
aliás, os amigos virtuais.

A interação social subcultural também não depende apenas de fes-


tas ou “rolês” para seu início, como acontecia no passado. Hoje se
inicia em redes sociais, com uma quantidade de informação muitas
vezes superior ao que acontecia no passado.

Isso permite que pessoas em cidades sem cenas alternativas ou iso-


ladas de suas cenas locais desenvolvam vinculação subcultural de
forma consistente e duradoura. Depois, se e quando vão desfrutar
de ambientes subculturais físicos e presenciais, já têm um nível alto
de identificação pessoal com os repertórios e códigos culturais.
124
Assim, da mesma forma que as bibliotecas, shows e baladas deixa-
ram de ser o local inicial único de acesso a informação e de interação
social. Hoje procuramos e selecionamos o novo individualmente an-
tes e depois buscamos os lugares físicos para desfrutar esse novo.

No futuro continuaremos a frequentar bibliotecas, shows e baladas,


comprar livros e CDs ou ir ao cinema, mas pelos principais motivos
pelos quais continuamos em contato com algo sem nenhuma obri-
gação: porque nos dá prazer e faz sentido para nós.

Mas não vamos mais a esses lugares para conhecer o novo. O novo
já conhecemos e selecionamos antes, online.

9. COLAPSO DO CAPITAL SUBCULTURAL


COMO INSTRUMENTO DE PODER
Em 1997, Sara Thornton popularizou o termo “capital subcultural”
,inspirando-se no conceito de “Capital Cultural” como usado por
Pierre Bordieu. O capital cultural seria o status que individuo ad-
quire em seu grupo social e cultura por possuir ou consumir certos
discursos, gostos, conhecimentos e produtos culturais. O capital
cultural não é necessariamente ligado ao capital econômico, poden-
do aparecer tanto em conjunto quanto em separado deste.

O conceito de capital cultural como desligado do capital econômico


fica claro no exemplo de “potlatch” citado por Levi Strauss, em que
dois grupos autóctones competem por quem destrói mais recursos
em uma celebração, sendo o vencedor aquele que mostra poder
de destruir mais recursos. Vemos um reflexo disso no costume
ocidental urbano de esbanjar e ostentar. Porém o objeto de osten-
tação pode não ser caro, mas apenas raro ou secreto, igualmente
para poucos. Assim elites underground, subculturas alternativas e
grupos culturais excluídos podem estabelecer dinâmicas de poder
internas e elitismos mesmo no limite da pobreza e são dinâmicas
estruturalmente semelhantes a quem usa recursos econômicos para
isso.
Assim, a raridade de um conhecimento, a edição limitada de um vi-
nil ou de um fanzine podiam funcionar como elemento de formação
de capital cultural ou subcultural excludente. Não só os objetos em
si, mas a forma e circulação dos objetos entre as pessoas importava,
125
devido a sua escala limitada. Assim, algo caro como um exemplar
uma tiragem limitada de um vinil podia ter o mesmo poder de
conferir status que algo grátis ou quase como um zine xerocado. A
função é a mesma, não importa o preço do objeto, mas sua raridade
e forma de circulação e troca.

O objetivo do capital cultural é sempre gerar distinção dentro de um


grupo social ou estabelecer um círculo de elite cultural em que só
quem tem o capital correto é valorizado. Um item de capital cultural
pode perder valor se grande quantidade de pessoas tem acesso a
ele. Nesse caso, o grupo de distinção ou elite, automaticamente, es-
tabelecerá um novo item de valor cultural que seja mais inacessível.
Ou nova rede social que deve ser usada, ou nova marca ou banda
que se tornou “in” ou “diferencial” naquele momento e círculo.

Nesse sentido, não importam as características do item cultural e


sim as características e quantidades de quem os consome. Tanto
samba, rock quanto hip hop foram considerados como música de
gueto um dia e nessa época socialmente criminalizados. Com o
tempo, como classes sociais mais ricas passaram a consumir estes
estilos musicais, eles foram validados socialmente como formas ar-
tísticas aceitáveis. O mesmo aconteceu com a Literatura Gótica no
final do século XVIII, que passou posteriormente a ser considerada
mais aceitável. Essa dinâmica nunca termina.

Os métodos e meios de valoração cultural podem ser os mais diver-


sos. Eugênio Trivinho apontou recentemente como a aceleração da
atualização tecnológica serve como novo vetor de exclusão. Pode-
mos aplicar esse conceito ao princípio de capital subcultural. Sem-
pre que uma rede social ou mídia se torna acessível de muitos, ela
passa a ser desvalorizada. E um novo reduto produtor de capital
cultural é buscado. Assim, a própria escolha de plataformas, mídias
ou certos equipamentos pode servir de meio para o elitismo, e este
pode ser tanto baseado em valor econômico quanto em um conhe-
cimento especial.

Acesso geográfico também é um meio tradicional de seleção social.


Baladas de elite econômica historicamente evitam áreas em que o
transporte público é fácil. Assim vemos a localização de baladas
de elite sempre “fugindo” da expansão dos transportes públicos.
O acesso ser possível só de carro já determina uma seleção social.
Recentemente em São Paulo se popularizaram festas em condomí-
nios fechados.
126
Entretanto, a seleção pode depender de outros fatores. Lembremos
que Sarah Thornton escreveu inicialmente sobre capital subcultu-
ral em meados dos anos 1990, ou seja, refere-se a uma realidade
subcultural ainda não alterada radicalmente pela internet. Veremos
que nos últimos 20 anos esse capital sofreu um grande abalo na sua
capacidade de exercer poder e criar distinção, devido ao surgimento
de várias gerações que têm uma mentalidade de compartilhamento
e não de seleção, acúmulo e exclusão. O capital subcultural ainda
age, mas suas dinâmicas mudaram.

A internet implodiu todas as dinâmicas sociais. Primeiro, as subcul-


turas deixam de ser fenômenos locais e o conhecimento passa a ser
acessível a muita gente sem necessidade de mediação pessoal. As-
sim, grandes quantidades de pessoas podem compartilhar grande
quantidade de informação, culturalmente coerentes, sem estabele-
cer relações de seleção ou exclusão.

A exclusão por geografia ou contato pessoal era a natureza da re-


alidade social do século XX (como comentamos no texto sobre as
formas de acesso a conhecimento no século passado).

Porém, se esse modelo subcultural da era pré internet que servia


como proteção e resistência a um tipo de mídia e capitalismo que
não existem mais for aplicado a realidade atual, gera automatica-
mente um choque que será percebido como elitismo e exclusão,
devido aos valores e dinâmicas do passado serem representações
daquela realidade do passado.

A informação, atualmente, é acessada de outras formas e a apo-


logia da presencialidade e conceitos de underground seletivo au-
tomaticamente são considerados como absurdos excludentes para
quem nasceu a partir de 1990. Hoje o repertório cultural valorizado
em uma subcultura não tem mais o poder de capital de exclusão e
poder dentro de uma subcultura, mas serve para diferenciar as sub-
culturas da cultura hegemônica.

DEMOCRATIZAÇÃO DO CAPITAL CULTURAL

As subculturas alternativas podem ser divididas em AI (Antes da


Internet) e DI (Depois da Internet). Não nos referimos apenas as
subculturas surgidas na internet, mas as que já existiam antes e
perduraram em novas formas.
A internet não criou apenas um mundo paralelo separado do mundo
127
“real”. Não se trata de uma oposição real x virtual. A internet mu-
dou os valores, contextos sociais e relações de poder culturais no
mundo “real”. As mesmas funções são realizadas de outras formas.

O capital subcultural continua a existir, mas na era pós internet ele


perdeu seu poder de exclusão e controle subculturais. A dinâmica
de poder e relações nas subculturas atuais mudou radicalmente em
relação ao modelo do século passado.

Boa parte das tensões atuais no interior das subculturas se deve ao


conflito entre a tentativa de manter ideias e comportamentos do
modelo antigo em uma realidade de dinâmicas sociais totalmente
diversas.

Ou entre tentativas de manter o um modelo de subcultura apenas


presencial em oposição a uma realidade glocal (ao mesmo tempo
local e translocal). Mas antes de observar as novas dinâmicas da
subculturas translocais na era pós-internet, vamos relembrar as di-
nâmicas das subculturas e do capital subcultural na era local e pré
internet.

Como já comentamos, as relações de poder e informação se davam


na era pré internet apenas localmente e eram mediadas por indiví-
duos que possuíam a informação. As mídias existentes eram vistas
como inimigo, pois as mídias de massa (TV, jornais, revistas de
grande circulação e álbuns musicais populares) eram todas de alto
custo e voltadas para informações não alternativas.

Assim, havia um conceito, na época parcialmente correto, de que


algo alternativo não poderia usar de mídias, sendo a mídia alterna-
tiva uma mídia presencial, pela fala ou produções de baixa tiragem,
inicialmente mimeografadas e depois xerocadas, fitas K7 etc.

Estas mídias tinham a função de estreitar as relações entre um cír-


culo de pessoas que já tinha contato e, pela própria dinâmica, não
poderia ser muito grande. Apesar disso, paradoxalmente, alguns
artistas alternativos cultuados foram lançados em grandes tiragens
por grandes gravadoras, fenômeno que só se alterou posteriormen-
te.

Assim, os poucos lançamentos musicais alternativos em vinis eram


extremamente difíceis e caros de conseguir, daí o grande status
atribuído a seus possuidores e aos DJs naquela época.
128
Também a informação dos grupos subculturais só podia ser trans-
mitida presencialmente, o que no final gerava um sistema de copiar
para ser aceito. Só com muito tempo e conversas se conseguia orga-
nizar mais informações de conjunto.

Essas relações de acesso a informação só aconteciam em locais es-


pecíficos, geralmente subculturas tinham seus territórios ou clubes
específicos em cidades ou regiões específicas. Inicialmente não ha-
via como saber o que acontecia em outras cidades. Por isso o terri-
tório e o presencial era tão importante no século passado, e mídia
e comércio eram vistos como inimigos dentro de uma perspectiva
romântica.

Porém com o advento da internet as coisas começaram a mudar. Ela


se popularizou tarde no Brasil, mas em outros países já na segunda
metade dos anos 1990 a internet ajudou a subcultura gótica e outras
a terem um renascimento que mostrou toda sua força no começo do
novo século.

As pessoas descobriram que essa era uma mídia de custo quase


zero que podia ser usada a favor da coesão e consistência cultural,
promovendo informações alternativas sem pressões econômicas
e, principalmente, ajudando-nos a encontrar outros que tinham os
mesmos interesses alternativos que nós, pessoas que as vezes esta-
vam em nossa própria cidade, as vezes em outro país.

O nexo mudou da proximidade física e geográfica para a proximi-


dade e coerência cultural. Também, subitamente, a informação ou
produtos exclusivos que geravam capital cultural e status no século
passado passaram a ser acessíveis a uma grande massa por custo
baixo ou nulo. Isso gerou não só uma democratização da informa-
ção, mas também uma “ascensão subcultural” em termos de capital
subcultural de grande quantidade de indivíduos de classe econômi-
ca mais baixa (especialmente no Brasil, onde mesmo um CD impor-
tado tinha preços inacessíveis para a maioria, especialmente até o
final dos anos 1990).

O nível básico médio de informação musical subiu absurdamente


na comparação entre 1993 x 2003 e mais ainda posteriormente. Se
vinte e poucos anos atrás só poucos DJs tinham acesso (e capaci-
dade econômica) de ter uma discografia completa, hoje qualquer
iniciante ouve essa mesma discografia quase de graça no Spotify,
Bandcamp ou por outros meios.
129
Isso gerou uma série de respostas incoerentes e irracionais em seg-
mentos subculturais que buscavam manter o antigo modelo de con-
trole e status.

Por exemplo, sempre que um item raro de alto valor subcultural se


tornava público e compartilhado, grupos que buscavam manter o
modelo de status e poder da era pré internet passavam a cultuar
algum novo item mais raro ou ainda pouco conhecido pela novida-
de. Porém, como esses novos itens passaram a ser cada vez mais
rapidamente compartilhados em massa, o valor de capital cultural
desses itens para exercício de distinção, status e poder de exclusão
se perdia quase que instantaneamente.

Isso gerou uma corrida irracional pela busca de estilos cada vez
mais obscuros ou raros, a ponto de se chegar a escolha de itens
claramente “ruins” que seriam rejeitados mesmo que acessados. De
qualquer forma, ficou claro até para os mais conservadores que era
impossível defender qualquer tipo de “cidadela de status”, pois uma
vez estabelecida, ela seria imediatamente varrida como um castelo
de areia construído na orla marítima.

Se CD, vinis e outros itens materiais continuaram a existir hoje


como importantes itens de colecionador, perderam há muito tempo
o poder que tiveram no século passado de meios únicos de acesso
à informação.

O mesmo vale para os shows e festas. De qualquer forma, o discur-


so de posse e a posse de itens materiais ou presenciais não são mais
um meio de informação, mas sim o final de um amplo processo
seletivo de informação que começa online.

10. SOBRE AZEITONAS,


RÓTULOS
E HAMLET
Qual a diferença entre um rótulo e uma classificação social?

Uma azeitona verde não tem a escolha de ser ou não ser azeitona…
nem de ser uma azeitona preta. Por isso, colocamos rótulos nos
grupos de azeitonas em potes, mas aos grupos de seres humanos
aplicamos classificações.
130
Além disso, você já ouviu alguém reclamando “não me rotule de
inteligente!!” ou “não me rotule de especial!” ou “não me rotule de
linda!”? Pois é…

É importante não confundir “TAXONOMIA” (classificação) com o


sentido pejorativo da palavra “RÓTULO”.

Todos sabemos que as taxonomias são relativas a determinada cul-


tura, mas, nem por isso, deixam de ser válidas e corresponderem a
um tipo de “verdade” social dentro daquela cultura, que no caso da
civilização ocidental, convenhamos, é um contexto bastante abran-
gente. Assim, por exemplo, a classificação entre vertebrados e in-
vertebrados na biologia é um exemplo de classificação taxonômica
de nossa cultura.

Claro que nas ciências sociais e humanas as classificações são mais


complexas (e polêmicas) que nas ciências exatas, mas nem por isso
deixam de ser válidas no devido contexto. Essa classificação é uma
representação da realidade, como tudo que o ser humano cria ou
criou. Estamos falando de cultura e representações sociais.

Já rótulo é “aquilo que se coloca por fora para identificar o conteú-


do”. Quando estamos falando de leite condensado ou azeitonas a
questão é simples. Quando falamos de grupos sociais e seres hu-
manos entramos em uma confusão comum: confundir a questão
ontológica e a questão social (ver a seguir).

Semanticamente, portanto, rótulo e classificação são coisas dife-


rentes. Geralmente a palavra rótulo é usado com carga semântica
negativa. Por outro lado, as definições ou classificações positivas
raramente são consideradas rótulos.

SER: QUESTÃO ONTOLÓGICA X QUESTÃO SOCIAL

Ontologia é o estudo do ser. Ontologicamente, o ser humano é um


eterno autoquestionamento e um processo infinito de construção,
de um “vir-a-ser”. Portanto, sua identidade é sempre uma questão
que não pode ser “fechada”. Mas mesmo ontologicamente você
tem uma historicidade: sua identidade é sua trajetória passada e sua
escolha presente. É aquela questão do Hamlet: “ser ou não ser…”.

Socialmente, porém, a identidade é uma questão de grupo e de rela-


131
ções sociais e não apenas ontológica. Mas é exatamente a liberdade
social que permite a realização da liberdade pessoal e individual
(ontológica). Por exemplo, uma pessoa pode escolher ser X, mas em
determinadas sociedades ela pode ser presa ou sofrer discrimina-
ção por aquela escolha X. Ou simplesmente não ter aquela escolha
aberta naquela sociedade.

Nesse caso, você precisa defender uma classificação social para si


mesmo, exatamente como forma, e defender sua liberdade (ontoló-
gica também) pessoal. Sua e de outros!
Assim, mesmo sendo questões diferentes, uma influencia na outra.
É importante notar que a eliminação de grupos sociais e culturas
se dá exatamente pela eliminação de sua classificação (e nome) e
definição por um grupo social dominante.

Se observarmos a história do século XX, veremos que os grupos so-


ciais anteriormente reprimidos ou desprovidos de direitos que con-
seguiram ser aceitos e conquistar direitos iguais foram exatamente
aqueles que assumiram uma identidade de grupo social forte. Ex:
feministas, afrodescendentes, grupos LGBT etc.

Se estes grupos não tivessem adotado identidades sociais de grupo


continuariam como “indivíduos errados”, isolados dentro de uma
classificação social em que não existiam conceitualmente, sofrendo
restrição de direitos, preconceitos e outros problemas.

Portanto, exatamente pela adoção de uma definição ou classifica-


ção social de grupo que estes indivíduos garantem sua liberdade
ontológica (de ser o que escolheram ou de se definir dentro de de-
terminado projeto de identidade).

Por isso, é importante não confundir a questão social com a ontoló-


gica: ao contrário das azeitonas, humanos tem autoquestionamento
ontológico até o dia da morte, isso é uma das coisas que nos define
como humanos.

Mas humanos também vivem em sociedade e se não defendemos


socialmente o espaço e a existência das nossas escolhas ontoló-
gicas, a liberdade possibilidade social dessas escolhas tendem a
deixar de existir.

Portanto, a defesa das classificações sociais garantem a nossa (e


de todos) liberdade ontológica (de ser ou não ser ou o que ser). Ga-
132
rantem que, ao contrário dos vegetais ou minerais, possamos fazer
várias escolhas não deterministas, tanto aqui e agora como ao longo
de nossa vida.
Você pode escolher uma classificação social para preservar as pos-
sibilidades de liberdade de todos, mas isso não muda o fato de que
você vai se questionar ontologicamente (o que eu sou? quem eu
sou?) na frente do espelho todos os dias até o dia de sua morte.

Mas até lá, é importante que vivamos em sociedades em que exista


espaço para expressão de diferenças. A existência de subculturas e
culturas alternativas, todas diferentes umas das outras, é uma das
formas de garantir a manutenção dessas possibilidades de realiza-
ção social de nossas possibilidades ontológicas.

Assim, possibilidades ontológicas dependem de história e escolhas


pessoais e individuais, mas possibilidades de realização social de-
pendem de histórias e definições coletivas. Uma depende da outra
para existir, apesar de serem coisas diferentes.

Complexidades que as azeitonas não têm, mas a vida delas é bem


mais chata que a nossa. A única vantagem delas é que os picles e
palmitos não fazem campanha tentando provar que as azeitonas
não existem ou que são inerentemente maléficas...

11. O “ROLÊ” NÃO É A “CENA”:


A PONTA DO ICEBERG
Quebrando o clichê da ideologia pós-moderna, a realidade nos
mostra que subculturas não são nem apenas urbanas, nem apenas
juvenis e, como já vimos, não são tribos.

Se você fizer pesquisa sobre a cultura chinesa em um shopping


center de Honk Kong ou Pequim você concluirá que a população
chinesa é muito jovem e ocidentalizada. Hoje, no Brasil em crise
econômica, se você fizer censo da população brasileira nas baladas,
vai concluir erroneamente que a população nacional diminuiu.

Ambas as conclusões acima têm pouco a ver com realidade, são


distorções causadas pelo pressuposto das pesquisas: de que certos
grupos sociais são encontrados em certos locais ou em relação pre-
133
sencial entre si. Ou limitados a apenas uma fase da vida.

Da mesma forma, se você fizer censo de população gótica em shows


ou baladas, você vai ter um resultado com a mesma distorção “in-
tencional”.

Mas, felizmente, a vivência dos góticos não se dá apenas em shows


e baladas em grandes cidades. “O Rolê não é a Cena”. A população
gótica é muito maior que o “rolê” e realiza sua vivência e identifica-
ção de diversas formas.
Muitos não saem em festas. Alguns já têm família e trabalho e man-
tém sua identidade e participação em outros ritmos, após os 30 ou
40 anos de idade. Outros estão participando ouvindo música em
casa, vendo filmes, lendo, escrevendo, utilizando roupas e maquia-
gens, entre outras atividades. Ou ainda interagindo online.

Os demais vivem em cidades pequenas sem cenas, mas têm toda


identidade e informação do estilo porque a internet hoje permite
informação e vivência real e de qualidade, melhor do que tínhamos
presencialmente no passado, na maioria dos casos.

Eventualmente, muitos vão também frequentar alguma festa, show


ou festival gótico. Mas essa participação não é o que vai definir a
identificação subcultural dessa pessoa. Será uma experiência que é
exatamente complementar e resultado de uma identificação realiza-
da a longo prazo.

Assim, não são góticos apenas os que estão saindo no rolê. Isso
sempre foi apenas a ponta do iceberg... e a parte que derrete, some
e reaparece de acordo com as estações.

Precisamos rever nossos conceitos do que significa “participação


subcultural”, pois os conceitos do século passado se tornaram ou
prejudiciais para o cenário alternativo ou mesmo preconceituosos e
cegos em relação a realidade.

Translocalidade (ou glocalidade): significa que você está vivencian-


do o local e outros locais ao mesmo tempo ou o local e o global
ao mesmo tempo. Essa é uma das características das vivências do
século XXI.

No século passado íamos a locais para obter informação. Hoje, no


século XXI, conhecemos tudo (e muito mais coisas) antes, na tela de
134
nosso PC, notebook ou Smartphone. Selecionamos o que gostamos
e vivenciamos isso… só depois de distinguirmos é que vamos a al-
gum lugar para vivenciar de outra forma o que já escolhemos antes.
Assim, hoje, o volume de conhecimento disponível, a quantidade
de pessoas acessando a informação e a autonomia individuais para
seleção e escolha são maiores.

Claro que isso incomoda muita gente: todos aqueles que no século
passado detinham o poder de intermediar e selecionar informação
nos locais de acesso. Esses locais ainda existem, mas a relação de
poder com as pessoas que os acessam deixou de ser unilateral, para
ser no mínimo uma via de mão dupla.

Este é nosso mundo. O século XX acabou mesmo, apesar de muitos


de nós vermos o presente com olhos do século passado. Provavel-
mente aqueles de nós nascidos até os anos 1980 soframos em maior
ou menor grau dessa miopia.

Cabe a nós tentar enxergar melhor.

12. AS IDEIAS DE UNDERGROUND QUE


PREJUDICAM O “UNDERGROUND”
Uma definição de loucura é continuar a fazer as mesmas coisas e
esperar resultados diferentes...

O que mais prejudica o “underground” atual são as antigas ideias e


conceitos que tínhamos no passado. Por isso, infelizmente, temos
muito a lamentar:

Lamentamos não termos tantas festas, shows e festivais internacio-


nais como na Europa ou mesmo quanto alguns outros países lati-
no-americanos. Lamentamos que as bandas nacionais não vendam
CDs em quantidade ou tenham público suficiente para poderem se
dedicar inteiramente a música.

Lamentamos que lojas, profissionais, artesãos e artistas góticos e


alternativos locais são consigam vender seus produtos em quanti-
dade suficiente para continuar a trabalhar com o estilo que amam.
Lamentamos que festas góticas muitas vezes aconteçam em lugares
com qualidade e segurança duvidosa.
135
Lamentamos isso tudo e muito mais, mas o que lamentamos é re-
sultado direto de nossas ideias e concepções ultrapassadas de “un-
derground” e “cena”, que se eram adequadas ao século passado,
hoje são um lento suicídio programado.

Sem perceber, tentamos fazer o melhor possível com ideias que nos
condenam sempre ao fracasso… e ainda nos surpreendemos por
isso acontecer!
Contudo, nos últimos 30 anos, os estilos e subculturas evoluíram e
o mundo mudou totalmente. Para fazer algo com a mesma essência
de antigamente, é preciso fazer algo diferente nos tempos atuais.

O QUE MUDOU? A RELAÇÃO COM O ESPAÇO

Uma coisa importante entre outras que mudaram: no século passa-


do as pessoas iam a lugares para conhecer coisas, como vimos no
texto anterior.

Para fazer pesquisas de escola, íamos a bibliotecas. Para comprar


livros, íamos a livrarias. Para conhecer bandas íamos a lojas de CDs
ou shows. Para saber qual era a música nova que o DJ tocou, só per-
guntando para ele ou algum amigo dele.

Esse era o século XX: havia uma divisão clara entre o que era
“mainstream” e o que era alternativo. O “mainstream” tinha gran-
des financiamentos e era reproduzido nos grandes e poucos meios
de comunicação da época. O alternativo tinha poucos territórios e
locais específicos, dependia de relações pessoais de mútuo apoio
e relações de poder e seleção severa de novos integrantes, seleção
essa que buscava preservar a pureza desses espaços.

No século XX, o “underground” era o que estava escondido e o


nome fazia todo sentido (underground = subterrâneo). Da mesma
forma que “mainstream” significa “fluxo principal”: o paradigma
dominante. Entretanto, no século XXI a realidade é outra.

Com o advento da internet, o acesso à informação deixou de ser


algo localizado geograficamente ou regulado pelo poder pessoal
de indivíduos: acesso a livros, músicas, filmes, arte, informação em
geral deixou de ser mediada por um controle (seja pessoal ou de
redes de TV) e passou a ser livre a qualquer um em qualquer lugar.
Assim, até mesmo as cenas alternativas deixaram de ser “under-
ground” no sentido literal: a informação alternativa deixou de ser
136
mediada e o acesso deixou de ser pessoalmente controlado. Até
mesmo os DJs perderam o poder exclusivo de definir o que é ten-
dência e com isso boa parte de seu status. Hoje a tendência é, no
mínimo, uma via de mão dupla.

Atualmente, conhecemos uma infinidade de coisas online (muito


mais coisas do que no passado) e selecionamos nossas preferências.
Só depois vamos a “lugares”, mas só para vivenciar o que já esco-
lhemos gostar e nos vinculamos afetivamente antes, virtualmente.
E há muitas, muitas opções.

Assim, no século XXI o “underground” deixa de ser um local de


difícil acesso ou escondido, e passa a ser um conjunto de tendências
alternativas que podem ser acessadas por qualquer um que tenha
interesse.

Podemos continuar a chamar de “underground” se soubermos que


significa uma coisa diferente do que era chamado de undergrond no
século XX.

O PROBLEMA ESCONDIDO

Todavia… então onde está a contradição, que nos impede de de-


senvolver um circuito alternativo viável e grande como em outros
lugares? É aí que a porca torce o rabo.

Um dos problemas está em algumas ideias românticas sobre a re-


alidade que são compartilhadas tanto por hippies quanto punks (e
outros grupos), apesar de ambos os grupos expressarem esse ro-
mantismo de forma diferente.

No fundo, é a mesma concepção de realidade do século passado (ou


retrasado), reforçadas por algumas ideias da escola (de filosofia) de
Frankfurt sobre a oposição entre economia e arte, entre comércio
e cultura. A oposição antiga entre “underground” e “mainstream”
era corretamente baseada nessas ideias, em uma época em que o
“mainstream” significava padronização e ordem.

Mas não são mais corretas, pois a realidade mudou: o capitalismo


de consumo e rentismo superou o capitalismo de trabalho e produ-
ção, mudando os valores da sociedade. Se antes o capitalismo era
baseado em ordem, moral rígida e progresso, hoje significa mu-
dança constante e desapego a identidades individuais e coletivas
137
duradouras, demandando que as pessoas mudem de identidade a
qualquer momento, sem princípios ou ética (ao contrário do capita-
lismo tradicional, que exigia que as pessoas mantivessem identida-
des padrão e massificadas e tinha algumas regras morais rígidas).

A sociedade atual se parece muito mais com uma versão acelera-


da de “Admirável Mundo Novo” de Huxley do que com “1984” de
Orwell. Hoje o controle social é feito por ofertas de descontrole e
hedonismo massificado, e incentivo ao individualismo egoísta, ve-
locidade e violência.

AGITANDO SUA BANDA DE UM SÉCULO PARA OUTRO

Vejamos um exemplo mais objetivo.

No século passado, se uma banda quisesse ficar conhecida e gravar


um álbum que chegasse até as pessoas, ela começava fazendo mui-
tos shows, para ficar conhecida pelo público, e na esperança de “ser
descoberta” por um produtor que a indicasse para uma gravadora.
Isso porque na época era preciso muito dinheiro e recursos técnicos
para gravar um álbum e para lançar uma banda ou cantor. Com o ad-
vento dos vídeos e o surgimento da MTV, agregou-se mais o custo
de produção de vídeos.

No século XXI, porém, temos uma realidade diferente.

Os custos de produção e lançamento musical se reduziram muito,


e as formas de divulgação e produção de vídeo se tornaram quase
gratuitas. Mas por outro lado fazer shows não adianta quase nada
no início da carreira de uma banda (a não ser como exercício de
autodesenvolvimento), pois hoje as pessoas não buscam mais co-
nhecimento em “lugares”, pois recebemos uma quantidade enorme
de informação diariamente, em casa.

A boa notícia é que você pode fazer sua banda ser famosa na Eu-
ropa antes de tocar na cidade vizinha; a má é que você concorrerá
pela atenção das pessoas em pé de igualdade com bandas do Brasil
e mundo inteiro. Nesse sentido as cenas musicais locais não existem
mais: são “glocais” ou “translocais”, ou seja, locais e globais ao
mesmo tempo.
Continua não sendo fácil, mas é completamente diferente do passa-
do: hoje depende totalmente do artista e seu trabalho. Isso não quer
dizer que você virará o próximo U2 ou Rolling Stones, mas que pode
138
conseguir, pelo menos, viver do seu trabalho alternativo sem pre-
cisar vender a alma e mudar de estilo para uma grande gravadora.

Não há mais desculpas para cultivar o ego e status de “artista genial


incompreendido” ou “limitado pelo sistema econômico”. Mesmo
que na sua cidade existam apenas 10 pessoas que apreciem um
artista singular, ao redor do mundo ele pode encontrar mais 10 mil
ou 100 mil.
A diversidade cultural, assim, permite hoje uma liberdade que aca-
ba com o “artista incompreendido” e reclamações de mídia opres-
sora que existiam no século passado.

TRANSLOCALIDADE E PERMANÊNCIA NO SÉCULO XXI

A translocalidade vale também para a participação individual nas


“cenas” ou subculturas alternativas. Não temos apenas um grupo
pequeno de pessoas de uma única cidade que tem relações presen-
ciais.

Temos uma pluralidade de pessoas que não se relacionam ou encon-


tram regularmente, na mesma cidade, em cidades diferentes, ou até
de países diferentes. Pessoas de todas as classes sociais, origens,
idades, etnias e opções de vida.

Algumas dessas pessoas estão em cidades com muitos indivíduos


que coincidem em seu interesse subcultural. Já outras pessoas estão
distantes ou isoladas em cidades onde elas são as únicas com este
interesse cultural. O que importa hoje é que todas essas pesso-
as têm participação, acesso e vivências com a mesma qualidade e,
principalmente, perenidade.

Aliás, a experiência nos mostra que a busca de informação online


acaba por fomentar uma consistência e perenidade maior de identi-
ficação subcultural do que em muitos casos acontece com a partici-
pação presencial sem um suporte informativo.

Afinal, boa parte dos jovens que estão “saindo de rolê” estão fazen-
do isso apenas pela afetividade do “rolê” e não pela identificação
mais duradoura.

Em geral, a maioria que está só de “rolê” acaba se afastando com


a idade, enquanto aqueles que tiveram uma formação cultural não
139
presencial acabam por posteriormente também a frequentar ativi-
dades presenciais, mas se mantendo vinculados por mais tempo.

Assim, outro ponto importante é que as subculturas alternativas


também não são mais um reduto exclusivamente de jovens, mas in-
cluem pessoas de todas as idades, com ritmos, frequência e formas
de participação diferenciados.

Até aqui é algo simples de resolver, mas o que complica são as


ideias arraigadas de seleção “local” de novos integrantes, baseadas
em lógicas de territorialidade e status de conhecimento herdadas
do século passado, que não fazem mais sentido hoje.

O maior conflito acontece quando as ideias e estratégias do século


passado de “manutenção de um espaço ‘underground’ pequeno e
puro” conflitam com a realidade atual, em que mais pessoas bus-
cam e acessam informação alternativa.

Essas ideias antigas acabam prejudicando as próprias bandas, lojas,


festivais, selos, publicações etc. O conceito de “underground” ou
“cena” como uma “seita ou grupo fechado” é uma dessas ideias.

Sociedades e culturas do passado tinham economias (“oiko no-


mia”= administração doméstica, em grego) que serviam a suas cul-
turas, e não o contrário. Da mesma forma, hoje temos a possibili-
dade de desenvolver meios midiáticos e comerciais que sirvam aos
interesses das subculturas alternativas, devido ao barateamento e
fácil acesso da produção de CDs, vídeos, áudios, publicações e di-
vulgação online ou em redes sociais.

No século XXI, em um mundo em que as zonas urbanizadas e in-


dustrializadas do planeta são submetidas uma mesma cultura global
hegemônica (do capitalismo especulativo e sua ideologia pós-mo-
derna), a experiência nos mostra que, em oposição a essa hegemo-
nia e pasteurização global, as subculturas alternativas florescem
fazendo uso de micromídias e microcomércio submetidos a seus
interesses e que viabilizam suas produções culturais alternativas.

Assim, se desejamos um desenvolvimento da subcultura alternativa


que nos interessa, precisamos entender o que significa undergrou-
nd, alternativo e subcultural sem ideias e comportamentos autos-
sabotadores, herdados de realidades e contextos que não existem
mais.
140
ENTÃO O QUE DEFINIRIA
“UNDERGROUND” NO SÉCULO XXI?

Entre outras coisas, não é mais a territorialidade, nem as festas e


shows em lugares precários e sem segurança, nem a inviabilidade
comercial e realizações que acabam rapidamente, baseadas em re-
lações puramente pessoais. Não são as bandas que viram “cult”,
porque não se viabilizaram e acabaram, condenando seus integran-
tes a desperdiçarem seu talento em profissões que não amam.

Também não é um grupo pequeno de pessoas que garante seu sta-


tus controlando severamente o fluxo de entrada de novos integran-
tes. Não é nada disso que destrói a longo prazo as possibilidades de
desenvolvimento e crescimento de cenas alternativas e artísticas.

Se ainda podemos usar a palavra “underground” no século XXI, ela


significará um dos vários conteúdos socioculturais (logo, também
artísticos) que são alternativos em relação aos paradigmas sociocul-
turais dominantes (ou hegemônicos). Nesse sentido, é sinônimo de
“alternativo”, e existem diversos alternativos diferentes.

Esses conteúdos artísticos e comportamentais, como em um movi-


mento artístico, são discursos que não são de ninguém. Logo, não
é a quantidade, presencialidade ou localização que define se algo é
subcultural ou não, mas sim a vinculação e identificação do indiví-
duo com aquele discurso cultural alternativo.

QUEBRANDO A PROGRAMAÇÃO PARA O FRACASSO:

As pessoas veem a subcultura gótica (e outras) e seu desenvolvi-


mento de duas formas principais e opostas: o modelo de seita ou
elite, e o modelo cultural ou subcultural.

1- O MODELO DE SEITA: é que criticamos aqui - é o modelo de


seita secreta ou elite alternativa. Esse modelo de relacionamento
pode ser visto também em grupos especiais do exército, no mun-
do acadêmico ou em grandes empresas. Seitas e elites buscam de
toda forma garantir que o grupo mantenha um número reduzido de
integrantes, pois isso garante o status elevado dos “poucos conhe-
cedores”.

Grupos deste tipo desenvolvem sempre uma forte polícia de con-


trole que fiscaliza a entrada de novos membros com estratégias de
141
seleção, punição e/ou ridicularização. Claro que o novo integrante
aceita esses rituais de passagem com a perspectiva de ganho de
status futuro e poder se tornar um novo sádico ou fiscalizador da
entrada dos novatos.

2 - O MODELO CULTURAL: Nesse o status pessoal vem da parti-


cipação construção de um grupo social com características especí-
ficas, e quanto maior seu desenvolvimento em qualidade e quanti-
dade, melhor. Quanto mais bandas, mais e melhores eventos, mais
lojas, mais pessoas, melhor. Nesse caso você não é “grande” por
ser único ou parte de uma pequena elite, mas porque você faz parte
de algo grande e especial.
Nesse modelo a recepção de novos integrantes é de formação e inte-
gração. O que importa são os conteúdos culturais e visão de mundo
compartilhados, não a quantidade de pessoas que os compartilham.

Se queremos no futuro ter algo vagamente parecido com o que


vemos nas cenas e festivais góticos da Europa ou outros países da
América com cenas mais desenvolvidas, ou, pelo menos, desde já
ter uma vivência gótica e alternativa minimamente saudável, o mo-
delo que faz sentido é o segundo.

Até o século XIX as guerras eram feitas de uma forma que se tornou
suicida quando aplicada à realidade do século XX. Mudanças de
tecnologia e contexto histórico exigem que a mesma coisa seja feita
de forma diferente para que signifique a mesma coisa, ou para que
realize a mesma função social.

Também o modelo de subcultura ou tribo do século passado se tor-


na destrutivo ou elitista quando aplicado às dinâmicas subculturais
do século XXI, simplesmente porque o modelo do século passado
era adequado para a realidade daquela época, que era baseada em
relações geográficas locais e mídias de massa de mão única. Como
já vimos nos capítulos anteriores, o contexto social hoje é totalmen-
te outro.

Há muitas outras questões envolvidas a comentar, mas é preciso


começar a debater essa questão e atualizar o que entendemos por
“underground” e “subculturas alternativas” no século XXI.

142
13. EXISTE UMA IDEOLOGIA GÓTICA?
Muitos perguntam qual é a ideologia gótica. Isso é o mesmo que
perguntar qual a é a ideologia de movimentos artísticos como o Ro-
mantismo, Simbolismo ou Cubismo. A ideologia destes movimen-
tos está expressa no seu uso da estética, gerando uma visão e dis-
curso sobre o mundo. Melhor: oferecem um tipo de lente para ver
o mundo. Esperar uma ideologia do tipo “ideologia política” - ou
partidária - expressa em um manual é equivocado: a arte é extrema-
mente política, mas pelos seus próprios meios, estética e linguagem.

Roman Jacokbson explica isso com muito mais propriedade:

“Ora, todo signo é ideológico. Os sistemas semióticos servem para


exprimir a ideologia e são, portanto, modelados por ela. A pala-
vra é o signo ideológico por excelência; ela registra as menores
variações das relações sociais, mas isso não vale somente para os
sistemas ideológicos constituídos, já que a ‘ideologia do cotidia-
no’, que se exprime na vida corrente, é o cadinho onde se formam
e se renovam as ideologias constituídas. Se a língua é determinada
pela ideologia, a consciência, portanto o pensamento, a ‘atividade
mental’, que são condicionados pela linguagem, são modelados
pela ideologia.” (Roman Jacokbson, comentando Bathkin)
Assim, a ideologia ou os discursos góticos, as representações de
mundo góticas (ou como vocês preferirem chamar), estão expressas
claramente na história da construção de seu repertório de símbolos
e alegorias (sistemas semióticos ou de símbolos) que se organizam
como homologias (ver capítulo sobre homologia) em constante atu-
alização. Assim, esse sistema ou conjunto não é fechado e continua
incorporando novos elementos e se atualizando, deixando claro por
quê o gótico continua e continuará sendo necessário na sociedade
ocidental por muito tempo:

“O Gótico tem sido e permanece necessário à cultura ocidental


moderna, porque ele nos permite, no fantasmagórico de uma fic-
cionalidade descaradamente falsa, confrontar as raízes de nossos
seres em contraditórias multiplicidades (da vida se transformando
em morte aos gêneros se confundindo até o medo se transforman-
do em prazer e muito mais) e a definir nossos seres em oposição a
essas assombrosas contradições, ao mesmo tempo que nos senti-
mos atraídos por elas, tudo isso em um tipo de atividade cultural
que, enquanto o tempo passa, pode continuar inventivamente a
143
mudar seus fantasmas de mentira para que abordem anseios
e medos culturais e psicológicos mutáveis.” (Jerrold E. Hogle)
É preciso também lembrar que existe uma intensa propaganda ide-
ológica do mercado e mídia de massa sobre a “apatia da juventude”
e “desaparecimento das subculturas”, que busca nos convencer que
estes são processos naturais de nossa sociedade, e não uma luta de
convencimento constante entre uma ideologia que busca esvaziar
o sentido das culturas e a parte de nós que resiste a isso. Esmiu-
çamos essa questão que vai além das subculturas, mas aborda o
pensamento dominante hoje, o pós-modernismo como ideologia do
capitalismo de descarte, no capítulo Etnofobia.

Por ora, cabe o jocoso comentário em um artigo sobre subculturas,


que busca:

“chamar a atenção para um ativismo negligenciado ou marginali-


zado pelas jeremiadas (nota: papagaiadas) acerca da apatia políti-
ca da ‘juventude pós-moderna’, retratada (ou antes caricaturada)
em uma quantidade prodigiosa de filmes, reportagens, romances
e pesquisas patrocinadas pelo mercado ou universidades. A au-
diência estupefata e fiel de tais produções da indústria cultural
ou acadêmica não deixa dúvida: ninguém perderá dinheiro, apos-
tando em mais um relato alarmante sobre a geração das compras,
do êxtase e das raves – um presságio do apocalipse tantas vezes
adiado...” (João Freire Filho)
Então, adotar uma persona social gótica será sempre uma atitude
política? Para quem vê, sempre será, se é para você ou não, depende
de como você vivencia seu cotidiano subcultural. E afinal, qual seria
a ideologia – ou visão de mundo - gótica?

Não se pode dar uma resposta curta ou fechada a essa pergunta,


mas conhecendo o conjunto de elementos formadores do que cha-
mamos de gótico cada uma pode chegar a conclusões apropriadas.
Apesar de polissêmico (ter vários sentidos), o termo gótico não é
aleatório.

Por isso, lemos na parte sobre história e literatura sobre um pouco


da formação do imaginário daquilo que chamamos de gótico. Pois
“representação de mundo” é outro significado da palavra “ideo-
logia”. E é entendendo a estética e imaginário de um movimento
artístico ou cultural que aprendemos a ler sua visão de mundo.
144
PARTE 4:
CONTEXTO
SOCIOLÓGICO

145
1. GLOCAL: ETNOPAISAGENS
E DROMOCRACIA
Se o tempo é o principal campo de batalha da atualidade e a velo-
cidade o principal vetor de dominação cultural, fragmentação iden-
titária e expropriação de valor (Virilio, 1977; Trivinho, 2001, 2005)
um dos eixos de resistência das subculturas contemporâneas é a
produção orgânica - e logo mais lenta - de sua atualização e evo-
lução, internamente motivada, como já comentamos, e baseada na
sua integração homológica das áreas ou “esferas de conhecimento”
(Kurz, 1997).

Assim vemos que da mesma forma que no mundo pré-internet e lo-


cal as subculturas se apropriavam de elementos da cultura hegemô-
nica e os subculturizavam. Hoje os mesmos meios que possibilitam
a dominação global “dromocrática” (1) são utilizados pelos indiví-
duos para criar espaços de diferença subculturais que escapam as
leis e regras da velocidade crescente, fragmentação e descarte.

Assim, hoje o “... glocal é o vetor de articulação e modulação não


somente de todas as instâncias e setores sociais, mas também de
sua produção simbólica, imagética e material, nele se expressando
ou por ele passando (...) o glocal influi até mesmo, indiretamente,
nas formas de produção cultural que não são ou prescindem de ser
objeto de consideração por parte da agenda mediática”. (Trivinho,
2005)
Glocal é aquilo que é local e global ao mesmo tempo, como o que é
translocal é o que é local e distante ao mesmo tempo. O fato é que
tudo isso está real, presente, aqui e agora. A oposição real x virtual,
usada nos primórdios da internet, não faz mais sentido hoje.

Mas o uso consciente da realidade não presencial de forma a resistir


a ideologia embutida nesse meio supostamente neutro (tecnologia,
internet, velocidade, fragmentação e diluição de identidadades) é
uma opção cultural e subcultural que cabe a cada um.

O que é incontornável hoje, porém, é que nossa identidade (ou nos-


sas identidades) são formadas tanto local quanto translocalmente.
Nossas relações afetivas e de identificação cultural mais fortes po-
dem se dar online e com pessoas e culturas distantes geografica-
mente.
146
Essa realidade faz com que algumas visões tradicionais da etnogra-
fia sejam revistas. Se no passado “ir morar com os autóctones” era
a regra de ouro do antropólogo, hoje a convivência em um ambiente
urbano geograficamente limitado não vai nos dizer muito (ou tudo)
sobre um grupo cultural (ou subcultural) cujo “território” conceitual
não é sempre físico ou local.

Talvez os segredos e sentidos de determinada subcultura e suas


relações interpessoais, hoje, estejam escondidos muitas vezes nas
relações online, sendo as relações presenciais tomado o local do
espaço superficial em que uma subcultura ainda engana quem olha
de fora. Contudo, não nos enganemos: o entendimento da realidade
encontra-se aqui, lá e online ao mesmo tempo.

E mais: não encontraremos os indivíduos de determinada subcul-


tura todos em um só lugar: a maior parte do tempo eles estarão
geralmente espalhados, mas unidos digitalmente e ligados ao seu
espaço de diferença conceitual. Continuam sendo góticos, punks
ou headbangers, na multidão indefinida, como um brasileiro conti-
nua culturalmente brasileiro se perdido em uma ilha deserta ou em
um país estrangeiro. Se essas identidades serão puras ou não, cabe
questionar a existência de algo puro no reino do humano, tão pouco
platônico. Como disse o antropólogo indiano:

“Enquanto grupos migram, reagrupam-se em novos locais, recons-


troem suas histórias, e reconfiguram seus projetos étnicos, o ‘etno’
em ‘etnografia’ toma uma qualidade não localizada, deslizante, à
qual as práticas descritivas da antropologia terão que responder.
As paisagens de identidade grupal – as ‘ethnoscapes’ (2) - não são
mais objetos antropológicos familiares, ao mesmo tempo que gru-
pos não são mais firmemente territorializados, espacialmente uni-
dos, historicamente desprovidos de autoconsciência, ou cultural-
mente homogêneos”. (Appadurai, 2003)
Os grupos ligados digitalmente online têm esta característica des-
crita acima para culturas de migrantes: uma grande autoconsci-
ência cultural, necessária quando seu ambiente não é nem mais
homogêneo culturalmente nem geograficamente delimitado. Essa
autoconsciência cultural (ou subcultural) permanece, claro, mesmo
quando os indivíduos estão offline e sozinhos em meio a uma mul-
tidão que tem outras consciências culturais. Assim, faz com que a
questão da proxemia deixe de ser determinante na determinação
das identidades de grupo.
147
A “presencialidade” foi endeusada há algum tempo por teóricos
pós modernos como o suprassumo do pertencimento tribal tran-
sitório e fragmentário, como se isso fosse uma libertação de uma
suposta “escravidão” a culturas e identidades fechadas. Essas su-
posições são mais uma proposta ideológica ligada a propaganda do
capitalismo rentista de consumo e descarte contemporâneo.

Experiências sociais presenciais hoje serão mais significativas se


ligadas a uma vivência cultural ou subcultural mais ampla e inte-
grada, que geralmente acontece não apenas presencialmente mas
translocalmente. O que é virtual vem resgatar e religar o que a vida
urbana havia separado: o compartilhamento coletivo de crenças e
visões de mundo.

Dito de outra forma: se você não torce nem para o time X nem Y,
ou nem gosta de futebol, estar no meio da torcida no estádio não
integra você em um grupo social, nem o torna torcedor. Mas se você
for torcedor, continuaria sendo até mesmo sozinho com um radinho
de pilha em uma ilha deserta.

Essas meras experiências presenciais como as que acontecem em


uma feira de alimentos de bairro, multidão aglomerada em uma li-
quidação, flash mob de usuários de XPhone, fila de banco ou balada
genérica não indica uma intersecção cultural em torno de uma visão
de mundo escolhida (a não ser da própria cultura de fragmentação e
esvaziamento de sentido). A apologia destas vivências como “gru-
po cultural” ou “tribo pós-moderna” esvazia o conceito de grupo
cultural de características essenciais, e só faz sentido em uma so-
ciedade que fragmentou as áreas de conhecimento, esvaziando-as
de sentido.

O que é o contrário de uma subcultura ou cultura integrada.

(1) “Dromocrático” conceito usado por Virilio e Trivinho, significa “o governo


dos mais rápidos e aptos na sociedade tecnológica”. De “Dromos” (veloz, veloci-
dade) + “Kratos” (governo).
(2) “Ethnoscapes” é um neologismo desenvolvido por Appadurai de difícil tradu-
ção em nossa língua. Seria a mistura de “Ethno” com “LandScapes”, algo como
“paisagens étnicas” ou “ambientes étnicos”. Étnico, aqui, no sentido amplo de
cultura, não no sentido meramente biológico.

148
ETNOFOBIA: DEMONIZAÇÃO
DA IDENTIDADE CULTURAL
NO DISCURSO PÓS-MODERNO

Analisamos demonização do termo “Etnocentrismo” pelo discurso


pós-modernista. Buscamos demonstrar como este discurso depre-
cia os conceitos de cultura e identidade cultural em seu programa
ideológico coerente com o capitalismo tardio. Consideramos a exis-
tência uma nova forma de colonialismo cultural embasado no dis-
curso pós-moderno e de globalização cultural, um colonialismo que
equaliza e homogeneíza diferenças e alteridades e pode ser uma das
origens das regressões fundamentalistas e xenofóbicas do começo
do século XXI.

ETNOCENTRISMO: ETNOCÍDIO x ETNOFOBIA

A palavra “etnocentrismo”, cunhada no contexto do debate acadê-


mico, caiu no uso cotidiano. (CLASTRES, 1982, p. 52). Pierre Clas-
tres descreve a diferença entre etnocentrismo, etnocídio e genocídio.

“Denomina-se etnocentrismo a vocação para julgar as diferenças a


partir da sua própria cultura”. Por outro lado, “o termo etnocídio
acena não para a destruição física dos homens (neste caso perma-
neceríamos na situação genocidária), mas para a destruição de sua
cultura”. Assim, “o ocidente seria etnocidário, porque é etnocentris-
ta. Porque se pensa e quer ser ‘a’ civilização”. (CLASTRES, 1982, p.
55).

Aqui é importante ter clara a diferença entre os conceitos de cultura


e o de civilização. O destaque que Clastres coloca no artigo defi-
nido “a” antes de civilização indica que o problema é o ocidente
considerar que sua cultura é a ponta de lança do processo de civi-
lização. Não é mais necessário argumentar contra essa ideia na sua
forma passada.

Nossa intenção aqui é apenas deixar claro que cultura não é um ter-
mo singular nem é sinônimo de civilização. A antropologia já nos
ensinou que culturas diversas, muitas vezes, desenvolvem-se em di-
reções opostas. O que é avanço para uma pode parecer regressão
aos olhos de outra. Temos um exemplo no trecho abaixo de Davi
Kopenawa Yanomami:
149
“Os brancos são engenhosos, têm muitas máquinas e mercado-
rias, mas não têm nenhuma sabedoria. (…) Quando viajei para
longe, vi a terra dos brancos, lá onde havia muito tempo viviam
seus ancestrais. Visitei a terra que eles chamam de Europa.(...) eles
acabaram com suas florestas e sujaram seus rios. Agora só bebem
água ‘embrulhada’, que precisam comprar. (…) o pensamento
dos brancos está cheio de vertigens, (…) Eles não fazem mais que
dizer ‘Estamos muito contentes de rodar e de voar! Continuemos!
Procuremos petróleo, ouro e ferro! Os Yanomami são mentirosos!’
(…) Seu pensamento está cheio de esquecimento. Eles continuam
a fixá-lo em suas mercadorias como se fossem suas namoradas”
(YANOMAMI, 1999, p. 15-21).
Também é preciso ter clara a distinção entre Cultura como sistema
cultural de um grupo social e Cultura como erudição ou acúmulo de
conhecimento. Apenas por motivos de clareza, neste texto grafare-
mos a primeira com letra maiúscula.

Clastres nos explica que o etnocídio não é resultado direto nem


do etnocentrismo nem é resultado mecânico de todas as Culturas.
Mas, isto sim, o etnocídio seria uma necessidade que surge em de-
terminado tipo de sociedade e em dados contextos históricos.

“Pertence à essência da Cultura ser etnocentrista, na medida exata


em que toda Cultura se considera como a Cultura por excelência.
Em outros termos, a alteridade não é jamais apreendida como
diferença positiva, mas sempre como inferioridade sobre um eixo
hierárquico”. Mas “se toda Cultura é etnocentrista, somente a
ocidental é etnocidária”. Decorre daí que a prática etnocidária não
se articula necessariamente com a convicção etnocentrista, senão
toda Cultura seria etnocidária.” Então “o que faz com que a civi-
lização ocidental seja etnocidária?” E “pode-se colocar legitima-
mente (…) Ocidente como Cultura etnocidária, como sociedade de
Estado? Se fosse assim, compreender-se-ia porquê as sociedades
primitivas podem ser etnocentristas sem serem por isso etnocidá-
rias, pois são precisamente sociedades sem estado”.
(CLASTRES, 1982, p. 53-62).
MAS TODOS OS TIPOS DE ESTADO SÃO IGUAIS?

“O que contém a civilização ocidental, que a torna infinitamente


mais etnocidária que qualquer outra forma de sociedade? É seu re-
gime de produção econômica, (…) seja ele liberal e privado como
150
na Europa do Oeste ou planificado, de Estado, como na Europa do
Leste. A sociedade Industrial (…) é por isto mesmo a mais assus-
tadora máquina de destruição. Raças, sociedades, indivíduos, (…)
natureza, (...) tudo. (…) A escolha deixada a essas sociedades era
um dilema: ou ceder à produção ou desaparecer; ou o etnocídio ou
o genocídio”. (CLASTRES, 1982, p. 61).
Vemos, assim, que não são todos os tipos de Cultura e sociedade
que precisam praticar o etnocídio ou o genocídio. Culpar a cultura
ou a identidade grupal ou comunitária pelos males do genocídio ou
etnocídio seria o mesmo que culpar a vida pela existência de do-
enças: simplesmente tira o foco de atenção das causas específicas.
Podemos considerar a hipótese de que na segunda metade do século
XX o discurso etnofóbico avança também como função ideológica
de um processo de industrialização (terceira fase) e capitalismo de
consumo (seja ela de modelo estatal centralizado ou liberal descen-
tralizado, pois vemos a China avançar como “global player”). Este
processo chegaria ao extremo no final do século passado.

Cabe lembrar que o papel do conceito de cultura é totalmente di-


ferente na sociedade do capitalismo de produção (exemplo: século
XIX e começo do século XX) e do capitalismo de consumo e des-
carte (segunda metade do século XX e começo do século XXI).
Porém estas fases dependem dos estágios de desenvolvimento e
peculiaridades locais ao redor do globo. No Brasil, por exemplo,
vemos pontos de capitalismo de consumo ou descarte ao lado de
realidades do capitalismo de produção e muitas vezes um tecido
social permeado por realidades e valores pré-modernos.

Mas antes de considerar a validade desta hipótese, vamos analisar


alguns exemplos do discurso etnofóbico e anti-identitário.

ATAQUE AO CONCEITO DE CULTURA

Terry Eagleton define pós-modernidade como:


“uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de
verdade, razão, identidade e objetividade, a ideia de progresso ou
emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas
ou os fundamentos definitivos de explicação. Contrariando essas
normas do iluminismo, vê o mundo como contingente, gratuito,
diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas ou inter-
pretações desunificadas gerando um certo grau de ceticismo em
151
relação à objetividade da verdade, da história e das normas, em
relação às idiossincrasias e a coerência de identidades”.
(EAGLETON, 1998, p. 7).
Esta linha de pensamento estaria relacionada à mudanças concretas
no ocidente que emergiram concomitantemente a uma nova forma
de capitalismo e de indústria cultural no final do século XX (EA-
GLETON, 1998, p. 7). Também Fredric Jameson (2002) e David Har-
vey (2005) descrevem minuciosa e extensamente como o discurso
Pós-Moderno é a expressão ideológica do capitalismo tardio ou do
também chamado capitalismo pós-industrial.

Com o deslocamento de uma ética do trabalho para uma ética de


consumo e descarte, os valores sociais e de identidade passam a
ser os da transitoriedade, flexibilidade, inconstância, efemeridade,
fragmentação, ausência de regras, de padrões e de limites. O capi-
talismo de consumo adota os valores do hedonismo transfigurado
em cartões de crédito sem limites e valores sociais claramente ho-
mólogos ao capitalismo de capital especulativo e ao consumismo
de descarte.

Terry Eagleton comenta que “o pós-modernismo, em suma, rouba


um pouco da lógica material do capitalismo avançado e a volta
agressivamente contra seus fundamentos espirituais” (EAGLETON,
1998, p. 129). Mas essa liberalidade de consumo e crédito não cor-
responde automaticamente a um liberalismo nas relações humanas,
abertura ao diálogo e no reconhecimento do outro:
“Apesar de toda a sua tão alardeada abertura para o Outro, o
pós-modernismo pode se mostrar quase tão exclusivo e crítico
quanto as ortodoxias a que ele se opõe. Pode-se, em geral, falar
da cultura humana mas não da natureza humana, de gênero, mas
não de classe, do corpo mas não da biologia, de fruição, mas não
de justiça, do pós-colonialismo, mas não da burguesia mesquinha.
Trata-se de uma heterodoxia de todo ortodoxa, que como qualquer
forma imaginária de identidade precisa de seus bichos-papões e
alvos imaginários para manter-se na ativa. (…) Embora inspire-se
no espírito crítico, raras vezes o usa para tratar das próprias
proposições”. (EAGLETON, 1998, p. 34-35).
O discurso pós-moderno busca se opor a uma modernidade que ele
mesmo forja (Eagleton, Jameson, Harvey), de forma semelhante a
que o discurso do Renascimento e do Iluminismo rejeitavam uma
152
Idade Média que era unificada exatamente por seus discursos.

Mas a modernidade apresenta as características que a Pós-Moder-


nidade lhe imputa?

Por exemplo, Bauman estabelece que “a noção de Cultura foi cunha-


da segundo o modelo de fábrica de ordem” (BAUMANN, 1998, p.
163). A descrição de Cultura da modernidade que o autor faz se pa-
rece muito com uma fábrica fordista, tanto que este é um exemplo
usado por ele. Em substituição a esta Cultura, propõe uma nova
metáfora: em vez de Cultura, uma “cooperativa de consumidores”
(BAUMANN, 1998, p. 168). Compreende-se o subtexto: o Mercado
seriam hoje a única Cultura válida e as Culturas locais deveriam ser
apenas culturas com c minúsculo, todas igualmente niveladas na
sua insignificância. Um multiculturalismo de igualdade negativa,
como veremos adiante.

Mas teria sido a Cultura no Iluminismo ou Modernidade um homo-


gêneo conceito de “fábrica de ordem”? Seriam a modernidade, o
iluminismo e o capitalismo entidades homólogas?

Ellen Wood comenta que “tornou-se o auge da moda atacar o cha-


mado projeto iluminista. Supõe-se que os valores iluministas (…)
estejam na raiz dos desastres que abalaram a humanidade ao longo
de todo este século’’, (…) das guerras mundiais e do imperialismo
até a destruição ecológica.” E acrescenta que “estamos sendo soli-
citados a jogar fora tudo o que há de melhor no projeto iluminista-
especialmente seu compromisso com a emancipação humana uni-
versal- e a responsabilizar esses valores pelos efeitos destrutivos
que deveríamos atribuir ao capitalismo” (WOOD, 2001, p. 120).
Assim, a estratégia retórica contra a cultura e as identidades cultu-
rais ressaltada por Clastres no caso do uso indevido do termo et-
nocentrismo, aparece como um exemplo de uma estratégia geral de
um discurso ideológico que usa este argumento sistematicamente,
acusando o projeto modernista de todos estes males.

CAVALO DE TROIA: O QUE ESTE CONFLITO ESCONDE?

Mas o que o discurso pós-moderno busca esconder? Que é - em sua


totalidade - uma parte da modernidade. Mas qual parte?

Todorov, em “Nós e os Outros” (1993, p. 32-41) já descreve as di-


153
ferenças entre as correntes Humanistas e Cientificistas no seio do
Iluminismo. Ellen Wood (2001) salienta também que “a ideologia
burguesa francesa do século XVIII teve pouco a ver com o capitalis-
mo e muito mais com as lutas em torno de formas não capitalistas
de apropriação”. (WOOD, 2001, p.118)
Já a Inglaterra estava “em meio a um processo de criar um capi-
talismo industrial”. Todavia, “quais eram as expressões culturais
características do capitalismo inglês no mesmo período? Não o ra-
cionalismo cartesiano e o planejamento racional, mas a ‘mão invisí-
vel’.” Pois “a ideologia (…) que distinguiu a Inglaterra (…) foi (…)
a ideologia do ‘melhoramento’: não a ideia iluminista do aperfei-
çoamento da humanidade, mas o melhoramento da propriedade, a
ética (…) do lucro.”
Assim, “se quisermos procurar as raízes de uma ‘modernidade’ des-
trutiva- digamos, a ideologia do tecnocentrismo e da degradação
ecológica - podemos buscá-los no projeto do ‘melhoramento’, na
subordinação de todos os valores humanos à produtividade e ao
lucro, e não no iluminismo.” Portanto, “a ideia de pós-modernidade
deriva de uma concepção da modernidade que, no que tem de pior
torna o capitalismo historicamente invisível, ou, para dizer o míni-
mo, torna-o natural” (WOOD, 2001, p. 113-123).
Não se trata, assim, de uma questão do indivíduo estar preso a uma
Cultura ou a uma identidade, em oposição a um indivíduo suposta-
mente livre e sem Cultura. Trata-se de uma luta política e ideológica
entre dois (ou mais) tipos de Cultura e de Civilização. E de uma
defesa, por parte do discurso pós-moderno, de uma nova forma de
civilização que precisa eliminar as demais Culturas como entidades
geradoras valores e significados.

Mas como se dá este novo colonialismo Cultural, que paradoxal-


mente, ostenta um discurso de diversidade e sincretismo cultural?
“O neoliberalismo, com sua ênfase no mercado e no consumo, não
é apenas uma questão econômica, é uma nova forma de civiliza-
ção. A atual impossibilidade ou falta de credibilidade de histórias
universais ou mundiais não é postulada por uma teoria pós-mo-
derna, mas pelas forças econômicas e sociais a que geralmente nos
referimos como globalização” (MIGNOLO, 2003, p. 47)
Grifo nosso.

154
O etnocídio praticado pelo colonialismo tradicional visava destruir
(ou “civilizar”) outras Culturas de forma material e grosseira. Po-
rém, nos últimos 50 anos ou mais, os centros mais avançados da
Cultura econômico industrial já realizaram no seio de suas próprias
sociedades uma cisão e redução da esfera da cultura para um cam-
po não significativo, reduzido apenas a entretenimento, lazer ou
erudição.

Por isso hoje temos acesso a todos os livros e produção cultural,


mas ela nos desperta pouco ou nenhum interesse.

UM NOVO COLONIALISMO SEM “VALORES CULTURAIS”

Assim, a igualdade que a civilização industrial econômica estabe-


lece como “vantagem” para Culturas historicamente subalternas, é
um cavalo de troia. Essa igualdade entre Culturas é oferecida exa-
tamente no momento em que a Cultura dos países da vanguarda
industrial já foi reduzida a apenas cultura, a não valor e não-sig-
nificado pelo seu próprio novo modelo de Cultura Economificada.
O que vem na barriga desse cavalo? O modelo de cisão das esferas
de conhecimento com estabelecimento da esfera econômica como
valor único e central de articulação e significado.

Esta é a nova Cultura e civilização colonialista que busca abarcar o


globo com suas estruturas e narrativas. Isso é “ser civilizado” hoje
e o discurso pós-moderno é a ponta de lança deste novo processo
“civilizatório” do novo colonialismo global. Um colonialismo sem
nações. Seguem-se as novas cruzadas contra as “primitivas” socie-
dades de Cultura integrada e “indivíduos atrasados” de identidades
definidas e peculiares. Pois para a pós-modernidade as Culturas se
tornaram algo primitivo, algo para se visitar no museu ou no zooló-
gico: temos aí o retorno de um discurso teleológico.

Porém, em oposição ao discurso de eliminação das narrativas uni-


versais que buscam esconder a existência de uma única narrativa
global que pela sua hegemonia já se naturalizou tanto que não pre-
cisa mais ser enunciada, existe “a forte necessidade de construir
macronarrativas na perspectiva da colonialidade. Essas narrativas
não são a contrapartida da história mundial ou universal (…) mas
uma ruptura radical com tais projetos globais. Não são (…) nem
narrativas revisionistas nem narrativas que pretendam contar uma
verdade diferente, mas, sim, narrativas acionadas pela busca de uma
lógica diferente” (MIGNOLO, 2003, p. 47).
155
Como, por exemplo, a narrativa de Davi Yanomani citada anterior-
mente.

NOVAS FORMAS DE CONTROLE SOCIAL:


O INDIVIDUALISTA SEM INDIVIDUAÇÃO

Até os anos de 1970, aprendemos a considerar natural ser da natu-


reza do poder homogeneizar os grupos que controla. Vimos isso
na formação do estado-nação capitalista ocidental. Todavia, nos úl-
timos 40 anos a sociedade industrial entrou em nova fase. Neste
“mundo pós-industrial onde os consumidores são incitados a indi-
vidualizarem-se e onde as operações de poder parecem favorecer a
classificação e a segregação, é difícil ver a diferença como necessa-
riamente progressiva.” (THORTON, 1995, p. 191)
Se o poder moderno se dava pela homogeneização, já o poder e o
controle social pós-moderno é exercido pela compulsoriedade da
mudança e educação para que todos se transformem em “coletores
de sensações” (Baumann) de forma relaxada e bem-humorada em
uma “sociedade humorística” (Lipovetsky). O hedonismo (quando
ligado a um tipo específico de sujeito, como veremos adiante), junto
ao consumismo, anomia e descartabilidade, são as várias faces da
nova forma de controle social.

As formas de controle sociais contemporâneas buscam privar os


indivíduos da capacidade de constituir discursos significativos gru-
pais e historicamente embasados. Ao mesmo tempo que a Cultura
economificada padroniza a estrutura das sociedades ao redor do
globo -tanto em relação a modos de produção quanto e relação
a concepção de cultura como uma esfera não significante- o mer-
cado implanta um sistema de mudança compulsória que permite
uma fantasia de mudança e identidade individual. O indivíduo pode
consumir roupas ou cultura indiana, brasileira, tailandesa, russa ou
francesa, comer em fast-foods de todas estas nacionalidades e en-
contrar livros de autores destas origens na livraria mais próxima.
Também pode mudar de discurso e moralidade a qualquer instante,
mas esta multi-culturalidade é equalizada e homogeneizada:
“Forjada como um recurso do gosto ocidental, a equalização se
transforma em um procedimento de hibridização tranquilizadora,
redução dos pontos de resistência de outras estéticas musicais
e resistência aos desafios que trazem culturas diferentes. Sob a
aparência de uma reconciliação amável entre culturas, se escon-
156
de a simulação de que podemos estar perto dos outros sem nos
preocuparmos em entendê-los. (...) como tantas superproduções
cinematográficas transnacionais, a equalização é na maioria das
vezes uma tentativa de climatização monológica, de acomodamen-
to acústico em meio ao estrondo do mundo.” (CANCLINI, 2009)
O que é dito sobre música, pode ser estendido a toda lógica cultural
e ideológica. O indivíduo pós-moderno já tem uma outra Cultura,
que julga ser a Civilização, que lhe faz acreditar que nada disso
tem importância, a não ser como lazer, ou outro tipo de produto.
O máximo que pode fazer, realmente, é se identificar com alguma
“cooperativa de consumidores” (Bauman).
O novo colonialismo global exporta um conceito de Civilização
(uma Cultura) ou sociedade em que toda produção cultural - além
de não significativa - é também equalizada e homogeneizada. E,
por isso, mantida em uma esfera separada e submetida ao nexo
único do valor econômico.

O conceito de “cultura” não interessa mais para a vanguarda do


desenvolvimento econômico capitalista. Os valores culturais do
capitalismo tradicional (de produção) são algo que a ideologia do
capitalismo atual (de consumo e descarte) procura combater. Nada
estorva mais o capitalismo – ou o socialismo avançados - de con-
sumo do que a lógica de apego a qualquer valor que não o valor
econômico acelerado e cambiante. Sem dúvida, do ponto de vista
do colonizador que visa converter todos os “índios” do mundo a
sua única “Cultura Civilizada”, a resistência destes aparece como
lamentavelmente “reacionária”.

Neste sentido, Zizek descreve o multiculturalismo como a expres-


são ideológica do atual capitalismo global:
“essa atitude que, a partir uma posição global oca, trata todas e
cada uma das culturas locais da mesma forma que o colonizador
costuma tratar seus colonizados: “autóctones” cujos costumes
deve-se conhecer e ‘respeitar’. A relação entre o velho colonialis-
mo imperialista e a atual autocolonização do capitalismo global
é a mesma que existe entre o imperialismo cultural ocidental e o
multiculturalismo.
Da mesma forma que o capitalismo global supõe o paradoxo da
colonização sem Estado-Nação colonizador, o multiculturalismo
157
promove a distância eurocêntrica e/ou o respeito em relação às
culturas locais não europeias. Isto é, o multiculturalismo é uma
forma inconfessada, invertida, autorreferencial de racismo, um
‘racismo que mantém as distâncias’: ‘respeita’ a identidade do
Outro, o concebe como uma comunidade ‘autêntica’ e fechada em
si mesma, a respeito da qual ele, o multiculturalista, mantém uma
distância assentada sobre o privilégio de sua posição universal.
O multiculturalismo é um racismo que esvaziou sua própria po-
sição de todos os conteúdos positivos (o multiculturalista não é
diretamente racista, pelo fato de não contrapor ao outro os valores
particulares de sua cultura), mas, não obstante, mantém sua posi-
ção enquanto privilegiado ponto oco de universalidade a partir do
qual ele pode apreciar (ou depreciar) as outras culturas”
(ZIZEK, 2008)
O mesmo processo que Zizek descreve no aspecto social e cultural,
Freitas descreve na sua expressão individual eu/outro e psicológica:
quando a diferença é o fundante, não há identidade para fundar uma
relação de igualdade e respeito pela particularidades do outro como
sujeito e

“Na perspectiva oposta, a diferença é componente dialético da


identidade. A identidade é incluída com parte da definição da dife-
rença. Na realidade, não há identidade sem diferença nem diferen-
ça sem identidade. Ou seja, o indivíduo é produto desta dialética
que resulta na sua particularidade. O que se reivindica para o indi-
víduo não é a pura diferença (que fragmenta) mas sua particulari-
dade (que une, porque expressa a sua diferença na identidade). As
particularidades podem expressar mais diferença ou mais identi-
dade ante outras particularidades, mais ou menos contradição e
eventualmente até antagonismos. A ideia de que o idêntico repri-
me o diferente subestima e exclui o sujeito (e sua subjetividade)
da construção de sua própria particularidade e termina sendo um
mecanismo de justificação do individualismo, abrindo igualmente
uma via de justificação para o autoritarismo”
(FREITAS, 2004, p. 141).
Em ambos os níveis vemos a destruição ou negação da particula-
ridade da identidade. A diferença como fundante é apenas uma
paráfrase do vazio colonizador do multiculturalismo. Ambos tem a
incapacidade de se relacionar com o outro como sujeito com suas
particularidades, exatamente pela incapacidade de estabelecer uma
158
verdadeira relação dialética. A incapacidade de verdadeiro antago-
nismo é sintoma desta situação.

Longe de ser uma “psicologização”, que nega processos sociais e


econômicos materiais, esta constatação visa apenas apontar que
modelos sociais e econômicos produzem e são reproduzidos -em
massa- por discursos ideológicos constituintes de traços psicológi-
cos que se manifestam em toda população destas... Culturas. Traços
e discursos que, se não são homólogos àqueles modelos sócio-e-
conômicos, pelo menos são convenientemente complementares e
divulgados pelo discurso ideológico destas Culturas ou Ideologias
como “naturais” ou “saudáveis”.

Fica a pergunta: então, o que pode fundamentar o ódio homicida


(ou etnocida) ao outro?

DO OCO E APATIA DO SUJEITO PÓS-MODERNO


À XENOFOBIA E EUGENIA

O modelo socioeconômico nos dá uma resposta parcial. Este mo-


delo tem produzido um tipo de sujeito que produz um discurso in-
congruente, em uma fala multiculturalista que pode sustentar um
isolamento e ódio ao diferente. Para tentar elucidar este paradoxo,
podemos relacionar duas ideias de Eugène Enriquez: “A renovação
do individualismo tem, por fim, suprimir o sujeito e a vida interior”
(ENRIQUEZ, 1994, p. 42) e “o ódio inconsciente de si é projetado
sobre os outros, donde um desenvolvimento da xenofobia e do ra-
cismo.” (ENRIQUEZ, 1994, p. 49). Enriquez nos explica:
“Esse ódio inconsciente de si vai ser tão forte que os indivíduos
não poderão se representar como causas de si próprios (...) quando
os indivíduos estão nesta situação, (...) por um processo de contra
investimento, são aprisionados em fantasias de ‘renascimento e de
auto-engendramento de tonalidade megalomaníaca”.
(ENRIQUEZ, 1994, p. 50)
“Podemos ter aí o modelo de sujeito que sustenta os sintomas de
xenofobia e eugenia na pós-modernidade, intimamente ligados aos
sintomas de anomia e hedonismo. Estes dois últimos termos se-
riam um prêmio e sinais de liberdade para um indivíduo com uma
interioridade estruturada, mas, em um contexto socioeconômico
que exige a criação de identidades compactas que sejam totalmen-
te mutantes, submissas e exteriormente pragmáticas,
159
essa anulação de-si só é suportada pela compensação sádica do
ódio ao outro que é o que é (ódio aquilo de que somos privados)
e um consumismo e hedonismo compensatórios.
(ENRIQUEZ, 1994, p. 41- 55)
Assim, o discurso pós-moderno de “cultura como conceito reacio-
nário” e de “identidades definidas como malignas” pode ser lido
como um discurso ideológico que busca criar uma justificação ou
racionalização para um modelo de indivíduo adequado e submisso
ao modelo de sociedade industrial e economificada contemporâ-
nea, baseada na descartabilidade e consumismo.

Também podemos entender melhor o recrudescimento de radica-


lismos e movimentos xenófobos exatamente no seio de sociedades
que teoricamente estão adotando o discurso multiculturalista pós-
-moderno.

Como já foi dito, da mesma forma que o modelo de estado indus-


trial destruiu primeiro as culturas dos grupos sociais para depois
exportar um modelo economificado de igualdade cultural “cavalo
de troia” em que a cultura não importa (é substituída pela cultura
“igualitária” industrial consumista), também a igualdade com o ou-
tro existe em um contexto em que primeiro o eu já não existe senão
como exterioridade.
Nas palavras de Eugène Enriquez:
‘Apagar, destruir toda possibilidade de ser tocado’ (M. Enriquez),
tal é o ser apático que é movido não somente pelo processo de
contra-investimento (...) mas igualmente por um processo de de-
sinvestimento letal que visa, como escreve P. Auligner, ‘à destrui-
ção da atividade de ligação e de articulação de sentido’. Compre-
ende-se, então que todos aqueles que buscam articular sentidos,
todas as ‘minorias ativas’, todos os ‘exotas’, todos os ‘marginais’,
todos os ‘estrangeiros’ (…) possam se tornar objeto de ódio ou,
pelo menos, de desprezo por parte de todos que vivem na certeza
e não na ‘perturbação de pensar’ (ENRIQUEZ, 1994)
Assim, a igualdade oferecida ao outro é apenas outro cavalo de
troia: um rebaixamento ao mesmo nível de não-identidade e sub-
missão que eu, do mesmo tipo que a igualdade cultural pós-moder-
na oferece para as culturas peculiares. Obviamente, se outro insistir
em “ser” e não se submeter a mesma anulação identitária que já
aceitei e suporto, ele merecerá todo meu ódio.
160
CONSIDERAÇÕES FINAIS E O INDIVIDUALISTA ABELHA

Da reflexão aqui desenvolvida podemos inferir que o etnocentris-


mo, as culturas integradas, as identidades culturais ou individuais
e peculiares não podem ser consideradas causas diretas, únicas ou
principais de fenômenos como o etnocídio, o genocídio ou o ódio
aniquilador ao outro.

Ao mesmo tempo percebemos que o etnocídio, genocídio ou ódio


aniquilador do outro são também possíveis e, talvez, até mais pro-
váveis, em um mundo de valores economificados sob a hegemonia
do discurso anticultura e anti-identidade.

Também, apesar das identidades nacionais desenvolvidas no esta-


do-nação - como ele existiu na fase anterior da industrialização - te-
rem beneficiado o consumo de massa, não podemos mais nem dizer
que todo tipo de identidade cultural serviu historicamente a formas
de capitalismo, nem considerar que hoje as identidades culturais
ainda sirvam a tal propósito, visto que a fase contemporânea do
capitalismo de consumo se baseia mais na mudança, diferenciação
e em um consumidor sem caráter ou identidade definidos.

As tentativas de relacionar culturas e identidades integradas com os


males do etnocídio, do fascismo ou do capitalismo são hoje mais
recursos retóricos usados para forjar um discurso de distração e de
retirada do foco de discussão das causas e contextos específicas
destes fenômenos.

Finalmente é importante não confundir o individualismo clássico


com o individualismo “de abelhas”. O individualista clássico era
assim exatamente por valorizar sua identidade, crenças e valores
pessoais: o seu individualismo era resultado de um processo de in-
dividuação ou autoconhecimento. Já o individualismo “de abelha”
é apenas um egoísmo vazio, uma competição entre abelhas iguais
pela sobrevivência, um retorno da lei do mais forte (ou mais rápido
e sem ética) em que exatamente se abre mão de sua identidade,
crenças e valores pessoais.

Sem ethos ou sem ética, restam as abelhas.

161
BIBLIOGRAFIA GERAL
& SUGESTÕES DE LEITURA

(não inclui algumas obras já citadas ao longo do livro)

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BIOGRAFIA DO AUTOR

Henrique Antonio Kipper nasceu no inverno de 1970, e frequenta a cena gótica


de São Paulo desde 1990, e a partir de 2003 passou a ser DJ, depois produtor de
eventos Góticos junto com sua esposa Flávia, como o Projeto Absinthe e outros,
também co-fundadora do site (desde 2008) Gothic Station. Desde 2017 é editor
geral da primeira revista gótica brasileira, a Gothic Station.

Paralelamente fez carreira nas artes aplicadas e imprensa desde 1988 como de-
senhista, ilustrador, cartunista e roteirista, publicando nas maiores revistas e
jornais do Brasil e Portugal. Organizou coletivos artísticos como o FRONT e foi
seu co-editor (1998-2003), premiada série mix de HQ autoral e artes gráficas.
Graduado em Letras e Literatura, é também apaixonado pelas Ciências Sociais.

Criador das séries de quadrinhos Mondo Muerto e Escola de Deusinhos.

Publicou, de sua autoria:

A Happy House in a Black Planet 2: Introdução à Subcultura Gótica (2018)


Mondo Muerto 2: Contra o Planeta dos Palhaços, quadrinhos (2016)
A Salamanca do Jarau- Adaptação de Simões L. Neto em quadrinhos (2015)
Mondo Muerto, quadrinhos (2014)
A Happy House in a Black Planet: Introdução à Subcultura Gótica (2008)

Participou com HQs, ilustrações ou Contos:

FRONT 15 Anos, organizador (2016)


“A Peste”, conto, em Mundo de Fantas, org. Celly Borges (2015)
“O Marsupial”, conto, em Noites Sombrias, org. Raquel Pagno (2015)
FRONT, quadrinhos, textos e edição, edições 7, 8, 9 e 10 (2001-2004)
Escola de Deusinhos, quadrinhos, Folhinha (2001-2002)
Folha de S. Paulo (1994-2004)
Chargista, revista Focus, Portugal (2000-2002)
Jornal Público, Portugal, ilustrador (1999-2002)
Mil Perigos, quadrinhos (1995)
Dragon, quadrinhos (1994)
Sport Gang, quadrinhos (1990-1994)
Paranoia, ilustrações de quadrinho, Malibu Comics, USA, 1990
James Jeans, tira de quadrinhos, Zero Hora, Diário Catarinense, etc (1989-1994)
Charges e quadrinhos, Gazeta do Sul e Alto Falante (1987-1989)

www.gothicstation.com.br/
www.facebook.com/hakipper/
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