Cássio Pires
Mais Um
2º lugar – Concurso Nacional de Dramaturgia – Prêmio Plínio Marcos.
Menção Honrosa no Concurso Nacional de Dramaturgia da Cidade de Belo Horizonte.
Para Ana Roxo e Erica Montanheiro,
que não me deixaram sozinho na estação.
Eu gosto muito que as personagens se cruzem porque é isto que acontece na
vida. Todos os dias eu cruzo com pessoas sem saber que são pessoas que eu
posso vir a conhecer. Neste instante, aqui neste Café, nós estamos sentados de
costas para estes desconhecidos. Depois, cada um vai se levantar, partir no seu
caminho e não reencontraremos mais estas pessoas. Ou, se reencontrarmos, jamais
saberemos que não foi a primeira vez.
Krysztof Kieslowski
Personagens:
. Estrela
. Produtor
. Senhora
. Contraventor
. Cúmplice
. Técnico
. Poeta
. Funcionário do Metrô
. Fantasma
Cena:
Ação:
Prólogo
POETA. Você... Você, que eu nem conheço, mas que agora cruzou meu caminho.
Eu queria te dizer uma coisa. Eu posso?
(O espectador autoriza)
POETA. O que eu tenho pra te dizer é uma idéia. Talvez menos que isso. Uma idéia
sem explicação, idéia sem idéia, sabe?
(O espectador reage)
POETA. É que nem a palavra saudade ou que nem o amor, entende? Ninguém
consegue explicar o que é, mas todo mundo sabe o que significa... Tem a ver com a
multidão, com esse monte de gente que cruza o seu caminho, do mesmo jeito que
você cruza o deles... Imagina uma noite qualquer. Nessa noite, você sai de casa e
tem um destino. E aí você caminha e entra, por exemplo, num metrô. Ali, você flerta
com uma pessoa, com duas as vezes. Dali a pouco você tem medo de um sujeito
que acha que vai te assaltar. Antes disso, você invejou alguém que tem um gosto
pra se vestir melhor que o teu. E viu uma moça que te lembra alguém que você não
lembra quem é. E sentiu dó de um cego que pedia esmola. E teve raiva de um cara
que trombou em você. E quis saber no que ia dar a discussão de um casal, mas eles
saem do vagão antes que você saiba o fim daquela novela. Enquanto isso, no meio
da multidão, alguém te olhou e você nem percebeu. Aí sua viagem termina. Você
chega onde queria chegar. E é isso o que a gente chama de um dia normal.
Nenhuma daquelas pessoas que cruzaram seu caminho mudou em nada a sua vida.
E você, do mesmo jeito, não mudou em nada a vida de ninguém. E você fica
imaginando o que podia ter sido. E aí, é só isso. A vida segue. E fica um não-sei-
quê, uma sensação de que você perdeu alguma coisa, que escapou de outras e que
devia ter notado outras ainda, só pelo prazer de notar... Bem, tentei te explicar a
minha idéia. Além disso, não sei ir. Viu só? Idéia sem idéia, dessas coisas difíceis de
explicar e fáceis de entender...
1.
Todos os espaços
2.
Linha verde
3.
Linha vermelha
4.
Linha Azul
(Luz sobre o vagão da linha azul. A ESTRELA e o PRODUTOR lado a lado. Ele está
bastante desarrumado, com um pedaço da camisa rasgado.)
PRODUTOR. Ridículo!
ESTRELA. Calma.
PRODUTOR. É um absurdo! Eu vou embora desta bosta de lugar! Vou pro Rio!
ESTRELA. Senta aí.
5.
Linha verde
FUNCIONÁRIO. Não, não. Agora é pessoal. Deu minha hora. Chega de trabalhar.
FUNCIONÁRIO. PKS.
6.
Linha vermelha
(O CONTRAVENTOR, agitado, abre uma das apostilas e finge que está lendo)
7.
Linha Azul
PRODUTOR. Então ligue pra ela a hora em que chegar em casa e manda ela se
foder.
PRODUTOR. Se ela não previu que ia aparecer uma vadia no farol metendo uma
arma na minha cara e ia levar meu carro, meu celular e minha grana então ela não
presta.
PRODUTOR. Menores! Você sabe quanto custa o meu carro? Você sabe quantos
shows vai ter que fazer pra conseguir o dinheiro que compra o meu carro?
Menores...
ESTRELA. Todo mundo é assaltado aqui um dia. Não preciso que nenhuma
cartomante me diga que isso pode acontecer comigo.
PRODUTOR. (acaba obedecendo) Pra você é fácil. (respira) Qual o nome da sua
cartomante?
ESTRELA. Deixe a mulher em paz. Amanhã você aciona o seguro do carro, cancela
a linha do celular e os cartões e tá tudo certo.
PRODUTOR. Você não entende. É muito mais que isso. Uma parte da minha vida foi
embora com aquele carro!
PRODUTOR. É isso mesmo. Eu sou um cara que optei por não ter filhos exatamente
pra ter carros. Importados, bonitos, caros. Eu batalhei por isso. Eu prefiro investir
meu dinheiro em revisão do que em mensalidade de colégio particular. Meus carros
têm apelidos, entende? Mais que apelidos: tem nome. Cada um dos meus cinco
carros me dá um prazer diferente, recebe um tratamento especial. Não adianta me
olhar com essa cara de desprezo. Eu sei que você jamais vai entender isso. Mas
você numa correu num rachão em Interlagos e por isso não tem como entender o
prazer que eu tenho em cuidar dos meus carrinhos. Vocês mulheres são insensíveis
com os carros. Enchem-nos com crianças babonas que ficam colando merda de
nariz no estofamento, sujam o piso com gergelim do Big Mac, com folhetos
promocionais, com sacola do Pão de Açúcar que deixa o couro do assento fedendo
lingüiça e sorvete napolitano! Estouram a lateral manobrando do lado de coluna de
garagem, não sabem engatar a ré direito, fodem toda a embreagem e tudo isso
porque não entendem que o carro é muito mais que um objeto! Que ele é uma
máquina sensível, que precisa de carinho e atenção.
(silêncio)
PRODUTOR. Metrô é trem! Oras. Odeio trem! Odeio metrô! Odeio transporte
público! Eu dô duro pra andar de carro importado, aí vem uma vagabunda e nem pra
me deixar com cinqüenta paus pra pegar um táxi!
PRODUTOR. Você vai me dar conselho agora? É isso? Você já percebeu quem é
quem aqui?
ESTRELA. Desculpa.
8.
Linha verde
FUNCIONÁRIO. Licença...
FUNCIONÁRIO. Escrevendo?
TÉCNICO. Tentando...
FUNCIONÁRIO. Descansar?
(pausa)
FUNCIONÁRIO. Que nem seu caso... eu posso te dizer boa viagem, torcer de
verdade por você, só por que fui com a tua cara, entende? Mas daqui a pouco você
vai sair daqui e eu nunca vou ter a oportunidade de te perguntar se tua viagem foi
boa.
FUNCIONÁRIO. É claro, talvez a gente volte a se cruzar. Mas aí eu não vou lembrar
da sua cara, nem você da minha.
TÉCNICO. Será?
FUNCIONÁRIO. Pode acreditar. Tô há dez anos nisso aqui. É uma tristeza esse
negócio de viver a vida dos outros em pedaço. A sua acaba ficando meio assim
também.
TÉCNICO. Imagino.
FUNCIONÁRIO. Pode acreditar em mim: quando a pessoa passa uma porta dessas,
você perdeu ela pra sempre.
TÉCNICO. Brigado.
(O FUNCIONÁRIO deixa o vagão. O CONTRAVENTOR fecha a apostila e relaxa o
corpo)
9.
Linha vermelha
10.
Linha azul
11.
Linha verde
(O TÉCNICO faz uma última tentativa de começar seu texto. Desiste. Guarda o
bloco de notas. Verifique se alguém o observa. Procura algo pelos bolsos do terno.
Encontra um espelho de mão. Por um tempo, estuda o próprio rosto. Começa a
remexer nos bolsos novamente. Encontra uma foto. Observa sua imagem e começa
a compará-la com a foto.)
12.
Linha Vermelha
13.
Linha Azul
PRODUTOR. Não.
ESTRELA. É que eu tenho que fazer o cabelo, manicure, me vestir com calma, fazer
maquiagem... era bom eu me programar e...
PRODUTOR. Amanhã eu resolvo isso. Não precisa me contar sua saga. Já fiz isso
trezentas mil vezes.
14.
Linha verde
(Sinal de aviso de abertura das portas. A porta se abre. Entra a SENHORA. Ela
senta-se diante do TÉCNICO. Observa-o discretamente)
15.
Linha vermelha
CONTRAVENTOR. Não.
CONTRAVENTOR. Não.
(A POETA se levanta, rasga uma das cópias dos poemas que tem em mãos e joga
uma parte amassada no chão. Pára diante da porta)
(Ela sai)
16.
Linha Azul
ESTRELA. Fala.
PRODUTOR. Desiste.
PRODUTOR. Desiste.
PRODUTOR. Acompanha meu raciocínio: você não canta mais que ninguém. Por
sinal, você canta mal como todo mundo. Tua música é igual a qualquer coisa que tá
tocando por aí. Fora isso, você não tem o perfil... você é inteligente demais pra ser
cantora, é sensível a flashes, tem tendência a engordar, vai ter que passar a vida
lutando contra isso, não tem paciência com estranhos, portanto não vai ter paciência
com fãs. Você acha que o pessoal do estúdio foi cínico com você, isso quer dizer
que você percebe as coisas cedo demais. Isso não é bom. Você conhece alguma
coisa de música, dá sugestões pra banda, dá palpites. Isso também não é bom.
Você tende à sinceridade. Isso pode dar problemas em entrevistas. Existe um roteiro
de expectativas, entende? Não. Você não entende isso. Então faça o que digo, é pro
seu bem: aproveite seus dias de fama, case-se linda, depois engorde a vontade e
curta uma vida de esposa discreta.
PRODUTOR. Faz uma faculdade, atende os jornalistas que aparecem, escreve uma
auto-biografia, um livro de auto-ajuda, funda uma ONG, vira embaixatriz da ONU...
sei lá... faça alguma coisa, mas desista dessa carreira.
PRODUTOR. Todo mundo erra. Eu me encantei com você. As vezes eu sou meio
idealista.
17.
Linha verde
18.
Linha vermelha
19.
Linha azul
PRODUTOR. Já acendi.
ESTRELA. Dá um trago.
PRODUTOR. (sacando o maço) Pega um. Você tá de batom, fode o filtro.
ESTRELA. É aqui.
(Ele sai. A ESTRELA olha para o cigarro e percebe que não tem fogo para acendê-
lo)
20.
Linha verde
21.
Linha vermelha
22.
Linha Azul
23.
Linha verde
TÉCNICO. Oi, meu amor... O amor é... (rasga. Nova tentativa) Oi, meu amor... A
vida é uma dádiva que Deus nos concede todos os dias e... (rasga. Nova tentativa).
(A porta do vagão se abre. Entra o FANTASMA e senta-se diante do Técnico.
Observa suas ações. Pega um caderninho que traz consigo e faz uma breve
anotação).
24.
Linha Azul
25.
Linha verde
TÉCNICO. Oi, meu amor. Você sabe que eu não sou bom com as palavras. Então
você me desculpa, mas eu não vou te escrever com a poesia que você merece.
Estou te escrevendo por que você merece uma satisfação. Quando você encontrar
esta carta eu já vou estar muito longe. Queria que você soubesse que não é por
você, mas é por mim. No fundo, você sabe por que eu estou fazendo isso. Tenho
certeza que essa tristeza toda é passageira. Eu vou encontrar meu lugar e você vai
encontrar alguém que não passou o que eu estou passando e por isso mesmo vai
poder te dar mais carinho do que eu pude te dar.
26.
Linha vermelha
27.
Linha azul
(Luz sobre o vagão C. A ESTRELA começa a cantar, quase num sussurro, a música
que lhe tirará do anonimato).
ESTRELA. (baixinho) Boa tarde... É um prazer estar aqui pra trazer um pouco do
meu trabalho pra vocês... foi feito com muito carinho... espero que gostem...
(começa a cantar. Repete a primeira estrofe, testa variações nas frases musicais,
muda trechos da letra)
28.
Linha verde
TÉCNICO. Eu queria ter deixado essa carta em casa, pra ter certeza que você irá lê-
la. Mas voltar pra casa é arriscado demais. Então, vou deixá-la por aqui mesmo,
dentro do metrô. Alguém vai encontrá-la. E esse alguém vai postar a carta, ou deixá-
la no achados e perdidos e um dia você vai acabar encontrando-a. Se a pessoa que
encontrar essa carta decidir que ela deve ter outro destino que não você, então a
humanidade não vale pena mesmo. Aí, tanto faz você ler ou não o que eu escrevi
pra você, afinal de contas, eu também sou humano. Fica em paz. Adeus.
TÉCNICO. Perdão.
29.
Linha vermelha
LOCUTOR. (off) Estação Bresser.
CÚMPLICE. Oi...
CONTRAVENTOR. Senta!
CONTRAVENTOR. Me dá um beijo.
CÚMPLICE. Não.
31.
Linha verde
LOCUTOR. (off) Estação Terminal Ana Rosa. Pedimos a todos que desembarquem
nesta estação.
(O Técnico se levanta)
FUNCIONÁRIO. Jabaquara.
TÉCNICO. Obrigado.
32.
Linha azul
ESTRELA. (repete o último verso) Tô com outra pessoa (sobe uma oitava) Tô com
outra pessoa (mais uma oitava) Tô com outra pessoa (mais uma).
33.
Linha vermelha
CÚMPLICE. O suficiente.
CONTRAVENTOR. Eu sei o que eu tô fazendo. Não pode vacilar. Eu sei pra quem
eu tô olhando, mas não sei quem tá me vendo.
CÚMPLICE. Estúpido.
34.
Linha verde
FANTASMA. Tô.
FUNCIONÁRIO. Onde?
FANTASMA. Tudo.
FUNCIONÁRIO. Passeou?
FANTASMA. (abrindo o caderninho) – Dois velhos que jogam xadrez num tabuleiro
magnético. (vira uma página) Uma moça que canta baixo, com medo de ser notada.
O trem chega numa estação. Ela se levanta e se prepara para sair. De repente, sem
mais nem menos, decide ir pra outro lugar, resolve ficar no vagão e ir em frente. (vira
a página) Um homem com a camisa rasgada, sentado numa escadaria. Ele parece
rico, parece ter algum poder. Mas está chorando, sozinho. (vira a página) Um
homem que tenta encontrar um jeito de começar uma carta. (vira a página) Um
sujeito que finge ler uma apostila para esconder alguma coisa que não quer que os
outros saibam... pouca coisa ainda. (puxa o papel do bolso) Achei um poema
também.
FUNCIONÁRIO. Nenhuma história com fim...
FANTASMA. Hoje eu só queria saber dos meios. Não quis seguir ninguém, quis
andar, ver um pouco de muita gente.
FANTASMA. É porque pra você ainda não acabou. Eu só ando querendo os meios,
tem sido melhor pra mim.
35.
Linha vermelha
(Ele desliza a mão até a bolsa da moça e retira o dinheiro e o celular discretamente.
Coloca tudo dentro de uma pasta que está em seu colo).
CONTRAVENTOR. Larga por aí. Deixa nas escadas de saída quando ninguém tiver
olhando. Ali não tem câmera.
CÚMPLICE. Ok.
CONTRAVENTOR. Caralho! Não dá. Isso não dá. Você me falou que tinha o
suficiente...
CÚMPLICE. Mas...
CÚMPLICE. Mas...
CÚMPLICE. Sei.
CÚMPLICE. Eu...
CÚMPLICE. Sei.
CONTRAVENTOR. E você quer que eu vire uma peneira e apodreça num matagal
da M´boi Mirim?
CONTRAVENTOR. O que?
CONTRAVENTOR. Agora tem uma coisa que você sabe. Tem pelo menos trinta
caras que fazem a mesma coisa que eu faço, certo?
CÚMPLICE. Certo...
CONTRAVENTOR. Sendo assim, você acha que o chefe vai pensar na hora de me
dar um sumiço? Igual a mim tem mais um monte. Pra ele eu sou um qualquer você
entende?
CÚMPLICE. Entendo.
CONTRAVENTOR. Você acha que malandro compra carro roubado por cinqüenta
mil?
CÚMPLICE. Não?
CONTRAVENTOR. Que teipe! Teipe não serve pra nada. Teipe é pra boyzinho
maconheiro comprar marola. Eu tenho cara de maconheiro? Tenho?
CONTRAVENTOR. Tudo bem. Você tentou. Você tá começando. Não tem que
acertar tudo.
CÚMPLICE. Brigada.
(Eles se abraçam)
CÚMPLICE. Brigada.
CONTRAVENTOR. De verdade...
CÚMPLICE. (delicada) Você tá com caspa. (dá uma limpadinha nas costas do
namorado)
36.
Linha azul
37.
Linha verde
FANTASMA. O que?
FANTASMA. Bom, isso não é bem vida, né? Você fica tentando dar um sentido, mas
no fundo, não tem nenhum.
FUNCIONÁRIO. Então não é tão diferente. (pausa) Como é que aconteceu, hein?
(um silêncio)
FUNCIONÁRIO. E ela...
FANTASMA. Não sei. Agora acho não tem mais pra que. Quando eu tinha tudo pra
falar com ela, não falei. Quando ela estava ali, todos os dias próxima de mim, eu não
fiz nada. Agora não faz muita diferença.
FUNCIONÁRIO. E o resto?
FUNCIONÁRIO. Não.
FUNCIONÁRIO. Se cuida.
FANTASMA. Se cuida você, que precisa se cuidar. Pra mim já não faz diferença.
38.
Linha vermelha
CÚMPLICE. Devia ser um casal de milionários. Ou então ela era a putinha dele. Era
um cara de uns cinqüenta anos, gordo. A moça era loira. Bem bonita. Tinha um
vestido bonito. Pensei em pegar pra mim, mas fiquei com dó de deixar ela pelada.
CONTRAVENTOR. (mais calmo) Fez bem.
CONTRAVENTOR. Tô orgulhoso.
CONTRAVENTOR. Não.
CONTRAVENTOR. É assim! Você sabe que é assim que tem que ser! Tô marcado,
porra, os caras tão na minha cola! Tá cheio de polícia no caminho, não rola.
CONTRAVENTOR. Ok. Vinte. Mais que isso não dá. O metrô vai fechar daqui a
pouco. Enquanto você vai, eu vou pra Sé e fico dando um tempo lá. Depois eu vou
pra Praça da Árvore.
CONTRAVENTOR. Ok. Eu confio em você. Eu vou ficar tranqüilo. Não vai fazer
merda, hein? Não atira em ninguém.
CÚMPLICE. Tchau.
CONTRAVENTOR. Dá um beijo
39.
Linha azul
POETA. Oi...
40.
Estação Sé
CONTRAVENTOR. Não.
(Ele passa e dá uma focada na bunda da moça. Segue em frente. Pelo lado oposto
entra o TÉCNICO.)
(devolve o isqueiro)
ESTRELA. Brigada.
41.
Todas as estações
(Luz geral sobre a cena. Sons de trens em movimento. Em cena, esperando o trem,
estão o TÉCNICO, o CONTRAVENTOR e a ESTRELA)
42.
Linha Vermelha
(O TÉCNICO brinca com seu isqueiro. Pega um cigarro. Olha para o anúncio de é
proibido fumar. Ameaça acender. Desiste. Tenta tomar coragem, tenta acender de
novo. Não consegue. Guarda o cigarro e o isqueiro).
43.
Linha Azul
(O CONTRAVENTOR ansioso)
44.
Linha Vermelha
TÉCNICO. Eu?
TÉCNICO. Oras, é uma pergunta simples. Adianta alguma coisa eu dizer que não?
TÉCNICO. Não.
TÉCNICO. Então não gaste seu tempo nem sua saliva comigo.
POETA. Não.
TÉCNICO. Trabalho numa fábrica que faz televisões. Trabalho no setor de controles
remotos.
POETA. Interessante.
POETA. Agora que já nos conhecemos, que tal ler minha obra?
TÉCNICO. (entrega-se) Vou ser sincero com você: não estou num bom momento
para isso.
POETA. Me desculpe.
(Silêncio indigesto)
45.
Linha Azul
46.
Linha Verde
47.
Linha vermelha
(Silêncio indigesto)
POETA. Eu preciso mostrar a pessoas como você que existe uma possibilidade de
diálogo entre os homens. E só a poesia é capaz de nos levar a este diálogo.
TÉCNICO. Quer dizer então que, mais ou menos como Jesus Cristo, você tá aqui
neste vagão pra me dizer “coisas” e pra me dar uma lição de moral?
TÉCNICO. E você acredita mesmo que tem uma mensagem pra me passar?
TÉCNICO. (saca a fotografia do terno, numa pequena explosão) Olhe pra isso aqui
(ela obedece). Quem é esse homem?
POETA. Mas ele é igual a você... Talvez o bigode e os óculos. Mas só... é igual... Os
cabelos, os olhos, a boca... é você.
POETA. Mesmo?
TÉCNICO. Não.
TÉCNICO. Por que me mostraram essa foto do ladrão. Aí perdi a coragem. Ele é
realmente muito parecido.
TÉCNICO. Sabia. E também sei que eles estão me procurando. Não deve ter muita
gente atrás de mim, foi um assaltinho de nada, mas é o suficiente pra me deixar
alerta o tempo todo.
POETA. Não sei. É difícil. Afinal, você tá fugindo. Mas talvez sim.
TÉCNICO. Pois eu acho que não. Nem eu acreditaria. Estou fugindo. Estou indo pra
rodoviária pegar um ônibus pra bem longe...
48.
Linha Azul
49.
Linha Verde
SENHORA. Um cartão.
SENHORA. É.
ESTRELA. Você tá dando seu telefone pra uma estranha. Isso não se faz, sabia?
ESTRELA. Você entrega esses cartõezinhos pra qualquer pessoa que cruza o seu
caminho, é?
SENHORA. Desculpe.
SENHORA. Coitadinha.
ESTRELA. Mas é.
50.
Linha Vermelha
TÉCNICO. É terrível saber que no meio desse monte de gente que existe nessa
cidade existe alguém que é igual a mim. Igual. Talvez ele tenha a mesma voz,
escreva com uma letra igual a minha, tenha os mesmos gostos... é pouco provável,
mas não é impossível. Um dia eu posso cruzar com esse homem como hoje você
cruzou comigo. E aí...
TÉCNICO. Não, não... isso só ia me fazer ter certeza do quanto eu sou um cara sem
importância nenhuma pra ninguém. Depois da história desse sósia eu comecei a
pensar nisso, sabe? Agora tem um cara que pode chegar na fábrica dizendo que sou
eu e todo mundo vai acreditar. Um cara que pode foder minha mulher melhor que eu
e sair da minha casa fazendo ela pensar que sou eu que melhorei na cama. Que
pode sair por aí roubando bancos e agências de empréstimo e botando a culpa em
mim... pra ele é fácil. E sabe o que é pior nisso tudo? É que eu descobri que não só
ele, mas qualquer um pode chegar para um monte de gente que me conhece mais
ou menos e dizer que sou eu e fazer o que quiser com minha imagem, pois ela é
mais uma no meio de uma multidão em que ninguém tem rosto mesmo.
(silêncio)
51.
Linha Azul
CONTRAVENTOR. E aí?
CÚMPLICE. Rolou.
CONTRAVENTOR. Cadê?
52.
Linha verde
SENHORA. Não liga pro que esse homem te disse. Ele devia estar nervoso, depois
de um assalto isso é normal.
(silêncio)
ESTRELA. Eu tenho que fazer o programa amanhã. Seria melhor que ele tivesse
cancelado, entende? Vai ser uma vez e depois nunca mais. Seria melhor que não
fosse nenhuma vez e fosse assim pra sempre. Seria péssimo, claro, mas acho que
ia doer um pouco menos.
SENHORA. Esquece isso. Amanhã ele vai te ligar, te pedir desculpas e tudo vai
voltar ao normal.
ESTRELA. Eu duvido.
SENHORA. Se é assim, então liga pra ele e diz que você não vai fazer o tal do
show.
SENHORA. Eu sabia...
ESTRELA. Eu não sei explicar... se ele tivesse cancelado, acho que tudo bem, mas
eu...
SENHORA. Você quer experimentar fazer, você quer arriscar, né? Talvez seja
mesmo pior fazer um só do que fazer nenhum. Mas, no fundo, é o que você quer
fazer.
ESTRELA. É.
SENHORA. Então faz e paga o preço depois. Que é que tem? Vai ser sua primeira
dor?
(um silêncio)
SENHORA. Qual?
ESTRELA. Te perguntei por que você entrega esses cartões pra quem cruza seu
caminho.
SENHORA. Ah...
SENHORA. Eu não quero te incomodar com a minha vida. Você hoje tá com a
cabeça no seu futuro...
ESTRELA. Eu não me agüento mais por hoje. Acho que vai ser bom te ouvir.
53.
Linha vermelha
TÉCNICO. Não.
TÉCNICO. De quem é?
POETA. Baudelaire.
54.
Linha verde
SENHORA. Então eu comecei a tentar sentar perto dele. Tentava mostrar sempre
que estava bem. As viagens começaram a ganhar um novo sentido. Pareciam mais
curtas. Cada dia eu reparava numa coisa nova nele: uma parte do cabelo que estava
ficando branca, as roupas novas, a barba maior ou menor, o perfume, os bocejos, os
dias em que ele parecia estar mais alegre...
(Entra o FANTASMA. Percebe que está diante da mulher que procurava. Senta-se
diante dela)
SENHORA. Mesmo assim, com toda a atenção que eu dava pra ele, eu acho que
continuou não percebendo que ele me dava um ótimo começo de dia. Chegou um
momento em que o fato de não conhecê-lo, não ter certeza de como era sua voz, o
que pensava e o que fazia se tornaram coisas insuportáveis pra mim. Bolei planos
pra conhecê-lo. No último dia em que vi o homem, fiquei tomando coragem por
quinze estações. Me aproximei dele e lhe perguntei as horas. Ele olhou para o
relógio e me disse: seis e vinte. Depois me olhou e concluiu: me desculpe, o meu
relógio está parado. Já são bem mais que seis e vinte. Ele tinha aquele mau-hálito
que os homens costumam ter pela manhã. Também tinha charme. Quando ia
continuar a conversa, as portas se abriram, ele deu as costas e saiu. Meu erro foi ter
demorado demais pra tomar coragem. No dia seguinte já entrei na estação Patriarca
convicta do que queria e disposta a falar com ele assim que o encontrasse na
plataforma. Sabe o que aconteceu?
ESTRELA. Bom, talvez você tenha perdido a coragem e até reencontrá-la já estava
na Estação Jabaquara de novo.
SENHORA. Não. Ele não apareceu. Depois de três anos fazendo o mesmo percurso
com o homem, sem uma única falta minha e nem dele, ele não apareceu. Nunca
mais apareceu. Não sei se ele se aposentou, se trocou de emprego, se morreu ou
pior, se simplesmente passou a pegar o vagão do outro lado do trem. Agora eu sou
assim... faço minha parte pra não desperdiçar certos estranhos que cruzam meu
caminho.
55.
Linha Azul
FUNCIONÁRIO. Licença...
FUNCIONÁRIO. Estudando, é?
CONTRAVENTOR. É.
CONTRAVENTOR. Brigado.
(silêncio breve)
CONTRAVENTOR. Não.
FUNCIONÁRIO. Que nem seu caso... eu posso te dar boa sorte, torcer de verdade
por você, só por que fui com a tua cara, entende? Mas daqui a pouco você vai sair
daqui e eu nunca vou saber se você conseguiu virar advogado ou não.
FUNCIONÁRIO. É claro que a gente vai se cruzar. Mas eu não vou lembrar da sua
cara, nem você da minha. É assim. Pode acreditar em mim: quando a pessoa passa
uma portas daquelas, você perdeu ela para sempre.
(Sinal de aviso de abertura das portas. A CÚMPLICE se levanta e sai correndo com
a mala)
56.
Linha verde
SENHORA. É. Tá chegando.
SENHORA. Depende.
SENHORA. Claro.
ESTRELA. Promete?
SENHORA. Prometo.
ESTRELA. Eu não vou ter como saber que você cumpriu sua promessa.
ESTRELA. Tchau.
SENHORA. Tchau...
ESTRELA. Sabe de uma coisa? Era pra eu ter descido na antes. Mas eu decidi ficar
no metrô, passear um pouco, pensar na vida... acabei te conhecendo... Tchau...
57.
Linha Azul
CONTRAVENTOR. (levanta-se) Filha da puta!
FUNCIONÁRIO. O senhor não vai dar um bom advogado desse jeito, hein? (sem
resposta) Vai, me fala o que tá acontecendo.
FUNCIONÁRIO. Calma! Não precisa depredar o bem público! O assento não tem
nada a ver com seus problemas!
FUNCIONÁRIO. Tem um QRA alterado correndo pela Estação. Pede pra dar uma
checada.
FUNCIONÁRIO. PKS.
58.
Linha vermelha
POETA. Não?
POETA. Oras...
TÉCNICO. Do Bodeglér.
POETA. Claro.
59.
Linha Azul
60.
Linha Vermelha
(Ele sai)
61.
Linha verde
(De repente, O FANTASMA volta. Deixa o cartão sobre um dos assentos. Sai em
definitivo).
FIM
Em São Paulo.
1ª versão em junho de 2002.
Esta, em 2004.
Mais Um, ainda inédito, teve sua primeira leitura
em 10 de dezembro de 2003, no Teatro da
Praça, em Belo Horizonte(MG), com direção de
Ângela Mourão. Teve nova leitura em 3 de
novembro de 2004, no Centro Cultural São
Paulo, sob direção de Ana Roxo.
Cássio Pires nasceu em São Paulo, em 1976. Formado em Letras pela Universidade de
São Paulo (USP), atualmente é pós-graduando em Artes Cênicas na Escola de
Comunicações e Artes da USP, onde desenvolve projeto de mestrado sobre a dramaturgia
contemporânea em São Paulo.
Entre seus principais textos para teatro destacam-se: PERÍMETRO, (escrito durante o
workshop do Royal Court Theatre realizado em São Paulo) integrante do ciclo de leituras
dramáticas do Intercity Festival do Teatro della Limonaia (Firenze e Roma, 2004), MAL
NECESSÁRIO, encenado na II Mostra de Dramaturgia Contemporânea do Teatro Popular
do SESI, MAIS UM, premiado no concurso nacional de textos teatrais (Prêmio Plínio
Marcos) e no Concurso Nacional de Literatura da Cidade de Belo Horizonte, O ROUXINOL,
adaptação do clássico de H.C. Andersen, encenado pela Cia. da Revista e A FARSA DO
MONUMENTO, espetáculo de rua produzido pela cia. Tablado de Arruar, integrante da
Mostra Contemporânea do Festival de Curitiba 2002.
Em parceria com Clóvis Inoue e Jonas Golfeto escreveu e dirigiu o filme REPVBLICA,
contemplado com o Prêmio Estímulo de curtas-metragens da Secretaria de Estado da
Cultura. Como professor, realizou diversas oficinas, workshops e seminários sobre teatro,
cinema e literatura em espaços como a EAD (Escola de Artes Dramáticas da ECA/USP), a
Oficina Cultural Oswald de Andrade e o projeto de oficinas culturais de São Bernardo do
Campo.