PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM PATRIMÔNIO CULTURAL E SOCIEDADE
JOINVILLE
2011
GRACIELA MÁRCIA FOCHI
JOINVILLE
2011
“O dom de despertar no passado as centelhas de esperança
é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também
os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer.”
Walter Benjamin
DEDICO À;
Rita e Geraldo Fochi, meus queridos pais;
Pluto, in memorian, a Susy e ao Jeep pela companhia e inspiração;
A André, pela convivência carinhosa e compreensiva ao longo deste percurso.
AGRADECIMENTOS
Meu especial agradecimento à professora orientadora Drª Mariluci Neis Carelli e a co-
orientadora Drª Nadja de Carvalho Lamas pelas orientações, conselhos e caminhos apontados
ao longo da construção deste trabalho. A vocês, meu eterno respeito e admiração.
Aos professores Drª Taisa Mara Ruaen Moraes (Univille) e Drº Euler R. Westphal
(Univille) pela excelente banca de qualificação que proporcionaram. Aos professores Drª
Maria Elizia Borges, Drª Taísa Mara Ruaen Moraes e Drº Euler R. Westphal por aceitarem
em fazer parte da banca de defesa e cumprir as responsabilidades que a mesma requer.
Aos demais professores e aos colegas do curso de Mestrado em Patrimônio Cultural e
Sociedade/MPCS e à Univille pela existência do Fundo de Amparo a Pesquisa/FAP, sem este
não teria sido possível chegar até aqui.
Aos funcionários do Cemitério Municipal de Joinville, em especial a Ana Lúcia R.
Moreira, pela pronta disposição em realizar a entrevista oral, pelas orientações durante as
visitas ao Cemitério e todo apoio manifestado na busca por informações. Aos estudantes da
turma de Psicologia 08, matutino, da Univille, na qual realizei o estágio de docência, pelo
comprometimento e colaboração nas reflexões e na construção de novos conhecimentos.
Aos pesquisadores Drº Renato Cymbalista, Mrª Alcinéia R. dos Santos, Mrº Deuzair J.
da Silva, Mrª Elisiana Castro e Msº Hindemburgo de Carvalho Lisboa por toda a
solidariedade científica e pela companhia nas jornadas de congressos e de eventos. A Drª
Viviane Alves e a Tatiane de Freitas por todo apoio e motivação ao longo deste percurso, pela
pronta disposição em revisarem o texto e por sugerirem ajustes valiosos.
A André Ricardo Alves e Msº Fábio Viera por toda ajuda e colaboração nas atividades
de campo, especialmente no registro das coordenadas em GPS dos Cemitérios da cidade. Ao
geógrafo Rafael Bendo Paulino da Fundação Municipal do Meio Ambiente de
Joinville/FUNDEMA, por toda colaboração e disponibilidade na finalização dos trabalhos de
campo e na verificação dos cemitérios existentes. Aos funcionários do Arquivo Histórico de
Joinville, em especial à Msª Arselle Fontoura; do IPPUJ; da CASERF; da Casa da Memória e
do Cemitério do Imigrante.
Ao arquiteto e urbanista Tiago Lemos Benghi; Msº Celso Voos Vieira Junior, a Dennis
Newton Nass e aos funcionários do Centro de Cartografia digital e Sistemas de Informações
Geográficas da Univille, pela colaboração na localização, confecção de mapas e pelo
empréstimo dos equipamentos.
Aos funcionários do IBGE de Joinville, em especial a Odilon Mauricio Walter e a
Zuleika Beatriz Mankowski da agência do IBGE de Florianópolis por toda disponibilidade e
rapidez no envio das informações e dos dados solicitados.
Ao livreiro José Marcos de Brito Oliveira, por toda ajuda no garimpo e envio dos livros
fundamentais neste trabalho; ao Serviço Social da Indústria/SESI, em especial aos alunos, aos
colegas professores da EJA e as supervisoras Karen Ceruti Stricker e Elizete Fávero pela
compreensão diante das ausências e por todo apoio disponibilizados neste percurso.
Aos demais familiares e amigos que das mais diversas formas participaram deste
processo oferecendo apoio, incentivo, confiança, motivação e equilíbrio, principalmente nos
momentos de cansaço e angústias; e por fim ao „segredo/mistério‟ que envolve todos os seres
neste universo.
RESUMO
Search, "Death, cemeteries and graves: a study of the Municipal Cemetery of Joinville / SC"
sought to address the concepts of death and the provisions of cemeteries both in a historical
perspective, trying to see how the Municipal Cemetery is inserted in Joinville route of these
themes, such as occur at social events, religious, cultural and artistic inside. As well as
interpret the buildings, the graves and epitaphs reflecting on the projections that determine its
form and content, without losing sight of the certainties, the changes, the peculiarities
concerning the culture of death in the cemetery area. The methodological path traveled
throughout the study was permeated by the literature review in relation to the conceptions of
death and burial of other times and societies and the exploratory and qualitative analysis of
documents, maps, graphs, tables, figures, photographs, interview regarding Joinville and the
area's municipal cemetery. In a broad sense, the fear, the feeling was more frequently
expressed that the man on death, is recurrent in the conceptions that guided the provision of
cemeteries and the relationship with the dead, identified mainly through the construction of
the first stone deposits in the pre-history, in cemeteries along the roads of old and / or the
expulsion of the urban landscape even in the modern age. The Municipal Cemetery of
Joinville emerged in a context of regulatory compliance hygienist / health and secularization
of society. Amid the process of creation and regulation of the Evangelical Lutheran
community cemetery of the city has managed to make their traditions were maintained, that
somehow ease the implementation of existing rules. It can be stated that, to a large extent, the
first half of the twentieth century was the period in which they were built some deposits of
greater emphasis and simplicity, but still very shy with regard to the artistic styles and in the
presence of statutory undertakers. From the second half of the twentieth century is the
standardization and simplification in the construction of deposits, especially in newer areas of
the cemetery. It is also evident that in the building, the symbolic decoration of the tombs was
some loss of traditional religious symbols arranged in the prolongation of deposits, and in turn
were displaced to the gravestones, especially in content and meaning of epitaphs. Finally, the
survey sought to bring contributions to the references available so far regarding the topic of
death, cemeteries, the graves and epitaphs, because the approach as proposed in this study, we
could not find more references, and the situation is more serious with respect to the object of
research, the Municipal Cemetery of Joinville/SC.
AGRADECIMENTOS ............................................................................................................5
RESUMO .................................................................................................................................7
ABSTRACT .............................................................................................................................8
SUMÁRIO ...............................................................................................................................9
INTRODUÇÃO .....................................................................................................................15
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................163
ANEXO(S) ...........................................................................................................................175
ANEXO A- REGULAMENTAÇÃO E FUNCIONAMENTO DO CEMITÉRIO
MUNICIPAL DE JOINVILLE/SC.....................................................................................176
ANEXO B- REGULAMENTAÇÃO DO CEMITÉRIO MUNICIPAL E DOS DEMAIS
CEMITÉRIOS DA CIDADE...............................................................................................177
ANEXO C: PARECER DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA...............................178
APÊNDICE(S) .....................................................................................................................179
APÊNDICE A- ROTEIRO DA ENTREVISTA.................................................................180
APÊNDICE B: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO/TCLE.......................................................................................................181
LISTA DE SIGLAS
INTRODUÇÃO
1
Neste aspecto ver também MAIOR, Mário Souto. A morte na boca do povo. Rio de Janeiro: Livraria São
José, 1974.
16
conduzir a experiência da morte em tudo o que a mesma consiste e requer, quando muito será
somente a ritualização deste momento. Outro aspecto que também reforça o interesse pela
pesquisa está no fato de que a morte constitui a maior, senão a única, certeza que se possuí em
vida, entretanto a mesma não possui espaço de diálogo e reflexão amplo e consolidado na
sociedade.
O desejo de querer investigar e compreender tais questões relacionadas à morte, aos
cemitérios e à sociedade com preocupação e cuidado científico, foi associado à necessidade
de definir alguns caminhos metodológicos na tentativa de respaldar cientificamente, cumprir
os objetivos e alcançar os resultados esperados à esta pesquisa; posteriormente estruturados
em dissertação.
Conforme Minayo & Sanches (1993) para conferir plausibilidade científica a um estudo
tem-se que efetuar uma busca articulada entre a realidade empírica e a teórica; e o método se
encontra na condição de fio condutor desta articulação. Compreende-se que a natureza, o teor
dos objetivos e das problemáticas do estudo acabam por conduzir, em grande medida, o
percurso metodológico de um estudo; e por sua vez o caminhar metodológico exige que, ao
longo do processo, se pondere ajustes e redirecionamentos em relação aos objetivos e às
problemáticas da pesquisa, cientes disto privilegiou-se alguns procedimentos metodológicos
aos aspectos práticos, analíticos e interpretativos da pesquisa como um todo.
No primeiro momento, foram localizados e fichados livros, artigos publicados em
periódicos e anais de Congressos; dissertações e teses produzidas em diversas universidades;
e visitas às páginas de sites e blogs na internet que abordam ou que relacionam as temáticas
de morte e cemitérios; caminho que possibilitou definir o objeto e a problemática da pesquisa
propriamente dita. Como objeto do estudo foi definido o Cemitério Municipal de Joinville e o
problema formulado: Que tipo de cemitério constitui o Cemitério Municipal de Joinville?!
Que aspectos e conteúdos determinam as edificações, as lápides e os epitáfios deste
cemitério?!. Como recorte temático foi demarcado memória, patrimônio, morte, cemitérios e
jazigos; e como problemática da pesquisa, os conteúdos sociais, culturais e artísticos se
encontram inscritos no local estudado.
Em seguida foi possível formular os objetivos da pesquisa que, de uma maneira ampla,
consistem em abordar as concepções de morte e as disposições dos cemitérios ao longo da
trajetória das sociedades, situar o Cemitério Municipal de Joinville no contexto abordado e
18
2
As fotografias foram realizadas pela autora no decorrer dos anos de 2008, 2009 e 2010, com a ajuda de André
Ricardo Alves e dos estudantes da turma de 2008/3º ano, matutino, do Curso de Psicologia da Univille.
19
Flick (2004) defende que a utilização de fotografias em pesquisas sociais favorece uma
apresentação mais abrangente, aberta e holística das abordagens; representam dados por elas
mesmas, possibilitam ao pesquisador deduzir enunciados, identificar semelhanças e
diferenças; são incorruptíveis e poderão ficar a disposição de outras pessoas que queiram
analisá-las e elaborar outras interpretações a partir destas. Com a intenção de garantir um
maior controle sobre o texto e as fotografias, na tentativa de facilitar a leitura do texto e
otimizar a disposição das fotografias, estas foram nomeadas como figuras, numeradas em
ordem crescente e dispostas ao longo das problemáticas e reflexões realizadas.
No contexto desta pesquisa as fotografias ganharam status e função documental,
permitiram identificar aspectos materializados das manifestações da morte, fazer ligações e
conexões entre elas. Foram também contextualizadas, problematizadas e enriquecidas pelos
recursos documentais, pela entrevista oral e pelas referências encontradas na produção
bibliográfica relacionada aos temas morte e cemitérios.
Na fase seguinte, foi realizada uma entrevista semi-estruturada e individualizada com
Ana Lúcia Moreira3 responsável pelo atendimento e deliberamento na Central de
Atendimento do Serviço Funerário/CASERF. Foram tomados todos os cuidados éticos em
relação aos valores da vida conforme é previsto pelo Comitê de Ética na Pesquisa/CEP da
universidade na qual foi vinculado o projeto4. A entrevista se encontra gravada digitalmente
em fita K7, o conteúdo transcrito ipsis litteris e devidamente assinado e autorizado à livre
utilização e publicação neste estudo. Na redação da pesquisa o conteúdo da mesma foi
utilizado parcialmente, com partes e momentos que contemplam e enriquecem as reflexões,
teorizações e especialmente à problemática da investigação.
Optou-se pela abordagem e interpretação qualitativa na elaboração e interpretação das
análises dos documentos, da entrevista, dos mapas, figuras e quadros presentes no estudo,
descrevendo exploratoriamente e generalizando dedutivamente em relação aos objetivos e a
problemática da pesquisa. Conforme discorrem Minayo & Sanches (1993) a estratégia de
abordagem qualitativa permite uma aproximação fundamental e de intimidade entre sujeito e
objeto, uma vez que ambos são da mesma natureza. Ela ainda envolve com empatia os
motivos, as intenções, os projetos dos atores, a partir dos quais as ações, as estruturas e as
relações tornam-se significativas. Em outras palavras, do ponto de vista qualitativo mais a
3
No Apêndice A encontra-se o roteiro pré-estruturado que norteou a entrevista oral com Ana Lúcia Moreira.
4
Para maiores detalhes ver no Apêndice B o modelo utilizado de “Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido/TCLE”.
20
abordagem dialética atuam no nível das estruturas e das representações, entendendo estas
últimas como ações humanas objetivadas e, logo, portadoras de sentidos e significados.
Para Chartier (1990) as percepções do social não são de forma alguma discursos
neutros, antes produzem estratégias e práticas que tendem a impor uma autoridade à custa dos
outros, por elas menosprezados, em legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os
próprios indivíduos as suas escolhas e condutas. Diante destas preocupações a estratégia de
campo que perpassou a pesquisa como um todo foi a da observação participante direta
combinando simultaneamente a análise crítica e reflexiva das referências bibliográficas, dos
documentos, dos mapas, das fotografias e da entrevista com os temas e as problemáticas que
foram definidas ao estudo.
Como estratégia interpretativa foi adaptada a perspectiva de Rüsen (1996), da existência
de um valor fundamental que é o universal, que justifica ao mesmo tempo a multiplicidade
das perspectivas e a diferença, no princípio normativo do reconhecimento recíproco de
diferenças na vida humana, que, por um lado, liga a unidade da humanidade e a evolução no
tempo com a diferença das culturas, e por outro com sua multiplicidade.
Para fins de estruturação e sistematização da pesquisa os objetivos e a problemática
foram desdobrados e amparados em momentos e capítulos específicos ao longo do texto da
dissertação. Na “Introdução” procura-se descrever as experiências, as motivações e as
preocupações construídas ao longo da trajetória de vida que foram responsáveis por
influenciar a escolha de “morte e cemitérios” como temática da pesquisa.
No primeiro capítulo “Reflexões sobre memória e patrimônio” serão abordadas como
estas temáticas se encontram tecidas e articuladas na sociedade; como a produção
bibliográfica vem percebendo e compreendendo a temática da morte e dos cemitérios; e por
fim indicar algumas possibilidades a este debate no sentido de que tanto a morte como os
cemitérios precisam de um espaço de diálogo e reconhecimento maior, no sentido de que
ambas configuram aspectos de memória, patrimônio e sociabilidade em suas respectivas
sociedades.
No segundo capítulo, “Morte: as diferentes concepções” será analisada a problemática
de como a morte foi compreendida, pensada e manifestada nos diferentes momentos da
história da humanidade; os conteúdos e sentidos das concepções de morte-renascimento,
sobrevivência do duplo, morte maternal, imortalidade da alma, morte domada e diante das
dúvidas com relação aos destinos das almas, a morte em crise, quando esta se transforma em
21
tabu e musa ao mesmo tempo. O estudo será realizado a partir da revisão da produção
bibliográfica, procurando relacionar e contextualizar os principais conceitos e concepções de
morte.
No terceiro capítulo, “Cemitérios: diferentes percursos e destinos”, vai se discutir como
foram compreendidos e dispostos os cemitérios nas diferentes épocas da história da
humanidade (permeados pelas concepções de morte), entre eles quando e como surgiu a
necessidade de edificar as sepulturas, quando e porque foram dispostos ao longo das
principais estradas, no interior e fora das cidades e como se deu o processo atual de retorno às
cidades; sob uma perspectiva histórica assinalando os destinos que os cemitérios receberam
por parte de suas populações.
No quarto capítulo, “O Cemitério Municipal de Joinville” serão descritas informações
do contexto econômico e social da cidade de Joinville, as disposições dos demais cemitérios
da cidade, as questões sociais e religiosas da população; aspectos da criação, a trajetória e as
possibilidades atuais do Cemitério Municipal de Joinville; neste sentido serão arrolados
mapas, documentos, gráficos e figuras ilustrativas.
No quinto capítulo do estudo “Jazigos: formas e conteúdos” buscar-se-á abordar as
formas e os conteúdos que se encontram inscritos e dispostos nas edificações, na estatuária,
nas lápides e nos epitáfios dos jazigos do Cemitério Municipal de Joinville. Analisar-se-á
especialmente as edificações dos jazigos para os aspectos das distinções sociais, aos aspectos
artísticos, culturais, religiosos, dos sentidos e sentimentos percebidos através da análise dos
materiais e recursos utilizados na edificação e/ou sobrepostos as sepulturas.
22
1.1 Da Memória
Abordar o tema da morte, dos espaços dos cemitérios, das edificações dos jazigos e dos
epitáfios requer que se leve em consideração as questões que permeiam e perpassam o
universo da cultura, da sociedade e da memória numa tríade circular que auto se alimenta e
nutre; num processo inscrito nas dimensões do „imaterial‟ ao „material‟ e ao „imaterial‟
novamente, formando uma unidade, dando corpo, conteúdo e sentido a memória e ao
patrimônio como um todo.
Pensando no contexto deste estudo, compreende-se que esta tríade inicia a partir das
concepções e sistemas mentais, que são imateriais, de um determinado grupo ou família; que
se materializam e se tornam públicas nas edificações no espaço do cemitério, que por sua vez
são visíveis e palpáveis; e que por fim retornam ao universo simbólico/mental da sociedade,
que é imaterial novamente. Ou seja, partem do campo do simbólico, imagético, mental,
religioso/cultural constituído como memória de um determinado grupo; se inscrevem e
materializam como complementaridade e continuidade, no universo físico, edificado e
concreto das coisas, ganham corpo, conteúdo e forma nas disposições dos cemitérios, nas
edificações dos jazigos, na estatuária, nas inscrições das lápides e dos epitáfios; e que por sua
vez formam e fornecem referências às concepções, ao imaginário, às mentalidades, às
memórias de quem as visitam, ou de quem frequenta ou passa pelo espaço do cemitério.
23
Finados que é comemorado como feriado em homenagem e memória aos mortos e/ou as
almas. O que é curioso é que esta data resistiu ao tempo e é reconhecida como feriado oficial
no calendário civil contemporâneo da maioria dos países ocidentais, mesmo com todas as
mudanças que ocorreram no que diz respeito aos avanços e recuos das tradições religiosas das
populações.
Na maioria dos países, neste dia é comum as pessoas visitarem os jazigos de seus
familiares, levarem principalmente velas e flores para decorar/enfeitar e realizar orações. Na
mesma data dos Finados em todo México, numa perspectiva e contexto cultural um pouco
diferente, ocorre a Festa dos Mortos, marcada por um sentido celebrativo/comemorativo em
que os mortos são festejados comidas, bebidas e suas músicas preferidas enquanto vivos.
Outra manifestação celebrativa aos mortos é a Zombie Walk, um movimento em que
jovens se fantasiam (vestem e maquiam) como mortos-vivos e saem andando pelas principais
ruas e parques das cidades. Este movimento ocorre em diversas partes do mundo e do Brasil e
vem ganhando cada vez mais adeptos, evidência disto é que no ano de 2010, ocorreu na
cidade de Joinville a primeira edição do evento.
Outra prática também é „minuto de silêncio‟, que costuma ser realizado no início ou
abertura das solenidades e eventos em homenagem e memória ao falecimento de membros de
grupos, ou personalidades reconhecidas na sociedade e/ou vítimas de acidentes, catástrofes
naturais. Tudo isto acaba por representar eventos e momentos que buscam petrificar a
memória e as lembranças das populações, pois ela por si mesma talvez não conferisse tal
atributo e significância.
Estes eventos resistem e acabam sendo valorizados pelos seus aspectos comerciais
turísticos e oficiais que comportam, enquanto outras práticas acabam sendo, em grande
medida desprestigiados e até esquecidos pela sociedade como, por exemplo, os velórios
públicos por mais de um dia, do cortejo com as pessoas seguindo a pé pelas ruas, em que as
portas dos estabelecimentos comerciais eram fechadas para o momento da passagem do
corpo, as missas de sétimo dia, do uso do luto pelas famílias entre outros.
Diante disto Nora (1993) adverte que os empreendimentos e movimentos oficiais e
festivos possuem caráter nostálgico, acabam por representar rituais de uma sociedade sem
ritual; de sacralizações passageiras numa sociedade que dessacraliza e desespiritualiza; de
fidelidades particulares de uma sociedade que enquadra e aplaina os particularismos; de
diferenciações efetivas numa sociedade que nivela por princípio; de sinais de reconhecimento
25
1.2 Do Patrimônio
5
Segundo Magalhães (2005, p. 21) a origem da palavra é latina e do direito romano, que “deriva de patrius, e
este de pater, e de monium, que tem haver com o poder masculino, pátrio, e com herança paterna”, ou seja,
trata-se o patrimônio ainda como uma propriedade herdada dos pais, da família ou de antepassados.
26
Numa dimensão mais ampla Arruda (2006, p. 120) sugere que “o patrimônio cultural
expressa certa solidariedade que une os que compartilham um conjunto de bens e práticas e
que os identificam, mas também costuma ser o lugar da cumplicidade social”. As atividades
destinadas a defini-lo; preservá-lo e difundi-lo, amparadas pelo prestígio histórico e simbólico
das instituições patrimoniais, incorre quase sempre numa simulação/promoção em sustentar
que a sociedade não está dividida de forma desigual entre classes, etnias e grupos; ou também
quando afirmam que a grandiosidade e o prestígio acumulados por esses bens e instituições
transcendem essas frações sociais e pertencem a todos, quando na verdade referem-se apenas
a um pequeno e restrito grupo, e que visam ostentar e preservar o status quo que detém.
Assim identificam-se os principais problemas que existem em torno das concepções e
representações de patrimônio que na maioria das vezes representam bens materiais
acumulados e que prestigiam os possuidores, herdeiros, detentores, mantenedores; constituem
recursos inscritos e lavrados nos e pelos cânones „oficiais‟ das civilizações; e ainda
escamoteiam as lutas e conflitos sociais que os teceram e legitimaram ao longo da produção
cultural da humanidade.
Por outro lado, estes problemas acabam por implicar o estreitamento das possibilidades
de relevância e a abrangência da produção cultural, por reforçar a ideia de cultura erudita,
academicizada e que só é possível encontrar em grandes salões, galerias e museus; gerar
conflitos entre culturas e sociedades diante da falta de representatividade e pela detenção dos
espaços de poder e decisão, bem como os sentimentos de desprovimento e inferioridade
cultural entre as populações; e ainda a não identificação, o não reconhecimento, o não
pertencimento, a pouca vontade de difusão e zelo pelo que foi e está instituído como
exemplares da cultura e do patrimônio das sociedades.
Conforme Yúdice (2004) a cultura deve ser antes um espaço onde as pessoas se „sentem
seguras‟ e „em casa‟, onde elas se sentem como pertinentes e partícipes de um grupo, numa
perspectiva em que ela é a condição necessária para a formação da cidadania, sendo a matéria
prima, o fator aglutinador entre o patrimônio e seus sujeitos e a arena aonde se galgam as
possibilidades de cidadania.
Relacionado a esta discussão se tem até o presente momento e em todo o Brasil, o
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/IPHAN que registrou no Livro Tombo,
individuais ou como conjunto, dez cemitérios considerados patrimônio histórico e
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paisagístico6. Como se pode observar Santa Catarina, no caso Joinville, encontra-se nesta
relação com o registro do Cemitério Protestante, que é comumente conhecido e identificado
como Cemitério do Imigrante. Este cemitério foi tombado em 1961 e se encontra localizado
na rua XV de novembro, nº 978, na região central da cidade.
Conforme descreve Guedes (2005) o cemitério do Imigrante foi inaugurado em
dezembro de 1851 e reúne os sepultamentos dos imigrantes europeus das primeiras levas que
chegaram à cidade, e que posteriormente, a grande maioria dos descendentes destes primeiros
imigrantes se tornaram parte da elite econômica e política da cidade. Hoje este cemitério
conta com diversos estudos realizados e publicados7, assim como projetos de restauração,
educação patrimonial e de incentivo ao turismo8; talvez ainda não sejam suficientes, mas estes
já representam um grande avanço se forem consideradas as atividades que foram veiculadas
aos demais cemitérios da cidade e em espacial ao Cemitério Municipal de Joinville; neste
aspecto tem-se a impressão que somente o fato de conseguir o registro no Livro Tombo e/ou
nos órgãos oficiais é que os recuperaria do anonimato e descaso em que se encontram.
Conforme sugere Morin (1970) a existência da cultura ou de patrimônio coletivo
(saberes, fazeres, espaços, costumes, tradições entre outros.), só tem sentido porque é
constantemente preciso transmiti-los às novas gerações. Não se pode negar que a morte
inevitavelmente marca dia após dia, estação após estação, ano após ano a cultura, a memória e
o patrimônio, e para aplacar este processo e garantir sua transmissão, veiculam-se ações de
registro, catalogação, restauro, desapropriação, tombamento, vigilância, educação patrimonial
entre outras formas de salvaguardo realizadas pelos meios oficiais e/ou não da cultura.
6
Cemitérios e conjuntos que incluem cemitérios tombados pelo IPHAN: Portão do Cemitério de Arês/RN,
Túmulos do Dr. Peter Wilhen Lund e de seus colaboradores em Lagoa Santa/MG, Igreja de São Francisco da
Penitência, cemitério e Museu de Arte Sacra no Rio de Janeiro/RJ, Convento e Igreja de Nossa Senhora dos
Anjos, Capela e Cemitério da Ordem Terceira de São Francisco de Cabo Frio/RJ, Capela e Cemitério de Maruí
de Niterói/RJ, Cemitério de Mucugê, Mucugê/BA, Cemitério de Nossa Senhora da Soledade em Belém/PA,
Cemitério do Batalhão em Campo Maior/PI, Cemitério dos Jesuítas, Porto Seguro/BA e Cemitério Protestante
de Joinville/SC. /Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=1356>. Acesso em:
03 set. 2010.
7
FONTOURA, Arselle De Andrade da (Coord.). Relatório final do projeto Cemitério do Imigrante: pesquisa,
interdisciplinaridade e preservação. Joinville: CPC, 2007 e a dissertação de mestrado de CASTRO, Elisiana
Trilha. Aqui também jaz um patrimônio: identidade, memória e preservação patrimonial a partir do
tombamento de um cemitério (o caso do Cemitério do Imigrante de Joinville/SC, 1962-2008) / Dissertação.
(Mestrado em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade). Santa Catarina: UFSC / PGAU, 2008.
8
ZIMERMANN, Gabriela. Cemitério do Imigrante e Casa da Memória trabalham para atrair mais visitantes em
Joinville. A Notícia. Joinville, 16 ago. 2010. Disponível em:
<http://www.clicrbs.com.br/anoticia/jsp/default.jsp?uf=2&local=18§ion=Geral&newsID=a3007269.xml>.
Acesso em: 18 ago. 2010.
28
Porém na maioria das vezes as políticas que são voltadas aos espaços e manifestações e
memória, cultura e patrimônio visam à conservação de sua integridade física, no intuito de
conseguir o seu tombamento, o que acabam por contribuir à preservação de edificações e
obras de arte, cuja perda seria irreparável. Porém, esse entendimento e compreensão terminam
por associá-la às ideias de conservação e imutabilidade, contrapondo-as, portanto, às noções
de mudança ou transformação, dando mais atenção ao objeto e à materialidade e menos aos
sentidos que lhe são conferidos e atribuídos ao longo do tempo pelas sociedades que os
produziram e/ou herdaram.
Arruda (2006) propõe que a cultura, a memória, assim como o patrimônio, sempre
remetam ou pretendam compreender um coletivo generalizado: o „nós‟ – e o termo envolve o
problema do „nosso‟, a nossa história, a nossa memória, a nossa identidade, o nosso
patrimônio. Tendo em vista as preocupações anteriores em torno do patrimônio,
independentemente de que seja arquitetônico, imaterial, natural entre outros, se faz necessário
indagar sobre o „de quem‟ ou „a qual coletivo‟ está vinculado o „nosso‟ patrimônio, a que
identidade coletiva, passada, presente e/ou futura.
Neste sentido poderiam ser acrescentadas outras questões como: Qual e quais
patrimônios?!; O que os legitima e os constituí como patrimônios?!; Como são e serão
legitimados?!; De que forma será feito?!; Por que estes e não aqueles/outros?!; Para que e
para quem legitimá-los?!. Questões que se encontram numa tentativa de estabelecer uma
interpretação crítica em relação ao passado, ao presente e por conseqüência ao futuro da
memória, do patrimônio e da cultura, e que podem contribuir no sentido de identificar as
forças políticas, econômicas, sociais e culturais que se utilizam/utilizarão e
reclamam/reclamarão pelo reconhecimento e a guarda dos elementos a serem tomados como
patrimônio artístico e cultural.
tanto no âmbito das Ciências Sociais, da Antropologia, da História Social, dos Estudos
Culturais e de Patrimônio entre outros.
Os trabalhos pioneiros são de Morin (1970), Vovelle (1970), Àries (1977), Chaunu
(1978), Kübler-Ross (1981), Elias (1982) entre outros. No Brasil os estudos de Valadares
(1972), Fochesatto (1977), Martins (1983), Maranhão (1985), Guedes (1986), Bellomo
(1988), Reis (1991), Borges (1991), Doberstein (1992), Lima (1994), Rodrigues (1995),
Chiavenato (1998), Rezende (2000), Cymbalista (2001) entre outros9.
Recentemente as teses de doutorado de Silva (2002), Nascimento (2006), Morais
(2009); e as dissertações de mestrado de Rosa (2003), Silva (2005), Jorge (2006), Timpanaro
(2006), Filho (2007), Costa (2007), Soares (2007), Mendes (2007), Castro (2008) e Silva
(2010) abordam o assunto.
Entre os estudos e pesquisas até então realizados, de uma maneira ampla, percebe-se
que prevalece a abordagem da temática da morte ou dos cemitérios de certa forma isolada e
desarticulada. A temática da morte encontra-se fortemente segmentada entre as duas vertentes
de abordagens: uma histórico-cultural que por sua vez se preocupa preferencialmente com a
morte, esquecendo do morto; e outra clínica/médica, que se preocupa exclusivamente com o
morto, desconsiderando a temática da morte em sua contingência sócio-cultural. Por sua vez
as discussões sobre os espaços dos cemitérios acabam sendo fortemente influenciadas pelas
abordagens muitas vezes disjuntas que levam em consideração preferencialmente os
conteúdos artísticos e sociais, ou históricos e patrimoniais, desconsiderando as concepções de
morte.
É neste contexto que se propõem esta pesquisa, como uma tentativa de abordar e levar
em consideração ao mesmo tempo as diferentes concepções de morte, as disposições
históricas dos cemitérios e a verificação deste quadros em uma sociedade e realidade
específica, no caso a do Cemitério Municipal de Joinville/SC, com base nas dimensões das
diferenciações sociais, aspectos artísticos e culturais.
A temática da morte pode vir a ser considerada de diferentes maneiras, até muito
diferentes do que se propõem aqui, através das diferentes tradições de época e vinculadas aos
espaços dos cemitérios. As possibilidades das concepções de morte poderiam ser estudadas e
verificadas nos registros que também representam fontes patrimônio e memória como na
9
Os estudos e pesquisas destes autores assim como as teses e dissertações serão abordados ao longo desta
pesquisa.
30
literatura, na música, nos filmes, exposições de artistas que se dedicaram a este tema, aos
jogos eletrônicos, desenhos animados, história em quadrinhos entre outros10.
Encontra-se certa limitação no conteúdo da Constituição Federal Brasileira,
promulgada em 1988, no artigo nº 216 na qual prevê como „patrimônio cultural brasileiro‟
[...] os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou
em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nas quais se incluem:
I- as formas de expressão; II- os modos de criar, fazer e viver; III- as
criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV- as obras, objetos,
documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações
artístico-culturais; V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
(BRASIL, 1988).
Percebe-se que os espaços dos cemitérios podem ser contemplados e veiculados aos
incisos IV e V, no que se refere a espaços destinados às manifestações artístico-culturais e aos
conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico
respectivamente, porém em nem um momento o fato da „morte‟ ou o „morrer‟ estão
relacionados. Pensa-se que seria pertinente ampliar o inciso II, que trata dos modos de „criar,
fazer, viver‟, e complementar o alcance e a abrangência da lei com a categoria morrer; pensa-
se assim, diante do fato que todo e qualquer ser vivo do universo completa seu ciclo com o
processo da morte; e além do mais cada sociedade, cultura e tradição religiosa prevê
diferentes concepções, sentidos, rituais, manifestações a este momento e experiência.
Outro relevante está também no aspecto de que conforme a resposta que for manifesta
em relação à morte, todo um modo de pensar, compreender e agir diante da vida será
colocado em prática e por sua vez, transmitido às próximas gerações; quem sabe não caberia
um espaço maior nas discussões pedagógicas, temáticas e curriculares das instituições de
ensino.
10
Alguns exemplos que podem ser à temática de morte: a produção do cineasta brasileiro José Mojica Marins,
mais conhecido como Zé do Caixão, a telenovela e filme “O bem-amado” escrito por Dias Gomes, “A volta
dos mortos vivos” de Ellory Elkayen, “O cemitério maldito” de Mary Lambert, “21 Gramas” de Alejandro
González-Iñárritu, “A noiva e o cadáver” dirigido por Tim Burton, “O curioso caso de Benjamin Button” de
David Fincher; o seriado norte-americano “Six Feet Under” criado por Alan Ball; as obras dos escritores João
Cabral de Melo Neto, Érico Veríssimo, Lygia Fagundes Telles, Josué Guimarães, Stephen King; as histórias
em quadrinhos de Aloísio de Castro, Antônio Homobono, Flávio Colin; os desenhos animados „Funéria‟ da
Music Television /MTV do Brasil, criado por Thiago Martins, Pavão e Flávia Boggio; músicas como “Marcha
fúnebre” do pianista Frédéric Chopin; “Requiem em Ré menor” de Wolfgang Amadeus Mozart; “Agente
funerário” da banda Testosterona; o vídeo clip da música “Back to Black” da cantora Amy Winehouse; “Canto
para minha morte”, composição de Raul Seixas e Paulo Coelho; “Último dia” de Paulinho Mosca; “Epitáfio”
composição de Sérgio Brito do grupo Titãs, “Bilhete” de Ivan Lins e Vitor Martins; “Boas Novas” do cantor e
compositor Cazuza; jogos de vídeo game como Resident Evil criado por Shinji Mikami, Doom e Quake
desenvolvidos pela Id Software entre outros.
31
Borges (2004) explica que a relação entre o morto e seus descendentes, filhos, netos e
bisnetos vai se enfraquecendo aos poucos, alcançando, quando muito a terceira geração
ascendente. Os túmulos do fim do século XIX e início do século XX encontram-se nas mãos
da geração contemporânea. Neste sentido há alguns anos arquitetos europeus e
norteamericanos vêm se mostrando atentos à recuperação e preservação do patrimônio
artístico e monumental contidos nos cemitérios de suas cidades. Essa discussão também
abrange os cemitérios contemporâneos, em que nestas regiões estão previstas as criações de
novos parâmetros e de grandes projetos portadores de conteúdo simbólico, dotados de
renovação formal, sem perder de vista a poética, os sentimentos e a complexidade que a morte
carrega e requer.
Existem ações que ocorrem também no sentido de divulgar e discutir os espaços dos
cemitérios com a sociedade; como é o caso da Association of Significant Cemeteries in
Europe-ASCE- (Associação dos Cemitérios Significativos da Europa) criada em 2002 como
uma rede que inclui organizações públicas e privadas para cuidar dos cemitérios considerados
de valor artístico e importância histórica na Europa. A associação tem por objetivos partilhar
experiências e práticas, cooperando para proteger, restaurar e garantir cuidados continuados e
de manutenção aos cemitérios11. Os cemitérios europeus registraram no ano de 2009 mais de
25 mil visitantes espontâneos12; esta demanda mais os trabalhos da ASCE, fez com que
surgisse em 2010 a The European Cemeteries Route (Rota de Cemitérios Europeus) que
relaciona 47 cemitérios de 37 países, criando uma rota de turismo específica para os mesmos.
Na América, com sede em Medelin, na Colômbia, funciona a Red Iberoamericana de
Cementerios Patrimoniales/RED (Rede Ibero-americana de Cemitérios Patrimoniais)13; com
sede na Argentina existe a Revista Adiós (Adeus)14, que é uma publicação oficial da
Avaliação Argentina Vermelha, Gestão de Propriedade de Cemitérios da América Latina e da
Rede Internacional de Avaliação e Gestão de Cemitérios Patrimoniais; no Brasil está em
atividades desde 2004 a Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais/ABEC15, que tem como
11
Para maiores informações ver o site da ASCE.
Disponível em:< http://www.significantcemeteries.org/>. Acesso em: 23 nov. 2010.
12
Para maiores informações ver o site da Rota de Cemitérios Europeus.
Disponível em: < http://www.cemeteriesroute.eu/en/>. Acesso em: 23 nov. 2010.
13
Para maiores informações ver o Blog da RED.
Disponível em: < http://redcementeriospatrimoniales.blogspot.com/>. Acesso em 23 nov. 2010.
14
Para maiores informações ver o site da Revista Adiós.
Disponível em: <http://www.revistaadios.com/>. Acesso em 23 nov. 2010.
15
Para maiores informações ver o site da ABEC.
Disponível em: < http://www.estudoscemiteriais.com.br/apres.html>. Acesso em 23 nov. 2010.
32
objetivo agrupar pessoas que tenham interesse em pesquisar os cemitérios como lugares de
memória, de produção artística e de patrimônio cultural.
Recentemente ocorreram eventos que trataram em específico os temas „morte e
cemitérios‟ no IV Encontro Nacional da Associação Nacional de Estudos Cemiteriais/ABEC
em Piracicaba/SP, no dias 20 a 23 de julho de 2010; o IV Congresso Latino-Americano de
Ciências Sociais e Humanidades: Imagens da morte, em 26, 27, 28, 29, e 30 de julho na
cidade de Niterói/RJ, no qual se pode participar com uma comunicação; e o XI Encuentro
Iberoamericano de Valoración y Gestión de Cementerios Patrimoniales (XI Encontro Ibero-
americano de Valorização e Gestão de Cemitérios Patrimoniais), que ocorreu em 20, 21, 22 e
23 de outubro, na cidade de Paysandú no Uruguai, evento que teve como tema a dimensão
pedagógica dos cemitérios patrimoniais.
No IV Congresso Latino-Americano, Imagens da Morte, realizado em Niterói/RJ em
julho de 2010, uma das atividades previstas na programação do evento foi à realização de uma
reunião de trabalhos para a construção de uma „rede‟ científica de pesquisadores, na qual foi
decidido pela criação de um grande projeto, na qual os pesquisadores e seus grupos de estudos
cadastrariam seus projetos para fins de captar recursos, aproximar, favorecer as trocas e a
circulação das pesquisas, fortalecer os estudos tanto em nível nacional como internacional.
Para o corrente ano está programado o simpósio temático “Imagens da Morte: a morte e
o morrer na sociedade brasileira”, proposto pelas pesquisadoras Drª Maria Elizia Borges e Drª
Cláudia Rodrigues, junto ao XXVI Simpósio Nacional da ANPUH (Associação Nacional dos
Professores Universitários de História) que acontecerá em São Paulo de 17 e 21 de julho16; e o
XII Encuentro Ibero-americano de Valorización y Gestión de Cementerios Patrimoniales
(XII Encontro Ibero-americano de Valorização e Gestão de Cemitérios Patrimoniais) e o V
Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais/ABEC, que será
realizado de 11 a 15 de outubro, na cidade de Salvador na Bahia17.
Pensa-se que as temáticas da morte e cemitérios poderiam representar e constituir um
debate mais denso e integrado em relação aos campos da memória, patrimônio, cultura e
sociedade como um todo e numa dimensão interdisciplinar e transversal da produção do
conhecimento. Neste sentido, tanto as pesquisas, os estudos, a produção bibliográfica, as
associações, os grupos de trabalhos, os encontros de pesquisadores, as ações públicas e as
16
Informações disponíveis em: <http://www.snh2011.anpuh.org/simposio/view?ID_SIMPOSIO=607>. Acesso
em: 03 jan. 2011.
17
Informações disponíveis na 1ª Circular do Evento disponível em:< http://morte-cemiterios.blogspot.com/>.
Acesso em: 18 jan. 2011.
33
demais iniciativas em torno dos temas são muito válidas e devem ser reforçadas,
intensificadas e ampliadas cada vez mais, numa tentativa de que a temática se legitime como
área e linha de pesquisa para que ganhem maior espaço, circulação e evidência também em
outras áreas do conhecimento. Que se consiga estabelecer uma abordagem de sentido
integrado, interdisciplinar e multidisciplinar da produção do conhecimento, também que seu
alcance e abrangência sejam para além dos estudos e debates em diferentes cursos, institutos,
departamentos e instituições da comunidade científica para assim alcançar e envolver de
forma ativa e participativa a sociedade contemporânea.
34
Não se pode esquecer que a relação e a experiência com a morte18 antecedeu a qualquer
nominação teórica ou verbalização formal a respeito do tema, sendo que muitas vezes esta
experiência se encontrou e se construiu num âmbito existencial subjetivo profundo, de difícil
acesso e de observação das manifestações culturais, por outro lado também podem ultrapassar
domínios e limites demarcados por fronteiras e territórios das sociedades, das nações, das
culturas e/ou das religiões. Sendo assim, o processo de construção de tais estruturas pode ser
encontrado: defasagens, descompassos, sobressaltos, avanços e recuos, transgressões e
alteridades. Entretanto, conta-se com algumas referências já sistematizadas e amplamente
divulgadas, o que de certa forma, permitem construir uma visão perspectiva para o tema e
identificar continuidades, variações e mudanças em torno do mesmo.
18
A palavra morte, conforme se encontra no dicionário Houaiss (2001, p. 1964) corresponde ao fim da vida, à
interrupção definitiva da vida humana, animal ou vegetal; no campo da religião ela pode ser compreendida
como a separação entre a alma e o corpo, que marca a passagem, ao estágio espiritual ou à vida eterna; e na
dimensão física da existência material dos seres como a cessação da luminosidade emitida por um corpo no
espaço cósmico ou o fim térmico de qualquer coisa. A etimologia da palavra é oriunda do latim em que mors e
mortis correspondem à morte e falecimento, seja natural ou violenta; como palavras sinônimas e variáveis,
possui respectivamente: acabamento, autocídio, cacotanasia, cristicídio, decedura, decesso, defunção, deicídio,
desaparecimento, desaparição, distanásia, eutanásia, examinação, exício, extinção, fenecimento, fim,
finamento, furacão, libitina, lomoctônia; óbito, ocaso, ortotanásia, parca, partida, passamento, perda,
perecimento, suicídio, trânsito, transpassamento, transpasse, transpassação, traspasse, traspasso, trespasse
(HOUAISS, 2001, p. 1964). Tais palavras apontam para um campo bastante amplo de possibilidades e por isso
requerem contextualizações específicas em sua utilização e aplicação, como é o caso das palavras
„acabamento‟, „extinção‟, „furacão‟, „parca‟, „partida‟ e „trânsito‟, pois, caso contrário conforme seu aspecto
semântico poderá ser modificado e comprometido de forma significativa.
36
espaço de tempo, que por sua vez organizará sociedades complexas e inventará um sistema da
escrita.
Segundo Hauser (1998) as concepções e atitudes do homem em relação à morte neste
período foram caracterizadas pela ausência de cerimônias e de cultos; pois o homem vivia
dominado pelo medo da fome e dos ataques de inimigos, esforçando-se para se defender
contra a dor e a morte, tentando acima de tudo garantir as necessidades e as condições
materiais de sobrevivência e de vida.
Morin (1970) explica que a morte não existia como um conceito fixo, de consenso, de
domínio e/ou de uso comum, era variável, impreciso, e indicava a noção de um processo
natural, de passagem, de trânsito e de transpassamento. Quando muito se falava na morte
como se falava de um sono, de uma viagem, de um nascimento, de uma doença, de um
acidente, de um malefício, da entrada para a morada dos antepassados, e, no mais das vezes,
de tudo isso ao mesmo tempo. Assim não se pensava, não se formulava ou projetava, não se
antecipava e não se teorizava sobre o sentido e o significado existencial da morte na
experiência humana, o que por sua vez, pode ter deixado o homem da época mais livre e
disposto em relação às decisões para garantir a sua sobrevivência da vida.
Passado este período, dois mitos fundamentais irão se fortalecer em relação à morte nas
concepções das populações: „morte-renascimento‟ e „sobrevivência do duplo‟. Morin (1970)
traz que na concepção de morte-renascimento, através da transmigração das almas, o
indivíduo morto, mais cedo ou mais tarde, renasceria num novo vivo, que tanto poderia ser
uma criança como um animal. Este processo seria permeado de desaparições, reaparições e
transmutações no mundo dos vivos.
A categoria da memória aparece neste momento como um elemento e agente
fundamental no ciclo da morte-renascimento, pois um renascimento ou um novo nascimento
só ocorria depois que a presença, e as recordações da individualidade e identidade do falecido
já tinham sido esquecidas entre os que permaneciam vivos. Estas reflexões indicam à
existência de uma espécie de regulação que pairava e que regia a morte e a vida no mundo dos
mortos e dos vivos antigos, controlado pela lembrança, pela memória, pela distância, pelo
tempo; a desmemória e o esquecimento indicariam o momento da continuidade cíclica e
renovação e reencarnação dos espíritos nas populações.
Estas concepções apontam para o fenômeno de que quanto mais rápido um ser era
esquecido da memória e das lembranças das populações, mais rápida também poderia ocorrer
37
a sua reencarnação e o retorno ao mundo dos vivos. Por outro lado os indivíduos que de
alguma maneira persistiam na memória, que eram relembrados e rememorados pelos vivos
frequentemente teriam seu retorno adiado. Quem sabe, neste contexto estariam fundadas as
concepções e ideias de ressurreição e paraíso celeste; e com os pés na contemporaneidade
indaga-se: estaria no intuito de retardar o retorno a forma de vida terrena a busca ofegante
pela notoriedade e celebridade de nossa época?! Se assim fosse poder-se-ia pensar que o
inferno acabaria por existir na dimensão terrena e o paraíso, na dimensão celeste; porém os
motivos pelo forte desejo de ingresso no mundo das celebridades parecem estar associados à
compreensão de que este é o paraíso das experiências.
Morin (1970) sinaliza também que a concepção da morte-renascimento era universal
para os povos arcaicos da Malásia, Polinésia, Esquimós e os Índios Americanos. Ainda hoje
constitui a crença de seiscentos milhões de seres humanos, servindo como bases ao
ocultismo19 contemporâneo, além de subsistir com indícios da reencarnação em numerosos
mitos, fábulas, folclores, literaturas e até em filosofias.
A concepção de sobrevivência do duplo como se encontra em Morin (1970) se relaciona
a ideia de sobrevivência de um espírito, conforme ocorre na reprodução com a duplicação
cromossômica, em que outro é fabricado quase automaticamente, semelhante também ao
reflexo do espelho, da sombra, um produto espontâneo da consciência de si próprio, o
espírito. Quando a autor propõe a concepção de „morte-renascimento‟, tem-se a impressão
que ela se circunscreve numa esfera cíclica e espiral entre o mundo dos mortos e mundo dos
vivos, onde a dualidade se torna necessária à manutenção da ordem das coisas; já na
concepção de „sobrevivência do duplo‟ tem-se a impressão de que esta se restringe somente à
esfera terrena da existência, numa espécie de convívio comum/conjugado entre os vivos, sem
a possibilidade de migração e existência em outras dimensões.
Não se pode perder de vista que em determinados momentos e contextos as duas
concepções, morte-renascimento e sobrevivência do duplo, conviveram harmonizadas, em
outros se distanciaram em maior ou menor grau, e ao longo do decurso da história irão
transformar-se, dissociar-se e renovar-se sem cessar. Com o surgimento dos deuses no final
da pré-história, nos primórdios da antiguidade, com o movimento geral de urbanização das
civilizações, o homem avança na tomada de consciência de si e acaba por promover a
19
Conforme se encontra em Houaiss (2001, p. 2049) consiste na crença na ação ou influência dos poderes
sobrenaturais ou supranormais; o conjunto das artes ou ciências ocultas, como a magia, o espiritismo e a
astrologia.
38
passou a perceber que poderia controlar e dominar as forças da natureza; também não restam
dúvidas que o fortalecimento do Cristianismo também foi determinante nesta questão, que por
sua vez, favorece o recuo da ideia morte-renascimento e da sobrevivência do duplo.
A concepção de ressurreição e elevação da alma a um paraíso celeste, em grande
medida foi a responsável pela manifestação do desejo na edificação de jazigos para guardar os
corpos dos mortos, as lápides, os epitáfios e os demais ornamentos e acompanhamentos que
se conhece, a partir destas concepções:
[...]se dá início a fase do animismo, do culto de espíritos, de crença na
sobrevivência da alma, e do concomitante culto dos mortos. Entretanto, com
a crença e o culto surge também a necessidade de ídolos, amuletos, símbolos
sagrados, oferendas votivas, oferendas fúnebres e monumentos funerários.
Estabelece-se agora a distinção entre arte sacra e profana, entre uma arte de
representação religiosa e arte de ornamentação secular (HAUSER, 1998, p.
11).
Assim a experiência da morte pode ter introduzido pela primeira vez a ideia do
sobrenatural e do religioso ao homem, e que a partir de então ele quis e passou a confiar
também em coisas que ultrapassavam a visão imediata e os domínios dos olhos e da
materialidade. De uma maneira ampla, os autores sugerem que a morte significou e
representou para o homem deste período, o primeiro grande mistério, segredo e enigma em
sua vida. Com a consciência da morte o homem se deu conta de si mesmo e da complexidade
de sua existência, o que por sua vez colocou e inspirou o homem no caminho de outros
mistérios do universo, elevou seu pensamento do visível para o invisível, do passageiro para o
eterno, do humano para o divino.
queda do império romano entre outros, são os marcos e fatos que caracterizam este período da
história da humanidade.
Este período pode ser ainda compreendido como prolongamento do período anterior,
diante do fato de que também foi marcado pelo temor em relação aos mortos, temor dos
espíritos errantes, dos que não tiveram uma sepultura para repousar ou que a mesma tivesse
sido violada. Desprovido de uma sepultura ou que a mesma houvesse sido violada os espíritos
poderiam retornar e perturbar os vivos, então se fazia urgente uma sepultura segura, que não
pudesse ser perturbada e o que espírito descansasse tranquilamente. Conforme traz Coulanges
(1961) outras exigências acompanhavam o sepultamento:
Na antiguidade não bastava confiar o corpo a terra, era necessário ainda
obedecer a ritos tradicionais, e pronunciar determinadas fórmulas. Já que
sem eles os espíritos tornavam-se errantes e apareciam aos vivos, era
evidente que tais ritos fixavam-nos e encerravam-nos dentro dos túmulos
(COULANGES,1961, p. 21).
Estas concepções giravam em torno de que a criatura humana vivia na sepultura e que a
alma não se separava do corpo, por sua vez, permanecia unida à parte do solo onde os ossos
estavam enterrados e ainda exigia responsabilidades e cuidados por parte dos vivos, conforme
descreve Coulanges (1961) em determinados dias do ano eram depositados alimentos em cada
túmulo.
Aos poucos esta ideia de espírito que poderia se tornar errante vai sendo deixada de lado
e a ideia da morte maternal passa a prevalecer; e conforme arrola Morin (1970, p. 113) a
morte maternal corresponderia a “uma maternidade da terra-mãe, do mar-mãe, da natureza-
mãe que aceitava de novo no seu seio o morto-filho”. Uma maternidade além da mulher-mãe
propriamente dita, numa espécie de reintegração natural, de retorno às raízes e às origens.
Neste aspecto compreende-se que a edificação do jazigo passou a ser acompanhada pelo
desejo de que este estivesse em um local que possibilitasse o reencontro com as origens, neste
caso o mais apropriado seria a primeira pátria, a terra natal propriamente dita. A partir de
então a terra-cidade natal passa, em grande medida, a exercer uma espécie de força de atração
sobre as populações, principalmente na medida em que a morte se aproxima, sendo que ainda
hoje é comum encontrar este desejo sendo cumprido em diversas culturas.
Coulanges (1961) discute que deste modo, estabeleceu-se uma verdadeira religião da
morte, cujos dogmas do medo gradualmente se reduziram a nada, mas cujos ritos duraram até
o triunfo do Cristianismo; encontra-se o culto dos mortos entre os helenos, entre os latinos,
41
entre os sabinos e entre os etruscos; entre os árias da Índia, como são mencionados nos hinos
do Rig-Veda, os antigos documentos da literatura hindu.
Neste sentido Hauser (1998) descreve que nas culturas urbanas do Oriente Médio, as
grandes obras de arte, de escultura monumental e pintura mural, não foram criadas com um
fim em si mesmas, ou por sua beleza intrínseca, nem para decorar os palácios, templos, praças
públicas ou os ambientes domésticos como na Antiguidade Clássica ou na Renascença, a
maioria delas ficavam no interior escuro do santuário e nas profundezas dos sepulcros.
Porém tais edificações não eram edificadas aos mortos da sociedade como um todo,
conforme registra Hauser (1998, p. 43) “[...] o povo de modo geral acabava por enterrar seus
mortos na areia sem erigir memoriais permanentes”. Assim a possibilidade de construir e
possuir santuários não se estendia ao povo comum, pois não apresentavam condições e nem
possibilidade de empregar artistas, adquirir obras de arte, o que dirá construir jazigos e
capelas suntuosas a seus mortos. O que perdura então são as obras edificadas por grandes
patriarcas, lideranças religiosas e pessoas ilustres do Estado. No quinto capítulo deste estudo
será observado as distinções sociais que ainda hoje são constantes nos espaços dos cemitérios
e nas homenagens proferidas aos mortos.
Coulanges (1961) descreve que as mais antigas gerações, antes mesmo do surgimento
dos filósofos, acreditavam em uma segunda existência posterior à atual; e encaravam a morte
não como dissolução do ser, mas como simples mudança de vida. Morin (1970) esclarece que
a ideia de imortalidade da alma e de salvação surgem de um mesmo movimento a partir do
culto trácio21 a Dionísio, o deus das festas e da embriaguês:
[...] no confortável ambiente dionisíaco, a alma deslumbrada, desfalecida,
ébria de plenitude, em sua identificação com o deus touro, exalta-se na
comunicação extática, revela-se de natureza divina e assegura ao homem não
uma sobrevivência de um duplo, mas sim uma ressurreição, uma vida nova,
resplandecente, dotada de um corpo novo, imperecível (MORIN, 1970, p.
172).
Sócrates (1983), filósofo/pensador deste período, por sua vez definiu a alma como
aquilo que é invisível e que se dirige para um outro lugar, um lugar que lhe é semelhante,
lugar nobre, lugar puro, lugar invisível; este lugar seria o país de Hades, que fica próximo de
Deus; o filósofo explica que as almas dos defuntos vão para este lugar para receber o que cada
21
Conforme Houaiss (2001, p. 2744) a Trácia é relativa antiga região da Europa.
42
uma merece e permanece o lá o tempo conveniente, depois novamente retorna e renasce dos
mortos22.
Percebe-se nas teorizações do filósofo a semelhança com a ideia de transmigração das
almas presente nas concepções de morte-renascimento oriundas das sociedades mais antigas e
primitivas. Assim surgem as concepções de imortalidade, mas a imortalidade da alma. Já os
deuses, conforme segundo Morin (1970) seriam resultantes da conjugação de duas dimensões,
de uma extensão das sociedades arcaicas e da diferenciação social (grandes e comuns), pela
sua evolução geral. Neste sentido se configurariam dois planos hierárquicos no mundo dos
mortos, a dos grandes mortos e outro dos comuns mortais.
No mundo mediterrâneo foi notável a evolução pela conquista da salvação, com os
progressos da economia urbana, este direito democratizar-se-á aos escravos e às mulheres,
assim submergirá as antigas divindades e finalmente tenderá a unificar-se no seio do Império
Romano. Neste sentido Morin (1970, p. 194) descreve que:
O cristianismo é a ultima religião de salvação, a última que será a primeira, a
que exprimirá com mais violência, mais simplicidade e mais universalidade
o apelo da imortalidade individual, o ódio da morte. Cristo irradia em torno
da morte, só existe para e pela morte, traz consigo a morte e vive da morte.
22
Sócrates fez estas considerações no momento em que preparava para cumprir a pena de morte a qual havia
sido determinada, na forma de ingerir Cicuta, bebida que paralisaria gradualmente o corpo e provocaria a
morte.
43
Conforme Burns (1968) a Idade Média situa-se no longo período que transcorre,
aproximadamente, entre os séculos V e XV na história da humanidade, é descrita como palco
de maiores acontecimentos o hemisfério Ocidental e em especial o continente Europeu. Este
período foi marcado pelo regime econômico, político e religioso do Feudalismo em que a
propriedade da terra representava a fonte de maior riqueza, a Igreja Católica associada ao
Senhor Feudal forjava e monitorava o cotidiano e as mentalidades da população da época.
O período medieval é caracterizado também pelas invasões e saques dos povos
bárbaros, vindos das regiões ao norte da Europa que não falavam as línguas derivadas do
latim; posteriormente pelas Cruzadas, expedições de guerra e conquista dos espaços
considerados sagrados (em que Jesus Cristo havia nascido, feito seus principais milagres e
sido enterrado) no Oriente Médio, mobilizadas pela Igreja Católica e pelos senhores feudais;
pela Guerra dos Cem Anos, travada entre a França e Inglaterra; pela Peste Negra, doença
infecto contagiosa que assolou cidades inteiras; e pelo fortalecimento das Monarquias
Nacionais em todos os países europeus.
Elias (2001) descreve a Idade Média como sendo um período excessivamente instável,
de muita violência, perseguições, conflitos e guerras. As epidemias varriam as cidades,
milhares morriam atormentados e abandonados sem ajuda e conforto; de más colheitas que
frequentemente faziam escassear os alimentos; de multidões de mendigos e andarilhos que
acabaram por se tornar uma característica normal da paisagem medieval.
O mesmo autor explica que as pessoas eram capazes tanto de uma grande gentileza
quanto de uma crueldade bárbara, júbilo pelo tormento dos outros e total indiferença em
relação aos seus sofrimentos. Os contrastes eram mais marcados que os de hoje, satisfação
desenfreada dos apetites e a auto-humilhação, o ascetismo e a penitência; o peso do sentido
aterrorizante do pecado, e o fausto dos senhores e a miséria dos pobres; o medo da punição
depois da morte e a angústia em relação à salvação da alma que se apossavam igualmente de
ricos e pobres.
Ariès (2003) arrola que nesta época, não se morria sem ser avisado, sem se ter tido
tempo de saber que se iria morrer; o que permitia esperar pela morte no leito, enfermo, o
44
moribundo deveria ficar deitado de costas porque assim seu rosto estaria voltado para o céu.
A morte, por sua vez, possibilitava a todo um processo social específico:
A morte era uma cerimônia pública e organizada, organizada pelo próprio
moribundo, que preside e conhece seu protocolo. O quarto do moribundo
transformava-se em um lugar público, aonde se entrava livremente. Era
importante que os parentes, amigos e vizinhos estivessem presentes,
levavam-se inclusive as crianças (ARIÈS, 2003, p. 34).
Costa (2009) explica que desta maneira a morte era domada nas consciências das
populações, na qual os ritos eram aceitos e cumpridos com muita simplicidade, de modo
cerimonial, mas sem caráter dramático ou gestos de emoção excessivos; eram admitidas
lágrimas e choro apenas por parte das mulheres, na função de carpideiras. Tudo indica que o
sentimento mais comum em relação à morte era a palavra de serenidade, em função do mundo
dos vivos estar ligado ao dos mortos, a morte era encarada com tranqüilidade e resignação,
pois ela era o grande momento de transição, transição fundamental, das coisas passageiras
para as coisas eternas.
A familiaridade com a morte era uma forma de aceitação da ordem da natureza, ao
mesmo tempo ingênua na vida cotidiana e sábia nas especulações astrológicas. Com a morte
o homem se sujeitava a uma das grandes leis da espécie e não cogitava evitá-la e/ou exaltá-la.
Simplesmente a aceitava, apenas com a solenidade necessária para marcar a importância das
grandes etapas que cada vida devia cumprir.
Porém, Costa (2009) descreve que as maiores angústias e preocupações não se
encontravam no fato da morte em si e por ela mesma, mas com relação à salvação da alma.
Ao pensarem o além, ao preocuparem-se com o pós-morte, os medievais tornaram a realidade
transcendente: como o mundo dos vivos e o mundo material era efêmero, era um mundo de
aparências, era uma representação - uma imagem, uma ideia de algo - a vida no mundo
deveria voltar-se para o verdadeiro significado oculto por trás do véu da matéria. Esse sentido
da vida humana era dado pelo mundo do além.
Burns (1968) descreve que a partir do século XII e XIII, a metade final da Idade Média,
vários movimentos intelectuais passaram a se manifestar e culminaram com o Renascimento
cultural a partir das produções de São Francisco de Assis, Dante Aleguieri, Nicolau
Copérnico, Leonardo da Vinci, Galileu Galilei, Miguel de Cervantes, Erasmo de Roterdã,
Nicolau Maquiavel, Miguel Angelo entre outros; período em que passam a ocorrer lentas
mudanças nas concepções de morte que passarão a ser evidenciadas nas políticas de saúde
pública e incorporadas ao cotidiano das populações na época seguinte.
45
Conforme discute Ariès (2003) o homem do fim da Idade Média, ao contrário, tinha
uma consciência bastante acentuada de que era um morto em suspensão condicional, de que a
vida era curta e de que a morte, sempre presente em seu âmago, despedaçava suas ambições e
envenenava seus prazeres. Esse homem tinha uma paixão pela vida que hoje custa a ser
compreendida talvez porque a vida tenha se tornado mais segura e longa. Ou seja, o fato de o
homem ter pretendido ter sobre seu „controle‟ as circunstâncias que faziam da vida uma
experiência de surpresa, sorte e mistério, tenha enfraquecido a intensidade com a qual
procurava vivê-la. Quem sabe esteja neste fato e ainda mais na possibilidade de o homem
procurar „vencer‟ a morte o ponto cerne da crise que se ampliará e potencializará como crise e
mal-estar na consciência do homem moderno e contemporâneo.
morte simples e familiar da Idade Média. Na cidade, os homens ricos e instruídos temiam a
morte, mas havia o desejo de experimentar a doçura narcótica, obscura e a paz maravilhosa
prometida pela morte.
Conforme explica Borges (2002) este sentimento na época romântica provocou uma
espécie de apoteose barroca. Na metade do século XIX, a morte era um assunto muito
frequente nas produções literárias da época, surgiram também uma série de testemunhos em
diários e correspondências que narravam o sofrimento dos entes queridos e dos moribundos
diante das doenças da época, em especial a tuberculose, considerada na época como o „mal do
século‟, que ganhou ares de romantismo, inspirava horror e a possibilidade de fuga, o amor
impossível e o desejo obscuro23.
Neste cenário, Morin (1970) chama a atenção para o fato de que o problema da morte
não esteve somente no joguete externo da luta de classes; esteve também no conflito interno
no seio da nova individualidade dos sujeitos e que a partir destas postulações tudo o que havia
sido dito e tudo o que se poderia dizer sobre a morte apresentava-se a uma consciência em
crise, como se não tivesse qualquer relação com a própria morte. O conceito de morte não
estaria na morte propriamente dita, e sim no vazio que emergiria nos sujeitos com a
radicalização da secularização e da individualização das sociedades.
Conforme se aprofunda o processo de secularização das sociedades e avançam as
conquistas do campo científico e técnico sobre as manifestações das tradições religiosas e
culturais, gradualmente as concepções sagradas e simbólicas da morte vão perdendo força e
espaço. Porém com a impotência da individualização, da razão e da ciência perante a morte
serão utilizados os últimos recursos na tentativa de conhecer/decifrar/dominar a morte,
procurando fazê-la recuar derrotadamente promovendo um afrontamento de esquizofrenia, de
pânico e de angústia que revelará a face do aspecto mais frágil de equilíbrio da própria
essência de ser e existir do homem.
23
Neste contexto podem ser relacionados os escritores Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire, Álvares de
Azevedo, Augusto dos Anjos, Casemiro de Abreu, Castro Alves, entre outros.
48
aquém dos temas centrais de debate nas sociedades contemporâneas dimensão se encontra
distante de representar o que se possuiu e/ou se garante um debate consolidado, amplo,
aberto, crítico e significativo, e de maneira ampla, pode-se dizer que prevalece ainda é o
caráter de tabu.
Ao longo da análise das diversas concepções de morte, percebe-se que estas assumiram
diferentes formas e a questão que permeia todo este percurso é, em grande parte, se o homem
aceitou ou negou a morte em seu cotidiano. Pelo que se pode perceber, o que prevaleceu ao
longo da trajetória do homem e da humanidade é que a morte foi negada, quando muito, o que
mudou foi tão somente a maneira de explicar a mesma e não a concepção de morte em si,
principalmente na crença da „sobrevivência do duplo‟, na ideia de „imortalidade da alma‟, na
de „morte domada e as dúvidas com o destino das almas‟, ou nas concepções mais
contemporâneas em que a morte entrará em crise e será elevada a categoria de „tabu‟.
Neste contexto poderiam ser relacionadas, em grande medida, as fantasias religiosas de
vida após a morte nos campos de caça das primitivas comunidades caçadoras; a crença dos
faraós em guardar seus corpos mumificados, em tumbas e em sarcófagos no interior das
pirâmides; a ideia de „entrada no paraíso‟ sustentada pelas tradições cristãs e islamitas entre
outras, bem como as práticas de embelezamento do corpo e os avanços da medicina
contemporânea.
As reflexões também poderiam ser ampliadas a outros aspectos, não contemplados neste
momento, como o distanciamento da discussão do tema da morte na infância, a vasta indústria
de filmes de terror, o culto à violência, a superação cada vez maior do arsenal bélico e sua
capacidade de destruição e morte, como vetores que podem fornecer indícios de como está
sendo abordada e como se encontra negada e escamoteada à problemática da morte na
contemporaneidade. Tal contexto parece antes endossar a angústia e o mal-estar do momento
do que oferecer oportunidades de compreensão e orientação diante da mesma.
53
24
A palavra cemitério designa espaço, terreno ou recinto em que se enterram e guardam cadáveres humanos,
animais mortos; ou ainda lugar em que jogada e depositado objetos velhos, antigos e inutilizados.
Etimologicamente a palavra tem sua origem no alfabeto grego Koimētḗ rion, que significa lugar para dormir.
Quando passou para o latim, foi denominada coemeterĭum, e progressivamente evoluirá para zemitério. No
século XIII a palavra „cemitério‟ ganhará a escrita de cimiteyro, cemeterio, çimitereo, já no século XV, passou
a syrjmjterjo. A palavra possui como sinônimos adro, almocabar, almocavár, almocave, campo-santo, carneiro,
covão, dormitório, fossário, mossondi, necrópole, requeitório, sepulcrário (HOUAISS, 2001, p. 670). Existe
também a origem latina do termo, conforme descreve Filho (2007) que vem do latim tardio na forma de
coemeterium, que deriva, por sua vez, das palavras cinos e renor, que significam respectivamente „doce e
mansão‟. As várias outras denominações, como necrópole, terra santa e, desde que não seja em terreno de
Igrejas, também campo-santo literalmente denotam dormitório e lugar de repouso.
54
Conforme Munford (2008, p. 5) “os jazigos destinados aos sepultamentos desta época
eram na forma de cavernas, de cova assinalada por um monte de pedras e de uso coletivo”, e
constituíam marcos e pontos de referências aos quais provavelmente os vivos retornavam de
tempos em tempos, a fim de comungar ou de aplacar os espíritos dos seus ancestrais. Porém o
autor não descreve informações precisas sobre a existência de regiões e locais próprios e
específicos quanto à acomodação dos mortos, porém o fato de que as populações retornavam
para fazer homenagens indica que deveriam ser locais de fácil localização e acesso e ao
mesmo tempo seguros diante das possibilidades de saques e violações.
Assim, o autor propõe que a prática da agricultura não motivou por si só e
definitivamente a ocupação de um espaço fixo pelo homem, porém os mortos é que o
concretizaram, consequentemente nesta perspectiva, a cidade dos mortos antecederia a cidade
dos vivos; antes a cidade dos mortos seria quase que o núcleo fundador do processo de
urbanização e civilização das sociedades vivas. Além do mais, como se comentou
anteriormente na página 39, pairava no imaginário dos povos antigos que um corpo sem
sepultura se tornava miserável, e que somente na sepultura se tornava feliz; um corpo sem
sepultura significa um espírito infeliz, que se tornava errante a perturbar os vivos, logo
garantir o repouso e a felicidade da alma do morto, bem como realizar as homenagens, os
lutos, os ritos significava garantir também a paz e o sossego dos povos vivos.
na França”. O fato de enterrá-los ao longo das estradas dificultaria que estes alcançassem as
cidades dos vivos, assim o faziam por acreditar que os mortos enterrados ou até mesmo
incinerados eram impuros e podiam perturbar e „poluir‟ os vivos, o que acaba por sinalizar
além do medo e do temor pelos mortos, as primeiras preocupações higienistas e sanitárias
diante do processo de decomposição e putrefação dos corpos em si.
Entretanto, Ariès (1989, p. 34) descreve que “a repugnância à proximidade dos mortos
logo cedeu espaço entre os cristãos antigos, primeiro na África e em seguida em Roma”.
Apesar do reconhecimento comum da morte tanto entre a atitude pagã e a nova atitude cristã
em relação aos mortos, ambas seguirão por caminhos diferentes, em que a atitude cristã com
seus dogmas buscará conciliar dois mundos, o dos mortos e o dos vivos, o que daí por diante
firmará uma proximidade que resultará na coabitação entre os dois, relaxando a distância e os
temores, prática que resistirá pelo menos até o século XVIII.
As mudanças que as concepções do cristianismo colocaram em prática foram profundas,
e conforme Castro (2008) antes do advento do cristianismo o termo utilizado para designar os
locais onde se realizavam os sepultamentos era a palavra „necrópole‟ (cidade dos mortos) e,
posteriormente, muda-se para o termo „cemitério‟, que se refere ao local de dormir e de
descanso. Percebe-se que com a mudança do termo, também ocorreu certa mudança na
concepção e na relação com os mortos, o cristianismo passará a adotar uma profunda relação
de ritos e reverências religiosas e sagradas em relação aos mortos, favorecendo assim uma
aproximação tanto no que diz respeito aos moribundos e aos mortos, como também em
relação à morte como um todo.
Conforme foi discutido no capítulo anterior, a partir da página 45, o que passa acontecer
a partir do século XVIII é o processo de secularização e laicização da sociedade, e que em
palavras gerais implicou na separação entre os poderes da Igreja e do Estado, que até então se
encontravam unidos em uma só estrutura, governando politicamente e espiritualmente. O
movimento da Reforma Protestante, o crescimento dos centros urbanos e os discursos que
defendiam a segurança higiênica das populações serão determinantes neste processo. Desde o
século XVI ocorreram conflitos e discussões que impulsionaram uma nova relação com o
espaço necropolitano, agora visto e compreendido como um antro putrefato depositário de
doenças.
O processo de secularização gradualmente promoveu o afastamento/isolamento entre o
mundo dos mortos e a cidade dos vivos, e diante disto implicações mais profundas afetará
todo o sistema em vigor de se pensar a morte e os mortos; como explica Foucault (1987)
envolverá um contexto mais amplo da ideologia de controle, que se multiplicará por todo o
corpo social, formando o que se poderia chamar de sociedade disciplinar.
A nova ordem da sociedade disciplinar abrangeria uma política de hospitais,
manicômios, prisões, escolas, praças, cemitérios entre outros espaços públicos, de
convivência, de circulação, de encontro e reunião das populações, enfim um regime que
invadiria e vigiaria o comportamento e costumes nos espaços de sociabilidade, intervindo
com leis, normas e punições, que buscavam eliminar qualquer ameaça possível em relação à
nova ordem/poder - a do estado laico e secularizado; envolto e embutido num discurso que
visava garantir o bem-estar físico, a saúde perfeita e a longevidade das populações. Neste
contexto como discute Foucault (1987) surgem como ferramentas as estimativas
demográficas, cálculos da pirâmide das idades, das diferentes esperanças de vida, das taxas de
morbidade, estudos do papel que estas variáveis desempenham uma em relação a outra, o
crescimento das riquezas e da população, diversas incitações ao casamento e à natalidade,
desenvolvimento da educação e da formação profissional; neste cenário é que serão propostas
as teorias de Adam Smith, Charles Darwin, Thomas Malthus entre outros.
A desconfiança higiênica casar-se-á com as intenções do novo Estado em se legitimar
no poder e estabelecerá um regime de vigilância, de controle e de intervenções autoritárias em
diversos espaços e para diferentes fatores que a partir de então deveriam ser controlados e
59
monitorados. Conforme discute Foucault (1987), neste sentido deverá ser levado em
consideração à localização dos diferentes bairros, sua umidade, sua exposição, o arejamento
total da cidade, seu sistema de esgotos e de evacuação de água utilizadas, a localização dos
cemitérios e dos matadouros, a densidade da população. Segundo as autoridades do período
estes espaços eram os responsáveis diretos pelos índices e indicadores da qualidade de vida
das populações.
Os novos Cemitérios surgirão neste mesmo contexto e ao lado dos outros aparelhos
disciplinares da medicina urbana como prisões, conventos, manicômios, estabelecimentos de
ensino, quartéis, fortalezas, hospitais. Conforme Lima (1994, p. 90) se terá “no isolamento, na
meticulosa organização, repartição do espaço e no princípio do quadriculamento
individualizante, as estruturas e os fundamentos para melhor garantir a eficiência da
observação, do controle e da dominação da população.
E a individualização e o enquadramento também se estenderam a aspectos mais
específicos da tradição funerária, como traz Foucault (2003, p. 89) “o caixão individual, as
sepulturas reservadas para as famílias, onde se escreve o nome de cada um, serão colocados
no campo e em regimento, uns ao lado dos outros”. Além das preocupações com a disciplina e
com a ordem também carregavam os aspectos da racionalidade organizacional e positivista
dos comportamentos, em que o regimento „um ao lado do outro‟ e em „filas ordenadas‟
perpassou e ditou norma a várias esferas e âmbitos da sociedade. Percebe-se esta disposição
na organização interna das escolas nas salas de aula, dos hospitais nos leitos de internação,
dos exércitos na apresentação dos recrutas, e até das Igrejas na disposição dos bancos para os
fiéis se acomodarem.
Obedecendo e adequando-se aos novos padrões, aos poucos os cemitérios se tornarão
verdadeiras cidades e condomínios fechados, com horário de abertura e de fechamento, o que
regulará a entrada e saída dos visitantes e por sua vez o contato entre os vivos e os mortos. O
horário permitido para visitação será no período diurno, à luz do sol, onde reinará a “ordem”,
a limpeza, a higiene, pois o período noturno, no qual reinam as trevas, perde-se a visibilidade,
e com ela as possibilidades de controle; com a noite os locais se tornam escuros e favorecem
as conspirações, os golpes, os atos ilícitos. Assim cresce gradualmente o medo e o temor em
relação aos mortos e aos cemitérios, e a desconfiança para com todo e qualquer cidadão vivo
que não se enquadrasse e não respeitasse as novas ordens e horários, entre eles estariam os
andarilhos, maltrapilhos, os marginais, loucos, infectados, doentes entre outros.
60
Castro (2008) a partir da pesquisa de Oliveira (2007) em 1793 uma portaria francesa
regulamentava outras questões acerca do que deveria ser respeitado na construção de novos
cemitérios. Por esta portaria ficava proibido o sepultamento em perímetros urbanos e,
decretava-se a substituição de padres por funcionários da administração pública. Ordenava
também, que os símbolos religiosos fossem substituídos por símbolos cívicos e também que o
recinto fosse arborizado. Com tais regulamentações o cemitério se firmava, pouco a pouco,
como um tema de gerência e gestão pública. Passou a ser incluído no rol dos problemas
urbanos, sendo um dos equipamentos especializados e indispensáveis à infraestrutura da
cidade e que necessitava redefinir uma nova arquitetura e determinar uma localização
específica.
O fato de os funcionários do governo assumirem os espaços e os papéis antes realizados
por padres e representantes religiosos nos preparativos e na condução de um funeral, afetará
as populações estrutural e simbolicamente. Apressadamente retira-se a simbologia religiosa e
fixam-se símbolos cívicos, como bandeiras, brasões, medalhas, títulos e demais
condecorações; o que caracterizará e simbolizará os aspectos da secularização propriamente
dita.
Outro aspecto diz a ser considerado nos cemitérios contemporâneos é que a arborização
deixou de ser relevante, parece que foi a que menos ganhou atenção assim como pode ter
ocorrido, as árvores já existentes nos espaços dos cemitérios foram sacrificadas à fim de
possibilitar ampliações do terreno e mais sepultamentos nos cemitérios.
No Brasil, as movimentações em torno da adequação dos cemitérios às novas normas e
orientações sofreram percalços e entraves que se estenderam aproximadamente por quase um
século. Borges (2002, p. 140) descreve que “em 1789, D. Maria de Portugal enviou uma
recomendação ao Bispo do Rio de Janeiro, Dom José Joaquim Justiniano Mascarenhas
Castelo Branco, para que se construíssem cemitérios separados da Igreja, tal como já se fazia
na Europa”.
Estas recomendações oficiais ainda não foram o bastante para que ocorressem avanços
de ordem prática na criação de cemitérios longe dos centros urbanos e das Igrejas e exigiria
conforme Guedes (1984) & Borges (2002, p. 140) descrevem que “D. Pedro I, 27 anos depois,
emitisse uma lei expressa no “artigo 66, parágrafo 2.º, da Lei de 1.º de outubro de 1828”, que
obrigava as câmaras e províncias a criar cemitérios a céu aberto do tipo convencional. Quem
61
sabe, esta lei surgiu com a intenção de que repassando as determinações dos novos cemitérios
às instâncias locais, estas poderiam ser efetivadas e cumpridas.
Guedes (1984) afirma que os maiores defensores do processo de secularização dos
cemitérios eram os políticos da corrente liberal e juntamente com esta questão encontrava-se
em pauta também a luta pelo estabelecimento do casamento civil e a institucionalização do
registro civil; o que acabava por provocar disputas acirradas no campo da política nacional,
entre conservadores e liberais, porém os debates se prolongaram tanto que, conforme aponta
Borges (2002, p. 142) somente “com o Decreto Federal nº. 789 de 27 de setembro de 1889” é
que se consolidou esta plataforma; ou seja, ao mesmo tempo em que se decidia e firmava a
Proclamação da República.
Mas as agitações não amenizaram e foram além do campo político propriamente dito, e
ganharam espaço entre os movimentos populares. Conforme descreve Reis (1991) no final do
século XIX, na Bahia, ocorreu à revolta da Cemiterada, que destruiu o cemitério recém
construído, o Cemitério Campo Santo; ele trazia os padrões definidos pelas leis de
higienização e para onde a partir daquele momento os sepultamentos deveriam ser feitos. A
revolta consistiu em um levante pluriclassista e multirracial, numa tentativa de impedir as
mudanças previstas nas práticas de sepultamento.
Santos (2006) analisa que, com o processo de secularização da sociedade, o vínculo
religioso foi progressivamente marginalizado e por várias vias: pela repressão violenta, nas
proibições de culto entre as populações e confisco dos bens das Igrejas; pela substituição de
funções, nas diferentes formas de secularização protagonizadas pelo Estado, dos ritos
funerários à educação; e pela acomodação em posição de subordinação, nas leis de separação
da Igreja e do Estado. Assim, a partir das justificativas e dos argumentos higienistas,
combinados com as preocupações da burguesia em ascensão, da sociedade industrial, urbana,
moderna e da política liberal os cemitérios foram gradualmente afastados das populações, sem
que pudessem refletir sobre as mudanças que seriam provocadas tanto na mentalidade, como
na memória, no imaginário, nas formas de compreender, de significar e de se relacionar com a
morte e os cemitérios.
62
Os espaços dos cemitérios, por serem espaços públicos, locais em que é possível
adquirir propriedade particular, de certa forma possibilitam algumas práticas que ultrapassam
a mera utilização dos espaços e da função para a qual foram criados. Portanto, pensar as
manifestações da morte no espaço dos cemitérios, requer que se leve em consideração as
dimensões de projeto e ação, estratégia e prática, planejamento e realização, individual/grupal
e coletivo/sociedade, enfim, as funções didático-pedagógicas e políticas destes espaços para
com a cultura, a memória, o patrimônio e a sociedade como um todo.
Atualmente os cemitérios, em sua maioria, encontram-se completamente incorporados à
paisagem urbana das cidades, reunindo aspectos e elementos de sítios arqueológicos
históricos; como locais que reúnem vestígios significativos da cultura material e imaterial, da
passagem e/ou assentamento de populações e sociedades, como estão presentes em engenhos,
usinas, caieiras, residências, portos, igrejas, estradas, caminhos entre outros.
Assim, além de cumprirem sua função dentro de uma organização social e do contexto e
sistema urbano, podem revelar elementos da memória familiar e coletiva, genealogias
familiares, aspectos étnico-culturais, a conjugação das relações sociais, podem servir também
de fonte a estudos sobre crenças religiosas, de movimentos artísticos, a incidência de
ideologias políticas, assim como demais informações sobre expectativa de vida, mortalidade e
longevidade das populações, enfim, a uma vasta possibilidade de temas e abordagens.
Para Ariès (1989), os espaços dos cemitérios poderiam ser compreendidos e ocupados
também como lugares de vida, um teatro e arena de atividades diversas, ao mesmo tempo
museu, centros comerciais de arte e de objetos de lembranças, local de celebrações serenas e
alegres, batismos e casamentos; inspiração de artistas e escritores, cenário a produções
filmográficas, e por que não um local onde as pessoas passam usufruir do contato social e
com a natureza.
Além de as cidades não poderem mais ser imaginadas sem seus cemitérios
convencionais, o fato de muitos estarem sendo inseridos nas relações de locais representativos
e portadores de memória e de patrimônio da humanidade, conforme foi discutido no primeiro
capítulo, e mais as possibilidades de utilização do espaço de forma ampla, e mais as
mudanças que estão em curso que foram apontadas acima, constituem motivos significativos
para que possam ser mais estudadas e analisadas pela comunidade científica e a sociedade de
uma maneira geral.
64
Para dar conta das demandas dos sepultamentos diários, atender às necessidades das
famílias enlutadas, à circulação cotidiana de visitantes aos cemitérios e aos costumes de
ornamentação e embelezamento dos jazigos que marcam o Dia de Finados, os espaços dos
cemitérios acabaram atraindo para suas redondezas estabelecimentos comerciais, como
marmorarias, floriculturas, pontos de venda de velas, imagens de santos, amuletos e demais
acompanhamentos fúnebres.
Atualmente vem se expandindo alternativas como o modelo de cemitério de jardim, em
que os sepultamentos ocorrem diretamente no solo, na qual é sobreposta uma placa/lápide
sem a edificação do jazigo propriamente dito; cemitérios verticais, que são no formatado de
edifícios, em andares com gavetas a base de concreto, e os crematórios, no qual é realizada a
incineração dos corpos e depois é entregue à família somente as cinzas resultantes do
processo. Estas alternativas existem com o fim de solucionar a questão da ocupação do
espaço; questão que no interior das cidades é um fator muito importante e interessa
principalmente à especulação imobiliária.
Porém tais alternativas, sem sombra de dúvida, provocam mudanças ao quadro das
concepções tradicionais das populações, e neste aspecto podem ser investigados como se
pensava e agora se pensa os espaços dos cemitérios, que concepções de morte perpassam no
contexto destas mudanças, o que mudou e o que permanece em relação às novas tendências,
quais suas consequências e implicações urbanísticas, culturais e ambientais destas novas
configurações entre outros questionamentos.
Os espaços ocupados pelos cemitérios também podem representar risco à saúde da
população diante do acúmulo de água em recipientes com flores, provocando a proliferação
de mosquitos da Dengue; com a contaminação dos lençóis freáticos pelo necrochorume
oriundo da decomposição natural dos corpos; e pela falta de segurança no seu interior,
representando um espaço propício a assaltos e roubos à visitantes e de objetos dispostos nos
jazigos.
Conforme aponta Silva (2002) os cemitérios são formas de destino final de cadáveres
humanos, e podem expor a população também a problemas de desconforto psicológico,
acarretado pelo aspecto tétrico e do artificialismo face à ausência de padrões arquitetônicos e
paisagísticos, de equilíbrio e de valorização de aspectos fúnebres; acesso a prática de
vandalismo e violação de jazigos expondo publicamente os corpos dos mortos em processo de
decomposição.
65
O mapa 1 é composto por dois mapas, o primeiro mapa no plano de fundo que situa
Joinville em relação aos demais estados e capitais do Brasil e dos países vizinhos; um
segundo mapa no plano direito inferior que situa Joinville em relação ao Brasil, à América do
Sul e em relação aos Oceanos que banham o continente.
cidades/capitais mais próximas Porto Alegre e Curitiba. O estado pertence à região Sul do
Brasil, e o país se encontra localizado na região hidrográfica do Atlântico Sul da América do
Sul.
Conforme descreve Guedes (2005) a cidade foi povoada por diferentes etnias;
inicialmente por povos sambaquianos em torno de 6.000 a.C.; posteriormente por povos
nativos/indígenas; a partir do século XVI-XVII por populações luso-brasileiras e africanas, e,
na metade do século XIX, especialmente a partir de 185125 por levas de imigrantes alemães,
suíços,franceses, noruegueses, italianos entre outros vindos da Europa.
Ternes (1981) e Rocha (1997) relacionam que a economia da cidade passa a ganhar
destaque a partir da segunda metade do século XIX, com a estruturação das famílias dos
emigrantes, com a formação de lavouras de subsistência, construção de engenhos e de
moinhos artesanais, com a exploração de madeira e fabricação de erva-mate nas cidades
vizinhas, e pela utilização dos rios e do mar próximos ao transporte e escoamento dos
produtos e mantimentos. Já a primeira metade do século XX será marcada pela fabricação e
manufatura simples basicamente de alimentos e de tecidos; e a segunda metade do século XX
a cidade passa a apresentar uma forte ampliação do parque industrial mediante as parcerias
com empresas multinacionais e o fortalecimento das exportações com o mercado
internacional. O quadro 1 especifica o que os autores descrevem.
ANO EMPRESA ATIVIDADE
1856 Companhia Wetzel Industrial velas e sabão
1865 Curtume de G. Richlin artigos de couro
1881 Loja de Karl Schneider comércio colônia-venda e import-export
1881 Döhler S.A. Indústria e Comércio Tecidos
1883 Comércio e Indústria Germano Stein Alimentos
S.A.
1891 Banco Industrial e Construtor do Atividades financeiras
Paraná
1891 Comércio e Indústria H. Jordan S.A. erva-mate
1893 Oficina de Otto Bennack Tornos
1906 Mercado Municipal Comércio
1906 Ferraria de Frederico Birkholz futura Tupy
1907 Jordan Gerken & Cia erva-mate
1907 Empresa Joinvilense de Eletricidade Abastecimento de energia
1907 Oficina Mecânica e Fundição de importação de máquina da Alemanha,
Grossembacher & Trinks construção de máquinas a vapor para
engenhos, manutenção de navios
25
Em meados de março do ano de 1851, chegaram as primeiras embarcações trazendo emigrantes europeus à
cidade, o fato é comemorada como o marco da fundação da cidade.
69
Rocha (1997) explica que as primeiras indústrias foram fundadas a partir de 1880, eram
originárias do capital reunido nas atividades de artesanato e do comércio praticado na cidade.
A maior parte era composta por pequenos estabelecimentos têxteis, fundições e oficinas
mecânicas. As indústrias abasteciam o mercado local e os arredores, gradativamente, supriam
e atendiam o mercado que até então era abastecido pelos produtos vindos de outros países,
principalmente após a revolução/crise dos anos de 1930 e durante a Segunda Guerra Mundial.
Após a década de 50, as indústrias do ramo automobilístico se consolidaram no mercado
nacional e gradualmente intensificaram as exportações também ao mercado internacional.
Dentre as empresas que continuam em atividade pode-se relacionar a Metalúrgica
Wetzel, Metalúrgica Schulz, Docol FV, Buschle & Lepper S.A. Tubos e Conexões Tigre,
Consul, Cia. Industrial H. Carlos Schneider, Carrocerias Nielson, Döhler S.A., Indústria de
Fundição Tupy, Metalúrgica Duque, Laboratório Catarinense, Kavo do Brasil S.A, Mercado
Municipal, A Notícia Empresa Jornalística, associação Comercial e Industrial de
Joinville/ACIJ; algumas funcionam ainda com o mesmo nome de fundação e outras sofreram
reorganizações e fusões empresariais e administrativas provocando alterações no nome, assim
como também outras mantiveram o nome e mudaram e/ou ampliaram as atividades realizadas.
Atualmente Joinville representa uma cidade de forte atração populacional a diversas
partes do país como por exemplo Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Minas Gerais entre
outros, mediante ao fato da concentração industrial, da prestação de serviços e do alto índice
de urbanização que apresenta. A cidade se encontra em 13º lugar na classificação no Índice de
Desenvolvimento Humano/IDH (PNUD, 2000). Segundo dados do censo demográfico de
2010, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE, é a cidade mais
populosa do estado de Santa Catarina, com aproximadamente 515.250 habitantes26.
Representa o maior colégio eleitoral e possui o maior Produto Interno Bruto/PIB do estado; é
a terceira cidade da região sul do Brasil em arrecadação de impostos sobre operações relativas
26
IBGE. Disponível em:<http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1>. Acesso em: 03 dez. 2010.
71
27
IBGE. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2008/POP2008_DOU.pdf, p.83>. Acesso em:
12 abr. 2009.
28
O Mapa 2 foi gerado a partir da coleta/registro das coordenadas geográficas via satélite obtidas através de
aparelho de GPS. O ponto escolhido para realizar a leitura das coordenadas foi o cruzeiro/a cruz central de
cada cemitério, quando da não existência deste procurou-se fazer a leitura no local mais central.
Posteriormente, com o registro das coordenadas, o Centro de Cartografia e Sistemas de Informações
Geográficas da Univille gerou o presente mapa.
72
29
Não se conta com informações sobre a distribuição da população por crença religiosa para os anos anteriores a
1950. Conforme os funcionários do IBGE, para esta variável a população passou a ser contada somente a partir
desta data. Diante disto pesquisou-se nos relatórios anuais do governo municipal junto ao AHJ e também nada
foi encontrado.
74
60% 56,94%
50%
42,13%
40%
30%
20%
10%
0,48% 0,38% 0,07%
0%
Católicos Evangélicos Espíritas Outras Sem religião
Luteranos religiões
90%
80% 78,31%
70%
60%
50%
40%
30%
19,63%
20%
10%
0,35% 1,28% 0,44%
0%
Católicos Evangélicos Espíritas Outras Sem religião
Luteranos religiões
80%
72,60%
70%
60%
50%
40%
30%
19,10%
20%
10% 3,80%
0,60% 2,20%
0%
Católica Evangélicos Evangélica Espírita Outras
luteranos religiões
Na época o local oferecia uma opção condizente com as orientações higienistas que
foram analisadas no capítulo anterior, por ser um local elevado e longe do centro urbanizado
da cidade, porém 15 anos depois da abertura do cemitério aparecem indícios que o
povoamento e a urbanização já caminhavam no sentido e direção ao Cemitério, conforme
ilustra a figura 2.
80
Aponta-se que esta resolução não surtiu os efeitos previstos, talvez antes tenha ocorrido
a adaptação parcial às orientações que a mesma previa. O governo com esta resolução acabou
concedendo privilégio às tradições „protestantes luteranas‟, enquanto as demais „católicas‟,
„espíritas‟, „outras religiões‟ acabaram ficando sem opção, o governo não agiu no sentido de
garantir a pluralidade e igualdade de todos perante a lei.
Afirma-se isso diante da observação feita nos trabalhos de registro das coordenadas dos
cemitérios no interior da cidade, que sinalizam à continuidade dos sepultamentos nos
cemitérios veiculados às Igrejas e às comunidades religiosas da cidade. Na figura 3 o
cemitério ao lado da Igreja ilustra este aspecto, no caso a Comunidade Evangélica Luterana
Cristo Salvador, na localidade de Rio da Prata.
30
Esta citação corresponde a escrita documento da época, que se encontra disposto em Anexo B.
82
Outro fato também é que na parte aos fundos do Cemitério Municipal em 1923 foi
edificado o hospital Oscar Schneider, que conforme Fontoura (2005) descreve foi a primeira
instituição destinada exclusivamente para o tratamento de doentes mentais em Joinville. Este
hospital coincide com o que foi discutido através Foucault (1987) no capítulo anterior, tratar-
se-ia de uma estratégia de controle veiculada pela sociedade disciplinar pois, tanto o cemitério
quanto o hospital, dispostos em locais próximos acabavam por representar uma mesma
função/solução diante dos indesejados „os mortos e os loucos‟ que poderiam prejudicar e
contaminar os vivos.
Fontoura (2005) descreve que em 1942, o hospital Oscar Schneider fechou suas portas e
o prédio foi utilizado durante a Segunda Guerra para retirar do convívio social, outras pessoas
que poderiam “ameaçar” a sociedade; na época foi usado como presídio político de teuto-
84
brasileiros de diversas regiões de Santa Catarina. Assim, muda-se o público, antes os loucos,
agora os teuto-brasileiros, porém o local, como um espaço de reclusão e segregação na função
de retirar de circulação as ameaças à sociedade disciplinar, continua a mesma. Hoje, porém
não existem mais sequer ruínas do hospício, e o terreno foi utilizado à ampliação da
capacidade de sepultamentos do Cemitério Municipal. Nesse sentido, Meneses (1999) alerta
para as consequencias que os valores contemporâneos podem causar:
Atualmente, atenta-se, para o fenômeno da autofagia que marca nosso
desenvolvimento urbano e que, fundado na lógica impecável da especulação
imobiliária, provoca a instabilidade da relação entre o lote urbano e a
estrutura edificada e entre essa e seu programa, sua função. Esta substituição
do uso pelo consumo do espaço alimenta a ideologia do novo e privilegia as
incessantes substituições. Atenua-se, assim, ou se anula a possibilidade de
pertencer a um espaço e situar-se no tempo: a mobilidade inevitável e a
amnésia conduzem à alienação (MENESES, 1999, p.19).
O que ocorreu com o Hospital Oscar Schneider também se encontra para outros espaços
existentes na cidade, como também se teme que ocorra algo semelhante com relação ao
Cemitério Municipal aos demais cemitérios da cidade, quando estes não possibilitarem mais
sepultamentos, ou melhor, quando não conseguirem mais cumprir sua função como um
aparelho dentro do sistema da cidade urbano e venham a ser alvo de especulações que possam
colocar em risco a sua existência enquanto memória, patrimônio, cultura com sentido de
situar os moradores no tempo e no espaço.
O Cemitério Municipal encontra-se aberto nos horários das 07h às 17h30m em todos os
dias da semana; ocorre a utilização ampla de seu espaço, tanto por familiares, como pedestres
e veículos, conforme foi comentado anteriormente. A assiduidade das famílias é bem variada,
conforme relata Moreira (2010)32 “[...] religiosamente elas vem ao sábado, tem famílias que
vem uma vez no mês, tem famílias que procuraram só na época dos finados [...] tem algumas
que vem até mais que uma vez por semana”.
32
Estas informações foram obtidas através de entrevista semi-estruturada e oral com Ana Lúcia R. Moreira,
realizada em 01 de julho de 2010, que é funcionária a mais de 10 anos da CASERF.
88
Nas visitas feitas ao Cemitério foi possível observar que é rotineira a realização de
obras no cemitério, tanto por parte das funerárias e marmorarias como da administração do
cemitério, portanto, o uso que é feito pelos moradores do entorno e de transeuntes, por
trabalhadores em intervalo de expediente, para relaxar, tirar um cochilo, observar as
edificações dos jazigos e apreciar a vista da cidade, como sugere a Figura 6.
que Cymbalista (2001) faz e que foi descrita anteriormente, em que este espaço cumpre sua
função e representa uma solução no planejamento urbano da cidade de modernização em voga
desde o início do século XX.
Porém, atualmente o cemitério ocupa uma área de aproximadamente 129.000m², reúne
em torno de 60.000 túmulos, e está sem possibilidade de ampliação e não permite espaço para
edificação de jazigos em „chão novo‟, existe somente espaço para sepultamentos individuais
em jazigos e capelas que já foram adquiridos pelos familiares; e conforme discute Kreidlow
(2010) a falta de espaço de ampliação é realidade também na maioria dos demais cemitérios
da cidade.
A figura 7 ilustra a dificuldade com a ampliação do cemitério, provavelmente e em
pouco tempo os sepultamentos poderão ser encerrados.
Diante do fato da falta de espaço nos cemitérios conforme informa Moreira (2010)
encontra-se em estudo a possibilidade de criação de um novo cemitério na região sul da
cidade. Enquanto isso as administradoras de cemitérios particulares da cidade oferecem duas
alternativas aos sepultamentos na forma vertical em gavetas sobrepostas e na forma horizontal
em cemitério de jardim. Castro (2008) adverte que estas propostas carregam configurações
específicas a suas formas, funções e usos:
[...] os cemitérios verticais, tranquilamente podem ser confundidos na
paisagem urbana com outros equipamentos urbanos, como centros
empresariais e comerciais, oferecendo vários andares para sepultamentos,
geralmente, em lóculos ou gavetas; e os cemitérios de jardim, com túmulos
praticamente ocultos na paisagem, cercados de verde e flores; ambos
parecem estar em consonância com as propostas defendidas pelo urbanismo
moderno, que concentrou seus estudos nas questões urbanísticas e,
principalmente, na habitação em larga escala, para atender a demanda de
crescimento e reconstrução das cidades (CASTRO, 2008, p. 52).
91
Diante disto, existem iniciativas da parte do governo municipal desde 1999, quando foi
aprovada e publicada uma lei ordinária (JOINVILLE, 1999), e complementada em 2006
(JOINVILLE, 2006) autorizando o poder executivo a criar um Crematório Público Municipal,
capelas mortuárias e a verticalizar os cemitérios públicos municipais, todavia às leis não
foram postas em práticas.
Penz (2009), Loetz (2009) e Saavedra (2009) apontam também que no ano passado
ocorreu uma discussão em torno da implantação de santuários com crematórios na cidade,
como alternativa ao problema de espaço nos cemitérios convencionais, entretanto, a
comunidade se manifestou fortemente contrária à realização do mesmo e as coisas
continuaram como estavam. Os argumentos da população giravam em torno do local que
havia sido escolhido para a instalação do crematório, pois este seria construído na região
próxima ao Cemitério Municipal, em que a urbanização é muito forte, a população temia pela
emissão de fumaças e maus cheiros, bem como pelo desconforto e mal-estar com a
convivência cotidiana do mesmo.
O estado de Santa Catarina possui dois crematórios em funcionamento, um em
Balneário Camboriú, que foi o primeiro crematório a ser instalado (METAS, 2007) e outro em
Florianópolis; na cidade de Blumenau existe um crematório prestes a ser inaugurado
(CLICRBS, 2010). No ano de 2008, na cidade de Joinville instalou-se um escritório do
Sistema Prever Assistência Funerária33, a empresa possui estabelecimentos em diversas
cidades do país e com os serviços de crematórios, quem sabe futuramente, diante do possível
aumento da demanda por parte da população, a empresa venha a implantar fornos crematórios
na cidade também.
Conforme Kreidlow (2010) recentemente foi publicado em um jornal local a criação de
um ossário no estilo de um cemitério vertical, com gavetas menores e lacradas; este receberia
ossadas de túmulos
com mais de 30 anos que estivessem abandonados e disponibilizaria os túmulos às
famílias pobres da cidade; até no momento não foram divulgadas ações de cunho prático à
implementação do mesmo.
Por enquanto, o Cemitério Municipal de Joinville permanece no que diz respeito, a sua
forma e uso, ao que era nos primórdios do século XX quando da sua criação, como um local
33
Para maiores informações ver a página da empresa. Disponível em:
<http://www.preveronline.com.br/detalhes_not.php?not_cod=254>. Acesso em: 22 jul. 2010.
92
pacífico em que os mortos são depositados e visitados, e também a novas funções que são
identificadas na sociedade contemporânea, um local onde se pode descansar no intervalo do
trabalho, apreciar edificações com traços artísticos e um caminho para ultrapassar os
problemas de trânsito da cidade.
No percurso deste capítulo alguns aspectos se destacaram no que diz respeito à
economia da cidade, a qual apresenta atividades diversificadas. Porém possibilitou a formação
de elites relacionadas às atividades industriais e comerciais. O caráter disperso da colonização
da cidade favoreceu a formação de um grande número de comunidades com seus próprios
cemitérios e estes acabaram segregando-se às tradições religiosas as quais estavam
veiculadas, como a protestante/luterana e católica.
Conforme mostram os gráficos 1, 2 e 3, nas páginas 74 e 75, os números da população
de Joinville em relação a prática das religiões indicam que ao longo do século XX houve a
redução significativa de féis „evangélicos luteranos‟, e o avanço dos católicos; para a virada
de século XXI ficou evidente a continuidade da redução da população que se declarava
„evangélicos luteranos‟; o primeiro registro do declínio católico; o aparecimento do fiéis que
se declaram como „evangélicos‟, em percentual significativo; o crescimento tímido das
religiões „espíritas‟, „outras religiões‟ e quem se declara „sem religião‟.
O Cemitério Municipal de Joinville, que é quase centenário, surgiu em um contexto de
adequação às normas higienistas/sanitárias e de secularização da sociedade. Diante disto a
comunidade Evangélica Luterana da cidade conseguiu fazer com que suas tradições fossem
mantidas mediante as mudanças em curso, o que de certa forma flexibilizou o cumprimento
das regras em vigor. Atualmente o cemitério está com seu funcionamento comprometido,
diante da falta de espaço, é provável que em um futuro próximo sejam encerrados os
sepultamentos neste local.
Diante disto cabe fazer algumas indagações a respeito das problemáticas que o mesmo
encerra: Que soluções serão encontradas?! As populações interessadas serão consultadas
sobre estas questões?! Serão levados em consideração os aspectos culturais e religiosos destas
populações?! Levando em conta a região privilegiada em o cemitério se encontra qual destino
que será dado quando o mesmo não mais funcionar?! O que será feito naquele espaço?! Se
fazem necessários inventários, registros, reunião documentos, tomadas de depoimentos em
prol de tombamento, preservação, restauração, projetos de educação patrimonial entre
outros?!
93
Neste sentido, ao longo deste estudo reuniu-se algumas impressões através das visitas
ao espaço do cemitério, da entrevista realizada, do conteúdo das reportagens publicadas que
em grande medida permitem apontar caminhos em relação à estas questões. Diante do fato de
esgotamento do espaço disponível à sepultamentos no Cemitério Municipal de Joinville,
existe, por parte do pode público, como projetos que contemplam várias possibilidades, como
a criação de um outros cemitérios convencionais no interior do município, da verticalização
de cemitérios e da instalação de crematórios.
Antes mesmo da criação destes projetos, muito válido seria se o poder público
municipal pudesse considerar o universo de tradições e valores culturais que sua população
possui, no sentido de que tais concepções posteriormente poderiam orientar a ação política em
oferecer e implementar possibilidades e alternativas de sepultamentos; assim a população
poderia se perceber e se compreender contemplada em seus anseios e concepções pelas ações
da gestão pública.
Quanto ao fechamento do Cemitério Municipal de Joinville e as possibilidades de
destino que o local receberá, novamente se fariam necessárias a tomada de opinião e
participação da população, órgãos públicos responsáveis, estudiosos e pesquisadores para as
questões de patrimônio, memória, identidade, arquitetura, história e sociedade e de
instituições e estabelecimentos que atuam naquele espaço, para que juntos encontrem uma
forma e destino que atenda às preocupações de ambos e que avance no sentido de consolidar
um amplo diálogo e debate em relação aos espaços de cultura existentes na cidade.
Pensa-se no sentido de que o espaço do Cemitério Municipal de Joinville, conforme foi
relatado anteriormente, nos aspectos de este ser o primeiro cemitério municipal e mais antigo
em funcionamento da cidade, por estar prestes a comemorar um século de atividades, por
reunir sepultamentos de diversas épocas e momentos sociais, econômicos e políticos da
cidade, e ainda como será apresentado na sequência deste estudo, toda a diversidade e
complexidade de elementos artísticos e culturais que o mesmo comporta, sejam de
significativa expressão para que este espaço seja compreendido e percebido como substancial
e relevante à referência social e histórico-cultural de Joinville.
94
34
Neste momento optou-se por não relacionar as possíveis datas de edificação dos jazigos diante da dificuldade
encontrada em se precisar os mesmos, pois neste aspecto podem ocorrer que em um mesmo jazigo se
encontram lápides e sepultamentos de diferentes gerações de uma mesma família e também por não existir um
maior controle por parte da CASERF que administra o cemitério, em relação à edificação dos mesmos.
95
crenças religiosas, valores, sentimentos, emoções, que, quem sabe, podem carregar a
pretensão e a preocupação de tornar e fazer presente quando e onde já não mais estará.
Objetivamente jazigo35 refere-se a túmulo e/ou sepultura e tem como função guardar um
corpo ou mais corpos que não tem mais vida; na forma figurativa jazigo significa o que
acolhe, ampara e oferece abrigo, caracteriza-se também por ser o monumento funerário que
serve de sepultura.
As edificações dos jazigos não levam títulos ou assinaturas, mas são obras que se
encontram em local e contexto específico, possuem diferentes formas e tamanhos, materiais
construtivos e ornamentais, estilos e inscrições que remontam ao imaginário e à mentalidade
de quem assim quis, desejou e escolheu; e representam uma forma de dar força à expressão e
a compreensão da morte enquanto tal, um diálogo que tramita e circula pelos domínios e
campos das ideias/imaterial ao da prática/material. São edificações dotadas de questões e
implicações metafísicas, que pertencem à esfera das tradições religiosas da cultura, que opera
e mobiliza o universo simbólico e inconsciente das populações e se manifesta nos espaços dos
jazigos nos cemitérios.
Vovelle (1987) menciona que a arquitetura e a estatuária funerária possuem uma
abrangência mais ampla da qual se costuma supor, pelo fato de que estas se encontram
articuladas a um conjunto de fatores que transcendem o âmbito artístico de sua produção, o
discurso religioso, moral e econômico do grupo social de que procedem; assim como valem
por si mesmas e sua presença é suficiente para integrar-se ao inconsciente coletivo e à
memória de uma comunidade.
Considerar a arte funerária como edificações decorativas e complementadoras,
preenchedoras dos espaços, é uma tentação reducionista e ingênua, pois esta pode carregar
consigo pretensões e intenções que remontam o universo social, econômico, político e cultural
35
Conforme se encontra em Houaiss (2001) a derivação da palavra jazigo é do verbo irregular de „jazer‟ e possui
como sinônimos as palavras égide e sepulcro; Mota (2009, p. 77) descreve que “a palavra grega sema, ao
mesmo tempo, serve para designar signo e pedra tumular”, assim o túmulo/jazigo é signo de uma inscrição
primeira, fundadora: marca, traço, escrita, origem.
96
de seus encomendadores. Com esta preocupação procura-se verificar como se processam tais
aspectos na sociedade joinvilense e em específico no espaço do Cemitério Municipal de
Joinville. Assim, relacionam-se as figuras 9, 10, 11 e 12 para iniciar os estudos.
Nas figuras 9, 10, 11 e 12, cabem tanto as problemáticas de Vovelle (1987) e como as
de Pietroforte (2004), no sentido que: nas figuras 9 e 10 a dimensão visual dos jazigos-capela,
em sua edificação de tamanho grande, volumosa e monumental, com o material diferenciado e
nobre na edificação, que ocupa espaço físico maior dentro do cemitério e voluntariamente e
involuntariamente obterão maior consideração nas lembranças, nos sentimentos e na memória
das pessoas que venham a passear, visitar e circular pelo Cemitério.
Nas figuras 11 e 12, de tamanhos menores e que se encontram dispostos na dimensão
vertical, com o espaço que ocupam no chão do cemitério e os materiais com que foram
edificados, reforçam a grandeza das figuras 9 e 10. Com suas dimensões pequenas,
desprovidas de maiores edificações e materiais, serão rapidamente esquecidas e quase não
farão parte na memória das pessoas que circularam e circularão pelo Cemitério, salvo quando
referir-se aos familiares e amigos dos que ali se encontram enterrados, nestes casos os
aspectos sentimentais e emocionais estabelecerão uma relação que poderá ser diferente do que
a relação estabelecida pelas proporções e dimensões materiais dos jazigos.
A presença ou a ausência de determinados materiais nas edificações dos jazigos como
granitos, azulejos, vidros, mármores, alumínios, ferros, bronzes entre outros, podem, em
grande medida sinalizar o poder aquisitivo dos familiares dos que ali se encontram enterrados,
relacionado à divisão social no espaço do cemitério.
Nas figuras 13 e 14 ilustra-se um jazigo edificado em mármore rosa e no outro um
jazigo com pedra granito, que por si mesmo são um diferencial em relação à pedra calçada ou
tijolos.
100
Outro aspecto que confere diferenciação social aos jazigos é a presença de mensagens
conforme foi identificado no jazigo da figura 14. Cada mensagem tem seu valor calculado
101
pelo número de letras que serão empregadas e o material em que serão feitas. Para colocar
uma mensagem em um jazigo, o mercado calcula o custo por letra e a nobreza do material.
Nestes casos o recurso para garantir grandeza, relevância e destaque aos jazigos estão
relacionados às qualidades dos mármores e granitos e a quantidade empregada e no material
das letras utilizadas na elaboração do epitáfio. Neste aspecto cabe também o que Arruda
(2006, p. 118) discute em relação às edificações das casas:
[...] a „eira‟ e a „beira‟ foram também, usadas para estabelecer distinções
sociais entre os que possuíam riquezas suficientes para construir uma casa
com telhados ornados com eira, beira e, em alguns casos, até „tribeira‟. Os
que pouco ou nada possuíam, construíam suas casas apenas cobertas, sem
nenhum acabamento nos telhados de suas moradias.
Os aspectos diferenciadores das edificações apontados por Arruda podem ser associados
aos jazigos do Cemitério Municipal de Joinville. Ao invés das casas dos vivos, agora seriam
os jazigos edificados na forma de capela, ou pequena Igreja; a „eira‟, a „beira‟ e a „tribeira‟
estariam representadas, respectivamente, pela imponência dos portões/cercas, das colunas, da
estatuária, das decorações que acompanham o conjunto dos jazigos. Consequentemente a
quem nada ou pouco possui em termos financeiros, não restariam muitas escolhas e opções
para homenagear e condecorar seus mortos. Neste caso, nem jazigos edificados
volumosamente muito menos portões, colunas e estatuária, somente recursos como tijolos
expostos, jazigo sem acabamento, nenhum tipo de metal e pedra nobre; construção em locais
periféricos e quando apresentam alguma epígrafe, as letras são confeccionadas em metal,
estão escritas diretamente no cimento ainda molhado que cobre o jazigo, conforme as figuras
11 e 12 evidenciam.
Ainda para completar esta discussão Ariès (1989) explica que os túmulos edificados e
projetados verticalmente são destinados à monumentalidade, associados a esta compreensão
estariam os jazigos das figuras 9, 10 e 13; por sua vez, os túmulos projetados horizontalmente,
possuem vocação à humildade, conforme os jazigos das figuras 11, 12 e 14. Fenômeno que
avança com o Iluminismo, período no qual o culto aos homens de grande valor ganhará força,
pois no mundo ocidental, no século XIX e início do século XX, os grandes acontecimentos e
os importantes heróis deveriam ser lembrados como modelo e proeminência histórica que o
devir alcançaria, atingindo assim, a sociedade perfeita. Ariès (1989) em seus estudos arrola
que fica fácil de perceber as diferentes manifestações diante da morte quando se situam os
grupos sociais:
102
[...] os mais ricos e os mais instruídos, que são ao mesmo tempo ativos
(fazem testamentos, subscrevem seguros de vida) e não-preocupados com o
assunto (tomam precauções a favor da família, mas essas precauções
permitem esquecer). Em compensação, as classes populares hesitam em
assumir compromissos que impliquem seu desaparecimento; são passivas e
resignadas, a morte permanece algo como que presente constante, como que
não depende do fato de ter aceitado ou não: reconhecem-se ali os sinais da
morte de outrora (Ariès, 1989, p. 649)
36
Conforme se encontra ilustrado no Quadro 1 que foi discutido anteriormente nas páginas 78 a 80.
37
Jazigo perpétuo é de natureza pública, mas de uso especial, cujo direito é concedido à um particular, que é
adquirido por tempo de uso indeterminado.
104
Segundo Filho (2007) os mortos parecem intervir no espaço social e influenciar seus
próximos (parentes, amigos, vizinhos, colegas de trabalho, etc.) e assim o túmulo torna-se um
marco, um monumento, uma herança, uma transferência, um sinal, uma referência palpável e
material para as recordações, à memória, aos valores, os sentimentos, para que os que ainda
vivem possam situar-se e orientar-se na sociedade. E com a concessão da sepultura perpétua,
os locais reservados aos mortos adquiriam uma propriedade que asseguraria a posteridade e a
perenidade destas questões, conforme ilustra a figura 15.
Neste modelo de lápide, a nomeação pelo sobrenome acaba por reunir/abranger uma
possibilidade maior número de membros da família, ao contrário dos modelos que somente
apresentam o nome de um integrante, que na maioria das vezes é o nome do homem de maior
destaque econômico e/ou civil na família e na sociedade. As relações genealógicas não são
obrigatórias e somente são reconhecidas por aqueles para quem interessam e possuem
necessidades em mantê-las, tanto manter privilégios e exercer influência, como criar novas
identidades.
Além da diferenciação na edificação e a possibilidade de perpetuar um local no espaço
do Cemitério ocorre conforme Moreira (2010) algumas famílias destinam os jardineiros que
atendem suas residências para também cuidar e fazer a manutenção de seus jazigos no
cemitério, conforme ilustram as figuras 16 e 17 38.
38
A figura 16 corresponde à uma fotografia realizada em uma visita ao cemitério em abril de 2008 e a figura 17,
a uma visita em novembro de 2009.
105
Não são somente os grupos com poder econômico que procuram se diferenciar e se
destacar no espaço do Cemitério, outros grupos, independentemente da condição financeira,
portadores de títulos ou filiados à entidades que conferem poder, prestígio e reconhecimento,
também não abrem mão de passarem despercebidos e de serem identificados/reconhecidos
com os títulos e menções que adquiriram, como por exemplo comendadores, membros do
exército, do governo, de entidades, de sociedades e ou com funções que exerceram na
sociedade.
No início do século XX, em plena expansão de uma sociedade de classes, começava a
ser invocado na epigrafia tumular o reconhecimento advindo da competência pelo trabalho e
por mérito pessoal, muitas vezes adquirido em atividades laborais ou humanísticas, conforme
explica Mota (2009, p. 83):
Nos cemitérios ocidentais, à pessoa do morto se costuma adicionar epítetos
diversos, sendo invocados entre outros aspectos aqueles de foro mais íntimo,
e também a capacidade de ser moral e civil. É por isso que repetidas vezes
no léxico tumular são ressaltadas qualidades como: pessoa de “mérito”,
“digna”, “honesta”, “caridosa”, “espiritual”, “benfeitora”, “honrada”,
“íntegra”, “fraternal”, “justa”, “trabalhadora” etc.
Assim, a partir das primeiras décadas do século XX, começa a surgir de forma pontual e
com destaque no conjunto estatuário, representações masculinas geralmente associadas ao
trabalho e à vida pública. Neste sentido, na figura 18 encontra-se a inscrição na lápide de
„jazigo perpétuo‟ em evidência, como foi abordado anteriormente e em especial à
identificação do título de „comendador39. Este título pode ser conferido a qualquer pessoa que
se destacou na sociedade pela sua atuação, independente da área em que atuou, pode abranger
desde personalidades, artistas, políticos, empresários até esportistas; este tipo de
condecoração costuma ser emitido por órgãos oficiais do governo.
39
O título de comendador, segundo Aulete (2008, p. 236), refere-se aquele que tem uma comenda, benefício,
medalha, titular de ordem militar ou honorífica, indivíduo que tem uma insígnia ou condecoração honorífica.
Quando surgiu na Idade Média, a recompensa tinha um significado bem diferente, relacionava-se mais a posses
de terras e a sua relação com a Igreja.
107
Figura 18: Lápide com identificação de comenda, Cemitério Municipal de Joinville, 2009.
Fonte: Arquivo da autora.
Na forma como a lápide da figura 18 se encontra escrita, seu conteúdo acaba por sugerir
certa „vaidade‟ e parece exigir certa reverência tanto no que diz respeito à propriedade
perpétua do espaço e do jazigo como pelo porte do título, do benefício, da comenda que o
referido defunto detinha.
No jazigo da figura 19 se encontram sepultados ex-combatentes do Exército, que
prestaram serviços à pátria no período de 30 a 4540. Neste caso as providências das honras
foram tomadas pelo próprio Exército em nome do Estado na tentativa de reconhecer os
serviços prestados diante dos riscos e custos à vida exigidos pela função em exercício dos ex-
combatentes. Sendo assim estes homens não seriam sepultados junto a suas famílias, pois
perderiam o prestígio, as pompas e o enobrecimento da causa da morte.
40
Neste período conforme Gomes Et al (2007) ocorreram diversas revoluções, revoltas e até guerras, entre elas:
a Revolução de 1930, a Revolução Constitucionalista, o movimento da Intentona Comunista, o Levante
Integralista e a Segunda Guerra Mundial de 1938-1945, na qual, como descreve Silva (2002) o Brasil e
inclusive Santa Catarina através da FEB participou enviando homens.
108
Outro aspecto é a forma do jazigo da figura 19, assemelha-se a monumentos que são
construídos a personalidades políticas da sociedade e que são facilmente encontrados em
espaços públicos, como praças, escolas, bibliotecas entre outros espaços que pertencem ao
Estado. Neste contexto Le Goff (1990) aborda que a raiz da palavra latina monuentum remete
à raiz indo-européia men, que significa uma das funções essenciais do espírito (mens), da
memória (meminí), e do verbo monere, que significa 'fazer recordar', 'avisar', 'iluminar',
'instruir'; o que em grande medida vincula-se ao sentido e à necessidade da edificação estar
como e onde está.
A frase que se encontra inscrita no monumento da figura 19 “aqui repousam aqueles
que morreram a serviço da pátria”, além das funções de „instruir‟, „avisar‟, „iluminar‟, „fazer
recordar‟, parece sugerir a preocupação em relação ao desejo de que os feitos destes homens
não sejam esquecidos. Neste caso os esforços realizados por estes cidadãos lhe custaram à
vida, e o Exército/Estado reclamou para si a função de realizar o sepultamento, em seus
109
41
Conforme Rodrígues (1980) governou o Rio Grande do Sul durante o período de 1891 a 1898. O mausoléu
encontra-se edificado no Cemitério da Santa Casa, em Porto Alegre/RS.
110
maçônicas ainda na Alemanha; sendo que no ano de 1855 foi criada a primeira loja maçônica
na cidade, chamada „Amizade ao Cruzeiro do Sul‟.
Figura 21: Lápide com simbologia maçônica, Cemitério Municipal de Joinville, 2009.
Fonte: Arquivo da autora.
solidariedade e o reconhecimento do falecido dentre seus pares, o que por sua vez acaba por
conduzir diferenciação de classe, indicar categoria de profissão e sugerir a influência que o
falecido possuía na sociedade.
No contexto das observações que foram feitas ao longo das figuras anteriores, as lápides
do comendador, do coronel/comandante e dos membros do exército possuem seu
reconhecimento pela oficialidade do Estado; por outro lado ocorre que o „soberano grande
inspetor geral‟ e o „jornalista‟ possuem um reconhecimento mais restrito e reduzido, no caso à
sociedade secreta e à categoria de trabalho a qual pertence. Assim aos poucos, a atitude do
homem diante da morte torna-se eminentemente um discurso de abrangência mais social.
Neste aspecto Borges (2003, p. 186) explica que “a simbologia profana vai-se
sobrepondo à cristã, pois ela se presta a reforçar os valores do cidadão civil”, um homem
burguês bem-sucedido na atuação profissional, por isso bom, generoso, que necessita de um
lugar de destaque na sociedade em curso.
Conforme se encontra em Doberstein (1999) os demais cemitérios das principais
cidades brasileiras tiveram seu processo de secularização ainda em meados do século XIX,
enquanto que o Cemitério Municipal de Joinville apresenta indícios que este processo passa
acontecer somente no final da primeira metade e se acentua na segunda metade do século XX.
Analisar as edificações dos jazigos permite entender um pouco do que descreve Da
Mata (1997) sobre o uso dos mortos pelos vivos na nossa sociedade; na qual os mortos
imediatamente se transformam em pessoas exemplares e orientadoras de posições e relações
112
sociais. As condições de túmulos e de mausoléus acabam por revelar as situações dos sujeitos
na sociedade em que atuavam enquanto vivos, e depois de mortos, na memória e no
inconsciente de seus descendentes e da sociedade. Esses sujeitos parecem intervir no espaço
social e prolongar sua influência a seus próximos desde parentes, amigos, vizinhos, colegas de
trabalho, entre outros. A linguagem e os recursos utilizados são diferentes, em algumas
situações são semelhantes, mas prevalecem às distinções, seja pelo local em que foi adquirido
o terreno, pela disposição horizontal ou vertical dos jazigos, qualidade dos materiais
utilizados na edificação, presença ou na ausência de estatuária, descrições e nomeações que se
encontram nas lápides.
Os cemitérios modernos e secularizados representam de complexidade social, tais
manifestações ficaram abertas e sem limites, e os cemitérios acabam por se tornar uma
instituição social, política e cultural muito além de religioso. Como se pode perceber nas
figuras deste sub-capítulo não foi à reflexão em relação à morte, à vida, ou o sentimento em
relação à pessoa/ser humano que se encontra edificado nos jazigos, antes a possibilidade de
diferenciação do status social; em vantagem das possibilidades de perpetuação e o
prolongamento da notoriedade e da distinção social, recuam as questões religiosas e de
sentido da vida e assim evidencia-se o que Da Mata (1997) aborda como a morte até mata,
mas os mortos não morrem.
Mas há o fato das edificações monumentais também se relacionarem a outros fatores e
não representarem um fenômeno estático e perene conforme descreve Mota (2009). No final
da primeira metade do século XX, as construções tumulares, pouco a pouco, deixaram de
constituir prioridades de investimento relacionadas com a distinção social de algumas
famílias, a identificação e a transmissão de um patronímico comum, a atualização de laços
identidários, o culto à memória; e uma das tendências foi tornar os túmulos mais versáteis,
funcionais e menos decorativos, com capacidade de renovação nos locais de enterramento, já
que suas morfologias também deveriam se nortear por princípios racionais da economia e do
mercado, adequados então às pequenas dimensões dos lotes ainda disponíveis que, a depender
do cemitério, poderiam atingir altos valores especulativos, conforme melhor se analisará no
próximo momento do estudo.
Facilmente imagina-se que a dimensão biológica da morte deveria cumprir a tão
idealizada justiça social e estabelecer a igualdade entre os homens; porém se observa que nos
espaços dos cemitérios convencionais, a aquisição dos terrenos, a edificação dos jazigos, a
113
aos estilos, às tendências e/ou às transgressões artísticas neste espaço, mas procurou-se
identificar as filiações sociais e culturais nas edificações.
Percorreu-se o cemitério e observou-se que os jazigos mais representativos se
encontram construídos em duas regiões: uma na parte mais elevada e mais antiga do
cemitério; aonde se encontra o cruzeiro, região que foi sinalizado anteriormente no mapa 5, na
página 86; e outra na região próxima às capelas mortuárias. Isto significa que os jazigos mais
representativos se encontram edificados nas regiões que mais circulam pessoas pelo
cemitério, características que não devem ser consideradas como espontâneas e gratuitas.
Para verificar e analisar o objetivo deste capítulo, os jazigos foram fotografados e o
material coletado, organizado em sequências temáticas que possibilitaram proceder à
interpretação e a problematização das interferências sociais, dos aspectos culturais e artísticos
e dos conteúdos das lápides e dos epitáfios que se encontram no conjunto dos jazigos do
Cemitério.
Pietroforte (2004) descreve que os jazigos são estruturas tridimensionais, que possuem
altura, largura e relevo; estruturas que requerem, demandam e ocupam espaço físico, assim,
em grande medida, ganham por si só importância e destaque pela materialidade e pela
plasticidade que apresentam. As medidas, o volume e a dimensão das edificações, podem
conferir aos jazigos um conteúdo e um discurso próprio, que configuram os gostos, os sonhos
e as fantasias, que antecedem e remetem ao mundo dos vivos, porém numa linguagem mais
simbólica, metafórica e até por vezes alegórica.
Neste sentido Vovelle (1997, p. 328) descreve que:
Houve uma idade de ouro do cemitério, se assim podemos dizer, entre 1860
e 1930: foi a época de proliferação dos jazigos perpétuos, quando também a
família burguesa, em filas cerradas, se aglomerou dentro desse hábitat
póstumo; época das capelas e dos monumentos funerários, de uma explosão
vertical que irrompeu das lápides e estelas bastante simples do cemitério
anterior a 1850, formando uma arquitetura heteróclita. Episódio tanto mais
notável por estar registrado na pedra, em contraste com a modéstia resgatada
por nosso século, a partir dos anos 20 e após 1960, que desemboca hoje, em
geral, no mais absoluto despojamento e no silêncio.
Vovelle em seus estudos refere-se em especial aos cemitérios europeus, em sua maioria
de tradição católica que funcionavam anteriormente ao século XIX; porém ocorre que o
Cemitério Municipal de Joinville é um cemitério que foi criado no século XX, de caráter
secularizado e se encontra localizado em uma cidade que registra, ao longo de sua história,
números significativos das tradições religiosas como „evangélico luterana‟, „evangélica‟,
115
„espírita‟, „outras religiões‟ e „sem religião‟ conforme foi ilustrado anteriormente com os
gráficos 1, 2 e 3 nas páginas 74 e 75.
Mesmo levando em consideração as particularidades tanto de época, como dos
contextos e das tradições religiosas pode-se encontrar traços que correspondem ao que o autor
propõe no Cemitério Municipal de Joinville; será que as edificações deste Cemitério
apresentam elementos que coincidem a chamada „idade de ouro‟, a fase da „modéstia‟, do
„despojamento‟ e do „silêncio‟ artístico dos cemitérios, assim como às problemáticas que se
propõem analisar e discutir no decorrer do texto?! Se estas definições não são suficientes para
compreender as manifestações artísticas e culturais dos jazigos dos cemitérios municipal, qual
e como deveria ser denominada?! Ao longo deste texto procura-se perceber e compreender
tais problemáticas.
No campo religioso, Rezende (2006) destaca que a desvinculação dos cemitérios dos
espaços e dos domínios das Igrejas, acabou por favorecer que as marcas da religiosidade
fossem soerguidas acima do solo, em cima dos jazigos, agora nos espaços para fora das
Igrejas e no interior das cidades. Apesar de serem símbolos do catolicismo, as cruzes acima
do solo começam a representar o fim do poder de ocupação no subterrâneo, tanto em termos
simbólicos como reais; „o Céu aberto na Terra‟ pelos cemitérios secularizados agora prejudica
a Igreja, no sentido que descentraliza e dissolve seu poder; com a cova ao ar livre, o mistério
em torno do destino do corpo e da alma é enfraquecido e se amplia a possibilidade do „céu‟
ser recriado para além do espaço e do domínio da Igreja.
Identifica-se ao longo do Cemitério Municipal de Joinville uma floresta um tanto
quanto esparsa de elementos: obeliscos, colunas, frontões, anjos, santos, Igrejas em
miniaturas, pórticos, monumentos, arcos romanos, capitéis góticos, cruzes de diferentes
formatos, azulejos de diferentes cores, bancos, jardins cercados, capelas jazigos, capelas
mortuárias, entre outros, porém cada um possuiu uma própria historicidade e função de existir
dentro do contexto amplo da cultura da cidade dos vivos, que se estende e se prolonga,
complementa e reflete na cidade dos mortos.
A figura 23 apresenta um jazigo edificado na forma de Igreja/templo, mas em miniatura,
pode-se apontar que este jazigo foi elaborado na primeira metade do século XX, num
momento em que os grupos industriais e comerciais estavam se fortalecendo e legitimando no
cenário econômico e político da cidade.
116
Figura 23: Jazigo com Igreja/templo em miniatura, Cemitério Municipal de Joinville, 2009.
Fonte: Arquivo da autora.
Figura 24: Jazigo com obelisco simplificado, Cemitério Municipal de Joinville, 2009.
Fonte: Arquivo da autora.
118
Figura 25: Jazigos com cabeceiras encimadas por cruzes, Cemitério Municipal de Joinville,
2009.
Fonte: Arquivo da autora.
O obelisco da figura 24, possui um formato médio, monolítico, ou seja, feito com um
único bloco de pedra, com quatro faces lisas sem inscrições e por sua vez não apresenta
simbologia religiosa propriamente dita. Na figura 25, encontram-se obeliscos encimados com
cruzes, com composições mais complexas, divididos de três e quatro partes na edificação, e
com inscrições entre elas.
Originariamente o obelisco egípcio trazia inscrito em torno os principais momentos e
feitos da vida e governo de um determinado faraó. Explica Schama (1996) que o obelisco
nesta configuração relaciona-se com a ideia e sentido de vitória sobre a morte, muito próximo
da função e sentido com a qual era edificado no antigo Egito, de onde são originários. Por
outro lado acabam por indicar também a posição do sol e a incidência dos raios solares, o que
poderia permitir também a contagem do tempo, o que poderia justificar sua presença em
locais como praças e demais espaços públicos e abertos; porém a presença dos obeliscos fora
da cultura egípcia acaba por caracterizar uma apropriação descaracterizada e
descontextualizada.
119
Figura 26: Jazigo com característica de arte grega, Cemitério Municipal de Joinville, 2008.
Fonte: Arquivo da autora.
Figura 27: Jazigo com colunas e arquitraves, Cemitério Municipal de Joinville, 2009.
Fonte: Arquivo da autora.
Figura 28: Jazigo com característica de arcos romanos, Cemitério Municipal de Joinville,
2008.
Fonte: Arquivo da autora.
121
Figura 30: Jazigo com capitel de característica gótica, Cemitério Municipal de Joinville, 2009.
Fonte: Arquivo da autora.
A cúpula possui forma piramidal, forma que acaba indicando a intenção de elevação aos
céus, sobreposta à cúpula encontra-se uma cruz latina, no interior tem-se um anjo, presença
que é muito comum neste cemitério, principalmente para jazigos de sepultamento de crianças.
Os anjos representam uma condição entre a realidade e a irrealidade, a terra e o eterno;
dependendo da posição e inclinação que possuem podem expressar melancolia, assim como
também uma companhia protetora ao final da jornada da vida, sentido que parece estar mais
relacionado na figura 30.
Na figura 31 encontra-se um jazigo que carrega características da Art Nouveau,
conforme descreve Ducher (2001, p. 200) “este estilo é típico do final do século XIX e início
do século XX, é facilmente reconhecido pela presença de botões de flores, ondulações de
caules e efeitos de superfície”. É caracterizada também por ser uma arte que se propõe a
124
promover uma produção moderna de alta qualidade, que na originalidade e graça de suas
formas recuperaram os elementos que conferem beleza na arte.
Figura 31: Jazigo com característica de Art-Nouveau, Cemitério Municipal de Joinville, 2009.
Fonte: Arquivo da autora.
Nas imagens apresentadas até aqui, já se pode perceber o que Borges (2002) descreve
em relação ao desejo dos indivíduos procurarem se destacar perante a comunidade,
manifestando o prazer da pompa, o gosto artístico, e em fixar o status cultural e social
adquirido ao longo da vida, e no caso de Joinville, pela emergente burguesia industrial e
comercial.
As figuras de jazigos até aqui arroladas, da figura 23 a 31, podem ser consideradas, por
sua vez, as que representariam a „idade de ouro‟ que Vovelle (1997) propõe, onde foram
investidas grandes somas financeiras, agregando decorações artísticas e elementos culturais,
edificações suntuosas e verticais; no espaço do Cemitério Municipal de Joinville esta „idade
de ouro‟ ocorreu de forma esporadicamente e ao longo do século XX, e por fim não chegou a
se legitimar ou constituir como uma tendência hegemônica.
125
Figura 32: Jazigo com característica de Art Déco I, Cemitério Municipal de Joinville, 2009.
Fonte: Arquivo da autora.
126
Figura 33: Jazigo com característica de Art Déco II, Cemitério Municipal de Joinville, 2009.
Fonte: Arquivo da autora.
Não se pode perder de vista que no final dos anos 1920, conforme discute Hobsbawn
(1995) viveu-se uma das principais crises econômicas do sistema capitalista, a famosa crise de
1929, que foi responsável por abalar principalmente as empresas e propriedades com
produção destinada ao mercado internacional. Uma vez que a economia se encontra abalada
os encomendadores de obras de arte não destinam as mesmas somas financeiras em objetos e
obras de arte que investiam em tempo de economia favorável; quando uma crise econômica se
instala os cortes aos objetos e hábitos considerados de luxo acabam sendo os primeiros a
serem feitos. Logo a arte como objeto de consumo das elites deste período sofrerá ajustes e
recuos. Em relação a isso Borges (2002, p. 179) observando os túmulos de Ribeirão Preto/SP,
comenta que:
[...] os túmulos monumentais até 1920 eram cobertos de lajes de mármores
estatuário branco e cinza e aos poucos para adequar-se à nova ordem
127
Figura 34: Presença das características da Art Déco, Cemitério Municipal de Joinville, 2010.
Fonte: Arquivo da autora.
e dogmas que prezam pela sobriedade e modéstia nas edificações dos jazigos; apesar de não
abranger a grande maioria da população joinvilense, fica evidente a forte influência nas
concepções e edificações dos jazigos. Portanto, para esta época, no contexto econômico
favorável em que se encontrava a cidade, tem-se a impressão que na edificação dos jazigos do
Cemitério Municipal de Joinville destacaram-se com maior ênfase os aspectos religioso-
culturais, seguidos das questões econômicas e os modismos artísticos de cada época.
Também nesta discussão, independentemente das questões econômicas, religiosas e
culturais, pode-se considerar a possibilidade de que o predomínio de um determinado estilo de
edificação de jazigos em uma região do cemitério pode ser resultante da influência dos demais
jazigos existentes nas proximidades, motivada pela vontade dos familiares em construir
jazigos semelhantes com os demais.
Na figura 35, tem-se um jazigo que remete ao estilo do ecletismo e foi construído entre
as décadas de 1960 e 1980. Nestas décadas, a burguesia industrial e comercial já triunfava
com forças políticas e sociais na cidade e também irá encontrar nas possibilidades dos estilos
artísticos, no caso o ecletismo, a oportunidade de manifestar suas posses e poder.
Figura 35: Jazigo com característica do estilo eclético, Cemitério Municipal de Joinville,
2010.
Fonte: Arquivo da autora.
129
Figura 36: Jazigo com característica da arte contemporânea, Cemitério Municipal de Joinville,
2009.
Fonte: Arquivo da autora.
130
Figura 37: Jazigo com característica da arte moderna, Cemitério Municipal de Joinville, 2009.
Fonte: Arquivo da autora.
131
Conforme foi observado no Cemitério Municipal de Joinville o recurso dos azulejos nos
jazigos foi largamente utilizado no final das décadas de 70 e 80 e esta popularidade e
tendência pode estar relacionada às questões econômicas, pois em relação aos mármores e
42
Op Art foi um movimento artístico que conhece seu auge entre 1965 e 1968. Os artistas envolvidos com essa
vertente realizam pesquisas que privilegiam efeitos óticos, em função de um método ancorado na interação
entre ilusão e superfície plana, entre visão e compreensão. O percurso do olhar entre a figura e o fundo,
passeando pelos efeitos de sombra e luz produzidos pelos jogos entre o preto e o branco ou pelos contrastes
tonais, é fisgado pelas artimanhas visuais e ilusionismos. Enciclopédia Artes Visuais. Itaú Cultural.
Disponível em:
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete
=3645&lst_palavras=&cd_idioma=28555&cd_item=8>. Acesso em: 02 fev. 2011.
132
Conforme descreve Borges (2003) este tipo de jazigo se impôs a partir do século XIX,
quando a burguesia teve o privilégio de poder construir um recinto privativo e individualizado
em local público, para fazer suas orações, sem ser importunada, e para aproximar-se de seus
mortos.
133
Figura 41: Jazigos em pedra calçada II, Cemitério Municipal de Joinville, 2009.
Fonte: Arquivo da autora.
43
Embora não se possua um levantamento de dados sistematizado, pode-se apontar que a presença de pedras
calçada na edificação dos jazigos representa uma peculiaridade do Cemitério Municipal de Joinville em relação
aos principais cemitérios do país.
134
mais antiga); geralmente aos fundos e nos arredores do muro do cemitério. Nestes casos, além
das possibilidades de influência e semelhança no estilo dos jazigos em uma dada região
comentada anteriormente na página 127, ficam evidentes os aspectos da padronização e da
simplificação das edificações, que por sua vez, afetam o espaço das manifestações simbólicas,
artísticas e culturais, produzem uma espécie de monotonia visual e neutralidade espacial; e
como responsáveis pelas composições que se encontram poderiam ser retomados os valores
da sociedade contemporânea em relação a morte e o morrer, abordados anteriormente, no
capítulo 2, nas páginas 47 a 52, como a aceleração do tempo, a praticidade e a economia dos
materiais, padronização dos costumes, o encurtamento dos momentos de sociabilidade e
espiritualidade.
Porém, um fato curioso ocorre no jazigo da figura 42, em que se registra uma pintura
pouco convencional às demais, em que se tem a interferência/transgressão diante da
padronização que o rodeia.
Figura 42: Jazigos em pedra calçada III, Cemitério Municipal de Joinville, 2010.
Fonte: Arquivo da autora.
Num contexto mais amplo, Ariès (1990) menciona que bastaria uma vacilação da fé
(provocada pela secularização e pela des-cristianisação), para que o equilíbrio fosse rompido e
que o nada na arte funerária prevalecesse. „O nada‟ na arte funerária assim como o „silêncio‟ a
135
„modéstia‟ que Vovelle (1997) discute estariam aliados às questões econômicas, que se
evidenciam nos materiais utilizados nas edificações dos jazigos e no silêncio provocado pela
ausência de simbologia e estatuária condizente com as tradições religiosas e culturais,
promovendo a padronização, simplificação e massificação da cultura principalmente a partir
da segunda metade do século XX.
Borges (2003) discute que o imaginário cristão que persistia no século XIX foi aos
poucos sendo substituído pelo profano no século XX, e hoje ocorre a tendência para um tipo
de imaginário místico que agrega a somatória de vários ideários relacionados à morte.
Portanto compreende-se que as representações e as manifestações atuais da morte agregam
novos atributos, atributos próprios do tempo presente, que é fortemente marcado pelos valores
da sociedade de mercado e de consumo, onde a descontinuidade, a mistura, a revisitação, a
recombinação aleatória dos valores e das tradições pairam sobre a grande parte das produções
e manifestações culturais e artísticas das sociedades contemporâneas.
Com o apanhado destas figuras deste sub-capítulo compreende-se que é delicado
afirmar que o Cemitério Municipal de Joinville viveu uma „idade do ouro‟, com os jazigos de
grandes investimentos arquitetônicos, artísticos e culturais como são encontrados em
cemitérios tradicionais do Brasil e do mundo no século XIX; pois este cemitério, em grande
medida, é fruto do século XX, em que as preocupações higiênico-sanitárias e de secularização
que serão combinadas com as concepções e valores da tradição religiosa „evangélico
luterana‟, mesmo que os números dos dados populacionais apontem para um sentido
diferente. Pode-se talvez indicar que a primeira metade do século XX foi o período em que
foram edificados alguns jazigos de maior destaque e despojamento, porém ainda muito
tímidos com relação aos estilos artísticos e na presença da estatuária funerária.
questões éticas, no programa paint, recortou-se e cobriu-se com pinturas os nomes dos
falecidos e de seus familiares para preservar as identidades dos sepultados e no anonimato
suas famílias.
Os estudos e as reflexões apresentadas nesta pesquisa para os conteúdos, sentido e
sentimentos dos epitáfios são de natureza empírica, as análises introdutórias e reflexões são
não conclusivas, pois até o momento encontrou-se poucos estudos, pesquisas, publicações e
produções relacionadas a este tema e que possam fornecer suporte teórico-metodológico
consistente. No entanto, pensa-se que as mensagens dos epitáfios não poderiam ser deixadas
de fora deste estudo, principalmente pela proposta estar preocupada com as concepções
manifestadas em relação à morte no espaço do cemitério. Mesmo diante desta carência,
procurou-se relacionar análises e reflexões oriundas das observações diretas das lápides dos
jazigos, entretanto ressalta-se que estes requerem maiores estudos e aprofundamentos em
meio à comunidade científica.
Optou-se por distribuí-los e analisá-los dentro de grupos temáticos conforme os
conteúdos dos mesmos suscitavam, sendo assim ficaram arrolados da seguinte forma:
epitáfios bíblicos, de jovem falecido, sobre o “país da vida”, de forte pesar, com mensagem de
escritores, romântico, que enfatiza a família, que enfatiza a mulher, de inconformismo, obre
transcendência, de profissões, recorrentes e ideogramas chineses; e por fim as lápides com
elementos estilizados.
No espaço do Cemitério Municipal de Joinville, como foi abordado anteriormente,
apresenta pouca expressividade na edificação e na ornamentação dos jazigos, principalmente
no que diz respeito às edificações da segunda metade do século XX, pode conter nas
mensagens dos epitáfios manifestações de elementos mais substanciais que evidenciam as
concepções de morte da população da cidade. Os epitáfios são inscritos sobre as lápides
tumulares e monumentos funerários e geralmente são feitas com a intenção de homenagear,
enaltecer e ou elogiar brevemente o falecido, podendo indicar as formas de lamento e pesar,
saudades e tristezas, conformismo, esperança, a não aceitação e negação diante do fato morte.
Com relação a estes sentimentos Elias (2001, p.76) escreve que:
A morte não é terrível. Passa-se ao sono e o mundo desaparece - se tudo
correr bem. Terrível pode ser a dor dos moribundos, terrível também a perda
sofrida pelos vivos quando morre uma pessoa amada. Somos parte um dos
outros. [...] A morte não tem segredos. Não abre portas. É o fim de uma
pessoa. O que sobrevive é o que ela ou ele deram às outras pessoas, o que
permanece nas memórias alheias.
137
Com base nas reflexões do autor compreende-se que a morte tão somente é uma
problemática dos vivos e de quem está prestes a morrer, observa-se que na tentativa de
superá-la os familiares, amigos e às vezes até os moribundos manifestam nos epitáfios os seus
sentimentos e percepções diante desta experiência. Assim indaga-se, como os vivos lidaram
com esta problemática, na tentativa dar sentido e conformação à experiência da morte?
Por outro lado, os epitáfios aonde se encontram, como estão dispostos e os conteúdos
que comportam reúnem discursos e concepções tanto sobre a vida como sobre a morte,
portanto estas manifestações conforme discute Chartier (1988) não são de forma alguma
discursos neutros, antes produzem um campo de força, de disputas e lançam mão de
estratégias e práticas (sociais, políticas e culturais) que tendem a impor uma autoridade à
custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar,
para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.
Os epitáfios do Cemitério Municipal de Joinville costumam estar inscritos nas lápides
e/ou sobrepostas no prolongamento dos jazigos; os materiais em que se encontram transcritos
podem ser placas de acrílico, mármores, granitos, cimentos de diferentes cores e qualidades,
placas de bronze, ferro, pedra calçada, em folhas de vidro entre outros materiais. O formato
que os epitáfios apresentam pode ser de livros abertos, corações, pergaminhos sobrepostos
diretamente sobre os jazigos. As frases dos epitáfios são formadas com letras avulsas nos
materiais de ferro, chumbo, bronze, e até descritas manualmente no cimento ainda molhado.
Para ganhar ênfase, na maioria das vezes, as frases são acompanhadas de aspas, reticências,
flores, anjos, velas, terços e cruzes. Conforme as figuras 43, 44 e 45.
Estas lápides com epitáfios que trazem citações bíblicas, em suas mensagens
transmitem a ideia de ressurreição e vitória diante da morte, típicas das tradições religiosas
cristãs. O uso de mensagens epitáfios desta natureza é comum entre os católicos, os
evangélicos e luteranos. Existem também outros epitáfios com citações bíblicas que apontam
para diferentes aspectos das concepções de morte, porém apresentam em comum a ideia de
aceitação e louvor diante da morte, como é o caso dos conteúdos e dos sentidos das figuras
46, 47, 48 e 49.
ressurreição da alma, e vida eterna no paraíso celeste. No epitáfio da figura 50 ocorre uma
mensagem com sentido/significado semelhante, porém com aspectos diferentes.
A semelhança estaria na passagem „os espero no céu‟ que apresenta o mesmo sentido
que a passam do epitáfio da figura 50, quando se referia em „morada na casa do pai‟; a ideia
deixada de que não deveria se lamentar e chorar diante de sua morte, como nas figuras
anteriores, também está fundamentada na concepção de ressurreição da alma e vida eterna no
paraíso celestial.
Outro aspecto que chama atenção neste epitáfio é a ênfase na relação „amados‟, uma
categoria que permite incluir pessoas além dos vínculos sanguíneos e familiares herdados,
aponta para os laços e relações afetivas construídas em vida nos espaços de sociabilidade
como um todo. Existe ainda outro aspecto que é discutido por Steyer (2008) em que o epitáfio
pode ter sido encomendado pelo falecido ainda quando se encontrava vivo como também
pode ter sido projetado pelos familiares, que por sua vez colocam palavras na boca do
falecido.
Nas figuras 51 e 52 percebe-se que a mensagem do epitáfio faz analogia à origem e
criação divina, trata-se da família reconhecendo a oportunidade da vida, que conforme
descrevem, é dada pelo „senhor‟ ao filho, e agora será entregue a ele novamente.
141
Figura 52: Epitáfio de jovem falecido II, Cemitério Municipal de Joinville, 2010.
Fonte: Arquivo da autora.
142
Ambos os epitáfios indicam a morte de pessoas ainda jovens, em que os pais estão
enterrando os filhos, numa situação que acaba por ser contrária ao processo natural da vida, e
poderia apresentar nos epitáfios sentido e sentimentos de revolta e não aceitação diante da
situação. Em nossa época se tem tornado bastante frequente estas ocorrências, como em
situações de fatalidades, de suicídio ou ainda diante do aumento da violência no trânsito e
drogadição nos centros das grandes cidades.
Na figura 53 a mensagem do epitáfio menciona o destino depois da morte migração ao
paraíso celeste, porém numa concepção e descrição lúdica deste processo.
Figura 53: Epitáfio sobre o„país da vida”, Cemitério Municipal de Joinville, 2010.
Fonte: Arquivo da autora.
Com a passagem “vivendo em outra morada você está mais feliz que nós, que choramos
a sua ausência”, os sentimentos, os lamentos, as homenagens dos vivos, os que viviam e
viveram a experiência da perda e do luto fica evidenciado; a mensagem ainda sugere que
morrer é melhor do que continuar vivo, e viver e sofrer a perda, a ausência de alguém
próximo e amado. É nítido o inconformismo e a não aceitação diante do fato da morte.
O epitáfio da figura 55, encontra-se uma frase literária de autoria do escritor brasileiro
Henfil44.
Figura 55: Epitáfio com mensagem de escritores I, Cemitério Municipal de Joinville, 2010.
Fonte: Arquivo da autora.
44
Conforme Pires (2005) Henrique de Sousa Filho, mais conhecido como „Henfil‟, nasceu em Ribeirão das
Neves/MG em 5 de fevereiro de 1944, e faleceu no Rio de Janeiro, em 4 de janeiro de 1988. Foi um
cartunista, quadrinista, jornalista e escritor brasileiro.
144
Figura 56: Epitáfio com mensagem de escritores II, Cemitério Municipal de Joinville, 2010.
Fonte: Arquivo da autora.
Steyer (2008) discute, em que as famílias muitas vezes acabam por colocar palavras na boca
dos seus mortos, para conformar e afirmar verdades por estes defendidas, assim como entram
em jogo as complexas relações de poder na família, os valores, os sentimentos, as relações
afetivas e amorosas, as vivências e convivências das pessoas uma com as outras.
Outro elemento que chama atenção é que na figura 55 não houve a identificação da
autoria da mensagem, diferente do que ocorre na figura 56. O fato do reconhecimento da
autoria das frases e a escolha por tais mensagens, ambas oriundas do universo literário,
parecem estar no sentido e significado de conferir certo ar de sofisticação e refinamento a
quem escolheu e a quem foi homenageado.
Na figura 57 ocorre uma situação diferente, encontram-se epitáfios mais relacionados à
convivência com parceiros enamorados e/ou que retratam o sentimento do amor carnal, do
que a preocupação familiar de honrar e enobrecer o falecido. A mensagem parece ter sido
deixada pelo cônjuge que faleceu e que descreve: “quando mais nada restar de mim; ainda
haverá uma pequena parte para te amar. Tchauzão”.
a permanência do sentimento do amor até onde for possível, ou melhor até “quando mais nada
restar”, representando resistência ao desapego das relações estabelecidas em vida.
Na figura da lápide 58, encontra-se o sentimento do amor numa dimensão diferente e
mais complexa, como um sentimento fraternal, que existirá na transcendência e alcançará a
eternidade.
Figura 59: Epitáfio que enfatiza a família I, Cemitério Municipal de Joinville, 2010.
Fonte: Arquivo da autora.
Figura 60: Epitáfio que enfatiza a família II, Cemitério Municipal de Joinville, 2010.
Fonte: Arquivo da autora.
Figura 61: Epitáfio que enfatiza a mulher, Cemitério Municipal de Joinville, 2010.
Fonte: Arquivo da autora.
148
Este epitáfio sugere várias interpretações: na passagem “fiel obediência”, sugere uma
mulher que corresponde ao ideal e moral de mulher tradicional e religiosa, já nas passagens
“amava o beija-flor” e “seu valor excede o de rubis” sentido e sentimento que perpassa o
sentido objetivo e a ideia tradicional de mulher, sugere a compreensão de uma mulher nobre
nos sentido de valores e comportamento „virtuosa‟ „espirituosa‟, e numa dimensão até pagã da
cultura, cósmica, holística, da mulher-mãe terra. Porém não se pode perder de vista o epitáfio
como um todo e sendo assim tem-se a impressão de que se tratava de uma mulher realizava
atividades junto à instituições religiosas e de caridade.
No epitáfio da figura 62, encontra-se uma mensagem que remete à ideia de não
aceitação, inconformismo e até mesmo da negação diante da experiência da morte.
Figura 64: Epitáfio sobre transcendência II, Cemitério Municipal de Joinville, 2010.
Fonte: Arquivo da autora.
Retomando o que foi observado anteriormente, nas páginas 127 e 133, no fato da
semelhança, na influência e na simplificação na edificação dos jazigos em determinadas
regiões do Cemitério, é possível também identificar que o mesmo ocorre com os conteúdos e
com as mensagens dos epitáfios conforme apresentam as figuras 67 e 68.
151
Figura 68: Epitáfios recorrentes II, Cemitério, Cemitério Municipal de Joinville, 2010.
Fonte: Arquivo da autora.
Nos epitáfios das figuras 67 e 68 o que acaba mudando é somente a forma de dispor as
mensagens nas lápides; figura 67, na lápide as palavras são sobrepostas formando a frase, já
na figura 68, a lápide consiste em uma placa em que a mensagem é gravada sobre ela. As
pessoas possuem autonomia e poder de decisão/escolha diante de suas preferências, mas, em
muitas situações ocorre que esta decisão coincide com a de outras pessoas também, seja para
acompanhar e assemelhar-se a um determinado padrão ou pela simplicidade e praticidade dos
modelos prontos.
No epitáfio da figura 69 encontra-se a mensagem descrita em ideogramas orientais,
estes ideogramas são desenhos e traços que significam textos, possuem sentidos e significados
que por sua vez remetem a narrativas complexas.
152
Figura 69: Epitáfio com ideogramas orientais, Cemitério Municipal de Joinville, 2010.
Fonte: Arquivo da autora.
é usada a estrela para indicar a data de nascimento e a cruz para a data de falecimento; no caso
desta lápide ocorre que o nascimento é representado pela presença do desenho do Sol e o
falecimento a Lua, em quarto minguante.
Figura 70: Lápide com formato estilizado I, Cemitério Municipal de Joinville, 2010.
Fonte: Arquivo da autora.
Neste caso o Sol e Lua são agregados ao conjunto para indicar e representar o
nascimento e a morte, o início e o fim da vida respectivamente. O Sol, estrela central do
sistema solar, a Lua, o satélite natural da Terra; o fato da Lua estar associada à morte também
conduz ao campo do imaginário, das lendas, das superstições, dos mistérios, do obscuro e do
nebuloso e fantástico.
Já na figura 71 tem-se um epitáfio com lápide na forma de coração46, onde se encontra
inscrita a mensagem “Mãe és para nós a cantiga do amor primeiro gravado no coração da
vida...obrigada”, que acaba por evidenciar a ideia e o sentimento do amor maternal, filial e
infantil dos filhos em relação à mãe que se encontra ali sepultada.
46
Este formato de coração é uma noção estereotipada, romântica e até ingênua.
154
Figura 71: Lápide com formato estilizado II, Cemitério Municipal de Joinville, 2010.
Fonte: Arquivo da autora.
Pelo que se pode observar as mensagens dos epitáfios no espaço deste cemitério, seus
conteúdos, sentido e significados, acabam por serem extraídos de passagens bíblicas, ou seja,
de caráter religioso, e acabam sendo encontrados mais frequentemente. Por outro lado as
edificações propriamente ditas dos jazigos revelam que nestes prevalecem os aspectos e os
„valores‟ de ordem econômica e social da sociedade de consumo e industrial.
De maneira geral percebe-se que na edificação, na ornamentação e na identificação
simbólica dos jazigos ocorreu certo recuo dos aspectos religiosos, e por sua vez foram
deslocados para os epitáfios, através dos conteúdos, sentidos e significados que possuem; ou
seja, nos jazigos deste cemitério ocorre a utilização da palavra ao invés do recurso da
imagem; o uso da palavra, nas possibilidades de seu conteúdo, sentidos e significados
representando a escolha preferencial da população e o uso de imagens, símbolos e ícones de
forma esporádica e isolada. Mas para tal afirmativa se tornar uma verdade constatada, seriam
necessário a continuação dos estudos e um maior levantamento e análise de dados.
156
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Memento mori
(Lembra-te de que vais morrer)
Máxima romana
morte‟ e a „morte como tabu e musa‟ foram as mais expressivas; por sua vez, na essência
destas concepções evidencia-se o sentimento de negação da morte, que prevalecerá e
prolongará até a contemporaneidade; ou seja, a problemática da morte, em grande medida, foi
paulatinamente negada nos diferentes tempos e espaços de sociabilidade e humanização do
homem.
Assim, negação da morte não esteve propriamente no fato da morte corpórea em si,
mas, no fato de ela representar o fim de uma trajetória de vida fundamentada por valores
oriundos pela sociedade industrial, de consumo e de mercado. O homem foi capaz de
reconhecer a morte e é o único ser que possui consciência da mesma, porém não conseguiu
encará-la e conciliá-la dignamente no horizonte de suas experiências e acabou por conduzi-la
à categoria de tabu. Desta forma a morte é escamoteada e negligenciada no cotidiano das
populações, perdurando o sentimento de vazio, medo e mal-estar na intimidade da existência,
que por sua vez, serve de alimento a angústia e ao desespero, nas mais diversas situações e
experiências de proximidade com a mesma.
A disposição dos cemitérios, nas diferentes épocas e sociedades, apresenta diferentes
percursos e destinos; inicialmente os mortos foram sepultados em locais edificados e
sinalizados com pedras, aos quais os vivos pudessem retornar quando precisassem, tanto para
homenagear como aplacar seus mortos; em seguida foram dispostos em cemitérios edificados
ao longo das principais estradas, pois deveriam ficar distantes para não poluir os vivos;
posteriormente foram levados para o interior das cidades, quando a preocupação do homem
era a de salvaguardar sua alma sob a proteção da Igreja; depois de passado um longo período
no interior das cidades foram postos para fora, sob a égide de antros favoráveis a proliferação
de doenças e atos ilícitos; e por fim com o forte movimento de urbanização, a população irá
ao encontro dos cemitérios, na tentativa de habitar a região em torno e usufruir da infra-
estrutura existente em função dos mesmos. Neste percurso identificou-se que desde os
primeiros jazigos edificados em pedra da pré-história, nos cemitérios dispostos ao longo das
estradas na antiguidade e quando serão afastados das cidades, na Idade Moderna, a concepção
e sentimento que acompanhou e pairou fora a do medo e temor.
Relacionando as concepções de morte e as disposições dos cemitérios, acaba por ficar
evidente que ambas, em grande medida, se complementam e prolongam nos aspectos de: ao
mesmo tempo em que o homem temia a sobrevivência do duplo enterrava seus mortos ao
longo das estradas a fim de evitar a proximidade com eles; quando teve dúvidas em relação ao
158
destino de sua alma tratou de reconciliar-se com seus mortos e sepultá-los no interior das
cidades e até mesmo dentro das Igrejas; na época moderna, a morte foi colocada sob suspeita
e a „crise‟ a assolará, os cemitérios serão afastados para fora das cidades.
Na contemporaneidade, na busca por alternativas diante dos problemas urbanísticos as
redondezas e vizinhança dos mesmos serão novamente povoadas; porém a relação com morte
não sofrerá mudanças e alterações, o que se presencia é a continuidade da concepção
característica da idade moderna, como algo sobre o qual não se deve tocar e abordar, antes
evitar e disfarçar, principalmente com relação às crianças, a fim de evitar que estas sofram
maiores desconfortos e constrangimentos.
A morte, experiência que um dia foi responsável por conduzir o homem e sua
consciência ao campo do sagrado e do mistério que envolve todos os seres do universo, agora,
quando muito se revela como musa vedete que reina em absoluto nas histórias em quadrinhos,
filmes de terror, jogos de vídeo games, nos noticiários policiais de grandes cidades. E os
cemitérios, que constituíram as primeiras moradas/edificações pelo homem, atualmente fazem
parte do rol dos problemas/soluções nos projetos urbanísticos das principais metrópoles e, por
sua, vez acabam sendo utilizados nos joguetes da especulação imobiliária e financeira.
A problemática da morte ainda carece de um espaço mais aberto e amplo de diálogo e
reflexão, a fim de que seja compreendida de uma forma mais natural e com toda dignidade
que merece, a fim de melhor conduzir a experiência da vida como um todo. Por sua vez os
espaços dos cemitérios não podem ser considerados apenas como locais depositários de
cadáveres, antes podem reunir evidências das concepções sociais, culturais inerentes a história
e trajetória do homem. Uma sociedade que conduz a problemática da morte e cemitérios,
dentro deste contexto, acaba por desperdiçar a oportunidade de reconciliar o homem, em sua
essência, corpo, meio e espaço no movimento de transcendência em relação a uma das
questões fundamentais da existência.
De uma maneira ampla pode-se dizer que o processo de secularização dos espaços dos
cemitérios em Joinville não transcorreu de forma integral, submetendo todas as instâncias e
instituições da sociedade, antes sofreu percalços e resistências da parte da comunidade
religiosa evangélico-protestante, sendo que esta buscou garantir e legitimar sua vontade pela
via legal. Afirma-se isto levando em consideração as resoluções de nº 206/1913 e nº
207/1913, em que esta conseguiu evitar o processo de secularização de seus cemitérios e
159
percurso e que não puderam ser contempladas e/ou respondidas, diante das circunstancias
adversas do tempo, e que permanecem em aberto provocando e intuindo a vontade pela
continuidade dos estudos e pesquisas.
Na Resolução nº 206/1913 (conforme se encontra no Anexo A, na página 179), que trata
da abertura, regulamentação e valores dos terrenos do cemitério, na qual consta a existência
de um „área reservada‟ no interior do mesmo. Logo se questiona para que e para quem esteve
reservada?! Como foi ocupada?! Corresponde à que região no cemitério?!
Com relação ao Anexo B, na página 180, que traz da Resolução nº 207/1913, por que
somente as comunidades evangélico-luteranas conseguiram evitar o processo de secularização
dos espaços dos cemitérios e das práticas de sepultamentos?! Houve alguma forma de
resistência não oficial da parte das demais tradições religiosas?! Como funcionou?!
O número de 31 cemitérios para uma cidade com, aproximadamente, 525 mil habitantes
é expressivo e a disposição que apresentam nos limites do município parece estabelecer rotas
e sentidos próprios (conforme mapa 2, na página 76). A que se atribuí um número tão elevado
de cemitérios? Seria somente o fato de as comunidades evangélico-luteranas terem
conseguido a possibilidade de sepultarem os seus integrantes em suas comunidades?!
O fato do povoamento e a formação das comunidades ter se dado de maneira dispersa
pelo interior do município dificultaria o translado até os cemitérios centrais da cidade. Este
fator fez com que estas comunidades construíssem seus próprios cemitérios? A disposição em
que os cemitérios se encontram em relação aos limites da cidade relaciona-se com os
movimentos populacionais de ocupação do território e/ou com a abertura das vias de
transporte e locomoção da época?
Como a população utiliza e se relaciona com os cemitérios espalhados pela cidade?!
Qual a concepção de morte e cemitérios que corresponde a estes cemitérios e a cidade como
um todo?! Como a população de Joinville identifica, reconhece e se relaciona os Cemitérios?!
O que o Cemitério Municipal de Joinville, que é quase centenário, representa à população?!
Outro aspecto que pode ser relacionado é a ampla utilização da pedra calçada na
edificação dos jazigos recentes no cemitério municipal, esta ocorrência também é encontrada
nos demais cemitérios da cidade e/ou da região do entorno de Joinville?! O que favoreceria a
utilização deste material na edificação dos jazigos?! Com relação ao deslocamento da
simbologia religiosa também é recorrente nos demais cemitérios da cidade e/ou nos
cemitérios de outras cidades?! A partir dos conteúdos dos epitáfios seria possível
162
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175
ANEXOS
176
APÊNDICES
180
Introdução
QUESTÕES NORTEADORAS
a. Nome Completo:
c. Filiação:
d. Endereço residencial:
e. Escolaridade:
f. Profissão:
g. Religião: