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CAPÍTULO UM

QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS

A teoria do conhecimento, ou epistemologia, é o ramo da filosofia que trata das


questões filosóficas sobre o conhecimento e a racionalidade. Os epistemólogos estão pri-
mariamente interessados nas questões sobre a natureza do conhecimento e nos princípios
que governam a crença racional. Eles estão menos focados em decidir se há conhecimento
ou crença racional em casos reais, específicos. Assim, por exemplo, não é tarefa do epis-
temólogo determinar se é agora razoável crer que existe vida em outros planetas. Esse é
primariamente o trabalho de astrônomos e cosmólogos. A tarefa dos epistemólgos é tentar
desenvolver uma teoria geral estabelecendo as condições sob as quais as pessoas têm co-
nhecimento e crenças racionais. Pode-se então aplicar essa teoria mais geral ao caso espe-
cífico da crença em vida em outros planetas, mas fazê-lo é ir além das questões epistemo-
lógicas centrais. Embora no curso do exame das questões filosóficas seja costumeiro pen-
sar sobre muitos exemplos específicos, isso serve principalmente para ilustrar as questões
gerais. O objetivo deste capítulo é identificar algumas das questões teóricas centrais de que
trata a epistemologia.
Uma boa maneira de começar é olhar para as coisas que ordinariamente dizemos e
pensamos acerca do conhecimento e da racionalidade. Sistematizando-as e refletindo sobre
elas chegaremos a um conjunto de questões e enigmas. Assim, começaremos expondo de
uma maneira sistemática algumas idéias comumente (mas não universalmente) sustentadas
acerca do que nós conhecemos e de como nós conhecemos essas coisas. Chamaremos a
essa coleção de idéias de Perspectiva Standard. Neste capítulo identificaremos algumas
das alegações centrais da Perspectiva Standard. Dos capítulos 2 até 5 tentaremos descrever
em detalhe as implicações da Perspectiva Standard e expor suas respostas a algumas das
questões centrais. Então, dos capítulos 6 até 9 nos voltaremos para diversos desafios e ob-
jeções à Perspectiva Standard. Assim, o objetivo geral deste livro é proporcionar um me-
lhor entendimento das perspectivas do senso comum acerca do conhecimento e da raciona-
lidade e ver em que extensão aquelas perspectivas podem suportar a crítica.

I. A PERSPECTIVA STANDARD
2

No curso comum dos eventos, as pessoas alegam conhecer muitas coisas, e elas a-
tribuem conhecimento aos outros numa variedade de casos. Daremos exemplos abaixo. As
alegações de conhecimento com as quais nós estamos preocupados não são as irrefletidas
ou esquisitas. Antes, elas são juízos sensatos e ponderados. Assim, a lista que segue reflete
um conjunto de pensamentos acerca do conhecimento e da racionalidade ao qual muitas
pessoas provavelmente chegariam se elas refletissem honesta e cuidadosamente acerca do
tópico. Você pode não concordar com cada detalhe da perspectiva a ser descrita, mas é jus-
to dizer que ela captura acuradamente o senso comum reflexivo.

A. O Que Nós Conhecemos


A maioria de nós pensa que conhece muitas coisas. A lista seguinte identifica al-
gumas categorias gerais dessas coisas e dá exemplos de cada uma. As categorias podem se
sobrepor e elas estão longe de serem precisas. Ainda assim, elas nos dão uma boa idéia dos
tipos de coisas que nós podemos conhecer.

a. Nosso meio-ambiente imediato:


“Há uma cadeira aqui.”
“O rádio está ligado.”
b. Nossos próprios pensamentos e sentimentos:
“Estou animado com o novo semestre.”
“Eu não estou ansioso para preencher meus formulários de imposto.”
c. Fatos do senso comum acerca do mundo:
“A França é um país da Europa.”
“Muitas árvores deixam cair suas folhas no outono.”
d. Fatos científicos:
“Fumar cigarros causa câncer de pulmão.”
“A terra gira em torno do sol.”
e. Estados mentais dos outros:
“Meu vizinho quer que sua casa seja pintada.”
“Aquela pessoa que está rindo muito achou a piada que ela recém ouviu en-
graçada.”
f. O passado:
3

“George Washington foi o primeiro presidente dos Estados Unidos.”


“O presidente Kennedy foi assassinado.”
g. Matemática:
“2 + 2 = 4”
“5 . 3 = 15”
h. Verdades conceituais:
“Todos os solteiros são não-casados.”
“Vermelho é uma cor.”
i. Moralidade:
“A tortura gratuita de crianças é errada.”
“Não há nada de errado em tirar uma folga do trabalho de vez em quando.”
j. O futuro:
“O sol nascerá amanhã.”
“Os Chicago Cubs não ganharão a World Series no próximo ano.”1
k. Religião:
“Deus existe.”
“Deus me ama.”

Existem, naturalmente, muitas coisas destas categorias que nós não conhecemos.
Alguns fatos acerca do passado distante estão irrecuperavelmente perdidos. Alguns fatos
acerca do futuro estão, ao menos por enquanto, além de nosso alcance. Algumas das áreas
de conhecimento da lista são controversas. Você pode ter dúvidas acerca de nosso conhe-
cimento nas áreas da moralidade e da religião. Ainda assim, a lista proporciona uma exem-
plificação adequada dos tipos de coisas que nós tipicamente alegamos conhecer.
Assim, a primeira tese da Perspectiva Standard é

PS1. Nós conhecemos uma grande variedade de coisas das categorias (a) – (k).

B. Fontes de Conhecimento
Se (PS1) está correta, então existem algumas maneiras pelas quais nós chegamos a
conhecer as coisas que ela diz que conhecemos; existem algumas fontes para o nosso co-

1
Os fãs dos Cubs podem não gostar deste exemplo. Mas aqueles que acompanham beisebol sabem que, não
importa o que aconteça, os Cubs nunca vencem. Nem o Boston Red Sox.
4

nhecimento. Por exemplo, se nós conhecemos alguma coisa acerca do nosso meio-
ambiente imediato, então a percepção e a sensação jogam um papel central na aquisição
desse conhecimento. A memória obviamente é crucial para o nosso conhecimento do pas-
sado e também para certos aspectos do nosso conhecimento de fatos correntes. Por exem-
plo, meu conhecimento de que a árvore que vejo através de minha janela é um bordo de-
pende da minha percepção da árvore e da minha lembrança de como os bordos se parecem.
Outra fonte de boa parte de nosso conhecimento é o testemunho das outras pessoas. O tes-
temunho não se restringe aqui às declarações feitas por testemunhas sob juramento. Ele é
muito mais amplo do que isso. Ele inclui o que as outras pessoas dizem a você, incluindo o
que elas dizem a você na televisão ou em livros e jornais.
Três outras fontes de conhecimento merecem também uma breve menção aqui. Se a
percepção é a nossa consciência das coisas externas através da visão, da audição e dos ou-
tros sentidos, então a percepção não dá conta do nosso conhecimento de nossos próprios
estados internos. Você pode agora saber que se sente sonolento, ou que está agora pensan-
do acerca do que irá fazer no final de semana. Mas isso não ocorre por meio da percepção
no sentido recém estabelecido. Ocorre, antes, por meio da introspecção. Assim, esta é outra
potencial fonte de conhecimento.
Além disso, algumas vezes nós conhecemos coisas por raciocínio ou inferência.
Quando nós conhecemos alguns fatos e vemos que aqueles fatos sustentam algum outro
fato, nós chegamos a conhecer esse outro fato. O conhecimento científico, por exemplo,
parece surgir de inferências a partir de dados observacionais.
Finalmente, parece que conhecemos algumas coisas simplesmente porque nós po-
demos “ver” que elas são verdadeiras. Isto é, nós temos a habilidade de pensar acerca das
coisas e de discernir algumas verdades simples. Embora isso seja matéria de alguma con-
trovérsia, nosso conhecimento de aritmética elementar, de lógica simples e de verdades
conceituais parece cair nessa categoria. Por falta de um termo melhor, nós iremos dizer que
conhecemos essas coisas por meio de insight racional.
Nossa lista das fontes de conhecimento, então, se parece com isto:

a. Percepção
b. Memória
c. Testemunho
d. Introspecção
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e. Raciocínio
f. Insight racional

Sem dúvida, em muitos casos nosso conhecimento depende de alguma combinação


dessas fontes.
A Perspectiva Standard sustenta que nós podemos ganhar conhecimento dessas
fontes. Ela não diz que essas fontes são perfeitas. Sem dúvida, elas não o são. Algumas ve-
zes nossas lembranças estão equivocadas. Algumas vezes nossos sentidos nos enganam.
Algumas vezes nós raciocinamos mal. Ainda assim, de acordo com a Perspectiva Stan-
dard, nós podemos obter conhecimento usando essas fontes.
Se a lista de fontes de conhecimento deveria ser expandida é matéria de alguma
controvérsia. Talvez algumas pessoas acrescentem insight religioso ou místico à lista. Tal-
vez outras pensem existir formas de percepção extra-sensorial que deveríamos acrescentar
a ela. Entretanto, estas são questões sobre as quais há maior desacordo. Assim, acrescentá-
las poderia fazer a lista parecer menos com alguma coisa que mereça o nome de “Perspec-
tiva Standard”. Assim, nós não as acrescentaremos aqui. Outros podem querer acrescentar
a ciência à lista das fontes de conhecimento. Embora possa não ser objetável fazê-lo, a ci-
ência é provavelmente melhor vista como uma combinação de percepção, memória, teste-
munho e raciocínio. Assim, pode não ser necessário acrescentá-la à lista.
Assim, a segunda tese da Perspectiva Standard é

PS2. Nossas fontes de conhecimento primárias são (a) – (f).

A Perspectiva Standard, então, é a conjunção de (PS1) e de (PS2).

II. DESENVOLVENDO A PERSPECTIVA STANDARD

Numerosas questões surgem quando refletimos acerca da Perspectiva Standard.


Essas questões constituem o objeto primeiro da epistemologia. Esta seção identifica algu-
mas dessas questões.
Se alguns casos caem na categoria de conhecimento e outros são dela excluídos, en-
tão deve haver alguma coisa que diferencie esses dois grupos de coisas. O que é que dis-
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tingue o conhecimento da falta de conhecimento? O que é preciso para conhecer alguma


coisa? Isto leva à primeira questão:

Q1. Sob que condições uma pessoa sabe que alguma coisa é verdadeira?

Pode-se pensar que é uma questão de quão segura uma pessoa se sente sobre algu-
ma coisa ou de se existe um acordo geral sobre o assunto. Como veremos, estas não são
boas respostas para (Q1). Alguma coisa mais distingue o conhecimento de seu oposto.
(Q1) se revela surpreendentemente difícil, controversa e interessante. Produzir uma respos-
ta para ela envolve pensar em algumas questões difíceis. Esse será o foco dos capítulos 2 e
3.
De acordo com muitos filósofos, uma condição importante para o conhecimento é a
crença racional ou justificada. Conhecer alguma coisa requer algo como ter uma boa razão
para crer nela, ou chegar a crer nela da maneira correta, ou alguma coisa do tipo. Você não
conhece uma coisa se está apenas adivinhando, por exemplo. Isto nos leva a uma segunda
questão, uma que tem sido central para a epistemologia por muitos anos:

Q2. Sob que condições uma crença é justificada (ou razoável, ou racional)?

E isto nos levará a questões adicionais acerca das alegadas fontes de conhecimento.
Como essas faculdades nos tornam aptos a satisfazer as condições para o conhecimento?
Como elas podem produzir a justificação epistêmica? Esse será o foco dos capítulos 4 e 5,
bem como de partes dos capítulos 7-9.
Nossas crenças obviamente jogam um papel central na determinação de nosso
comportamento. Você irá se comportar de maneira muito diferente em relação ao seu vizi-
nho se acreditar que ele seja um amigo confiável ao invés de um inimigo desonesto. Dada
a habilidade das crenças de afetar o nosso comportamento, parece claro que as suas crenças
podem afetar a sua vida e a vida dos demais. Dependendo da sua carreira e da extensão na
qual os outros dependem de você, você pode ter a obrigação de conhecer certas coisas. Por
exemplo, um médico deve conhecer os últimos desenvolvimentos em sua especialidade.
Algumas vezes, entretanto, o conhecimento pode ser uma coisa ruim, como quando alguém
fica sabendo da deslealdade de um aparente amigo. Estas considerações sugerem que ques-
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tões práticas e morais interagem com questões epistemológicas de maneiras que merecem
exame. Assim,

Q3. De que maneira, se alguma há, as questões epistemológicas, práticas e mo-


rais afetam umas às outras?

Trataremos dessa questão no capítulo 4.

III. DESAFIOS À PERSPECTIVA STANDARD

A cuidadosa reflexão filosófica sobre as questões até agora listadas, a ser desenvol-
vida nos capítulos 2-5, resultará na exposição detalhada daquilo a que conduz a Perspecti-
va Standard. Entretanto, como se evidenciará ao prosseguirmos, há razões para perguntar-
mos se essa perspectiva do senso comum é realmente correta. Nós daremos a essas razões e
às visões alternativas sobre o conhecimento e a racionalidade associadas a elas a devida
atenção nos capítulos 6-9. As idéias centrais por detrás dessas dúvidas são as bases para as
questões restantes acerca da Perspectiva Standard.

A. A Perspectiva Cética
Os advogados da Perspectiva Standard sustentam que nós conhecemos muito me-
nos do que a Perspectiva Standard diz que nós conhecemos. O ceticismo constitui um tra-
dicional e poderoso desafio filosófico à Perspectiva Standard. Os céticos pensam que a
Perspectiva Standard é demasiado caridosa e auto-indulgente. Eles pensam que a nossa
asserção confiante de que conhecemos muitas coisas resulta de uma autoconfiança presun-
çosa que é inteiramente injustificada. Como nós veremos, alguns argumentos céticos re-
pousam sobre possibilidades aparentemente bizarras: talvez você esteja apenas sonhando
que vê e ouve as coisas que você pensa que está vendo e ouvindo; talvez a sua vida seja
algum tipo de realidade artificial gerada por computador. Outros argumentos céticos não
repousam sobre hipóteses estranhas como essas. Mas todas elas desafiam as nossas confor-
táveis visões do senso comum. Essas considerações conduzem a um novo conjunto de
questões epistemológicas:
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Q4. Nós realmente temos algum conhecimento? Há alguma boa resposta aos
argumentos dos céticos?

(Q4) questiona se, com efeito, as condições formuladas em resposta a (Q1) são de
fato satisfeitas. Os advogados da Perspectiva Cética sustentam que a resposta para cada
uma das questões de (Q4) é “Não.” Eles estão inclinados a negar tanto (PS1) quanto (PS2).

B. A Perspectiva Naturalista
A metodologia tradicionalmente utilizada pelos epistemólogos é primariamente a
análise conceitual ou filosófica: pensar rigorosamente acerca de como são o conhecimento
e a racionalidade, freqüentemente utilizando exemplos hipotéticos para ilustrar as questões.
Entretanto, pode-se perguntar se não faríamos melhor estudando alguma dessas questões
cientificamente. Recentemente, muitos filósofos têm dito que o faríamos. Chamaremos a
essa perspectiva de Perspectiva Naturalista porque ela enfatiza o papel da ciência natural
(ou empírica ou experimental). Assim, uma maneira pela qual a Perspectiva Naturalista
desafia a Perspectiva Standard tem a ver com a metodologia utilizada para sustentar as te-
ses (PS1) e (PS2) da Perspectiva Standard.
A Perspectiva Naturalista conduz a um segundo tipo de desafio à Perspectiva
Standard. Há um corpo de pesquisas acerca das maneiras pelas quais as pessoas pensam e
raciocinam que é perturbador. Ele mostra, ou ao menos parece mostrar, erros e confusões
sistemáticos e generalizados na maneira como nós pensamos e raciocinamos. Quando con-
frontadas com os resultados dessas pesquisas, algumas pessoas se perguntam se algo como
a Perspectiva Standard pode estar correta.
Estas considerações conduzem ao nosso próximo conjunto de questões:

Q5. De que maneira, se alguma há, os resultados em ciência natural, especial-


mente na psicologia cognitiva, influenciam as questões epistemológicas? Os
recentes resultados empíricos solapam a Perspectiva Standard?

C. A Perspectiva Relativista
Outro desafio à Perspectiva Standard emerge de considerações de relativismo e de
diversidade cognitiva. Para ver as questões envolvidas aqui, note que as crenças das pesso-
as e as suas políticas de formação de crenças diferem amplamente. Por exemplo, algumas
9

pessoas estão dispostas a crer na base de pouca evidência. Algumas parecem demandar
muita evidência. As pessoas diferem também em suas atitudes em relação à ciência. Algu-
mas pessoas crêem fortemente no poder da ciência. Elas pensam que os métodos da ciência
proporcionam a única maneira razoável de aprender acerca do mundo que nos cerca. Elas
às vezes consideram aos demais como irracionais por crer em coisas tais como astrologia,
reencarnação, PES, e outros fenômenos ocultos. Defensores destas crenças às vezes acu-
sam seus críticos de fé cega e irracional na ciência. As pessoas também diferem ampla-
mente sobre questões políticas, morais e religiosas. Pessoas aparentemente inteligentes po-
dem se encontrar em sério desacordo umas com as outras sobre essas questões. Não há dú-
vida, então, de que as pessoas discordam, com freqüência veementemente, acerca de um
grande número de coisas.
O fato de que haja todo esse desacordo leva algumas pessoas a perguntar se em ca-
da caso (ao menos) uma das partes da disputa deva está sendo desarrazoada. Um pensa-
mento confortador para muitos é o de que há lugar para um desacordo razoável, ao menos
sobre certos tópicos. Isto é, duas pessoas podem ter diferentes pontos de vista e ainda as-
sim serem razoáveis ao manter suas próprias perspectivas. Defensores da Perspectiva Rela-
tivista estão inclinados a conceder espaço para muito desacordo razoável, enquanto que os
defensores da Perspectiva Standard parecem estar mais inclinados a pensar que uma das
partes (ao menos) deve estar errada em toda disputa.
Estas considerações sobre a diversidade cognitiva e a possibilidade de desacordos
razoáveis provocam as seguintes questões que têm a ver com o relativismo epistemológico:

Q6. Quais são as implicações epistemológicas da diversidade cognitiva? Exis-


tem standards universais de racionalidade, aplicáveis a todas as pessoas (ou a
todos os pensadores) todas as vezes? Sob que circunstâncias as pessoas racio-
nais podem discordar entre si?

As questões levantadas de (Q1) até (Q6) estão entre os problemas centrais da epis-
temologia. Os capítulos que seguem tratam delas.
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CAPÍTULO DOIS

A ANÁLISE TRADICIONAL DO CONHECIMENTO

O objetivo dos capítulos imediatamente seguintes é tentar esclarecer o que exata-


mente diz e quais as implicações da Perspectiva Standard. Ao fazer isso não colocaremos
em questão a verdade da Perspectiva Standard. Assumiremos que ela está basicamente
correta, reservando a discussão dos desafios à nossa visão do senso comum para mais tar-
de.

I. TIPOS DE CONHECIMENTO

A Perspectiva Standard diz que nós temos uma boa quantidade de conhecimento e
diz alguma coisa sobre as fontes desse conhecimento. Um aspecto central para esclarecer
exatamente aonde leva a Perspectiva Standard é esclarecer exatamente o que ela toma co-
mo conhecimento. A Perspectiva Standard diz que nós temos conhecimento, mas o que é o
conhecimento?

A. Alguns dos Principais Tipos de Conhecimento


Nós usamos as palavras “conhece”/”sabe” e “conhecia”/”sabia” em uma variedade
de tipos de sentenças que são diferentes de maneiras importantes. Eis aqui alguns exem-
plos:1

a. Conhecer um indivíduo: S conhece x.


“O professor conhece J. D. Salinger.”
b. Saber quem: S sabe quem é x.
“O estudante sabe quem é J. D. Salinger.”
c. Saber se: S sabe se p.

1
Os exemplos seguintes mostram padrões gerais de vários tipos de enunciados, com um exemplo mostrando
como cada padrão poderia ser preenchido. Os padrões fazem uso de variáveis que podem ser substituídas por
termos específicos. Seguindo a prática standard, “S” é usada como uma variável a ser substituída por um
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“O bibliotecário sabe se há um livro de J. D. Salinger na biblioteca.”


d. Saber quando: S sabe quando A irá acontecer (ou aconteceu).
“O editor sabe quando o livro de J. D. Salinger será publicado.”
e. Saber como: S sabe como A.
“J. D. Salinger sabe como escrever.”
f. Saber fatos: S sabe p.
“O estudante sabe que J. D. Salinger escreveu O Apanhador no Campo de
Centeio.”

Esta lista está longe de ser completa. Nós poderíamos acrescentar sentenças usando
expressões tais como “sabe qual”, “sabe porque”, e assim por diante. Mas a lista que temos
já será suficiente para destacar as principais questões a serem feitas aqui.

B. Todo Conhecimento é Conhecimento Proposicional?


Sentenças “sabe que” descrevem que uma pessoa conhece um certo fato ou propo-
sição. Essas sentenças são ditas expressar conhecimento proposicional.2 Uma idéia inici-
almente plausível sobre a conexão entre essas várias maneiras em que as palavras “sa-
be”/”conhece” são usadas é que “sabe que” é fundamental e que as outras podem ser defi-
nidas em termos dela. Para ver porque o conhecimento proposicional é mais fundamental
dos que os outros, considere como alguns dos outros tipos poderiam ser explicados em
termos dele.
Considere (c), “saber se.” Suponha que seja verdadeiro que

1. O bibliotecário sabe se há um livro de J. D. Salinger na biblioteca.

Se (1) é verdadeiro, então, se há um livro de J. D. Salinger na biblioteca, o bibliote-


cário sabe que há. Se, por outro lado, não há um livro dele na biblioteca, então o bibliote-
cário sabe que não há. Qualquer que seja a proposição efetivamente verdadeira – a propo-
sição de que há um livro ou a proposição de que não há – o bibliotecário sabe essa proposi-
ção. Assim, dizer (1) é uma maneira resumida de dizer

nome ou a descrição de uma pessoa, “x” é usada como a variável a ser substituída por uma sentença completa
que expresse um fato ou o significado de um fato (uma proposição), e “A” por uma descrição de uma ação.
2
Para uma discussão de qual é exatamente o significado da palavra “proposição,” veja a seção III, parte A1
deste capítulo.
12

2. Ou o bibliotecário sabe que há um livro de J. D. Salinger na biblioteca ou o


bibliotecário sabe que não há um livro de J. D. Salinger na biblioteca.3

Nesse aspecto, o bibliotecário difere de um cliente que não sabe se há um livro de


Salinger ali. O cliente não sabe que há um livro ali e ele não sabe que não há um livro ali.
A questão recém destacada sobre (1) pode ser generalizada. Para qualquer pessoa e
para qualquer proposição, a pessoa sabe se a proposição é verdadeira apenas no caso da
pessoa saber que ela é verdadeira ou da pessoa saber que ela não é verdadeira. Uma pessoa
que não sabe se ela é verdadeira não sabe nem que ela é verdadeira nem que ela não o é.
Nós podemos expressar a questão sobre a conexão entre (1) e (2) em termos de uma
definição geral, usando a letra “S” para representar um sujeito epistêmico em potencial e
“p” para representar uma proposição:

D1. S sabe se p = df. Ou S sabe p ou S sabe ∼p.4

A definição (D1) ilustra uma importante ferramenta metodológica: definições. Uma


definição é correta apenas se os dois lados são equivalentes. Para verificar se os dois lados
são equivalentes, você considera o resultado de preencher com instâncias específicas as
variáveis ou guardadores de lugar. No caso de (D1), você preenche S com o nome de uma
pessoa e substitui p por uma sentença expressando alguma proposição. Se a definição é
correta, em todos os casos assim os dois lados estarão de acordo: se o lado esquerdo é ver-
dadeiro – se a pessoa sabe se a proposição é verdadeira – então o lado direito também será
verdadeiro – ou a pessoa sabe que ela é verdadeira ou a pessoa sabe que ela não é verdadei-
ra; se, por outro lado, o lado esquerdo não é verdadeiro – se a pessoa não sabe se a propo-
sição é verdadeira – então o lado direito também não será verdadeiro. (D1) parece passar

3
É importante entender a diferença entre (2) e

2a. O bibliotecário sabe que, ou há um livro de Salinger na biblioteca, ou não há um livro de Salin-
ger na biblioteca.

(2a) é verdadeira; (2a) descreve o conhecimento de uma disjunção (um enunciado “ou”) e qualquer um pode
ter esse conhecimento. Mas o bibliotecário precisa possuir um conhecimento especial se (2) é verdadeira. Ele
deve saber qual dos disjuntos (as partes do enunciado “ou”) é verdadeiro.
4
“∼p” significa “não-p”, ou a negação de p. A negação de “Há um livro de Salinger na biblioteca” é “Não é o
caso de que haja um livro de Salinger na biblioteca.”
13

por esse teste: os dois lados da definição coincidem. Assim, nós podemos explicar “saber
se” em termos de “saber que.”
Também é possível definir alguns dos outros tipos de conhecimento em termos de
conhecimento proposicional. As definições são mais complicadas, mas a idéia ainda é bas-
tante clara. Considere “saber quando.” Se você sabe quando algo aconteceu (ou irá aconte-
cer), então há alguma proposição expressando o momento em que aquilo aconteceu (ou irá
acontecer) tal que você sabe que essa proposição é verdadeira. Assim, dizer

3. O editor sabia quando o livro de J. D. Salinger seria publicado.

é dizer que o editor sabia, com respeito a um momento do tempo em particular, que
o livro de J. D. Salinger seria publicado nesse momento, e.g., ele sabia que seria publicado
em 1950 ou que seria publicado em 1951, etc. Aqueles que sabiam menos que o editor não
estavam nessa posição. Para eles, não havia um momento tal que eles conhecessem a pro-
posição de que o livro seria publicado naquele momento.
Novamente, nós podemos generalizar a idéia e expressá-la como uma definição:

D2. S sabe quando x acontece = df. Há alguma proposição dizendo que x acon-
tece em algum momento em particular e S conhece essa proposição. (Há algu-
ma proposição, p, onde p é da forma “x acontece em t” e S conhece p.)

Mais uma vez, nós temos uma maneira de explicar um tipo de conhecimento – sa-
ber quando – em termos de conhecimento proposicional. É provável que abordagens simi-
lares funcionem para saber qual, saber porque, e numerosas outras sentenças sobre o co-
nhecimento. O caso em favor do conhecimento proposicional ser fundamental parece mui-
to forte.
Entretanto, é improvável que todas as coisas que nós digamos usando as palavras
sabe/conhece possam ser expressas em termos de conhecimento proposicional. Considere
o primeiro item de nossa lista: “S conhece x.” Você pode pensar que conhecer alguém ou
alguma coisa é ter conhecimento proposicional de alguns fatos sobre essa pessoa ou coisa.
Assim, nós podemos propor
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D3. S conhece x = df. S tem conhecimento proposicional de alguns fatos sobre


x (i.e., para alguma proposição p, p é sobre x, e S conhece p).

É provável que alguém que você conheça seja alguém sobre quem você conheça
alguns fatos. Mas conhecer alguns fatos sobre uma pessoa não é suficiente para conhecer a
pessoa. J. D. Salinger é um autor recluso, mas bem conhecido. Muitas pessoas sabem al-
guns fatos sobre ele: elas sabem que ele escreveu O Apanhador no Campo de Centeio. Elas
podem saber que ele não interage com uma grande quantidade de pessoas. Desse modo,
elas conhecem fatos sobre ele, mas elas não o conhecem. Assim, conhecer uma pessoa não
é o mesmo que conhecer alguns fatos sobre a pessoa.
Isso mostra que a definição (D3) não é correta. Isso também ilustra outra questão
metodológica importante. O exemplo mostra que (D3) não é correta porque ele é um con-
tra-exemplo para (D3): ele é um exemplo que mostra que os lados da definição nem sem-
pre concordam – um lado pode ser verdadeiro quando o outro for falso. Um contra-
exemplo bastante claro refuta a definição proposta. Ao revisar uma definição em resposta
aos contra-exemplos, é possível obter um melhor entendimento dos conceitos sob discus-
são.5
O contra-exemplo a (D3) mostra, não apenas que (D3) é falsa, mas também que ela
não está sequer no caminho correto. Nós não podemos fazer algumas pequenas mudanças a
fim de consertar as coisas. Não iria ajudar se S conhecesse muitos fatos sobre x, ou se S
conhecesse fatos importantes sobre x. Você pode ter esse tipo de conhecimento proposi-
cional e ainda assim não conhecer a pessoa. Conhecer x não é uma questão de conhecer
fatos sobre x. Ao invés, é uma questão de estar familiarizado com x – ter encontrado x e,
talvez, recordar esse encontro. Não importa quantos fatos você conheça sobre uma pessoa,
não se segue daí que você conheça essa pessoa. Conhecer uma pessoa ou uma coisa é estar
familiarizado com essa pessoa ou coisa, ao invés de ter conhecimento proposicional sobre
a pessoa ou coisa. Desse modo, nem todo conhecimento é conhecimento proposicional.
Considere a seguir “saber como.” Suponha que exista um hábil esquiador que, após
um sério acidente que o deixa incapacitado para esquiar, se torna um treinador de esqui de
sucesso. Seu sucesso como esquiador é, em larga medida, um resultado do fato de que ele é
extraordinariamente bom em explicar as técnicas de esqui aos estudantes. O treinador sabe

5
A metodologia usada aqui será importante na seqüência. Um teste importante para uma definição proposta é
que não existam contra-exemplos para ela.
15

como esquiar? A resposta parece ser “Sim.” Uma explicação plausível disso apela para a
seguinte definição:

D4a. S sabe como A = df. Se a é um passo importante para fazer A, então S sa-
be que a é um passo importante para fazer A.6

Isso parece mostrar que “saber como” pode ser definido em termos de conhecimen-
to proposicional.
Entretanto, outros exemplos sugerem uma idéia diferente. Considere uma criança
jovem que começa a esquiar e o faz com sucesso, sem qualquer treinamento ou entendi-
mento intelectual do que ela está fazendo. Ela também sabe como esquiar, mas ela parece
carecer do conhecimento proposicional relevante. Ela não tem qualquer entendimento
consciente explícito dos vários passos. Ela simplesmente é capaz de fazê-lo. Este exemplo
sugere que há um segundo significado da expressão “sabe como.” A seguinte definição
captura esse segundo significado:

D4b. S sabe como A = df. S é capaz de A.

O ex-esquiador sabe como esquiar no sentido (D4a), mas não no sentido (D4b).
Exatamente o inverso é verdadeiro do jovem prodígio. Desse modo, um tipo de saber-
como é conhecimento proposicional, mas não o outro tipo.

C. Conclusão

A tentativa de explicar todos os diferentes tipos de conhecimento em termos de co-


nhecimento proposicional fracassa. A conclusão mais razoável parece ser a de que há (ao
menos) três tipos básicos de conhecimento: (1) conhecimento proposicional, (2) conheci-
mento por intimidade ou familiaridade, e (3) conhecimento de habilidades (ou conheci-
mento procedimental).
Ainda que não possamos explicar todo conhecimento em termos de conhecimento
proposicional, o conhecimento proposicional tem um status especial. Nós podemos expli-
car vários outros tipos de conhecimento nos seus termos. Além do mais, muitas de nossas
16

mais intrigantes questões sobre o conhecimento se revelam questões sobre o conhecimento


proposicional. Será ele o foco deste livro. E o objetivo desta seção é principalmente escla-
recer qual é o tipo de conhecimento que é o tópico de nosso estudo. É o conhecimento pro-
posicional ou conhecimento de fatos.

II. CONHECIMENTO E CRENÇA VERDADEIRA

O que é necessário para conhecer um fato? O que é conhecimento proposicional?


Estas são as questões levantadas por (Q1) no Capítulo 1. Começaremos nosso exame des-
sas questões com uma resposta simples e inadequada. Tentaremos então desenvolver essa
resposta.

A. Duas Condições para o Conhecimento


É fácil destacar duas condições para o conhecimento: a verdade e a crença. É claro
que o conhecimento requer a verdade. Isto é, você não pode conhecer alguma coisa a me-
nos que ela seja verdadeira. Jamais pode estar correto dizer “Ele sabe isso, mas isso é fal-
so.” Você não pode saber que Thomas Jefferson foi o primeiro presidente dos Estados U-
nidos. A razão pela qual você não pode saber isto é que ele não foi o primeiro presidente
norte-americano.
As pessoas podem estar seguras sobre coisas que não são verdadeiras. Você pode
estar seguro de que Jefferson foi o primeiro presidente norte-americano. Você pode até
mesmo pensar que se lembra de ter aprendido isso no colégio. Mas você está enganado a
esse respeito. (Ou o seu professor cometeu um grande engano.) Você pode até mesmo ale-
gar saber que Jefferson foi o primeiro presidente norte-americano. Mas ele não foi, e você
não sabe que ele foi. Isto é assim porque o conhecimento requer a verdade. Você conhece
uma proposição apenas se ela é verdadeira.
Há uma objeção possível à alegação de que o conhecimento requer a verdade. Ela é
ilustrada pelo seguinte exemplo:

Exemplo 2.1: A História de Suspense

6
Esta definição pode necessitar de algum refinamento, mas ela captura ao menos a idéia básica em discussão.
17

Você estava lendo uma história de suspense. Todas as pistas apresentadas até o
último capítulo indicavam que o mordomo era o culpado. Você estava seguro
de que o mordomo cometera o crime é ficou surpreso quando foi revelado na
cena final que o contador era o culpado. Após terminar o livro você diz:
4. Eu sabia o tempo todo que o mordomo havia cometido o crime, mas resultou
que ele não o havia cometido.

Se você está certo quando diz (4), então é possível conhecer coisas que não são
verdadeiras. Você pode saber que o mordomo cometeu o crime, mas não é verdade que o
mordomo o cometeu. Entretanto, ainda que as pessoas algumas vezes digam coisas tais
como (4), é claro que tais coisas não são literalmente verdadeiras. Você não pode ter sabi-
do o tempo todo que o mordomo cometera o crime. O que era verdade o tempo todo era
que você estava seguro de que o mordomo o havia cometido, ou algo assim. Ao dizer (4)
você expressa, de uma maneira um pouco adornada, que foi surpreendido pelo final. Mas
(4) não é verdadeira, e não mostra que pode haver conhecimento sem verdade.
Uma segunda condição para o conhecimento é a crença. Se você conhece alguma
coisa, então você deve acreditar nela ou aceitá-la. Se você nem mesmo pensa que alguma
coisa é verdadeira, então você não a conhece. Nós estamos usando “crença” em um sentido
amplo aqui: toda vez que você assume alguma coisa como verdadeira, você acredita nela.
Assim, acreditar inclui tanto a aceitação hesitante quanto a aceitação inteiramente confian-
te. Uma boa maneira de pensar nisto é notar que quando você considera um enunciado, vo-
cê pode adotar quaisquer de três atitudes diante dele: crer, descrer ou suspender o juízo.
Como uma analogia, imagine-se forçado a dizer uma de três coisas sobre um enunciado:
“sim”, “não” ou “sem opinião.” Você dirá “sim” em uma variedade de casos, incluindo a-
queles nos quais você está inteiramente confiante em um enunciado e aqueles nos quais
você simplesmente pensa que o enunciado é provavelmente verdadeiro. Você dirá “não”
quando pensar que o enunciado é definitiva ou provavelmente falso. E usará “sem opinião”
nos casos restantes. Da mesma forma, tal como nós estamos usando o termo aqui, “crença”
se aplica a uma variedade de atitudes. Ela é contrastada com a descrença, a qual envolve
uma variedade semelhante, e com a suspensão de juízo.
É claro, então, que o conhecimento requer a crença. Se você nem mesmo pensa que
um enunciado é verdadeiro, então você não sabe que ele é verdadeiro. Há, entretanto, uma
objeção a esta alegação que merece consideração. Nós falamos algumas vezes de maneiras
18

que contrastam conhecimento e crença, sugerindo que quando você conhece alguma coisa
você não acredita nela. Para ver isto, considere o seguinte exemplo:

Exemplo 2.2: Saber o seu nome


Você tem um amigo chamado “John” e pergunta a ele: “Você acredita que seu
nome seja ‘John’?” Ele responde:
5. Eu não acredito que meu nome seja “John”; eu sei que ele é.

Ao dizer (5), John parece estar dizendo que esse é um caso de conhecimento e não
um caso de crença. A sugestão é que, se ela é uma crença, então não é conhecimento. Se
ele está certo, então a crença não é uma condição para o conhecimento.
Entretanto, mais uma vez, essa aparência é enganadora. John seguramente aceita o
enunciado de que o nome dele é “John.” Ele não rejeita o enunciado nem deixa de formar
uma opinião sobre ele. Quando ele diz (5), a questão é que ele não acredita simplesmente
que o nome dele seja “John”; ele pode dizer alguma coisa mais forte – que ele sabe isto. E
uma das maneiras pelas quais nós tipicamente procedemos em conversações é evitando
dizer uma coisa mais fraca ou modesta quando a mais forte é também verdadeira. Se seu
amigo dissesse a você, “Eu acredito que meu nome seja ‘John,’” isto sugeriria, mas não
diria literalmente, que ele não sabe isto. Há muitos outros exemplos do mesmo fenômeno.
Suponha que você esteja extremamente cansado, tendo trabalhado duro por muito tempo.
Alguém pergunta se você está cansado. Você pode responder dizendo alguma coisa como:

6. Eu não estou cansado; eu estou exausto.

Tomado literalmente, o que você diz é falso. Você está cansado. O alvo do seu pro-
ferimento é enfatizar que você não está meramente cansado; você está exausto. A mesma
coisa ocorre em (5). Ao dizer (5), John não está realmente dizendo que ele não acredita no
enunciado. Assim, esse exemplo não é um contra-exemplo à tese de que o conhecimento
requer a crença.
Nós encontramos agora duas condições para o conhecimento. Para conhecer algu-
ma coisa, você precisa acreditar nela, e ela precisa ser verdadeira.

B. Conhecimento como Crença Verdadeira


19

As idéias recém apresentadas podem sugerir que o conhecimento seja crença ver-
dadeira; isto é,

CV. S sabe p = df. (i) S crê p, e (ii) p é verdadeira.

Uma breve reflexão deveria tornar claro que (CV) está equivocada. São muitas as
vezes em que uma pessoa tem uma crença verdadeira mas não tem conhecimento. Eis aqui
um contra-exemplo simples para (CV):

Exemplo 2.3: Predições corretas


Nova York está jogando contra Denver em um próximo Superbowl. Os especi-
alistas estão divididos sobre quem irá vencer, e os times estão igualmente ran-
queados. Você tem um palpite de que Denver irá vencer. Quando o jogo é fi-
nalmente realizado, seu palpite se revela correto. Assim, você acreditou que
Denver venceria e sua crença era verdadeira.

No exemplo 2.3 você acredita que Denver vencerá e isto é verdadeiro. Mas você
não sabia que Denver iria vencer. Você simplesmente teve um palpite que se revelou corre-
to.
Alguns irão dizer que o fato da crença do exemplo 2.3 ser sobre o futuro arruína o
exemplo. Mas nós podemos facilmente eliminar esta característica sem eliminar a questão.
Suponha que você não assista ao jogo mas, ao invés, vá assistir a um longo filme. Quando
você sai do cinema, você sabe que o jogo acabou. Você tem agora uma crença sobre o pas-
sado, a saber, que Denver venceu. E você está certo. Mas agora não há complicações que
tenham a ver com crenças sobre o futuro.
As objeções a (CV) não estão limitadas aos casos de palpites felizes. Outro tipo de
exemplo ilustrará o âmago do problema com (CV).

Exemplo 2.4: O Planejador de Piqueniques Pessimista


Você tem um piquenique marcado para o sábado e ouve uma previsão do tem-
po que diz que as chances de chuva no sábado são de pouco mais de 50%. Vo-
cê é um pessimista, e com base nesse boletim você acredita confiantemente que
20

irá chover. E então chove. Assim, você teve uma crença verdadeira de que
choveria.

Você teve uma crença verdadeira de que choveria, mas carecia de conhecimento.
(Quando a chuva começa, você pode dizer “Eu sabia que ia chover,” mas você não sabia
isso realmente). Neste caso, a razão pela qual você não sabia não é que você estava adivi-
nhando. Sua crença estava baseada em alguma evidência – o boletim do tempo – e, assim,
não era simplesmente um palpite. Mas essa base não é boa o suficiente para o conhecimen-
to. O que você precisa para o conhecimento é alguma coisa como razões muito boas ou
uma base mais confiável, não apenas um boletim do tempo potencialmente inexato.
Os filósofos freqüentemente dizem que o que é necessário para o conhecimento, a-
lém da crença verdadeira, é a justificação para a crença. Exatamente o que vem a ser justi-
ficação é uma questão de considerável controvérsia. Mais tarde, nós passaremos um bom
tempo neste livro examinado essa idéia. Mas, por enquanto, será suficiente notar que, nos
exemplos de conhecimento que nós apresentamos no Capítulo 1, os crentes tinham razões
extremamente boas para as suas crenças. Em contraste, nos contra-exemplos para (CV) vo-
cê não tinha razões muito boas e poderia facilmente ter estado errado. Então, o que está
faltando nos contra-exemplos para (CV) e está presente nos exemplos de conhecimento
que nós descrevemos é a justificação. Isto nos leva à Análise Tradicional do Conhecimen-
to.

III. A ANÁLISE TRADICIONAL DO CONHECIMENTO

A Análise Tradicional do Conhecimento (a ATC) está formulada na seguinte defi-


nição:

ATC. S sabe p = df. (i) S crê p, (ii) p é verdadeira, (iii) S está justificado em
crer p.

Algo nessa linha pode ser encontrado em várias fontes, talvez tão antigas quanto
Sócrates. No diálogo Mênon de Platão, Sócrates diz:
21

Pois estas (as opiniões certas), da mesma forma, enquanto permanecem, valem um tesouro e só
produzem o que é bom; mas não consentem em permanecer muito tempo na alma do homem, e
não demoram muito a escapar, a fugir, o que faz com que não tenham muito valor até o instante
em que o homem as amarra, as encadeia por um raciocínio de causalidade.(...) E assim, quando
as opiniões certas são amarradas, transformam-se em conhecimento, em ciência, e, como ciên-
cia, permanecem estáveis..7

De acordo com uma interpretação possível dessa passagem, estar apto a produzir
“um raciocínio de causalidade” de uma opinião é ter uma razão ou justificação para essa
opinião. E uma idéia da passagem citada é que isto é necessário a fim de haver conheci-
mento.8 Nós iremos ignorar a alegação adicional de que o conhecimento é menos propenso
a “escapar” da mente de uma pessoa do que as outras crenças.
Idéias semelhantes podem ser encontradas na obra de muitos filósofos contemporâ-
neos. Por exemplo, Roderick Chisholm propôs uma vez que uma pessoa conhece uma pro-
posição apenas no caso de acreditar nesta, de ser esta verdadeira, e de ser a proposição “e-
vidente” para a pessoa. E esta última condição é entendia em termos de quão razoável é
para a pessoa crer na proposição.9
Voltamos-nos agora para um exame mais completo dos três elementos da ATC.

A. Crença
Crer em alguma coisa é aceitá-la como verdadeira. Quando você considera qual-
quer enunciado, você se enfrenta com um conjunto de alternativas: você pode acreditar
nele, pode descrer dele, ou pode suspender o juízo sobre ele. Lembre que nós estamos to-
mando a crença como incluindo uma variedade de atitudes mais específicas, incluindo a
aceitação hesitante e a convicção total. A descrença inclui uma variedade correspondente
de atitudes negativas em relação a uma proposição. A qualquer momento, se você conside-
rar uma proposição, irá terminar adotando uma dessas três atitudes.10

7
Em Mênon-Banquete-Fedro, tradução de Jorge Paleikat (Rio de Janeiro: Ediouro), p. 72.
8
Uma idéia semelhante é apresentada em outro diálogo, o Teeteto, em Teeteto-Crátilo, tradução de Carlos
Alberto Nunes (Belém: Universidade Federal do Pará, 1988).
9
Roderick Chisholm, Theory of Knowledge (Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1966), p. 23.
10
Há uma maneira alternativa de pensar nestas questões. Ao invés de dizer que há três opções, você pode
dizer que se pode crer numa proposição num grau maior ou menor. Você pode pensar nesses três graus de
crença como arranjados ao longo de uma escala. Quando você aceita uma proposição com absoluta convic-
ção, você crê nela no mais alto grau. Quando você rejeita total e completamente uma proposição, você tem o
menor grau possível de crença nela. E, nos casos usuais, o seu grau de crença fica em algum lugar intermedi-
ário. A suspensão de juízo fica exatamente no meio.
22

Para os presentes propósitos, pense em descrer de uma proposição como sendo a


mesma coisa que crer na negação (ou recusa) dessa proposição. Assim, descrer que George
Washington tenha sido o primeiro presidente norte-americano é o mesmo que crer que não
é o caso que George Washington tenha sido o primeiro presidente norte-americano. Sus-
pender o juízo sobre a proposição é não crer, nem descrer, nela.11
Uma questão adicional sobre a crença merece menção aqui. Suponha que a uma
criança francesa seja ensinado que George Washington tenha sido o primeiro presidente
dos Estados Unidos. Então, se torna verdadeiro que

7. Pierre acredita que George Washington foi o primeiro presidente dos Esta-
dos Unidos.

A coisa notável aqui é que (7) pode ser verdadeira mesmo que Pierre não fale uma
palavra de português. Ele não tem de entender a sentença portuguesa “George Washington
foi o primeiro presidente dos Estados Unidos.” Presumivelmente, ele expressaria sua cren-
ça usando o equivalente francês dessa sentença. A contraparte brasileira de Pierre, Pedro,
pode acreditar no que Pierre acredita. Então,

8. Pedro acredita que George Washington foi o primeiro presidente dos Estados
Unidos.

Podemos supor que Pedro não fale uma palavra de francês. Assim Pedro e Pierre
acreditam na mesma coisa, ainda que não haja uma sentença que ambos aceitem. Como
pode ser isso?
Uma maneira de entender essas questões é como segue. Sentenças são usadas para
expressar certos pensamentos ou idéias. Os filósofos usam a palavra proposição para se
referir a esses itens. A sentença portuguesa que Pedro usa e a sentença francesa que Pierre
usa expressam a mesma proposição. A crença é fundamentalmente uma relação com uma
proposição. Assim, (7) pode ser verdadeira porque Pierre acredita na proposição relevante
sobre George Washington; (8) é verdadeira porque Pedro acredita na mesma proposição.
Mas eles usariam diferentes sentenças para expressar essa proposição.

11
Se você nunca sequer considerou uma proposição, então você não crê, nem descrê, nela, mas tampouco
suspende o juízo. Talvez a suspensão do juízo seja mais bem caracterizada como a consideração de uma pro-
23

Existem, então, dois pontos importantes a extrair disto: as sentenças diferem das
proposições que são usadas para expressá-las e a crença é fundamentalmente uma atitude
que uma pessoa tem em relação a uma proposição.12

B. Verdade
O segundo elemento da ATC é a verdade. As pessoas dizem coisas muito complica-
das e obscuras sobre a verdade, mas a idéia fundamental é muito simples. A questão aqui
não é diz respeito a que coisas são de fato verdadeiras. Antes, a questão agora diz respeito
ao que é para alguma coisa ser verdadeira. Uma resposta simples e amplamente aceita está
contida na teoria da correspondência da verdade.
O ponto central da teoria da correspondência é expresso no seguinte princípio:

TC. Uma proposição é verdadeira se e somente se ela corresponde aos fatos


(sse o mundo é da maneira que a proposição diz que ele é). Uma proposição é
falsa sse ela fracassa em corresponder aos fatos.13

A idéia aqui é extraordinariamente simples. Ela se aplica ao nosso exemplo sobre


George Washington da seguinte maneira. A proposição de que George Washington foi o
primeiro presidente norte-americano é verdadeira apenas no caso dela corresponder aos
fatos tais como eles efetivamente são. Em outras palavras, ela é verdadeira apenas se Ge-
orge Washington foi o primeiro presidente norte-americano. A proposição é falsa se ele
não foi o primeiro presidente norte-americano. O princípio se aplica de maneira análoga às
outras proposições.
Será útil descrever algumas conseqüências da TC e mencionar algumas coisas que
não são conseqüências da TC.

1) Se uma proposição é verdadeira ou falsa não depende de maneira alguma do que


alguém crê sobre ela. Por exemplo, nossas crenças sobre George Washington não têm rela-
ção com o valor de verdade (i.e., a verdade ou a falsidade) da proposição de que George

posição sem crer, nem descrer, nela.


12
Há questões difíceis sobre exatamente que tipos de objetos são as proposições. Nós podemos ignorar com
segurança tais questões aqui.
13
O termo “sse” abrevia “se e somente se.” Sentenças da forma “p sse q” são verdadeiras apenas no caso dos
valores de verdade de p e q concordarem, isto é, apenas se ambos forem verdadeiros ou se ambos forem fal-
sos.
24

Washington foi o primeiro presidente norte-americano. Os fatos reais do caso determinam


seu valor de verdade.

2) A verdade não é “relativa.” Nem uma única proposição pode ser “verdadeira pa-
ra mim mas não verdadeira para você.” Eu posso crer numa proposição da qual você des-
crê. De fato, isto é quase certamente o caso. Quaisquer duas pessoas irão quase certamente
discordar sobre alguma coisa. Entretanto, se há uma proposição sobre a qual elas discor-
dam, então o valor de verdade dessa proposição é determinado pelos fatos.

3) A (TC) não legitima qualquer tipo de dogmatismo ou atitude intolerante em rela-


ção às pessoas que discordam de você. Algumas pessoas dispensam sem consideração
qualquer um que discorde delas. Esta é uma maneira vil e desarrazoada de tratar os outros.
Entretanto, se nós discordarmos sobre alguma coisa, então, trivialmente, penso que eu es-
tou certo e você errado. Se, por exemplo, você pensa que Thomas Jefferson foi o primeiro
presidente e eu penso que foi, ao invés, George Washington, então penso que você está er-
rado sobre isto e você pensa que eu estou errado sobre isto. Seria precipitado de minha par-
te generalizar deste caso e tirar quaisquer conclusões sobre suas outras crenças. Mas quan-
do você discorda de mim, eu penso que você está errado. Se você não é dogmático, reco-
nhece sua própria falibilidade. Você está aberto a mudar de idéia se uma informação nova
vem à tona. Existem circunstâncias nas quais pode ser rude dizer aos outros que você pensa
que eles estão errados. E, possivelmente, o mero fato de os outros discordarem proporciona
alguma razão para que você reconsidere seus pontos de vista.14

4) A (TC) não implica que as coisas não possam mudar. Considere a proposição de
que George Washington é o presidente dos Estados Unidos. Esta proposição é falsa. Mas,
parece, ela costumava ser verdadeira. O que a (TC) diz sobre isto?
Há algumas coisas para pensar sobre isso, e um exame completo delas entraria em
tecnicidades que não são importantes para os nossos presentes propósitos. Uma boa abor-
dagem diz que uma sentença tal como “George Washington é o presidente dos Estados U-
nidos” expressa uma proposição diferente em momentos diferentes. A proposição expressa
lá em 1789 é verdadeira. A proposição que ela expressa em 2005 – a proposição de que
George Washington é o presidente dos Estados Unidos em 2005 – é falsa. Nós podemos
25

dizer que a sentença pode ser usada para expressar uma série de proposições acerca de
momentos específicos. Nós podemos pensar numa proposição que diz que uma certa coisa
tem uma certa propriedade em um momento como uma predecessora de uma proposição
que diz que essa mesma coisa tem essa mesma propriedade num momento ligeiramente
posterior. Assim, quando as coisas mudam, por exemplo, quando nós temos um novo pre-
sidente, uma proposição datada é verdadeira e sua proposição sucessora é falsa. Não há
problema para a (TC), desde que sejamos cuidadosos acerca das proposições em questão.

5) Algo semelhante se aplica às considerações sobre localização. Suponha que al-


guém no Maine esteja falando ao telefone com alguém na Flórida. A pessoa no Maine diz:

9. Está nevando.

A pessoa na Flórida diz:

10. Não está nevando.

Esses falantes não discordam sobre nada. Mas o que deveríamos dizer, então, sobre
o valor de verdade da proposição de que está nevando? Ela é verdadeira ou falsa?
Mais uma vez, há uma variedade de maneiras de pensar sobre isso. Para os presen-
tes propósitos, uma boa abordagem seria dizer que com uma sentença como (9) a pessoa
expressa uma proposição que pode ser mais claramente mostrada pela sentença

9a. Está nevando aqui (no Maine).

Da mesma forma, a pessoa na Flórida que diz (10) diz alguma coisa que é mais cla-
ramente mostrada em

10a. Não está nevando aqui (na Flórida).

Nós podemos assumir que ambas as proposições sejam verdadeiras. Sua verdade é
objetiva, pois ela depende das condições climáticas dos dois lugares.

14
Este tópico será discutido em detalhes no capítulo 9.
26

6) Existem enigmas sobre as sentenças tais como

11. O iogurte tem um gosto bom.

Exatamente o que a (TC) diz sobre elas depende em larga medida do que essas sen-
tenças significam. Uma possibilidade é a de que cada falante usa (11) para dizer “Eu gosto
do gosto do iogurte.” Se este é o caso, então pessoas diferentes usam (11) para expressar
proposições diferentes, cada proposição sendo sobre aquilo de que o falante gosta. Se uma
pessoa que gosta do sabor do iogurte diz (11), então a proposição que a pessoa expressa é
verdadeira. Se a pessoa não gosta de iogurte, então a pessoa expressa uma proposição que
não é verdadeira.
Não é óbvio que (11) diga alguma coisa sobre as preferências individuais. Pode ser
que ela diga alguma coisa como “A maioria das pessoas gosta do sabor do iogurte.” Se isto
é o que ela diz, então ela não expressa diferentes proposições quando dita por diferentes
pessoas. Ela expressa uma proposição sobre o gosto da maioria, e essa proposição é verda-
deira se a maioria das pessoas gosta de iogurte e não é verdadeira se a maioria não gosta.
De acordo com outra interpretação, (11) diz que o iogurte satisfaz algum standard
de gosto que é independente do que as pessoas gostam ou não gostam. Isto supõe algum
tipo de “objetividade” sobre o gosto. Nesta perspectiva, (11) poderia ser verdadeira mesmo
que dificilmente alguém de fato goste do sabor do iogurte. Você pode achar essa perspecti-
va estranha; é difícil entender aonde leva um bom gosto objetivo.
O que é crucial para os presentes propósitos é notar que, qualquer que seja a inter-
pretação correta de (11), não há problema para a (TC). A proposição expressa por (11) irá
variar de um falante para outro se a primeira opção é correta, mas não nos outros casos.
Em todo os casos, entretanto, o valor de verdade que a(s) proposição(ões) expressa(m) de-
pende dos fatos relevantes. Neste caso, os fatos relevantes são, ou aquilo de que o falante
ou a maioria das pessoas gosta ou não gosta, ou os fatos objetivos sobre o bom gosto.
Não há necessidade de resolvermos as disputas sobre a interpretação correta de sen-
tenças tais como (11). Essa questão complicada pode ser deixada para aqueles que estudam
estética. A questão crucial para os presentes propósitos é que, qualquer que seja a interpre-
tação correta, não há aqui uma boa objeção para a (TC).
27

7) A (TC) não implica que nós não possamos saber o que é “realmente” verdadeiro.
Algumas pessoas reagem à (TC) dizendo alguma coisa como isto:

De acordo com a (TC), a verdade é “absoluta” e o que é verdadeiro depende de como as coisas
são no mundo objetivo. Uma vez que esse mundo é externo a nós, nunca podemos realmente
saber o que é verdadeiro. No máximo, nós podemos saber o que é “subjetivamente” verdadeiro.
Essa verdade subjetiva depende de nossas próprias perspectivas sobre o mundo. A verdade ab-
soluta deve estar sempre para além de nossa compreensão.

Nós discutiremos amplamente o ceticismo nos Capítulos 6 e 7. Boa parte da epis-


temologia é um esforço para responder a ele. Por enquanto é suficiente notar duas ques-
tões. Primeiro, do mero fato de que o que é verdadeiro é dependente de um mundo objetivo
que existe independentemente de nós, não se segue que nós não possamos saber como é
esse mundo. Logo, se há aí algum argumento forte para o ceticismo, ele repousa numa
premissa situada para além de qualquer coisa dita no parágrafo precedente. Mais tarde nós
iremos considerar como um tal argumento poderia ser formulado.
Segundo, através de vários dos próximos capítulos nós assumiremos, assim como a
Perspectiva Standard o faz, que nós conhecemos coisas. Esta não é uma questão de prejul-
gar as questões associadas ao ceticismo. Ao invés, nós estamos examinando quais são a
natureza e as conseqüências da Perspectiva Standard. A Perspectiva Cética receberá uma
consideração justa nos Capítulos 6 e 7.

8) Há uma questão muito enigmática associada com a teoria da correspondência da


verdade. Considere uma sentença tal como

12. Michael é alto.

Suponha que alguém afirme (12) em um contexto conversacional normal tal como
o seguinte: você está a ponto de pegar Michael no aeroporto. Você sabe que ele é um ho-
mem adulto, mas não sabe como ele se parece. Foi dada a você uma descrição da qual (12)
é uma parte. Nestas circunstâncias, se Michael tem de fato 6’4”, então (12) expressa uma
verdade. Se Michael tem 4’10”, então (12) diz alguma coisa falsa. Se Michael tem cerca de
5’10”, então será difícil dizer se (12) expressa uma verdade ou uma falsidade. Essa altura
parece ser um caso-limite de ser alto (para um homem adulto).
28

De acordo com uma perspectiva amplamente aceita sobre estas questões, a palavra
“alto” simplesmente não tem um significado preciso. O problema que nós temos na situa-
ção final, quando Michael tem 5’10”, não é que não sabemos o suficiente sobre a situação.
Nós podemos saber tudo o que há para saber sobre a altura de Michael, a altura média de
homens adultos, e tudo o mais que seja relevante. Nesta perspectiva, (12) é simplesmente
um caso-limite. Simplesmente não há limites exatos para a altura à qual a palavra “alto” se
aplica. Em outras palavras, “alto” é uma palavra vaga.
Muitas outras palavras são vagas, incluindo “saudável”, “rico”, e “sábio”. A vagui-
dade causa numerosos problemas para a compreensão de como funciona exatamente a lin-
guagem. Afortunadamente, nós podemos ignorar em larga medida tais questões enquanto
seguimos as questões epistemológicas que são o nosso foco. Entretanto, questões concer-
nentes à vaguidade surgirão de tempos em tempos, e assim é importante ter alguma com-
preensão da idéia.
Além do mais, a existência de sentenças vagas pode ter alguma implicação na ade-
quação da (TC). Recorde a distinção entre as sentenças e as proposições que elas expres-
sam. Como foi recém notado, a vaguidade é uma característica das sentenças. A sentença
(12), parece, é vaga. Mas considere agora a proposição que (12) expressa numa ocasião em
particular, tal como a recém descrita. Se essa proposição é vaga ou indefinida em seu valor
de verdade, então a (TC) precisa de revisão. A (TC) diz que toda proposição é verdadeira
ou falsa, dependendo de se ela corresponde à maneira como é o mundo. Porém, se há pro-
posições vagas, então há proposições que correspondem parcialmente à maneira como é o
mundo. Poder-se-ia dizer que há um terceiro valor de verdade – o indeterminado – em adi-
ção aos dois originais – o verdadeiro e o falso. Poder-se-ia mesmo dizer que há uma ampla
variedade de valores de verdade, que a verdade vem em graus. Estas são questões comple-
xas que não podem ser resolvidas facilmente. Não tentaremos resolvê-las aqui. É suficiente
compreender que a (TC) requer modificação a fim de lidar com a vaguidade.

C. Justificação

O terceiro e último elemento da ATC é a justificação. A justificação (ou racionali-


dade ou razoabilidade) será o foco de uma grande parte deste livro. Esta seção introduzirá
algumas idéias preliminares.
29

A justificação é algo que vem em graus – você pode ter mais ou menos dela. Con-
sidere de novo o exemplo 2.4, no qual de maneira pessimista você acreditava que ia chover
no dia de seu piquenique com base em uma previsão que dizia que as chances de chover
eram levemente maiores do que a 50%. Ali você tinha alguma justificação para pensar que
iria chover. Não é como se você simplesmente tivesse sem nenhuma razão inventado isso.
Mas as suas razões estão longe de serem boas o suficiente para dar conhecimento a você.
Assim, o que a cláusula (iii) da ATC requer é uma justificação muito forte. Nas circunstân-
cias descritas, você não a tem para a crença de que irá chover. Se chegar o dia do piqueni-
que e você olhar pela janela e vir chuva, então você terá uma justificação forte o suficiente
para a crença de que choverá. Sob aquelas circunstâncias você satisfará a cláusula (iii) da
ATC. Assim a cláusula (iii) deveria ser lida como requerendo uma justificação forte ou
uma justificação adequada. Isto pode ser um pouco impreciso, mas servirá por enquanto.
Você pode estar justificado em crer nalguma coisa sem de fato acreditar nela. A
cláusula (iii) da ATC não implica (i). Para ver como isto funciona, considere o seguinte
exemplo:

Exemplo 2.5: O Exame do Sr. Inseguro


O Sr. Inseguro acabou de fazer um exame. O professor olha rapidamente para
suas respostas e diz que elas parecem boas e que as notas estarão disponíveis
no dia seguinte. O Sr. Inseguro estudou muito, fez e bem os exercícios, achou
as questões do exame semelhantes aos exercícios que ele havia estudado, e as-
sim por diante. Ele tem excelentes razões para pensar que passou no exame.
Mas o Sr. Inseguro é inseguro. Ele nunca acredita que se deu bem e não acredi-
ta que se deu bem neste exame.

Ainda que o Sr. Inseguro não acredite ter passado no exame, ele está justificado em
acreditar que passou no exame. Assim a condição (iii) da ATC está satisfeita, mas não a
condição (i). Estar justificado em crer numa proposição é, grosso modo, ter o que é reque-
rido para ser altamente razoável acreditar nela, quer de fato se acredite nela ou não.
O que está justificado para uma pessoa pode não estar justificado para outra. Você
tem muitas crenças justificadas sobre a sua vida privada. Seus amigos e conhecidos podem
ter pouca ou nenhuma justificação para crenças sobre tais assuntos. E o que está justificado
para um indivíduo muda ao longo do tempo. Uma modificação do exemplo 2.4 ilustrará
30

isto. Uma semana antes do piquenique você pode não ter justificação para crer na proposi-
ção de que irá chover no sábado. Mas na manhã de sábado você pode adquirir ampla justi-
ficação para essa proposição.
É importante não confundir estar justificado em crer em alguma coisa com estar ap-
to a mostrar que se está justificado em crer nessa proposição. Em muitos casos nós pode-
mos explicar porque uma crença está justificada; nós podemos formular nossas razões. En-
tretanto, há exceções para isto. Por exemplo, uma criança pode ter muitas crenças justifica-
das, mas ser inapta para articular uma justificação para elas.

IV. CONHECIMENTO VERDADEIRO E CONHECIMENTO APARENTE

Uma questão adicional sobre a Perspectiva Standard merece especial atenção. As


coisas que as pessoas consideram como conhecimento diferem numa variedade de manei-
ras. Para tomar alguns exemplos simples, talvez as pessoas de tempos antigos dissessem
que, entre as coisas que elas sabiam, estivesse o fato de que a Terra fosse plana. Talvez e-
les tivessem dito saber que a terra fosse o centro do universo (com todas as coisas em órbi-
ta em torno dela). Pode ter havido uma ampla concordância em tempos antigos de que eles
tinham conhecimento nestes casos.
Nós podemos conceder, para o bem do argumento, que os antigos pensavam que
eles sabiam que a terra fosse o centro do universo. (Se você não gosta deste exemplo em
particular, substitua-o por outro que ilustre a mesma idéia.) Nós podemos mesmo conceder
que eles estivessem muito bem justificados em crer que tinham conhecimento deste fato.
Nós podemos dizer que eles tinham conhecimento aparente. Não obstante, eles careciam
de conhecimento verdadeiro. Ainda que as proposições em questão pudessem muito razoa-
velmente ter aparecido na lista das coisas conhecidas no primeiro capítulo de um distante
ancestral deste livro, as proposições seriam falsas. A Terra não é e nunca foi plana. Ela não
é e nunca foi o centro do universo. Eles pensaram, talvez com justificação, que eles tinham
conhecimento, mas eles estavam enganados.15
Outra questão merece atenção aqui. Pode ser que as alegações daqueles que sejam
mais falantes, mais carismáticos, ou mais poderosos sejam mais freqüente e amplamente
31

consideradas como itens de conhecimento. Isto pode ser aflitivo para aqueles que estão
longe do poder, especialmente quando eles têm uma justificação melhor para pontos de
vista antagônicos. Entretanto, questões sobre aquilo que determina o que será contado co-
mo sendo conhecimento, e como os poderosos fazem para impor suas perspectivas sobre os
outros, não estão no foco deste livro. Nosso tópico é o conhecimento verdadeiro, não o co-
nhecimento aparente.16

V. CONCLUSÃO

A (Q1) do capítulo 1 perguntou o que é preciso para se ter conhecimento. Este capí-
tulo introduziu uma resposta a essa questão baseada na Análise Tradicional do Conheci-
mento de acordo com a qual o conhecimento é crença verdadeira justificada. Esta análise
tem uma longa história. Ela parece se encaixar bem na Perspectiva Standard. Os exemplos
de conhecimento endossados pela Perspectiva Standard parecem ser casos de crença ver-
dadeira justificada. E casos nos quais nós carecemos de conhecimento parecem ser casos
nos quais nós carecemos de um destes três fatores.
Há, entretanto, uma objeção significativa a ATC. Voltaremos-nos em seguida a ela.

15
Neste ponto você poderia observar que nós podemos estar numa situação como a dos antigos, na qual nos-
sas alegações estão equivocadas. Nós iremos tratar desta questão quando considerarmos a Perspectiva Céti-
ca.
16
É possível que algo da atratividade da Perspectiva Relativista, mencionada no capítulo 1, resulte da confu-
são entre conhecimento aparente e conhecimento verdadeiro.
32

CAPÍTULO TRÊS

MODIFICANDO A ANÁLISE TRADICIONAL DO CONHECIMENTO

I. UMA OBJEÇÃO À ANÁLISE TRADICIONAL

Recorde que a Análise Tradicional do Conhecimento, a ATC, diz que o conheci-


mento é crença verdadeira justificada.
Esta análise é correta apenas no caso de que, em todos os exemplos possíveis, se
uma pessoa conhece alguma proposição, então a pessoa tem uma crença verdadeira justifi-
cada nessa proposição, e, se a pessoa tem uma crença verdadeira justificada, então a pessoa
tem conhecimento. Desafortunadamente para a ATC, há contra-exemplos provocantes do
segundo tipo – casos de crença justificada verdadeira que claramente não são casos de co-
nhecimento.
O primeiro filósofo a argumentar explicitamente contra a ATC da maneira a ser dis-
cutida aqui foi Edmund Gettier. Seu breve ensaio “Is Justified True Belief Knowledge?”
talvez seja o mais amplamente discutido e freqüentemente citado texto de epistemologia
em muitos anos.1 Gettier apresentou dois exemplos, cada um deles mostrando que alguém
poderia ter uma crença justificada verdadeira que não fosse conhecimento. Outros filósofos
têm descrito casos adicionais estabelecendo o mesmo ponto.

A. Os Contra-exemplos
Nesta seção examinaremos três exemplos, todos projetados para ilustrar um pro-
blema na ATC. O ponto por trás de todas as objeções é o mesmo, mas os diferentes exem-
plos ajudam a tornar a questão mais clara. O primeiro exemplo é uma versão modificada de
um dos exemplos originalmente apresentados por Gettier.

Exemplo 3.1: O Caso das Dez Moedas

Smith está justificado em crer:


33

1. Jones é o homem que ficará com o emprego e Jones tem dez moedas em seu bol-
so.

A razão para Smith estar justificado em crer em (1) é que ele acabou de ver Jones
esvaziar seus bolsos, contar cuidadosamente suas moedas, e então colocá-las novamente no
bolso. Smith também sabe que Jones é extremamente bem qualificado para o emprego e
ouviu o chefe dizer à secretária que Jones havia sido selecionado. Com base em (1), Smith
deduz corretamente e crê noutra proposição:

2. O homem que ficará com o emprego tem dez moedas em seu bolso.

Smith está justificado em crer em (2) ainda que (1) seja falsa. A despeito da evi-
dência de Smith, (1) não é verdadeira no final das contas. O chefe falou errado quando dis-
se que Jones ficaria com o emprego. De fato, o emprego está indo para o sobrinho do vice-
presidente da companhia, Robinson. Coincidentemente, acontece de Robinson também ter
dez moedas em seu bolso.

Neste exemplo, (2) é verdadeira ainda que (1) seja falsa. Smith estava justificado
em crer em (1), deduziu corretamente (2) a partir de (1) e, como resultado, acreditou nela.
Assim, Smith também estava justificado em crer em (2). E (2) é verdadeira. Assim, a cren-
ça de Smith em (2) está justificada e é verdadeira. Mas claramente Smith não sabe (2). É
apenas uma coincidência que ele esteja correto sobre (2).

Exemplo 3.2: O Caso Nogot/Havit2

Smith sabe que Nogot, que trabalha em seu escritório, estava dirigindo um Ford,
tem documentos de propriedade de um Ford, é geralmente honesto, etc. Nesta base ele crê:

3. Nogot, que trabalha no escritório de Smith, possui um Ford.

1
Analysis 23 (1963): 121-3.
34

Smith ouve no rádio que um concessionário Ford local está promovendo um con-
curso. Qualquer um que trabalhe no mesmo escritório que o dono de um Ford é elegível
para entrar numa loteria cujo ganhador receberá um Ford. Smith decide se inscrever, pen-
sando ser elegível. Afinal de contas, ele pensa que (3) é verdadeira, e assim ele conclui
que:

4. Há alguém que trabalha no (meu) escritório de Smith que possui um Ford. (Há
ao menos um dono de Ford no escritório de Smith.)

Resulta que Nogot finge ter um Ford e (3) é falsa. Entretanto, (4) é verdadeira por-
que uma outra pessoa ignorada por Smith, Havit, trabalha em seu escritório e possui um
Ford.

Assim, Smith tem uma crença justificada verdadeira em (4), mas não sabe (4). É
apenas uma feliz coincidência, resultante de Havit ter um Ford, que o torna correto sobre
(4).

Exemplo 3.3: A Ovelha no Campo3

Tendo ganhado um Ford em um concurso, Smith sai para um passeio no interior.


Ele olha para um campo próximo e vê o que se parece exatamente como uma ovelha. As-
sim, ele crê justificadamente:

5. Esse animal no campo é uma ovelha.

O filho de Smith está no banco traseiro lendo um livro e não está olhando a paisa-
gem. O filho pergunta se há alguma ovelha no campo em que estão passando. Smith diz
“Sim,” acrescentando:

6. Há uma ovelha no campo.

2
Este exemplo está baseado em um apresentado por Keith Lehrer em “The Fourth Condition for Knowledge:
A Defense,” The Review of Methaphysics 24 (1970): 122-8. Veja p. 125.
3
Um exemplo como este foi apresentado por Roderick Chisholm em Theory of Knowledge, 2ª. Ed. (Engle-
wood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1977), p. 105.
35

Smith está justificado pelo que ele vê em pensar que (5) é verdadeira. (6) se segue
de (5), assim ele também está justificado em crer em (6).
Resulta que (5) é falsa. O que Smith vê é um cão sheep dog (ou a estátua de uma
ovelha, ou qualquer outra coisa que se pareça perfeitamente com uma ovelha). Mas ocorre
que (6) é verdadeira de qualquer maneira. Adiante no campo, mas fora de vista, há uma
ovelha.

Assim, Smith tem uma crença justificada em (6), e ela é verdadeira. Mas ele não a
sabe. É apenas por sorte que ele está correto sobre (6)
Deveria ser observado que os detalhes dos exemplos podem ser modificados para
fortalecer a sustentação da crença de Smith na proposição falsa em cada caso. Por exem-
plo, você pode acrescentar o que queira para sustentar a crença dele de que Nogot possui
um Ford. Nogot pode mostrar a ele suas chaves com a insígnia de um Ford e vestir uma
camiseta da Ford, etc. Não importa o quanto você acrescente ao caso, permanece possível
que Nogot esteja fingindo ser o proprietário de um Ford. E uma vez que isto é possível,
permanece possível construir um caso no qual seja coincidentemente verdadeiro que al-
guém no escritório possua um Ford. Observações semelhantes se aplicam aos outros e-
xemplos. Meramente requerer razões mais fortes para uma crença estar justificada não evi-
tará as objeções.

B. A Estrutura dos Contra-exemplos


Os exemplos 3.1-3.3 partilham de uma estrutura comum. Em cada caso, Smith tem
alguma evidência básica que sustenta fortemente alguma proposição. É o tipo de evidência
que a Perspectiva Standard conta como boa o suficiente para o conhecimento. Ele crê nes-
sa proposição e então tira uma conclusão dela. Em cada exemplo, a sentença numerada em
ímpar descreve a proposição na qual Smith acredita:

1. Jones é o homem que ficará com o emprego e Jones tem dez moedas em seu bol-
so.
3. Nogot, que trabalha no escritório de Smith, possui um Ford.
5. Esse animal no campo é uma ovelha.
36

As sentenças numeradas em par descrevem as conclusões que Smith tira do primei-


ro passo:

2. O homem que ficará com o emprego tem dez moedas em seu bolso.
4. Há alguém que trabalha no (meu) escritório de Smith que possui um Ford. (Há
ao menos um dono de Ford no escritório de Smith.)
6. Há uma ovelha no campo.

A proposição numerada em ímpar é falsa em cada caso. Ainda assim, dada a evi-
dência, é extremamente razoável para Smith acreditar nela. Ela é uma crença justificada. E
a conclusão final se segue logicamente do passo anterior. A conclusão final é, em cada ca-
so, verdadeira. Com efeito, a conclusão final é verdadeira “por coincidência.” Simplesmen-
te acontece que a pessoa que ficará com o emprego tem dez moedas, que há um dono de
Ford no escritório, e que há uma ovelha no campo. Assim, Smith tem razões muito boas
para crer no primeiro passo, e segue princípios lógicos perfeitamente bons ao derivar o se-
gundo passo. Logo, ele tem uma crença justificada verdadeira em cada uma das conclusões
finais. Mas, em cada caso, a verdade dessa conclusão está desconectada da evidência origi-
nal. Smith não tem conhecimento, ainda que ele tenha crenças verdadeiras justificadas.
Estabelecer a estrutura dos exemplos ajuda a destacar dois princípios importantes
sobre os quais eles repousam. Um princípio permite que a pessoa possa estar justificada em
crer nas proposições numeradas em ímpar ainda que elas sejam falsas. Nós podemos for-
mular este como o Princípio da Falsidade Justificada, ou (FJ):

FJ. É possível para uma pessoa estar justificada em crer numa proposição falsa.

O segundo princípio importante é o que diz que a segunda proposição está justifi-
cada porque ela é deduzida da primeira. Este é o Princípio da Dedução Justificada, ou
(DJ):

DJ. Se S está justificado em crer em p, e p acarreta q, e S deduz q de p e aceita q


como um resultado desta dedução, então S está justificado em crer em q.
37

Se os três exemplos recém descritos são possíveis e estes dois princípios são verda-
deiros, então a ATC está errada. Os exemplos podem ser estranhos, mas eles são claramen-
te possíveis. Coisas como estas podem acontecer e acontecem. Os dois princípios parecem
corretos. Logo, parece que nós temos um caso forte contra a ATC. Como nós veremos, en-
tretanto, algumas pessoas têm tentado defender a ATC rejeitando os princípios.
Para formular um exemplo no estilo-Gettier, então, primeiro se tem de encontrar
um caso de crença falsa justificada. Se a (FJ) é correta, existem tais casos. Identifica-se en-
tão alguma verdade que se segue logicamente dessa falsidade. Sempre haverá tais verda-
des. O exemplo prossegue com o crente tendo deduzido essa verdade da crença falsa justi-
ficada. Se a (DJ) é correta, a crença resultante será uma crença verdadeira justificada que
não é conhecimento.
Parece, portanto, que os exemplos de estilo-Gettier mostram que a ATC é incorreta.

II. DEFENDENDO A ANÁLISE TRADICIONAL

Você pode ter algumas apreensões sobre os exemplos de estilo-Gettier. Usualmen-


te, as dúvidas estão baseadas na idéia de que a pessoa do exemplo não está justificada em
crer na proposição final e, logo, não tem realmente uma crença verdadeira justificada.4 E
esta idéia repousa na rejeição de um ou outro dos dois princípios recém formulados.5 Nesta
seção examinaremos a plausibilidade desta resposta aos exemplos.

A. Rejeitando a (FJ)
Uma maneira de defender a ATC é rejeitar a (FJ). Você pode pensar que, se uma
proposição é falsa, então uma pessoa que creia nela não deve ter razões boas o suficiente
para essa crença. Se esta idéia é correta, ela proporciona uma defesa da ATC da seguinte
maneira. Ela implica que, em cada um de nossos exemplos, Smith não está justificado em
crer na proposição falsa. Se Smith não está justificado em crer na proposição falsa (a nu-

4
É possível argumentar que Smith tem conhecimento das proposições numeradas em par de cada um dos
exemplos. Mas esta é uma abordagem que quase nenhum filósofo tomou. A reflexão cuidadosa acerca destes
casos produz um veredicto quase unânime sobre eles. Você não pode ter conhecimento quando a sua crença é
verdadeira coincidentemente, como é o caso em todos esses exemplos.
5
É possível argumentar que em nossos exemplos as razões de Smith simplesmente não são razões muito bo-
as. Mas, como foi notado ao final da seção IA, podem-se tornar as razões de Smith tão fortes quanto se quei-
ra. Nenhuma resposta nessa linha parece promissora.
38

merada em ímpar), então ele não está justificado em crer no que ele deduz dela. Logo, sua
crença na proposição numerada em par também não está justificada. Como resultado, os
exemplos de estilo-Gettier não são casos de crenças verdadeiras justificadas (porque eles
não são casos de crenças justificadas) e, logo, eles não refutam a ATC.
Considere como esta resposta se aplica ao caso Nogot/Havit. O crítico argumenta
que, a despeito da evidência, Smith não está justificado em crer na proposição (3), que No-
got possui um Ford. A razão para isto é que (3) é falsa e, logo, a evidência de Smith não
deve ser boa o suficiente. De forma mais geral, diz o crítico, uma pessoa nunca pode estar
justificada em crer numa proposição falsa. A (FJ) está errada.
Uma vez que as razões de Smith para crer em (3) podem ser extremamente fortes,
esta é uma resposta implausível. Além do mais, dada uma suposição muito sensata, rejeitar
a (FJ) implica que dificilmente alguém alguma vez esteja justificado em crer em alguma
coisa! Para ver porque é assim, considere qualquer exemplo no qual uma pessoa tenha o
que a Perspectiva Standard considera como sendo uma crença justificada. Suponha que
não haja nada de estranho sobre o caso, e que as coisas sejam exatamente como as pessoas
acreditam que elas sejam. Chame isto de “O Caso Típico.” Agora, é sempre possível cons-
truir um exemplo que seja uma variação do Caso Típico. Nessa variante, a pessoa teria
exatamente a mesma evidência, mas a proposição em questão seria, não obstante, falsa.
Chame essa variante de “O Caso Incomum.” Para preencher os detalhes do Caso Incomum,
será necessário acrescentar, com esforço incomum, ilusões e coisas parecidas. Embora tais
coisas sejam incomuns, elas são possíveis. O ponto chave a observar é que, tanto no Caso
Típico quanto no Caso Incomum, o crente tem exatamente as mesmas razões para crer exa-
tamente na mesma coisa. Assim, ou o crente está justificado em ambos os casos ou não es-
tá justificado em ambos os casos. Se a (FJ) for falsa, então a crença não estará justificada
no Caso Incomum (porque ela é falsa). Mas então ela também não estará justificada no Ca-
so Típico, já que as razões são as mesmas. Isto pode ser feito para virtualmente qualquer
crença alegadamente justificada e, assim, se a (FJ) for falsa, virtualmente nenhuma crença
estará justificada.
O raciocínio recém exposto depende do Princípio da Mesma Evidência, ou (ME):

ME. Se em dois exemplos possíveis não há diferença alguma na evidência que uma
pessoa tem para alguma proposição, então, ou a pessoa está justificada em crer na proposi-
39

ção em ambos os casos, ou a pessoa não está justificada em crer na proposição em ambos
os casos.

A (ME) é um princípio extremamente plausível. Se a (ME) for verdadeira e a (FJ)


falsa, então virtualmente nada estará justificado. E isso viola a nossa suposição básica (por
enquanto, ao menos) de que nós conhecemos coisas. Assim, a primeira defesa da ATC não
é boa.6
Alguns leitores podem ainda pensar que rejeitar a (FJ) seja correto. Recorde, entre-
tanto, que o objeto do atual capítulo é ver quais são as conseqüências da Perspectiva Stan-
dard. A Perspectiva Standard sustenta que nós conhecemos muitas coisas, e rejeitar a (FJ)
implica em que dificilmente alguma coisa está justificada e, logo, que dificilmente alguma
coisa é conhecida. Assim, rejeitar a (FJ) requer a rejeição da Perspectiva Standard. Em ou-
tras palavras, a (FJ) é uma conseqüência da Perspectiva Standard. Logo, rejeitá-la está fora
de questão neste estágio de nossa investigação. Retornaremos a este tópico quando exami-
narmos a Perspectiva Cética.

B. Rejeitando a (DJ)
Recorde que os exemplos Gettier dependem tanto da (DJ) quanto da (FJ). A (DJ)
diz que a justificação pode ser transferida através da dedução. Uma segunda base possível
para defender a análise tradicional desses contra-exemplos é rejeitar a (DJ). A idéia é que,
quando você raciocina apropriadamente desde verdades justificadas, o resultado está justi-
ficado, mas quando você raciocina apropriadamente desde falsidades justificadas, o resul-
tado não está justificado. Em outras palavras, se você começa com uma crença verdadeira
justificada e tira apropriadamente uma conclusão dela, então a crença resultante está justi-
ficada. Entretanto, se você começa com uma crença falsa justificada – lembre-se que você
está aceitando a (FJ) – e tira corretamente uma conclusão dela, então a crença resultante
não está justificada. Logo, nesta perspectiva, em cada um dos casos Gettier a pessoa está
justificada em crer no primeiro passo – a proposição numerada em ímpar –, mas não está
justificada em crer na conseqüência tirada dela. Portanto, os advogados desta perspectiva
rejeitam a (DJ).

6
No capítulo 5 examinaremos algumas teorias que rejeitam a (ME). Entretanto, de acordo com essas teorias,
a (FJ) é verdadeira e a ATC é refutada pelos exemplos de estilo-Gettier.
40

Esta perspectiva também requer a rejeição da (ME). Imagine um exemplo como


qualquer um dos casos no estilo-Gettier mas no qual não esteja acontecendo nenhum enga-
no e o primeiro passo seja de fato verdadeiro. Tirar a conclusão final, sob aquelas circuns-
tâncias, está justificado. Mas, de acordo com a atual proposta, ela não está justificada nos
casos Gettier. Ainda assim, a pessoa tem exatamente as mesmas razões em cada caso. Isto
é implausível.
Considere cuidadosamente o que alguém que rejeita a (DJ) estaria dizendo sobre
Smith em cada um dos casos Gettier. O crítico diria de Smith, “Sim, Smith está justificado
em crer que Nogot, que trabalha em seu escritório, possui um Ford. E é verdade que ele
pode deduzir disto que alguém que trabalha em seu escritório possui um Ford. Mas, não
obstante, ele não está justificado em crer nessa conclusão.” Isto parece absurdo. Nós po-
demos sensatamente perguntar que atitude Smith estaria justificado em tomar em relação à
proposição de que alguém em seu escritório possui um Ford. Seria razoável para ele crer
que Nogot possui um Ford mas negar ou suspender o juízo sobre se alguém possui um
Ford? É claro que não. Mas isso é o que a rejeição da (DJ) parece recomendar. Rejeitar a
(DJ) simplesmente não é uma boa maneira de defender a ATC dos exemplos de Gettier.
Estas tentativas de defender a ATC dos exemplos de estilo-Gettier fracassam. Nos
voltamos em seguidas às respostas de acordo com as quais o conhecimento requer alguma
coisa além da crença verdadeira justificada.

III. MODIFICANDO A ANÁLISE TRADICIONAL

Uma idéia plausível é a de que você não pode ter conhecimento se a sua crença de-
pende de uma proposição falsa. Nesta seção consideraremos alguns esforços para formular
mais claramente esta idéia.

A. A Teoria que Exclui Bases Falsas


Uma maneira pela qual a justificação de uma crença pode depender de uma falsida-
de é se houver uma proposição falsa entre as bases ou razões para a crença. Michael Clark
propôs uma solução ao problema de Gettier fazendo uso desta idéia.7 Clark sugere a se-

7
“Knowledge and Grounds: A Comment on Mr. Gettier’s Paper,” Analysis XXIV (1963): 46-48.
41

guinte descrição que Exclui Bases Falsas do conhecimento. Ele acrescenta uma quarta
condição as três da ATC:

EBF. S sabe p = df. (i) S crê p, (ii) p é verdadeira, (iii) S está justificado em crer p;
(iv) Todas as bases de S para crer p são verdadeiras.

A idéia aqui é diferente – e melhor – da proposta discutida na seção II, de acordo


com a qual as crenças que têm bases falsas não são sequer justificadas. Aqui a idéia é que
ter todas as bases verdadeiras é uma condição adicional para o conhecimento, mas não para
a justificação. Logo, os defensores de (EBF) concordam que as vítimas dos exemplos Get-
tier estão justificadas em suas crenças. Isto é o que os críticos anteriormente discutidos ne-
gavam. Ao invés, esta resposta diz que o conhecimento não pode depender de quaisquer
bases falsas. Em cada um dos exemplos precedentes Smith tem uma base falsa para a sua
crença final. Assim, (EBF) parece evitar os contra-exemplos de estilo-Gettier.
A (EBF) funcionara desde que (a) em todos os casos Gettier o crente tenha uma ba-
se falsa, e (b) não existam casos de conhecimento nos quais o crente tenha uma base falas.
Existem razões para duvidar de cada um destes pontos.
Considere primeiro (a). Existem casos de estilo-Gettier nos quais a pessoa não dá
explicitamente um passo falso em seu raciocínio. Como veremos, estes podem ser casos
Gettier nos quais o crente não tem uma base falsa. Nós podemos usar uma versão revisada
do caso Nogot/Havit para ilustrar o ponto:

Exemplo 3.4: O Caminho Alternativo8


Smith observa que Nogot está dirigindo um Ford, tem os documentos de proprieda-
de, e assim por diante. Mas, ao invés de tirar a conclusão sobre Nogot, Smith tira a seguin-
te conclusão:

7. Há alguém que trabalha no escritório de Smith que dirige um Ford, tem docu-
mentos de propriedade de um Ford, etc.

Com base em (7), Smith tira a mesma conclusão final de antes:

8
Um exemplo tal como este foi apresentado em Richard Feldman, “An Alleged Defect in Gettier Counterex-
amples,” Australasian Journal of Philosophy 52 (1974): 68-69.
42

4. Há alguém que trabalha no escritório de Smith que possui um Ford.

A diferença entre os dois exemplos é que na versão original Smith explicitamente


raciocinava dando um passo falso para chegar à sua conclusão verdadeira, e na nova versão
ele toma um caminho alternativo para chegar à mesma conclusão.
Na versão original do exemplo, o pensamento de Smith era:

N. Nogot, que trabalha no escritório de Smith, dirige um Ford, tem os documentos


de propriedade de um Ford, etc.
3. Nogot, que trabalha no escritório de Smith, possui um Ford.
4. Há alguém que trabalha no escritório de Smith que possui um Ford.

(N) é verdadeira, (3) é falsa, e (4) é verdadeira. Assim, este caminho para (4) passa
por uma falsidade. Mas no segundo caso Smith substitui (3) por (7). O pensamento de Smi-
th vai agora:

N. Nogot, que trabalha no escritório de Smith, dirige um Ford, tem os documentos


de propriedade de um Ford, etc.
7. Há alguém que trabalha no escritório de Smith que dirige um Ford, tem os do-
cumentos de propriedade de um Ford, etc.
4. Há alguém que trabalha no escritório de Smith que possui um Ford.

(N) e (4) ainda são verdadeiras, mas agora o passo intermediário, (7), também é
verdadeiro. Assim, nesta versão do exemplo, Smith não raciocina através de uma falsa
proposição. Ainda assim, Smith não sabe (4). É ainda um caso Gettier. Logo, nem todos os
exemplos dependem de que uma pessoa derive uma verdade de uma falsidade.
É verdade que no exemplo 3.4 ainda há uma falsidade “nas vizinhanças.” A propo-
sição (3), Nogot possui um Ford, é falsa, e isto parece importar. Você poderia até mesmo
pensar que (3) é parte das bases de Smith, ainda que ele não pense explicitamente sobre
ela. Logo, nós estamos em face de uma questão. No exemplo 3.4, (3) é ou não é parte das
bases de Smith?
43

Nós podemos pensar naquilo que é incluído nas bases de uma crença numa maneira
mais ampla ou mais estrita. A formulação estrita é assim:

B1. As bases de uma crença incluem apenas aquelas outras crenças que são passos
explícitos na cadeia de inferências que levam à crença.

Se a cláusula (iv) de (EBF) faz uso desta formulação das bases, então o exemplo
3.4 refuta a teoria. Ele é um caso Gettier no qual passos explícitos do raciocínio não inclu-
em falsidades. Isto sugere que Clark faria melhor apelando para uma compreensão mais
ampla das bases de uma crença, uma compreensão de acordo com a qual as bases incluem
mais do que os passos explícitos do raciocínio. Por exemplo, ele pode propor:

B2. As bases de uma crença incluem todas as crenças que jogam qualquer papel na
formação da crença, incluindo as “suposições de base” e as pressuposições.

Se Clark usa (B2) para explicar a cláusula (iv) de sua descrição do conhecimento,
então o exemplo 3.4 não a refuta. Isto porque há uma suposição de base no exemplo que é
falsa, a saber, (3). Assim, apelando para (B2), Clark poderia argumentar plausivelmente
que a condição (iv) de (EBF) não está satisfeita no exemplo 3.4 e, logo, sua teoria produz
aqui o resultado correto: ela diz que Smith não sabe que alguém em seu escritório possui
um Ford.
O problema com esta resposta é que a teoria enfrenta agora uma objeção diferente.
Como foi notado antes nesta seção, (EBF) funciona apenas se não houver casos de conhe-
cimento nos quais haja falsidades entre as bases que a pessoa usa. Entretanto, é claro que
pode haver conhecimento mesmo quando algumas das bases usadas por alguém sejam fal-
sas. Isto é verdadeiro tanto na formulação mais-inclusiva quanto na formulação menos-
inclusiva das bases, mas ela é especialmente óbvia quando a bases incluem crenças de base
e pressuposições. Os exemplos seguintes ilustram o ponto:

Exemplo 3.5: O Caso das Razões Extras

Smith tem dois conjuntos de razões independentes para pensar que alguém em seu
escritório possui um Ford. Um conjunto tem a ver com Nogot. Nogot diz que ele possui um
44

Ford e assim por diante. Como sempre, Nogot está simplesmente fingindo. Mas Smith
também tem razões igualmente fortes que têm a ver com Havit. E Havit não está fingindo.
Havit possui um Ford, e Smith sabe que ele possui um Ford.

Neste exemplo, Smith sabe que alguém em seu escritório possui um Ford. Isto por-
que as razões que têm a ver com Havit são boas o suficiente para dar a ele conhecimento.
Ainda assim, uma de suas razões, aquela que tem a ver com Nogot, é falsa. Isto mostra que
você pode ter conhecimento mesmo que haja alguma falsidade em algum lugar do cenário.
Esta objeção é decisiva. Ela mostra que a condição de Clark é muito exigente.9
Logo, a maneira de Clark de remendar a ATC não funciona. Se ele usa (B1), então
o exemplo 3.4 o refuta. Se ele usa (B2), então o exemplo 3.5 o refuta. O simples fato de
haver uma falsidade entre as razões da crença de uma pessoa não mostra que esta carece de
conhecimento.

B. A Teoria que Exclui Anuladores


Existe outra maneira pela qual os filósofos têm tentado explicar o que é para a justi-
ficação de uma crença depender de uma proposição falsa. Uma característica notável dos
casos Gettier é que pode haver uma proposição verdadeira tal que, se o crente souber sobre
ela, ele não acreditará (ou não estará justificado em acreditar) na proposição em questão.
Com efeito, então, a justificação do crente depende da negação dessa verdade.10
Nós podemos aplicar essa idéia aos nossos exemplos. No exemplo 3.1, se Smith
compreendesse que Jones não ficará com o emprego (o que é verdade), então ele não acre-
ditaria que o homem que ficará com o emprego tem dez moedas em seu bolso (ou ele não
mais teria qualquer boa razão para crer nisto). Nos exemplos 3.2 e 3.4, se Smith compre-
endesse que Nogot não possui um Ford, então, dado o restante do exemplo, ele não mais
teria qualquer boa razão para crer que alguém no escritório possui um Ford. No exemplo
3.3, se Smith compreendesse que a coisa para a qual ele estava olhando não era uma ove-
lha, então ele não mais estaria justificado em crer que há uma ovelha no campo. (Em con-
traste, no exemplo 3.5 ele continuaria a crer que alguém no escritório possui um Ford , a-
inda que ele ficasse sabendo que Nogot não possui um.)

9
Observe que esta objeção funciona quer você use (B1) ou (B2).
10
Para uma defesa de uma perspectiva nestas linhas, veja Peter Klein, “Knowledge, Causality, and Defesea-
bility,” Journal of Philosophy 73 (1976): 792-812.
45

Logo, em cada exemplo Gettier (exemplos 3.1-3.4), há uma proposição falsa na


qual Smith efetivamente acredita. Se ele não acreditasse nela, e ao invés acreditasse justifi-
cadamente na sua negação (que é verdadeira), então ele deixaria de acreditar, ou deixaria
de ter justificação para acreditar, na proposição Gettier. Essa proposição verdadeira é dita
anular a justificação de Smith. E a idéia é a de que uma pessoa tem conhecimento quando
não há verdades que anulem a sua justificação. Logo, a proposta é acrescentar à ATC o re-
quisito de que não existam anuladores:

EA. S sabe p = df. (i) S crê p, (ii) p é verdadeira, (iii) S está justificado em crer p;
(iv) Não há uma proposição verdadeira v tal que, se S estivesse justificado em crer v, então
S não estaria justificado em crer p. (Nenhuma verdade anula a justificação de S para p.)

(EA) parece lidar corretamente com todos os exemplos considerados até aqui.
Desafortunadamente, há problemas para a teoria que exclui anuladores. Eis aqui
dois deles.

Exemplo 3.6: O Caso do Rádio


Smith está sentado em sua sala de estudos com o rádio desligado e Smith sabe que
ele está desligado. Na ocasião, a Rádio Classic Hits 101 está tocando a grande música do
grande Neil Diamond, “Girl, You’ll Be a Woman Soon.” Se Smith estivesse com o rádio
ligado e sintonizado nessa estação, Smith teria ouvido a canção e saberia que ela está to-
cando.

Pode não ser imediatamente óbvio porque este exemplo colocaria um problema,
mas ele coloca. No exemplo 3.6 Smith sabe:

8. O rádio está desligado.

As condições (i)-(iii) da ATC estão satisfeitas. Mas (iv) está satisfeita? Isto é, há al-
guma proposição verdadeira tal que, se Smith estivesse justificado em crer nela, então ele
não estaria justificado em crer (8)? Uma proposição verdadeira nesta história é

9. A Rádio Classic Hits 101 está tocando “Girl, You’ll be a Woman Soon.”
46

Suponha que Smith estivesse justificado em crer (9). Em qualquer caso típico há
muitas maneiras pelas quais ele poderia estar justificado em crer (9). A maneira mais pro-
vável seria que o rádio estivesse ligado. Naturalmente, ele poderia ter ficado sabendo sobre
(9) por ter alguém ligado e dito a ele, ou por ter recebido um e-mail alertando-o sobre as
novidades. Mas suponha que em nosso exemplo estas outras maneiras não estejam dispo-
níveis. Em nosso exemplo, se Smith estivesse justificado em crer (9), então seu rádio esta-
ria ligado e ele teria ouvido a música. Mas, se esse fosse o caso, então Smith não estaria
justificado em crer que o rádio está desligado. Assim, a condição (iv) não está satisfeita.
Há uma proposição verdadeira, (9), tal que, se Smith estivesse justificado em crer nela, en-
tão Smith não estaria justificado em crer (8). Em certo sentido (ou talvez em vários senti-
dos), Smith tem sorte de não saber (9). De um lado, isso o habilita a saber (8). De outro,
Smith não tem de ouvir a música.
Este exemplo pode confundir. Isso ocorre em larga medida porque sentenças que
dizem que, se uma coisa ocorresse, então uma outra coisa seria verdadeira, causam confu-
são. Essas sentenças são chamadas de condicionais subjuntivos. Aplicado a este caso, o
condicional se refere ao que seria o caso se Smith estivesse justificado em crer (9). A me-
lhor maneira de determinar isto é considerar como Smith iria chegar a estar justificado em
crer (9). Nas circunstâncias descritas, a maneira é tal que Smith estaria com o rádio ligado,
sintonizado na Rádio Classic Hits 101, e teria ouvido a música no rádio. Assim, se esse
fosse o caso, Smith não estaria justificado em crer que o rádio está desligado. E isto é o que
causa problemas para (EA). Esta diz que Smith não sabe (8) se existir alguma outra verda-
de tal que, se ele estivesse justificado em acreditar nela, ele não estaria justificado em crer
(8). Mas (9) é exatamente tal verdade.
Uma vez que você veja como o exemplo 3.6 funciona, é fácil gerar exemplos adi-
cionais que sigam as mesmas linhas. A questão subjacente é muito simples, embora sur-
preendente. Ocorre que uma pessoa pode conhecer alguns fatos e pode haver outros fatos
tais que, se ele conhecesse estes outros fatos, então ele não conheceria os fatos originais.
Isto porque, se alguém estivesse em posição de conhecer estes últimos fatos, então ele não
estaria em posição de conhecer os primeiros. E, em alguns casos, se alguém conhecesse os
últimos, então os primeiros sequer seriam verdadeiros. A versão atual da teoria que exclui
anuladores diz que, quando existem tais fatos, carece-se de conhecimento. Uma vez que
tipicamente existirão tais fatos, a teoria implica que conhecemos muito pouco.
47

Há outra maneira pela qual a ignorância de algumas verdades pode nos ajudar a co-
nhecer coisas. (EA) também tem um problema com esses casos. Eis aqui um de tais exem-
plos.

Exemplo 3.7: O Caso Grabit11


Black vê o seu estudante Tom Grabit enfiar uma fita no bolso de seu casaco e se
esgueirar para fora da biblioteca. Ela sabe que Tom pegou a fita. Agora, imagine que o
crime de Tom seja relatado à mãe de Tom em seu quarto no hospital psiquiátrico. E ela re-
truca que Tom não fez isso, que foi Tim, o irmão gêmeo dele. E imagine ainda que ele não
tem irmão gêmeo, que esta é apenas outra das ilusões dela. Black ignora tudo isto.

Por que isto é um problema? Considere esta verdade:

10. A mãe de Tom disse que o irmão gêmeo de Tom, Tim, pegou a fita.

Note que a própria (10) é verdadeira, ainda que aquilo que a mãe de Tom diga seja
falso. Se Black estivesse justificada em crer apenas nesta verdade – mas não no restante da
história sobre ela –, ela iria anular a justificação de Black. Ela é um anulador enganoso.
Mais uma vez, isto pode parecer confuso. Mas a idéia é relativamente simples. Se
nós podemos conhecer coisas comuns, então pode haver outras verdades tais que, se nós
tivéssemos sabido delas, elas solapariam nossa justificação para a coisa que conhecemos.
Mas alguns destes anuladores são enganosos. Isto é, nós de fato conhecemos coisas, mas
não as conheceríamos se tivéssemos sabido sobre tais anuladores. Nós temos sorte de não
sabermos sobre os anuladores. O testemunho da Senhora Grabit é assim. Observe que, no
caso de Tom Grabit, diferentemente dos verdadeiros casos Gettier, as coisas são exatamen-
te como Black pensa que elas são. Black tem sorte por ser ignorante das divagações da mãe
demente. Black teria perdido a sua justificação para a sua crença sobre Tom se ela soubes-
se sobre elas.
Assim, esta versão da teoria que exclui anuladores não funciona. Há muitas outras
possíveis variações de (EA), e talvez algumas versões evitem os exemplos considerados

11
Uma versão levemente modificada deste exemplo apareceu primeiro em Keith Lehrer, “Knowledge, Truth
and Evidence,” Analysis XXV (1965): 168-175.
48

aqui. As outras variações acrescentam mais complexidade à análise, e existem ainda mais
estranhos contra-exemplos propostos contra elas, mas não as acompanharemos aqui.12

D. Uma Proposta Modesta


É seguro dizer que não existe uma solução amplamente aceita para o problema de
Gettier levantado à ATC. As defesas da ATC discutidas na seção II são inadequadas e as
modificações consideradas nesta seção enfrentam sérios problemas. O problema de Gettier
permanece irresolvido.
Resta verdadeiro, entretanto, que em todos os casos Gettier há uma proposição falsa
envolvida que os tornam casos nos quais as pessoas carecem de conhecimento. De alguma
forma, a justificação depende dessa falsidade. Nós podemos destacar este ponto dando ao
menos um modesto passo em direção à solução do problema.
O elemento chave em todos os casos de estilo-Gettier é que, em algum sentido, a
crença central “depende essencialmente de uma falsidade.” A idéia de dependência essen-
cial é razoavelmente clara. Por exemplo, no Caso da Ovelha no Campo, a crença de Smith
de que há uma ovelha no campo depende essencialmente da proposição de que o que ele vê
é uma ovelha. No Caso das Razões Extras, Smith tem duas linhas de pensamento indepen-
dentes que levam à mesma conclusão. Uma linha de pensamento, a que se refere a Nogot,
depende de uma proposição falsa. A outra linha de pensamento, a que envolve Havit, não
depende de nada falso. Neste caso, a crença de Smith de que alguém possui um Ford não
depende essencialmente da falsidade. Isto porque há uma linha justificatória que ignora a
falsidade. É por isso que pode haver conhecimento numa tal situação, ainda que o raciocí-
nio envolva uma proposição falsa. Ele não depende essencialmente dessa falsidade.
O Caso do Caminho Alternativo e outros casos nos quais a crença não depende di-
retamente da falsidade também ajudam a destacar a idéia da dependência essencial de uma
falsidade. Nestes casos, Smith não raciocina explicitamente por meio de uma proposição
falsa. Entretanto, há uma dependência implícita de uma proposição falsa. Tipicamente, as
coisas de que uma pessoa depende incluirão coisas que, se pressionado, ele diria que são
relevantes.

12
Para uma discussão dessas alternativas, veja Robert Shope, The Analysis of Knowing (Princeton, N.J.: Prin-
ceton University Press, 1983), capítulo 2.
49

A idéia da dependência essencial admitidamente não é completamente clara. Entre-


tanto, ela nos dá uma definição de conhecimento que funciona, com a qual nós podemos
seguir adiante. A definição, então, é

DEF. S sabe p = df.


(i) p é verdadeira.
(ii) S crê p.
(iii) S está justificado em crer p.
(iv) A justificação de S para p não depende essencialmente de qualquer fal-
sidade.

Ao acrescentar a cláusula (iv), (DEF) faz uma modificação importante na ATC. Não
obstante, ela retém o coração da perspectiva tradicional, pois ela retém a idéia de que o co-
nhecimento requer a crença verdadeira justificada. Ela simplesmente acrescenta uma con-
dição extra. Uma questão chave referente à (DEF), assim como à perspectiva tradicional na
qual ela está baseada, tem a ver com o conceito de justificação. Voltaremos-nos a isso em
detalhe no capítulo 4. Na seqüência disso examinaremos os pontos de vista de alguns filó-
sofos que pensam que nenhuma modificação relativamente pequena na ATC irá produzir
uma análise correta do conhecimento. Eles pensam que uma formulação inteiramente dife-
rente é preferível. Nós examinaremos suas perspectivas no capítulo 5.

IV. CONCLUSÃO

A resposta tradicional para (Q1), que pergunta quais são as condições para o co-
nhecimento, é a de que o conhecimento é crença verdadeira justificada. A ATC é uma aná-
lise do conhecimento elegante e atraente, mas os exemplos Gettier mostram que ela não é
completamente satisfatória. A moral disto é que o conhecimento requer a crença verdadeira
justificada e mais alguma coisa – há uma quarta condição para o conhecimento. Dizer exa-
tamente qual é essa quarta condição se revela notavelmente difícil. Nem a teoria que exclui
bases falsas nem a teoria que exclui anuladores tem sucesso. O que parece ser crucial é que
a justificação não dependa essencialmente de alguma coisa falsa. Embora esta idéia não
tenha sido formulada em todos os detalhes, ela nos dá uma descrição útil do conhecimento.
50

Logo, nossa resposta para (Q1) é que o conhecimento requer crença verdadeira justificada
que não depende essencialmente de uma falsidade.
51

CAPÍTULO QUATRO

TEORIAS EVIDENCIALISTAS DO CONHECIMENTO E DA JUSTIFICA-


ÇÃO

Se algo como a versão modificada de Análise Tradicional do Conhecimento pro-


posta no capítulo 3 é correto, então a justificação é uma condição necessária crucial para o
conhecimento. Além do mais, a justificação é um conceito interessante e enigmático por si
mesmo. Ela será o foco deste capítulo e daquele que segue. O presente capítulo cobre uma
formulação da justificação tradicional e amplamente aceita. O próximo capítulo introduzirá
formulações da justificação (e do conhecimento) mais recentes e bastante diferentes.
Para ajudar a enfocar claramente as questões centrais, será melhor usar um exemplo
no qual duas pessoas acreditam na mesma coisa, mas uma está justificada nessa crença e a
outra não.

Exemplo 4.1: O Roubo


Alguém invadiu a casa de Art e roubou uma valiosa pintura. O policial Careful in-
vestiga o caso e termina com a evidência conclusiva de que Filcher cometeu o crime. Care-
ful encontra a pintura na posse de Filcher, encontra as impressões digitais de Filcher na
cena do crime, e assim por diante. Careful acaba acreditando:

1. Filcher roubou a pintura.

Enquanto isso, Hasty também ouviu sobre o roubo. Acontece que Hasty mora ao
lado de Filcher e tem tido alguns problemas com ele. Hasty detesta Filcher e o culpa por
muitas das coisas ruins que acontecem. Hasty tem uma vaga idéia de que Filcher trabalha
com comércio de arte mas não tem qualquer conhecimento específico sobre o que ele faz.
Sem mais nada em que se basear, Hasty também crê (1).
A Perspectiva Standard sustenta que no exemplo 4.1 Careful está inteiramente jus-
tificado em crer (1) mas Hasty não está. Se você precisa acrescentar algo mais à história
para se convencer daquelas avaliações, pode fazer os acréscimos. Entretanto, o exemplo
deveria ser bastante persuasivo tal como está.
52

O objetivo do presente capítulo é descrever de uma maneira sistemática e útil o que


distingue a crença de Careful da crença de Hasty e, mais geralmente, identificar as caracte-
rísticas gerais que distinguem as crenças justificadas das crenças injustificadas. Há muitas
diferenças entre a crença de Careful e a crença de Hasty que são irrelevantes para este pro-
jeto. Por exemplo, a crença de Hasty é sobre seu vizinho, mas a crença de Careful não é
sobre seu (de Careful) vizinho. Isto é verdade, mas não é o que faz com que uma esteja jus-
tificada e a outra não esteja. Crenças sobre a vizinhança podem estar justificadas, e não é
sequer remotamente plausível que isto tenha alguma importância em termos de justifica-
ção. Em geral, nada sobre aquilo de que trata uma crença provavelmente será, por si só, de
algum valor para responder a questão, pois as pessoas podem ter tanto crenças justificadas
quanto crenças injustificadas sobre praticamente qualquer tópico. Qual é, então, a diferen-
ça?1
Ao pensar sobre esta questão será útil ter em mente a seguinte idéia. Se uma crença
está justificada ou injustificada, seu status epistêmico é um fato avaliativo sobre a crença.
A reflexão sobre isto sugere que o status epistêmico deve depender de outros fatos não-
epistêmicos. Pode ser mais fácil entender a idéia considerando primeiro uma analogia. Su-
ponha que uma professora devolva um conjunto de trabalhos avaliados para os estudantes
de sua turma. Ela diz que um trabalho está excelente e dá a ele uma nota muito alta. Ela diz
que outro trabalho está ruim e dá a ele uma nota baixa. A professora então atribui então
certas propriedades avaliativas a estes trabalhos. Estas são propriedades que se referem à
qualidade dos trabalhos. (Embora não seja crucial para a discussão que se segue, suponha
que haja uma verdade objetiva sobre a qualidade de cada trabalho.) A qualidade do traba-
lho é depende de outras características do trabalho. Por exemplo, palavras mal escritas di-
minuem a qualidade do trabalho, assim como também o fazem sentenças gramaticalmente
erradas. Talvez estar escrito claramente aumente sua qualidade. Há vários outros fatores
que entram na avaliação. Estes fatores envolvem as propriedades descritivas dos trabalhos.
A idéia chave a entender é que, se existe uma diferença avaliativa nos trabalhos, então de-
ve haver uma diferença descritiva. Em outras palavras, se não há diferença descritiva, en-
tão também não há diferença avaliativa. O princípio seguinte captura a idéia:

Necessariamente, se dois trabalhos têm as mesmas propriedades descritivas, então


eles têm as mesmas propriedades avaliativas.

1
Ao levantarmos essa questão, voltamos nossa atenção para a questão (Q2) do capítulo 1.
53

Isto é ás vezes descrito como sendo a tese da superveniência – as propriedades ava-


liativas dos trabalhos sobrevêm às suas propriedades descritivas, ou dependem delas.
A plausibilidade da tese da superveniência sobre os dois trabalhos pode ser apreci-
ada considerando a situação de um estudante que tira uma nota baixa. Suponha que um tal
estudante pergunte à professora sobre o que tornou seu trabalho inferior ao trabalho de um
colega que ficou com uma nota mais alta. Seguramente haveria algo de errado com um
professor que respondesse ao seu estudante, “Não há diferença descritiva entre os dois tra-
balhos. Eles são exatamente iguais de todas as maneiras descritivas. Ocorre simplesmente
que, infelizmente, o seu trabalho não é tão bom quanto aquele.” Este estudante pode re-
clamar apropriadamente que, se o seu trabalho não é tão bom quanto o outro, deve haver
alguma coisa sobre os dois trabalhos que revele esta diferença avaliativa.
Uma coisa semelhante é verdadeira em epistemologia. Estar justificada ou injustifi-
cada é uma propriedade epistêmica avaliativa de uma crença. Fatos sobre as causas de uma
crença, sobre se ela é verdadeira, sobre se outras pessoas também acreditam nas mesmas
coisas, são fatos não-avaliativos sobre a crença. Além disso, fatos sobre que experiências
uma pessoa está tendo, sobre que outras coisas a pessoa acredita, e assim por diante, são
todos fatos não-epistêmicos. Os fatos epistêmicos avaliativos dependem destes outros fa-
tos. Logo, se uma crença está justificada e outra não está, deve haver alguma diferença
não-avaliativa entre as duas crenças que de conta dessa diferença avaliativa. Esta idéia po-
de ser sumariada no seguinte princípio da superveniência epistêmica:

Necessariamente, se duas crenças têm as mesmas propriedades não-epistêmicas,


então elas têm as mesmas propriedades epistêmicas. (Se duas crenças são exatamente i-
guais não-epistemicamente, então, ou ambas estão justificadas ou ambas não estão justifi-
cadas, ou elas estão justificadas no mesmo grau.)

Os defensores de todas as teorias da justificação que serão considerados neste e no


próximo capítulos concordam com esta tese. A diferença entre as várias teorias se refere a
que propriedades determinam o status epistêmico, ou quais fatos descritivos fazem dife-
rença epistêmica.
54

I. EVIDENCIALISMO

A nossa questão acerca do exemplo 4.1 se referia ao que tornou Careful justificado
em crer (1), mas Hasty injustificado em crer nessa proposição. Pode parecer que a resposta
à nossa questão seja bastante simples: Careful tem boas razões, ou evidências, para crer (1)
enquanto Hasty não as tem. É a posse de evidências que é a marca de uma crença justifica-
da. Nós chamamos a isto teoria evidencialista da justificação, ou evidencialismo.
Ainda que o evidencialismo esteja correto, tal como formulado até aqui ele não é
uma teoria bem-desenvolvida. Os filósofos que concordam que a justificação seja uma
questão de se ter boas razões diferem acentuadamente acerca do que está implicado em se
ter boas razões. Há, então, mais a ser feito para desenvolver uma descrição satisfatória da
justificação. As questões se tornarão mais claras na medida em que examinarmos a idéia
mais cuidadosamente.

A. Avaliações Epistêmicas

Em um famoso ensaio, “The Ethics of Belief,” publicado em 1877, William K.


Clifford descreve o seguinte exemplo:

Exemplo 4.2 O Dono de Barco Negligente


Um dono de barco negligente decide, sem fazer quaisquer checagens cuidadosas,
que seu barco tem condições de navegabilidade. O barco lança velas, e então afunda. Mui-
tas vidas são perdidas, em larga medida porque o dono do barco acreditou que seu barco
tinha condições de navegabilidade sem se importar em checar isto.2

Clifford tira uma conclusão dura sobre este dono de barco. E elaborando este e-
xemplo e alguns outros, ele formula uma conclusão geral que merece um exame. Essa con-
clusão é a tese de Clifford, (C):

2
W. K. Clifford, “The Ethics of Belief”, impresso originalmente na Contemporary Review (1877), reim-
presso em Lectures and Essays de Clifford (London:MacMillan, 1879).
55

C. É errado sempre, em qualquer lugar, e para qualquer um, crer em qualquer coisa
a partir de evidência insuficiente.3

Há questões óbvias para fazermos a respeito, mais notadamente, “O que conta co-
mo uma evidência insuficiente?” Nós podemos contornar esta questão por enquanto, assu-
mindo apenas o seguinte: se uma pessoa tem mais e melhor evidência para a conclusão de
que a proposição p seja falsa do que para a conclusão de que a proposição p seja verdadei-
ra, então essa pessoa tem evidência insuficiente para crer que p seja verdadeira. Talvez
Clifford pense que ter evidência suficiente requeira ainda mais, alguma coisa como uma
evidência muito forte. Mas nós podemos colocar uma questão referente a (C) usando essa
condição mais fraca. Ao discutir e defender (C), Clifford escreve:

Não é apenas o líder de homens, o estadista, o filósofo, ou o poeta, que


têm esse dever imperioso para com a humanidade. Qualquer camponês que apre-
sente suas lentas e raras sentenças no bar de sua vila, pode ajudar a matar ou a
manter vivas as superstições fatais que amarram sua raça. Qualquer esposa dili-
gente de um artesão pode transmitir às suas crianças crenças que podem manter a
sociedade unida ou fazê-la em pedaços. Nenhuma simplicidade de espírito pode
escapar ao dever universal de questionarmos tudo aquilo em que acreditamos.4

Sua idéia é que, ao crer a partir de evidência insuficiente, ajuda-se a manter vivas
as “superstições fatais” e que, ao fracassar em seguir as evidências que se tem, a sociedade
é dividida (“feita em pedaços”). Embora as alegações de Clifford possam parecer um tanto
extremas, talvez haja algum mérito em sua tese.
Alguns críticos podem objetar a tese de Clifford com base em que uma pequena
quantidade de evidência, especialmente nos casos em que uma decisão deve ser tomada
rapidamente, pode tornar a crença aceitável. Eis aqui um exemplo projetado para ilustrar o
ponto.

Exemplo 4.3: Dores no Peito


Você está pronto para sair de férias. Pouco antes da hora da partida, você sente al-
gumas leves dores no peito. Você sabe que tais dores estão tipicamente associadas com in-
digestão, mas elas podem ser sinais de problemas cardíacos. Preocupado com que possa ser
um problema sério, você chama seu médico.

3
“The Ethics of Belief”, p. 183.
4
“The Ethics of Belief”, p. 180.
56

Esta é uma ação sensata. Ainda assim, a evidência que você tem é bastante fraca.
Você não tem evidência para acreditar que possa ter um problema médico sério. Por isso,
pode-se concluir que a tese de Clifford está errada. Algumas vezes uma pequena evidência
é boa o suficiente.
Clifford tem uma boa resposta para esta objeção. (C) não é uma tese sobre o quanto
é errado agir. Ela é uma tese sobre o quanto é errado ter uma crença. Assim, se este exem-
plo causa algum problema para (C), o exemplo deve ser um no qual ter uma crença não é
errado, ainda que não se tenha evidência suficiente para ela. Se a situação é como aquela
recém descrita, seria errado concluir que você tenha problemas cardíacos (se os sintomas
descritos forem as únicas razões que você tem para pensar isto). Você está absurdamente
indo muito além da sua evidência se acredita nisso. Mas você tem evidência suficiente para
acreditar numa proposição diferente, a saber, que existe uma possibilidade de que você te-
nha problemas cardíacos. Além do mais, esta crença proporciona uma boa razão para to-
mar uma ação preventiva. Não há nada de errado com esta crença ou com a ação embasada
nela. Assim, distinguir uma crença da ação relacionada com ela, e distinguir a proposição
de que existe uma chance de que você tenha problemas cardíacos da proposição de que vo-
cê tem problemas cardíacos, proporciona tudo o que é necessário para escapar desta obje-
ção.
No entanto, existem algumas outras objeções à tese de Clifford que são mais efeti-
vas.

Exemplo 4.4: O Rebatedor Otimista


Um jogador de beisebol da primeira divisão vai rebater numa situação crucial. Este
jogador é um bom rebatedor: ele acerta em cerca de um terço das vezes em que tenta reba-
ter. Ainda assim, ele erra mais freqüentemente do que acerta. Como muitos outros jogado-
res da primeira divisão, ele é extremamente confiante: a cada vez que ele vai rebater ele
acredita que vai acertar. Este tipo de confiança, podemos supor, é de auxílio. Os jogadores
se dão melhor quanto estão confiantes (acreditam que terão sucesso) e se dão mal quando
perdem sua confiança.
57

Os detalhes do exemplo 4.4 sugerem que não é errado para o rebatedor acreditar
que ele acertará. De fato, parece muito melhor para ele acreditar nisto. Ainda assim, ele
não tem “evidência suficiente” para a proposição de que ele acertará.

Exemplo 4.5: A Recuperação


Uma pessoa tem uma doença séria, da qual poucas pessoas se recuperam. Mas esta
pessoa não está disposta a se entregar à sua doença. Ela está segura de que ela será um dos
afortunados. E a confiança ajuda: Aqueles que são otimistas tendem a se dar um pouco me-
lhor, ainda que, desafortunadamente, a maioria deles tampouco se recupere.

A tese de Clifford diz que é errado para o paciente acreditar que ele irá se recupe-
rar. E este juízo pare ser muito cruel. Imagine criticar o esperançoso paciente, alegando
que ele está errado em ser otimista. Se o otimismo ajuda, é difícil pensar que seja errado
que ele esteja otimista.
Estes exemplos parecem mostrar que há casos nos quais não é errado acreditar em
alguma coisa, ainda que não se tenha boa evidência para ela. Ainda assim, Clifford pode
estar certo em pensar que todo caso de crença a partir de evidência insuficiente tenha uma
característica ruim: ela corre o risco de encorajar maus hábitos de pensamento. Entretanto,
(C) depende da idéia de que este fato sempre supera outras considerações. Os exemplos
recém considerados foram projetados para mostrar o contrário. Algumas vezes o benefício
de se acreditar a partir de evidência insuficiente supera os danos potenciais.
Você pode estar em dúvida sobre estes casos. Por um lado, a performance anterior
sugere que o rebatedor do exemplo 4.4 não irá acertar. Isto parece indicar que há alguma
coisa de errada com a crença de que ele irá acertar desta vez. Por outro lado, o fato de que
acreditar que ele irá acertar tende a melhorar sua performance sugere que para ele não é
errado pensar que irá acertar. Afinal de contas, esta crença ajuda sua performance, da
mesma forma como o faz a concentração, o manejo correto do taco, e, talvez, coçar-se e
cuspir. Considerações semelhantes se aplicam ao exemplo 4.5. As estatísticas sobre a recu-
peração da doença sugerem que há alguma coisa errada com a crença de que o paciente se
recuperará. A crença “ignora os fatos”. Ainda assim, esta é a melhor chance dele se recupe-
rar. Como nós podemos condenar uma pessoa por tentar?
Uma boa maneira de resolver estes aparentes conflitos é dizer que há duas (ou
mais) noções diferentes de incorreção sob consideração aqui. Uma noção se refere à mora-
58

lidade (ou à prudência, ou ao auto-interesse). A outra é mais intelectual ou epistemológica.


Uma coisa plausível de se dizer é que nestes exemplos as crenças estão moralmente corre-
tas mas epistemicamente incorretas. Nós não precisamos entrar em qualquer discussão de-
talhada a respeito da moralidade aqui. Será suficiente dizer que, tipicamente, o comporta-
mento é imoral quando ele tem efeitos ruins sobre os outros (ou sobre si mesmo) e não há
benefício compensatório. Acreditar a partir de evidência insuficiente pode ter os efeitos
ruins que Clifford observa. No entanto, nos exemplos 4.4 e 4.5 há evidentes ganhos com-
pensatórios. A tese de Clifford é completamente geral. Ele diz que “em todo lugar e sem-
pre” é errado crer a partir de evidência insuficiente. Se a tese de Clifford é sobre moralida-
de, como ela parece ser, então ela é incorreta. Simplesmente não é imoral ter crenças oti-
mistas e benéficas nessas circunstâncias. Logo, é provável que Clifford tenha ido longe
demais ao afirmar (C) de um modo geral. Algumas vezes não é moralmente errado crer a
partir de evidência insuficiente.
No entanto, pensar sobre estes exemplos e a tese de Clifford pode nos ajudar a en-
focar as questões epistemológicas mais centrais. Suponha que uma pessoa interessada uni-
camente em alcançar a verdade estivesse na posição das pessoas de nossos exemplos ou
estivesse formando uma crença sobre aquelas pessoas embasada exatamente na evidência
que elas têm. Uma tal pessoa iria colocar de lado preocupações de auto-interesse tais como
ganhar o jogo ou se recuperar de uma doença. (Você pode pensar numa pessoa que está
fazendo apostas nos resultados e está interessada apenas em ganhar as apostas.) Essa pes-
soa iria estar interessada apenas no que de fato é verdadeiro. O que essa pessoa iria acredi-
tar nessa situação? É claro que um tal crente desinteressado não acreditaria que o rebatedor
acertará ou que o paciente se recuperará. Você pode destacar este ponto dizendo que, nes-
tas situações, com a evidência tal como foi descrita, haveria algo de errado em crer nestas
coisas. Mas este não é um problema moral. É um problema de racionalidade ou de razoabi-
lidade. Em outras palavras, é epistemicamente errado acreditar nestas coisas nas situações
descritas.
A idéia chave a se tirar disto é que nós podemos avaliar as crenças de duas manei-
ras. Nós podemos avaliá-las moralmente5 – Elas são benéficas? Elas causam algum dano
significativo? Nos dois exemplos, as crenças são benéficas (quando sustentadas pelo reba-

5
Uma tese comum é a de que somente o comportamento voluntário é o tema apropriado para a avaliação
moral. Não é claro que a crença seja freqüentemente, ou sequer alguma vez, uma atividade voluntária. Assim,
há alguma dúvida sobre se a crença é freqüentemente, ou sequer alguma vez, um tema apropriado para a ava-
59

tedor ou pelo paciente). Elas ganham, portanto, uma avaliação moral favorável. Nós pode-
mos também avaliar as crenças epistemicamente. No ponto de vista sobre a epistemologia
em discussão aqui, isto é determinado pela questão de se elas vão contra a evidência. Se
Clifford tivesse dito que é epistemicamente errado crer a partir de evidência insuficiente,
ele teria afirmado um ponto de vista que muitos filósofos tomam como correto. Mas sua
alegação sobre a moralidade está equivocada.
A discussão de Clifford nos ajuda a enfocar a noção de alguma coisa ser epistemi-
camente errada. É sobre esta avaliação que trata a condição de justificação da ATC. Uma
crença epistemicamente justificada é uma crença que é avaliada favoravelmente de um
ponto de vista epistemológico, não importa qual seja o seu status moral ou prudencial.

B. Formulando o Evidencialismo

A idéia central do evidencialismo pode ser estabelecida desde o seguinte princípio


evidencialista da justificação

EJ. Crer p está justificado para S sse a evidência de S em t sustenta p.

Uma versão de (EJ) que cobre outras atitudes também é possível. Ela diz que a ati-
tude justificada – a crença, a descrença ou a suspensão do juízo – é aquela que se encaixa
na evidência. Uma teoria evidencialista completamente desenvolvida diria alguma coisa
sobre aquilo em que consiste a evidência de uma pessoa e sobre o que é para essa evidên-
cia sustentar uma crença em particular.
Em geral, os evidencialistas dirão que a evidência que a pessoa tem num dado mo-
mento consiste em toda a informação de que a pessoa dispõe naquele momento. Isto inclui-
rá as lembranças que a pessoa tem e as outras crenças justificadas que ela tem. Quando os
evidencialistas falam de uma pessoa “tendo evidência,” eles não querem dizer a mesma
coisa que uma pessoa discutindo questões legais pode querer dizer com a mesma expres-
são. Suponha que um certo documento seja um item crucial num caso. Você tem essa coisa
entre suas posses, mas você não sabe sobre ela. No sentido legal de “ter evidência,” você
pode ter a evidência relevante. Mas no sentido pretendido aqui, ela, e os fatos sobre ela,

liação moral. Se ela não o é, então há uma objeção adicional para a tese de Clifford. Grosso modo, a alegação
é a de que crer desde evidência insuficiente não é moralmente errado porque crer não é uma ação voluntária.
60

não são parte da sua evidência. A evidência que você tem consiste na informação que está
disponível, em um sentido difícil-de-especificar, para o seu uso. A idéia chave, então, é
que a evidência que uma pessoa tem consiste nos dados que a pessoa dispõe para formar
crenças, não no itens que a pessoa fisicamente possui.
Para ser verdade que a evidência de uma pessoa sustenta uma proposição, deve o-
correr que a evidência total da pessoa, ao ser avaliada, sustente essa proposição. É possível
ter alguma evidência que sustente uma proposição e alguma evidência que sustente a nega-
ção dessa proposição. Se estes dois corpos de evidência têm o mesmo peso, e a pessoa não
tem outra evidência relevante, então a evidência total da pessoa é neutra e a suspensão de
juízo sobre a proposição é a atitude justificada. Se uma porção da evidência é mais forte do
que a outra, então a atitude correspondente é aquela justificada. Em todos os casos, é a evi-
dência total que determina qual a atitude é a justificada. Chame a isto de condição de evi-
dência total.
Há uma distinção, até agora não mencionada, que é importante para o evidencia-
lismo. Uma analogia com a ética tornará clara a distinção. Uma pessoa pode fazer a coisa
eticamente correta pelas razões erradas. Por exemplo, suponha que uma pessoa rica seja
solicitada a dar algum dinheiro para a caridade e concorde em transferir os fundos eletroni-
camente. A instituição de caridade dá a ela o número da conta de modo a que ela possa
transferir o dinheiro. Armado com esta informação, a pessoa decide pegar dinheiro da ins-
tituição de caridade ao invés de dar dinheiro a ela. Entretanto, por engano ela aperta o bo-
tão errado e transfere dinheiro para a instituição de caridade. Ela faz a coisa certa, mas a
faz por engano. Sua ação é correta, mas não é “bem intencionada” ou “bem motivada.” Ela
é condenável por seu caráter e suas motivações, ainda que tenha feito a coisa certa.
Há um análogo epistemológico deste exemplo. Suponha que você tenha boas razões
para crer em alguma coisa e você crê nela. No entanto, você acredita nela, não com base
naquelas boas razões, mas por causa de uma predição astrológica ou como resultado de er-
ro lógico. Você acredita na coisa certa pelas razões erradas. Em tais casos, acreditar nessa
proposição de fato está de acordo com a sua evidência e, assim, de acordo com (EJ), crer é
a atitude justificada. Mas ela é uma crença epistemicamente “má.” Você não está agindo
corretamente, falando epistemicamente, ao manter essa crença.
Estes exemplos mostram que existem duas idéias relacionadas de justificação que
nós precisamos distinguir. Uma está apropriadamente formulada em (EJ). É o análogo e-
61

pistêmico da ação que de fato é boa, i.e., a melhor coisa a fazer, dada a situação. Há muitas
maneiras diferentes de expressar esta idéia:

S está justificado em crer p.


Crer p é justificado para S.
S tem uma justificação para crer p.

Nada disto implica em que S de fato creia p. Elas implicam apenas que S tem o que
é necessário para tornar a crença em p apropriada epistemicamente.
O segundo tipo de justificação é o análogo epistemológico da idéia de fazer a coisa
certa pelas razões certas. Esta é a idéia de uma crença “bem-formada” ou “bem-fundada.”
Nós expressamos tipicamente esta idéia dizendo coisas tais como

A crença de S em p está justificada.


A crença de S em p está bem fundada.
S crê justificadamente p.

As sentenças destas formas implicam que S creia p e que S o faz pelas razões cer-
tas. Eis aqui uma formulação mais precisa deste conceito:

CJ. A crença de S de que p no momento t está justificada (bem fundada) sse (i) crer
p está justificado para S em t; (ii) S crê p na base de evidência que sustenta p.6

A cláusula (ii) de (CJ) pretende capturar a idéia de crer com base em razões certas.
Chame a isto de condição embasadora. Uma versão generalizada de (CJ) aplicada à des-
crença e à suspensão de juízo também poderia ser desenvolvida.
O evidencialismo afirma tanto (EJ) quanto (CJ). Ele sustenta que a atitude justifi-
cada em relação a uma proposição para uma pessoa em qualquer momento é a atitude que
corresponde à evidência total da pessoa naquele momento. E uma crença (ou uma outra

6
Há detalhes sobre isso que precisam ser elaborados. Presumivelmente, uma pessoa não acredita em algo
com base em todas as suas outras crenças. Assim, a idéia na cláusula (ii) é que a pessoa embasa sua crença na
parte da evidência que realmente sustenta a crença. A cláusula (i) requer que a condição de evidência total
seja satisfeita. Para mais discussões disto e do evidencialismo em geral, veja Earl Conee e Richard Feldman,
Evidentialism (Oxford University Press).
62

atitude) está de fato justificada (bem-fundada) dado que ela corresponda à evidência da
pessoa e que a crença seja mantida com base em evidência que realmente a sustente.

C. Duas Objeções ao Evidencialismo

C1. Objeção 1: Irresponsabilidade Epistêmica


Exemplo 4.6: A hora do filme
Um professor e a sua esposa estão indo ao cinema ver Star Wars, Episódio 68. O
professor tem em suas mão o jornal do dia, o qual contém a lista dos filmes em cartaz e
seus horários. Ele lembra que o jornal de ontem dizia que Star Wars, Episódio 68 estaria
passando às 8:00 horas. Sabendo que os filmes usualmente são exibidos no mesmo horário
todos os dias, ele crê que o filme será exibido hoje também às 8:00 horas. Ele não olha no
jornal de hoje. Quando eles chegam ao cinema, descobrem que o filme começou às 7:30
horas. Quando eles reclamam na bilheteria sobre a mudança, é dito a eles que a hora certa
estava indicada no jornal de hoje. A esposa do professor diz que ele deveria ter olhado no
jornal de hoje e que ele não estava justificado em pensar que o filme começaria às 8:00 ho-
ras.

Este exemplo é projetado para ser um contra-exemplo tanto para (EJ) quanto para
(CJ). Restringiremos a nossa discussão a (CJ), mas as questões destacadas poderiam facil-
mente ser revisadas para ser aplicadas a (EJ). Uma vez que o professor foi desleixado ao
não olhar o jornal de hoje, ele perdeu alguma evidência sobre quando o filme começaria.
Como resultado, é verdade que

2. Acreditar que o filme começaria às 8:00 horas corresponde à evidência que o


professor efetivamente tinha (quando ele estava dirigindo para o cinema), e ele baseou sua
crença nesta evidência.

Dado (2), (CJ) tem o resultado de que sua crença estava justificada (bem fundada).
No entanto, os críticos do evidencialismo (e a esposa do professor) dizem que
63

3. A crença do professor de que o filme começaria às 8:00 horas não estava justifi-
cada (porque ele deveria ter olhado o jornal e, desse modo, obtido mais evidência, a qual
não teria sustentado essa crença.)

Assim, (CJ) está errada, uma vez que ela implica que esta crença está justificada.
Este exemplo depende de um princípio de acordo com o qual a justificação depende
em parte de evidência que se deveria ter conseguido. Chame a isto de Principio Consiga a
Evidência (PCE):

PCE: Se a evidência corrente de S sustenta p, mas S deveria ter conseguido evidên-


cia adicional, e esta evidência adicional não sustentaria p, então a crença de S em p não
está justificada.

O (PCE) pode parecer sensato, e é fácil ver porque os críticos do evidencialismo


poderiam ser persuadidos pelos exemplos, tais como o exemplo 4.6, que apelam para ele.
Aplicado a este exemplo o (PCE) implica que a crença do professor não estava justificada
uma vez que ele tinha evidência prontamente disponível, e ele deveria ter olhado para esta
evidência, e esta evidência adicional não sustentaria sua crença sobre o horário do filme.7
No entanto, os evidencialistas têm uma boa resposta para esta objeção. Nós deverí-
amos distinguir a justificação epistêmica de outras questões. A questão relevante para o
evidencialismo, e para as teorias da justificação epistêmica de um modo geral, é “O que S
deveria crer agora, dada a situação na qual ele de fato está?” Aplique esta questão ao e-
xemplo 4.6. Enquanto o professor está dirigindo para o cinema, seria inteiramente irracio-
nal para ele fazer qualquer coisa além de crer que o filme começa às 8:00 horas. Afinal de
contas, ele sabe que o filme começou às 8:00 horas ontem e que os cinemas usualmente
exibem os filmes no mesmo horário todas as noites. Ele não tem razão alguma para pensar
que o filme começa em qualquer outro horário que não às 8:00 horas. Seria inteiramente
irracional para ele crer que o filme começa às 7:30 horas. Assim, dada a situação na qual
ele efetivamente está, esta é a atitude justificada. O evidencialismo produz exatamente o
resultado correto neste caso.

7
Poder-se-ia pensar que sua crença não estaria justificada mesmo se a evidência que ele não considerasse de
fato sustentasse a sua crença. Mais geralmente, pode-se pensar que a expressão “e esta evidência não susten-
taria p” poderia ser retirada de (PCE). A discussão que se segue iria aplicar-se igualmente bem a essa versão
modificada de (PCE).
64

É importante distinguir algumas questões relacionadas. Esta recém discutida tem a


ver com o que é razoável crer dada a situação na qual efetivamente se está. Outras questões
têm a ver com se se deveria conseguir mais evidência (ou se colocar numa situação dife-
rente). Suponha que seja verdade que o professor deveria ter olhado o jornal de hoje. Ele se
confundiu e não fez isso. Ainda assim, a questão se mantém, a saber, dado que ele foi ne-
gligente e não fez o que deveria ter feito, o que é mais razoável para ele acreditar? A res-
posta é que é mais razoável para ele acreditar que o filme começa às 8:00 horas. De manei-
ra geral, é mais razoável crer no que é sustentado pela evidência que se dispõe. Uma vez
que não se sabe o que a evidência que não se tem iria sustentar, seria irracional ser guiado
por essa evidência. Assim, o (PCE) está equivocado. Mesmo que se devesse conseguir
mais evidência, a coisa a se fazer em qualquer dado momento é ser guiado pela evidência
que se tem.
No exemplo, talvez tivesse sido uma boa idéia olhar o jornal do dia. No entanto, an-
tes de tirar essa conclusão vale a pena observar que é quase sempre possível ser mais cui-
dadoso e procurar por mais evidência. O professor tinha uma boa razão para pensar que o
filme começaria às 8:00 horas e para acreditar que o jornal diria isto. Vendo retrospectiva-
mente, é fácil criticá-lo. Porém, se ele devesse ter checado o jornal de hoje, então talvez ele
devesse ter checado também os horários dos filmes on-line, ou devesse ter ligado para o
cinema para confirmar o que o jornal dissera. Talvez ele devesse ter ligado uma segunda
vez para que alguém confirmasse o que lhe fora dito na gravação ouvida durante a primeira
chamada. Checagens adicionais são sempre possíveis. Dependendo da seriedade da situa-
ção, da probabilidade de que novas informações sejam úteis, e de outros fatores, é às vezes
de seu interesse fazer alguma checagem adicional. No entanto, seguramente não é sempre
sensato ficar checando. Mas tudo isto é independente da razoabilidade de crer no que ele
crê dada a situação na qual ele efetivamente se encontrava.

C2. Objeção : Lealdade


Exemplo 4.7: A Acusação
Um bom amigo é acusado de um crime, e você está ciente de alguma evidência in-
criminadora. Você também conhece bem o seu amigo e tem evidência de que seu caráter
não permitiria que ele cometesse um tal crime. Seu amigo está terrivelmente perturbado
pelas acusações levantadas contra ele, e ele pede auxílio a você. Por lealdade a seu amigo,
e dada a qualidade mista da sua evidência, você crê que seu amigo não é culpado.
65

Esta é uma reação louvável. Ela mostra lealdade em relação a um amigo em difi-
culdades. Pode-se ser tentado a dizer que crer que seu amigo não é culpado está justificado,
ainda que sua evidência não sustente essa crença. É plausível, talvez, dizer que as questões
de lealdade e amizade têm precedência aqui, e que é melhor para você ir contra a evidência
neste caso. Isto pode parecer ser um problema para o evidencialismo, uma vez que o evi-
dencialismo diz que a evidência sozinha determina o que está justificado. Ele desconsidera
inteiramente as considerações de lealdade, de amizade, e outras do mesmo tipo. Isto, você
pode pensar, é um equívoco.
A resposta evidencialista aponta para um ponto discutido antes neste capítulo. A
epistemologia de modo geral, e o evidencialismo em particular, tratam da natureza da
crença racional. Elas não levantam questões sobre a moralidade. A atitude racional neste
caso é, como o evidencialismo afirma, suspender o juízo, ou talvez crer que seu amigo seja
culpado. Este pode ser um caso no qual uma pessoa moralmente boa irá colocar a raciona-
lidade de lado. Mas essa é uma outra questão. Os fatos não colocam em dúvida o veredicto
do evidencialismo sobre qual seja a atitude epistemicamente racional neste exemplo.8
Logo, o evidencialismo é capaz de resistir a estas objeções iniciais. Ainda restam
questões difíceis. Lembre da lista de coisas que a Perspectiva Standard diz que nós conhe-
cemos. Existem questões difíceis sobre qual seja exatamente a nossa evidência para estas
coisas e como essa evidência chega a proporcionar sustentação para as nossas crenças. Nos
voltaremos em seguida para alguns pontos de vista sobre como estas coisas funcionam. Es-
tas não são alternativas ao evidencialismo. Elas são, ao invés, maneiras pelas quais os deta-
lhes do evidencialismo poderiam ser formulados. Nós usaremos um dos mais famosos ar-
gumentos da história da filosofia como um caminho para começar a discussão destas ques-
tões: o Argumento do Regresso Infinito.

II. O ARGUMENTO DO REGRESSO INFINITO

Enunciados do Argumento do Regresso Infinito são muito antigos – alguns o atri-


buem a Sexto Empírico (século III), outros a Aristóteles (IV A.C.). O argumento começa
com a observação de que o que torna uma crença justificada, ao menos num caso típico,
66

são outras crenças ou razões. Isto parece ser simplesmente um enunciado do próprio evi-
dencialismo. Mas se você pensar sobre isto por um momento, notará que um problema apa-
rece. Se uma crença está embasada em determinadas razões, mas tais razões não têm elas
próprias uma base, então parece que o que depender de tais razões não estará melhor justi-
ficado do que uma crença para a qual não se têm quaisquer razões. Por exemplo, se, como
no exemplo 4.1, Hasty inventasse do nada uma história completa sobre como Filcher rou-
bou a pintura, ele poderia ser capaz de citar esta história como a sua “razão” para crer (1).
Mas se ele não tiver qualquer boa razão para crer na história que sustenta a sua crença, en-
tão, ao final, ele não tem nenhuma boa razão para crer (1). Em resumo, se a sua crença es-
tiver justificada, parece que você precisa de razões para as suas razões. E isto parece ser
um problema. Há um regresso que ameaça: você precisa de razões para suas razões, e pre-
cisa de razões para aquelas razões, e assim por diante. Mas não parece que qualquer um de
nós disponha jamais desse suprimento sem-fim de razões.
O problema recém colocado tem tido um papel central na epistemologia, tanto por-
que ele foi influente historicamente quanto porque ele é útil para organizar as teorias com
base em como elas respondem a ele. Alguma terminologia será de ajuda na discussão que
segue. Parece que, por uma questão de lógica, existem duas possibilidades a propósito das
crenças justificadas: ou toda crença justificada está justificada porque ela é sustentada por
algumas outras crenças, ou então existem algumas crenças justificadas que não dependem
de outras crenças. Crenças do último tipo são ditas serem crenças básicas justificadas. Ou-
tros termos para a mesma categoria são crenças imediatamente justificadas e crenças não-
inferencialmente justificadas. Nós podemos formular isto como uma definição formal:

BJ. B é uma crença básica justificada = df. B é justificada, mas não é justificada
com base em qualquer outra crença.

Crenças não-básicas justificadas (crenças mediatamente justificadas, crenças infe-


rencialmente justificadas) então, são crenças justificadas com base em outras crenças.
Outra idéia útil é a de uma cadeia de razões ou de uma cadeia de evidências. Esta é
uma seqüência estruturada de crenças, cada uma das quais é justificada por suas predeces-
soras. É importante observar que uma cadeia de evidências não precisa ter apenas uma úni-
ca proposição em cada ligação ou nível. Por exemplo, ao traçar a cadeia de evidências as-

8
Ao responder a esta objeção ao evidencialismo, nós também nos remetemos à questão (Q3) do capítulo 1.
67

sociada com a crença de Careful em (1), nós podemos ter os fatos sobre as impressões digi-
tais e a posse das pinturas como razões para (1). Haverá razões adicionais para cada uma
destas, talvez envolvendo os resultados dos testes das impressões digitais e coisas do gêne-
ro.
Parece haver um número limitado de maneiras pelas quais as cadeias de evidências
podem ser estruturadas. Uma possibilidade é que elas sejam infinitamente longas – para
cada passo existe uma razão anterior. Outra possibilidade é que elas dêem voltas ou façam
círculos – se você rastrear as razões de uma crença, eventualmente encontrará de novo essa
mesma crença. Outra possibilidade é que as cadeias de evidências tenham de fato um co-
meço. No começo de qualquer cadeia de evidências estão as crenças básicas justificadas.
Uma possibilidade final é que as cadeias de evidências sejam rastreadas até crenças que
simplesmente não estejam justificadas.
Este é um conjunto intrigante de opções. Nenhuma delas parece inteiramente satis-
fatória. Como poderia haver uma série infinita de crenças justificadas? Como poderia uma
crença ser justificada se ela remonta a si mesma? Esse parece um raciocínio circular fla-
grantemente objetável. Como poderia uma crença ser justificada sem a sustentação de ou-
tras crenças – como poderiam existir crenças básicas justificadas? Como as crenças poderi-
am ser justificadas se elas remontam a crenças que não são elas próprias justificadas?
Qualquer descrição das cadeias de evidências parece pouco prometedora.
Nós podemos formular estas considerações em um argumento preciso. O principal
valor de formular este argumento é que ele explicita uma variedade de idéias e de suposi-
ções envolvidas nas considerações recém desenvolvidas. Além do mais, as teorias sobre a
justificação podem ser adequadamente agrupadas de acordo com a maneira como elas res-
pondem a este argumento.

Argumento 4.1: O Argumento do Regresso Infinito


1-1. Ou existem crenças básicas justificadas ou toda crença justificada tem uma ca-
deia de evidências que ou
(a) termina em uma crença injustificada
(b) é um regresso infinito de crenças
(c) é circular
68

1-2. Porém, as crenças embasadas em crenças injustificadas não são elas próprias
justificadas, e assim nenhuma crença justificada poderia ter uma cadeia de evidências que
terminasse em uma crença injustificada (isto é, não (a)).
1-3. Nenhuma pessoa poderia ter uma série infinita de crenças, e assim nenhuma
crença justificada poderia ter uma cadeia de evidências que fosse um regresso infinito de
crenças (isto é, não (b)).
1-4. Nenhuma crença poderia ser justificada por ela mesma, e assim nenhuma cren-
ça justificada poderia ter uma cadeia de evidências que fosse circular (isto é, não (c)).
1-5. Existem crenças básicas justificadas (1-1) – (1-5).

Este argumento é válido. Isto é, se as premissas do argumento são corretas, então a


conclusão também deve estar correta. Se o argumento está de algum modo errado, então
ele deve ter uma premissa falsa. Logo, nós precisamos aceitar a conclusão de que existem
crenças básicas justificadas, ou então rejeitar uma das premissas. As teorias em epistemo-
logia podem ser classificadas em parte pelo que elas dizem sobre este argumento:

Fundacionismo: O argumento é sólido. Existem crenças básicas justificadas, e elas


são o fundamento sobre o qual todas as outras crenças justificadas repousam.

Coerentismo: O argumento erra na premissa (1-4). A justificação para uma propo-


sição pode ser uma outra proposição, a qual é ela própria justificada por ainda outras. De
forma geral, a crença de uma pessoa está justificada quando ela se encaixa com as outras
crenças da pessoa de uma maneira coerente. Logo, uma crença é justificada pelo sistema
inteiro do qual ela é parte. Por isso, uma crença é parcialmente justificada por ela mesma, e
(1-4) é falsa.

Ceticismo: Uma vez que nem o fundacionismo e nem o coerentismo são plausíveis,
e não há nada de errado com o argumento, ele deve estar errado desde o início ao assumir
que existam crenças justificadas. Não podem existir quaisquer crenças justificadas.

Outras respostas ao argumento são possíveis. Alguns filósofos têm dito que as ca-
deias de evidências terminam em crenças que não são justificadas, e assim eles rejeitam (1-
69

2). Outros têm dito que cadeias infinitas de razões são possíveis. E assim, eles rejeitam (1-
3). Nós não consideraremos tais pontos de vista aqui.
Por muito tempo, o fundacionismo foi a perspectiva predominante e a questão cen-
tral foi se os fundacionistas dispunham de alguma maneira plausível de defender o seu
ponto de vista contra o ceticismo. Boa parte deste trabalho envolveu esclarecer quais eram
exatamente as implicações do fundacionismo – explicar exatamente que tipo de coisa seria
uma crença básica. Em anos mais recentes, muitos filósofos tem rejeitado o fundacionismo
e alguns aceitaram o coerentismo. O fundacionismo e o coerentismo são o foco do restante
deste capítulo.

III. O FUNDACIONISMO CARTESIANO

O fundacionismo envolve duas alegações fundamentais:

F1. Existem crenças básicas justificadas


F2. Todas as crenças não-básicas justificadas são justificadas em virtude de sua re-
lação com as crenças básicas justificadas.

Estas afirmações colocam as seguintes questões aos fundacionistas:

QF1. Sobre que tipos de coisas tratam as nossas crenças básicas justificadas? Quais
crenças são justificadas e básicas?
QF2. Como são justificadas essas crenças básicas? Se elas não são justificadas por
outras crenças, como elas se tornam justificadas?
QF3. Que tipo de conexão uma crença não-básica deve ter com as crenças básicas a
fim de estar justificada?

Diferentes versões do fundacionismo podem ser identificadas por suas respostas a


estes questões.

A. A Idéia Principal do Fundacionismo Cartesiano


70

René Descartes foi um filósofo do século XVII extremamente influente. Ele é bas-
tante conhecido como um defensor de uma versão em particular do fundacionismo. No en-
tanto, é difícil extrair de seus escritos a versão do fundacionismo freqüentemente atribuída
a ele.9 Chamaremos o ponto de vista a ser discutido de fundacionismo cartesiano, e em al-
guns lugares introduziremos aspectos deste ponto de vista dizendo “O ponto de vista carte-
siano é ...”, ainda que seja improvável que Descartes de fato concordasse com todos os as-
pectos do ponto de vista a ser descrito.
Os fundacionistas cartesianos respondem à (QF1) escolhendo como crenças bási-
cas as crenças sobre os nossos próprios estados mentais. As proposições que descrevem o
que alguém parece ver, o que alguém pensa, o que alguém sente, etc. são básicas. Descar-
tes parece ter pensado que as crenças básicas fossem crenças em algum sentido indubitá-
veis ou livres de toda possibilidade de erro. Ele observou que a sua própria crença de que
você existe não pode estar errada, e isto pareceu colocá-la na classe das crenças básicas. O
restante do que nós sabemos, de acordo com o fundacionismo cartesiano, é o que nós po-
demos deduzir das nossas crenças básicas. Assim, se nós temos conhecimento do mundo
ao nosso redor, é porque nós podemos deduzir as coisas que nós conhecemos a partir des-
sas crenças básicas.

B. Uma Formulação Detalhada do Fundacionismo Cartesiano

É importante entender apropriadamente as crenças que Descartes conta como bási-


cas. Considere uma sentença tal como:

4. René parece ver uma árvore.

Podem não haver de fato coisas do tipo que René parece ver. (4) descreve simples-
mente como as coisas parecem para ele. As coisas podem parecer dessa maneira quando
ele realmente vê uma árvore. Mas elas também podem parecer dessa maneira em outras
circunstâncias, tais como quando ele está sonhando ou tendo uma ilusão. (4) simplesmente
descreve seu estado mental interno. Descartes pensa na sensação de dor de uma maneira

9
Provavelmente a obra mais lida de Descartes são as suas Meditations. Elas estão reimpressas em The Philo-
sophical Works of Descartes, traduzidas por Elizabeth S. Haldane e G. R. T. Ross (Cambridge, UK: Cam-
bridge, University Press, 1973).
71

análoga. Pode-se “sentir dor” mesmo quando nada esteja acontecendo com a parte do cor-
po que parece estar sendo machucada.
Em geral, então, a resposta de Descartes para (QF1) diz que as crenças básicas in-
cluem as crenças sobre os estados mentais – crenças sobre como as coisas se parecem ou
soam para você, sobre o que você parece se lembrar, etc. Estas crenças são crenças de a-
parência e os estados internos que elas descrevem são as aparências. É importante com-
preender que as crenças de aparência não estão limitadas às crenças sobre como as coisas
se parecem. Elas incluem crenças sobre como elas soam, que gosto elas têm, como elas são
sentidas e como elas cheiram. Além disso, crenças sobre o que você parece se lembrar e
talvez crenças sobre o que você mesmo acredita estão incluídas. Em geral, crenças de apa-
rência são crenças sobre os conteúdos correntes de sua própria mente.
As crenças de aparência por si mesmas não implicam nada sobre o que está no
mundo fora da própria mente de uma pessoa. Em outras palavras, por si mesmas elas não
implicam nada sobre o mundo externo. Em princípio, você poderia ter o mesmo estado in-
terno em um sonho, numa alucinação, ou com a percepção normal. Tal como os filósofos
usam a expressão mundo externo, então, ela se refere a tudo o que está fora da própria
mente de uma pessoa. Assim, as suas próprias experiências e as suas crenças sobre elas es-
tão dentro de sua mente. Tudo o mais, desde sua perspectiva, é parte do mundo externo.
Logo, as coisas nas mentes de seus amigos e vizinhos são, desde sua perspectiva, parte do
mundo externo.
Há uma distinção que vale a pena observar aqui. Você poderia tomar “Parece-me
que p” significando “Eu creio que p.” De forma semelhante, você poderia tomar (4) signi-
ficando que René acredita que ele vê uma árvore. Não é isto o que nós queremos dizer. Em
vez disso, queremos dizer que seu estado mental é o de parecer ver uma árvore. A imagem
diante de sua mente é do “tipo-árvore.” Tal como nós entendemos (4), Descartes acredita-
ria (4), e ela seria verdadeira, se ele tivesse uma imagem do tipo-árvore diante de sua men-
te que ele soubesse ter sido artificialmente induzida em algum tipo de experimento psico-
lógico. Num tal caso ele poderia dizer, “Parece-me ver uma árvore, mas não creio que eu
realmente esteja vendo uma árvore.”
Uma interpretação da resposta do fundacionismo cartesiano à (QF2) se baseia na
idéia de que as crenças básicas são crenças em proposições das quais não se pode duvidar.
Elas são ditas serem indubitáveis. Em outras palavras, as crenças básicas são crenças de
aparência das quais não se pode duvidar, ou descrer. Talvez quando uma imagem do tipo-
72

árvore esteja diante de sua mente, você não possa evitar crer que lhe pareça ver uma árvo-
re. Se esta é a idéia por detrás da resposta à (QF2), então a resposta geral parece ser que as
crenças básicas estão justificadas porque elas são crenças em proposições das quais, dadas
as circunstâncias, somos incapazes de duvidar. Mas esta não é uma boa resposta à (QF2).
A inabilidade em duvidar de uma proposição não torna epistemicamente justificada a cren-
ça nela. Isto pode, ao invés, ser o resultado de uma limitação psicológica. Suponha que
uma pessoa seja tão dependente psicologicamente do amor de sua mãe que ela não possa
duvidar de que sua mãe a ame. Isto não torna a crença epistemicamente justificada. A pes-
soa pode ter várias boas razões para acreditar no contrário, porém carecer da capacidade de
acreditar no que suas razões sustentam. Assim, a inabilidade de duvidar não torna alguma
coisa justificada e, logo, não pode explicar porque ela é uma crença básica justificada.
Há outro tema nos escritos de Descartes. Ele sugere que as crenças sobre os nossos
próprios estados internos são crenças que não poderiam estar erradas. A idéia é que se ele
acredita numa coisa tal como (4), então ele não poderia estar errado sobre isso. Ele poderia
estar errado sobre se há realmente uma árvore ali, mas não sobre se parece haver uma árvo-
re ali. De maneira geral, a idéia é a de que as crenças básicas estão justificadas porque elas
são crenças em proposições sobre as quais nós não podemos estar errados. Em outras pala-
vras, nós somos infalíveis a esse respeito. Assim, nós tomaríamos a resposta do fundacio-
nismo cartesiano à (QF2) como sendo a de que as crenças básicas estão justificadas porque
nós não podemos estar enganados.
Considere a seguir o que é comumente tomado como sendo a resposta de Descartes
à (QF3). Ele aparentemente pensou que tudo o mais que está justificado deve ser deduzido
das crenças básicas justificadas. Logo, ele sustentou que para tornar justificadas as crenças
sobre o mundo externo você deve combinar as crenças básicas de uma maneira tal que elas
garantam a verdade das crenças sobre o mundo. Uma vez que enunciados sobre como as
coisas se parecem não fornecem uma tal garantia, esta é uma tarefa difícil. A abordagem
do próprio Descartes foi a seguinte.10 Ele alegou que certas crenças elementares sobre
questões lógicas e conceituais também fossem básicas. Talvez sua idéia fosse a de que as
proposições elementares sobre estas questões fossem tais que nós simplesmente podemos
ver que elas são verdadeiras ao refletir sobre elas. Exemplos podem ser a proposição de
que qualquer coisa é idêntica a si mesma ou a proposição de que se a conjunção P e Q é
verdadeira, então P é verdadeira. Sem examinar esta questão em detalhe aqui, será sufici-
73

ente identificar esta classe de crenças básicas com as verdades elementares da lógica e a-
tribuir a Descartes o ponto de vista de que as nossas crenças nestas proposições também
são crenças básicas justificadas.
A maneira de Descartes argumentar que algumas crenças sobre o mundo externo
estão justificadas, dadas as suas respostas para (QF1), (QF2) e (QF3), foi argumentar que
as verdades elementares da lógica incluíam proposições com base nas quais ele estava apto
a provar conclusivamente que Deus existe e que Deus não iria ou não poderia ser um enga-
nador. Porém, se nossas crenças de aparências estivessem erradas, então Deus seria um en-
ganador. Usando esta conclusão combinada com suas crenças de aparência, ele derivou um
grande número de crenças sobre o mundo externo. Desta maneira, ele concluiu que nós te-
mos conhecimento de muitos fatos do mundo.
O fundacionismo cartesiano, então, é o ponto de vista caracterizado pelas três ale-
gações seguintes, as quais compreendem respostas às três questões para os fundacionistas:

FC1. Crenças sobre os próprios estados mentais de uma pessoa (crenças de aparên-
cia) e crenças sobre as verdades elementares da lógica são crenças básicas justificadas.
FC2. Crenças básicas justificadas estão justificadas porque nós não podemos estar
errados sobre elas. Nós somos “infalíveis” em tais questões.
FC3. O restante de nossas crenças justificadas (e.g., nossas crenças sobre o mundo
externo) está justificado porque elas podem ser deduzidas de nossas crenças básicas.

C. Três Objeções ao Fundacionismo Cartesiano

C1. Nós Não Somos Infalíveis Quanto Aos Nossos Próprios Estados Mentais
A combinação de (FC1) e (FC2) pode ser refutada se puder ser mostrado que nós
não somos infalíveis quanto aos nossos próprios estados mentais. O exemplo seguinte mos-
tra que há uma boa razão para pensar que podemos estar errados mesmo sobre estas ques-
tões.

Exemplo 4.8: A Frigideira


Você está caminhando em direção a um balcão com uma frigideira sobre ele. Foi
dito a você para ser cuidadoso uma vez que a frigideira está muito quente. À medida que

10
Veja Descartes, “Meditation VI” em The Philosophical Works of Descartes, pp. 185-199.
74

você se aproxima do balcão, tropeça e estica sua mão para deter a queda. Desafortunada-
mente, sua mão vai direto para a frigideira. Você imediatamente a retira, pensando:

5. Eu estou tendo agora uma sensação de extremo calor.

De fato, como você logo nota, a frigideira não está realmente quente. Você não sen-
tiu calor algum.11

É alegado que neste tipo de exemplo você acredita (5), que (5) é uma proposição
sobre o seu próprio estado mental corrente, e que (5) é falsa. Se tudo isto está correto, en-
tão você não é infalível sobre seus próprios estados mentais.
Para avaliar este exemplo, é importante ser cuidadoso sobre o que (5) diz exata-
mente. A palavra sensação é ambígua. Ela pode ser usada de maneira que implique que
exista realmente uma coisa externa que esteja sendo sentida. Ela também pode ser usada
para se referir a um estado puramente interno. De acordo com o primeiro uso, (5) é verda-
deira apenas se há de fato um contato com uma coisa muito quente. Assim entendida, (5)
não expressa o tipo de crença que os fundacionistas cartesianos alegam ser básica. Ela não
é sobre o próprio estado mental de uma pessoa. Ao invés, ela é sobre causas da experiência
corrente que são externas à mente. Nesta interpretação, (5) diz que uma coisa extremamen-
te quente está causando a atual sensação de calor.
A segunda interpretação de (5) a toma como sendo somente sobre o seu estado in-
terno. Ela diz apenas que você está sentindo uma ardência, que você sente calor. Ela nada
diz sobre alguma fonte externa desta sensação. Este é o tipo de crença que os cartesianos
têm em mente como básica. Desafortunadamente para o fundacionismo cartesiano, a obje-
ção parece funcionar quando (5) é interpretada desta segunda maneira. Poder-se-ia argu-
mentar plausivelmente que você não apenas tem a crença incorreta grosso modo equivalen-
te à “Eu toquei uma coisa muito quente.” Você equivocadamente pensa que está tendo a
sensação de ardência. Se o exemplo é possível quando entendido desta segunda maneira,
então nós realmente podemos estar equivocados sobre as nossas experiências. Isto é um
problema para o fundacionismo cartesiano. E o exemplo parece possível. O que impede as
pessoas de se equivocarem sobre suas experiências?
75

Há algumas coisas que os defensores do fundacionismo cartesiano poderiam dizer


em resposta a este exemplo.12 Por exemplo, a objeção requer que seja possível que as ex-
pectativas afetem as nossas crenças sobre nossas sensações. Isto de fato parece possível.
No entanto, pode ocorrer que as expectativas também afetem as próprias sensações. Isto é,
se este tipo de coisa fosse ocorrer, talvez a pessoa efetivamente sentisse uma sensação de
calor por um momento. Se isto é o que acontece, então a crença não seria absolutamente
falsa. Logo, aquilo em que os proponentes do exemplo confiam é que a expectativa e a an-
tecipação afetam o que você crê sobre uma sensação, mas não afeta a sensação ela mesma.
Se ela altera a sensação, então você não está se enganando acerca de seu estado interno, no
final das contas.
Ainda assim, para defender o fundacionismo cartesiano deve-se argumentar que as
expectativas devem sempre afetar, ou tanto a sensação quanto a crença, ou nenhum deles.
É difícil ver porque isto seria verdadeiro. Além do mais, um fundacionista cartesiano que
usasse esta réplica teria uma descrição bastante enigmática do que acontece no exemplo.
Há um momento de compreensão no exemplo, o ponto no qual você compreende que a fri-
gideira não está quente. Mas se você realmente está tendo uma sensação de calor quando
você pensa que está, o que é exatamente que faz a sua sensação (e a sua crença) mudar?
Por que você decide que ela está errada? Afinal de contas, a réplica diz que as coisas de
fato parecem como você pensa que elas são. O crítico do cartesianismo, em contraste, tem
uma descrição plausível do momento de compreensão. Após um momento, você compre-
ende que não se sente da maneira que pensava se sentir. Suas crenças mudam, mas não a
sua sensação. Você se equivocou sobre sua sensação.
Outro exemplo aponta para a mesma conclusão. Em um de tais exemplos, é dito a
uma pessoa que a coceira é um caso moderado de dor.13 A pessoa sente uma coceira, acre-
dita que ela está sentindo uma coceira, e infere que ela está, portanto, sentindo uma dor. No
entanto, esta conclusão é equivocada. Coceiras não são dores, e ela não está tendo uma
sensação de dor. Mais uma vez, nós não somos infalíveis a esse respeito.
Estes exemplos refutam qualquer versão do fundacionismo que implique em que
todas as crenças que uma pessoa tenha sobre as suas próprias sensações sejam verdadeiras.

11
Keith Lehrer apresenta um exemplo similar em Knowledge (Oxford: Oxford University Press, 1974), p. 96.
Ele é discutido por Louis Pojman em The Theory of Knowledge: Classical and Contemporary Readings, 2
ed. (Belmont, CA: Wadsworth, 1999), p. 187.
12
Para discussão, veja Timothy McGrew, “A Defense of Classical Foundationalism”, em Louis P. Pojman,
ed., The Theory of Knowledge: Classical and Contemporary Readings, 2 ed., pp. 224-35.
13
Veja Lehrer, Knowledge, pp. 97-99.
76

Talvez o fundacionismo cartesiano implique isto. Mas uma forma modificada da teoria, a
ser discutida mais tarde neste capítulo, evita este resultado.
Há uma razão adicional para não aceitar (FC2). É muito difícil ver porque o fato (se
é um fato) de que você não possa estar enganado sobre alguma coisa seja um fato justifica-
dor. Suponha que uma proposição não possa ser falsa. Ela é uma lei da lógica, ou talvez
uma lei da natureza, que é verdadeira. Se você acredita nessa proposição, então a sua cren-
ça não pode estar errada. Mas a sua crença poderia ser um mero palpite feliz ou o resultado
de uma série que erros que aconteceu de conduzir a uma crença verdadeira. Se você sou-
besse que não poderia estar errado, isso proporcionaria a você uma razão. Mas se você não
souber disto, não é claro porque esse fato tornaria a sua crença justificada. Assim, (FC2)
implica em que, se uma crença não pode estar errada, então ela está justificada. E isto, à
luz da reflexão, parece estar errado.
Nossa falibilidade acerca de nossos próprios estados mentais não é o único proble-
ma para o fundacionismo cartesiano. Nos voltamos agora para um segundo problema.

C2. Crença Sobre Estados Internos São Incomuns


O fundacionismo cartesiano diz que toda a justificação parte das crenças básicas
justificadas, crenças que são sobre os nossos próprios estados internos. Mas em circunstân-
cias ordinárias nós não formamos crenças sobre nossos estados internos. Quando olha ao
redor da sala, via de regra você não crê em coisas tais como “Eu pareço estar vendo algu-
ma coisa com o formato de uma cadeira ali” e então infere “Há uma cadeira ali.” Você
simplesmente crê “Há uma cadeira ali.” Considere também o exemplo com o qual nós co-
meçamos o capítulo. Nesse exemplo Careful acreditava que Filcher roubara uma pintura. O
fundacionismo consideraria estar esta crença bem fundada somente se Careful tivesse em-
basado sua crença, em última instância, sobre seus próprios estados mentais correntes. Mal
é possível imaginar Careful fazendo isto. Ele poderia formar crenças sobre os sons e ima-
gens diante de sua mente, inferir deles algumas coisas sobre a existência e a natureza de
um crime e, então, em última instância, inferir que Filcher roubou a pintura. Mas esta seria
uma cadeia de raciocínio complexa e tediosa. Dificilmente alguém alguma vez fez algo
assim.
Logo, o fundacionismo cartesiano parece estar sujeito à seguinte objeção:

Argumento 4.2: O Argumento de que As Crenças Sobre Estados Internos são Raras
77

2-1. As pessoas raramente baseiam suas crenças sobre o mundo externo em crenças
sobre seus próprios estados internos.
2-2. Se o fundacionismo cartesiano é verdadeiro, então as crenças sobre o mundo
externo estão bem fundadas somente se elas estão embasadas em crenças sobre os próprios
estados internos de uma pessoa.
2-3. Se o fundacionismo cartesiano é verdadeiro, então as pessoas raramente têm
crenças bem-fundadas sobre o mundo externo. (2-1), (2-2)
2-4. Não é verdade que as pessoas somente raramente têm crenças bem-fundadas
sobre o mundo externo. (A Perspectiva Standard)
2-5. O fundacionismo cartesiano não é verdadeiro. (2-3), (2-4)

Este é um argumento perturbador para os fundacionistas cartesianos. A premissa


(2-1) parece ser uma descrição acurada da maneira pela qual nós formamos crenças. A
premissa (2-2) é uma conseqüência clara do fundacionismo cartesiano. A premissa (2-4) é
uma conseqüência clara da Perspectiva Standard, que por enquanto nós estamos assumin-
do como verdadeira. A conclusão se segue destas premissas. Os fundacionistas cartesianos
podem defender seu ponto de vista somente se ele puderem encontrar uma maneira de re-
jeitar uma destas premissas, e (2-1) parece ser o melhor candidato. Outras versões do fun-
dacionismo podem evitar a objeção propondo uma nova resposta para (QF1). Antes de nos
voltarmos para aquelas teorias, será útil considerarmos se há alguma razão plausível para
rejeitar a premissa (2-1) deste argumento.
O que é claramente verdadeiro, e o que é oferecido para sustentar a premissa (2-1),
é a observação de que ao longo do dia nós não consideramos conscientemente proposições
sobre os conteúdos de nossas mentes. Nós não formamos conscientemente pensamentos
tais como “Agora me parece ver alguma coisa com o formato de uma cadeira” ou “Agora
me parece ouvir alguma coisa como o som de um sino.” No entanto, há razões para pen-
sarmos que em qualquer instante nós temos muito mais crenças do que aquelas que consci-
entemente consideramos nesse instante. Ao menos três categorias de tais crenças se apre-
sentam. A primeira categoria consiste em crenças que estão armazenadas na memória. Pre-
sumivelmente, você tinha um momento atrás crenças sobre o seu próprio nome, sobre
quem é o presidente, e assim por diante. Você não estava pensando sobre aquelas questões
naquele momento. Assim, as crenças armazenadas formam uma classe de crenças que exis-
tem sem serem consideradas conscientemente.
78

Uma segunda possível categoria de crenças não-conscientes é a das crenças que a-


judam a explicar o comportamento. Suponha que você caminhe por uma sala e perceba que
a luz não está ligada. Você quer ler, e assim caminha até o interruptor mais próximo e o
aciona. Se perguntado sobre o seu comportamento, você poderia dizer que queria ligar a
luz e acreditava que o interruptor controlava a luz. Esta explicação parece boa, mesmo que
você não tenha dito para si mesmo algo como “Este interruptor aciona esta luz.” Esta cren-
ça não precisa ter sido conscientemente formulada. Não obstante, você teve essa crença e
ela jogou um papel em seu comportamento.
Uma última possível categoria de crenças não-conscientes consiste em crenças que
sejam inteiramente óbvias uma vez consideradas, mesmo que você não tenha previamente
pensado sobre elas. Suponha que alguém lhe diga que George Washington nunca visitou a
Disneylândia. Você pode nunca ter pensado sobre isto antes. Mas isto dificilmente soaria
como uma novidade para você. Dado tudo o mais que você sabe, isto é óbvio. Talvez isto
sugira que você já tinha esta crença, embora não de uma maneira consciente.
Todos estes exemplos são controversos e levantam questões difíceis sobre o que é
crer em alguma coisa. Resta ver se eles podem ajudar os defensores do fundacionismo car-
tesiano. Um defensor deste aspecto do fundacionismo cartesiano, Timothy McGrew, pro-
pôs que as crenças sobre os nossos próprios estados conscientes constituam uma outra ca-
tegoria de crenças não-conscientes. McGrew diz que “a apreensão de estímulos visuais,
táteis e auditivos é freqüentemente subconsciente, mas nem por isso é irrelevante para a
justificação de crenças empíricas.”14 A idéia dele parece ser a de que nós temos uma apre-
ensão subconsciente das características de nossas experiências, que, portanto, temos cren-
ças subconscientes sobre estas características, e que estas são as crenças básicas que justi-
ficam as nossas crenças sobre o mundo externo. Se ele está certo sobre a existência destas
crenças, então a premissa (2-1) do Argumento de que As Crenças Sobre Estados Internos
são Raras é falsa.
A posição de McGrew tem algum mérito. Existem, entretanto, razões para questio-
ná-la. De início, “apreender o estímulo” é diferente de se ter crenças sobre o estímulo. Di-
zer que nós apreendemos certos estímulos é dizer que nós temos uma experiência consci-
ente daqueles estímulos. Logo, se você caminha numa sala e vê uma cadeira, então tem
uma experiência perceptiva com certas características. Você apreende certos estímulos.
Mas não se segue daí que você forme a crença de que está experimentando aqueles estímu-
79

los. Uma tal crença parece envolver algo como um monitoramento das experiências da
pessoa que nós ordinariamente não fazemos.
Além do mais, nos exemplos de crenças não-conscientes antes mencionados, ao
menos no caso típico, o crente reconhecerá as crenças se for perguntado sobre elas. Mas as
crenças de aparência não são absolutamente assim. É com freqüencia difícil fazer as pesso-
as pensarem em tais questões. Muitos estariam inclinados a dizer que não têm tais crenças
senão em circunstâncias extraordinárias em que devem considerar a possibilidade de aluci-
nações, de ilusões perceptivas e coisas do gênero. Isto lança algumas dúvidas sobre a idéia
de que as pessoas estejam, não obstante, rotineiramente formando crenças sobre estas ques-
tões.
Por fim, a descrição de McGrew torna a justificação dependente de detalhes de nos-
sos sistemas psicológicos de uma maneira peculiar. Um exemplo ilustrará isto. Suponha
que duas pessoas caminhem numa sala em que uma cadeira seja claramente visível. Ambas
olham em direção à cadeira e formam a crença de que a cadeira está presente. Por fim, su-
ponha que uma delas forma a crença subconsciente de que ele parece ver uma cadeira, en-
quanto que a outra pula esse passo e vai da experiência diretamente para a crença de que há
uma cadeira ali. A proposta de McGrew aparentemente tem o resultado de que a primeira
pessoa está justificada em crer que há uma cadeira ali, mas não a última. É difícil acreditar
que esta diferença psicológica subconsciente possa fazer diferença para a justificação.
Estas considerações não refutam definitivamente a sugestão de McGrew. Elas de-
pendem em parte de questões difíceis sobre a natureza da crença e das maneiras como nós
processamos informação. Ainda assim, elas são significantes o suficiente para tornar razo-
ável a procura por uma versão melhor do fundacionismo.

C3. A Dedução É Muito Restritiva


A objeção final ao fundacionismo cartesiano é a mais decisiva. Ela diz respeito à
(FC3), ao requisito de que crenças não-básicas justificadas sejam dedutíveis das crenças
básicas. Suponha, para os fins do argumento, que existam respostas satisfatórias para as
objeções consideradas até aqui e que (FC1) e (FC2) estejam corretas. Logo, nós estamos
assumindo para fins argumentativos que, por exemplo, quando você caminha por uma sala,
você tem um bom número de crenças justificadas sobre como as coisas parecem para você.
Nós podemos acrescentar que você tem um bom estoque de crenças justificadas sobre as

14
Timothy McGrew, “A Defense of Classical Founationalism”. A citação é da p. 230.
80

suas memórias de aparência e sobre outros aspectos de seus estados mentais correntes. Se
as suas crenças sobre o mundo externo estão justificadas, dado (FC3), você deve estar apto
a deduzir desta coleção de crenças básicas coisas tais como que há uma cadeira na sala,
que as luzes estão ligadas, e assim por diante. Aplicando as mesmas considerações ao e-
xemplo 4.1, se Careful está justificado em crer que Filcher roubou a pintura, então esta
conclusão deve ser dedutível da combinação das crenças de aparência de Careful. No en-
tanto, este requisito simplesmente não está satisfeito.
Dizer que as proposições sobre o mundo externo podem ser deduzidas das proposi-
ções de aparência é dizer que não é sequer possível para as proposições de aparência serem
verdadeiras se as proposições sobre o mundo externo forem falsas. Desafortunadamente,
isto é possível. É possível ter um sonho ou uma alucinação na qual você tenha experiências
exatamente como aquelas que você tem quando entra no quarto. Careful poderia ter tido as
experiências que ele teve como resultado de algum elaborado esquema pelo qual Filcher
seria incriminado pelo crime. Em geral, nenhum conjunto de experiências garante logica-
mente quaisquer proposições sobre o mundo externo em particular. A condição da dedução
de (FC3) é muito restritiva.

D. Conclusões Sobre o Fundacionismo Cartesiano

É claro que o fundacionismo cartesiano não é uma teoria satisfatória, dada a verda-
de da Perspectiva Standard. Existem os seguintes problemas:

1. Crenças sobre os próprios estados mentais de uma pessoa não são imunes ao er-
ro. Assim, se as crenças sobre eles são básicas, o que quer que as torne justificadas tem a
ver com alguma outra coisa que não esta propriedade. Nós precisamos de uma explicação
diferente daquilo que torna as crenças básicas justificadas. Assim, (FC2) precisa ser revi-
sado.
2. Nem todas as crenças sobre os próprios estados mentais de uma pessoa são cren-
ças básicas justificadas. Crenças sobre os próprios estados mentais de uma pessoa podem
ser derivadas de outras crenças e, logo, ser não-básicas. Crenças sobre eles podem ser in-
justificadas.
3. As coisas que o fundacionismo cartesiano conta como básicas são coisas nas
quais nós absolutamente não acreditamos em circunstâncias ordinárias. Parece que o ponto
81

de partida das nossas crenças são as observações ordinárias do mundo e não a introspec-
ção. Assim, (FC1) precisa ser revisado. (Naturalmente, este ponto é controverso.)
4. Muito do que nós conhecemos (de acordo com a Perspectiva Standard) não pode
ser deduzido do que é básico. Isto é claramente verdadeiro se as nossas crenças básicas fo-
rem crenças sobre os nossos próprios estados internos. Mas mesmo que nós tomemos os
juízos espontâneos sobre o mundo como sendo básicos, muito do que nós conhecemos vai
além do que pode ser deduzido disso.

Antes de examinarmos uma versão do fundacionismo que tenta fazer as mudanças


que estes pontos sugerem, será útil considerar uma outra abordagem da justificação que
tem sido influente na história da filosofia, o coerentismo.

IV. O COERENTISMO

A. A Idéia Central do Coerentismo


A idéia central das teorias coerentistas da justificação é que toda crença justificada
é justificada em virtude de suas relações com outras crenças. Em outras palavras, não exis-
tem crenças fundacionais ou básicas. Assim, os coerentistas rejeitam a premissa (1-4) do
Argumento do Regresso Infinito, o passo do argumento do regresso que rejeita cadeias cir-
culares de evidências. Isto não porque eles pensem que você pode justificar uma crença
com outra, essa segunda por uma terceira, e então justificar a terceira pela primeira. Em
vez disso, a idéia deles é que a justificação é uma questão mais sistemática e holística, que
cada crença é justificada pela maneira como ela se encaixa no sistema inteiro de crenças.
Logo, os coerentistas endossam as duas seguintes idéias centrais:

C1. Apenas crenças podem justificar outras crenças. Nada além de uma crença po-
de contribuir para a justificação.
C2. Cada crença justificada depende em parte de outras crenças para a sua justifica-
ção. (Não há crenças básicas justificadas.)15

15
Nós examinaremos um argumento para sustentar essa alegação na seção V deste capítulo.
82

Os coerentistas pensam que uma crença está justificada quando ela coere com, ou
se encaixa bem com, as outras crenças de uma pessoa. Esta idéia tem uma considerável
força intuitiva, como é destacado pelos seguintes exemplos.

Exemplo 4.9: O Cabelo Que Cresce


Harry tem geralmente uma atitude muito prática no que concerne à efetividade de
medicamentos. Ele sempre quer ver a evidência antes de acreditar que eles funcionam. Ele
rejeita alegações despropositadas embasadas em testemunhos individuais. Ele sensatamen-
te duvida das alegadas curas milagrosas alardeadas nos anúncios. Mas Harry está come-
çando a perder seu cabelo e está muito chateado com isto. Certo dia ele ouve alguém dizer
que Miraclegro cura a calvície, e acredita nisso.

Deve parecer a você que a crença de Harry de que

6. Miraclegro cura a calvície

não está justificada. E o que é particularmente notável é que a crença é muito in-
congruente para Harry. Você poderia dizer que ele deveria pensar melhor [know better] ao
invés de crer numa tal coisa. E, de fato, ele pensa melhor, pois seus próprios princípios di-
zem a ele para não crer (6) nestas circunstâncias. Os coerentistas concordariam. Eles diri-
am que esta crença é incoerente para ele – ela não se encaixa co as outras crenças dele.
Harry aceita algo como

P. Um tratamento médico é efetivo somente se existe boa evidência clínica mos-


trando que ele é efetivo, e não há boa evidência clínica de que Miraclegro seja efetivo.

Ainda assim, Harry crê (6) na ausência da evidência necessária. Podemos ver um
tipo de incoerência em seu sistema. A crença sobre Miraclegro se destaca como a crença
“ruim” de seu sistema.
O exemplo 4.9 ilustra uma maneira pela qual uma crença pode fracassar em coerir
com as outras crenças de uma pessoa. Ela é uma crença individual que viola os próprios
princípios gerais do crente. Outro exemplo ilustra outra maneira pela qual uma crença pode
fracassar em coerir.
83

Exemplo 4.10: Os Galhos Que Caem da Árvore


A família de Storm possui dois carros – um mais novo e uma lata velha. Todas as
noites os carros ficam estacionados na rua. Uma noite ocorre uma forte tempestade de neve
e uma grande quantidade de neve se forma sobre os galhos das árvores, fazendo com que
os ramos se quebrem e caiam. Há uma árvore que se estende sobre a rua. Storm ouve o
som de um ramo batendo num carro na rua. Storm acredita que o ramo deve ter atingido a
lata velha.

O exemplo 4.10 é semelhante ao exemplo 4.9 já que algum tipo de pensamento po-
sitivo está envolvido. No entanto, no exemplo 4.10 Storm pode não estar violando qualquer
princípio geral que ele aceite. A menos que ele tenha outras crenças sobre a localização
específica do cardo e o som do ramo, sua crença sobre o carro é simplesmente jogada den-
tro do sistema sem qualquer coisa para sustentá-la. Nós podemos dizer que no exemplo
4.10 a crença de Storm carece de coerência positiva. Não há um apoio positivo para ela no
sistema. Em contraste, no exemplo 4.9 a crença de Harry tinha uma coerência negativa: ela
estava em conflito com o restante do sistema. Para uma crença ser justificada, de acordo
com o coerentismo, ela não deve ser como nenhum destes casos. No entanto, estas conside-
rações não conduzem a uma descrição precisa do que seja a coerência. Nada dito até aqui
se constitui numa explicação clara de que tipo de conflito com outras crenças exclui a coe-
rência nem de que tipo de sustentação interna é necessário para a coerência. Além do mais,
como ficará claro na próxima seção, há uma questão importante sobre exatamente com o
que é que uma crença deve coerir a fim de estar justificada de acordo com os standards
coerentistas.
Uma formulação inicial do coerentismo, então, é a seguinte:

TC. S está justificado em crer p sse p coere com o sistema de crenças de S.

Para desenvolver uma teoria coerentista razoavelmente precisa, os coerentistas de-


vem tratar de duas questões

QC1. O que conta como o sistema de crenças de S?


QC2. O que é para uma crença coerir com o sistema de crenças?
84

Para ver a força destas questões, suponha que os coerentistas façam duas suposi-
ções:

S1. O sistema de crenças de S = tudo que S crê.


S2. Uma proposição coere com um sistema de crenças desde que ela se siga logi-
camente da conjunção de tudo que está no sistema.

A aplicação de (S1) e (S2) à (TC) produz a seguinte teoria coerentista:

TC1. S está justificada em crer p sse p se segue logicamente da conjunção de tudo


que S crê.

Um momento de reflexão revela que (TC1) tem a conseqüência absurda de que


qualquer coisa em que qualquer um acredita está justificado. O argumento para isto é sim-
ples. Suponha que S creia p. A conjunção de tudo o que S acredita era então ser uma longa
conjunção, um conjunto que tem o próprio p como um de seus elementos. Uma lei da lógi-
ca simples é que uma conjunção implica cada um dos elementos da conjunção. Logo, se S
crê p, q, r, s, e assim por diante, então a conjunção de tudo em que S acredita será a longa
proposição “p e q e r e s ...” Trivialmente, esta conjunção implica p. De acordo com (TC1),
se segue que a crença de S de que p está justificada, não importando o que seja p e não im-
portando o quão bem ela se encaixe com o restante das crenças de S. De acordo com esta
teoria, então, as crenças de Harry no exemplo 4.9 e de Storm no exemplo 4.10 estão justifi-
cadas. Isto é exatamente o que o coerentismo supostamente iria evitar. Os coerentistas pre-
cisam de alguma coisa melhor do que (CT1).
Ao tentar desenvolver uma versão melhor do coerentismo, é importante manter em
mente o seguinte ponto. Suponha, para fins argumentativos, que nós tenhamos um enten-
dimento razoavelmente claro da idéia de um sistema coerente de crenças. Usando esta idéi-
a, nós podemos formular a seguinte proposta:

TC2. S está justificado em crer p sse o sistema de crenças de S é coerente e inclui


uma crença em p.
85

A idéia por trás da (TC2) é que crenças justificadas são crenças que compõem sis-
temas coerentes e crenças injustificadas são componentes de sistemas que não são coeren-
tes. Dada uma idéia razoavelmente clara do que é a coerência, (TC2) seria uma proposta
razoavelmente clara.
No entanto, (TC2) não é nem um pouco plausível. Pode haver alguma coisa desejá-
vel em se ter sistemas coerentes de crenças. No entanto, pouco de nós alcançam isto. Todos
nós cometemos alguns enganos, sucumbimos ao pensamento positivo, fracassamos em
compreender as conseqüências de nossas crenças. Existem, em todos os casos realistas, al-
gumas crenças que tornam nossos sistemas incoerentes ao menos em algum grau. De acor-
do com (TC2), se esse é o caso, então nenhum de nós jamais está justificado em coisa al-
guma. Considere a sua crença de que você existe. Mesmo que você esteja cometendo al-
guns grandes enganos em outras questões, isto é algo em que você está justificado em crer.
De acordo com (TC2), essa crença está justificada somente se você acredita que você exis-
te e o seu sistema de crenças é coerente. Como notado, se você se parece com um ser hu-
mano normal no que diz respeito às suas crenças, então o seu sistema de crenças não é coe-
rente. Por isso, de acordo com (TC2) a sua crença de que você existe não está justificada.
O problema com (TC2) pode ser colocado de uma maneira mais geral. Ela diz que
todas as crenças de um sistema coerente estão justificadas e todas as crenças de um sistema
não-coerente não estão justificadas. Qualquer sistema de crenças individual ou é coerente
ou não é coerente. Assim a teoria implica que, para cada indivíduo, ou todas as suas cren-
ças estão justificadas ou nenhuma delas está justificada. Uma vez que, de fato, qualquer
pessoa real fica aquém de um sistema coerente, a teoria implica em que nenhuma pessoa
real tenha qualquer crença justificada. No entanto, a verdade sobre cada um de nós não é
tão extrema. Cada um de nós tem algumas crenças justificadas e algumas crenças injustifi-
cadas. (TC2) não pode dar conta deste simples fato. Uma versão do coerentismo precisa ser
mais seletiva do que o é (TC2) a fim de ter sucesso.
Dizer que o grau em que uma crença está justificada depende do nível de coerência
do sistema inteiro do crente não irá resolver o problema. Suponha que o seu sistema de
crença seja, como um todo, moderadamente coerente. A presente proposta produziria o re-
sultado de todas as suas crenças também estão moderadamente justificadas. Isto fracassa
em distinguir apropriadamente entre a suas crenças bem-justificadas e as suas especulações
desenfreadas.
86

É claro, então, que os coerentistas precisam de novas e melhores respostas para


(QC1) e (QC2). De alguma forma, o coerentismo tem de ser formulado de uma maneira
que o habilite a identificar algumas crenças como justificadas e algumas como injustifica-
das.

B. Uma Versão do Coerentismo

A coerência, o que quer que seja ela exatamente, é uma propriedade que um siste-
ma de crenças pode ter num maior ou menor grau. Um sistema de crenças pode ser mais
coerente do que outro. Os filósofos têm proposto várias coisas que aumentam ou diminuem
a coerência.16 É mais fácil compreender estas idéias considerando sistemas de crenças que
são muito semelhantes, com apenas algumas diferenças introduzidas para realçar os fatores
que afetam a coerência. Por exemplo, suponha duas pessoas, cada uma das quais creia nu-
ma grande número de proposições – p, q, r, e assim por diante. Vamos supor que não exis-
tam conflitos lógicos entre as proposições em que estas pessoas acreditam. Isto é, é ao me-
nos possível que todas as suas crenças sejam verdadeiras. E então suponha que uma das
pessoas forma a crença de que p é falsa, e a pessoa simplesmente acrescente essa crença
em seu sistema. Agora há uma contradição no sistema de crenças. Ela inclui tanto a crença
em p quanto a crença em ∼p. Estas não podem ser ambas verdadeiras. Agora o sistema
contém uma inconsistência. E isto o torna menos coerente. As inconsistências não preci-
sam se tão óbvias quanto a recém descrita. Uma pessoa poderia crer em várias proposições
e fracassar em compreender que elas implicam a negação de uma outra proposição em que
ela acredita. Este sistema também é inconsistente, embora a inconsistência não seja tão os-
tensiva. Em qualquer caso, a inconsistência diminui a coerência.
Uma coisa que aumenta a coerência de um sistema é o fato de que ele contenha
crenças que se constituam em explicações de outras crenças do sistema. Suponha que o
jardineiro #1 creia que todas as plantas de seu jardim estejam murchas e que não chove há
muito tempo. Suponha que o jardineiro #2 creia nestas coisas e também creia que as plan-
tas murcham quando não recebem água por muito tempo. (Talvez o jardineiro #2 também
creia que a chuva proporciona água para as plantas.) O jardineiro #2 tem um sistema de
crenças mais rico e desenvolvido. A riqueza vem em parte da forma como ele articula em

16
Para discussão, veja Keith Lehrer, Knowledge, capítulos 7-9, e Laurence BonJour, The Structure of Em-
pirical Knowledge, (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1985), capítulos 5-8.
87

conjunto crenças que estão isoladas uma da outra no sistema de crenças do jardineiro #1.
Haver este tipo de conexões é freqüentemente pensado aumentar a coerência de um siste-
ma de crenças.
Talvez ter crenças individuais que conflitem com os princípios gerais de uma pes-
soa também diminua o valor da coerência do sistema de crenças da pessoa.
Nós diremos que fatores tais como estes determinam o valor da coerência de um
sistema de crenças. Isto não constitui uma descrição completa dos valores da coerência,
mas proporciona alguma explicação da idéia. Os coerentistas podem fazer uso dos valores
da coerência de um sistema de crenças para formular uma versão do coerentismo que con-
torne as dificuldades iniciais cobertas na seção anterior.17 Nós podemos formular a teoria
desta maneira:

TC3. S está justificado em crer p sse o valor da coerência do sistema de crenças de


S seria maior se ele incluísse a crença em p do que se não incluísse essa crença.

As implicações pretendidas de (TC3) podem ser mais bem vistas considerando duas
situações, uma na qual a pessoa já acredita na proposição e uma na qual a pessoa não acre-
dita nela. Se a pessoa crê na proposição, então o valor de coerência do sistema tal como ele
é atualmente pode ser comparado o seu valor da coerência obtido com a remoção da crença
do sistema. Se a remoção da crença diminui o valor de coerência do sistema, então a crença
nessa proposição está justificada. Se a pessoa ainda não crê na proposição, então o valor da
coerência do sistema atual pode ser comparado com o valor do sistema que seria formado
se a crença fosse acrescentada. (TC3) diz que quando a versão do sistema coma crença tem
um valor mais alto do que a versão sem ela, então a crença está justificada. De acordo com
(TC3), nós diremos que uma crença coere com um sistema de crenças quando ela aumenta
o valor da coerência desse sistema. Logo, (TC3) preserva a idéia de que uma crença está
justificada quando ela coere com o sistema de crenças de uma pessoa.
(Tc3) pode lidar razoavelmente bem com os exemplo 4.9 e 4.10. No exemplo 4.9,
Harry tinha uma crença geral sobre os tratamentos efetivos e uma crença específica sobre
Miraclegro que não se encaixavam bem. Intuitivamente, a crença sobre Miraclegro era o
bandido. É plausível sustentar que o sistema de crenças de Harry seria mais coerente se

17
Uma teoria nessa linha é sugerida por Jonathan Dancy em Na Introduction to Contemporary Epistemology
(Oxford: Blackwell, 1985).
88

essa crença fosse descartada. Assim, (TC3) dá o resultado correto de que ela não está justi-
ficada. NO exemplo 4.10, Storm tem uma crença que está desconectada de suas outras
crenças. Assim, talvez seu sistema ganhasse em coerência ao descartá-la. Mais uma vez,
(TC3) parece ter os resultados corretos neste caso.
Existem, entretanto, detalhes incômodos que necessitam ser desenvolvidos por
(TC3). Considere mais uma vez Harry no exemplo 4.9. Harry tem uma crença injustifica-
da em (6), a proposição de que Miraclegro cura a calvície. Intuitivamente, nós julgamos
que seu sistema de crenças seria mais coerente se ele descartasse esta crença. (TC3) avalia
a justificação olhando para o que aconteceria com o valor da coerência do sistema se só
esta crença fosse descartada. O problema com isto é que Harry pode muito bem crer em
numerosas outras proposições que estão conectadas com (6) de maneiras cruciais. Por e-
xemplo, se ele tivesse acabado de comprar um pouco de Miraclegro, então ele poderia crer

7. Eu acabo de comprar alguma coisa que cura a calvície.

Se nós avaliarmos a justificação de (6) olhando para ver o que acontece com o sis-
tema se apenas ela for descartada, então nós avaliaremos o valor da coerência do sistema
de Harry no caso dele parar de crer (6) mas continuar a crer (7). Ele pode também acreditar
em muitas outras proposições estreitamente relacionadas com (6). Por exemplo, ele pode
acreditar

8. Miraclegro cura a calvície mas a tinta spray não a cura.

Seu sistema pode perder coerência se ele continuar a acreditar coisas como (7) e (8)
mas descartar (6). Devido às suas conexões com outras crenças, então, descartar apenas (6)
pode diminuir a coerência, ainda que crer (6) não seja justificado. Por isso, não é claro que
(TC3) de fato lide apropriadamente com este exemplo. O fato de que qualquer crença,
mesmo que ela não seja justificada, possa ainda assim ter conexões lógicas com muitas ou-
tras crenças, coloca um difícil problema para os coerentistas. Não é claro como revisar o
coerentismo para evitar este problema.
Há um outro problema que os advogados da (TC3) devem enfrentar. Considere a
crença justificada de Harry em (P), a proposição que diz que tratamentos não funcionam
sem evidência clínica de sua efetividade e que não há evidência efetividade de Miraclegro
89

(para a calvície). Os coerentistas dizem que o sistema de Harry seria mais coerente se ele
descartasse (6) de seu sistema. Ignore o problema recém discutido e suponha que isto seja
verdade. No entanto, também é verdade que ele poderia ganhar alguma coerência descar-
tando (P) de seu sistema. Isto porque (P) também contribui para a incoerência revelada por
seu sistema. Por isso, (TC3) implica que sua crença no princípio também não está justifi-
cada. De modo geral, quando o sistema corrente de uma pessoa é incoerente porque duas
crenças estão em conflito, há um aumento na coerência pelo descarte de qualquer uma de-
las. A teoria parece implicar que nenhuma delas está justificada. Ainda assim, isso não
precisa ser o caso, como o exemplo 4.9 ilustra. Uma melhor versão do coerentismo abrirá
de alguma forma a possibilidade de que uma das crenças conflitantes, ou um grupo de gru-
pos conflitantes de crenças, esteja justificado. Talvez os coerentistas possam apresentar
alguma maneira de lidar com este problema.
Os dois problemas recém discutidos seguramente não mostram que o coerentismo
está errado. Eles apenas mostram que existem problemas difíceis para os coerentistas re-
solverem. Talvez eles possam resolvê-los especificando de uma maneira melhor o sistema
de crenças com o qual uma crença deve ser coerente a fim de estar justificada. Por exem-
plo, em alguns dos exemplos uma característica chave é que uma crença é sustentada mais
como um tipo de pensamento positivo do que como um esforço para alcançar a verdade.
Os coerentistas poderiam definir a justificação em termos de coerência com este subsiste-
ma direcionado-para-a-verdade.18 Possivelmente alguma de tais descrições evitará os pro-
blemas considerados até aqui.
Existem algumas outras objeções ao coerentismo que pretendem ir ao coração da
teoria. Alguns críticos argumentam que a idéia coerentista central está errada. Eles argu-
mentam que a justificação não é inteiramente uma questão de como as nossas crenças se
articulam conjuntamente. Nos voltamos a seguir para duas objeções que tentam capitalizar
este ponto.

C. Objeções ao Coerentismo

C1. A Objeção dos Sistemas Alternativos


Eis aqui o enunciado de uma objeção ao coerentismo comumente expressa:

18
Veja Keith Lehrer, “Reply to my Critics”, em John Bender, ed., The Current State of the Coherence The-
ory (Dordrecht: Kluwer, 1989).
90

De acordo com a teoria da coerência da justificação empírica (...) o sis-


tema de crenças que constitui o conhecimento empírico está epistemicamente
justificado somente em virtude de sua coerência interna. Mas um tal apelo à coe-
rência não irá jamais sequer começar a selecionar um único sistema de crenças
justificadas já que, em qualquer concepção plausível da coerência, haverão inú-
meros, provavelmente infinitos, sistemas de crenças diferentes e incompatíveis
que são igualmente coerentes.19

Eis aqui uma maneira de descrever esta objeção.20 Considere a objeção de que A-
braham Lincoln foi assassinado. Se, como os críticos argumentam, existem muitos siste-
mas de crenças diferentes e incompatíveis, haverá alguns sistemas que incluem esta crença
e outros que incluem e a sua negação. Se essa crença é parte de seu atual sistema, você po-
de imaginar um sistema que substitua tudo o que a sustenta ou o que se segue dela por pro-
posições diferentes. Ao construir cuidadosamente o novo sistema, você poderia chegar a
um sistema tão coerente quanto o é o seu sistema corrente. Logo, se existem todos estes
diferentes sistemas coerentes, então você pode fazer qualquer crença que você queira estar
justificada simplesmente por selecionar apropriadamente o restante de suas crenças. Isso
não pode estar certo. Eis aqui um enunciado mais formal do argumento:

Argumento 4.3: O Argumento dos Sistemas Alternativos


3-1. Se a (TC) é verdadeira, então uma crença está justificada sse ela coere com o
sistema de crenças do crente.
3-2. Uma pessoa pode fazer qualquer crença selecionada coerir com seu sistema de
crenças ao ajustar apropriadamente o restante do sistema para fazê-la se encaixar nele.
3-3. Se a (TC) é verdadeira, então uma pessoa pode tornar justificada qualquer
crença selecionada ao ajustar apropriadamente o restante de suas crenças. (3-1), (3-2)
3-4. Mas não é o caso que se pode tornar justificada qualquer crença selecionada ao
ajustar-se o restante das crenças.
3-5. A (TC) não é verdadeira. (3-3), (3-4)

19
Laurence BonJour, The Structure of Empirical Knowledge, p. 107.
20
Para outra recente formulação da objeção, veja Louis Pojman, What Can We Know? 2 ed. (Belmont, CA:
Wadsworth, 2001), p. 118.
91

Há boas razões para duvidar que esta seja uma boa objeção ao coerentismo.21 Um
problema com este argumento é que (3-2) é falsa. As pessoas simplesmente não têm tanto
controle sobre suas crenças. Mas este não é o maior problema com o argumento.
Considere mais uma vez a crença sobre Lincoln com a qual começou esta subseção.
Os coerentistas não estão comprometidos com a absurda conclusão de que você já está jus-
tificado em crer tanto que Lincoln foi assassinado quanto que ele não o foi. Nem estão
comprometidos com a idéia de que você tem o poder de ajustar as suas crenças para cons-
truir um sistema coerente em torno de cada uma destas opções. Os coerentistas não estão
empacados com a alegação implausível de que nós podemos formar nossas crenças à von-
tade. Eles estão comprometidos com a idéia de que alguém poderia ter a crença de que
Lincoln foi assassinado, e de que esta crença poderia ser coerente com seu sistema de cren-
ças, e de que, portanto, esta crença poderia estar justificada. Eles também estão comprome-
tidos com a conclusão de que uma pessoa poderia ter a crença de que Lincoln não foi as-
sassinado, de que esta crença poderia também ser coerente com um sistema diferente que
ele tivesse, e de que, portanto, sua crença também poderia estar justificada. Longe de se
falsa, entretanto, esta conclusão parece perfeitamente correta. Crenças conflitantes, em sis-
temas alternativos, podem estar justificadas. As pessoas que têm diferentes experiências e
que aprenderam coisas diferentes poderiam crer justificadamente em coisas muito diferen-
tes. Pode haver algumas pessoas que tenham aprendido coisas incomuns e que, como resul-
tado, têm uma crença justificada de que Lincoln não foi assassinado. Não há uma boa ob-
jeção ao coerentismo aqui.
O Argumento dos Sistemas Alternativos é suposta estar trabalhando sobre a idéia de
que o coerentismo de alguma forma está empacado com o resultado de que sistemas alter-
nativos de crenças podem estar justificados, sem bases coerentistas para escolher entre e-
les. Pode acontecer, entretanto, que este compromisso não seja implausível. Seguramente
pessoas em circunstâncias diferentes podem ter sistemas de crenças inteiramente diferentes
e completamente justificados que diferem grandemente um do outro. Por exemplo, uma
pessoa vivendo na Idade Média poderia ter um conjunto de crenças coerente e completa-
mente justificado radicalmente diferente de sua contrapartida moderna. A idéia por detrás
desta objeção ao coerentismo está equivocada.22

21
Earl Conee destaca pontos similares sobre essa objeção em “Isolation and Beyond”, Philosophical Topics
23 (1995): 129-46.
22
Para uma discussão de questões relacionadas, referente à possibilidade de pessoas razoáveis terem diferen-
tes crenças, veja o capítulo 9.
92

C2. A Objeção do Isolamento


Como nós temos visto, a idéia chave do coerentismo é a de que se uma crença está
justificada, isto depende somente das outras crenças do crente. Se somente as crenças justi-
ficam, então a experiência não tem importância. E isso não está certo. Reconsidere o e-
xemplo 4.1, no qual Hasty acredita que Filcher seja culpado simplesmente por não gostar
dele. Se somente as outras crenças de Hasty tivessem importância, então, de acordo com o
coerentismo, esta crença estaria justificada se ele, ao invés de apenas crer que Filcher seja
o culpado, também acreditasse numa história mais longa sobre ele. De forma semelhante,
no exemplo 4.10 Storm ouve galhos de árvore caindo sobre o carro. Suponha que o pensa-
mento positivo dele o fizesse acrescentar crenças no sentido de que o som de coisas que-
bradas fosse do tipo que apenas um carro velho iria produzir, de que o carro velho estava
bem embaixo de um galho, etc. A menos que haja algum input no sistema que justifique
estas outras crenças, ele não está justificado em sua crença. Meramente inventar uma histó-
ria mais longa não irá conduzir à justificação. Ele precisa de alguma forma dar conta dos
“dados da experiência.” O coerentismo parece omitir isto.
Outros exemplos tornam o ponto mais agudo, embora haja um ar de irrealidade em
torno deles. Há casos nos quais as crenças de uma pessoa estão desligadas da realidade, em
que elas não estão conectadas com a sua experiência do mundo. Considere o seguinte e-
xemplo:

Exemplo 4.11: O Estranho Caso de Magic Feldman


O professor Feldman é um professor de filosofia baixinho entusiasmado por bas-
quete. Magic Johnson (MJ) foi um fantástico jogador profissional de basquete. Nós pode-
mos supor que, enquanto jogava um jogo, MJ tinha um sistema de crenças coerente com-
pleto. Magic Feldman (MF) é um personagem possível, embora inusual, que é uma combi-
nação do professor e do jogador de basquete. MF tem uma imaginação notável, tão notável
que, enquanto ele dá aulas de filosofia, pensa estar jogando basquete. De fato, ele tem exa-
tamente as crenças que MJ tem. Uma vez que o sistema de crenças de MJ era coerente, o
sistema de crença de Mf também é coerente.

De acordo com o coerentismo, as crenças de MF estão justificadas porque elas for-


ma um sistema coerente. No entanto, suas crenças estão radicalmente desligadas da reali-
93

dade. Não é que elas simplesmente sejam falsas. Ainda pior, elas não levam em considera-
ção nem mesmo a natureza de suas próprias experiências. Suas experiências – o que ele vê
e sente – são as experiências de um professor. Suas crenças são as de uma pessoa numa
situação inteiramente diferente. Longe de estarem justificadas, elas são uma fantasia ab-
surda.
Este argumento pode ser formulado como segue:

Argumento 4.4: O Argumento do Isolamento


4-1. Se a (TC) é verdadeira, então em todos os casos possíveis uma crença está jus-
tificada sse ele coere com o sistema de crenças do crente. [Definição de coerentismo]
4-2. Sistema de crenças de MF = sistema de crenças de MJ. [Suposição do exem-
plo]
4-3. A crença de MJ de que ele está jogando basquete coere com o seu sistema de
crenças. [Suposição do exemplo]
4-4. A crença de MF de que ele está jogando basquete coere com o seu sistema de
crenças. (4-2), (4-3)
4-5. Se a (TC) é verdadeira, então a crença de MF de que ele está jogando basquete
está justificada. 94-1), (4-4)
4-6. Mas a crença de MF não está justificada. [Suposição do exemplo]
4-7. A (TC) não é verdadeira. (4-5), (4-6)

Há uma outra maneira de destacar o mesmo ponto. Se somente outras crenças po-
dem justificar uma crença, então, já que MF e MJ têm as mesmas crenças, MJ não tem coi-
sa alguma para justificar suas crenças que MF também não tenha. Assim, MJ não pode es-
tar mais bem justificado do que MF. Mas ele está. A razão para isto é que parte do que de-
termina o que está justificado é o caráter da experiência de uma pessoa.
Os coerentistas podem responder que MF não é possível. Dever ser concedido que
o exemplo é muito inusual. Ainda assim, é suficiente para destacar um ponto importante
acerca do coerentismo: ele omite de sua descrição da justificação uma coisa que parece ab-
solutamente central: a experiência de uma pessoa. Além do mais, os críticos não precisam
recorrer a exemplos bizarros como o de MF a fim de destacar o ponto.

Exemplo 4.12: O Experimento Psicológico


94

Lefty e Righty estão num experimento psicológico. Eles são pessoas extremamente
semelhantes, com todas as mesmas crenças relevantes. O experimento é um no qual eles
olham uma imagem num monitor e formam crenças sobre o que eles vêem. É-lhes dito que
eles irão ver duas linhas no monitor e formarão uma crença sobre qual é a mais comprida.
Ambos são levados a crer que a linha da direita é a mais comprida. As linhas aparecem en-
tão nos monitores e ambos crêem que a linha da direita é a mais comprida. No entanto, as
expectativas estão jogando um papel. De fato, para um dele, Lefty, a linha da esquerda é
que é a mais comprida, e ela parece assim. Lefty simplesmente ignora o caráter da sua ex-
periência e forma sua crença inteiramente com base no que ele foi levado a crer.

Os críticos argumentam que como a linha se parece faz alguma diferença para o
que está justificado para Lefty. Lefty pensa que a linha da direita é a mais comprida, mas
ele não presta atenção para como a linha de fato se parece, ainda que a informação esteja
bem ali diante de sua mente. O coerentismo implica em que ele esteja justificado em crer
que a linha da direita é a mais comprida uma vez que essa crença está sustentada por suas
crenças anterior e ele não tem outras crenças que a anulem. Ainda assim, Lefty tem a evi-
dencia experimental – a maneira como a linha se parece – que conta contra esta crença. O
coerentismo deixa isto inapropriadamente fora do cenário. Ele diz que somente importa
aquilo em que Lefty acredita. Ele dá uma descrição incorreta deste exemplo mais realista.
Alguns defensores do coerentismo podem responder que as crenças de uma pessoa
devem se conformar às suas experiências. Se for assim, então os exemplos 4.11 e 4.12 não
são nem mesmo possíveis. No entanto, se esse é o caso, então ocorre que um elemento
fundamental do fundacionismo está afinal de contas correto – estas crenças sobre a experi-
ência parecem ser em algum sentido “infalíveis” ou “incorrigíveis.” Nós temos de estar
certos sobre elas. Assim, se você rejeita este argumento contra o coerentismo nestas bases,
você parece estar apelando para uma idéia fundacionista.
Isto sugere que seria uma boa idéia reconsiderar o fundacionismo num esforço para
chegar a uma versão que evite as dificuldades do fundacionismo cartesiano.

D. Conclusões Sobre o Coerentismo

1. A idéia central do coerentismo pode ser dada em duas alegações caracteristica-


mente coerentistas:
95

C1. Somente crenças podem justificar outras crenças. Nada além de uma crença
pode contribuir para a justificação.
C2. Toda crença justificada depende em parte de outras crenças para a sua justifica-
ção. (Não existem crenças básicas justificadas.)

2. Nós ainda não encontramos uma maneira adequada de formular a teoria coeren-
tista. Entre os problemas para os coerentistas estão estes: (a) distinguir sensatamente entre
as crenças efetivas para caracterizar algumas como justificadas e algumas como injustifi-
cadas; (b) dizer o que é efetivamente a coerência.
3. Muitos críticos pensam que (C1) tenha sido refutada pelo Argumento do Isola-
mento. Esse argumento mostra que a experiência tem importância para a justificação.

V. FUNDACIONISMO MODESTO

A. A Idéia Central
Recorde que os fundacionistas precisam responder estas questões:

QF1. Sobre que tipo de coisas tratam as nossas crenças básicas justificadas? Quais
crenças são justificadas e básicas?
QF2. Como são justificadas essas crenças básicas? Se elas não são justificadas por
outras crenças, como elas se tornam justificadas?
QF3. Que tipo de conexão uma crença não-básica deve ter com as crenças básicas a
fim de estar justificada?

Em anos recentes, filósofos têm desenvolvido versões do fundacionismo que evi-


tam os problemas encontrados pelo fundacionismo cartesiano.23 Estas versões contemporâ-
neas do fundacionismo, freqüentemente chamadas de fundacionismo modesto, tipicamente
sustentam que as crenças básicas são crenças perceptivas ordinárias sobre o mundo exter-

23
Veja Robert Audi, The Structure of Justification (Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1993);
Susan Haack, Evidence and Inquiry: Towards Reconstruction in Epistemology (Oxford: Blackwell, 1993); e
James Pryor “The Skeptic and the Dogmatist”, Nous 34 (2000): 517:549. Haack classifica sua teoria como
96

no, que estas crenças podem ser justificadas sem serem imunes ao erro, e que crenças não-
básicas podem ser justificadas se elas forem bem sustentadas pelas crenças básicas sem
serem dedutíveis delas. Estas condições colocadas sobre as crenças justificadas são então
menos demandantes, ou mais modestas, do que aquelas endossadas pelo fundacionismo
cartesiano.
A idéia do fundacionismo modesto é como segue. Enquanto as pessoas fazem seu
caminho pelo mundo, elas são rotineiramente bombardeadas com estímulos sensoriais. E-
las regularmente formam crenças, não sobre os efeitos internos daqueles estímulos, mas
sobre o mundo fora delas. Elas crêem em coisas tais como que as luzes estão acesas, que
há um livro sobre a mesa, e assim por diante. Os fundacionistas modestos consideram estas
como sendo as crenças básicas justificadas. Eles não dizem que nós não podemos estar en-
ganados sobre estas coisas. Não obstante, eles sustentam que crenças tais como estas estão
freqüentemente muito bem justificadas. Por fim, eles dizem que estas crenças básicas justi-
ficadas podem proporcionar razões justificadoras para outras crenças sobre o mundo mes-
mo que as outras crenças não sejam dedutíveis daquelas básicas.
Tudo isso parece inteiramente plausível, mas questões difíceis surgem quando nós
tentamos formular os detalhes. Voltaremos-nos a seguir a isto.

B. Versões de Fundacionismo Modesto

Os fundacionistas modestos pensam que as nossas crenças básicas são tipicamente


crenças sobre o mundo em torno de nós, crenças sobre as coisas que nós vemos ou de al-
gum outro modo sentimos. Tipicamente nós formamos estas crenças automaticamente, sem
qualquer deliberação ou raciocínio consciente. Quando você entra numa sala você pode
automaticamente vir a acreditar que as luzes estão acesas, que há uma cadeira azul em
frente a uma mesa marrom, e assim por diante. Os fundacionistas modestos pensam que
crenças tais como estas são básicas e que elas estão freqüentemente justificadas. Isto não
implica em que você nunca possa estar errado sobre tais coisas ou que todas as crenças tais
como estas estão justificadas.24 Os detalhes dos pontos de vista dos fundacionistas modes-

funderentismo – uma combinação de fundacionismo e coerentismo. Entretanto, parece que ela se encaixa no
ponto de vista do fundacionista modesto aqui descrito.
24
Uma crença básica não precisa ser justificada. Se alguém forma uma crença diretamente e não com base
em outras crenças, então ela é básica. Por exemplo, se uma crença simplesmente ocorre a você de súbito,
então ela é básica mas não é justificada. Alguns filósofos usam a palavra “básica” para se referir apenas às
crenças justificadas que não são dependentes de outras crenças para a sua justificação. Entretanto, nós então
97

tos sobre tais questões irão emergir da discussão de suas respostas à (QF1) e (QF2). Antes
de examinar essa parte da teoria deles, considere como eles irão responder (QF3). Em ou-
tras palavras, como, de acordo com o fundacionismo modesto, o restante de nossas crenças
é justificado? O que pode substituir a condição da dedução do fundacionismo cartesiano?
Considere de novo o exemplo 4.1. Careful tinha fortes razões para pensar que Fil-
cher roubara a pintura. Aquelas razões estão resumidas na proposição (9):

9. A pintura estava em posse de Filcher, as digitais de Filcher estavam na cena do


roubo, ...

Embora (9) possa não conter apenas proposições que são básicas, de acordo dom o
atual ponto de vista, não é difícil de ver como uma crença em (9) poderia estar embasada
em coisas que são básicas. Talvez as observações que constituam as crenças básicas de Ca-
reful neste caso sejam proposições sobre as coisas que ele tinha observado: que lá havia
digitais de um tal e tal tipo, que alguém disse que havia visto Filcher na área do crime, e
assim por diante. A figura que resulta, então, é esta:

Crenças Básicas: crenças observacionais de Careful, e.g., há uma pintura de tal e


tal descrição na casa de Filcher, havia digitais de um certo tipo na casa de Filcher, etc.

Disto ele infere (9), e de (9) ele infere:

1. Filcher roubou a pintura.

As ligações entre as proposições são aqui menos do que dedutivas. Elas incluem
aparentemente boas inferências do tipo que as pessoas fazem o tempo todo. Algumas vezes
inferências como estas são ditas serem inferências indutivas.25 Incluído nisto está o tipo de
inferência que você faz quando observa que uma ampla variedade de coisas de um certo
tipo têm todas uma certa propriedade e você conclui que a próxima coisa desse tipo terá
essa propriedade. Isto é conhecido como indução enumerativa.

não teríamos nenhum termo simples para nos referirmos às crenças que não são justificadas e que não tem
base em outras crenças.
25
É possível levantar questões céticas sobre a indução. Tais questões serão discutidas no capítulo 7.
98

Outra inferência não-dedutiva é a inferência para a melhor explicação. É plausível


considerar a inferência de Careful de (9) para (1) como sendo desse tipo. Dados os fatos
que ele reuniu, é possível que outra pessoa tenha roubado a pintura. Entretanto, qualquer
alternativa requer um conjunto de coincidências ou maquinações bizarras e improváveis. A
melhor explicação dos fatos é que Filcher o fez. Os fundacionistas modestos sustentam que
quando uma proposição em particular entra na melhor explicação das crenças básicas justi-
ficadas de alguém, acreditar nessa proposição está justificado.
Logo, a resposta do fundacionista modesto para (QF3) pode ser resumida no se-
guinte princípio:

FM3. Crenças não-básicas estão justificadas quando elas são sustentadas por infe-
rências indutivas fortes – incluindo indução enumerativa e inferência para a melhor expli-
cação – desde crenças básicas justificadas.

Dois esclarecimentos sobre (FM3) são importantes. Recorde a condição de evidên-


cia total e a condição embasadora mencionada na seção I. A primeira dizia que uma crença
está justificada apenas se ela é sustentada pela evidência total de alguém. Só ter evidência
que sustente uma proposição não é suficiente para a justificação, pois essa evidência pode
ser abalada por outra evidência. A segunda condição conduzia à idéia de que uma crença
justificada precisa estar embasada em uma evidência sustentadora. Se alguém tem algumas
boas razões para acreditar em alguma coisa, mas acredita nessa coisa como resultado de
mero pensamento positivo ou de um mau raciocínio, então a crença resultante não está bem
fundamentada. Os fundacionistas modestos querem incluir ambas essas idéias em sua teo-
ria. Assim, uma melhor formulação de seu ponto de vista sobre crenças não-básicas iria
incluir isto:

FM3a. Crenças não-básicas estão justificadas (bem fundamentadas) quando (a) elas
são sustentadas por inferências indutivas fortes – incluindo indução enumerativa e inferên-
cia para a melhor explicação – desde crenças básicas justificadas e (b) elas não são supera-
das por outra evidência.26
99

Isto completa a nossa descrição da resposta do fundacionismo modesto para (QF3).


Não é desarrazoado levantar questões sobre a adequação dessa resposta. Algumas destas
questões serão consideradas mais tarde neste capítulo e nos capítulos que seguem.
Considere em seguida o que os fundacionistas modestos dizem sobre as crenças bá-
sicas. Uma característica das crenças que os fundacionistas modestos contam com básicas
é que elas são formadas espontaneamente ou não-inferencialmente. Para apanhar a idéia
aqui, contraste dois casos nos quais você forma um juízo sobre o tipo de árvore diante de
você. Em um caso, imagine que você está completamente familiarizado com árvores e,
quando olha para essa árvore, você imediatamente e sem refletir acredita que ela é um pi-
nheiro. Nenhuma inferência é feita neste caso. No outro caso, você está longe de ser um
especialista. É preciso pensar e refletir para descobrir que tipo de árvore você está vendo.
Você nota que a árvore tem ramos com folhas finas e longas como agulhas, lembra que pi-
nheiros caracteristicamente são assim, e conclui que a árvore é um pinheiro. Em cada caso,
você foi do olhar para a árvore para a crença de que ela é um pinheiro. Entretanto, no se-
gundo caso você segue através de um passo inferencial consciente a respeito do formato
das folhas. Você não faz isso no primeiro caso. No primeiro caso, então, você tem a crença
espontânea, não-inferencial, de que a árvore é um pinheiro. No segundo caso, você não tem
essa crença espontânea, embora tenha a crença espontânea de que a árvore tem folhas lon-
gas, pontudas como agulhas. Generalizando a partir destes exemplos, os fundacionistas
modestos podem dizer que, quando quer que as pessoas formem uma crença, ela pode ser
rastreada até uma ou outra crença espontaneamente formada. Mas não há conteúdo uni-
forme para essas crenças. Elas podem ser crenças sobre classificações de objetos, elas po-
dem ser crenças sobre qualidades sensoriais (cores, formas, etc.) de objetos, e elas podem
ser sobre as próprias experiências sensoriais de alguém. Também podemos acreditar nessas
mesmas proposições como o resultado de inferências.
Os fundacionistas modestos podem fazer uso da idéia de crenças espontaneamente
formadas na construção de sua teoria. Eles podem dizer:

FM1. Crenças básicas são crenças espontaneamente formadas. Crenças sobre o


mundo externo, incluindo crenças sobre os tipos de objetos experimentados ou suas quali-

26
É importante compreender que para que a cláusula (a) seja satisfeita não é suficiente que meramente se
tenha alguma evidência que proporcione sustentação. É requerido que a evidência que proporcione sustenta-
ção seja muito forte – forte o suficiente para proporcionar o nível de justificação para o conhecimento.
100

dades sensoriais, são freqüentemente básicas e justificadas. Crenças sobre estados mentais
também podem ser básicas e justificadas.
FM2. Ser espontaneamente formada torna uma crença justificada.

Desafortunadamente, esta versão simples do fundacionismo modesto é altamente


implausível. Seguramente nem todas as crenças espontaneamente formadas estão justifica-
das. Quando você entra numa sala, vê uma mesa, e espontaneamente forma a crença de que
há uma mesa ali, sua crença não está justificada simplesmente porque ela é espontanea-
mente formada. O que é crucial é que a crença é, em algum sentido, uma resposta apropri-
ada ao estímulo perceptivo. Algumas crenças espontâneas não são assim. Suponha que vo-
cê esteja esperando que um amigo venha à sua casa para visitá-lo, ainda que você não te-
nha nenhuma razão particularmente boa para pensar que ele virá. Você ouve um carro pas-
sando pela sua rua e espontaneamente forma a crença de que seu amigo chegou. Neste ca-
so, você tem uma crença espontaneamente formada, mas ela não é uma crença bem-
justificada. As coisas poderiam ser ainda piores. Você poderia ter forte evidência contra a
sua crença espontaneamente formada – talvez você tenha razão para pensar que seu amigo
esteja fora da cidade. Neste caso, sua crença espontaneamente formada não está absoluta-
mente justificada. É fácil produzir exemplos adicionais estabelecendo este ponto.
Estas considerações mostram que o fundacionista modesto precisa substituir (FM2)
por um princípio melhor. Eis aqui uma maneira pela qual a teoria poderia ser revisada. Ao
invés de dizer que todas as crenças espontaneamente formadas estão justificadas, eles po-
dem dizer que elas estão justificadas dado que não se tenha evidência contra elas. Como
alguns iriam dizer, elas são “inocentes até prova em contrário”.

FM2a. Todas as crenças espontaneamente formadas estão justificadas a menos que


elas sejam superadas por outra evidência que o crente tenha.

A idéia aqui é a de que se uma pessoa forma uma crença espontaneamente, não na
base de qualquer inferência, então essa crença está justificada dado que a pessoa não tenha
razões que abalem essa crença.
(FM2a) não toma em consideração um fato sugerido por alguns dos exemplos que
nós temos considerado. Quando crenças espontâneas são justificadas, elas estão conectadas
com a experiência de uma maneira importante, embora difícil de descrever. Quando você
101

entra numa sala, vê uma mesa, e forma a crença de que há uma mesa ali, o que torna a sua
crença justificada não é simplesmente o fato de que esta crença é espontaneamente forma-
da ou mesmo o fato de que ela é espontaneamente formada combinado com o fato de que
você não tem evidência contra haver uma mesa ali. (Suponha que você não tenha qualquer
outra evidência contra ou a favor de haver uma mesa ali.) O que parece central é que sua
crença é uma resposta apropriada ao estímulo perceptivo que você tem. É alguma coisa a-
propriada crer dada essa experiência. Acreditar em alguma coisa que não se encaixa em
absoluto nessa experiência, tal como que há um elefante na sala, não seria uma resposta
apropriada a essa experiência. Acreditar em alguma coisa que vai além do que é revelado
na experiência, tal como que há ali uma mesa que tem exatamente 12 anos de idade, não
seria uma resposta apropriada a essa experiência.
Uma versão mais refinada do fundacionismo modesto faz uso dessa idéia de uma
resposta apropriada às experiências. Responder propriamente a uma experiência é acreditar
no que essa experiência, por si mesma, indica estar presente. A vítima de uma alucinação
perfeita, então, responde apropriadamente à experiência ao acreditar no que parece ser ver-
dadeiro, mesmo que ele não seja verdadeiro. Mas quando as pessoas superestimam suas
experiências, ou as interpretam mal, então elas não estão respondendo apropriadamente.
Logo, os fundacionistas modestos podem dizer:

FM2b. Uma crença formada espontaneamente está justificada dado que ela seja
uma resposta apropriada às experiências e não seja superada por outra evidência que o
crente tenha.

Outros exemplos esclarecerão a idéia. Compare um observador de pássaros novato


e um especialista andando juntos na floresta, procurando o raro flycatcher com manchas
cor-de-rosa. Um pássaro voa e cada um deles forma espontaneamente a crença de que há
ali um flycatcher com manchas cor-de-rosa. O especialista sabe que isso é verdade, mas o
novato está tirando essa conclusão como resultado da excitação. O especialista tem uma
crença bem fundamentada, mas não o novato. Na mesma situação, tanto o novato quanto o
especialista podem ter crenças bem fundamentadas sobre a cor, a forma e o tamanho do
pássaro que eles vêem. Isto sugere que há alguma diferença relevante entre propriedades
tais como ser cinzento com manchas cor-de-rosa e ter cerca de 4 polegadas de comprimen-
to e propriedades tais como ser um flycatcher com manchas cor-de-rosa. Alguém poderia
102

dizer que as primeiras propriedades são “mais próximas à experiência” do que as últimas.
Qualquer um com a visão apropriada pode discernir as primeiras propriedades na experiên-
cia. Isto não é verdade das últimas.
Isto sugere dois fatores sobre quando crenças estão apropriadamente embasadas na
experiência. Primeiro, quando os conteúdos da crença estão mais próximos dos conteúdos
diretos da experiência, eles estão mais aptos a serem apropriadamente embasados na expe-
riência. Segundo, os fundacionistas modestos podem dizer que treinamento e experiência
afetam o que conta como uma resposta apropriada à experiência. O treinamento do espe-
cialista torna a sua resposta apropriada. Para crenças que estão mais distantes da experiên-
cia, tal treinamento é necessário para a crença estar apropriadamente embasada na experi-
ência. Logo, o fundacionismo modesto é capturado pelos seguintes princípios:

FM1. Crenças básicas são crenças espontaneamente formadas. Crenças sobre o


mundo externo, incluindo crenças sobre os tipos de objetos experimentados ou suas quali-
dades sensoriais, são freqüentemente básicas e justificadas. Crenças sobre estados mentais
também podem ser básicas e justificadas.
FM2b. Uma crença formada espontaneamente está justificada dado que ela seja
uma resposta apropriada às experiências e não seja superada por outra evidência que o
crente tenha.
FM3. Crenças não-básicas estão justificadas quando elas são sustentadas por infe-
rências indutivas fortes – incluindo indução enumerativa e inferência para a melhor expli-
cação – desde crenças básicas justificadas.

C. Objeções ao Fundacionismo Modesto

O fundacionismo modesto é uma teoria atraente. O problema central que ela en-
frenta diz respeito à idéia de uma crença ser apropriadamente embasada na experiência.

C1. Objeção 1: Nada é Básico Em um livro amplamente discutido, Laurence Bon-


Jour levanta uma objeção geral à idéia mesma de que existem crenças básicas justificadas.
Eis aqui uma maneira em que ele formula seu argumento:

... o papel fundamental que o requisito da justificação epistêmica serve


na análise racional geral do conceito de conhecimento é aquele de um meio para
103

a verdade; ... Logo, se as crenças básicas vão proporcionar uma fundação segura
para o conhecimento empírico, ... então esse traço, qualquer que ele seja, em vir-
tude da qual uma crença em particular se qualifica como básica, deve também se
constituir numa boa razão para pensar que a crença é verdadeira... Se nós fizer-
mos Φ representar o traço ou característica, qualquer que ele possa ser, que dis-
tingue crenças empíricas básicas de outras crenças empíricas, então em uma des-
crição fundacionista aceitável uma crença empírica B em particular poderia se
qualificar como básica somente se as premissas do seguinte argumento justifica-
tório estivessem adequadamente justificadas:

(1) B tem o traço Φ.


(2) Crenças tendo o traço Φ são muito provavelmente verdadeiras
Portanto, B é muito provavelmente verdadeira.

... Mas se tudo isso é correto, nós chegamos ao perturbador resultado de


que B não é básica no final das contas, uma vez que a sua justificação depende
de ao menos uma outra crença empírica [a saber, (2)].27

A idéia de BonJour é simples e importante. A justificação é suposta ser indicativa


da verdade. Se algum traço torna uma crença justificada, então o crente precisa estar justi-
ficado em acreditar que esse traço é um indicador da verdade. Se a pessoa carece de justifi-
cação para isso, então a crença não está justificada. Mas, se a pessoa tem essa justificação,
então ela é parte de um argumento para a crença e, logo, a crença não é básica afinal de
contas. Assim, nenhuma crença poderia ser básica e justificada. O fundacionismo não pode
estar certo.
Chame o tipo de argumento que BonJour pensa que se deve ter para uma crença a-
legadamente básica de argumento “Traço Indicativo da Verdade” (TIV) para essa crença.
Um argumento TIV é um argumento mostrando que a crença resulta de algum fator que é
indicativo de sua verdade. Por exemplo, suponha que tom creia em algo sobre reparos de
carros com base no fato de que Ray o disse. Sua crença nessa proposição está justificada,
de acordo com o pensamento de BonJour, somente se ele tem um argumento TIV para ela.
Tal argumento poderia dizer que sua crença está embasada no fato de que Ray disse a ele, e
Ray está usualmente certo sobre tais coisas. De forma semelhante, se alguém tem uma
crença embasada na percepção ou na introspecção, então essa crença está justificada so-
mente se a pessoa está justificada em crer que a percepção ou a introspecção usualmente
estão corretas.
O argumento geral de BonJour contra o fundacionismo pode ser formulado assim:

27
Laurence BonJour, The Structure of Empirical Knowledge (Cambridge, MA: Harvard University Press,
1985), pp. 30-31. Uma linha de pensamento similar é apresentada no amplamente reimpresso ensaio de Bon-
Jour, “Can Empirical Knowledge Have a Foundation?” American Philosophical Quarterly 15 (1978): 1-13.
104

Argumento 4.5: O Argumento TIV de BonJour


5-1. Para qualquer proposição p na qual S acredita, ou S tem um argumento TIV
para ela, ou S não o tem.
5-2. Se S tem um argumento TIV para ela, então a crença de S em p é sustentada
por esse argumento e ela não é uma crença básica justificada.
5-3. Se S não tem um argumento TIV para ela, então a crença de S em p não está
justificada e, logo, ela não é uma crença básica justificada.
5-4. A crença de S em p não é uma crença básica justificada. (5-1), (5-2), (5-3)

Se (5-4) é verdadeira, então não há crenças básicas justificadas e nenhuma versão


de fundacionismo poderia estar correta.
O argumento de BonJour é intrigante e complicado. Compreender a resposta do
fundacionista modesto ao argumento é central para compreender o próprio fundacionismo
modesto. A idéia central dele é a de que não é a confiabilidade geral da introspecção ou da
percepção que torna justificadas algumas crenças básicas justificadas. Antes, afirma ele, há
uma relação mais direta entre a experiência e a crença que é crucial aqui. A idéia dele é a
de que, ao menos no caso típico, quando você tem uma visão clara de um objeto vermelho
brilhante, então a sua experiência ela mesma justifica a crença de que você está vendo al-
guma coisa vermelha. Essa crença é a resposta apropriada a essa experiência. Crenças so-
bre a confiabilidade de seu sistema perceptivo simplesmente não são necessárias para a
justificação. Naturalmente, a maioria de nós tem crenças sobre a confiabilidade de nossos
sistemas perceptivos, mas o ponto do fundacionista modesto é que estas crenças não são
necessárias para a justificação. De forma similar, se você se sente com calor, a sua razão
para pensar que você se sente com calor é apenas a sua sensação (experiência) de calor.
Você não tem de saber que as experiências são boas razões para crenças ou saber que a sua
crença de que você se sente com calor está justificada. Você pode, não obstante, saber (e
estar justificado em acreditar) que você se sente com calor. A idéia do fundacionista mo-
desto, então, é de que as próprias experiências podem ser evidência. Você pode ser sufici-
entemente epistemólogo para estar apto a formular algum tipo de argumento TIV para uma
crença que está sustentada por essa evidência experiencial, mas esse argumento TIV é jus-
tificação extra. Você não precisa dele para a sua crença estar justificada.
Essas considerações mostram que tanto (5-2) quanto (5-3) do argumento de Bon-
Jour estão erradas. Uma vez que uma experiência pode justificar diretamente uma crença,
105

sem ter o crente um argumento TIV para ela, (5-3) é falsa. E mesmo que a pessoa tenha o
argumento TIV para ela, a crença pode também ser justificada diretamente pela experiên-
cia e ser ainda uma crença básica justificada. O argumento TIV é, com efeito, supérfluo.
Por isso, (5-2) é falsa.

C2. Objeção 2: Respostas Apropriadas às Experiências? A segunda objeção ao


fundacionismo modesto é mais um pedido de esclarecimento do que uma tentativa de refu-
tação. Os fundacionistas modestos podem dizer, talvez com alguma plausibilidade, que
certas crenças estão apropriadamente embasadas na experiência e outras não. Mas seria
bom ter uma compreensão mais geral e sistemática de exatamente porque as coisas funcio-
nam da maneira que os fundacionistas dizem que elas funcionam. Por que, exatamente, a
crença de que há uma mesa na sala está apropriadamente embasada na experiência, mas a
crença de que há uma mesa de 84 anos de idade na sala não está apropriadamente embasa-
da na experiência? Considere também uma pessoa que vê um objeto de formato triangular
claramente exposto. A pessoa está justificada em acreditar que há um objeto de formato
triangular ali, e a crença nessa proposição estaria apropriadamente embasada na experiên-
cia. Contraste isso com uma pessoa que vê um objeto de 44 lados claramente exposto em
frente dela. A proposição de que há ali um objeto de 44 lados não está justificada para ela,
e a crença nessa proposição não está apropriadamente embasada na experiência. Mas qual
é a diferença entre esses casos?28 O que determina quais experiências estão apropriadamen-
te embasadas na experiência e quais não estão?
Estas são boas questões sobre o fundacionismo modesto. Muitos filósofos estão
convencidos de que deve haver uma boa resposta para elas, uma vez que é muito claro que
as crenças sobre a mesa e o objeto triangular estão justificadas pela experiência, enquanto
que as crenças sobre a mesa de 84 anos e o objeto de 44 lados não estão justificadas pela
experiência. Ainda assim, é difícil ver exatamente como formular uma resposta geral. Nós
veremos no capítulo 5 que há algumas respostas que podem ser dadas a essas questões por
filósofos que se desligam da teoria evidencialista de uma maneira importante. E nós vere-
mos no capítulo 7 que os céticos levantam uma questão mais geral sobre as alegações do
fundacionista modesto referente ao que é apropriadamente embasado nas experiências. Nós

28
Ernest Sosa formula uma questão tal como essa no capítulo 6 de Virtue Epistemology em Blackwell Great
Debates
106

reconsideraremos a plausibilidade dos pontos de vista do fundacionista modesto naquele


capítulo.

D. Conclusões Sobre o Fundacionismo Modesto

O fundacionismo modesto é uma teoria atraente. As conclusões centrais sobre ele


são as seguintes:

1. Ao permitir conexões não-dedutivas entre crenças básicas justificadas e crenças


justificadas não-básicas, os fundacionistas modestos estão aptos a evitar o resultado com o
qual o fundacionismo cartesiano parece comprometido, o de que dificilmente qualquer
crença sobre o mundo externo está justificada.
2. Ao permitir que nós não sejamos infalíveis sobre o conteúdo das crenças básicas,
os fundacionistas modestos estão aptos a evitar o resultado de que há muito poucas crenças
básicas justificadas.
3. Ao permitir que as crenças básicas possam ser crenças sobre o mundo externo,
em vez de restringi-las a crenças sobre os estados internos próprios de uma pessoa, os fun-
dacionistas modestos têm uma chance melhor do que os fundacionistas cartesianos de en-
contrar uma fundação ampla o suficiente para o nosso conhecimento do mundo.
4. Ao requerer que as crenças básicas estejam apropriadamente embasadas na expe-
riência, os fundacionistas modestos evitam a Objeção do Isolamento que abala o coeren-
tismo.
5. Uma explicação mais completamente desenvolvida das condições sob as quais
uma crença está apropriadamente embasada na experiência é desejável.

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