CAPÍTULO UM
QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS
I. A PERSPECTIVA STANDARD
2
No curso comum dos eventos, as pessoas alegam conhecer muitas coisas, e elas a-
tribuem conhecimento aos outros numa variedade de casos. Daremos exemplos abaixo. As
alegações de conhecimento com as quais nós estamos preocupados não são as irrefletidas
ou esquisitas. Antes, elas são juízos sensatos e ponderados. Assim, a lista que segue reflete
um conjunto de pensamentos acerca do conhecimento e da racionalidade ao qual muitas
pessoas provavelmente chegariam se elas refletissem honesta e cuidadosamente acerca do
tópico. Você pode não concordar com cada detalhe da perspectiva a ser descrita, mas é jus-
to dizer que ela captura acuradamente o senso comum reflexivo.
Existem, naturalmente, muitas coisas destas categorias que nós não conhecemos.
Alguns fatos acerca do passado distante estão irrecuperavelmente perdidos. Alguns fatos
acerca do futuro estão, ao menos por enquanto, além de nosso alcance. Algumas das áreas
de conhecimento da lista são controversas. Você pode ter dúvidas acerca de nosso conhe-
cimento nas áreas da moralidade e da religião. Ainda assim, a lista proporciona uma exem-
plificação adequada dos tipos de coisas que nós tipicamente alegamos conhecer.
Assim, a primeira tese da Perspectiva Standard é
PS1. Nós conhecemos uma grande variedade de coisas das categorias (a) – (k).
B. Fontes de Conhecimento
Se (PS1) está correta, então existem algumas maneiras pelas quais nós chegamos a
conhecer as coisas que ela diz que conhecemos; existem algumas fontes para o nosso co-
1
Os fãs dos Cubs podem não gostar deste exemplo. Mas aqueles que acompanham beisebol sabem que, não
importa o que aconteça, os Cubs nunca vencem. Nem o Boston Red Sox.
4
nhecimento. Por exemplo, se nós conhecemos alguma coisa acerca do nosso meio-
ambiente imediato, então a percepção e a sensação jogam um papel central na aquisição
desse conhecimento. A memória obviamente é crucial para o nosso conhecimento do pas-
sado e também para certos aspectos do nosso conhecimento de fatos correntes. Por exem-
plo, meu conhecimento de que a árvore que vejo através de minha janela é um bordo de-
pende da minha percepção da árvore e da minha lembrança de como os bordos se parecem.
Outra fonte de boa parte de nosso conhecimento é o testemunho das outras pessoas. O tes-
temunho não se restringe aqui às declarações feitas por testemunhas sob juramento. Ele é
muito mais amplo do que isso. Ele inclui o que as outras pessoas dizem a você, incluindo o
que elas dizem a você na televisão ou em livros e jornais.
Três outras fontes de conhecimento merecem também uma breve menção aqui. Se a
percepção é a nossa consciência das coisas externas através da visão, da audição e dos ou-
tros sentidos, então a percepção não dá conta do nosso conhecimento de nossos próprios
estados internos. Você pode agora saber que se sente sonolento, ou que está agora pensan-
do acerca do que irá fazer no final de semana. Mas isso não ocorre por meio da percepção
no sentido recém estabelecido. Ocorre, antes, por meio da introspecção. Assim, esta é outra
potencial fonte de conhecimento.
Além disso, algumas vezes nós conhecemos coisas por raciocínio ou inferência.
Quando nós conhecemos alguns fatos e vemos que aqueles fatos sustentam algum outro
fato, nós chegamos a conhecer esse outro fato. O conhecimento científico, por exemplo,
parece surgir de inferências a partir de dados observacionais.
Finalmente, parece que conhecemos algumas coisas simplesmente porque nós po-
demos “ver” que elas são verdadeiras. Isto é, nós temos a habilidade de pensar acerca das
coisas e de discernir algumas verdades simples. Embora isso seja matéria de alguma con-
trovérsia, nosso conhecimento de aritmética elementar, de lógica simples e de verdades
conceituais parece cair nessa categoria. Por falta de um termo melhor, nós iremos dizer que
conhecemos essas coisas por meio de insight racional.
Nossa lista das fontes de conhecimento, então, se parece com isto:
a. Percepção
b. Memória
c. Testemunho
d. Introspecção
5
e. Raciocínio
f. Insight racional
Q1. Sob que condições uma pessoa sabe que alguma coisa é verdadeira?
Pode-se pensar que é uma questão de quão segura uma pessoa se sente sobre algu-
ma coisa ou de se existe um acordo geral sobre o assunto. Como veremos, estas não são
boas respostas para (Q1). Alguma coisa mais distingue o conhecimento de seu oposto.
(Q1) se revela surpreendentemente difícil, controversa e interessante. Produzir uma respos-
ta para ela envolve pensar em algumas questões difíceis. Esse será o foco dos capítulos 2 e
3.
De acordo com muitos filósofos, uma condição importante para o conhecimento é a
crença racional ou justificada. Conhecer alguma coisa requer algo como ter uma boa razão
para crer nela, ou chegar a crer nela da maneira correta, ou alguma coisa do tipo. Você não
conhece uma coisa se está apenas adivinhando, por exemplo. Isto nos leva a uma segunda
questão, uma que tem sido central para a epistemologia por muitos anos:
Q2. Sob que condições uma crença é justificada (ou razoável, ou racional)?
E isto nos levará a questões adicionais acerca das alegadas fontes de conhecimento.
Como essas faculdades nos tornam aptos a satisfazer as condições para o conhecimento?
Como elas podem produzir a justificação epistêmica? Esse será o foco dos capítulos 4 e 5,
bem como de partes dos capítulos 7-9.
Nossas crenças obviamente jogam um papel central na determinação de nosso
comportamento. Você irá se comportar de maneira muito diferente em relação ao seu vizi-
nho se acreditar que ele seja um amigo confiável ao invés de um inimigo desonesto. Dada
a habilidade das crenças de afetar o nosso comportamento, parece claro que as suas crenças
podem afetar a sua vida e a vida dos demais. Dependendo da sua carreira e da extensão na
qual os outros dependem de você, você pode ter a obrigação de conhecer certas coisas. Por
exemplo, um médico deve conhecer os últimos desenvolvimentos em sua especialidade.
Algumas vezes, entretanto, o conhecimento pode ser uma coisa ruim, como quando alguém
fica sabendo da deslealdade de um aparente amigo. Estas considerações sugerem que ques-
7
tões práticas e morais interagem com questões epistemológicas de maneiras que merecem
exame. Assim,
A cuidadosa reflexão filosófica sobre as questões até agora listadas, a ser desenvol-
vida nos capítulos 2-5, resultará na exposição detalhada daquilo a que conduz a Perspecti-
va Standard. Entretanto, como se evidenciará ao prosseguirmos, há razões para perguntar-
mos se essa perspectiva do senso comum é realmente correta. Nós daremos a essas razões e
às visões alternativas sobre o conhecimento e a racionalidade associadas a elas a devida
atenção nos capítulos 6-9. As idéias centrais por detrás dessas dúvidas são as bases para as
questões restantes acerca da Perspectiva Standard.
A. A Perspectiva Cética
Os advogados da Perspectiva Standard sustentam que nós conhecemos muito me-
nos do que a Perspectiva Standard diz que nós conhecemos. O ceticismo constitui um tra-
dicional e poderoso desafio filosófico à Perspectiva Standard. Os céticos pensam que a
Perspectiva Standard é demasiado caridosa e auto-indulgente. Eles pensam que a nossa
asserção confiante de que conhecemos muitas coisas resulta de uma autoconfiança presun-
çosa que é inteiramente injustificada. Como nós veremos, alguns argumentos céticos re-
pousam sobre possibilidades aparentemente bizarras: talvez você esteja apenas sonhando
que vê e ouve as coisas que você pensa que está vendo e ouvindo; talvez a sua vida seja
algum tipo de realidade artificial gerada por computador. Outros argumentos céticos não
repousam sobre hipóteses estranhas como essas. Mas todas elas desafiam as nossas confor-
táveis visões do senso comum. Essas considerações conduzem a um novo conjunto de
questões epistemológicas:
8
Q4. Nós realmente temos algum conhecimento? Há alguma boa resposta aos
argumentos dos céticos?
(Q4) questiona se, com efeito, as condições formuladas em resposta a (Q1) são de
fato satisfeitas. Os advogados da Perspectiva Cética sustentam que a resposta para cada
uma das questões de (Q4) é “Não.” Eles estão inclinados a negar tanto (PS1) quanto (PS2).
B. A Perspectiva Naturalista
A metodologia tradicionalmente utilizada pelos epistemólogos é primariamente a
análise conceitual ou filosófica: pensar rigorosamente acerca de como são o conhecimento
e a racionalidade, freqüentemente utilizando exemplos hipotéticos para ilustrar as questões.
Entretanto, pode-se perguntar se não faríamos melhor estudando alguma dessas questões
cientificamente. Recentemente, muitos filósofos têm dito que o faríamos. Chamaremos a
essa perspectiva de Perspectiva Naturalista porque ela enfatiza o papel da ciência natural
(ou empírica ou experimental). Assim, uma maneira pela qual a Perspectiva Naturalista
desafia a Perspectiva Standard tem a ver com a metodologia utilizada para sustentar as te-
ses (PS1) e (PS2) da Perspectiva Standard.
A Perspectiva Naturalista conduz a um segundo tipo de desafio à Perspectiva
Standard. Há um corpo de pesquisas acerca das maneiras pelas quais as pessoas pensam e
raciocinam que é perturbador. Ele mostra, ou ao menos parece mostrar, erros e confusões
sistemáticos e generalizados na maneira como nós pensamos e raciocinamos. Quando con-
frontadas com os resultados dessas pesquisas, algumas pessoas se perguntam se algo como
a Perspectiva Standard pode estar correta.
Estas considerações conduzem ao nosso próximo conjunto de questões:
C. A Perspectiva Relativista
Outro desafio à Perspectiva Standard emerge de considerações de relativismo e de
diversidade cognitiva. Para ver as questões envolvidas aqui, note que as crenças das pesso-
as e as suas políticas de formação de crenças diferem amplamente. Por exemplo, algumas
9
pessoas estão dispostas a crer na base de pouca evidência. Algumas parecem demandar
muita evidência. As pessoas diferem também em suas atitudes em relação à ciência. Algu-
mas pessoas crêem fortemente no poder da ciência. Elas pensam que os métodos da ciência
proporcionam a única maneira razoável de aprender acerca do mundo que nos cerca. Elas
às vezes consideram aos demais como irracionais por crer em coisas tais como astrologia,
reencarnação, PES, e outros fenômenos ocultos. Defensores destas crenças às vezes acu-
sam seus críticos de fé cega e irracional na ciência. As pessoas também diferem ampla-
mente sobre questões políticas, morais e religiosas. Pessoas aparentemente inteligentes po-
dem se encontrar em sério desacordo umas com as outras sobre essas questões. Não há dú-
vida, então, de que as pessoas discordam, com freqüência veementemente, acerca de um
grande número de coisas.
O fato de que haja todo esse desacordo leva algumas pessoas a perguntar se em ca-
da caso (ao menos) uma das partes da disputa deva está sendo desarrazoada. Um pensa-
mento confortador para muitos é o de que há lugar para um desacordo razoável, ao menos
sobre certos tópicos. Isto é, duas pessoas podem ter diferentes pontos de vista e ainda as-
sim serem razoáveis ao manter suas próprias perspectivas. Defensores da Perspectiva Rela-
tivista estão inclinados a conceder espaço para muito desacordo razoável, enquanto que os
defensores da Perspectiva Standard parecem estar mais inclinados a pensar que uma das
partes (ao menos) deve estar errada em toda disputa.
Estas considerações sobre a diversidade cognitiva e a possibilidade de desacordos
razoáveis provocam as seguintes questões que têm a ver com o relativismo epistemológico:
As questões levantadas de (Q1) até (Q6) estão entre os problemas centrais da epis-
temologia. Os capítulos que seguem tratam delas.
10
CAPÍTULO DOIS
I. TIPOS DE CONHECIMENTO
A Perspectiva Standard diz que nós temos uma boa quantidade de conhecimento e
diz alguma coisa sobre as fontes desse conhecimento. Um aspecto central para esclarecer
exatamente aonde leva a Perspectiva Standard é esclarecer exatamente o que ela toma co-
mo conhecimento. A Perspectiva Standard diz que nós temos conhecimento, mas o que é o
conhecimento?
1
Os exemplos seguintes mostram padrões gerais de vários tipos de enunciados, com um exemplo mostrando
como cada padrão poderia ser preenchido. Os padrões fazem uso de variáveis que podem ser substituídas por
termos específicos. Seguindo a prática standard, “S” é usada como uma variável a ser substituída por um
11
Esta lista está longe de ser completa. Nós poderíamos acrescentar sentenças usando
expressões tais como “sabe qual”, “sabe porque”, e assim por diante. Mas a lista que temos
já será suficiente para destacar as principais questões a serem feitas aqui.
nome ou a descrição de uma pessoa, “x” é usada como a variável a ser substituída por uma sentença completa
que expresse um fato ou o significado de um fato (uma proposição), e “A” por uma descrição de uma ação.
2
Para uma discussão de qual é exatamente o significado da palavra “proposição,” veja a seção III, parte A1
deste capítulo.
12
3
É importante entender a diferença entre (2) e
2a. O bibliotecário sabe que, ou há um livro de Salinger na biblioteca, ou não há um livro de Salin-
ger na biblioteca.
(2a) é verdadeira; (2a) descreve o conhecimento de uma disjunção (um enunciado “ou”) e qualquer um pode
ter esse conhecimento. Mas o bibliotecário precisa possuir um conhecimento especial se (2) é verdadeira. Ele
deve saber qual dos disjuntos (as partes do enunciado “ou”) é verdadeiro.
4
“∼p” significa “não-p”, ou a negação de p. A negação de “Há um livro de Salinger na biblioteca” é “Não é o
caso de que haja um livro de Salinger na biblioteca.”
13
por esse teste: os dois lados da definição coincidem. Assim, nós podemos explicar “saber
se” em termos de “saber que.”
Também é possível definir alguns dos outros tipos de conhecimento em termos de
conhecimento proposicional. As definições são mais complicadas, mas a idéia ainda é bas-
tante clara. Considere “saber quando.” Se você sabe quando algo aconteceu (ou irá aconte-
cer), então há alguma proposição expressando o momento em que aquilo aconteceu (ou irá
acontecer) tal que você sabe que essa proposição é verdadeira. Assim, dizer
é dizer que o editor sabia, com respeito a um momento do tempo em particular, que
o livro de J. D. Salinger seria publicado nesse momento, e.g., ele sabia que seria publicado
em 1950 ou que seria publicado em 1951, etc. Aqueles que sabiam menos que o editor não
estavam nessa posição. Para eles, não havia um momento tal que eles conhecessem a pro-
posição de que o livro seria publicado naquele momento.
Novamente, nós podemos generalizar a idéia e expressá-la como uma definição:
D2. S sabe quando x acontece = df. Há alguma proposição dizendo que x acon-
tece em algum momento em particular e S conhece essa proposição. (Há algu-
ma proposição, p, onde p é da forma “x acontece em t” e S conhece p.)
Mais uma vez, nós temos uma maneira de explicar um tipo de conhecimento – sa-
ber quando – em termos de conhecimento proposicional. É provável que abordagens simi-
lares funcionem para saber qual, saber porque, e numerosas outras sentenças sobre o co-
nhecimento. O caso em favor do conhecimento proposicional ser fundamental parece mui-
to forte.
Entretanto, é improvável que todas as coisas que nós digamos usando as palavras
sabe/conhece possam ser expressas em termos de conhecimento proposicional. Considere
o primeiro item de nossa lista: “S conhece x.” Você pode pensar que conhecer alguém ou
alguma coisa é ter conhecimento proposicional de alguns fatos sobre essa pessoa ou coisa.
Assim, nós podemos propor
14
É provável que alguém que você conheça seja alguém sobre quem você conheça
alguns fatos. Mas conhecer alguns fatos sobre uma pessoa não é suficiente para conhecer a
pessoa. J. D. Salinger é um autor recluso, mas bem conhecido. Muitas pessoas sabem al-
guns fatos sobre ele: elas sabem que ele escreveu O Apanhador no Campo de Centeio. Elas
podem saber que ele não interage com uma grande quantidade de pessoas. Desse modo,
elas conhecem fatos sobre ele, mas elas não o conhecem. Assim, conhecer uma pessoa não
é o mesmo que conhecer alguns fatos sobre a pessoa.
Isso mostra que a definição (D3) não é correta. Isso também ilustra outra questão
metodológica importante. O exemplo mostra que (D3) não é correta porque ele é um con-
tra-exemplo para (D3): ele é um exemplo que mostra que os lados da definição nem sem-
pre concordam – um lado pode ser verdadeiro quando o outro for falso. Um contra-
exemplo bastante claro refuta a definição proposta. Ao revisar uma definição em resposta
aos contra-exemplos, é possível obter um melhor entendimento dos conceitos sob discus-
são.5
O contra-exemplo a (D3) mostra, não apenas que (D3) é falsa, mas também que ela
não está sequer no caminho correto. Nós não podemos fazer algumas pequenas mudanças a
fim de consertar as coisas. Não iria ajudar se S conhecesse muitos fatos sobre x, ou se S
conhecesse fatos importantes sobre x. Você pode ter esse tipo de conhecimento proposi-
cional e ainda assim não conhecer a pessoa. Conhecer x não é uma questão de conhecer
fatos sobre x. Ao invés, é uma questão de estar familiarizado com x – ter encontrado x e,
talvez, recordar esse encontro. Não importa quantos fatos você conheça sobre uma pessoa,
não se segue daí que você conheça essa pessoa. Conhecer uma pessoa ou uma coisa é estar
familiarizado com essa pessoa ou coisa, ao invés de ter conhecimento proposicional sobre
a pessoa ou coisa. Desse modo, nem todo conhecimento é conhecimento proposicional.
Considere a seguir “saber como.” Suponha que exista um hábil esquiador que, após
um sério acidente que o deixa incapacitado para esquiar, se torna um treinador de esqui de
sucesso. Seu sucesso como esquiador é, em larga medida, um resultado do fato de que ele é
extraordinariamente bom em explicar as técnicas de esqui aos estudantes. O treinador sabe
5
A metodologia usada aqui será importante na seqüência. Um teste importante para uma definição proposta é
que não existam contra-exemplos para ela.
15
como esquiar? A resposta parece ser “Sim.” Uma explicação plausível disso apela para a
seguinte definição:
D4a. S sabe como A = df. Se a é um passo importante para fazer A, então S sa-
be que a é um passo importante para fazer A.6
Isso parece mostrar que “saber como” pode ser definido em termos de conhecimen-
to proposicional.
Entretanto, outros exemplos sugerem uma idéia diferente. Considere uma criança
jovem que começa a esquiar e o faz com sucesso, sem qualquer treinamento ou entendi-
mento intelectual do que ela está fazendo. Ela também sabe como esquiar, mas ela parece
carecer do conhecimento proposicional relevante. Ela não tem qualquer entendimento
consciente explícito dos vários passos. Ela simplesmente é capaz de fazê-lo. Este exemplo
sugere que há um segundo significado da expressão “sabe como.” A seguinte definição
captura esse segundo significado:
O ex-esquiador sabe como esquiar no sentido (D4a), mas não no sentido (D4b).
Exatamente o inverso é verdadeiro do jovem prodígio. Desse modo, um tipo de saber-
como é conhecimento proposicional, mas não o outro tipo.
C. Conclusão
6
Esta definição pode necessitar de algum refinamento, mas ela captura ao menos a idéia básica em discussão.
17
Você estava lendo uma história de suspense. Todas as pistas apresentadas até o
último capítulo indicavam que o mordomo era o culpado. Você estava seguro
de que o mordomo cometera o crime é ficou surpreso quando foi revelado na
cena final que o contador era o culpado. Após terminar o livro você diz:
4. Eu sabia o tempo todo que o mordomo havia cometido o crime, mas resultou
que ele não o havia cometido.
Se você está certo quando diz (4), então é possível conhecer coisas que não são
verdadeiras. Você pode saber que o mordomo cometeu o crime, mas não é verdade que o
mordomo o cometeu. Entretanto, ainda que as pessoas algumas vezes digam coisas tais
como (4), é claro que tais coisas não são literalmente verdadeiras. Você não pode ter sabi-
do o tempo todo que o mordomo cometera o crime. O que era verdade o tempo todo era
que você estava seguro de que o mordomo o havia cometido, ou algo assim. Ao dizer (4)
você expressa, de uma maneira um pouco adornada, que foi surpreendido pelo final. Mas
(4) não é verdadeira, e não mostra que pode haver conhecimento sem verdade.
Uma segunda condição para o conhecimento é a crença. Se você conhece alguma
coisa, então você deve acreditar nela ou aceitá-la. Se você nem mesmo pensa que alguma
coisa é verdadeira, então você não a conhece. Nós estamos usando “crença” em um sentido
amplo aqui: toda vez que você assume alguma coisa como verdadeira, você acredita nela.
Assim, acreditar inclui tanto a aceitação hesitante quanto a aceitação inteiramente confian-
te. Uma boa maneira de pensar nisto é notar que quando você considera um enunciado, vo-
cê pode adotar quaisquer de três atitudes diante dele: crer, descrer ou suspender o juízo.
Como uma analogia, imagine-se forçado a dizer uma de três coisas sobre um enunciado:
“sim”, “não” ou “sem opinião.” Você dirá “sim” em uma variedade de casos, incluindo a-
queles nos quais você está inteiramente confiante em um enunciado e aqueles nos quais
você simplesmente pensa que o enunciado é provavelmente verdadeiro. Você dirá “não”
quando pensar que o enunciado é definitiva ou provavelmente falso. E usará “sem opinião”
nos casos restantes. Da mesma forma, tal como nós estamos usando o termo aqui, “crença”
se aplica a uma variedade de atitudes. Ela é contrastada com a descrença, a qual envolve
uma variedade semelhante, e com a suspensão de juízo.
É claro, então, que o conhecimento requer a crença. Se você nem mesmo pensa que
um enunciado é verdadeiro, então você não sabe que ele é verdadeiro. Há, entretanto, uma
objeção a esta alegação que merece consideração. Nós falamos algumas vezes de maneiras
18
que contrastam conhecimento e crença, sugerindo que quando você conhece alguma coisa
você não acredita nela. Para ver isto, considere o seguinte exemplo:
Ao dizer (5), John parece estar dizendo que esse é um caso de conhecimento e não
um caso de crença. A sugestão é que, se ela é uma crença, então não é conhecimento. Se
ele está certo, então a crença não é uma condição para o conhecimento.
Entretanto, mais uma vez, essa aparência é enganadora. John seguramente aceita o
enunciado de que o nome dele é “John.” Ele não rejeita o enunciado nem deixa de formar
uma opinião sobre ele. Quando ele diz (5), a questão é que ele não acredita simplesmente
que o nome dele seja “John”; ele pode dizer alguma coisa mais forte – que ele sabe isto. E
uma das maneiras pelas quais nós tipicamente procedemos em conversações é evitando
dizer uma coisa mais fraca ou modesta quando a mais forte é também verdadeira. Se seu
amigo dissesse a você, “Eu acredito que meu nome seja ‘John,’” isto sugeriria, mas não
diria literalmente, que ele não sabe isto. Há muitos outros exemplos do mesmo fenômeno.
Suponha que você esteja extremamente cansado, tendo trabalhado duro por muito tempo.
Alguém pergunta se você está cansado. Você pode responder dizendo alguma coisa como:
Tomado literalmente, o que você diz é falso. Você está cansado. O alvo do seu pro-
ferimento é enfatizar que você não está meramente cansado; você está exausto. A mesma
coisa ocorre em (5). Ao dizer (5), John não está realmente dizendo que ele não acredita no
enunciado. Assim, esse exemplo não é um contra-exemplo à tese de que o conhecimento
requer a crença.
Nós encontramos agora duas condições para o conhecimento. Para conhecer algu-
ma coisa, você precisa acreditar nela, e ela precisa ser verdadeira.
As idéias recém apresentadas podem sugerir que o conhecimento seja crença ver-
dadeira; isto é,
Uma breve reflexão deveria tornar claro que (CV) está equivocada. São muitas as
vezes em que uma pessoa tem uma crença verdadeira mas não tem conhecimento. Eis aqui
um contra-exemplo simples para (CV):
No exemplo 2.3 você acredita que Denver vencerá e isto é verdadeiro. Mas você
não sabia que Denver iria vencer. Você simplesmente teve um palpite que se revelou corre-
to.
Alguns irão dizer que o fato da crença do exemplo 2.3 ser sobre o futuro arruína o
exemplo. Mas nós podemos facilmente eliminar esta característica sem eliminar a questão.
Suponha que você não assista ao jogo mas, ao invés, vá assistir a um longo filme. Quando
você sai do cinema, você sabe que o jogo acabou. Você tem agora uma crença sobre o pas-
sado, a saber, que Denver venceu. E você está certo. Mas agora não há complicações que
tenham a ver com crenças sobre o futuro.
As objeções a (CV) não estão limitadas aos casos de palpites felizes. Outro tipo de
exemplo ilustrará o âmago do problema com (CV).
irá chover. E então chove. Assim, você teve uma crença verdadeira de que
choveria.
Você teve uma crença verdadeira de que choveria, mas carecia de conhecimento.
(Quando a chuva começa, você pode dizer “Eu sabia que ia chover,” mas você não sabia
isso realmente). Neste caso, a razão pela qual você não sabia não é que você estava adivi-
nhando. Sua crença estava baseada em alguma evidência – o boletim do tempo – e, assim,
não era simplesmente um palpite. Mas essa base não é boa o suficiente para o conhecimen-
to. O que você precisa para o conhecimento é alguma coisa como razões muito boas ou
uma base mais confiável, não apenas um boletim do tempo potencialmente inexato.
Os filósofos freqüentemente dizem que o que é necessário para o conhecimento, a-
lém da crença verdadeira, é a justificação para a crença. Exatamente o que vem a ser justi-
ficação é uma questão de considerável controvérsia. Mais tarde, nós passaremos um bom
tempo neste livro examinado essa idéia. Mas, por enquanto, será suficiente notar que, nos
exemplos de conhecimento que nós apresentamos no Capítulo 1, os crentes tinham razões
extremamente boas para as suas crenças. Em contraste, nos contra-exemplos para (CV) vo-
cê não tinha razões muito boas e poderia facilmente ter estado errado. Então, o que está
faltando nos contra-exemplos para (CV) e está presente nos exemplos de conhecimento
que nós descrevemos é a justificação. Isto nos leva à Análise Tradicional do Conhecimen-
to.
ATC. S sabe p = df. (i) S crê p, (ii) p é verdadeira, (iii) S está justificado em
crer p.
Algo nessa linha pode ser encontrado em várias fontes, talvez tão antigas quanto
Sócrates. No diálogo Mênon de Platão, Sócrates diz:
21
Pois estas (as opiniões certas), da mesma forma, enquanto permanecem, valem um tesouro e só
produzem o que é bom; mas não consentem em permanecer muito tempo na alma do homem, e
não demoram muito a escapar, a fugir, o que faz com que não tenham muito valor até o instante
em que o homem as amarra, as encadeia por um raciocínio de causalidade.(...) E assim, quando
as opiniões certas são amarradas, transformam-se em conhecimento, em ciência, e, como ciên-
cia, permanecem estáveis..7
De acordo com uma interpretação possível dessa passagem, estar apto a produzir
“um raciocínio de causalidade” de uma opinião é ter uma razão ou justificação para essa
opinião. E uma idéia da passagem citada é que isto é necessário a fim de haver conheci-
mento.8 Nós iremos ignorar a alegação adicional de que o conhecimento é menos propenso
a “escapar” da mente de uma pessoa do que as outras crenças.
Idéias semelhantes podem ser encontradas na obra de muitos filósofos contemporâ-
neos. Por exemplo, Roderick Chisholm propôs uma vez que uma pessoa conhece uma pro-
posição apenas no caso de acreditar nesta, de ser esta verdadeira, e de ser a proposição “e-
vidente” para a pessoa. E esta última condição é entendia em termos de quão razoável é
para a pessoa crer na proposição.9
Voltamos-nos agora para um exame mais completo dos três elementos da ATC.
A. Crença
Crer em alguma coisa é aceitá-la como verdadeira. Quando você considera qual-
quer enunciado, você se enfrenta com um conjunto de alternativas: você pode acreditar
nele, pode descrer dele, ou pode suspender o juízo sobre ele. Lembre que nós estamos to-
mando a crença como incluindo uma variedade de atitudes mais específicas, incluindo a
aceitação hesitante e a convicção total. A descrença inclui uma variedade correspondente
de atitudes negativas em relação a uma proposição. A qualquer momento, se você conside-
rar uma proposição, irá terminar adotando uma dessas três atitudes.10
7
Em Mênon-Banquete-Fedro, tradução de Jorge Paleikat (Rio de Janeiro: Ediouro), p. 72.
8
Uma idéia semelhante é apresentada em outro diálogo, o Teeteto, em Teeteto-Crátilo, tradução de Carlos
Alberto Nunes (Belém: Universidade Federal do Pará, 1988).
9
Roderick Chisholm, Theory of Knowledge (Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1966), p. 23.
10
Há uma maneira alternativa de pensar nestas questões. Ao invés de dizer que há três opções, você pode
dizer que se pode crer numa proposição num grau maior ou menor. Você pode pensar nesses três graus de
crença como arranjados ao longo de uma escala. Quando você aceita uma proposição com absoluta convic-
ção, você crê nela no mais alto grau. Quando você rejeita total e completamente uma proposição, você tem o
menor grau possível de crença nela. E, nos casos usuais, o seu grau de crença fica em algum lugar intermedi-
ário. A suspensão de juízo fica exatamente no meio.
22
7. Pierre acredita que George Washington foi o primeiro presidente dos Esta-
dos Unidos.
A coisa notável aqui é que (7) pode ser verdadeira mesmo que Pierre não fale uma
palavra de português. Ele não tem de entender a sentença portuguesa “George Washington
foi o primeiro presidente dos Estados Unidos.” Presumivelmente, ele expressaria sua cren-
ça usando o equivalente francês dessa sentença. A contraparte brasileira de Pierre, Pedro,
pode acreditar no que Pierre acredita. Então,
8. Pedro acredita que George Washington foi o primeiro presidente dos Estados
Unidos.
Podemos supor que Pedro não fale uma palavra de francês. Assim Pedro e Pierre
acreditam na mesma coisa, ainda que não haja uma sentença que ambos aceitem. Como
pode ser isso?
Uma maneira de entender essas questões é como segue. Sentenças são usadas para
expressar certos pensamentos ou idéias. Os filósofos usam a palavra proposição para se
referir a esses itens. A sentença portuguesa que Pedro usa e a sentença francesa que Pierre
usa expressam a mesma proposição. A crença é fundamentalmente uma relação com uma
proposição. Assim, (7) pode ser verdadeira porque Pierre acredita na proposição relevante
sobre George Washington; (8) é verdadeira porque Pedro acredita na mesma proposição.
Mas eles usariam diferentes sentenças para expressar essa proposição.
11
Se você nunca sequer considerou uma proposição, então você não crê, nem descrê, nela, mas tampouco
suspende o juízo. Talvez a suspensão do juízo seja mais bem caracterizada como a consideração de uma pro-
23
Existem, então, dois pontos importantes a extrair disto: as sentenças diferem das
proposições que são usadas para expressá-las e a crença é fundamentalmente uma atitude
que uma pessoa tem em relação a uma proposição.12
B. Verdade
O segundo elemento da ATC é a verdade. As pessoas dizem coisas muito complica-
das e obscuras sobre a verdade, mas a idéia fundamental é muito simples. A questão aqui
não é diz respeito a que coisas são de fato verdadeiras. Antes, a questão agora diz respeito
ao que é para alguma coisa ser verdadeira. Uma resposta simples e amplamente aceita está
contida na teoria da correspondência da verdade.
O ponto central da teoria da correspondência é expresso no seguinte princípio:
2) A verdade não é “relativa.” Nem uma única proposição pode ser “verdadeira pa-
ra mim mas não verdadeira para você.” Eu posso crer numa proposição da qual você des-
crê. De fato, isto é quase certamente o caso. Quaisquer duas pessoas irão quase certamente
discordar sobre alguma coisa. Entretanto, se há uma proposição sobre a qual elas discor-
dam, então o valor de verdade dessa proposição é determinado pelos fatos.
4) A (TC) não implica que as coisas não possam mudar. Considere a proposição de
que George Washington é o presidente dos Estados Unidos. Esta proposição é falsa. Mas,
parece, ela costumava ser verdadeira. O que a (TC) diz sobre isto?
Há algumas coisas para pensar sobre isso, e um exame completo delas entraria em
tecnicidades que não são importantes para os nossos presentes propósitos. Uma boa abor-
dagem diz que uma sentença tal como “George Washington é o presidente dos Estados U-
nidos” expressa uma proposição diferente em momentos diferentes. A proposição expressa
lá em 1789 é verdadeira. A proposição que ela expressa em 2005 – a proposição de que
George Washington é o presidente dos Estados Unidos em 2005 – é falsa. Nós podemos
25
dizer que a sentença pode ser usada para expressar uma série de proposições acerca de
momentos específicos. Nós podemos pensar numa proposição que diz que uma certa coisa
tem uma certa propriedade em um momento como uma predecessora de uma proposição
que diz que essa mesma coisa tem essa mesma propriedade num momento ligeiramente
posterior. Assim, quando as coisas mudam, por exemplo, quando nós temos um novo pre-
sidente, uma proposição datada é verdadeira e sua proposição sucessora é falsa. Não há
problema para a (TC), desde que sejamos cuidadosos acerca das proposições em questão.
9. Está nevando.
Esses falantes não discordam sobre nada. Mas o que deveríamos dizer, então, sobre
o valor de verdade da proposição de que está nevando? Ela é verdadeira ou falsa?
Mais uma vez, há uma variedade de maneiras de pensar sobre isso. Para os presen-
tes propósitos, uma boa abordagem seria dizer que com uma sentença como (9) a pessoa
expressa uma proposição que pode ser mais claramente mostrada pela sentença
Da mesma forma, a pessoa na Flórida que diz (10) diz alguma coisa que é mais cla-
ramente mostrada em
Nós podemos assumir que ambas as proposições sejam verdadeiras. Sua verdade é
objetiva, pois ela depende das condições climáticas dos dois lugares.
14
Este tópico será discutido em detalhes no capítulo 9.
26
Exatamente o que a (TC) diz sobre elas depende em larga medida do que essas sen-
tenças significam. Uma possibilidade é a de que cada falante usa (11) para dizer “Eu gosto
do gosto do iogurte.” Se este é o caso, então pessoas diferentes usam (11) para expressar
proposições diferentes, cada proposição sendo sobre aquilo de que o falante gosta. Se uma
pessoa que gosta do sabor do iogurte diz (11), então a proposição que a pessoa expressa é
verdadeira. Se a pessoa não gosta de iogurte, então a pessoa expressa uma proposição que
não é verdadeira.
Não é óbvio que (11) diga alguma coisa sobre as preferências individuais. Pode ser
que ela diga alguma coisa como “A maioria das pessoas gosta do sabor do iogurte.” Se isto
é o que ela diz, então ela não expressa diferentes proposições quando dita por diferentes
pessoas. Ela expressa uma proposição sobre o gosto da maioria, e essa proposição é verda-
deira se a maioria das pessoas gosta de iogurte e não é verdadeira se a maioria não gosta.
De acordo com outra interpretação, (11) diz que o iogurte satisfaz algum standard
de gosto que é independente do que as pessoas gostam ou não gostam. Isto supõe algum
tipo de “objetividade” sobre o gosto. Nesta perspectiva, (11) poderia ser verdadeira mesmo
que dificilmente alguém de fato goste do sabor do iogurte. Você pode achar essa perspecti-
va estranha; é difícil entender aonde leva um bom gosto objetivo.
O que é crucial para os presentes propósitos é notar que, qualquer que seja a inter-
pretação correta de (11), não há problema para a (TC). A proposição expressa por (11) irá
variar de um falante para outro se a primeira opção é correta, mas não nos outros casos.
Em todo os casos, entretanto, o valor de verdade que a(s) proposição(ões) expressa(m) de-
pende dos fatos relevantes. Neste caso, os fatos relevantes são, ou aquilo de que o falante
ou a maioria das pessoas gosta ou não gosta, ou os fatos objetivos sobre o bom gosto.
Não há necessidade de resolvermos as disputas sobre a interpretação correta de sen-
tenças tais como (11). Essa questão complicada pode ser deixada para aqueles que estudam
estética. A questão crucial para os presentes propósitos é que, qualquer que seja a interpre-
tação correta, não há aqui uma boa objeção para a (TC).
27
7) A (TC) não implica que nós não possamos saber o que é “realmente” verdadeiro.
Algumas pessoas reagem à (TC) dizendo alguma coisa como isto:
De acordo com a (TC), a verdade é “absoluta” e o que é verdadeiro depende de como as coisas
são no mundo objetivo. Uma vez que esse mundo é externo a nós, nunca podemos realmente
saber o que é verdadeiro. No máximo, nós podemos saber o que é “subjetivamente” verdadeiro.
Essa verdade subjetiva depende de nossas próprias perspectivas sobre o mundo. A verdade ab-
soluta deve estar sempre para além de nossa compreensão.
Suponha que alguém afirme (12) em um contexto conversacional normal tal como
o seguinte: você está a ponto de pegar Michael no aeroporto. Você sabe que ele é um ho-
mem adulto, mas não sabe como ele se parece. Foi dada a você uma descrição da qual (12)
é uma parte. Nestas circunstâncias, se Michael tem de fato 6’4”, então (12) expressa uma
verdade. Se Michael tem 4’10”, então (12) diz alguma coisa falsa. Se Michael tem cerca de
5’10”, então será difícil dizer se (12) expressa uma verdade ou uma falsidade. Essa altura
parece ser um caso-limite de ser alto (para um homem adulto).
28
De acordo com uma perspectiva amplamente aceita sobre estas questões, a palavra
“alto” simplesmente não tem um significado preciso. O problema que nós temos na situa-
ção final, quando Michael tem 5’10”, não é que não sabemos o suficiente sobre a situação.
Nós podemos saber tudo o que há para saber sobre a altura de Michael, a altura média de
homens adultos, e tudo o mais que seja relevante. Nesta perspectiva, (12) é simplesmente
um caso-limite. Simplesmente não há limites exatos para a altura à qual a palavra “alto” se
aplica. Em outras palavras, “alto” é uma palavra vaga.
Muitas outras palavras são vagas, incluindo “saudável”, “rico”, e “sábio”. A vagui-
dade causa numerosos problemas para a compreensão de como funciona exatamente a lin-
guagem. Afortunadamente, nós podemos ignorar em larga medida tais questões enquanto
seguimos as questões epistemológicas que são o nosso foco. Entretanto, questões concer-
nentes à vaguidade surgirão de tempos em tempos, e assim é importante ter alguma com-
preensão da idéia.
Além do mais, a existência de sentenças vagas pode ter alguma implicação na ade-
quação da (TC). Recorde a distinção entre as sentenças e as proposições que elas expres-
sam. Como foi recém notado, a vaguidade é uma característica das sentenças. A sentença
(12), parece, é vaga. Mas considere agora a proposição que (12) expressa numa ocasião em
particular, tal como a recém descrita. Se essa proposição é vaga ou indefinida em seu valor
de verdade, então a (TC) precisa de revisão. A (TC) diz que toda proposição é verdadeira
ou falsa, dependendo de se ela corresponde à maneira como é o mundo. Porém, se há pro-
posições vagas, então há proposições que correspondem parcialmente à maneira como é o
mundo. Poder-se-ia dizer que há um terceiro valor de verdade – o indeterminado – em adi-
ção aos dois originais – o verdadeiro e o falso. Poder-se-ia mesmo dizer que há uma ampla
variedade de valores de verdade, que a verdade vem em graus. Estas são questões comple-
xas que não podem ser resolvidas facilmente. Não tentaremos resolvê-las aqui. É suficiente
compreender que a (TC) requer modificação a fim de lidar com a vaguidade.
C. Justificação
A justificação é algo que vem em graus – você pode ter mais ou menos dela. Con-
sidere de novo o exemplo 2.4, no qual de maneira pessimista você acreditava que ia chover
no dia de seu piquenique com base em uma previsão que dizia que as chances de chover
eram levemente maiores do que a 50%. Ali você tinha alguma justificação para pensar que
iria chover. Não é como se você simplesmente tivesse sem nenhuma razão inventado isso.
Mas as suas razões estão longe de serem boas o suficiente para dar conhecimento a você.
Assim, o que a cláusula (iii) da ATC requer é uma justificação muito forte. Nas circunstân-
cias descritas, você não a tem para a crença de que irá chover. Se chegar o dia do piqueni-
que e você olhar pela janela e vir chuva, então você terá uma justificação forte o suficiente
para a crença de que choverá. Sob aquelas circunstâncias você satisfará a cláusula (iii) da
ATC. Assim a cláusula (iii) deveria ser lida como requerendo uma justificação forte ou
uma justificação adequada. Isto pode ser um pouco impreciso, mas servirá por enquanto.
Você pode estar justificado em crer nalguma coisa sem de fato acreditar nela. A
cláusula (iii) da ATC não implica (i). Para ver como isto funciona, considere o seguinte
exemplo:
Ainda que o Sr. Inseguro não acredite ter passado no exame, ele está justificado em
acreditar que passou no exame. Assim a condição (iii) da ATC está satisfeita, mas não a
condição (i). Estar justificado em crer numa proposição é, grosso modo, ter o que é reque-
rido para ser altamente razoável acreditar nela, quer de fato se acredite nela ou não.
O que está justificado para uma pessoa pode não estar justificado para outra. Você
tem muitas crenças justificadas sobre a sua vida privada. Seus amigos e conhecidos podem
ter pouca ou nenhuma justificação para crenças sobre tais assuntos. E o que está justificado
para um indivíduo muda ao longo do tempo. Uma modificação do exemplo 2.4 ilustrará
30
isto. Uma semana antes do piquenique você pode não ter justificação para crer na proposi-
ção de que irá chover no sábado. Mas na manhã de sábado você pode adquirir ampla justi-
ficação para essa proposição.
É importante não confundir estar justificado em crer em alguma coisa com estar ap-
to a mostrar que se está justificado em crer nessa proposição. Em muitos casos nós pode-
mos explicar porque uma crença está justificada; nós podemos formular nossas razões. En-
tretanto, há exceções para isto. Por exemplo, uma criança pode ter muitas crenças justifica-
das, mas ser inapta para articular uma justificação para elas.
consideradas como itens de conhecimento. Isto pode ser aflitivo para aqueles que estão
longe do poder, especialmente quando eles têm uma justificação melhor para pontos de
vista antagônicos. Entretanto, questões sobre aquilo que determina o que será contado co-
mo sendo conhecimento, e como os poderosos fazem para impor suas perspectivas sobre os
outros, não estão no foco deste livro. Nosso tópico é o conhecimento verdadeiro, não o co-
nhecimento aparente.16
V. CONCLUSÃO
A (Q1) do capítulo 1 perguntou o que é preciso para se ter conhecimento. Este capí-
tulo introduziu uma resposta a essa questão baseada na Análise Tradicional do Conheci-
mento de acordo com a qual o conhecimento é crença verdadeira justificada. Esta análise
tem uma longa história. Ela parece se encaixar bem na Perspectiva Standard. Os exemplos
de conhecimento endossados pela Perspectiva Standard parecem ser casos de crença ver-
dadeira justificada. E casos nos quais nós carecemos de conhecimento parecem ser casos
nos quais nós carecemos de um destes três fatores.
Há, entretanto, uma objeção significativa a ATC. Voltaremos-nos em seguida a ela.
15
Neste ponto você poderia observar que nós podemos estar numa situação como a dos antigos, na qual nos-
sas alegações estão equivocadas. Nós iremos tratar desta questão quando considerarmos a Perspectiva Céti-
ca.
16
É possível que algo da atratividade da Perspectiva Relativista, mencionada no capítulo 1, resulte da confu-
são entre conhecimento aparente e conhecimento verdadeiro.
32
CAPÍTULO TRÊS
A. Os Contra-exemplos
Nesta seção examinaremos três exemplos, todos projetados para ilustrar um pro-
blema na ATC. O ponto por trás de todas as objeções é o mesmo, mas os diferentes exem-
plos ajudam a tornar a questão mais clara. O primeiro exemplo é uma versão modificada de
um dos exemplos originalmente apresentados por Gettier.
1. Jones é o homem que ficará com o emprego e Jones tem dez moedas em seu bol-
so.
A razão para Smith estar justificado em crer em (1) é que ele acabou de ver Jones
esvaziar seus bolsos, contar cuidadosamente suas moedas, e então colocá-las novamente no
bolso. Smith também sabe que Jones é extremamente bem qualificado para o emprego e
ouviu o chefe dizer à secretária que Jones havia sido selecionado. Com base em (1), Smith
deduz corretamente e crê noutra proposição:
2. O homem que ficará com o emprego tem dez moedas em seu bolso.
Smith está justificado em crer em (2) ainda que (1) seja falsa. A despeito da evi-
dência de Smith, (1) não é verdadeira no final das contas. O chefe falou errado quando dis-
se que Jones ficaria com o emprego. De fato, o emprego está indo para o sobrinho do vice-
presidente da companhia, Robinson. Coincidentemente, acontece de Robinson também ter
dez moedas em seu bolso.
Neste exemplo, (2) é verdadeira ainda que (1) seja falsa. Smith estava justificado
em crer em (1), deduziu corretamente (2) a partir de (1) e, como resultado, acreditou nela.
Assim, Smith também estava justificado em crer em (2). E (2) é verdadeira. Assim, a cren-
ça de Smith em (2) está justificada e é verdadeira. Mas claramente Smith não sabe (2). É
apenas uma coincidência que ele esteja correto sobre (2).
Smith sabe que Nogot, que trabalha em seu escritório, estava dirigindo um Ford,
tem documentos de propriedade de um Ford, é geralmente honesto, etc. Nesta base ele crê:
1
Analysis 23 (1963): 121-3.
34
Smith ouve no rádio que um concessionário Ford local está promovendo um con-
curso. Qualquer um que trabalhe no mesmo escritório que o dono de um Ford é elegível
para entrar numa loteria cujo ganhador receberá um Ford. Smith decide se inscrever, pen-
sando ser elegível. Afinal de contas, ele pensa que (3) é verdadeira, e assim ele conclui
que:
4. Há alguém que trabalha no (meu) escritório de Smith que possui um Ford. (Há
ao menos um dono de Ford no escritório de Smith.)
Resulta que Nogot finge ter um Ford e (3) é falsa. Entretanto, (4) é verdadeira por-
que uma outra pessoa ignorada por Smith, Havit, trabalha em seu escritório e possui um
Ford.
Assim, Smith tem uma crença justificada verdadeira em (4), mas não sabe (4). É
apenas uma feliz coincidência, resultante de Havit ter um Ford, que o torna correto sobre
(4).
O filho de Smith está no banco traseiro lendo um livro e não está olhando a paisa-
gem. O filho pergunta se há alguma ovelha no campo em que estão passando. Smith diz
“Sim,” acrescentando:
2
Este exemplo está baseado em um apresentado por Keith Lehrer em “The Fourth Condition for Knowledge:
A Defense,” The Review of Methaphysics 24 (1970): 122-8. Veja p. 125.
3
Um exemplo como este foi apresentado por Roderick Chisholm em Theory of Knowledge, 2ª. Ed. (Engle-
wood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1977), p. 105.
35
Smith está justificado pelo que ele vê em pensar que (5) é verdadeira. (6) se segue
de (5), assim ele também está justificado em crer em (6).
Resulta que (5) é falsa. O que Smith vê é um cão sheep dog (ou a estátua de uma
ovelha, ou qualquer outra coisa que se pareça perfeitamente com uma ovelha). Mas ocorre
que (6) é verdadeira de qualquer maneira. Adiante no campo, mas fora de vista, há uma
ovelha.
Assim, Smith tem uma crença justificada em (6), e ela é verdadeira. Mas ele não a
sabe. É apenas por sorte que ele está correto sobre (6)
Deveria ser observado que os detalhes dos exemplos podem ser modificados para
fortalecer a sustentação da crença de Smith na proposição falsa em cada caso. Por exem-
plo, você pode acrescentar o que queira para sustentar a crença dele de que Nogot possui
um Ford. Nogot pode mostrar a ele suas chaves com a insígnia de um Ford e vestir uma
camiseta da Ford, etc. Não importa o quanto você acrescente ao caso, permanece possível
que Nogot esteja fingindo ser o proprietário de um Ford. E uma vez que isto é possível,
permanece possível construir um caso no qual seja coincidentemente verdadeiro que al-
guém no escritório possua um Ford. Observações semelhantes se aplicam aos outros e-
xemplos. Meramente requerer razões mais fortes para uma crença estar justificada não evi-
tará as objeções.
1. Jones é o homem que ficará com o emprego e Jones tem dez moedas em seu bol-
so.
3. Nogot, que trabalha no escritório de Smith, possui um Ford.
5. Esse animal no campo é uma ovelha.
36
2. O homem que ficará com o emprego tem dez moedas em seu bolso.
4. Há alguém que trabalha no (meu) escritório de Smith que possui um Ford. (Há
ao menos um dono de Ford no escritório de Smith.)
6. Há uma ovelha no campo.
A proposição numerada em ímpar é falsa em cada caso. Ainda assim, dada a evi-
dência, é extremamente razoável para Smith acreditar nela. Ela é uma crença justificada. E
a conclusão final se segue logicamente do passo anterior. A conclusão final é, em cada ca-
so, verdadeira. Com efeito, a conclusão final é verdadeira “por coincidência.” Simplesmen-
te acontece que a pessoa que ficará com o emprego tem dez moedas, que há um dono de
Ford no escritório, e que há uma ovelha no campo. Assim, Smith tem razões muito boas
para crer no primeiro passo, e segue princípios lógicos perfeitamente bons ao derivar o se-
gundo passo. Logo, ele tem uma crença justificada verdadeira em cada uma das conclusões
finais. Mas, em cada caso, a verdade dessa conclusão está desconectada da evidência origi-
nal. Smith não tem conhecimento, ainda que ele tenha crenças verdadeiras justificadas.
Estabelecer a estrutura dos exemplos ajuda a destacar dois princípios importantes
sobre os quais eles repousam. Um princípio permite que a pessoa possa estar justificada em
crer nas proposições numeradas em ímpar ainda que elas sejam falsas. Nós podemos for-
mular este como o Princípio da Falsidade Justificada, ou (FJ):
FJ. É possível para uma pessoa estar justificada em crer numa proposição falsa.
O segundo princípio importante é o que diz que a segunda proposição está justifi-
cada porque ela é deduzida da primeira. Este é o Princípio da Dedução Justificada, ou
(DJ):
Se os três exemplos recém descritos são possíveis e estes dois princípios são verda-
deiros, então a ATC está errada. Os exemplos podem ser estranhos, mas eles são claramen-
te possíveis. Coisas como estas podem acontecer e acontecem. Os dois princípios parecem
corretos. Logo, parece que nós temos um caso forte contra a ATC. Como nós veremos, en-
tretanto, algumas pessoas têm tentado defender a ATC rejeitando os princípios.
Para formular um exemplo no estilo-Gettier, então, primeiro se tem de encontrar
um caso de crença falsa justificada. Se a (FJ) é correta, existem tais casos. Identifica-se en-
tão alguma verdade que se segue logicamente dessa falsidade. Sempre haverá tais verda-
des. O exemplo prossegue com o crente tendo deduzido essa verdade da crença falsa justi-
ficada. Se a (DJ) é correta, a crença resultante será uma crença verdadeira justificada que
não é conhecimento.
Parece, portanto, que os exemplos de estilo-Gettier mostram que a ATC é incorreta.
A. Rejeitando a (FJ)
Uma maneira de defender a ATC é rejeitar a (FJ). Você pode pensar que, se uma
proposição é falsa, então uma pessoa que creia nela não deve ter razões boas o suficiente
para essa crença. Se esta idéia é correta, ela proporciona uma defesa da ATC da seguinte
maneira. Ela implica que, em cada um de nossos exemplos, Smith não está justificado em
crer na proposição falsa. Se Smith não está justificado em crer na proposição falsa (a nu-
4
É possível argumentar que Smith tem conhecimento das proposições numeradas em par de cada um dos
exemplos. Mas esta é uma abordagem que quase nenhum filósofo tomou. A reflexão cuidadosa acerca destes
casos produz um veredicto quase unânime sobre eles. Você não pode ter conhecimento quando a sua crença é
verdadeira coincidentemente, como é o caso em todos esses exemplos.
5
É possível argumentar que em nossos exemplos as razões de Smith simplesmente não são razões muito bo-
as. Mas, como foi notado ao final da seção IA, podem-se tornar as razões de Smith tão fortes quanto se quei-
ra. Nenhuma resposta nessa linha parece promissora.
38
merada em ímpar), então ele não está justificado em crer no que ele deduz dela. Logo, sua
crença na proposição numerada em par também não está justificada. Como resultado, os
exemplos de estilo-Gettier não são casos de crenças verdadeiras justificadas (porque eles
não são casos de crenças justificadas) e, logo, eles não refutam a ATC.
Considere como esta resposta se aplica ao caso Nogot/Havit. O crítico argumenta
que, a despeito da evidência, Smith não está justificado em crer na proposição (3), que No-
got possui um Ford. A razão para isto é que (3) é falsa e, logo, a evidência de Smith não
deve ser boa o suficiente. De forma mais geral, diz o crítico, uma pessoa nunca pode estar
justificada em crer numa proposição falsa. A (FJ) está errada.
Uma vez que as razões de Smith para crer em (3) podem ser extremamente fortes,
esta é uma resposta implausível. Além do mais, dada uma suposição muito sensata, rejeitar
a (FJ) implica que dificilmente alguém alguma vez esteja justificado em crer em alguma
coisa! Para ver porque é assim, considere qualquer exemplo no qual uma pessoa tenha o
que a Perspectiva Standard considera como sendo uma crença justificada. Suponha que
não haja nada de estranho sobre o caso, e que as coisas sejam exatamente como as pessoas
acreditam que elas sejam. Chame isto de “O Caso Típico.” Agora, é sempre possível cons-
truir um exemplo que seja uma variação do Caso Típico. Nessa variante, a pessoa teria
exatamente a mesma evidência, mas a proposição em questão seria, não obstante, falsa.
Chame essa variante de “O Caso Incomum.” Para preencher os detalhes do Caso Incomum,
será necessário acrescentar, com esforço incomum, ilusões e coisas parecidas. Embora tais
coisas sejam incomuns, elas são possíveis. O ponto chave a observar é que, tanto no Caso
Típico quanto no Caso Incomum, o crente tem exatamente as mesmas razões para crer exa-
tamente na mesma coisa. Assim, ou o crente está justificado em ambos os casos ou não es-
tá justificado em ambos os casos. Se a (FJ) for falsa, então a crença não estará justificada
no Caso Incomum (porque ela é falsa). Mas então ela também não estará justificada no Ca-
so Típico, já que as razões são as mesmas. Isto pode ser feito para virtualmente qualquer
crença alegadamente justificada e, assim, se a (FJ) for falsa, virtualmente nenhuma crença
estará justificada.
O raciocínio recém exposto depende do Princípio da Mesma Evidência, ou (ME):
ME. Se em dois exemplos possíveis não há diferença alguma na evidência que uma
pessoa tem para alguma proposição, então, ou a pessoa está justificada em crer na proposi-
39
ção em ambos os casos, ou a pessoa não está justificada em crer na proposição em ambos
os casos.
B. Rejeitando a (DJ)
Recorde que os exemplos Gettier dependem tanto da (DJ) quanto da (FJ). A (DJ)
diz que a justificação pode ser transferida através da dedução. Uma segunda base possível
para defender a análise tradicional desses contra-exemplos é rejeitar a (DJ). A idéia é que,
quando você raciocina apropriadamente desde verdades justificadas, o resultado está justi-
ficado, mas quando você raciocina apropriadamente desde falsidades justificadas, o resul-
tado não está justificado. Em outras palavras, se você começa com uma crença verdadeira
justificada e tira apropriadamente uma conclusão dela, então a crença resultante está justi-
ficada. Entretanto, se você começa com uma crença falsa justificada – lembre-se que você
está aceitando a (FJ) – e tira corretamente uma conclusão dela, então a crença resultante
não está justificada. Logo, nesta perspectiva, em cada um dos casos Gettier a pessoa está
justificada em crer no primeiro passo – a proposição numerada em ímpar –, mas não está
justificada em crer na conseqüência tirada dela. Portanto, os advogados desta perspectiva
rejeitam a (DJ).
6
No capítulo 5 examinaremos algumas teorias que rejeitam a (ME). Entretanto, de acordo com essas teorias,
a (FJ) é verdadeira e a ATC é refutada pelos exemplos de estilo-Gettier.
40
Uma idéia plausível é a de que você não pode ter conhecimento se a sua crença de-
pende de uma proposição falsa. Nesta seção consideraremos alguns esforços para formular
mais claramente esta idéia.
7
“Knowledge and Grounds: A Comment on Mr. Gettier’s Paper,” Analysis XXIV (1963): 46-48.
41
guinte descrição que Exclui Bases Falsas do conhecimento. Ele acrescenta uma quarta
condição as três da ATC:
EBF. S sabe p = df. (i) S crê p, (ii) p é verdadeira, (iii) S está justificado em crer p;
(iv) Todas as bases de S para crer p são verdadeiras.
7. Há alguém que trabalha no escritório de Smith que dirige um Ford, tem docu-
mentos de propriedade de um Ford, etc.
8
Um exemplo tal como este foi apresentado em Richard Feldman, “An Alleged Defect in Gettier Counterex-
amples,” Australasian Journal of Philosophy 52 (1974): 68-69.
42
(N) é verdadeira, (3) é falsa, e (4) é verdadeira. Assim, este caminho para (4) passa
por uma falsidade. Mas no segundo caso Smith substitui (3) por (7). O pensamento de Smi-
th vai agora:
(N) e (4) ainda são verdadeiras, mas agora o passo intermediário, (7), também é
verdadeiro. Assim, nesta versão do exemplo, Smith não raciocina através de uma falsa
proposição. Ainda assim, Smith não sabe (4). É ainda um caso Gettier. Logo, nem todos os
exemplos dependem de que uma pessoa derive uma verdade de uma falsidade.
É verdade que no exemplo 3.4 ainda há uma falsidade “nas vizinhanças.” A propo-
sição (3), Nogot possui um Ford, é falsa, e isto parece importar. Você poderia até mesmo
pensar que (3) é parte das bases de Smith, ainda que ele não pense explicitamente sobre
ela. Logo, nós estamos em face de uma questão. No exemplo 3.4, (3) é ou não é parte das
bases de Smith?
43
Nós podemos pensar naquilo que é incluído nas bases de uma crença numa maneira
mais ampla ou mais estrita. A formulação estrita é assim:
B1. As bases de uma crença incluem apenas aquelas outras crenças que são passos
explícitos na cadeia de inferências que levam à crença.
Se a cláusula (iv) de (EBF) faz uso desta formulação das bases, então o exemplo
3.4 refuta a teoria. Ele é um caso Gettier no qual passos explícitos do raciocínio não inclu-
em falsidades. Isto sugere que Clark faria melhor apelando para uma compreensão mais
ampla das bases de uma crença, uma compreensão de acordo com a qual as bases incluem
mais do que os passos explícitos do raciocínio. Por exemplo, ele pode propor:
B2. As bases de uma crença incluem todas as crenças que jogam qualquer papel na
formação da crença, incluindo as “suposições de base” e as pressuposições.
Se Clark usa (B2) para explicar a cláusula (iv) de sua descrição do conhecimento,
então o exemplo 3.4 não a refuta. Isto porque há uma suposição de base no exemplo que é
falsa, a saber, (3). Assim, apelando para (B2), Clark poderia argumentar plausivelmente
que a condição (iv) de (EBF) não está satisfeita no exemplo 3.4 e, logo, sua teoria produz
aqui o resultado correto: ela diz que Smith não sabe que alguém em seu escritório possui
um Ford.
O problema com esta resposta é que a teoria enfrenta agora uma objeção diferente.
Como foi notado antes nesta seção, (EBF) funciona apenas se não houver casos de conhe-
cimento nos quais haja falsidades entre as bases que a pessoa usa. Entretanto, é claro que
pode haver conhecimento mesmo quando algumas das bases usadas por alguém sejam fal-
sas. Isto é verdadeiro tanto na formulação mais-inclusiva quanto na formulação menos-
inclusiva das bases, mas ela é especialmente óbvia quando a bases incluem crenças de base
e pressuposições. Os exemplos seguintes ilustram o ponto:
Smith tem dois conjuntos de razões independentes para pensar que alguém em seu
escritório possui um Ford. Um conjunto tem a ver com Nogot. Nogot diz que ele possui um
44
Ford e assim por diante. Como sempre, Nogot está simplesmente fingindo. Mas Smith
também tem razões igualmente fortes que têm a ver com Havit. E Havit não está fingindo.
Havit possui um Ford, e Smith sabe que ele possui um Ford.
Neste exemplo, Smith sabe que alguém em seu escritório possui um Ford. Isto por-
que as razões que têm a ver com Havit são boas o suficiente para dar a ele conhecimento.
Ainda assim, uma de suas razões, aquela que tem a ver com Nogot, é falsa. Isto mostra que
você pode ter conhecimento mesmo que haja alguma falsidade em algum lugar do cenário.
Esta objeção é decisiva. Ela mostra que a condição de Clark é muito exigente.9
Logo, a maneira de Clark de remendar a ATC não funciona. Se ele usa (B1), então
o exemplo 3.4 o refuta. Se ele usa (B2), então o exemplo 3.5 o refuta. O simples fato de
haver uma falsidade entre as razões da crença de uma pessoa não mostra que esta carece de
conhecimento.
9
Observe que esta objeção funciona quer você use (B1) ou (B2).
10
Para uma defesa de uma perspectiva nestas linhas, veja Peter Klein, “Knowledge, Causality, and Defesea-
bility,” Journal of Philosophy 73 (1976): 792-812.
45
EA. S sabe p = df. (i) S crê p, (ii) p é verdadeira, (iii) S está justificado em crer p;
(iv) Não há uma proposição verdadeira v tal que, se S estivesse justificado em crer v, então
S não estaria justificado em crer p. (Nenhuma verdade anula a justificação de S para p.)
(EA) parece lidar corretamente com todos os exemplos considerados até aqui.
Desafortunadamente, há problemas para a teoria que exclui anuladores. Eis aqui
dois deles.
Pode não ser imediatamente óbvio porque este exemplo colocaria um problema,
mas ele coloca. No exemplo 3.6 Smith sabe:
As condições (i)-(iii) da ATC estão satisfeitas. Mas (iv) está satisfeita? Isto é, há al-
guma proposição verdadeira tal que, se Smith estivesse justificado em crer nela, então ele
não estaria justificado em crer (8)? Uma proposição verdadeira nesta história é
9. A Rádio Classic Hits 101 está tocando “Girl, You’ll be a Woman Soon.”
46
Suponha que Smith estivesse justificado em crer (9). Em qualquer caso típico há
muitas maneiras pelas quais ele poderia estar justificado em crer (9). A maneira mais pro-
vável seria que o rádio estivesse ligado. Naturalmente, ele poderia ter ficado sabendo sobre
(9) por ter alguém ligado e dito a ele, ou por ter recebido um e-mail alertando-o sobre as
novidades. Mas suponha que em nosso exemplo estas outras maneiras não estejam dispo-
níveis. Em nosso exemplo, se Smith estivesse justificado em crer (9), então seu rádio esta-
ria ligado e ele teria ouvido a música. Mas, se esse fosse o caso, então Smith não estaria
justificado em crer que o rádio está desligado. Assim, a condição (iv) não está satisfeita.
Há uma proposição verdadeira, (9), tal que, se Smith estivesse justificado em crer nela, en-
tão Smith não estaria justificado em crer (8). Em certo sentido (ou talvez em vários senti-
dos), Smith tem sorte de não saber (9). De um lado, isso o habilita a saber (8). De outro,
Smith não tem de ouvir a música.
Este exemplo pode confundir. Isso ocorre em larga medida porque sentenças que
dizem que, se uma coisa ocorresse, então uma outra coisa seria verdadeira, causam confu-
são. Essas sentenças são chamadas de condicionais subjuntivos. Aplicado a este caso, o
condicional se refere ao que seria o caso se Smith estivesse justificado em crer (9). A me-
lhor maneira de determinar isto é considerar como Smith iria chegar a estar justificado em
crer (9). Nas circunstâncias descritas, a maneira é tal que Smith estaria com o rádio ligado,
sintonizado na Rádio Classic Hits 101, e teria ouvido a música no rádio. Assim, se esse
fosse o caso, Smith não estaria justificado em crer que o rádio está desligado. E isto é o que
causa problemas para (EA). Esta diz que Smith não sabe (8) se existir alguma outra verda-
de tal que, se ele estivesse justificado em acreditar nela, ele não estaria justificado em crer
(8). Mas (9) é exatamente tal verdade.
Uma vez que você veja como o exemplo 3.6 funciona, é fácil gerar exemplos adi-
cionais que sigam as mesmas linhas. A questão subjacente é muito simples, embora sur-
preendente. Ocorre que uma pessoa pode conhecer alguns fatos e pode haver outros fatos
tais que, se ele conhecesse estes outros fatos, então ele não conheceria os fatos originais.
Isto porque, se alguém estivesse em posição de conhecer estes últimos fatos, então ele não
estaria em posição de conhecer os primeiros. E, em alguns casos, se alguém conhecesse os
últimos, então os primeiros sequer seriam verdadeiros. A versão atual da teoria que exclui
anuladores diz que, quando existem tais fatos, carece-se de conhecimento. Uma vez que
tipicamente existirão tais fatos, a teoria implica que conhecemos muito pouco.
47
Há outra maneira pela qual a ignorância de algumas verdades pode nos ajudar a co-
nhecer coisas. (EA) também tem um problema com esses casos. Eis aqui um de tais exem-
plos.
10. A mãe de Tom disse que o irmão gêmeo de Tom, Tim, pegou a fita.
Note que a própria (10) é verdadeira, ainda que aquilo que a mãe de Tom diga seja
falso. Se Black estivesse justificada em crer apenas nesta verdade – mas não no restante da
história sobre ela –, ela iria anular a justificação de Black. Ela é um anulador enganoso.
Mais uma vez, isto pode parecer confuso. Mas a idéia é relativamente simples. Se
nós podemos conhecer coisas comuns, então pode haver outras verdades tais que, se nós
tivéssemos sabido delas, elas solapariam nossa justificação para a coisa que conhecemos.
Mas alguns destes anuladores são enganosos. Isto é, nós de fato conhecemos coisas, mas
não as conheceríamos se tivéssemos sabido sobre tais anuladores. Nós temos sorte de não
sabermos sobre os anuladores. O testemunho da Senhora Grabit é assim. Observe que, no
caso de Tom Grabit, diferentemente dos verdadeiros casos Gettier, as coisas são exatamen-
te como Black pensa que elas são. Black tem sorte por ser ignorante das divagações da mãe
demente. Black teria perdido a sua justificação para a sua crença sobre Tom se ela soubes-
se sobre elas.
Assim, esta versão da teoria que exclui anuladores não funciona. Há muitas outras
possíveis variações de (EA), e talvez algumas versões evitem os exemplos considerados
11
Uma versão levemente modificada deste exemplo apareceu primeiro em Keith Lehrer, “Knowledge, Truth
and Evidence,” Analysis XXV (1965): 168-175.
48
aqui. As outras variações acrescentam mais complexidade à análise, e existem ainda mais
estranhos contra-exemplos propostos contra elas, mas não as acompanharemos aqui.12
12
Para uma discussão dessas alternativas, veja Robert Shope, The Analysis of Knowing (Princeton, N.J.: Prin-
ceton University Press, 1983), capítulo 2.
49
Ao acrescentar a cláusula (iv), (DEF) faz uma modificação importante na ATC. Não
obstante, ela retém o coração da perspectiva tradicional, pois ela retém a idéia de que o co-
nhecimento requer a crença verdadeira justificada. Ela simplesmente acrescenta uma con-
dição extra. Uma questão chave referente à (DEF), assim como à perspectiva tradicional na
qual ela está baseada, tem a ver com o conceito de justificação. Voltaremos-nos a isso em
detalhe no capítulo 4. Na seqüência disso examinaremos os pontos de vista de alguns filó-
sofos que pensam que nenhuma modificação relativamente pequena na ATC irá produzir
uma análise correta do conhecimento. Eles pensam que uma formulação inteiramente dife-
rente é preferível. Nós examinaremos suas perspectivas no capítulo 5.
IV. CONCLUSÃO
A resposta tradicional para (Q1), que pergunta quais são as condições para o co-
nhecimento, é a de que o conhecimento é crença verdadeira justificada. A ATC é uma aná-
lise do conhecimento elegante e atraente, mas os exemplos Gettier mostram que ela não é
completamente satisfatória. A moral disto é que o conhecimento requer a crença verdadeira
justificada e mais alguma coisa – há uma quarta condição para o conhecimento. Dizer exa-
tamente qual é essa quarta condição se revela notavelmente difícil. Nem a teoria que exclui
bases falsas nem a teoria que exclui anuladores tem sucesso. O que parece ser crucial é que
a justificação não dependa essencialmente de alguma coisa falsa. Embora esta idéia não
tenha sido formulada em todos os detalhes, ela nos dá uma descrição útil do conhecimento.
50
Logo, nossa resposta para (Q1) é que o conhecimento requer crença verdadeira justificada
que não depende essencialmente de uma falsidade.
51
CAPÍTULO QUATRO
Enquanto isso, Hasty também ouviu sobre o roubo. Acontece que Hasty mora ao
lado de Filcher e tem tido alguns problemas com ele. Hasty detesta Filcher e o culpa por
muitas das coisas ruins que acontecem. Hasty tem uma vaga idéia de que Filcher trabalha
com comércio de arte mas não tem qualquer conhecimento específico sobre o que ele faz.
Sem mais nada em que se basear, Hasty também crê (1).
A Perspectiva Standard sustenta que no exemplo 4.1 Careful está inteiramente jus-
tificado em crer (1) mas Hasty não está. Se você precisa acrescentar algo mais à história
para se convencer daquelas avaliações, pode fazer os acréscimos. Entretanto, o exemplo
deveria ser bastante persuasivo tal como está.
52
1
Ao levantarmos essa questão, voltamos nossa atenção para a questão (Q2) do capítulo 1.
53
I. EVIDENCIALISMO
A nossa questão acerca do exemplo 4.1 se referia ao que tornou Careful justificado
em crer (1), mas Hasty injustificado em crer nessa proposição. Pode parecer que a resposta
à nossa questão seja bastante simples: Careful tem boas razões, ou evidências, para crer (1)
enquanto Hasty não as tem. É a posse de evidências que é a marca de uma crença justifica-
da. Nós chamamos a isto teoria evidencialista da justificação, ou evidencialismo.
Ainda que o evidencialismo esteja correto, tal como formulado até aqui ele não é
uma teoria bem-desenvolvida. Os filósofos que concordam que a justificação seja uma
questão de se ter boas razões diferem acentuadamente acerca do que está implicado em se
ter boas razões. Há, então, mais a ser feito para desenvolver uma descrição satisfatória da
justificação. As questões se tornarão mais claras na medida em que examinarmos a idéia
mais cuidadosamente.
A. Avaliações Epistêmicas
Clifford tira uma conclusão dura sobre este dono de barco. E elaborando este e-
xemplo e alguns outros, ele formula uma conclusão geral que merece um exame. Essa con-
clusão é a tese de Clifford, (C):
2
W. K. Clifford, “The Ethics of Belief”, impresso originalmente na Contemporary Review (1877), reim-
presso em Lectures and Essays de Clifford (London:MacMillan, 1879).
55
C. É errado sempre, em qualquer lugar, e para qualquer um, crer em qualquer coisa
a partir de evidência insuficiente.3
Há questões óbvias para fazermos a respeito, mais notadamente, “O que conta co-
mo uma evidência insuficiente?” Nós podemos contornar esta questão por enquanto, assu-
mindo apenas o seguinte: se uma pessoa tem mais e melhor evidência para a conclusão de
que a proposição p seja falsa do que para a conclusão de que a proposição p seja verdadei-
ra, então essa pessoa tem evidência insuficiente para crer que p seja verdadeira. Talvez
Clifford pense que ter evidência suficiente requeira ainda mais, alguma coisa como uma
evidência muito forte. Mas nós podemos colocar uma questão referente a (C) usando essa
condição mais fraca. Ao discutir e defender (C), Clifford escreve:
Sua idéia é que, ao crer a partir de evidência insuficiente, ajuda-se a manter vivas
as “superstições fatais” e que, ao fracassar em seguir as evidências que se tem, a sociedade
é dividida (“feita em pedaços”). Embora as alegações de Clifford possam parecer um tanto
extremas, talvez haja algum mérito em sua tese.
Alguns críticos podem objetar a tese de Clifford com base em que uma pequena
quantidade de evidência, especialmente nos casos em que uma decisão deve ser tomada
rapidamente, pode tornar a crença aceitável. Eis aqui um exemplo projetado para ilustrar o
ponto.
3
“The Ethics of Belief”, p. 183.
4
“The Ethics of Belief”, p. 180.
56
Esta é uma ação sensata. Ainda assim, a evidência que você tem é bastante fraca.
Você não tem evidência para acreditar que possa ter um problema médico sério. Por isso,
pode-se concluir que a tese de Clifford está errada. Algumas vezes uma pequena evidência
é boa o suficiente.
Clifford tem uma boa resposta para esta objeção. (C) não é uma tese sobre o quanto
é errado agir. Ela é uma tese sobre o quanto é errado ter uma crença. Assim, se este exem-
plo causa algum problema para (C), o exemplo deve ser um no qual ter uma crença não é
errado, ainda que não se tenha evidência suficiente para ela. Se a situação é como aquela
recém descrita, seria errado concluir que você tenha problemas cardíacos (se os sintomas
descritos forem as únicas razões que você tem para pensar isto). Você está absurdamente
indo muito além da sua evidência se acredita nisso. Mas você tem evidência suficiente para
acreditar numa proposição diferente, a saber, que existe uma possibilidade de que você te-
nha problemas cardíacos. Além do mais, esta crença proporciona uma boa razão para to-
mar uma ação preventiva. Não há nada de errado com esta crença ou com a ação embasada
nela. Assim, distinguir uma crença da ação relacionada com ela, e distinguir a proposição
de que existe uma chance de que você tenha problemas cardíacos da proposição de que vo-
cê tem problemas cardíacos, proporciona tudo o que é necessário para escapar desta obje-
ção.
No entanto, existem algumas outras objeções à tese de Clifford que são mais efeti-
vas.
Os detalhes do exemplo 4.4 sugerem que não é errado para o rebatedor acreditar
que ele acertará. De fato, parece muito melhor para ele acreditar nisto. Ainda assim, ele
não tem “evidência suficiente” para a proposição de que ele acertará.
A tese de Clifford diz que é errado para o paciente acreditar que ele irá se recupe-
rar. E este juízo pare ser muito cruel. Imagine criticar o esperançoso paciente, alegando
que ele está errado em ser otimista. Se o otimismo ajuda, é difícil pensar que seja errado
que ele esteja otimista.
Estes exemplos parecem mostrar que há casos nos quais não é errado acreditar em
alguma coisa, ainda que não se tenha boa evidência para ela. Ainda assim, Clifford pode
estar certo em pensar que todo caso de crença a partir de evidência insuficiente tenha uma
característica ruim: ela corre o risco de encorajar maus hábitos de pensamento. Entretanto,
(C) depende da idéia de que este fato sempre supera outras considerações. Os exemplos
recém considerados foram projetados para mostrar o contrário. Algumas vezes o benefício
de se acreditar a partir de evidência insuficiente supera os danos potenciais.
Você pode estar em dúvida sobre estes casos. Por um lado, a performance anterior
sugere que o rebatedor do exemplo 4.4 não irá acertar. Isto parece indicar que há alguma
coisa de errada com a crença de que ele irá acertar desta vez. Por outro lado, o fato de que
acreditar que ele irá acertar tende a melhorar sua performance sugere que para ele não é
errado pensar que irá acertar. Afinal de contas, esta crença ajuda sua performance, da
mesma forma como o faz a concentração, o manejo correto do taco, e, talvez, coçar-se e
cuspir. Considerações semelhantes se aplicam ao exemplo 4.5. As estatísticas sobre a recu-
peração da doença sugerem que há alguma coisa errada com a crença de que o paciente se
recuperará. A crença “ignora os fatos”. Ainda assim, esta é a melhor chance dele se recupe-
rar. Como nós podemos condenar uma pessoa por tentar?
Uma boa maneira de resolver estes aparentes conflitos é dizer que há duas (ou
mais) noções diferentes de incorreção sob consideração aqui. Uma noção se refere à mora-
58
5
Uma tese comum é a de que somente o comportamento voluntário é o tema apropriado para a avaliação
moral. Não é claro que a crença seja freqüentemente, ou sequer alguma vez, uma atividade voluntária. Assim,
há alguma dúvida sobre se a crença é freqüentemente, ou sequer alguma vez, um tema apropriado para a ava-
59
tedor ou pelo paciente). Elas ganham, portanto, uma avaliação moral favorável. Nós pode-
mos também avaliar as crenças epistemicamente. No ponto de vista sobre a epistemologia
em discussão aqui, isto é determinado pela questão de se elas vão contra a evidência. Se
Clifford tivesse dito que é epistemicamente errado crer a partir de evidência insuficiente,
ele teria afirmado um ponto de vista que muitos filósofos tomam como correto. Mas sua
alegação sobre a moralidade está equivocada.
A discussão de Clifford nos ajuda a enfocar a noção de alguma coisa ser epistemi-
camente errada. É sobre esta avaliação que trata a condição de justificação da ATC. Uma
crença epistemicamente justificada é uma crença que é avaliada favoravelmente de um
ponto de vista epistemológico, não importa qual seja o seu status moral ou prudencial.
B. Formulando o Evidencialismo
Uma versão de (EJ) que cobre outras atitudes também é possível. Ela diz que a ati-
tude justificada – a crença, a descrença ou a suspensão do juízo – é aquela que se encaixa
na evidência. Uma teoria evidencialista completamente desenvolvida diria alguma coisa
sobre aquilo em que consiste a evidência de uma pessoa e sobre o que é para essa evidên-
cia sustentar uma crença em particular.
Em geral, os evidencialistas dirão que a evidência que a pessoa tem num dado mo-
mento consiste em toda a informação de que a pessoa dispõe naquele momento. Isto inclui-
rá as lembranças que a pessoa tem e as outras crenças justificadas que ela tem. Quando os
evidencialistas falam de uma pessoa “tendo evidência,” eles não querem dizer a mesma
coisa que uma pessoa discutindo questões legais pode querer dizer com a mesma expres-
são. Suponha que um certo documento seja um item crucial num caso. Você tem essa coisa
entre suas posses, mas você não sabe sobre ela. No sentido legal de “ter evidência,” você
pode ter a evidência relevante. Mas no sentido pretendido aqui, ela, e os fatos sobre ela,
liação moral. Se ela não o é, então há uma objeção adicional para a tese de Clifford. Grosso modo, a alegação
é a de que crer desde evidência insuficiente não é moralmente errado porque crer não é uma ação voluntária.
60
não são parte da sua evidência. A evidência que você tem consiste na informação que está
disponível, em um sentido difícil-de-especificar, para o seu uso. A idéia chave, então, é
que a evidência que uma pessoa tem consiste nos dados que a pessoa dispõe para formar
crenças, não no itens que a pessoa fisicamente possui.
Para ser verdade que a evidência de uma pessoa sustenta uma proposição, deve o-
correr que a evidência total da pessoa, ao ser avaliada, sustente essa proposição. É possível
ter alguma evidência que sustente uma proposição e alguma evidência que sustente a nega-
ção dessa proposição. Se estes dois corpos de evidência têm o mesmo peso, e a pessoa não
tem outra evidência relevante, então a evidência total da pessoa é neutra e a suspensão de
juízo sobre a proposição é a atitude justificada. Se uma porção da evidência é mais forte do
que a outra, então a atitude correspondente é aquela justificada. Em todos os casos, é a evi-
dência total que determina qual a atitude é a justificada. Chame a isto de condição de evi-
dência total.
Há uma distinção, até agora não mencionada, que é importante para o evidencia-
lismo. Uma analogia com a ética tornará clara a distinção. Uma pessoa pode fazer a coisa
eticamente correta pelas razões erradas. Por exemplo, suponha que uma pessoa rica seja
solicitada a dar algum dinheiro para a caridade e concorde em transferir os fundos eletroni-
camente. A instituição de caridade dá a ela o número da conta de modo a que ela possa
transferir o dinheiro. Armado com esta informação, a pessoa decide pegar dinheiro da ins-
tituição de caridade ao invés de dar dinheiro a ela. Entretanto, por engano ela aperta o bo-
tão errado e transfere dinheiro para a instituição de caridade. Ela faz a coisa certa, mas a
faz por engano. Sua ação é correta, mas não é “bem intencionada” ou “bem motivada.” Ela
é condenável por seu caráter e suas motivações, ainda que tenha feito a coisa certa.
Há um análogo epistemológico deste exemplo. Suponha que você tenha boas razões
para crer em alguma coisa e você crê nela. No entanto, você acredita nela, não com base
naquelas boas razões, mas por causa de uma predição astrológica ou como resultado de er-
ro lógico. Você acredita na coisa certa pelas razões erradas. Em tais casos, acreditar nessa
proposição de fato está de acordo com a sua evidência e, assim, de acordo com (EJ), crer é
a atitude justificada. Mas ela é uma crença epistemicamente “má.” Você não está agindo
corretamente, falando epistemicamente, ao manter essa crença.
Estes exemplos mostram que existem duas idéias relacionadas de justificação que
nós precisamos distinguir. Uma está apropriadamente formulada em (EJ). É o análogo e-
61
pistêmico da ação que de fato é boa, i.e., a melhor coisa a fazer, dada a situação. Há muitas
maneiras diferentes de expressar esta idéia:
Nada disto implica em que S de fato creia p. Elas implicam apenas que S tem o que
é necessário para tornar a crença em p apropriada epistemicamente.
O segundo tipo de justificação é o análogo epistemológico da idéia de fazer a coisa
certa pelas razões certas. Esta é a idéia de uma crença “bem-formada” ou “bem-fundada.”
Nós expressamos tipicamente esta idéia dizendo coisas tais como
As sentenças destas formas implicam que S creia p e que S o faz pelas razões cer-
tas. Eis aqui uma formulação mais precisa deste conceito:
CJ. A crença de S de que p no momento t está justificada (bem fundada) sse (i) crer
p está justificado para S em t; (ii) S crê p na base de evidência que sustenta p.6
A cláusula (ii) de (CJ) pretende capturar a idéia de crer com base em razões certas.
Chame a isto de condição embasadora. Uma versão generalizada de (CJ) aplicada à des-
crença e à suspensão de juízo também poderia ser desenvolvida.
O evidencialismo afirma tanto (EJ) quanto (CJ). Ele sustenta que a atitude justifi-
cada em relação a uma proposição para uma pessoa em qualquer momento é a atitude que
corresponde à evidência total da pessoa naquele momento. E uma crença (ou uma outra
6
Há detalhes sobre isso que precisam ser elaborados. Presumivelmente, uma pessoa não acredita em algo
com base em todas as suas outras crenças. Assim, a idéia na cláusula (ii) é que a pessoa embasa sua crença na
parte da evidência que realmente sustenta a crença. A cláusula (i) requer que a condição de evidência total
seja satisfeita. Para mais discussões disto e do evidencialismo em geral, veja Earl Conee e Richard Feldman,
Evidentialism (Oxford University Press).
62
atitude) está de fato justificada (bem-fundada) dado que ela corresponda à evidência da
pessoa e que a crença seja mantida com base em evidência que realmente a sustente.
Este exemplo é projetado para ser um contra-exemplo tanto para (EJ) quanto para
(CJ). Restringiremos a nossa discussão a (CJ), mas as questões destacadas poderiam facil-
mente ser revisadas para ser aplicadas a (EJ). Uma vez que o professor foi desleixado ao
não olhar o jornal de hoje, ele perdeu alguma evidência sobre quando o filme começaria.
Como resultado, é verdade que
Dado (2), (CJ) tem o resultado de que sua crença estava justificada (bem fundada).
No entanto, os críticos do evidencialismo (e a esposa do professor) dizem que
63
3. A crença do professor de que o filme começaria às 8:00 horas não estava justifi-
cada (porque ele deveria ter olhado o jornal e, desse modo, obtido mais evidência, a qual
não teria sustentado essa crença.)
Assim, (CJ) está errada, uma vez que ela implica que esta crença está justificada.
Este exemplo depende de um princípio de acordo com o qual a justificação depende
em parte de evidência que se deveria ter conseguido. Chame a isto de Principio Consiga a
Evidência (PCE):
7
Poder-se-ia pensar que sua crença não estaria justificada mesmo se a evidência que ele não considerasse de
fato sustentasse a sua crença. Mais geralmente, pode-se pensar que a expressão “e esta evidência não susten-
taria p” poderia ser retirada de (PCE). A discussão que se segue iria aplicar-se igualmente bem a essa versão
modificada de (PCE).
64
Esta é uma reação louvável. Ela mostra lealdade em relação a um amigo em difi-
culdades. Pode-se ser tentado a dizer que crer que seu amigo não é culpado está justificado,
ainda que sua evidência não sustente essa crença. É plausível, talvez, dizer que as questões
de lealdade e amizade têm precedência aqui, e que é melhor para você ir contra a evidência
neste caso. Isto pode parecer ser um problema para o evidencialismo, uma vez que o evi-
dencialismo diz que a evidência sozinha determina o que está justificado. Ele desconsidera
inteiramente as considerações de lealdade, de amizade, e outras do mesmo tipo. Isto, você
pode pensar, é um equívoco.
A resposta evidencialista aponta para um ponto discutido antes neste capítulo. A
epistemologia de modo geral, e o evidencialismo em particular, tratam da natureza da
crença racional. Elas não levantam questões sobre a moralidade. A atitude racional neste
caso é, como o evidencialismo afirma, suspender o juízo, ou talvez crer que seu amigo seja
culpado. Este pode ser um caso no qual uma pessoa moralmente boa irá colocar a raciona-
lidade de lado. Mas essa é uma outra questão. Os fatos não colocam em dúvida o veredicto
do evidencialismo sobre qual seja a atitude epistemicamente racional neste exemplo.8
Logo, o evidencialismo é capaz de resistir a estas objeções iniciais. Ainda restam
questões difíceis. Lembre da lista de coisas que a Perspectiva Standard diz que nós conhe-
cemos. Existem questões difíceis sobre qual seja exatamente a nossa evidência para estas
coisas e como essa evidência chega a proporcionar sustentação para as nossas crenças. Nos
voltaremos em seguida para alguns pontos de vista sobre como estas coisas funcionam. Es-
tas não são alternativas ao evidencialismo. Elas são, ao invés, maneiras pelas quais os deta-
lhes do evidencialismo poderiam ser formulados. Nós usaremos um dos mais famosos ar-
gumentos da história da filosofia como um caminho para começar a discussão destas ques-
tões: o Argumento do Regresso Infinito.
são outras crenças ou razões. Isto parece ser simplesmente um enunciado do próprio evi-
dencialismo. Mas se você pensar sobre isto por um momento, notará que um problema apa-
rece. Se uma crença está embasada em determinadas razões, mas tais razões não têm elas
próprias uma base, então parece que o que depender de tais razões não estará melhor justi-
ficado do que uma crença para a qual não se têm quaisquer razões. Por exemplo, se, como
no exemplo 4.1, Hasty inventasse do nada uma história completa sobre como Filcher rou-
bou a pintura, ele poderia ser capaz de citar esta história como a sua “razão” para crer (1).
Mas se ele não tiver qualquer boa razão para crer na história que sustenta a sua crença, en-
tão, ao final, ele não tem nenhuma boa razão para crer (1). Em resumo, se a sua crença es-
tiver justificada, parece que você precisa de razões para as suas razões. E isto parece ser
um problema. Há um regresso que ameaça: você precisa de razões para suas razões, e pre-
cisa de razões para aquelas razões, e assim por diante. Mas não parece que qualquer um de
nós disponha jamais desse suprimento sem-fim de razões.
O problema recém colocado tem tido um papel central na epistemologia, tanto por-
que ele foi influente historicamente quanto porque ele é útil para organizar as teorias com
base em como elas respondem a ele. Alguma terminologia será de ajuda na discussão que
segue. Parece que, por uma questão de lógica, existem duas possibilidades a propósito das
crenças justificadas: ou toda crença justificada está justificada porque ela é sustentada por
algumas outras crenças, ou então existem algumas crenças justificadas que não dependem
de outras crenças. Crenças do último tipo são ditas serem crenças básicas justificadas. Ou-
tros termos para a mesma categoria são crenças imediatamente justificadas e crenças não-
inferencialmente justificadas. Nós podemos formular isto como uma definição formal:
BJ. B é uma crença básica justificada = df. B é justificada, mas não é justificada
com base em qualquer outra crença.
8
Ao responder a esta objeção ao evidencialismo, nós também nos remetemos à questão (Q3) do capítulo 1.
67
sociada com a crença de Careful em (1), nós podemos ter os fatos sobre as impressões digi-
tais e a posse das pinturas como razões para (1). Haverá razões adicionais para cada uma
destas, talvez envolvendo os resultados dos testes das impressões digitais e coisas do gêne-
ro.
Parece haver um número limitado de maneiras pelas quais as cadeias de evidências
podem ser estruturadas. Uma possibilidade é que elas sejam infinitamente longas – para
cada passo existe uma razão anterior. Outra possibilidade é que elas dêem voltas ou façam
círculos – se você rastrear as razões de uma crença, eventualmente encontrará de novo essa
mesma crença. Outra possibilidade é que as cadeias de evidências tenham de fato um co-
meço. No começo de qualquer cadeia de evidências estão as crenças básicas justificadas.
Uma possibilidade final é que as cadeias de evidências sejam rastreadas até crenças que
simplesmente não estejam justificadas.
Este é um conjunto intrigante de opções. Nenhuma delas parece inteiramente satis-
fatória. Como poderia haver uma série infinita de crenças justificadas? Como poderia uma
crença ser justificada se ela remonta a si mesma? Esse parece um raciocínio circular fla-
grantemente objetável. Como poderia uma crença ser justificada sem a sustentação de ou-
tras crenças – como poderiam existir crenças básicas justificadas? Como as crenças poderi-
am ser justificadas se elas remontam a crenças que não são elas próprias justificadas?
Qualquer descrição das cadeias de evidências parece pouco prometedora.
Nós podemos formular estas considerações em um argumento preciso. O principal
valor de formular este argumento é que ele explicita uma variedade de idéias e de suposi-
ções envolvidas nas considerações recém desenvolvidas. Além do mais, as teorias sobre a
justificação podem ser adequadamente agrupadas de acordo com a maneira como elas res-
pondem a este argumento.
1-2. Porém, as crenças embasadas em crenças injustificadas não são elas próprias
justificadas, e assim nenhuma crença justificada poderia ter uma cadeia de evidências que
terminasse em uma crença injustificada (isto é, não (a)).
1-3. Nenhuma pessoa poderia ter uma série infinita de crenças, e assim nenhuma
crença justificada poderia ter uma cadeia de evidências que fosse um regresso infinito de
crenças (isto é, não (b)).
1-4. Nenhuma crença poderia ser justificada por ela mesma, e assim nenhuma cren-
ça justificada poderia ter uma cadeia de evidências que fosse circular (isto é, não (c)).
1-5. Existem crenças básicas justificadas (1-1) – (1-5).
Ceticismo: Uma vez que nem o fundacionismo e nem o coerentismo são plausíveis,
e não há nada de errado com o argumento, ele deve estar errado desde o início ao assumir
que existam crenças justificadas. Não podem existir quaisquer crenças justificadas.
Outras respostas ao argumento são possíveis. Alguns filósofos têm dito que as ca-
deias de evidências terminam em crenças que não são justificadas, e assim eles rejeitam (1-
69
2). Outros têm dito que cadeias infinitas de razões são possíveis. E assim, eles rejeitam (1-
3). Nós não consideraremos tais pontos de vista aqui.
Por muito tempo, o fundacionismo foi a perspectiva predominante e a questão cen-
tral foi se os fundacionistas dispunham de alguma maneira plausível de defender o seu
ponto de vista contra o ceticismo. Boa parte deste trabalho envolveu esclarecer quais eram
exatamente as implicações do fundacionismo – explicar exatamente que tipo de coisa seria
uma crença básica. Em anos mais recentes, muitos filósofos tem rejeitado o fundacionismo
e alguns aceitaram o coerentismo. O fundacionismo e o coerentismo são o foco do restante
deste capítulo.
QF1. Sobre que tipos de coisas tratam as nossas crenças básicas justificadas? Quais
crenças são justificadas e básicas?
QF2. Como são justificadas essas crenças básicas? Se elas não são justificadas por
outras crenças, como elas se tornam justificadas?
QF3. Que tipo de conexão uma crença não-básica deve ter com as crenças básicas a
fim de estar justificada?
René Descartes foi um filósofo do século XVII extremamente influente. Ele é bas-
tante conhecido como um defensor de uma versão em particular do fundacionismo. No en-
tanto, é difícil extrair de seus escritos a versão do fundacionismo freqüentemente atribuída
a ele.9 Chamaremos o ponto de vista a ser discutido de fundacionismo cartesiano, e em al-
guns lugares introduziremos aspectos deste ponto de vista dizendo “O ponto de vista carte-
siano é ...”, ainda que seja improvável que Descartes de fato concordasse com todos os as-
pectos do ponto de vista a ser descrito.
Os fundacionistas cartesianos respondem à (QF1) escolhendo como crenças bási-
cas as crenças sobre os nossos próprios estados mentais. As proposições que descrevem o
que alguém parece ver, o que alguém pensa, o que alguém sente, etc. são básicas. Descar-
tes parece ter pensado que as crenças básicas fossem crenças em algum sentido indubitá-
veis ou livres de toda possibilidade de erro. Ele observou que a sua própria crença de que
você existe não pode estar errada, e isto pareceu colocá-la na classe das crenças básicas. O
restante do que nós sabemos, de acordo com o fundacionismo cartesiano, é o que nós po-
demos deduzir das nossas crenças básicas. Assim, se nós temos conhecimento do mundo
ao nosso redor, é porque nós podemos deduzir as coisas que nós conhecemos a partir des-
sas crenças básicas.
Podem não haver de fato coisas do tipo que René parece ver. (4) descreve simples-
mente como as coisas parecem para ele. As coisas podem parecer dessa maneira quando
ele realmente vê uma árvore. Mas elas também podem parecer dessa maneira em outras
circunstâncias, tais como quando ele está sonhando ou tendo uma ilusão. (4) simplesmente
descreve seu estado mental interno. Descartes pensa na sensação de dor de uma maneira
9
Provavelmente a obra mais lida de Descartes são as suas Meditations. Elas estão reimpressas em The Philo-
sophical Works of Descartes, traduzidas por Elizabeth S. Haldane e G. R. T. Ross (Cambridge, UK: Cam-
bridge, University Press, 1973).
71
análoga. Pode-se “sentir dor” mesmo quando nada esteja acontecendo com a parte do cor-
po que parece estar sendo machucada.
Em geral, então, a resposta de Descartes para (QF1) diz que as crenças básicas in-
cluem as crenças sobre os estados mentais – crenças sobre como as coisas se parecem ou
soam para você, sobre o que você parece se lembrar, etc. Estas crenças são crenças de a-
parência e os estados internos que elas descrevem são as aparências. É importante com-
preender que as crenças de aparência não estão limitadas às crenças sobre como as coisas
se parecem. Elas incluem crenças sobre como elas soam, que gosto elas têm, como elas são
sentidas e como elas cheiram. Além disso, crenças sobre o que você parece se lembrar e
talvez crenças sobre o que você mesmo acredita estão incluídas. Em geral, crenças de apa-
rência são crenças sobre os conteúdos correntes de sua própria mente.
As crenças de aparência por si mesmas não implicam nada sobre o que está no
mundo fora da própria mente de uma pessoa. Em outras palavras, por si mesmas elas não
implicam nada sobre o mundo externo. Em princípio, você poderia ter o mesmo estado in-
terno em um sonho, numa alucinação, ou com a percepção normal. Tal como os filósofos
usam a expressão mundo externo, então, ela se refere a tudo o que está fora da própria
mente de uma pessoa. Assim, as suas próprias experiências e as suas crenças sobre elas es-
tão dentro de sua mente. Tudo o mais, desde sua perspectiva, é parte do mundo externo.
Logo, as coisas nas mentes de seus amigos e vizinhos são, desde sua perspectiva, parte do
mundo externo.
Há uma distinção que vale a pena observar aqui. Você poderia tomar “Parece-me
que p” significando “Eu creio que p.” De forma semelhante, você poderia tomar (4) signi-
ficando que René acredita que ele vê uma árvore. Não é isto o que nós queremos dizer. Em
vez disso, queremos dizer que seu estado mental é o de parecer ver uma árvore. A imagem
diante de sua mente é do “tipo-árvore.” Tal como nós entendemos (4), Descartes acredita-
ria (4), e ela seria verdadeira, se ele tivesse uma imagem do tipo-árvore diante de sua men-
te que ele soubesse ter sido artificialmente induzida em algum tipo de experimento psico-
lógico. Num tal caso ele poderia dizer, “Parece-me ver uma árvore, mas não creio que eu
realmente esteja vendo uma árvore.”
Uma interpretação da resposta do fundacionismo cartesiano à (QF2) se baseia na
idéia de que as crenças básicas são crenças em proposições das quais não se pode duvidar.
Elas são ditas serem indubitáveis. Em outras palavras, as crenças básicas são crenças de
aparência das quais não se pode duvidar, ou descrer. Talvez quando uma imagem do tipo-
72
árvore esteja diante de sua mente, você não possa evitar crer que lhe pareça ver uma árvo-
re. Se esta é a idéia por detrás da resposta à (QF2), então a resposta geral parece ser que as
crenças básicas estão justificadas porque elas são crenças em proposições das quais, dadas
as circunstâncias, somos incapazes de duvidar. Mas esta não é uma boa resposta à (QF2).
A inabilidade em duvidar de uma proposição não torna epistemicamente justificada a cren-
ça nela. Isto pode, ao invés, ser o resultado de uma limitação psicológica. Suponha que
uma pessoa seja tão dependente psicologicamente do amor de sua mãe que ela não possa
duvidar de que sua mãe a ame. Isto não torna a crença epistemicamente justificada. A pes-
soa pode ter várias boas razões para acreditar no contrário, porém carecer da capacidade de
acreditar no que suas razões sustentam. Assim, a inabilidade de duvidar não torna alguma
coisa justificada e, logo, não pode explicar porque ela é uma crença básica justificada.
Há outro tema nos escritos de Descartes. Ele sugere que as crenças sobre os nossos
próprios estados internos são crenças que não poderiam estar erradas. A idéia é que se ele
acredita numa coisa tal como (4), então ele não poderia estar errado sobre isso. Ele poderia
estar errado sobre se há realmente uma árvore ali, mas não sobre se parece haver uma árvo-
re ali. De maneira geral, a idéia é a de que as crenças básicas estão justificadas porque elas
são crenças em proposições sobre as quais nós não podemos estar errados. Em outras pala-
vras, nós somos infalíveis a esse respeito. Assim, nós tomaríamos a resposta do fundacio-
nismo cartesiano à (QF2) como sendo a de que as crenças básicas estão justificadas porque
nós não podemos estar enganados.
Considere a seguir o que é comumente tomado como sendo a resposta de Descartes
à (QF3). Ele aparentemente pensou que tudo o mais que está justificado deve ser deduzido
das crenças básicas justificadas. Logo, ele sustentou que para tornar justificadas as crenças
sobre o mundo externo você deve combinar as crenças básicas de uma maneira tal que elas
garantam a verdade das crenças sobre o mundo. Uma vez que enunciados sobre como as
coisas se parecem não fornecem uma tal garantia, esta é uma tarefa difícil. A abordagem
do próprio Descartes foi a seguinte.10 Ele alegou que certas crenças elementares sobre
questões lógicas e conceituais também fossem básicas. Talvez sua idéia fosse a de que as
proposições elementares sobre estas questões fossem tais que nós simplesmente podemos
ver que elas são verdadeiras ao refletir sobre elas. Exemplos podem ser a proposição de
que qualquer coisa é idêntica a si mesma ou a proposição de que se a conjunção P e Q é
verdadeira, então P é verdadeira. Sem examinar esta questão em detalhe aqui, será sufici-
73
ente identificar esta classe de crenças básicas com as verdades elementares da lógica e a-
tribuir a Descartes o ponto de vista de que as nossas crenças nestas proposições também
são crenças básicas justificadas.
A maneira de Descartes argumentar que algumas crenças sobre o mundo externo
estão justificadas, dadas as suas respostas para (QF1), (QF2) e (QF3), foi argumentar que
as verdades elementares da lógica incluíam proposições com base nas quais ele estava apto
a provar conclusivamente que Deus existe e que Deus não iria ou não poderia ser um enga-
nador. Porém, se nossas crenças de aparências estivessem erradas, então Deus seria um en-
ganador. Usando esta conclusão combinada com suas crenças de aparência, ele derivou um
grande número de crenças sobre o mundo externo. Desta maneira, ele concluiu que nós te-
mos conhecimento de muitos fatos do mundo.
O fundacionismo cartesiano, então, é o ponto de vista caracterizado pelas três ale-
gações seguintes, as quais compreendem respostas às três questões para os fundacionistas:
FC1. Crenças sobre os próprios estados mentais de uma pessoa (crenças de aparên-
cia) e crenças sobre as verdades elementares da lógica são crenças básicas justificadas.
FC2. Crenças básicas justificadas estão justificadas porque nós não podemos estar
errados sobre elas. Nós somos “infalíveis” em tais questões.
FC3. O restante de nossas crenças justificadas (e.g., nossas crenças sobre o mundo
externo) está justificado porque elas podem ser deduzidas de nossas crenças básicas.
C1. Nós Não Somos Infalíveis Quanto Aos Nossos Próprios Estados Mentais
A combinação de (FC1) e (FC2) pode ser refutada se puder ser mostrado que nós
não somos infalíveis quanto aos nossos próprios estados mentais. O exemplo seguinte mos-
tra que há uma boa razão para pensar que podemos estar errados mesmo sobre estas ques-
tões.
10
Veja Descartes, “Meditation VI” em The Philosophical Works of Descartes, pp. 185-199.
74
você se aproxima do balcão, tropeça e estica sua mão para deter a queda. Desafortunada-
mente, sua mão vai direto para a frigideira. Você imediatamente a retira, pensando:
De fato, como você logo nota, a frigideira não está realmente quente. Você não sen-
tiu calor algum.11
É alegado que neste tipo de exemplo você acredita (5), que (5) é uma proposição
sobre o seu próprio estado mental corrente, e que (5) é falsa. Se tudo isto está correto, en-
tão você não é infalível sobre seus próprios estados mentais.
Para avaliar este exemplo, é importante ser cuidadoso sobre o que (5) diz exata-
mente. A palavra sensação é ambígua. Ela pode ser usada de maneira que implique que
exista realmente uma coisa externa que esteja sendo sentida. Ela também pode ser usada
para se referir a um estado puramente interno. De acordo com o primeiro uso, (5) é verda-
deira apenas se há de fato um contato com uma coisa muito quente. Assim entendida, (5)
não expressa o tipo de crença que os fundacionistas cartesianos alegam ser básica. Ela não
é sobre o próprio estado mental de uma pessoa. Ao invés, ela é sobre causas da experiência
corrente que são externas à mente. Nesta interpretação, (5) diz que uma coisa extremamen-
te quente está causando a atual sensação de calor.
A segunda interpretação de (5) a toma como sendo somente sobre o seu estado in-
terno. Ela diz apenas que você está sentindo uma ardência, que você sente calor. Ela nada
diz sobre alguma fonte externa desta sensação. Este é o tipo de crença que os cartesianos
têm em mente como básica. Desafortunadamente para o fundacionismo cartesiano, a obje-
ção parece funcionar quando (5) é interpretada desta segunda maneira. Poder-se-ia argu-
mentar plausivelmente que você não apenas tem a crença incorreta grosso modo equivalen-
te à “Eu toquei uma coisa muito quente.” Você equivocadamente pensa que está tendo a
sensação de ardência. Se o exemplo é possível quando entendido desta segunda maneira,
então nós realmente podemos estar equivocados sobre as nossas experiências. Isto é um
problema para o fundacionismo cartesiano. E o exemplo parece possível. O que impede as
pessoas de se equivocarem sobre suas experiências?
75
11
Keith Lehrer apresenta um exemplo similar em Knowledge (Oxford: Oxford University Press, 1974), p. 96.
Ele é discutido por Louis Pojman em The Theory of Knowledge: Classical and Contemporary Readings, 2
ed. (Belmont, CA: Wadsworth, 1999), p. 187.
12
Para discussão, veja Timothy McGrew, “A Defense of Classical Foundationalism”, em Louis P. Pojman,
ed., The Theory of Knowledge: Classical and Contemporary Readings, 2 ed., pp. 224-35.
13
Veja Lehrer, Knowledge, pp. 97-99.
76
Talvez o fundacionismo cartesiano implique isto. Mas uma forma modificada da teoria, a
ser discutida mais tarde neste capítulo, evita este resultado.
Há uma razão adicional para não aceitar (FC2). É muito difícil ver porque o fato (se
é um fato) de que você não possa estar enganado sobre alguma coisa seja um fato justifica-
dor. Suponha que uma proposição não possa ser falsa. Ela é uma lei da lógica, ou talvez
uma lei da natureza, que é verdadeira. Se você acredita nessa proposição, então a sua cren-
ça não pode estar errada. Mas a sua crença poderia ser um mero palpite feliz ou o resultado
de uma série que erros que aconteceu de conduzir a uma crença verdadeira. Se você sou-
besse que não poderia estar errado, isso proporcionaria a você uma razão. Mas se você não
souber disto, não é claro porque esse fato tornaria a sua crença justificada. Assim, (FC2)
implica em que, se uma crença não pode estar errada, então ela está justificada. E isto, à
luz da reflexão, parece estar errado.
Nossa falibilidade acerca de nossos próprios estados mentais não é o único proble-
ma para o fundacionismo cartesiano. Nos voltamos agora para um segundo problema.
Argumento 4.2: O Argumento de que As Crenças Sobre Estados Internos são Raras
77
2-1. As pessoas raramente baseiam suas crenças sobre o mundo externo em crenças
sobre seus próprios estados internos.
2-2. Se o fundacionismo cartesiano é verdadeiro, então as crenças sobre o mundo
externo estão bem fundadas somente se elas estão embasadas em crenças sobre os próprios
estados internos de uma pessoa.
2-3. Se o fundacionismo cartesiano é verdadeiro, então as pessoas raramente têm
crenças bem-fundadas sobre o mundo externo. (2-1), (2-2)
2-4. Não é verdade que as pessoas somente raramente têm crenças bem-fundadas
sobre o mundo externo. (A Perspectiva Standard)
2-5. O fundacionismo cartesiano não é verdadeiro. (2-3), (2-4)
los. Uma tal crença parece envolver algo como um monitoramento das experiências da
pessoa que nós ordinariamente não fazemos.
Além do mais, nos exemplos de crenças não-conscientes antes mencionados, ao
menos no caso típico, o crente reconhecerá as crenças se for perguntado sobre elas. Mas as
crenças de aparência não são absolutamente assim. É com freqüencia difícil fazer as pesso-
as pensarem em tais questões. Muitos estariam inclinados a dizer que não têm tais crenças
senão em circunstâncias extraordinárias em que devem considerar a possibilidade de aluci-
nações, de ilusões perceptivas e coisas do gênero. Isto lança algumas dúvidas sobre a idéia
de que as pessoas estejam, não obstante, rotineiramente formando crenças sobre estas ques-
tões.
Por fim, a descrição de McGrew torna a justificação dependente de detalhes de nos-
sos sistemas psicológicos de uma maneira peculiar. Um exemplo ilustrará isto. Suponha
que duas pessoas caminhem numa sala em que uma cadeira seja claramente visível. Ambas
olham em direção à cadeira e formam a crença de que a cadeira está presente. Por fim, su-
ponha que uma delas forma a crença subconsciente de que ele parece ver uma cadeira, en-
quanto que a outra pula esse passo e vai da experiência diretamente para a crença de que há
uma cadeira ali. A proposta de McGrew aparentemente tem o resultado de que a primeira
pessoa está justificada em crer que há uma cadeira ali, mas não a última. É difícil acreditar
que esta diferença psicológica subconsciente possa fazer diferença para a justificação.
Estas considerações não refutam definitivamente a sugestão de McGrew. Elas de-
pendem em parte de questões difíceis sobre a natureza da crença e das maneiras como nós
processamos informação. Ainda assim, elas são significantes o suficiente para tornar razo-
ável a procura por uma versão melhor do fundacionismo.
14
Timothy McGrew, “A Defense of Classical Founationalism”. A citação é da p. 230.
80
suas memórias de aparência e sobre outros aspectos de seus estados mentais correntes. Se
as suas crenças sobre o mundo externo estão justificadas, dado (FC3), você deve estar apto
a deduzir desta coleção de crenças básicas coisas tais como que há uma cadeira na sala,
que as luzes estão ligadas, e assim por diante. Aplicando as mesmas considerações ao e-
xemplo 4.1, se Careful está justificado em crer que Filcher roubou a pintura, então esta
conclusão deve ser dedutível da combinação das crenças de aparência de Careful. No en-
tanto, este requisito simplesmente não está satisfeito.
Dizer que as proposições sobre o mundo externo podem ser deduzidas das proposi-
ções de aparência é dizer que não é sequer possível para as proposições de aparência serem
verdadeiras se as proposições sobre o mundo externo forem falsas. Desafortunadamente,
isto é possível. É possível ter um sonho ou uma alucinação na qual você tenha experiências
exatamente como aquelas que você tem quando entra no quarto. Careful poderia ter tido as
experiências que ele teve como resultado de algum elaborado esquema pelo qual Filcher
seria incriminado pelo crime. Em geral, nenhum conjunto de experiências garante logica-
mente quaisquer proposições sobre o mundo externo em particular. A condição da dedução
de (FC3) é muito restritiva.
É claro que o fundacionismo cartesiano não é uma teoria satisfatória, dada a verda-
de da Perspectiva Standard. Existem os seguintes problemas:
1. Crenças sobre os próprios estados mentais de uma pessoa não são imunes ao er-
ro. Assim, se as crenças sobre eles são básicas, o que quer que as torne justificadas tem a
ver com alguma outra coisa que não esta propriedade. Nós precisamos de uma explicação
diferente daquilo que torna as crenças básicas justificadas. Assim, (FC2) precisa ser revi-
sado.
2. Nem todas as crenças sobre os próprios estados mentais de uma pessoa são cren-
ças básicas justificadas. Crenças sobre os próprios estados mentais de uma pessoa podem
ser derivadas de outras crenças e, logo, ser não-básicas. Crenças sobre eles podem ser in-
justificadas.
3. As coisas que o fundacionismo cartesiano conta como básicas são coisas nas
quais nós absolutamente não acreditamos em circunstâncias ordinárias. Parece que o ponto
81
de partida das nossas crenças são as observações ordinárias do mundo e não a introspec-
ção. Assim, (FC1) precisa ser revisado. (Naturalmente, este ponto é controverso.)
4. Muito do que nós conhecemos (de acordo com a Perspectiva Standard) não pode
ser deduzido do que é básico. Isto é claramente verdadeiro se as nossas crenças básicas fo-
rem crenças sobre os nossos próprios estados internos. Mas mesmo que nós tomemos os
juízos espontâneos sobre o mundo como sendo básicos, muito do que nós conhecemos vai
além do que pode ser deduzido disso.
IV. O COERENTISMO
C1. Apenas crenças podem justificar outras crenças. Nada além de uma crença po-
de contribuir para a justificação.
C2. Cada crença justificada depende em parte de outras crenças para a sua justifica-
ção. (Não há crenças básicas justificadas.)15
15
Nós examinaremos um argumento para sustentar essa alegação na seção V deste capítulo.
82
Os coerentistas pensam que uma crença está justificada quando ela coere com, ou
se encaixa bem com, as outras crenças de uma pessoa. Esta idéia tem uma considerável
força intuitiva, como é destacado pelos seguintes exemplos.
não está justificada. E o que é particularmente notável é que a crença é muito in-
congruente para Harry. Você poderia dizer que ele deveria pensar melhor [know better] ao
invés de crer numa tal coisa. E, de fato, ele pensa melhor, pois seus próprios princípios di-
zem a ele para não crer (6) nestas circunstâncias. Os coerentistas concordariam. Eles diri-
am que esta crença é incoerente para ele – ela não se encaixa co as outras crenças dele.
Harry aceita algo como
Ainda assim, Harry crê (6) na ausência da evidência necessária. Podemos ver um
tipo de incoerência em seu sistema. A crença sobre Miraclegro se destaca como a crença
“ruim” de seu sistema.
O exemplo 4.9 ilustra uma maneira pela qual uma crença pode fracassar em coerir
com as outras crenças de uma pessoa. Ela é uma crença individual que viola os próprios
princípios gerais do crente. Outro exemplo ilustra outra maneira pela qual uma crença pode
fracassar em coerir.
83
O exemplo 4.10 é semelhante ao exemplo 4.9 já que algum tipo de pensamento po-
sitivo está envolvido. No entanto, no exemplo 4.10 Storm pode não estar violando qualquer
princípio geral que ele aceite. A menos que ele tenha outras crenças sobre a localização
específica do cardo e o som do ramo, sua crença sobre o carro é simplesmente jogada den-
tro do sistema sem qualquer coisa para sustentá-la. Nós podemos dizer que no exemplo
4.10 a crença de Storm carece de coerência positiva. Não há um apoio positivo para ela no
sistema. Em contraste, no exemplo 4.9 a crença de Harry tinha uma coerência negativa: ela
estava em conflito com o restante do sistema. Para uma crença ser justificada, de acordo
com o coerentismo, ela não deve ser como nenhum destes casos. No entanto, estas conside-
rações não conduzem a uma descrição precisa do que seja a coerência. Nada dito até aqui
se constitui numa explicação clara de que tipo de conflito com outras crenças exclui a coe-
rência nem de que tipo de sustentação interna é necessário para a coerência. Além do mais,
como ficará claro na próxima seção, há uma questão importante sobre exatamente com o
que é que uma crença deve coerir a fim de estar justificada de acordo com os standards
coerentistas.
Uma formulação inicial do coerentismo, então, é a seguinte:
Para ver a força destas questões, suponha que os coerentistas façam duas suposi-
ções:
A idéia por trás da (TC2) é que crenças justificadas são crenças que compõem sis-
temas coerentes e crenças injustificadas são componentes de sistemas que não são coeren-
tes. Dada uma idéia razoavelmente clara do que é a coerência, (TC2) seria uma proposta
razoavelmente clara.
No entanto, (TC2) não é nem um pouco plausível. Pode haver alguma coisa desejá-
vel em se ter sistemas coerentes de crenças. No entanto, pouco de nós alcançam isto. Todos
nós cometemos alguns enganos, sucumbimos ao pensamento positivo, fracassamos em
compreender as conseqüências de nossas crenças. Existem, em todos os casos realistas, al-
gumas crenças que tornam nossos sistemas incoerentes ao menos em algum grau. De acor-
do com (TC2), se esse é o caso, então nenhum de nós jamais está justificado em coisa al-
guma. Considere a sua crença de que você existe. Mesmo que você esteja cometendo al-
guns grandes enganos em outras questões, isto é algo em que você está justificado em crer.
De acordo com (TC2), essa crença está justificada somente se você acredita que você exis-
te e o seu sistema de crenças é coerente. Como notado, se você se parece com um ser hu-
mano normal no que diz respeito às suas crenças, então o seu sistema de crenças não é coe-
rente. Por isso, de acordo com (TC2) a sua crença de que você existe não está justificada.
O problema com (TC2) pode ser colocado de uma maneira mais geral. Ela diz que
todas as crenças de um sistema coerente estão justificadas e todas as crenças de um sistema
não-coerente não estão justificadas. Qualquer sistema de crenças individual ou é coerente
ou não é coerente. Assim a teoria implica que, para cada indivíduo, ou todas as suas cren-
ças estão justificadas ou nenhuma delas está justificada. Uma vez que, de fato, qualquer
pessoa real fica aquém de um sistema coerente, a teoria implica em que nenhuma pessoa
real tenha qualquer crença justificada. No entanto, a verdade sobre cada um de nós não é
tão extrema. Cada um de nós tem algumas crenças justificadas e algumas crenças injustifi-
cadas. (TC2) não pode dar conta deste simples fato. Uma versão do coerentismo precisa ser
mais seletiva do que o é (TC2) a fim de ter sucesso.
Dizer que o grau em que uma crença está justificada depende do nível de coerência
do sistema inteiro do crente não irá resolver o problema. Suponha que o seu sistema de
crença seja, como um todo, moderadamente coerente. A presente proposta produziria o re-
sultado de todas as suas crenças também estão moderadamente justificadas. Isto fracassa
em distinguir apropriadamente entre a suas crenças bem-justificadas e as suas especulações
desenfreadas.
86
A coerência, o que quer que seja ela exatamente, é uma propriedade que um siste-
ma de crenças pode ter num maior ou menor grau. Um sistema de crenças pode ser mais
coerente do que outro. Os filósofos têm proposto várias coisas que aumentam ou diminuem
a coerência.16 É mais fácil compreender estas idéias considerando sistemas de crenças que
são muito semelhantes, com apenas algumas diferenças introduzidas para realçar os fatores
que afetam a coerência. Por exemplo, suponha duas pessoas, cada uma das quais creia nu-
ma grande número de proposições – p, q, r, e assim por diante. Vamos supor que não exis-
tam conflitos lógicos entre as proposições em que estas pessoas acreditam. Isto é, é ao me-
nos possível que todas as suas crenças sejam verdadeiras. E então suponha que uma das
pessoas forma a crença de que p é falsa, e a pessoa simplesmente acrescente essa crença
em seu sistema. Agora há uma contradição no sistema de crenças. Ela inclui tanto a crença
em p quanto a crença em ∼p. Estas não podem ser ambas verdadeiras. Agora o sistema
contém uma inconsistência. E isto o torna menos coerente. As inconsistências não preci-
sam se tão óbvias quanto a recém descrita. Uma pessoa poderia crer em várias proposições
e fracassar em compreender que elas implicam a negação de uma outra proposição em que
ela acredita. Este sistema também é inconsistente, embora a inconsistência não seja tão os-
tensiva. Em qualquer caso, a inconsistência diminui a coerência.
Uma coisa que aumenta a coerência de um sistema é o fato de que ele contenha
crenças que se constituam em explicações de outras crenças do sistema. Suponha que o
jardineiro #1 creia que todas as plantas de seu jardim estejam murchas e que não chove há
muito tempo. Suponha que o jardineiro #2 creia nestas coisas e também creia que as plan-
tas murcham quando não recebem água por muito tempo. (Talvez o jardineiro #2 também
creia que a chuva proporciona água para as plantas.) O jardineiro #2 tem um sistema de
crenças mais rico e desenvolvido. A riqueza vem em parte da forma como ele articula em
16
Para discussão, veja Keith Lehrer, Knowledge, capítulos 7-9, e Laurence BonJour, The Structure of Em-
pirical Knowledge, (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1985), capítulos 5-8.
87
conjunto crenças que estão isoladas uma da outra no sistema de crenças do jardineiro #1.
Haver este tipo de conexões é freqüentemente pensado aumentar a coerência de um siste-
ma de crenças.
Talvez ter crenças individuais que conflitem com os princípios gerais de uma pes-
soa também diminua o valor da coerência do sistema de crenças da pessoa.
Nós diremos que fatores tais como estes determinam o valor da coerência de um
sistema de crenças. Isto não constitui uma descrição completa dos valores da coerência,
mas proporciona alguma explicação da idéia. Os coerentistas podem fazer uso dos valores
da coerência de um sistema de crenças para formular uma versão do coerentismo que con-
torne as dificuldades iniciais cobertas na seção anterior.17 Nós podemos formular a teoria
desta maneira:
As implicações pretendidas de (TC3) podem ser mais bem vistas considerando duas
situações, uma na qual a pessoa já acredita na proposição e uma na qual a pessoa não acre-
dita nela. Se a pessoa crê na proposição, então o valor de coerência do sistema tal como ele
é atualmente pode ser comparado o seu valor da coerência obtido com a remoção da crença
do sistema. Se a remoção da crença diminui o valor de coerência do sistema, então a crença
nessa proposição está justificada. Se a pessoa ainda não crê na proposição, então o valor da
coerência do sistema atual pode ser comparado com o valor do sistema que seria formado
se a crença fosse acrescentada. (TC3) diz que quando a versão do sistema coma crença tem
um valor mais alto do que a versão sem ela, então a crença está justificada. De acordo com
(TC3), nós diremos que uma crença coere com um sistema de crenças quando ela aumenta
o valor da coerência desse sistema. Logo, (TC3) preserva a idéia de que uma crença está
justificada quando ela coere com o sistema de crenças de uma pessoa.
(Tc3) pode lidar razoavelmente bem com os exemplo 4.9 e 4.10. No exemplo 4.9,
Harry tinha uma crença geral sobre os tratamentos efetivos e uma crença específica sobre
Miraclegro que não se encaixavam bem. Intuitivamente, a crença sobre Miraclegro era o
bandido. É plausível sustentar que o sistema de crenças de Harry seria mais coerente se
17
Uma teoria nessa linha é sugerida por Jonathan Dancy em Na Introduction to Contemporary Epistemology
(Oxford: Blackwell, 1985).
88
essa crença fosse descartada. Assim, (TC3) dá o resultado correto de que ela não está justi-
ficada. NO exemplo 4.10, Storm tem uma crença que está desconectada de suas outras
crenças. Assim, talvez seu sistema ganhasse em coerência ao descartá-la. Mais uma vez,
(TC3) parece ter os resultados corretos neste caso.
Existem, entretanto, detalhes incômodos que necessitam ser desenvolvidos por
(TC3). Considere mais uma vez Harry no exemplo 4.9. Harry tem uma crença injustifica-
da em (6), a proposição de que Miraclegro cura a calvície. Intuitivamente, nós julgamos
que seu sistema de crenças seria mais coerente se ele descartasse esta crença. (TC3) avalia
a justificação olhando para o que aconteceria com o valor da coerência do sistema se só
esta crença fosse descartada. O problema com isto é que Harry pode muito bem crer em
numerosas outras proposições que estão conectadas com (6) de maneiras cruciais. Por e-
xemplo, se ele tivesse acabado de comprar um pouco de Miraclegro, então ele poderia crer
Se nós avaliarmos a justificação de (6) olhando para ver o que acontece com o sis-
tema se apenas ela for descartada, então nós avaliaremos o valor da coerência do sistema
de Harry no caso dele parar de crer (6) mas continuar a crer (7). Ele pode também acreditar
em muitas outras proposições estreitamente relacionadas com (6). Por exemplo, ele pode
acreditar
Seu sistema pode perder coerência se ele continuar a acreditar coisas como (7) e (8)
mas descartar (6). Devido às suas conexões com outras crenças, então, descartar apenas (6)
pode diminuir a coerência, ainda que crer (6) não seja justificado. Por isso, não é claro que
(TC3) de fato lide apropriadamente com este exemplo. O fato de que qualquer crença,
mesmo que ela não seja justificada, possa ainda assim ter conexões lógicas com muitas ou-
tras crenças, coloca um difícil problema para os coerentistas. Não é claro como revisar o
coerentismo para evitar este problema.
Há um outro problema que os advogados da (TC3) devem enfrentar. Considere a
crença justificada de Harry em (P), a proposição que diz que tratamentos não funcionam
sem evidência clínica de sua efetividade e que não há evidência efetividade de Miraclegro
89
(para a calvície). Os coerentistas dizem que o sistema de Harry seria mais coerente se ele
descartasse (6) de seu sistema. Ignore o problema recém discutido e suponha que isto seja
verdade. No entanto, também é verdade que ele poderia ganhar alguma coerência descar-
tando (P) de seu sistema. Isto porque (P) também contribui para a incoerência revelada por
seu sistema. Por isso, (TC3) implica que sua crença no princípio também não está justifi-
cada. De modo geral, quando o sistema corrente de uma pessoa é incoerente porque duas
crenças estão em conflito, há um aumento na coerência pelo descarte de qualquer uma de-
las. A teoria parece implicar que nenhuma delas está justificada. Ainda assim, isso não
precisa ser o caso, como o exemplo 4.9 ilustra. Uma melhor versão do coerentismo abrirá
de alguma forma a possibilidade de que uma das crenças conflitantes, ou um grupo de gru-
pos conflitantes de crenças, esteja justificado. Talvez os coerentistas possam apresentar
alguma maneira de lidar com este problema.
Os dois problemas recém discutidos seguramente não mostram que o coerentismo
está errado. Eles apenas mostram que existem problemas difíceis para os coerentistas re-
solverem. Talvez eles possam resolvê-los especificando de uma maneira melhor o sistema
de crenças com o qual uma crença deve ser coerente a fim de estar justificada. Por exem-
plo, em alguns dos exemplos uma característica chave é que uma crença é sustentada mais
como um tipo de pensamento positivo do que como um esforço para alcançar a verdade.
Os coerentistas poderiam definir a justificação em termos de coerência com este subsiste-
ma direcionado-para-a-verdade.18 Possivelmente alguma de tais descrições evitará os pro-
blemas considerados até aqui.
Existem algumas outras objeções ao coerentismo que pretendem ir ao coração da
teoria. Alguns críticos argumentam que a idéia coerentista central está errada. Eles argu-
mentam que a justificação não é inteiramente uma questão de como as nossas crenças se
articulam conjuntamente. Nos voltamos a seguir para duas objeções que tentam capitalizar
este ponto.
C. Objeções ao Coerentismo
18
Veja Keith Lehrer, “Reply to my Critics”, em John Bender, ed., The Current State of the Coherence The-
ory (Dordrecht: Kluwer, 1989).
90
Eis aqui uma maneira de descrever esta objeção.20 Considere a objeção de que A-
braham Lincoln foi assassinado. Se, como os críticos argumentam, existem muitos siste-
mas de crenças diferentes e incompatíveis, haverá alguns sistemas que incluem esta crença
e outros que incluem e a sua negação. Se essa crença é parte de seu atual sistema, você po-
de imaginar um sistema que substitua tudo o que a sustenta ou o que se segue dela por pro-
posições diferentes. Ao construir cuidadosamente o novo sistema, você poderia chegar a
um sistema tão coerente quanto o é o seu sistema corrente. Logo, se existem todos estes
diferentes sistemas coerentes, então você pode fazer qualquer crença que você queira estar
justificada simplesmente por selecionar apropriadamente o restante de suas crenças. Isso
não pode estar certo. Eis aqui um enunciado mais formal do argumento:
19
Laurence BonJour, The Structure of Empirical Knowledge, p. 107.
20
Para outra recente formulação da objeção, veja Louis Pojman, What Can We Know? 2 ed. (Belmont, CA:
Wadsworth, 2001), p. 118.
91
Há boas razões para duvidar que esta seja uma boa objeção ao coerentismo.21 Um
problema com este argumento é que (3-2) é falsa. As pessoas simplesmente não têm tanto
controle sobre suas crenças. Mas este não é o maior problema com o argumento.
Considere mais uma vez a crença sobre Lincoln com a qual começou esta subseção.
Os coerentistas não estão comprometidos com a absurda conclusão de que você já está jus-
tificado em crer tanto que Lincoln foi assassinado quanto que ele não o foi. Nem estão
comprometidos com a idéia de que você tem o poder de ajustar as suas crenças para cons-
truir um sistema coerente em torno de cada uma destas opções. Os coerentistas não estão
empacados com a alegação implausível de que nós podemos formar nossas crenças à von-
tade. Eles estão comprometidos com a idéia de que alguém poderia ter a crença de que
Lincoln foi assassinado, e de que esta crença poderia ser coerente com seu sistema de cren-
ças, e de que, portanto, esta crença poderia estar justificada. Eles também estão comprome-
tidos com a conclusão de que uma pessoa poderia ter a crença de que Lincoln não foi as-
sassinado, de que esta crença poderia também ser coerente com um sistema diferente que
ele tivesse, e de que, portanto, sua crença também poderia estar justificada. Longe de se
falsa, entretanto, esta conclusão parece perfeitamente correta. Crenças conflitantes, em sis-
temas alternativos, podem estar justificadas. As pessoas que têm diferentes experiências e
que aprenderam coisas diferentes poderiam crer justificadamente em coisas muito diferen-
tes. Pode haver algumas pessoas que tenham aprendido coisas incomuns e que, como resul-
tado, têm uma crença justificada de que Lincoln não foi assassinado. Não há uma boa ob-
jeção ao coerentismo aqui.
O Argumento dos Sistemas Alternativos é suposta estar trabalhando sobre a idéia de
que o coerentismo de alguma forma está empacado com o resultado de que sistemas alter-
nativos de crenças podem estar justificados, sem bases coerentistas para escolher entre e-
les. Pode acontecer, entretanto, que este compromisso não seja implausível. Seguramente
pessoas em circunstâncias diferentes podem ter sistemas de crenças inteiramente diferentes
e completamente justificados que diferem grandemente um do outro. Por exemplo, uma
pessoa vivendo na Idade Média poderia ter um conjunto de crenças coerente e completa-
mente justificado radicalmente diferente de sua contrapartida moderna. A idéia por detrás
desta objeção ao coerentismo está equivocada.22
21
Earl Conee destaca pontos similares sobre essa objeção em “Isolation and Beyond”, Philosophical Topics
23 (1995): 129-46.
22
Para uma discussão de questões relacionadas, referente à possibilidade de pessoas razoáveis terem diferen-
tes crenças, veja o capítulo 9.
92
dade. Não é que elas simplesmente sejam falsas. Ainda pior, elas não levam em considera-
ção nem mesmo a natureza de suas próprias experiências. Suas experiências – o que ele vê
e sente – são as experiências de um professor. Suas crenças são as de uma pessoa numa
situação inteiramente diferente. Longe de estarem justificadas, elas são uma fantasia ab-
surda.
Este argumento pode ser formulado como segue:
Há uma outra maneira de destacar o mesmo ponto. Se somente outras crenças po-
dem justificar uma crença, então, já que MF e MJ têm as mesmas crenças, MJ não tem coi-
sa alguma para justificar suas crenças que MF também não tenha. Assim, MJ não pode es-
tar mais bem justificado do que MF. Mas ele está. A razão para isto é que parte do que de-
termina o que está justificado é o caráter da experiência de uma pessoa.
Os coerentistas podem responder que MF não é possível. Dever ser concedido que
o exemplo é muito inusual. Ainda assim, é suficiente para destacar um ponto importante
acerca do coerentismo: ele omite de sua descrição da justificação uma coisa que parece ab-
solutamente central: a experiência de uma pessoa. Além do mais, os críticos não precisam
recorrer a exemplos bizarros como o de MF a fim de destacar o ponto.
Lefty e Righty estão num experimento psicológico. Eles são pessoas extremamente
semelhantes, com todas as mesmas crenças relevantes. O experimento é um no qual eles
olham uma imagem num monitor e formam crenças sobre o que eles vêem. É-lhes dito que
eles irão ver duas linhas no monitor e formarão uma crença sobre qual é a mais comprida.
Ambos são levados a crer que a linha da direita é a mais comprida. As linhas aparecem en-
tão nos monitores e ambos crêem que a linha da direita é a mais comprida. No entanto, as
expectativas estão jogando um papel. De fato, para um dele, Lefty, a linha da esquerda é
que é a mais comprida, e ela parece assim. Lefty simplesmente ignora o caráter da sua ex-
periência e forma sua crença inteiramente com base no que ele foi levado a crer.
Os críticos argumentam que como a linha se parece faz alguma diferença para o
que está justificado para Lefty. Lefty pensa que a linha da direita é a mais comprida, mas
ele não presta atenção para como a linha de fato se parece, ainda que a informação esteja
bem ali diante de sua mente. O coerentismo implica em que ele esteja justificado em crer
que a linha da direita é a mais comprida uma vez que essa crença está sustentada por suas
crenças anterior e ele não tem outras crenças que a anulem. Ainda assim, Lefty tem a evi-
dencia experimental – a maneira como a linha se parece – que conta contra esta crença. O
coerentismo deixa isto inapropriadamente fora do cenário. Ele diz que somente importa
aquilo em que Lefty acredita. Ele dá uma descrição incorreta deste exemplo mais realista.
Alguns defensores do coerentismo podem responder que as crenças de uma pessoa
devem se conformar às suas experiências. Se for assim, então os exemplos 4.11 e 4.12 não
são nem mesmo possíveis. No entanto, se esse é o caso, então ocorre que um elemento
fundamental do fundacionismo está afinal de contas correto – estas crenças sobre a experi-
ência parecem ser em algum sentido “infalíveis” ou “incorrigíveis.” Nós temos de estar
certos sobre elas. Assim, se você rejeita este argumento contra o coerentismo nestas bases,
você parece estar apelando para uma idéia fundacionista.
Isto sugere que seria uma boa idéia reconsiderar o fundacionismo num esforço para
chegar a uma versão que evite as dificuldades do fundacionismo cartesiano.
C1. Somente crenças podem justificar outras crenças. Nada além de uma crença
pode contribuir para a justificação.
C2. Toda crença justificada depende em parte de outras crenças para a sua justifica-
ção. (Não existem crenças básicas justificadas.)
2. Nós ainda não encontramos uma maneira adequada de formular a teoria coeren-
tista. Entre os problemas para os coerentistas estão estes: (a) distinguir sensatamente entre
as crenças efetivas para caracterizar algumas como justificadas e algumas como injustifi-
cadas; (b) dizer o que é efetivamente a coerência.
3. Muitos críticos pensam que (C1) tenha sido refutada pelo Argumento do Isola-
mento. Esse argumento mostra que a experiência tem importância para a justificação.
V. FUNDACIONISMO MODESTO
A. A Idéia Central
Recorde que os fundacionistas precisam responder estas questões:
QF1. Sobre que tipo de coisas tratam as nossas crenças básicas justificadas? Quais
crenças são justificadas e básicas?
QF2. Como são justificadas essas crenças básicas? Se elas não são justificadas por
outras crenças, como elas se tornam justificadas?
QF3. Que tipo de conexão uma crença não-básica deve ter com as crenças básicas a
fim de estar justificada?
23
Veja Robert Audi, The Structure of Justification (Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1993);
Susan Haack, Evidence and Inquiry: Towards Reconstruction in Epistemology (Oxford: Blackwell, 1993); e
James Pryor “The Skeptic and the Dogmatist”, Nous 34 (2000): 517:549. Haack classifica sua teoria como
96
no, que estas crenças podem ser justificadas sem serem imunes ao erro, e que crenças não-
básicas podem ser justificadas se elas forem bem sustentadas pelas crenças básicas sem
serem dedutíveis delas. Estas condições colocadas sobre as crenças justificadas são então
menos demandantes, ou mais modestas, do que aquelas endossadas pelo fundacionismo
cartesiano.
A idéia do fundacionismo modesto é como segue. Enquanto as pessoas fazem seu
caminho pelo mundo, elas são rotineiramente bombardeadas com estímulos sensoriais. E-
las regularmente formam crenças, não sobre os efeitos internos daqueles estímulos, mas
sobre o mundo fora delas. Elas crêem em coisas tais como que as luzes estão acesas, que
há um livro sobre a mesa, e assim por diante. Os fundacionistas modestos consideram estas
como sendo as crenças básicas justificadas. Eles não dizem que nós não podemos estar en-
ganados sobre estas coisas. Não obstante, eles sustentam que crenças tais como estas estão
freqüentemente muito bem justificadas. Por fim, eles dizem que estas crenças básicas justi-
ficadas podem proporcionar razões justificadoras para outras crenças sobre o mundo mes-
mo que as outras crenças não sejam dedutíveis daquelas básicas.
Tudo isso parece inteiramente plausível, mas questões difíceis surgem quando nós
tentamos formular os detalhes. Voltaremos-nos a seguir a isto.
funderentismo – uma combinação de fundacionismo e coerentismo. Entretanto, parece que ela se encaixa no
ponto de vista do fundacionista modesto aqui descrito.
24
Uma crença básica não precisa ser justificada. Se alguém forma uma crença diretamente e não com base
em outras crenças, então ela é básica. Por exemplo, se uma crença simplesmente ocorre a você de súbito,
então ela é básica mas não é justificada. Alguns filósofos usam a palavra “básica” para se referir apenas às
crenças justificadas que não são dependentes de outras crenças para a sua justificação. Entretanto, nós então
97
tos sobre tais questões irão emergir da discussão de suas respostas à (QF1) e (QF2). Antes
de examinar essa parte da teoria deles, considere como eles irão responder (QF3). Em ou-
tras palavras, como, de acordo com o fundacionismo modesto, o restante de nossas crenças
é justificado? O que pode substituir a condição da dedução do fundacionismo cartesiano?
Considere de novo o exemplo 4.1. Careful tinha fortes razões para pensar que Fil-
cher roubara a pintura. Aquelas razões estão resumidas na proposição (9):
Embora (9) possa não conter apenas proposições que são básicas, de acordo dom o
atual ponto de vista, não é difícil de ver como uma crença em (9) poderia estar embasada
em coisas que são básicas. Talvez as observações que constituam as crenças básicas de Ca-
reful neste caso sejam proposições sobre as coisas que ele tinha observado: que lá havia
digitais de um tal e tal tipo, que alguém disse que havia visto Filcher na área do crime, e
assim por diante. A figura que resulta, então, é esta:
As ligações entre as proposições são aqui menos do que dedutivas. Elas incluem
aparentemente boas inferências do tipo que as pessoas fazem o tempo todo. Algumas vezes
inferências como estas são ditas serem inferências indutivas.25 Incluído nisto está o tipo de
inferência que você faz quando observa que uma ampla variedade de coisas de um certo
tipo têm todas uma certa propriedade e você conclui que a próxima coisa desse tipo terá
essa propriedade. Isto é conhecido como indução enumerativa.
não teríamos nenhum termo simples para nos referirmos às crenças que não são justificadas e que não tem
base em outras crenças.
25
É possível levantar questões céticas sobre a indução. Tais questões serão discutidas no capítulo 7.
98
FM3. Crenças não-básicas estão justificadas quando elas são sustentadas por infe-
rências indutivas fortes – incluindo indução enumerativa e inferência para a melhor expli-
cação – desde crenças básicas justificadas.
FM3a. Crenças não-básicas estão justificadas (bem fundamentadas) quando (a) elas
são sustentadas por inferências indutivas fortes – incluindo indução enumerativa e inferên-
cia para a melhor explicação – desde crenças básicas justificadas e (b) elas não são supera-
das por outra evidência.26
99
26
É importante compreender que para que a cláusula (a) seja satisfeita não é suficiente que meramente se
tenha alguma evidência que proporcione sustentação. É requerido que a evidência que proporcione sustenta-
ção seja muito forte – forte o suficiente para proporcionar o nível de justificação para o conhecimento.
100
dades sensoriais, são freqüentemente básicas e justificadas. Crenças sobre estados mentais
também podem ser básicas e justificadas.
FM2. Ser espontaneamente formada torna uma crença justificada.
A idéia aqui é a de que se uma pessoa forma uma crença espontaneamente, não na
base de qualquer inferência, então essa crença está justificada dado que a pessoa não tenha
razões que abalem essa crença.
(FM2a) não toma em consideração um fato sugerido por alguns dos exemplos que
nós temos considerado. Quando crenças espontâneas são justificadas, elas estão conectadas
com a experiência de uma maneira importante, embora difícil de descrever. Quando você
101
entra numa sala, vê uma mesa, e forma a crença de que há uma mesa ali, o que torna a sua
crença justificada não é simplesmente o fato de que esta crença é espontaneamente forma-
da ou mesmo o fato de que ela é espontaneamente formada combinado com o fato de que
você não tem evidência contra haver uma mesa ali. (Suponha que você não tenha qualquer
outra evidência contra ou a favor de haver uma mesa ali.) O que parece central é que sua
crença é uma resposta apropriada ao estímulo perceptivo que você tem. É alguma coisa a-
propriada crer dada essa experiência. Acreditar em alguma coisa que não se encaixa em
absoluto nessa experiência, tal como que há um elefante na sala, não seria uma resposta
apropriada a essa experiência. Acreditar em alguma coisa que vai além do que é revelado
na experiência, tal como que há ali uma mesa que tem exatamente 12 anos de idade, não
seria uma resposta apropriada a essa experiência.
Uma versão mais refinada do fundacionismo modesto faz uso dessa idéia de uma
resposta apropriada às experiências. Responder propriamente a uma experiência é acreditar
no que essa experiência, por si mesma, indica estar presente. A vítima de uma alucinação
perfeita, então, responde apropriadamente à experiência ao acreditar no que parece ser ver-
dadeiro, mesmo que ele não seja verdadeiro. Mas quando as pessoas superestimam suas
experiências, ou as interpretam mal, então elas não estão respondendo apropriadamente.
Logo, os fundacionistas modestos podem dizer:
FM2b. Uma crença formada espontaneamente está justificada dado que ela seja
uma resposta apropriada às experiências e não seja superada por outra evidência que o
crente tenha.
dizer que as primeiras propriedades são “mais próximas à experiência” do que as últimas.
Qualquer um com a visão apropriada pode discernir as primeiras propriedades na experiên-
cia. Isto não é verdade das últimas.
Isto sugere dois fatores sobre quando crenças estão apropriadamente embasadas na
experiência. Primeiro, quando os conteúdos da crença estão mais próximos dos conteúdos
diretos da experiência, eles estão mais aptos a serem apropriadamente embasados na expe-
riência. Segundo, os fundacionistas modestos podem dizer que treinamento e experiência
afetam o que conta como uma resposta apropriada à experiência. O treinamento do espe-
cialista torna a sua resposta apropriada. Para crenças que estão mais distantes da experiên-
cia, tal treinamento é necessário para a crença estar apropriadamente embasada na experi-
ência. Logo, o fundacionismo modesto é capturado pelos seguintes princípios:
O fundacionismo modesto é uma teoria atraente. O problema central que ela en-
frenta diz respeito à idéia de uma crença ser apropriadamente embasada na experiência.
a verdade; ... Logo, se as crenças básicas vão proporcionar uma fundação segura
para o conhecimento empírico, ... então esse traço, qualquer que ele seja, em vir-
tude da qual uma crença em particular se qualifica como básica, deve também se
constituir numa boa razão para pensar que a crença é verdadeira... Se nós fizer-
mos Φ representar o traço ou característica, qualquer que ele possa ser, que dis-
tingue crenças empíricas básicas de outras crenças empíricas, então em uma des-
crição fundacionista aceitável uma crença empírica B em particular poderia se
qualificar como básica somente se as premissas do seguinte argumento justifica-
tório estivessem adequadamente justificadas:
27
Laurence BonJour, The Structure of Empirical Knowledge (Cambridge, MA: Harvard University Press,
1985), pp. 30-31. Uma linha de pensamento similar é apresentada no amplamente reimpresso ensaio de Bon-
Jour, “Can Empirical Knowledge Have a Foundation?” American Philosophical Quarterly 15 (1978): 1-13.
104
sem ter o crente um argumento TIV para ela, (5-3) é falsa. E mesmo que a pessoa tenha o
argumento TIV para ela, a crença pode também ser justificada diretamente pela experiên-
cia e ser ainda uma crença básica justificada. O argumento TIV é, com efeito, supérfluo.
Por isso, (5-2) é falsa.
28
Ernest Sosa formula uma questão tal como essa no capítulo 6 de Virtue Epistemology em Blackwell Great
Debates
106