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III~tl< lI·tlA 11. I 11:.1( )I{IOU~NIA

François Hartog

Evidência da história
o que os historiadores veem

Tradução
Guilherme João de Freitas Teixeira
com a colaboração de Jaime A. Clasen

BIBLIOTECA NGK· pueisP

19 edição
19 reimpressão
1111~~l!~l~~~
:
b\Ol\oteca
Nad\r Gouvêa Ktoun
PUC.••$P
autêntica
Copyright © 2005 Éditions de I'EHESS
Copyright © 2011 Autêntica Editora

TITULO ORIGINAL
Évidence de /'histoire - ce que voient les historiens
COORDENADORA DA COLEÇÃO HISTeRIA E HISTORIOGRAFIA

Eliana de Freitas Outra


PROJETO GRÁFICO DE CAPA

Teco de Souza
EDITORAÇÃO ELETR6NICA

Conrado Esteves
Christiane Morais de Oliveira
REVISÃO TÉCNICA

Vera Chacham
REVISÃO
Vera Lúcia De Simoni Castro
Lira Córdova
EDITORA RESPONSÁVEL

Rejane Dias

Revisado conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


em vigor no Brasil desde janeiro de 2009.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do livro, SP, Brasil)

Hartog, François
Para M. I. F.
Evidência da história: o que os historiadores veem / François Hartog;
tradução Guilherme João de Freitas Teixeira com a colaboração de Jaime in memoriam
A. Clasen. - 1. ed., 1. reimp. - Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.-
(Coleção História & Historiografia / coordenação Eliana de Freitas Dutra, 5)

Título original: Évidence de I'histoire : ce que voient les historiens.

ISBN 978-85-7526-584-0

1. Historiografia.
11. Titulo. 111. Série.
2. História - Filosofia. I. Dutra, Eliana de Freitas.

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1'111111) V

A testemunha e o historiador

A testemunha e o historiador? Segundo parece, o problema


está resolvido há muito tempo: do ponto de visto prático e episte-
mológico. A testemunha não é um historiador, e o historiador - se
.lc pode ser, em caso de necessidade, uma testemunha - não deve
nssumir tal função; e sobretudo ele só é capaz de começar a tomar-
se historiador ao manter-se à distância da testemunha (qualquer
testemunha, incluindo ele mesmo). Assim, ser testemunha nunca
- -~..... "'--.. _ .. ---
. ~
foi uma condição suficiente, nem sequer uma condição necessária,
para ser hist~riac!9~. Mas tal constatação já nos tinha sido ensinada
por Tucídides. A própria autópsia (o fato de ver por si mesmo)
deveria passar, previamente, pelo filtro da crítica. S~t agor:a,~
deslocamos do historiador para sua narrativa, a questão torna-se a
s~inte: -de que modo narrar como se eu tivesse visto (para fazer
ver ao leitor) o que não vi, nem podia ter visto? Velhas questões
que não deixaram de acompanhar a hist6ria e sua evidência.
~m seguida, quando a história finalmente, no século XIX, veio
a ser definida como ciência, a ciência do passado, ela limitava-se a
conhecer "documentos". As "vozes" haviam sido convertidas em
"fontes"; e, no termo dessa mutação, as "testemunhas" chegaram
mesmo a acreditar que deveriam assemelhar-se a historiadoresjfiis o
que é deplorado por Péguy, que observava: "Você entra em contato
com um homem; à sua frente, nada além de uma testemunha [...]
Você vai ao encontro de um idoso; instantaneamente, ele nada é
além de historiador" (PÉGUY,1992, t. 3, p. 1187-1188). Ele fala
como um livro.

203
EVID~NCIA DA HISTÓRIA - O QUE OS HISTORIADORES VEEM
A TESTEMUNHA E O HISTORIADOR

~ tão reab . ssiê? Porque o fato de circuns decorrer do julgamento de Eichmann, em Jerusalém, em 1961, sua
crever uma vez mais - talvez, um pouco mais profundamente _ essa
função acabou por se impor, e à primeira vista paradoxalmente, nos
diferença primordial [principie~ e sua história poderia lançar algunu
EUA. ('Se a tragédia foi inventada pelos gregos, o intercâmbio de
luz sobre a historiografia: oportunidade de voltar a percorrê-Ia, ;I
mensagens pelos romanos e o soneto pela Renascença, nossa gera-
passos largos, desde os gregos até nossos dias, e reencontrar algUll1:1~
ção inventou um novo gênero literário, o testemunho." Indepen-
das config\lrações epistemológicas que haviam sido como que seus
dentemente da consistência dessa fórmula forjada por Élie Wiesel,
núcleos organizadores; finalmente, uma forma de questionar o papd
todos compreendem sua significação; ele próprio definiu-se como
desse personagem banal, familiar, sem deixar de ser estranho, que 7.
a testemunha e se tornou o bardo do Holocausto (para atribuir-
-"-- -
o historiador nas nossas sociedades.
.-. - lhe o termo utilizado em inglês). Há também, nesse mesmo papel
Evocar essas primeiras partilhas é reabrir a questão das relações da testemunha - embora de maneira mais sóbria, laica e trágica -,
_~~tr~@ e-sa~ãis elas ha~!ãillsi~õ e.stab_éle~~das,como j;~
<:..o~<:. Primo Levi, que, à semelhança do Velho marinheiro de Coleridge,
vimos, pelo grego; em seguida" enfrentar a relação entre fazer ver, deve contar sua história sempre que, "em uma hora incerta, retorna
lTIostrar e persuadir,-Ou~~ja, emrar~o d~iê, nuncãê"ncerraêlo deSdI'
essa agonia" (LEVI, 1989, p. 10; RASTIER,2005).
Ãristót~l;s, d;-
narrativa histórica e da mimesii, da naiTàfiva como
Existem os testemunhos: transcritos e reescritos, gravados e
imitação do que se passou, como exposiçãõ- ou poiesis:J5õrtãríto,
filmados, até o empreendimento recente que empregou centenas
imergir plenamente na evidênciada história. Mas, em primeiro lu
de pessoas, promovido pela Fundação Spielberg. Mas há também
gar, é a conjuntura recente, precisamente marcada, desde a dêcad.i
reflexões sobre o próprio ato de testemunhar, suas funções, seus
de 1980, pela progressiva ascendência da testemunha, a "era" d.l
testemunha, como ela foi designada por um livro dedicado à análise
efeitos sobre a testemunha, sobre os ouvintes ou os espectadores, ;:~
acompanhado pelo problema - inevitavelmente, lancinante ou recor- li:
desse fenômeno (WIEVIORKA,1998), que vai orientar a reflexão que
rente - da transmissão, ou seja, tudo o que gira em tomo, para utilizar 1;1"
JI
eu gostaria de esboçar. Começando por avançar do presente até ()
mais longínquo e retornar, tentando esclarecer, em alguns pontos, a expressão inglesa, do vicarious witness (testemunha de substituição).
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um pelo outro: em suma, fazer história. Quem pretende refletir sobre o fenômeno do testemunho
tem de partir, com efeito, da centralidade presente de Auschwitz
A testemunha, de que modo e por quê? e, portanto, também ou em primeiro lugar, da centralidade do
Holocausto no espaço norte-americano, em que o fenômeno pode
Arrastada pela agitação sublirninar da memória, a testemunhn ser apreendido, se ouso dizer, em sua força e nitidez.
entendida, por sua vez, como portadora de memória - impôs-se,
~ ~ - O que se passa, então, na França? A questão é, obviamente,
gradualmente, em nosso espaço público; ela é reconhecida e pro
inseparável de Vichy.l'" do processo contra o Estado francês. De
ClirãCfa,alé~d;~esente e, até mesmo, à prime.k<~ista, oni
tal modo que o ato de testemunhar apresentou-se, aqui mais do
presen~e'.A testemunha, qualquer testemunha, mas, acima de tudo,
.]UCalhures, em termos estritamente, ou mais diretamente, judi-
a testemunha como sobrevivente: a pessoa que o latim dcsignnv.,
.iais. Eis o que é verdadeiro para as testemunhas comuns, assim
precisamente por superstes, ou seja, alguém que está firlJ1:ldo sob, t'
,'01110 para as lCS!ClIllllllt,IS particulares em que se tornaram alguns
a própria coisa, ou alguém que ainda subsiste (13J!NvJ!N'S'I'Il, 1%'1,
historiadores, pOI (li ."1,111 dos recentes processos por crimes contra
p. 276). As testemunhas do Holocausro /S/w,d,/ S:I() .IS /WSS(),I~ </\11
atravessaranl essa provação. Mesmo '1\1(' () /l';III(';,n 1('1 oltllt'l illll'll(o
da tcxrcmunhn, nn ('t'm Pllh/i(., 111(,"".11 IIIII.rI, ft:II/liI ,,v, \ t~, Ifit.,Ic/1I 1111

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a humanidade. M.'s I.d !11tH l·di"It'IIIII í(III.1 111,111dll 111111 "11I11'1i11'III t: ", 1111111 1111'" (~I.II
••lil de I.:slt':Hb (11.:((;1 -r0";
temunhas que, bem cedo, h.IVI.I'" ~idí) IIS l~l'Sl~tl'Iltl'~ 1,1111 "1 .lI:~Sl'pOllto, l'k dos elevadores para chegar
I' "\11 Ip,.ltlII ,I .,1'1 VII SI:

nazista da França], ansiosos por escrever o que t inli.u: vrv 1111'1


\l)~ ,I,,~bres rcsc: v"IIIlN .\ l·l(llI)SI~·.IO pt:rmanente, antes de entrar no
(Douzou, 2005). I ~PI\~'O hcxagonnl v:\l,io (11:1 origem) do Hall ofRemembrance.

Três livros, publicados no final da década de I <)<)(). II ,11111.'11 111 A exposição reúne fotografias, filmes e objetos, como outras
na França, a tomada de consciência da amplitude desse (\.'11111111 11 r.uuas estratégias de apreensão do real. De fato, os organizadores
tio Museu pensaram que era importante mostrar objetos autênticos,
e propuseram uma reflexão sobre o testemunho: o livro do ~I11 II
presentes em sua materialidade, permitindo quase o contato físico;
logo, Renaud Dulong, Le témoin oculaire; o de uma hisLoII.IIIIII'
de tal modo que eles se tornaram colecionadores e, até mesmo,
Annette Wieviorka, L'êre du témoin e, por último, o til' lI"l II
.irqueólogos do Holocausto. Quanto às fotografias, elas atestam
lósofo, Giorgio Agamben, Ce qui reste d'Auschwitz. Três II\TU
lue, tendo existido realmente, essas crianças, essas mulheres e esses
eruditos que mantêm certo distanciamento em relação no lrlih!
homens deixaram de existir, maneira de tornar presente a ausência
abordado. O primeiro é uma "pesquisa sobre as condições SOl 1.li
de todos esses rostos, cuja única demanda era a de viver. No seu
do testemunho" (com esta definição: "ser testemunha não (, 1.111
'onjunto, a pedagogia do Museu visa levar os visitantes, durante
to ter sido espectador de um acontecimento, mas declarar qlll
sua visita, a se identificarem com as vítimas; aliás, nos primeiros
o presenciou" e assumir o compromisso de voltar a exprinu I"
tempos, era distribuído, inclusive, a cada visitante, o fac-sírnile de
nos mesmos termosi.l'" Por sua vez, a historiadora propõe lI"I.1
uma carteira de identidade de um deportado, cujo percurso podia
"reflexão sobre a produção do testemunho" (WIEVIORKA,19<JH)
ser seguido pelo visitante.l'" Para além dessa imersão na história
Enfim, o terceiro livro reflete sobre a "defasagem inscrita na própu.t
e no Museu do Holocausto, a visita pretenderia transformar cada
estrutura do testemunho" (AGAMBEN, 1999).
visitante - cujo número se eleva a milhões - em uma testemunha
delegada, uma testemunha de substituição, um vicaríous wítness.
De que modo a testemunha e o dever de testemunho se im Além disso, de acordo com as palavras de seu diretor, uma visita
puseram nos EUA? Limitar-me-ei a algumas das manifestações mais ao Museu visa contribuir "para o aprofundamento da vida cívica
recentes e maciças desse fenômeno. e política norte-americana, assim como para o enriquecimento da
Emblemático, nessa área, é o United States Holocaust Memo- fibra moral deste país". Para além de si mesmo, o Memorial serviu
rial Museum, construído no Mall, em Washington, e inaugurad de referência e inspiração para outros museus que vieram a ser
em 1993. Cada palavra é importante: comemorado nesse perímetro construídos no mundo inteiro.
sagrado, o Holocausto se torna um acontecimento da história norte- Em 1994, implanta-se a Survivors of the Shoah Visual History
americana, inscrito na memória coletiva. Em sua arquitetura, o edifi- Foundation, desejada e concebida por Steven Spielberg. História
cio é já testemunho e máquina destinada a transformar o visitante em visual? "Pretendo apresentar a história de cada um" (I want to get
uma testemunha. As formas, a utilização do tijolo, as vigas metálicas everybody's stories), afirmava Spielberg. À semelhança de Schindler, ele
lembram the bard industrial forms do Holocausto (LINENTHAL, 1997, gostaria de salvar todos: coletar todos os testemunhos dos sobrevi-
p. 88). Logo após a entrada, o visitante começa por atravessar um ventes, até mesmo daqueles que já haviam dado seu testemunho.
espaço justamente chamado Hall of Witness, espaço frio que, de
105 ldentificatiml Card que, acima da águia norte-americana, ostenta a divisa "For the dead and the living

'04 DULONG,
1998; em último lugar, DORNIER;
DULONG,
2005. we Il1HSt bear witnessu
.

206 207
Memória c pcd,\!J,oW'\' li\." p.II".1li'; im'I'II\ dl,II1111 Illill ("'li I r'lIIVII_:I-:,I(U)lo 1{llII11I'I, '111)1) I\ld:lIl /tlIISt' 01ncccsxidadc
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e acesso à intcrnct. O Ilolm.\lI1>11I 111I1'I.IIIVllI' 1'111dlllllll 11101 lurnr (\l1111.111 olllli'~lliljli~llIll 1I'II.ISlI'lIll', de refutar o punhado de
críticas suscitadas por esse programa, assim C01110;\ hllSI.1til ~Idli lll~I'..I(ionistas, Il\.l~ ~lIhIIOllld(),em UI113época em que a identidade
para os problemas de segurança (se111esquecer :1 pl,(,Olllpol~ 111 , (" reivindica corno dilcrença, o Holocausto tornava-se o único
evitar qualquer tipo de intervenção por parte dos lIeg.1!10llll,U .h-nominador comum da identidade dos judeus norte-americanos.
atrasaram no mínimo a realização desses projetos. Trata SI', j 111I Arrl'scente-se ainda, na corrida ao reconhecimento público, essa
sumo, de tornar presente a realidade de um passado pela IlIl'tlhli j'sp6cie de competição vitimária, designada pelo historiador Charles
do virtual, com fins pedagógicos. Spielbergjulgava, 11!1 ('pOI 01,i.pl
Mnicr como "competitionfor enshrining grievances": obter um lugar,
essa forma de história vídeo ia fazer escola. Ela vai muda r, .\111111 I IllCSl110que não seja o primeiro, nessa competição dos sofrimen-
ele, "a maneira como as pessoas vão conservar a própria 111\11111 tos suportados (MAIER, 1993, p. 147). Daí, o tema das lições e
seja do movimento feminista, dos direitos cívicos, dos gays (lll dll da testemunha no papel, não de doador, mas, acima de tudo, de
lésbicas". Em seu entender, "a etapa seguinte será a GUCII.l li, portador de lição.
Vietnã: next in line for the on line" (SHATZ; QUART, 1996, p. 'Ir, Neste ponto, e sem querer prolongar ainda mais essa análise
O aspecto importante é que se passa, assim, da testemunha p.1I01" sobre o Holocausto nos EUA, é possível elaborar três observações
espectador sem intermediário. de alcance e ordem diferentes.
Já existiam outras iniciativas nesse campo, mas, considerando tt:!.ão será que vivemos em uma economia midiática que
os recursos à sua disposição, Spielberg foi levado a ocupá-lo intci 101 funciona à base da testemunha? Impõe-se apresentar uma teste-
mente. Bem anterior era o Fortunoff Video Archive for Holocnu- munha (pensemos nos numerosos programas de televisão, cujas ~
.,..
11,

Testimonies, com objetivos muito diferentes: em vez de nan.u testemunhas são personagens importantes ou comuns; há o im- I,'
uma história, oferecia-se a quem manifestasse tal desejo a possil» perativo do "ao vivo", a exigência de proximidade, ambos os
lidade de narrar a própria história. Dori Laub - cofundador desse aspectos envolvidos pela aura da compaixão~~fe!5n_ternenlr;; d-ª
arquivos, autor com Soshana Felman de um livro frequentemente fi~ura evoc::d3..P_or Péguy, a teS$emunha de hoje em dia deixou de
citado, Testimony - é, ao mesmo tempo, uma testemunha (foi uma Talar como um livro. Ela já não se transforma em "historiador",
das crianças sobreviventes), alguém que se dedica a coletar os tes- mas é e deve ser ~a voz e um rosto, uma presença; e ela é uma
temunhos dos outros e um observador do próprio ato de testemu-
nhar (FELMAN;LAUB, 1992). Dessa longa experiência de trabalh
com as testemunhas e sobre ostestemunhos,
?r .. _~----
ele extrãiu a noção de
..
aconteCImento sem testemunha": não, obviamente, por falta de
_
'Vítima. Desde' as fotografias dos campos de extermínio na época
de sua lib~r;çio~a·participaçãa"
-~~--~----' do visual no testemunho tem au-
.--
. -
mentado ao pónto de se tornar constitlitlva de sua autenticidade
e de sua verdaClê:-,",As fotografias não mentem",
--
proclamava o
---
teste:rmnhãS;- mas ROE~_e o colaps~ do próprio ato do testem~ 'diário Stars ân~rStripes no editorial de 26 de- abril de 1945. Desde
dissolve a possibilidade de um testemunho comunitário. ~ entao, essas fotografias publicadas, de novo, na imprensa por oca-
- "'- -._-
... -..-----' '- ,- - -.
sião das comemorações, reproduzidas em exposições e museus,
Qual é o contexto dessas manifestações? O livro de Peter No-
vick, L'Holocauste dans Ia vie amérícaíne, expõe as etapas que levaram tornaram-se a referência para medir o horrorva bitola mediante
o Holocausto a passar das margens para o centro (atualmente, isso a qual se avalia os crimes contra a humanidade perpetrados desde \111

significa vários milhares de profissionais que trabalham em tempo essa época (ZELIZER, 1998, p. 144). Como se tivéssemos de passar
integral) e elucida o contexto desse deslocamento em um país famoso por esses testemunhos de referência para nos convencermos da
por cultivar o gosto das novidades e, ao mesmo tempo, ~ amnésia realidade e da gravidade de outros crimes.

208 209

I11
1",111111.111111111111, AIIl'~(I'):,H) (,.'Illseu livro
11I1I111.IIIIIII,lllt·1I11 Ltt
lctar, gr:lV~II.,COIISI'1
V.II, 1i"~II'Il~ It'NII'llIllltI\lIM,t .\11.1111
/'" 1(11'''."A( ,11l:l'~l'S('lIlpl'l' pmsnber llldo". Ora, movidos pelo desejo
atualmente, se possívcl+, todos, () velho ÍllIpl'I,IIIVIl 111'1111:111111 I, IOIH"til' O lr:,b~\lho, os revislonistas ou negacionistas retomaram a
que exige no mínimo duas testemunhas, ll~O S<.' :Ipht.' 11 I "I 1.1('x.ll.Il1Il!nLc.:
no ponto em que ela havia sido abandonada pelos
que o problema não está aí. Trata-se sobretudo de <.'S( 111.11 I'nd.! I 1\' 1~t.IS, "Mostrem-nos, nem que seja uma única testemunha." E a
em sua singularidade: permitir que cada testem LI 11hn pm~.1 Ijlil fê:!.. com que o pai do revisionismo, Paul Rassinier - friamente
111111,1
sua história, finalmente ou de novo. 1I1111psindona biografia escrita por Nadine Fresco - tenha começado
A colocação no primeiro plano da testemunha leva 1.111 ""'li 1"11 utilizar sua qualidade de testemunha, já que ele havia sido de-
uma ampliação da noção de testemunha. O livro Testituonv IIll i I" 11lado para Buchenwald, em 1944. Mas seu testemunho visava, de
páginas sobre Paul Celan. Sua poesia é lida como um lc.:Sll'lIltlnh .udn, não tanto dizer nem estabelecer, o que tinha visto e suportado,
sobre o extermínio, o que ela é com toda a certeza; mas pcrrrl« III,ISservir-se do procedimento revisionista: "A fim de restabelecer
também que o fato de instalar Celan no papel de (simples) It'NIClllíI como ele escreve - a verdade para os historiadores e os sociólogos
nha pode ser redutor para sua obra. O mesmo se passa com as 11'1, dn futuro" (RASSINIER,1950, para a t- edição).106
turas recentes de Albert Camus. Certamente, La peste aprcscut.i
como um testemunho, uma "crônica". "Tendo sido convoc.ulu II Em terceiro lugar, a impossibilidade do testemunho. Para co-
testemunhar por ocasião de um tipo de crime", começa por der 1.".11 mcçar, há o fosso entre o que tinha sido suportado e o que poderia
o narrado r, o Dr. Rieux; em seguida, acrescenta que ele "manuv. ser dito a esse respeito. Fosso, observado de saída por Robert Antel-
certa reserva", como convém a uma testemunha de boa vontadr . me: "A desproporção entre a experiência que tínhamos vivenciado
'. mesmo que ele se posicione do lado das vítimas. Ou, ainda, t'~11 ~ a narrativa que era possível elaborar a seu respeito" (ANTELME,
trecho: "O narrador faz obra de historiador" (CAMUS, 1965, p. 1" ) I 1957, p. 9). Mas também porque, de acordo com a expressão, de-
1468). Mas identificar necessariamente a testemunha Rieux COIII licada a manipular, de Dori Laub, trata-se de um "acontecimento
a "testemunha" Camus seria obviamente simplista (e falso). COIIIII sem testemunha" ou, na reformulação de Renaud Dulong, sem
se - depois de ter focalizado exclusivamente, durante um momento, possibilidade de atestação compartilhada, como se fosse impossível
o texto, ao proclamar a elisão do sujeito - ele pretendesse dar tudi I
ao sujeito e nada mais ao texto. Camus, afinal de contas, conheci.i
também seu Tucídides e a descrição da peste de Atenas.
Da relativa indiferença do período pós-guerra à retomada na dé
aplicar justamente a regra das duas testemunhas. Por sua vez, Primo
Levi avançava ainda mais longe:
Nós, os sobreviventes, não somos as verdadeiras testemunhas
[...] mas eles, os muçulmanos, os náufragos, é que são as tes-
I
cada de 1970, a curva do testemunho (pelo menos, em sua recepção) temunhas integrais, aqueles cujo depoimento teria uma signi-
registra, certamente, a urgência relativa à geração, mas também, em ficação geral. A destruição conduzida a seu termo, ninguém
teria subsistido para narrá-Ia, como ninguém. nunca voltou para
uma proporção difícil de avaliar, a vontade - mais que legítima - d
narrar sua própria morte (LEVI, 1989, p. 82).
opor-se a esse punhado de "assassinos da memória" que tinham vindo
instalar seus lamentáveis estrados exatamente nesse ponto central e Toda a reflexão de Agamben se apoia precisamente nessa frase
doloroso do testemunho. Uma vez que o plano de extermínio previa de Levi. E ouço como que um eco direto dessa frase nestas cinco
também a supressão de todas as testemunhas, assim como dos vestígios
palavras de Paul Celan:
do crime, o testemunho assumiu, de saída, uma posição crucial. No .
entanto, ao longo dos anos, o número das testemunhas e o volume
106 Essa frase é a última da dedicatória da edição de 1998. Ver FRESCO. 1999.
dos testemunhos reencontrados e descobertos têm vindo a crescer.

211
210
Nu-ru.uul
zcugt /lh' dell 1!,"lnoc:, W()·I, p. ijlll I)r),). (JlI,dqU('1 que srj., o papel exato de
Zeugen.!'" .'\1',;11111'11011, (, rcito que ele nada tinha visto da cena em questão.

r~(1 cxt rnordinário escudo forjado por Hefesto para Aquiles, está
A testemunha está sozinha: ninguém pode Lest~'lillllrllll I ('IH'(,'sent:ldaLIma cena em que dois homens, às voltas com um
seu lugar. Ela não tem ninguém a quem recorrer. EIIU'l' .I(III!II.I , I\l.lvr desentendimento (em relação ao autor de um assassinato),
que ela foi testemunha e os outros, só existe ela. Ou, ela l'~1.1 l!ill dn'idem recorrer a um histor (HOMERO, id., 18, 497-508); este
mais sozinha que a "verdadeira" testemunha é incapaz de ('NI.II li ult imo não é, obviamente, uma testemunha desse ato.
para testemunhar. Ela é já, de saída, uma testemunha dckg.1( 1.1 111 Ao intervir nos dois casos, em uma situação de litígio, o histor (
de substituição, sobre quem pesa - nesse caso, ainda mais pcs,u 11, 11,10é, dessa forma, aquele que, unicamente por sua intervenção, vai
encargo de ter a obrigação de testemunhar. Não um dia, 11(,'111 IllIhi
vez, mas até o fim.

Da testemunha que escuta à testemunha que vê


pôr fim à disputa, dando sua arbitragem entre versões confiitantes.j.;
:', de preferência, creio eu, o fiador (no presente e, mais ainda, no
luturo) do que tiver sido acordado pelas duas partes. Antes de ter
I
olhos, o histor deve ter, portanto, ouvidos (ver, supra p. 60-61).

Ao avançar do presente para um passado bem longínquo, ('li' E qual é, então, o papel da testemunha - chamada, em grego,
cetamos uma digressão historiográfica que é tão válida quanto 11111 martus? A etimologia nos leva ao radical de um verbo que significa
exercício de olhar distanciado. E, em primeiro lugar, algo parccidi lembrar-se: em sânscrito, smaratí; em grego, merímna; e, em latim,
à pré-história das relações entre o historiador e a testemunha. memor(ía) (KrTTEL,1995, v. 4). Quando, no momento de prestar
juramento, sempre na epopeia, os deuses são invocados como teste-
O grego antigo criou um vínculo entre ver e saber, estabck-
munhas, theoi marturoi, eles são convidados, não a ver, mas a ouvir os
cendo como uma evidência que, para saber, é necessário ver, ck
termos do pacto. Trata-se também de ouvir e guardar na memória.
preferência a ouvir. Os ouvidos - diz um personagem de Heré
O martus tem, igualmente, acima de tudo, ouvidos. Observemos que,
doto - são menos confiáveis que os olhos (HERÓDOTO,I. Clio,8). :111
no caso de um juramento, se pode dizer também "Isto Zeus" (Que
Idein, ver, e oida, eu sei, remetem, de fato, a uma raiz comum: wid.
Zeus venha confirmá-Io, seja testemunha ... ); ora, nessa expressão,
Já evocamos esse assunto. Ora, a epopeia homérica conhece un
encontra-se a mesma raiz wid, presente em histor. Aliás, o latim con-
personagem designado como histor, em que se encontra, portanto,
vocará Júpiter, dizendo "Audi juppiter" (Ouve, escuta Júpiter).
a mesma raiz. Assim, de acordo com Émile Benveniste, este último
seria "uma testemunha pelo fato de saber, mas, acima de tudo, Mas, então, qual é a diferença entre histor e martus, se ambos
pelo fato de ter visto" (BENVENISTE,1969, p. 173). No entanto, têm, acima d;-t~do-(está fora de qu~st~dizer "somente") ouvidos] _
o histor - que intervém em duas situações de disputa - nada tinha A mudança entr;~~ e'outr;-'[ ocãr;:'te~to de intervenção ~-;uas
efetivamente visto, nem escutado. Ajax e Idomeneu, por ocasião respectivas relações com o tempo. O histor, que intervém em u~-;
das cerimônias fúnebres de Pátroclo, discordam em relação a situação de conflito, é exigido pelas duas partes,- ele ouve uma e a
quem, após ter contornado a baliza, havia tomado a dianteira na 'outra, enquã'ilto õ martus tem de se preocupar unicamenú com um'·
corrida de carros puxados por cavalos. Ajax desafia Idomeneu e lad'(;~ais exatamente, existe apenas um lado. O ~artus ínt~rvé~
'-" ~
propõe Agamenon como histor (HOMERO, Iliade, 23, 482-487; na presente e pârã o' fúturo, enquanto o histor deve acrescentar a
•...

dime~ã-;- do -pa~sado,Ji que su~ intervenção n~ presente, reper-


cute no futuro em relação a uma disputa surgi da no passado (até
107 Paul Celan, Aschenglorie [Glória de cinzas]. ~_. ',-- "-- - -'"

,!E-esmo, recente).

212
213

_ ..~l,:~
Desse tnartus, {()1I10 tl'sll'II"""';' (11111IIrllllll), 11t1,tj;" (',ld')I I~ss;,111\'1'~IÍI'A~1I ,10 cOI1(j'olllar o que ele sabe ou o que se diz,
passou-se facilmente para a tcstcmuuh.t \ 1111111 .lIltlllld.l\k. I~ ~I~~illl p.u tu ul.n uu-utc, entre os gregos, com o que dizem seus interlocu-
que Heródoto, para evocar - C0ll10 apoio tio que ele .lr,Ih,1 d, rores (certamente, falando grego) - mantém algo como a conside-
declarar - a autoridade do oráculo de Arnorn no I2giLO,:1(11111,1 1\111 1':1ç50dos dois lados que, aliás, era a razão de ser do antigo histor. De
ele "dá testemunho", "marturei"; do mesmo modo, J 1011\('1<1 forma mais imediatamente impressionante, tem sido sublinhado, há
convocado sob a forma de uma citação, "dá testemunho" VI'III muito tempo, a preocupação anunciada - desde a frase de abertura
comprovar uma observação, um raciocínio do narrado r de II/\rll, de Histoires - em relatar o que havia sido realizado tanto pelos gre-
res (HERÓDOTO, lI. Euterpe, 18; IV. Melpomêne, 29). São eSSl'S\1111 gos quanto pelos bárbaros, estabelecendo uma simetria que, aliás,
Aristóteles vai designar, em sua Rhétoríque, como "as velhas 1111 ~ desmentida pela própria formação, por definição assimétrica, do
as antigas testemunhas" (palaíoí martures; ARrsTóTELES, 1, 15, I \) binômio gregos-bárbaros.
Dessa testemunha não ocular, Tucídides há de fornecer-nos 11111
Retornemos, ainda um instante, à epopeia. Na cena em que
último exemplo quando ele opõe essas testemunhas que são 11,11
Ulisses encontra o bardo dos feácios, está desenhada uma notável
rativas sobre acontecimentos antigos ao que tinha sido visto rH'l<1
configuração de saber: a do historiador e da testemunha, ao pé da
ouvintes do discurso que está em via de lhes ser dirigido: "De q"I
letra [à Ia lettre], mas por antecipação [avant Ia lettre]. De fato, Ulisses,
serve falar a vocês de acontecimentos muito antigos quando l'l,'
que ainda não havia recuperado sua identidade, solicitou-lhe para
são confirmados, de preferência, por narrativas (martures logon) <111
chegaram a nossos ouvidos, e não pelo que viram nossos ouvint declamar a tomada de Troia. Perante uma excelente apresen-
(opsís ton akousomenon)" (TuCÍDIDEs, 1, 73). As "testemunhas" CS1.1I1, tação - "de forma demasiado perfeita", diz o texto -, Ulisses não
assim, do lado das falas e do passado: do lado do que não se viu O" pode deixar de declarar-lhe:
não se pôde ver. Tu declamas, respeitando demais a metrificação, a infelicidade
dos aqueus
tudo o que eles realizaram e sofreram, assim como tudo o que
Portanto, eu colocaria esse antigo hístor - tal como ele nos l'l ,I
lhes foi infligido
apresentado, de maneira superficial, pela epopeia - na proximidadi
como se, realmente, tivesses estado presente ou escutado essa
do mnemon, o homem-memória ou "registro vivo", de acordo COIII narrativa de outra pessoa (HOMERO, Odyssée, 8, 489-491).
a expressão forjada por Louis Gernet, e no qual ele reconhecia ""
advento no direito de uma função social da memória" (GERNI!'I, Como se o aedo fosse um historiador por antecipação quando,
1969, p. 286; e supra, p. 55-56). Na impossibilidade de retomar , afinal, Ulisses sabe justamente que ele nada tinha visto, nem ouvido:
agora, o caminho que leva do hístor ao primeiro historiador (all ele é o bardo cego que extrai todo o seu conhecimento da inspiração
hístoreín e hístoríe), sublinharei apenas o que do primeiro subsisti, da Musa, que, por sua vez, se define como aquela que está sempre
ou passou para o segundo. Heródoto utiliza o verbo historein par.i aí, sempre presente e onisciente. Tudo isso é conhecido por Ulisses
designar o tipo de trabalho que ele realizou, na maior parte d.t tanto mais que ele próprio se encontra na posição da testemunha
vezes, em um contexto de investigação oral. Ao empenhar-se CIII (superstes) ou, até mesmo, da única testemunha. Emblemática em
resolver a controversa questão da nascente do Nilo, ele indica COI1I muitos aspectos, essa cena conta, portanto, com a presença de um
precisão: "Fui e vi com meus olhos (autoptes) até a cidade de Ele bardo, espécie de super-historiador, para quem ver, ouvir e dizer
fantina; em relação ao que está para além dessa cidade, empreendi' não passam de uma única e mesma coisa; de um "historiador" que
uma investigação oral (akoeí hístoreon)" (HERÓDOTO, 11. Euterpe, 29). ocupa a posição de único sujeito de enunciação; e de uma testemunha

214 215

~J
I:vlI,ill"\ I~"'III":,,,,~ I.! UIII 11,"MIIIIII~ I ""I~I,,~IAI"-,H

silenciosa (que chora; 11"ll'I'()(:, !OU I, 1\ 1111 11 I) '1'11I Ididn VIII Pl'('Sl'1v.u CI 111111
t.rl, 1.'111 sua singularidade, E somente com. os primei-
assumir essa posição de enunciado: OIlI,~111'111('.M.IS, ('111SlltI pll I'OScrist.ios, 11:1virada do 1 século de nossa era, que a testemunha
U

tensão de ser resolutamente moderno, bem disuurriado 11:10NU d'l se torna a ('igura indispensável, crucial para o estabelecimento e a
dispositivo da fala épica, mas também Cl11 ruptura rcbtiv.IIIH~111 validação de uma cadeia da tradição. Evidentemente, essa testemu-
historia de seu predecessor imediato, ele deve legitimar L1111 IIII',M 11 ha havia sido judaica antes de ser grega. Desde o instante em que
de enunciação respaldada na autópsia, o que se acompanha 11111 se penetra no espaço das religiões reveladas e do livro, a própria
uma crítica das testemunhas e da memória, além de ter ('011111 concepção da testemunha não pode permanecer indene e, aliás, vai
corolário que a única história viável é aquela do tempo preso 1111 acabar marcando profundamente a figura moderna da testemunha.
A autópsia - poderíamos afirmá-lo - é uma maneira de rCCLlS:II' 1111 A testemunha é, com efeito, uma figura importante na Bíblia:
silenciar as testemunhas: o olho do historiador, portanto, conu.i 1\ testemunha que vê ou escuta, testemunha que certifica e é fiador,
ouvido das testemunhas. testemunha que depõe perante o tribunal. O livro do Deuteronômio
fixa, assim, a famosa regra (à qualjá fiz alusão) das duas testemunhas
o
latim dispõe de várias palavras, já estudadas por BCI1VI' no mínimo necessárias para acusar e condenar uma pessoa. Mas a
niste, para designar a testemunha. Elas definem bem sua fUllÇill1 cena do tribunal a que a testemunha é convocada pode ser trans-
e enriquecem a noção. Além de superstes, termo já mencionado, posta - por exemplo, no livro de Isaías (41 :21 ss.) - em que o caso
há arbiter (no sentido mais antigo, aquele que assiste a algo), tcstl, se passa entre lahvé, as nações e Israel: as nações são convidadas
(por terstis, ou seja, aquele que assiste como terceiro elemento) I' a apresentar suas testemunhas (evidentemente, algo impossível
{
porque elas não têm nenhum testemunho válido em favor de
( auctor (o fiador, como o palaios martus de Aristóteles; BENvENIS'I'I',
seus falsos deuses), enquanto lahvé transforma seu povo em
p. 119-121,277). Em compensação, Roma não tem muito a JIO,
suas "testemunhas" (martures) e em seu servo. Além disso, lahvé
ensinar sobre a testemunha ocular na historiografia, nem sobre 1\
apresenta-se como testemunha, dando testemunho a respeito ou
binômio testemunha/historiador. A história romana é, com efeito,
em favor de outras pessoas, advogado e juiz, mas também - e ele
em resumo demasiado rápido, uma história sem historia (no sentido
é o único que pode ocupar essa posição - testemunha dele mesmo.
grego de investigação), sem testemunhas, nem autópsia, tampouco
dois lados (Roma está inteiramente em Roma). Ela é concebida Em uma cena menos grandiosa e mais imediatamente conec-
como opus oratorium, de acordo com Cícero, ou como narraüo, tada com nossos questionamentos, Flávio Josefo é, se ouso dizer,
narrativa literária composta de autores (scriptores), personalidades uma boa "testemunha": tratando-se, com efeito, do episódio do
importantes que, ao julgarem necessário, recorrem a fiadores Oll suicídio coletivo na gruta de Y otapata ou do suicídio de Masada,
autoridades (auctores). sua narrativa - conforme já foi observado - não infringe a regra das
duas testemunhas: no primeiro caso, ele próprio e um de seus com-
A autoridade da testemunha ocular panheiros, enquanto as duas mulheres sobreviventes, no segundo
caso, podem prestar testemunho do que se passou (FLÁVIOJOSEFO,
o historiador grego- pretendia
~."._----- - adiar o esqu~cim~nto_d.Q~~es Guerre des Juijs, 3, 8; 7, 8-9).
momentos (Heródoto), ou fornecer uma ferramenta que permitisse Naquelas circunstâncias em que Tucídides trabalhava, como já
" .~~,
não prever, mas compreender, no futuro, o que vai acontecer ~!u-. evocamos, a partir de uma disjunção entre a testemunha e a visão,
cídides); no ~.t:lE_llto,sua tarefa ou missão não era, de mod,9 alg1llll" Flávio Josefo opera uma conjunção. Ao assistir ao cerco de Jerusa-
t;ansmitir, - da forma mais fidedigna possível, uma experiência a lém, Tito é declarado, de fato, por Josefo "autoptes kai martus": o
~ ••. 1·· • !~._.

'-'/~~
G/~16 )
\ ~.
217
"-.
general romano viu (;0111 os plOpl illN IIIIII,~ (rir 1"111111,1 \1'1'11 Ili~l'i lili li di~dl'ltllI qlll'jl'SIIS .uu.iv.r, acompanhou-o e quando entrou n
riador) e é testemunha (ele l(;1I1 um 1'0(\\'1 dl' ,llltl'lItl\ ,1~.III) (:1)111 rúmul« v.ivio '\:1<.:viu e acreditou". Ele é uma testemunha verídica
efeito, martus não é simplesmente redundante, Illas :tCl'~'S( \'111.1 II/llIi (deixo de lado a questão de saber se João, o filho de Zebedeu, é, ou
dimensão de autoridade. Flávio Josefo sublinha irncdiatauu-nu- 11" não, o autor do Evangelho). Entre o início e o fim, vários episódios
Tito é "o administrador soberano das punições e das rccouipcus.: .• s50 relatados e, principalmente, o debate - no fundo, o processo
(Ibid., 6, 34). Excelente exemplo de expressão com rcssouâru 1.1 recorrente entre os judeus, em particular, os fariseus, e Jesus - que
tanto gregas quanto judaicas. gira em tomo da questão do testemunho. Quem é ele? Se ele afirma
Flávio J osefo conseguiu avançar ainda mais longe nesse S(;IIt i\ I1I que presta testemunho de si mesmo, seu testemunho não pode ser
Para defender sua obra, Guerre desJuift, contra os caluniadorcs, rll verdadeiro (até em virtude da lei das duas testemunhas). Somente
se apresenta como um historiador que põe em prática a aUl6p~I.I, lahvé pode prestar testemunho dele mesmo.
portanto, à maneira de Tucídides. Sua história é verdadeira. M.I' O problema do evangelista Lucas é diferente, e sua interven-
vai além: ele serviu-se, de acordo com seu texto, "do testemunho" ção situa-se em outro plano. Trata-se não tanto de uma mística ou
dos que haviam sido comandantes da guerra, Vespasiano e Tito. "( ) de uma teologia do testemunho, mas da sucessão das testemunhas.
imperador Tito - acrescenta ele, em sua Autobiographie - estava 1.111 Não tendo tido contato direto com os acontecimentos, já que
interessado em que o conhecimento dos acontecimentos fosse trai I pertence à segunda ou à terceira geração, chegou o tempo - julga
mitido aos homens unicamente a partir de meus livros que estes It'll I
ele - de proceder a uma primeira colocação em ordem e fixação
sua própria assinatura e foram publicados por sua ordem" (FLÁVIII
da tradição, estabelecendo uma linhagem testemunhante.
I:~I'i
JOSEFO,Autobiographie, 363). No entanto, tal operação é totalmente
oposta a Tucídides e à prática grega na área da história, já que se assisu: Considerando que muitos, escreve ele em seu prólogo, já ten-
à primeira implementação do procedimento - que há de tornar-se 01 taram reproduzir uma narrativa dos acontecimentos ocorridos
entre nós, a partir do que nos foi transmitido por aqueles que,
regra na Idade Média - da autenticação. A testemunha é o fiador (11
desde o início, se tomaram testemunhas oculares e servidores
auctor latino assumindo algo do histor homérico), e a melhor testem t í
da palavra (autoptai kai huperetai genomenoõ, pareceu-me conve-
nha será, obviamente, aquele que vier a dispor da maior autoridade niente, também a mim, depois de me ter informado meticulo-
Ao se basearem nesse quadro geral, os cristãos, além de adoun samente de tudo, desde as origens, escrever com esmero para ti
a testemunha ocular como a pedra angular da Igreja nascente, trans segundo a ordem, excelentíssimo Teófilo, a fim de que possas
formam a testemunha, o testemunho e sua dramaturgia judicial em reconhecer a solidez das palavras que ouviste (Lc, 1:1_4).108

uma expressão da Revelação, uma maneira de dizê-Ia, retomando


Todas as palavras gregas são importantes; elas têm sido, natu-
e deslocando o Antigo Testamento. O texto mais impressionante
ralmente, comentadas, e o prólogo, como um todo, foi equiparado
a esse respeito é o Evangelho de João, o evangelho do testemunho
aos prefácios dos historiadores ou dos trabalhos científicos (na área
por excelência e sobre o testemunho. Ele começa com o testernu
da medicina) gregos. Lucas indica ao destinatário de seu Evange-
nho de João Batista - questionado pelos fariseus, e cuja função t,
lho que sua narrativa parte das origens, baseando-se naqueles que
inteiramente a da testemunha (ele é, em primeiro lugar, uma voz: 1I11
tinham visto com os próprios olhos. Ele não utiliza o grego "tes-
"Este veio para prestar testemunho") - e encerra-se com este ver-
temunhas", mas a palavra com ressonâncias tucididianas: autoptai.
sículo que não é do próprio evangelista: "Este é o discípulo que dá
testemunho continuamente dessas coisas e as escreveu; e sabemos
que seu testemunho é verdadeiro" (Jo, 21:24). Ele estava presente, 108 No original, cita-se a tradução francesa: 130VON, 1991.

218 219
A ""IMIIIIII~ I ti "IMIIMIAII"!

Os apóstolos viram (;0111O~ p'úl'lin~ IIIIIII~ 1\\1'. i 11'111111 "lIltl/",II,


111 as Il~~lt
1111I11has,
ele lhes dá inteiramente a palavra e desaparece por
ele cola imediatamente a palavra IIII/II'/I'(rll, SII vtt!tllt'S, ,1,~SIIlI
(011111,1 trás delas. O historiador como compilador - que vamos encontrar
forma participialgenomenoi: neste caso, COIIVI'IIIll.tdllzir, creio ~'II, expressamente no século XIII - já se manifesta nesse momento.
por "aqueles que, desde o início, se tornaram III/(V/I(lIi e scrvidcrc: "
Aqueles que viram com os próprios olhos tornaram-se servidores 01/, Da testemunha dispensada ao retorno da testemunha
para dizer de outro modo, eles viram e acreditaram; e aqueles que,
desde o início, se tornaram servidores são aqueles que viram. Vt'l Tendo chegado a este ponto de nossa digressão historiográfi-
e servir são indissociáveis. De tal modo que aqueles que viram scnt ca, todos os componentes da testemunha, tais como os havíamos
se tornarem servidores, no fundo, não chegaram a ver realmente. 11 recebido e esquecido, estão bem identificados; assim, o resto do
aqueles que se tornaram servidores viram - poderíamos acrescenuu caminho pode ser percorrido mais rapidamente. ~ test;:.munha {~
- com os olhos da fé. É exatamente nesse ponto que Kierkegaanl mana e divina) constitui o núcleo dos escritos cristãos e se encontra
baseará seu paradoxo da contemporaneidade.l'" ~;-rm;go da Igreja- coii:to i~stitu;çio. Entretanto, 7s~;-;riunfo d~
~~_..- . ..-- - >- _ ••••. , fI'Ir •• ••.• -....,

testémunha parece abrir, paradoxalmente, uma era em q~a te~t~-


Finalmente, compreende-se como é possível, em tal contexto
munha (como presença viva) será dispensada, tanto mai~ q~~, ~
de valorização da testemunha, passar da testemunha, martus, paril
séculos seguintes, aquela que será revestida de autoridade é, antes
o mártir - aquele que dá testemunho com seu sangue, não de)"
de mais nada, a testemunha como auctor, como aut.2.!i<!4fk.
mesmo, mas do Cristo - e que se torna, por sua vez, um elo da '''!"' -

cadeia das testemunhas. No século VIII, ao encetar sua Histoire ecclésiastique du peuple
anglais, Beda começa por nomear suas principais testemunhas,
Quanto à história, ela se torna, um pouco mais tarde, COJ1l
auctores, seus fiadores, suas autoridades, a quem ele atribui também
(
~ Eusébio, Histoire ecclésiastique, precisamente a história da sucessâr
i uma página mais abaixo, o qualificativo de testis, o termo usual
I das testemunhas, desde o Salvador até o tempo presente. Seu objc
.: tivo consiste em estabelecer, preservar e transmitir a sequência dos
para testemunha (BEDA, 1969, 1999). Trata-se de pessoas que,
por sua vez, haviam adquirido seus conhecimentos de diferentes
apóstolos e dos bispos, seus sucessores, além de determinar o que
maneiras (tanto por via oral, quanto por escrito). À semelhança
entra, ou não, no cânon dos textos. Nesse sentido, Eusébio cita
de Eusébio, Beda limita-se a coletar e reunir esses testemunhos
"testemunhas" e, em seguida, testemunhas de testemunhas - de
ad instructionem posteritatis. Ao traduzir por "sources" ["fontes"],
modo que as primeiras são precisamente aquelas a que se atribui
como fazem os comentaristas modernos, queima-se uma etapa.
maior autoridade - e ele reúne "testemunhos" (textos, cartas "
Com efeito, tal economia do testemunho produziu, de forma
diversos documentos). Em resumo, essa história é uma história
bastante lógica, um sistema de avaliação, organizado de acordo
com testemunhas, mas nenhuma autópsia: a escrita do historiador
está sempre em posição secundária, mesmo quando ele se refere ao com a polaridade do autêntico e do apócrifo, que é de fato uma
presente (HARTOG, 1999, p. 270). Enquanto Tucídides silenciava ponderação da autoridade respectiva das testemunhas, a começar
por aquela que a possui em maior grau até aquela que dispõe de
menor grau de autoridade. Tal sistema de produção e de controle
'09KIERKEGAARD, 1973, p. 97, 102 em que ele comenta a mensagem: "Bem-aventurados os
que não viram e acreditaram". O contemporâneo de um acontecimento profano (por exemplo,
dos enunciados não coincide, como se compreende facilmente,
assistir às núpcias de um príncipe) é beneficiário de um privilégio em relação à posteridade. Mas; com a partilha entre verdadeiro e falso. Eis o motivo pelo qual o
quando se trata de um acontecimento, tal como a encamação, o contemporâneo imediato não viu,
no fundo, algo a mais relativamente a alguém da geração posterior; ambos são contemporâneos
triunfo da testemunha pode ser considerado também, em outro
na autópsia da fe. Eis o que já deixava entender a formulação do Evangelho de São João. sentido, como seu canto do cisne.

220 221

11
1111 hll MIIIIII~ I II 111411
1~IAIi'.I~
~\l1I11tII.I~ iI~ 11I00,~·~1

Logicamcutc, O llistolltldol IHIH 1'lIdllf1,ll~d,l~IIIII.I~ "1~1t1l1l.1 H, ulcmcntc, essa ciência pura, positiva e crítica, ql1e havia
Id,

do final do século XII até o século X IV ,IPI t·St·I}!.II ·Sl' " 11111lI) sido Ohjl'l o tI:1 mais ardorosa crença de l!m Pustel de C~l!la~g~§.,J:~1p-
compilador (colligere, cornpilare), chegando JlICSlllO :\ rciviud]: .u ('~~,I sido sempre contestada; recusada, mas também substituída por uma
qualidade de cornpilator. Ele não é aucior, mas ((lll/pilrl/or (:, II~~"I • ciência que, em estruturas invisíveis a olho nu, procurava em profun-
1985, p. 124). Compilador significa, em primeiro lugar, qu« rI, didade apreender, da forma mais verdadeira possível, o movimento
não é uma "testemunha": não tem autoridade própria. O que (, '1"' real das sociedades, na linhagem da visibilidade invisível perseguida
ele faz? Reúne os textos dos outros; o próprio texto é composto d, por Michelet (ver, supra, p. 149-154). História que conta e avalia,
extratos precisamente de auctores. Assim, logicamente, ele pcrnuuu .~ônim~as _io.r..ç~_s.2rodut!y'~~,~h~~ória_~E9..l!~gi_ógic.a~·"~t.§
ce, muitas vezes, anônimo. Mas, em breve, ele vai reivindicar P,I 1.1 mesmo, arquitetônica dos períodos de .longa duração. As ver~ad.~~r~
si, na primeira pessoa e com seu nome, a função de compilador. testemülllíáS'saü' iiJ'dices a calcular, ao passo que o~ teste~~"cllO~ ..
..---k..., S~º
curvas a construir. As fontes tornam-se dados que, processados devi-
"Ego ... compilavi"; não sou auctor, mas o autor de minha compilaç.m -,--- ~-,

A tal ponto que os próprios prólogos hão de tornar-se compilaçõ damente e introduzidos em máquinas, dizem o que eram incapazes
de prólogos anteriores. "Vejam só - eis o que ele poderia dizci de exprimir em estado bruto. Colocados em série, os testemunhos
sou um compilator que conhece seu ofício!". Finalmente, por lI11I.' respondem a questões que eles não haviam formulado diretamente.
nova ousadia, essa autoridade incipiente do compilator poderá lcv.i As testemunhas de primeiro nível não sabem o que elas dizem ou,
10 a utilizar, de vez em quando, ao lado dos textos autênticos, 1I1I I mais exatamente, eram incapazes de saber: somente o historiador
texto apócrifo, ou seja, sem autoridade própria, mas que, por SVII (aliás, algo que é válido para qualquer especialista das ciências sociais)
~: intermédio, pode ser lido e aceito como autêntico. O que se produz está em condições de decifrar, ou seja, de reconstruir as mensagens
c .~
efetivamente a partir do século XIII: quanto mais o,fqlJJpilator V,II de que as testemunhas eram portadoras. Se ele põe em prática e
(-
r tornar-se um autor: tant~ '~enos ~ auctor se~á u-;:;~ autoridade 0'1, reivindica uma forma de autópsia diferente daquela que havia sido
,
i
I y~d;ê-k;~ de o~r;~fQL~~:=~..!ransform;çã~· J;;auêtor de testem 11 adotada por Tucídides, o historiador dos vestígios cada vez menos
nha em fon~a afirmaç:;Io do hi;Í:~riador como compila(,o/ visíveis (invisíveis a olho nu) tem a mesma ambição ou pretensão
------ _~ --- .•..• .,.., -,~... ,p''''' -"'---

Quando, no século XIX, a história torna::;;~'ciência, ciência do pns de ver o real e, como ele, de qualquer modo, é efetivamente o
sado, resta-lhe tão somente declarar que ela se faz com "documentos", i único sujeito de enunciação. Dessa história anônima, vai operar-se
a passagem para uma história dos anônimos que, em parte, será o ca-
sublinhando - na esteira de Langlois e Seignobos - que a "autenticida
de", noção "pedida de empréstimo à linguagem judicial, diz respeito derno de encargos de uma história das mentalidades. Até a enfrentar
unicamente à proveniência e não ao conteúdo do documento", alóm \ o desafio, identificado por Alain Corbin, de escrever a história de
de definir que uma ciência constituída só pode aceitar "a transmissão um anônimo em seu anonimato individual (CORBIN, 1998).
escrita" (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1898, p. 133, 153). A história é a ciência Mas, no decorrer dos séculos XIX e XX, não cessaram de
dos vestígios escritos. A partir da orla do presente, o historiador ausen se manifestar vozes dissonantes que, de uma forma ou de outra,
te limita-se a ser o olho que lê arquivos. Exit a testemunha. O audi» procuraram reintroduzir a testemunha e o testemunho. Não, evi-
desapareceu. Mas o compilator é também recusado: os fatos exprimem dentemente, como sistema de autoridades, regulamentando o que
algo, e o historiador, à semelhança de Bouvard e Pécuchet,'!? deveria é admissível, nem como elemento constitutivo de um indício, mas
ser (idealmente) apenas um scriptor, ou seja, um copista. como presença: como voz e memória viva. Na primeira fila, seria
possível encontrar Michelet, evocado precisamente como o ante-
110 Trata-se dos dois personagens, crédulos, do romance homônimo de Gustave Flaubert. (N.T.).
cessor da história das mentalidades. "Nas galerias solitárias do prédio

222 223
A II~IIMIIIIII~
I lllll~ltl"~Ull"

dos Arquivos (ver supra, p. J 51) pelas tJlI,IIN11.'.,11111111111 dlll.llltl' VIII((' liVll~S(,I, 111111 ,I dilt'1"cll<;:I de que ela vem rejeitando desde o passad
anos, alguns murmúrios, apesar do profundo siltil li 10, ('hl'l:~aV,\ll1aos :lc6 () PI\'St'IIte, peja primeira vez ou durante um instante, o corte
meus ouvidos. Os sofrimentos longínquos de tantas allllas SUfOC:HJ:tS que, 110 resto do tempo, sua prática afirma ter a obrigação de exigir.
dessas antigas eras se queixavam em voz baixa" (MICI-IELET,Préfacc Dessa experiência, vai permanecer até hoje uma matriz dreyfusarde
de 1869, 1974, p. 24, e supra, p. 152-154). Os documentos são vozes que diz respeito ao papel do historiador. Se ele não é justiceiro,
exigentes e portadoras de uma dívida a pagar. Mas, para ouvir esses nem está "incumbido da vingança dos povos", de qualquer modo
testemunhos, o historiador deve dirigir-se aos arquivos, ou seja, em uma cena efetiva ou supostamente judicial, o historiador (seria
mergulhar nas profundezas de uma época. Ele deve "atravessar e mais exato utilizar esta expressão: alguns historiadores) envolver-se-á
voltar a atravessar o rio dos mortos", transgredir deliberadamente a nos casos de seu presente: seja como testemunha (misturando auctor
fronteira entre o passado e o presente. Resta-lhe, na sequência, fazer e autópsia), seja como juiz de instrução (retomando uma instrução
ouvir essas vozes, o que não significa, de modo algum, desaparecer mal feita, desmascarando as testemunhas falsas, substituindo os tes-
à frente delas. É, pelo contrário, essa operação que, de acordo com temunhos que faltam). Após L'a.ffaire Audin de Pierre Vidal-Naquet
Michelet, revela o verdadeiro historiador. (1958), travou-se, no decorrer das décadas de 1980 e de 1990, a luta
Seria possível mencionar, em seguida, Péguy, que, marcado contra o revisionismo, assim como os processos por crimes contra a
indelevelmente pelo "Affaire Dreyfus", 111 não cessou de opor humanidade, em que o historiador exerceu o papel de testemunha
memória e história, Michelet a Langlois, Seignobos ou Lavisse. (THOMAS,1998; DUMOULIN,2003).

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Ele teria desejado tanto que o próprio Dreyfus não participasse na Nesse mesmo cortejo de vozes dissonantes, e marcada pela
~~ transformação do "Atraire"em história: essa é "longitudinal", dizia Guerra de 1914, seria possível colocar tanto a reflexão de Walter
(

li: ele, enquanto a memória é "vertical" e "rememoração" (PÉGUY,t. Benjamin, organizada em torno da noção de "rememoração",
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3, p. 1190-1191). quanto uma grande parte das críticas dirigi das contra o historicismo.
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O "Affaire" teve também importante consequência, não previs- Mais perto de nós, a partir de meados da década de 1970, o
ta, acabando por ser como que um caso particular na longa história brusco interesse pela história oral, à qual Philippe J outard dedicou
das relações entre o historiador e a testemunha. Alguns historiadores um livro - sob o título Ces voix qui naus viennent du passé, fazendo-se
foram chamados a intervir como testemunhas no processo Zola e eco da obra de P. Thompson, The Vaiee if the Past -, seria uma
por ocasião do processo de Rennes. Do ponto de vista do código, indicação clara. História oral? Não - responderam, na época, alguns
eles são testemunhas (e devem comportar-se como tais, prestarjura- historiadores, tais como Pierre Goubert. "Cada um de nós quer seu
mento, respeitar a natureza oral dos debates), mas tecnicamente, sua cavalo do orgulho, seu antepassado vaticinante ou sua Mêre Denis'F
perícia na qualidade de cientistas (e seus títulos foram mencionados e nossos pedagogos adoram esse tipo de literatura: é o que se designa
no tribunal) é que lhes permite refutar, com autoridade, os Bertillon por história oral (eventuais bisbilhotices)" GOUTARD, 1983, p. 7).
e os outros que são os peritos oficiais (L'ciffaire Dreyfus, 1998). Neste Outros - a maioria dos historiadores do contemporâneo - após
caso, encontramos a testemunha como auctor, como autoridade
112 A imagem sólida e simpática desta lavadeira era conhecida, em 1982, por mais de 80% dos franceses; de
fato, ela havia sido escolhida, na década de 1970, por uma grande marca de eletrodomésticos que pro-
111 Pelo fato de sua ascendência judaica, o oficial francês, Alfred Dreyfus, foi injustamente conde- curava uma autêntica lavadeira para simbolizar a qualidade do trabalho executado por seus aparelhos.
nado por espionagem em favor dos alemães (1894), tendo sido reabilitado (1906) após vioienta Por sua vez, o cavalo do orgulho faz alusão ao Livro, Le Cheval d'orgueil, de Pierre-jakez Hélias,
campanha de revisão de seu processo que tinha dividido a França em dois campos. Cf. adiante, publicado em 1975: em um recanto da Bretanha, um homem em idade avançada lembra-se de
nota 126, p. 241. (N.T.). sua infancia. (N.T.).
III

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reflexão, responderam: história or.il? Silll, (11111;1'Illldi~'n() de 1:.1:\1 dvv(' p.l~~;11IH'lo I'IIStll:! acinzcntado de Vicliy). 1\ maré viva em
de "fontes orais" (VOLDMAN,1992).J5 villlus (01110 o autor se tinha rclaçâo .1 IIIl'lI1Óriaque invadiu o mundo ocidental (e ocidentali-
transformado em uma fonte; atualmente, a testemunha voltou a zado) é, com efeito, inseparável da - e seria incompreensível sem
surgir como voz, a história profissional estende-lhe de bom grad a - onda propagada por Auschwitz. A testemunha é levada por ela,
seus microfones, com a condição de poder inscrevê-Ia em seus sem deixar também de transportá-Ia pelo fato de ser, se posso falar
registros como "fonte". Daí, talvez, a ambiguidade dessa definição assim, seu rosto e sua voz, assim como seu rumor. Na expectativa
da história contemporânea ou do tempo presente como "história de outras ondas e de outras marés vivas.
com testemunhas": nesse binômio proposto pelo historiador, a tes- A esta altura, vamos concluir com três observações.
temunha não correria o risco de esquecer que, para o historiador, A historiografia do século XX pode inscrever-se, em geral,
ela não passa finalmente de uma fonte? Não seria tentada a escapar em um paradigma do vestígio. Com o movimento ascendente da
a seus mentores e a falar em seu nome? Não teria encontrado ouvi- testemunha, é a voz, o fenômeno da voz que deveria ser levado em
dos, microfones, rnídia para escutá-Ia, até mesmo, para solicitar-lhe a consideração. Não estou em condições de garantir que a expressão
palavra? Sem intermediário. E o historiador fala, então, menos de "fontes orais" , proposta pelos historiadores, seja suficiente para resolver
memória e de história da memória, mas sobretudo de história, ou o problema. Paul Ricceur, observador sempre perspicaz e ágil do que
seja, de arquivos de textos escritos, de críticas das fontes e do oficio
está em via de se passar, retomou ou completou sua reflexão sobre a
de historiador. Seu pesadelo seria, talvez, o de uma memória, ao
narrativa histórica por uma análise das trocas entre memória e história.
mesmo tempo, mercadoria e sacralizada, fragmentada e formatada,
Considerando o testemunho como uma "estrutura de transição" entre ,,,,I
estilhaçada e exaustiva, escapando aos historiadores e circulando na
a memória e a história, ele propõe "substituir o enigma da relação de
internet, como a verdadeira história da época.
semelhança (se e como uma narrativa se assemelha a um aconteci-
Última voz dissonante, pelo menos, na aparência: a de Claude mento) pelo enigma, talvez menos inacessível, da relação fiduciária,
Lanzmann. Ela não está assim tão distanciada, em princípio, no
constitutiva da credibilidade do testemunho" (RICCEUR,1998, p. 14;
mínimo das vozes de Péguy ou de Benjamin. Com efeito, Lanz-
ver depois RICCEUR,2000). Do ponto de vista epistemológico, esse
mann se opôs com constância aos historiadores e ao que ele designa
deslocamento ou esse complemento ajuda a compreender e a refletir.
como seu "ponto de vista saliente". Com sua película, Shoah, ele
Naturalmente, ainda sobram questões sem resposta.
pretendeu justamente "reabilitar o testemunho oral". Trata-se de
um filme de testemunhas e sobre o testemunho, mas não sobre os
sobreviventes e seu destino, de preferência, sobre a "radicalidade da
A testemunha de hoje em dia é uma vítima ou o descendente de
uma vítima. Esse estatuto de vítima serve de suporte à sua autoridade j'
morte". Shoah, afirmou ele e repetiu, não é da ordem da lembran- e alimenta a espécie de temor reverente que, às vezes, a acompanha.
ça, mas do "imemorial" porque sua verdade está na "abolição da Daí, o risco de uma confusão entre autenticidade e verdade ou, pior
distância entre passado e presente" (LANZMANN, 1998). Com efeito, ainda, de uma identificação da segunda com a primeira, no momento
sua força está em levar o espectador a ver "homens que entram em em que deveria ser mantida a separação entre a veracidade e a con-
sua existência de testemunha" (DEGUY,1990, p. 40). fiabilidade, por um lado, e, por outro, a verdade e a prova.
Com o filme de Lanzmann, volto a meu ponto de partida. Em várias ocasiões, George Steiner estabeleceu a relação entre
De fato, essa última voz dissonante está em plena ressonância com a noite do Gólgota e as fumaças de Auschwitz, indicando que ainda
a centralidade recentemente adquirida de Auschwitz (ainda mais deveriam ser pensadas as "conexões" entre esses dois acontecimentos
nitidamente perceptível nos EUA que na França, país em que ela (STEINER,1995, p. 395). Não tenho nenhuma qualificação para me

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pronunciar sobre esse ponto t' dl'II'I'.1 ,111,1 I fI"I'! II I I~I t I di' 1111111nVI~;1I APrlULO VI

uma teologia de pacotilha. Mas o perClIISO que ,1t':!l),IIIIOS til- 1.11'1'1


conduz, pelo menos, a colocar face a face esses dois 1)101l1l'IIIOS dI
crise do testemunho, respectivamente, por volta do século I n v 11.1
década de 1980. Se os conteúdos, as mensagens, as ternporalidndi- Conjuntura do final de século:
induzidas, etc., são totalmente diferentes, encontramos, no minimo
em ambos os lados, a mesma questão da urgência a dar testemunho ( a evidência em questão?
a da transmissão (o vícarious witnessy."? O que designei como o tri LI Jl n)
da testemunha (o primeiro momento) culminou em uma forma ti"
história - justamente, de testemunhos -, a história eclesiástica qUI'
marcou de forma duradoura a historiografia ocidental. O segundo
momento, atual, com a considerável literatura de testemunho (em Trata-se apenas de notas, extraídas do caderno de um historia-
sentido amplo) que, daqui em diante, vai acompanhá-Ia e continu.i dor. Nada mais do que esboços rápidos de várias características da
crescendo, não correria o risco de reativar, em total ignorância, conjuntura recente. Fazer história, atualmente? Em primeiro lugar,
algo desse modelo? como formular a questão, trinta anos depois dos volumes dirigidos
A história é escrita pelos vencedores, mas apenas durante porJacques Le Goff e Pierre Nora (1974), publicados sob esse título
algum tempo, como lembrou Reinhart KoseUeck, porque "os e que, rapidamente, se tornaram famosos com sua tripartição: novos
~:
c
novos conhecimentos na área da história provêm, no longo prazo, objetos, novas abordagens, novos problemasi'!'"
(: dos vencidos" (KOSELLECK,1997, p. 239). Eis o que reformularci, As páginas seguintes prolongam os capítulos prec~2t~~, focali-
1'"
1" convocando pela última vez meu histor do início. Enquanto a his zados sobre as disputas da narrativa, assim como sobre a testemunha e
('
,;1 ~ória dos vencedores limita-se a olhar para um só lado, o próprio, :I õ historiador: maneiras modernas de retomar a questão da evidência. ,
história dos vencidos deve levar em consideração, para compreender O primeiro capítulo sugeria abordar a questão da narrativa e de seu
o que se passou, os dois lados. Uma história das testemunhas ou "retorno", assim como, de forma mais abrangente, o fenômeno da
das vítimas estará em condições de reconhecer essa exigência, aliás,
l virada linguística sob um prisma de duração mais longa. O mesmo
embutida na antiquíssima palavra historia? ocorria com o segundo capítulo, que apresentava as relações esta-
belecidas entre a testemunha e o historiador. A recente ascendência
da testemunha no espaço público é, com efeito, um nítido indício
das mudanças da conjuntura e, em particular, da posição ocupada,
daí em diante, pela categoria do presente (HARTOG; REVEL, 2001).
Por sua vez, o capítulo sobre o olhar distanciado de Lévi-Strauss
ajudou-nos a colocar a história em perspectiva.
Neste primeiro esboço, acrescentemos ainda três características
suplementares: os problemas suscitados pelos arquivos, a questão

113 Sobre a questão da testemunha e do historiador em relação à história da "Rêsistance", incluindo, 114 Para a conjuntura presente, ver, entre outros t.extos, Le Débat, 2000. E, em relação à história,
entre outros fatores, a entrada em cena dos descendentes, ver DOUZOU, 2005. DUMOULIN, 2003.

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