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Curso de Aperfeiçoamento em Educação

para a Diversidade
Módulo III – Diversidade étnica, de gênero e sexualidade

Porto Alegre, 2010


Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade
República Federativa do Brasil
Ministério da Educação – MEC
Secretária de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD
Rede de Educação para a Diversidade
Universidade Aberta do Brasil – UAB/CAPES
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS
SEAD – Secretaria de Educação à Distância UFRGS
Faculdade de Educação – FACED

Módulo III
Diversidade étnica, de gênero e sexualidade

Financiamento
FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação

Realização
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Coordenação do curso
Célia Elizabete Caregnato

Coordenação de tutores
Patrícia Souza Marchand

Secretaria
Jonathan Henriques do Amaral

Revisão linguística
Maria de Nazareth Agra Hassen

Produção gráfica
Daniela Szabluk

Fotografia de capa
Alix Morse, Stock.xchng

Elaboração do conteúdo
Cláudio de Sá Machado Júnior
Fernando Seffner
Marilene Leal Paré

Apoio técnico à elaboração do conteúdo


Maria Aparecida Bergamaschi

Ministério SECAD
Secretaria de Educação Continuada,
da Educação Alfabetização e Diversidade
Sumário

MÓDULO III
Diversidade étnica, de gênero e sexualidade

Introdução.................................................................................................................................. 5

1 Entendendo os mecanismos de produção da diversidade e da desigualdade.............. 6

1.1 Ser igual, ser diferente: políticas de igualdade e luta contra a desigualdade...................... 15
1.2 Gênero e sexualidade: muitas perguntas,
questões complicadas, cenas fortes na escola................................................................... 18
1.3 Gênero e sexualidade: algumas definições........................................................................ 21
1.4 Gênero e sexualidade no ambiente escolar:
lidando com as políticas de inclusão escolar...................................................................... 29
1.5 Desenvolvendo uma posição pessoal e profissional frente às questões
de diversidade e desigualdade em gênero e sexualidade no ambiente escolar.................. 40

2 Povos indígenas e educação............................................................................................... 44

2.1 A questão do “outro”........................................................................................................ 44


2.2 Passado dos povos e não povos do passado .................................................................... 46
2.3 Os discursos da história..................................................................................................... 47
2.4 O mito do “bom selvagem”.............................................................................................. 49
2.5 Arquétipos da literatura, do cinema e da música.............................................................. 50
2.6 Diversidades étnica e linguística........................................................................................ 52
2.7 Pensando na sala de aula.................................................................................................... 55
2.8 Povos Indígenas, nossos contemporâneos........................................................................ 55

3 Afrodescendentes e educação........................................................................................... 58

3.1 Raça, etnia e educação...................................................................................................... 59


3.2 A África e Povos Africanos formadores da População Brasileira....................................... 63
3.3 Esquemas de Pensamento da Criança Afrodescendente.................................................. 69
Introdução

O Módulo III tem dois objetivos de estudo. O primeiro deles é, dando continuidade ao Módulo II,
discutir os dois conceitos que formam a “espinha dorsal” do nosso curso: diversidade e desigualdade. Há
muitas possibilidades de compreensão destes dois conceitos, e nossa abordagem vai privilegiar a dimensão
histórico-cultural, que será mais bem explicitada logo adiante. Para melhor entender estes dois conceitos
centrais, apresentamos também alguns outros conceitos que dialogam com eles, em especial os conceitos
de diferença, representação, inclusão e exclusão, e questões ligadas às relações de poder e modos de hie-
rarquização na sociedade. Como pano de fundo, temos um conjunto de valores e proposições que vêm
dos direitos humanos, objeto de estudo específico em outro módulo.
O segundo objetivo é aplicar estes conceitos para entender como “funcionam” as coisas em quatro ce-
nários diferentes: diversidade e desigualdade envolvendo populações indígenas; diversidade e desigualdade
envolvendo afrodescendência e quilombolas; diversidade e desigualdade envolvendo questões de gênero e,
por fim, diversidade e desigualdade envolvendo questões de sexualidade.
Este roteiro básico e as atividades de ensino a ele associadas tratam dos temas da diversidade e da
desigualdade envolvendo gênero e sexualidade, Unidade I. A mesma discussão, feita para a questão
indígena e a questão racial, está posta nas Unidades 2 e 3 deste Módulo. Ao longo deste texto básico,
estão colocadas diversas atividades, que recomendamos sejam feitas na ordem em que se apresentam,
de modo a aprofundar a compreensão dos temas em estudo progressivamente. Pede-se ao aluno ou
à aluna um pequeno texto, revelando sua posição pessoal frente aos temas estudados, que, sabemos,
são muito polêmicos e impactam as crenças pessoais, os pertencimentos religiosos e os valores que
ordenam nossas vidas. Stock.xchng
Unidade I
Entendendo os mecanismos de produção
da diversidade e da desigualdade

Nos tempos que correm, tem sido cada vez mais evidente o crescimento de uma posição
política progressista, que valoriza a diversidade em todas as suas formas, e luta por uma educação que
ensine a todos o respeito (por vezes a simples tolerância já seria uma grande conquista) pelas identi-
dades cada vez mais “diversas” que povoam nosso mundo. É com esta posição política, já um tanto
disseminada na área da Educação, que este curso de “Educação para a Diversidade” dialoga. É nesta
direção que esperamos contribuir para a formação de professores e professoras que instaurem em sala
de aula debates que ensinem os alunos e alunas a reconhecer e respeitar as diferenças, contribuindo
para reduzir e até mesmo eliminar as desigualdades que por vezes decorrem destas diferenças entre
as pessoas (diferenças de raça, de gênero, de etnia, de orientação sexual, de classe econômica, de
geração, de pertencimento religioso, etc.).
Sabemos bem dos enormes desafios profissionais e pessoais que enfrenta um professor que busca a
aceitação e a valorização da diversidade cultural em sala de aula. E sabemos também dos desafios, maiores
ainda, que estão implicados em lutar para estabelecer um regime de igualdade de todos na sala de aula,
evitando as situações de desigualdade, que claramente comprometem as possibilidades de aprendizagem.
Mas sabemos também dos imensos benefícios, pessoais e sociais, que derivam destas atitudes corajosas dos
professores, em especial quando pensamos na formação dos alunos, que serão cidadãos com suas condutas
pautadas pelos direitos humanos no futuro. O quadro dos direitos humanos e da vulnerabilidade social é
o grande pano de fundo desta discussão sobre diversidade e desigualdade, e sua apresentação e discussão
estão reservadas para um módulo específico, mais adiante.
Em geral, o termo diversidade está associado a dois processos. O primeiro deles é a chamada “política
de afirmação das identidades”, e o segundo é o “movimento do multiculturalismo”. Lembramos que no
Módulo II deste curso foram tratados aspectos da noção de cultura e de multiculturalismo, entre outros, que
contribuem para compreender a importância dessa categoria.
Na área da Educação, são cada vez mais frequentes as propostas de currículos “multiculturais”, que
operam com o referencial da inclusão e que visam ensinar aos alunos e alunas aspectos de muitas tradições
culturais, que anteriormente não tinham espaço nas grades de ensino e eram desvalorizadas socialmente.
A defesa do multiculturalismo tem sido feita, tradicionalmente, pelos movimentos sociais de minorias étni-
cas, minorias de gênero, minorias sexuais, e pelo movimento feminista, dentre outros grupos sociais. Um
exemplo do bom resultado da pressão dos movimentos sociais pela inclusão de novos elementos culturais
nos currículos é a lei que obriga ao ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena¹. Na área da se-
xualidade, um ótimo exemplo é o projeto Brasil Sem Homofobia, que desenvolve ações para combate à

1 Consulte a Lei Federal nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003 e Lei Federal nº 11.645, de 10 março de 2008.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 7

discriminação por orientação sexual nas escolas2. Todas essas ações, e muitas outras, visam construir um
currículo multicultural na escola, aberto à diversidade cultural do país e do mundo, e em especial aberto à
diversidade cultural que existe dentro da sala de aula e dentro da escola.
A importância da criação de regras e modos de conduta que permitam a coexistência de várias culturas
num mesmo espaço é uma grande preocupação dos tempos atuais. Um dos motivos é que a mobilidade
das populações e os movimentos migratórios, combinados com a urbanização, transformaram as grandes ci-
dades num local de convivência entre pessoas e grupos de muitas e diferentes nacionalidades. Mas também
dentro de cada país temos situações de diversidade cultural, pois indivíduos provenientes de determinadas
regiões têm por vezes práticas culturais bem diversas daqueles de outras regiões. O convívio entre pes-
soas de várias culturas é um desafio não apenas por conta da diversidade regional ou de nação. Ou seja, a
questão não se resume apenas em conviverem orientais ao lado de ocidentais, colônias de chineses ao lado
de famílias bolivianas, argentinos e brasileiros residindo no mesmo prédio (pensemos nos dias de Copa do
Mundo e já se terá um bom exemplo das dificuldades de aceitação das preferências culturais), mexicanos
e marroquinos dividindo o espaço na mesma fábrica de produtos têxteis etc. A diversidade cultural a que
nos referimos traz a marca de outras preferências e hábitos, como por exemplo, o pertencimento religioso:
são muçulmanos africanos e pentecostais estadu-
nidenses lado a lado; são brasileiros evangélicos e
brasileiros seguidores dos rituais afro que têm tem-
plos na mesma rua; são mulheres francesas que não
professam religião alguma convivendo lado ao lado
com mulheres que usam a burca3. Mas a diversida-
de também não se esgota apenas em questões de
pertencimento nacional, regional ou religioso. Hoje
em dia convivem num mesmo prédio uma família
monogâmica católica e um casal de lésbicas; um ho-
Ruth H, Stock.xchng
mem solteiro ao lado de um casal gay; uma família
evangélica na casa da frente e na casa de trás duas travestis que durante a noite trabalham na prostituição,
tudo no mesmo terreno. A lista de possibilidades é interminável, e tudo isso traz implicações para a sala de
aula da escola pública brasileira, que tem por missão expressa na Constituição Federal de 1988 e na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96) o dever de acolher a todos, e a todos fazer aprender.

O processo da política de afirmação das identidades é bastante complexo para ser totalmente abordado
neste texto. Vamos nos concentrar em traçar, de modo breve, o avanço na afirmação de identidades nas áreas
do gênero e da sexualidade, no Brasil4. Nos últimos vinte anos, em razão da combinação de vários fatores,
aconteceu no país uma visibilidade sem precedentes de muitos e diferentes sujeitos, manifestando muitas e
diferentes orientações sexuais e muitas e diferentes posições de gênero. A lista de fatores que ajuda a explicar
esse processo de crescente visibilidade é grande e talvez não encontre consenso entre os pesquisadores, mas
seguramente podemos citar: a consolidação de um regime democrático no Brasil (a liberdade de expressão
pessoal e de manifestação coletiva, que acompanha os regimes democráticos, estimula a organização dos in-
divíduos a partir de diferentes identidades, e estimula também sua aparição na cena pública, em geral na busca
de reconhecimento e direitos); a emergência da epidemia de AIDS no mundo e particularmente no Brasil, com

2 Consulte o endereço http://www.abglt.org.br/port/bsh.php onde você poderá obter os documentos do Programa Brasil Sem Homofobia.
Aproveite para navegar no sítio web e conhecer a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais – ABGLT.
3 Vestimenta feminina das mulheres afegãs, similar ao xador, que cobre todo o corpo, inclusive os cabelos, e apresenta uma estreita tela, à altura
dos olhos, através da qual se pode ver (Dicionário Houaiss).
4 A apresentação que fazemos aqui do processo de afirmação das identidades de gênero e identidades sexuais está baseada em artigo já publi-
cado na Revista Arquipélago, vinculada à Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul. A referência completa do artigo é: SEFFNER, F.
Visibilidade e atravessamento de fronteiras. Arquipélago, Porto Alegre / RS, v. 7, p. 28-30, 2006.
8 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

sabidos impactos sobre a população homossexual masculina, gerando respostas organizadas e reivindicações
crescentes dessa comunidade, mas também impactando a população das mulheres casadas monogâmicas,
das prostitutas ou profissionais do sexo, dos homens bissexuais, dos usuários de drogas injetáveis entre outros
grupos; a ascensão ao poder de governos liberais e de esquerda, com graus variáveis de autonomia frente à
Igreja Católica, tradicional fiadora da moralidade no país, o que ajudou a criar um amplo leque de moralidades
possíveis para orientar a vida dos indivíduos e grupos, algumas mais próximas ao referencial das religiões, outras
mais afastadas, e mesmo assim com notáveis diferenças entre as várias religiões; a consolidação dos proces-
sos de urbanização e industrialização no Brasil, implicando o surgimento de novos desenhos de organização
familiar, e basta lembrar que de cada três agrupamentos familiares na média em um deles são as mulheres as
responsáveis por sua manutenção; as vitórias do movimento feminista, em escala mundial e nacional, na ten-
tativa de reduzir – e num futuro ainda distante eliminar – a enorme desigualdade de gênero que acompanha a
história de todas as sociedades, e que teima em situar as mulheres em patamares de poder e acesso a oportu-
nidades muito inferiores aos dos homens; o crescimento do movimento homossexual, no mundo e no Brasil,
implicando visibilidade e ganhos jurídicos e políticos na forma de legislações e programas de apoio; um forte
movimento de organização da sociedade civil brasileira, representado, entre outros indicadores, pelo vigor
no crescimento das organizações não governamentais; relações mais diretas, densas e por vezes instantâneas
entre os acontecimentos mundiais e os acontecimentos nacionais, implicando a superposição e influência recí-
proca de pautas políticas diversas; a possibilidade de difusão de informações com grande rapidez via internet,
TV, rádio; os enormes avanços na área da saúde e da medicina, disponibilizando tecnologias reprodutivas que
muitas vezes dispensam a relação sexual e o vínculo pessoal entre dois indivíduos e que impactam os modelos
de maternidade e paternidade tradicionais; um conjunto de tecnologias cirúrgicas que consegue efetuar a rea-
dequação dos corpos, fazendo com que indivíduos nascidos homens possam vir a se transformar e viver como
mulheres, e vice versa, produzindo trajetórias pessoais até há pouco impensadas, e gerando a identidade de
transexual, termo praticamente desconhecido em nossa linguagem há apenas quinze anos; a popularização da
figura da travesti e da drag queen, que misturam as fronteiras de gênero, costurando comportamentos femini-
nos por sobre corpos biologicamente do sexo masculino; as modificações no terreno das masculinidades, que
levam a mídia a constantemente noticiar fatos acerca da “crise da masculinidade”.

A lista de fatores que contribui para explicar o forte processo de afirmação identitária na área do gênero
e da sexualidade é muito mais longa do que os itens citados acima. Mas o que foi citado já serve para mos-
trar a importância do processo e as suas principais implicações: o crescimento da visibilidade das muitas e
diferentes orientações sexuais, e das muitas e diferentes posições de gênero, traz consequências na vida de
todos nós, ajuda a explicar a diversidade que encontramos entre os alunos e entre os professores hoje em
dia e mexe com as instituições que tradicionalmente ajudaram a definir a regra e a norma moral, tais como
a própria escola, a igreja, a mídia, a área da saúde pública etc.

Conhecer alguma das muitas identidades na área do gênero e da sexualidade (por exemplo, conhecer
as travestis) passa necessariamente por perceber quais as representações a elas associadas, e que posições
estas representações desfrutam numa escala de valorização social. Em outras palavras, saber o que se diz
acerca das travestis implica primeiro conhecer quem diz o que acerca das travestis (a opinião é do delegado
de policia? É do médico do ambulatório onde a travesti é atendida? É da presidente da associação das traves-
tis da cidade? É de um cliente da travesti que se prostitui? É de um padre ou pastor evangélico? É da própria
travesti?). A produção das identidades liga-se estreitamente ao processo de construção de representações
acerca de grupos sociais e indivíduos, feitas pelos próprios interessados e por outros em seu nome, num
processo que tem evidentes implicações com as questões da política e do poder, uma vez que as represen-
tações experimentam posições de hierarquia e valorização diferenciada no mundo social.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 9

Um conceito importante: Representação.

Cabem algumas palavras sobre o conceito de representação5. A representação, entendida como forma
de conhecimento, diz respeito fundamentalmente à possibilidade de descrever determinado grupo, situação
ou indivíduo. Esse descrever opera em dois movimentos, o que está relacionado às duas acepções principais
da palavra representação – construir a imagem de algo, ou estar no lugar de –, conforme é possível verificar
nos dicionários. O primeiro movimento é aquele de construir a imagem ou a reprodução de algo.

Na perspectiva histórico-cultural adotada nesse


curso, as possibilidades de construção de repre-
sentações são infinitas, e sempre intencionadas,
não havendo uma “mais verdadeira” que outra.
Quando dizemos “intencionadas” estamos nos re-
ferindo ao fato de que sempre temos que saber
quem está falando sobre o quê, tal como antes
discutimos acerca das representações das travestis.
Entretanto, este não é o único significado da pa-
lavra representação. O conhecimento produzido Luiz Eduardo Robinson Achutti, Stock.xchng
colabora na formação de identidades. Quanto mais
sabemos acerca da homossexualidade masculina, mais os indivíduos que adotam esta orientação sexual
têm elementos para construir suas identidades, diferenciando-se entre si. Temos os que acreditam que
são gays porque tiveram na família um pai ausente e uma mãe autoritária; e temos aqueles que acham
que são gays porque foram criados pelas tias que eram donas de um salão de beleza; e temos aqueles
que acham que são gays porque seu hipotálamo é parecido com o hipotálamo das mulheres, conforme
já foi amplamente noticiado nas revistas de divulgação científica; e tem aqueles que acham que são gays
porque a mãe queria uma filha, e aí veio um filho, e ela criou como uma filha; e por aí vamos produzindo
explicações acerca da própria orientação sexual, com o auxílio da ciência ou de outras formas de conhe-
cimento. Quanto mais sabemos, mais queremos saber, e mais usamos este conhecimento para produzir
explicações, e isso é um dos grandes prazeres do conhecimento. A escola precisa resgatar o conheci-
mento que produz diferença na vida das pessoas, aquilo que algumas correntes pedagógicas chamam de
“aprendizagens significativas”.

Voltando ao conceito de representação, aqui o eixo do conhecimento se encontra com o eixo do poder,
pois as representações que construímos acerca dos outros tem influência na vida deles e na nossa, podem
ajudar a viver melhor, mas podem também criar ambientes de desigualdade e sofrimento para alguns, e isso
é especialmente importante para quem segue a profissão de professor e de educador, pois nossa função é a
formação de pessoas. Ao fazer isso, fica evidente o segundo significado importante do termo representação,
também posto nos dicionários: estar em lugar de, substituir. Professores correm o risco de falar “em nome dos
alunos”, especialmente depois de muitos anos de profissão, e depois de ter conhecido muitas turmas. Muitas
vezes, professores e professoras dão opiniões taxativas sobre por que certos rapazes são afeminados, porque
certas moças gostam de outras moças, supostamente a partir de conhecimentos pedagógicos, mas no fundo
a partir de suas opiniões pessoais, que revelam, em geral, pobreza de conhecimentos sobre as questões de
gênero e sexualidade. Este curso tem o propósito de capacitar professores e professoras para que isto não

5 A argumentação aqui desenvolvida está mais bem explicada na tese de doutorado de Fernando Seffner, intitulada Derivas da Masculinidade:
representação, identidade e diferença no âmbito da masculinidade bissexual, em especial no capítulo 7. O texto completo encontra-se dis-
ponível no repositório digital de teses e dissertações da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em http://www.lume.ufrgs.br/, efetuar a
busca pelo nome do autor.
10 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

ocorra, dentre outros motivos porque opiniões preconceituosas de professores e professoras sobre os estilos
de vida dos alunos podem provocar exclusão escolar e podem gerar desgostos que se levam para a vida toda.
Quem não lembra com tristeza de humilhações sofridas na escola, dentro ou fora da sala de aula?

A diversidade como valor

Retornando ao nosso foco, o tema da diversidade. Estamos querendo salientar que a diversidade hoje
presente em uma sala de aula da escola pública não é algo “natural”, que aconteça simplesmente porque
os seres humanos são “diversos e diferentes entre si”. Em particular, são as lutas produzidas no interior das
políticas de identidade que operam no sentido de construção de representações, articulando conquista de
direitos com difusão de modos de ser socialmente aceitos. Ou seja, se hoje temos meninos e meninas ne-
gras estudando em maior número na escola, isso foi fruto de lutas e reivindicações de movimentos sociais
e de forças progressistas na sociedade, que ativamente buscaram a inclusão das crianças negras na escola.
Uma manifestação bem visível destas conquistas são os regimes de cotas étnicas nos vestibulares de ingres-
so das universidades públicas6. Se hoje temos mais alunos negros e indígenas estudando nas universidades
públicas, isso foi fruto de luta e conquista de afirmação dessas identidades.

Com as identidades de gênero e identidades sexuais se passou (e se passa) um processo semelhan-


te. Se hoje uma professora do ensino fundamental encontra em sua sala de aula jovens meninos gays
e jovens meninas lésbicas, já bastante “assumidos”, ou se um professor do ensino médio encontra em
sua sala de aula uma travesti regularmente matriculada e pedindo para ser chamada pelo seu nome
social (direito que já lhe é assegurado em lei na grande maioria dos Estados do Brasil e nas capitais),
essa diversidade não “caiu do céu” na escola. São frutos das chamadas políticas de identidade, que
têm produzido, na escola pública brasileira, salas de aulas com maior diversidade. Se hoje garotos se
assumem com um visual punk na sala de aula, se garotas disputam com os meninos para jogar futebol
na escola, se temos meninos e meninas envolvidos desde cedo com a adesão a partidos políticos, se
encontramos alunos indígenas que trazem para a escola um modo original de ver o mundo: tudo isso
é derivado das políticas de identidade e guarda conexões importantes com a ampliação do espaço
democrático brasileiro. Tais fatos, porém, são percebidos muitas vezes como ameaça pelas professo-
ras e professores, que não dispõem mais do poder de explicar tudo, ter respostas para tudo, serem
considerados como os únicos que sabem na sala de aula porque detêm o domínio do conhecimento.
É necessário inventar uma nova forma de docência, adequada aos novos tempos, para que a escola
não seja vista como uma instituição superada, pois em nossa opinião nunca se precisou tanto de escola
como agora, justamente por conta da pluralidade do conhecimento, do amplo acesso a informação e
da diversidade cultural das identidades. Mas é natural que professores possam sentir saudades dos tem-
pos de antigamente, quando a classe de alunos era composta apenas por rapazes, ou por moças, todos
eles iguais, fator ressaltado ainda mais pelo uso dos uniformes, se mantinham num silêncio respeitoso,
eram todos heterossexuais, todos iam casar com moças de família, ter filhos e ser católicos, copiavam
tudo o que se escrevia no quadro, anotavam os ditados sem jamais dar um pio, nunca confrontavam
a autoridade docente. Para quem tem muita saudade destes tempos, que parecem um tanto idílicos,
recomendamos a leitura de livros como O Ateneu, de Raul Pompéia, que mostra também os enormes
sofrimentos dos alunos submetidos a esta ordem de coisas, além dos abusos cometidos pelos profes-

6 É importante conhecer como foi este processo de luta nas diversas universidades brasileiras. Em particular, recomendamos a consulta ao sítio
web http://www.unb.br/admissao/sistema_cotas/ onde se poderá conhecer a história da implantação do sistema de cotas na Universidade de
Brasília, uma as mais bem sucedidas experiências no tema.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 11

sores no quesito autoridade. Para quem quer ver isso em filmes, o clássico A Sociedade dos Poetas
Mortos traça bem a diferença entre professores autoritários que não ligam para a diversidade presente
na sala de aula, e professores que têm sensibilidade para perceber que há na sua classe alunos com
modos muito diferentes de ser, e cabe fazer a formação destes indivíduos levando isso em conta.

Essa diversidade, fruto da luta por inclusão movida pelos movimentos sociais, e pela adoção de
políticas progressistas de Estado nos últimos anos, deve ser valorizada, porque ela ajuda a romper com
aquela que é, até hoje, a característica mais forte da sociedade brasileira: o regime de desigualdade 7. A
sociedade brasileira, em seus mais de 500 anos de existência, especializou-se na construção de meca-
nismos de exclusão, muitos dos quais extremamente sofisticados. São estratégias de toda ordem para
fazer com que amplos contingentes de indivíduos sejam excluídos de benefícios sociais, de direitos ad-
quiridos, de vantagens que se diz serem “para todos”, de auxílios de toda ordem, de possibilidades de
progressão, de chances para atendimento nos serviços sociais, de conquista de liberdades, do acesso
ao voto, da possibilidade de qualificação, da garantia de alimentos etc. A história do Brasil pode ser vista
como uma longa sucessão de lutas da população para ser verdadeiramente incluída nas possibilidades
de melhoria de vida de toda ordem.

Diante dessa situação é bastante explicável o fato de que uma das representações acerca dos brasi-
leiros seja aquela de indivíduos que buscam tirar vantagem em tudo, pois temos uma percepção clara de
que não vamos obter aquilo que de direito merecemos. Então tentamos obter vantagens a todo custo e a
todo o momento para diminuir nossas chances de exclusão. As consequências disso na escola são muitas.
A principal delas é que boa parte dos sistemas de avaliação das aprendizagens escolares tem funcionado
como estratégias de exclusão de alunos, que são “jogados” para fora da escola. Mas os professores e as
escolas têm construído alternativas nos últimos anos para evitar essa exclusão, embora estas iniciativas
sejam ainda muito tímidas frente à magnitude do problema.

Uma destas estratégias é a construção de currículos multiculturais que auxiliem a compreender e


valorizar as diferenças existentes na sala de aula. Outra estratégia são as políticas de inclusão, que visam
garantir o acesso e a permanência dos alunos na escola, através da concessão de bolsas, da criação de
escolas de turno integral, do auxílio na execução das tarefas escolares, na merenda escolar, na entrega de
livros e materiais escolares, na oferta de atividades desportivas na escola, dentre outras iniciativas.

Educar para a diversidade exige mais...

Tudo isso deixa claro que a valorização da diversidade e o respeito pela diferença guardam estreitas
conexões com as relações de poder na sociedade. Não se trata apenas de elogiar a diversidade, em
particular quando se procura dar ênfase na questão do multiculturalismo. Não basta a inclusão de novos
conteúdos e de novos personagens na escola. A aceitação da pluralidade é um importante passo, mas
há que se discutir como se articula e se mantém a diferença, do ponto de vista do poder, pois é através
dela que as situações de desigualdade são criadas e mantidas. O que em geral se observa em análises que
operam com o conceito de diversidade é um “estacionamento” da discussão na valorização do múltiplo,
do diverso, do plural, aproveitando então para fazer uma apologia a favor da aceitação da diversidade, da
demonstração da riqueza que está contida na diversidade.

7 As considerações aqui feitas estão baseadas no artigo já publicado: SEFFNER, F. Educar para a valorização da diversidade e da diferença: os
muitos desafios no meio do caminho. In: PASINI, Elisiane (Org.). Educando para a diversidade. Porto Alegre: Nuances, 2007, p. 30-34.
12 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

Assim procedendo, fica ausente, em geral, uma explicação dos mecanismos que ativamente produ-
zem e mantêm a diferença, e nos quais estão sempre envolvidas relações de poder e disputa do poder de
representar o outro, de definir o que o outro é. Também a simples constatação do diverso não permite
um trabalho intenso com o conceito de identidade, entendido aqui como posição de sujeito produzida
por uma interpelação social. Se a identidade é fruto de interpelação, significa dizer que ela resulta da
resposta afirmativa a uma dada interpelação social e cultural (que pode ser uma propaganda, a bandeira
de lutas de um movimento social, a proposta contida numa letra de música, a ideologia expressa por um
agrupamento político, o discurso de um líder sindical etc), que implica um reconhecimento num certo
pertencimento, ou a exclusão dele. Experimentamos então um diferencial de poder, de valor simbólico,
de posição hierárquica, de valorização social, em suma de aceitação, ou não. A simples constatação de
que existe um diverso de nós não alcança força suficiente para explicar o complexo jogo de composições
e demarcação de fronteiras entre as identidades.

Nosso estudo ao longo do curso não é movido


pela preocupação de achar uma “explicação” de
porque as pessoas são assim ou vivem a partir de
tal ou qual identidade8. Nosso estudo opera pela
problematização dessas situações, ou seja, bus-
car entender como se expressam e convivem em
sala de aula (e por extensão na sociedade como
um todo) estas diferentes identidades culturais.
Verificamos que a criação de novas categorias de
personagens sexuais e de gênero – quais sejam
Stock.xchng travestis, transgêneros, homossexuais, bissexuais,
heterossexuais, lésbicas, gays, drags, e mais todos
os diferentes modos de ser rapaz heterossexual ou moça heterossexual – significa um investimento
no eixo da diversidade como forma de visibilidade das diferentes orientações sexuais e de gênero.
O propósito da escola e dos educadores deve ser de reconhecer e fazer respeitar estas identidades,
colocando todas em diálogo, e evitando criar situações de desigualdade para algumas identidades e de
privilégio para outras. Com isto, estamos educando dentro do paradigma dos direitos humanos, objeto
de estudo em uma próxima Unidade deste curso.

Finalizando este tópico, lembramos que, para falar de diversidade, buscamos desenvolver uma argu-
mentação de caráter histórico-cultural privilegiando o eixo da diferença de forma mais intensa do que aquele
da diversidade. Enfatizar a diferença implica mostrar os movimentos que produzem diferenciais de poder
entre os indivíduos, e que se mostram nas relações em que estes indivíduos se envolvem, podendo dar ori-
gem a situações de desigualdade, que desejamos evitar. A criação de situações de respeito à diversidade ou
de desigualdade para com algumas identidades está sempre diretamente relacionada ao contexto histórico
em que os indivíduos estão vivendo, que pode ser uma ditadura, uma democracia, um regime conservador,
um país desenvolvido ou subdesenvolvido, um país com religião oficial ou um país com pluralidade religiosa,
um estado laico ou religioso, um país com diversidade de posições na mídia, ou um país com forte concen-
tração dos meios de comunicação, dentre muitos outros fatores, todos eles históricos e culturais.

8 A argumentação aqui desenvolvida está mais bem explicada na tese de doutorado de Fernando Seffner, intitulada Derivas da Masculinidade:
representação, identidade e diferença no âmbito da masculinidade bissexual, em especial no capítulo 8. O texto completo encontra-se dis-
ponível no repositório digital de teses e dissertações da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em http://www.lume.ufrgs.br/
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 13

Anote no Diário de Bordo!

Atividade 1
Sempre é bom lembrar a estrutura da desigualdade
O Brasil é um país de muita desigualdade. Isso traz consequências dramáticas para a escola pública.
Professores e professoras que buscam encaminhar seu trabalho docente na direção da luta contra a desi-
gualdade, tem pela frente uma grande tarefa.

1. Leia o texto abaixo, sobre a questão da desigualdade no Brasil, ou navegue no sítio web indicado.

http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/03/249309.shtml
Brasiiillll - Campeão mundial da desgraça social há 25 anos
Por Jornal do Brasil - CESAR BAIMA

O campeão da injustiça social - Estudo do IPEA mostra que a distribuição de renda no Brasil é pior do que
em países como Botsuana. Faz 25 anos que o país detém um título mundial pouco nobre: o de campeão da
má distribuição da renda. Mesmo quando a comparação é feita com nações pobres da África, o país perde feio.
Segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) - órgão ligado ao Minis-
tério do Planejamento, Orçamento e Gestão -, os 10% mais ricos da população brasileira embolsam 28
vezes a renda obtida pelos 40% mais pobres.
Em Zâmbia, a mesma proporção é de 17 vezes. Na Costa do Marfim, é de 20 vezes. No Quênia, é
de 21 vezes e em Botsuana, 22 vezes, enquanto que nos Estados Unidos a relação fica em 5,5 vezes e na
Argentina em 10. A pesquisa do IPEA foi feita com base em dados do Banco Mundial (BIRD), do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), da Organização das Nações Unidas (ONU) e do IBGE. Ela faz
parte do livro Desigualdade e Pobreza no Brasil, que está sendo lançado pelo instituto este mês.
O livro, que esquadrinha as origens da pobreza no Brasil e os mecanismos econômicos para combatê-la,
mostra ainda que, no país, os 10% mais ricos da população se apropriam de cerca de 50% da renda total
das famílias. No outro extremo, os 50% mais pobres detiveram, no período de 1977 a 1999, analisado pelo
estudo, um pouco mais de 10% da renda. Já o ‘’seleto grupo composto pelo 1% mais rico da sociedade’’, de
acordo com os pesquisadores do IPEA, concentra renda superior àquela apropriada pelos 50% mais pobres.
Quadro imutável - ‘’Do ponto de vista internacional, não existe país no mundo com uma desigualdade como
a nossa, nem país com renda per capita equivalente ou pior com desigualdade assim’’, afirma o pesquisador do
IPEA Ricardo Henriques, um dos autores do estudo que comparou o grau de desigualdade de renda no Brasil com
o observado em outros países. Para tanto, os economistas do IPEA utilizaram como medida os coeficientes de
Gini, o índice de Theil, a razão entre a renda média dos 10% mais ricos e a renda média dos 40% mais pobres;
além da razão entre a renda média dos 20% mais ricos e a renda média dos 20% mais pobres.
Também não há país em que tal desproporção se mantenha por tanto tempo. Segundo Henriques,
o Brasil está completando um quarto de século de injustiça social, em que nem a abertura política nem
a estabilidade econômica mudaram o quadro da desigualdade no Brasil. ‘’Há mais de 20 anos o país se
encontra num patamar considerado muito ruim’’, diz o pesquisador.
Henriques usa os dados das Pesquisas Nacionais por Amostragem de Domicílios (PNADs) do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para demonstrar a estagnação da desigualdade no país nos
últimos anos. Apesar da pequena melhora apresentada na distribuição da renda após o Plano Real, em
1999 a riqueza continuava sendo repartida na mesma proporção do final da década de 70.
14 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

Tanto em 1978 quanto em 1999, os 10% mais ricos ainda se apropriavam de pouco mais de 47% da
renda nacional, enquanto os 40% mais pobres viram sua fatia do bolo aumentar meio ponto percentual,
passando de 7,6% para 8,1%.
Desafio histórico. Na opinião de Henriques, a solução da desigualdade social no país constitui um
desafio histórico que está sendo apresentado à sociedade. ‘’A desigualdade no Brasil é inerte. O acordo
social brasileiro é excludente na sua origem. Mesmo e sobretudo após o último governo Getúlio Vargas
(1950-54), se criou a base de um acordo social em que era possível se criar um padrão de desenvolvimen-
to excluindo-se parte da população’’, diz.
De acordo com Henriques, a sociedade brasileira convive há tanto tempo com a desigualdade que pas-
sou a considerá-la um fenômeno natural e perdeu a sensibilidade a ela. ‘’O único caminho para erradicar a
pobreza é se desnaturalizar a desigualdade. Ela tornou-se algo natural. O Brasil anda, e anda bem, só com
a parcela mais rica da população. Como o país é eficiente, isto é, tem crescimento do PIB (Produto Interno
Bruto) e da riqueza, com a exclusão, passa a ser senso comum que é normal ser tão desigual’’, considera.

2. O texto acima foi postado na web em 09/03/2003 às 05h54min. Com a ajuda do tutor, navegue
um pouco na internet, e busque elementos para responder a questão: você acha que esta situação se
modificou nos últimos anos?

3. Poste sua opinião em seu diário de bordo.

Anote no Diário de Bordo!

Atividade 2
Diversidade e desigualdade no ambiente escolar
Fruto das preocupações multiculturais, muitos cineastas abordaram as questões de diversidade e desi-
gualdade na escola, e mesmo nas salas de aula. Através dos filmes, podemos perceber a complexidade que
enfrenta um professor ou uma professora que busca planejar seu trabalho pedagógico levando em conta a
diversidade cultural presente na sala de aula.

1. Assista ao filme documentário brasileiro “Pro dia nascer feliz” (2006). Aproveite para ler algumas
das entrevistas concedidas pelo diretor, João Jardim, que explicam os motivos de seu interesse pelas rela-
ções entre a adolescência e escola no Brasil. Uma das entrevistas pode ser vista em http://www.une.org.
br/home3/opiniao/entrevistas/m_7883.html

2. Assista ao filme francês “Entre os Muros da Escola” (2008). Aproveite para ler algumas das entre-
vistas concedidas pelo diretor do filme, Laurent Cantet, que permitem compreender a situação da diver-
sidade cultural da França e seus reflexos dentro das salas de aula. Uma das entrevistas pode ser vista em
http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL1039085-7086,00.html

3. Escreva suas impressões sobre o que foi abordado nos dois filmes em cerca de três laudas. Poste no
seu diário de bordo.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 15

1.1 Ser igual, ser diferente: políticas de igualdade e luta contra a desigualdade

A partir do que viemos argumentando no tópico anterior, é possível constatar que no Brasil, historica-
mente, aqueles que em geral tiveram mais chances de “se dar bem” na vida são os sujeitos que reúnem os
seguintes atributos: ser homem, ser branco, pertencer à religião católica, ser heterossexual, não apresentar
nenhuma deficiência, ser morador do eixo sul-sudeste do país, ser de classe econômica elevada, ter grau
de estudos superior, ser adulto jovem, viver no ambiente urbano. Há uma espécie de “reserva de vagas”
na ocupação dos postos de comando em nossa sociedade para indivíduos que reúnam estes atributos. Se
fizermos uma variação de sinal em todos os atributos, poderemos ter um sujeito: mulher, negra, de religião
afro, lésbica, com problema de mobilidade nas pernas, morando na zona do agreste nordestino, pobre,
com estudos somente do nível primário, com mais de 50 anos. Certamente as chances de sucesso na vida
desta mulher são bem menores. Mas não precisamos montar um personagem tão marcado por desigual-
dades. Na sociedade brasileira, basta por vezes que um dos quesitos acima citados esteja de sinal invertido,
para que o sujeito esteja exposto a riscos.

Atividade 3

Nem todos são a favor das políticas de inclusão e das políticas de cotas

1. Leia a notícia abaixo, e a nota da Fundação Palmares.

http://64.233.163.132/search?q=cache:MtpvsipIbpEJ:negros.reportersocial.com.br/fundacao-pal-
mares-diz-que-dentista-paulistano-foi-morto-por-ser-negro.html+dentista+negro+assassinado+em+
s%C3%A3o+paulo+pela+pol%C3%ADcia&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br
Fundação Palmares diz que dentista paulistano foi morto por ser negro
12 de fevereiro de 2004

“A morte do dentista Flávio Ferreira Sant’Anna, morto com dois tiros por policiais que o confun-
diram com um assaltante, é mostra do racismo na mente dos brasileiros e nas instituições do país.
A afirmação foi feita pelo presidente da Fundação Palmares, Ubiratan Castro de Araújo, em nota de
repúdio divulgada na quinta-feira. O fato de o denunciante ser negro e ter apontado Flávio na rua
como o autor do assalto é mostra do quanto está institucionalizado o racismo no Brasil, conforme
a nota. “Esta é uma demonstração de como o racismo está instalado nas mentes dos brasileiros, e
orienta a ação criminosa de quem deveria justamente combater o racismo: o denunciante, por ser
negro e sabedor dos preconceitos raciais, deveria ter o cuidado de não acusar levianamente um outro
negro; os policiais, como agentes da lei, deveriam ser os primeiros a combater o crime de racismo.”
A nota sugere a criação de ouvidorias dentro das polícias que investiguem casos de racismo e cursos
que preparem os policiais para a disseminação de uma cultura de paz e respeito aos direitos huma-
nos. Araújo afirma no texto que Flávio “mereceria o reconhecimento do Estado” por sua trajetória
de superação das dificuldades num país de “ideologia racista dominante”. O dentista seria um exem-
plo afirmativo para jovens negros que “terminam por acomodar-se à inferioridade e submissão ou
revoltam-se instintivamente nas fileiras do crime organizado”.
16 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

Leia a íntegra da nota:


NOTA DE REPÚDIO
Assistimos, estarrecidos, à notícia do assassinato do Cirurgião Dentista Flávio Ferreira de
Sant’Anna por soldados da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Pela sua trajetória de vida mar-
cada pelo estudo, pelo sucesso, pela vida em família, mereceria o reconhecimento do Estado como
um exemplo afirmativo para tantos jovens negros que, impotentes diante de uma ideologia racista
dominante, terminam por acomodar-se à inferioridade e submissão ou revoltam-se instintivamente
nas fileiras do crime organizado. O Dr. Flávio é o filho que orgulha toda família negra. Ao invés de
reconhecimento, recebeu duas balas mortais, acrescidas de uma insidiosa encenação que o acusava
de prática de assalto. Foi abatido sumariamente. Não teve sequer a chance de mostrar documentos
e dizer quem era. O fato é marcado, em todos os seus detalhes, pelo racismo. Da parte do denun-
ciante, também negro, apesar de não ter visto o rosto de quem lhe assaltara, foi capaz de apontar, à
distância, o primeiro homem negro que encontrou. A guarnição policial, sem proceder à identificação
do indicado, atirou e matou porque, à distância, sendo negro, deveria ser, ipso facto, assaltante e
perigoso. O Dr. Flávio foi assassinado por ser negro! Esta é uma demonstração de como o racismo
está instalado nas mentes dos brasileiros, e orienta a ação criminosa de quem deveria justamente
combater o racismo: o denunciante, por ser negro e sabedor dos preconceitos raciais, deveria ter o
cuidado de não acusar levianamente um outro negro; os policiais, como agentes da lei, deveriam ser
os primeiros a combater o crime de racismo e, por dever de ofício, cumprir todos os procedimentos
regulamentares de abordagem e detenção de cidadãos brasileiros. A punição dos responsáveis, todos,
na forma da lei, é tudo que exigimos do Estado de São Paulo. Este caso não pode terminar em pizza.
Este caso não pode se repetir. Certamente que milhares de outros cidadãos negros foram abatidos
sumariamente, inculpados injustamente e maltratados pela ação do Estado. É preciso que todos os
brasileiros tomem consciência de que o racismo institucional deve ser combatido pela ação cotidia-
na, repressiva e educativa. Agentes do Estado, operadores do Direito, levam para o exercício de suas
funções, os estereótipos e representações negativas que guiam o gesto e apertam os gatilhos. Mais
do que nunca, é preciso criar ouvidorias especializadas, principalmente nas polícias que apurem dia
a dia todos os casos de racismo praticados por agentes do Estado. É urgente a implantação de cur-
sos e experimentos sociais voltados para uma formação dos policiais, que desenvolvam uma cultura
de paz e de respeito aos direitos de todos os cidadãos e cidadãs, e em especial, negros e negras.
Para os familiares do Dr. Flávio Ferreira de Sant’Anna, não há reparação possível. Resta-nos apenas
transmitir-lhes um abraço fraterno. Nós lhes agradecemos pelo grande brasileiro que vocês educa-
ram. Ele não será esquecido.
UBIRATAN CASTRO DE ARAÚJO
Presidente da Fundação Cultural Palmares
(Cristina Charão)

2. Leia o texto abaixo.

VOCÊ É BRANCO? Que azar, hein?


Ives Gandra da Silva Martins (Professor emérito das universidades Mackenzie e UNIFMU e da Escola
de Comando e Estado Maior do Exército e presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do
Comércio do Estado de São Paulo)
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 17

Hoje, tenho eu a impressão de que o “cidadão comum e branco” é agressivamente discriminado


pelas autoridades e pela legislação infraconstitucional, a favor de outros cidadãos, desde que sejam ín-
dios, afrodescendentes, homossexuais ou se autodeclarem pertencentes a minorias submetidas a possíveis
preconceitos. Assim é que, se um branco, um índio e um afrodescendente tiverem a mesma nota em um
vestibular, pouco acima da linha de corte para ingresso nas Universidades e as vagas forem limitadas, o
branco será excluído, de imediato, a favor de um deles! Em igualdade de condições, o branco é um cidadão
inferior e deve ser discriminado, apesar da Lei Maior.
Os índios que, pela Constituição (art. 231), só deveriam ter direito às terras que ocupassem em 5 de
outubro de 1988, por lei infraconstitucional passaram a ter direito a terras que ocuparam no passado. Me-
nos de meio milhão de índios brasileiros - não contando os argentinos, bolivianos, paraguaios, uruguaios,
que pretendem ser beneficiados também - passaram a ser donos de 15% do território nacional, enquanto
os outros 185 milhões de habitantes dispõem apenas de 85% dele. Nessa exegese equivocada da Lei
Suprema, todos os brasileiros não-índios foram discriminados.
Aos “quilombolas”, que deveriam ser apenas os descendentes dos participantes de quilombos, e não
os afrodescendentes em geral, que vivem em torno daquelas antigas comunidades, tem sido destinada,
também, parcela de território consideravelmente maior do que a Constituição permite (art. 68 ADCT), em
clara discriminação ao cidadão que não se enquadra nesse conceito.
Os homossexuais obtiveram do Presidente Lula e da Ministra Dilma Roussef o direito de ter um con-
gresso financiado por dinheiro público, para realçar as suas tendências (algo que um cidadão comum
jamais conseguiria!). Os invasores de terras, que violentam, diariamente, a Constituição, vão passar a ter
aposentadoria, num reconhecimento explícito de que o governo considera, mais que legítima, meritória a
conduta consistente em agredir o direito. Trata-se de clara discriminação em relação ao cidadão comum,
desempregado, que não tem esse “privilégio”, porque cumpre a lei.
Desertores, assaltantes de bancos e assassinos que, no passado participaram da guerrilha, garantem a
seus descendentes polpudas indenizações, pagas pelos contribuintes brasileiros. Está, hoje, em torno de 4
bilhões de reais o que é retirado dos pagadores de tributos para “ressarcir” aqueles que resolveram pegar
em armas contra o governo ou se disseram perseguidos.

E são tantas as discriminações, que é de perguntar: de que vale o inciso IV do art. 3º da Lei Suprema?
Como modesto advogado, cidadão comum e branco, sinto-me discriminado e cada vez com menos espaço,
nesta terra de castas e privilégios.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:


I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.

3. Escreva uma reflexão, de uma lauda, enfocando duas questões.


A) Afinal, quem é privilegiado na sociedade brasileira?
B) Há motivos para a existência de programas de apoio a identidades específicas?

4. Poste sua reflexão em seu espaço de trabalho. Leia as reflexões dos colegas.
18 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

1.2 Gênero e sexualidade: muitas perguntas, questões complicadas, cenas


fortes na escola

A diversidade é bem vinda em muitos ambientes, em muitos locais. Numerosas propagandas fazem
a apologia da diversidade, e uma conhecida marca de roupas fez durante muitos anos seus anúncios em
torno da diversidade, usando para isso a variedade de cores do mundo9. Mas no terreno do gênero e da
sexualidade ela muitas vezes não é bem vinda. Em geral, tudo que escapa da norma de gênero e da norma
da sexualidade é mal visto. Mas a diversidade existe neste terreno, e existe cada vez mais, fruto do conjunto
de fatores que analisamos nos itens acima.

No ambiente escolar, esta diversidade de modos de gênero e de orientações sexuais dá margem a


muitas questões e muitas cenas. Seguem algumas:

• Os garotos afeminados na escola devem ser reprimidos e estimulados para que se identifiquem com
o padrão tradicional masculino?
• Ser gay, lésbica ou travesti é pecado? É doença? É anormalidade? É desvio psíquico? É uma orienta-
ção sexual sadia e normal, como outras?
• A homossexualidade foi retirada dos cadastros de doenças e de transtornos psíquicos, e os profis-
sionais de saúde, em especial médicos e psicólogos, no Brasil são proibidos de levar os indivíduos
a fazerem “tratamentos” para voltar a gostar de pessoas do sexo oposto. O que você acha disso?
• Mesmo proibidas por lei, numerosas igrejas e outras agências da sociedade imaginam poder “curar”
ou “fazer voltar à normalidade” os homens gays e as mulheres lésbicas, divulgando tratamentos e
curas. Qual sua posição acerca desse complicado tema?
• É possível “deixar” de ser homossexual? Existe Ex-Gay, Ex-Homossexual, Ex-Heterossexual, Ex-
Viado?
• Duas meninas lésbicas ficam de mãos dadas durante o recreio, namorando. O que se deve fazer?
Permitir? Reprimir? Chamar os pais?
• Travestis e transexuais têm o direito, em muitos locais do Brasil, de serem listados na chamada pelo
seu nome social, que é diferente do que está no registro de nascimento. Você concorda com isso?

Atividade 4

Perguntas que não querem calar


1. A partir de sua vivência escolar, como aluno ou como professor, pense nas inúmeras perguntas e
situações que envolvem a diversidade de gênero e sexualidade no ambiente da escola. Lembre cenas que
você vivenciou ou que lhe foram narradas por colegas.
2. Faça sua própria listagem de perguntas e questões envolvendo a expressão da diversidade de gênero
e sexualidade no ambiente escolar. Não se intimide: faça as perguntas no estilo “tudo que você sempre
quis saber sobre sexo e nunca teve coragem de perguntar”.
3. Poste as perguntas no Fórum “Milhões de Dúvidas”.
4. Leia as perguntas e questões elaboradas pelos colegas. Verifique se coincidem com suas pró-
prias inquietações.

Busque na web pela marca Benetton United Colors e, a partir daí, navegue assistindo às propagandas desta marca de roupas, nas quais se mis-
turam cores, etnias, raças e outros determinantes da diversidade, todos eles valorizados positivamente.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 19

Atividade 5

Que atitude tomar frente a uma cena dessas?

1. Antes de prosseguir no estudo do tema, queremos provocar sua reflexão acerca de cenas comuns no
cotidiano escolar, que envolvem temas de gênero e sexualidade. Pedimos que você faça a atividade passo
a passo, sem ir direto ao final na leitura.

2. Leia a cena abaixo10.


No semestre passado dei algumas aulas no curso de Pedagogia sobre gênero e sexualidade, dentro de
uma disciplina ofertada por uma colega. Uma das alunas foi ótima, super esperta, fez perguntas, gostou
do tema, provocou o debate levantando questões polêmicas. Hoje encontrei esta aluna no bar da facul-
dade, e ela narrou uma cena vivida no estágio que está fazendo numa escola pequena, pública, em bairro
bem afastado do centro, com uma turma de segunda série. A turma tem 28 alunos e, no fundo da sala,
uma concentração de guris, alguns um ano mais velhos por conta de reprovação. Ela estava na frente da
sala explicando no quadro uma atividade com números, até que percebeu que havia um zum-zum-zum e
risadinhas dos guris no fundo, onde alguma coisa era apontada no chão. Ela caminhou até o fundo da sala
e perguntou “o que está acontecendo aqui?”. Todos se calaram, e ela verificou que eram duas embalagens
de absorvente interno, da marca OB, perfeitamente novos, embalados e limpinhos. Neste momento ela se
deu conta de que havia um silêncio enorme na classe, e todos a observavam, na expectativa de sua rea-
ção. Depois de pegar os absorventes, ela caminhou de volta para a frente da sala e encostou-se ao quadro
negro, em meio a um silêncio e a uma atenção que nunca tinha conseguido até aquele dia.

3. O que você acha que a professora estagiária deveria ter feito?

(A) ter chamado a direção da escola para dar uma bronca geral na turma.
(B) ter forçado até descobrir quem havia trazido aquilo para sala de aula e, ao descobrir o “culpado”,
mandar para fora da sala.
(C) fazer de conta que não era nada, colocar o OB no lixo e seguir a aula como se nada tivesse acontecido.
(D) no momento em que ela chegou ao fundo da sala e viu que era um OB, ela deveria ter feito de
conta que não viu nada, ter dado uma bronca nos guris sem olhar para o OB, e voltado para a explicação
no quadro negro. Por certo, ela nunca deveria ter pegado o OB na mão.
(E) ela deveria aproveitar o momento para dar uma explicação sobre o que era o OB e para que servia,
pois os alunos estavam em silêncio grande, e isso indica que eles queriam ouvir alguma coisa sobre aquilo.

4. Retome a leitura da cena que descreve o que efetivamente fez a nossa aluna estagiária frente a
esta situação.

A estagiária levantou os dois OB bem alto na frente da turma, e perguntou em voz clara: quem sabe
para que serve isso aqui levante a mão!!! Dos 28 alunos, pouco mais da metade levantou a mão. Então,
ela fez uma pergunta mais ousada: quem quer explicar para os colegas para que serve isso aqui? Segundo

10 As cenas narradas são fruto de anotações do diário de campo do autor. Este diário de campo registra impressões, cenas, depoimen-
tos, vivências experimentadas pelo autor, em especial em sua atividade de observação de estágios, e durante a realização de cursos
de formação continuada para professores das redes públicas. A identificação das escolas foi suprimida, bem como a identificação dos
envolvidos nas cenas (professores, alunos, supervisores, funcionários).
20 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

ela, a pergunta foi feita num tom muito severo, quase como ameaça, tendo ela mesma se admirado do
tom de sua voz. O silêncio, que já era grande, neste momento ficou tumular. Ninguém levantou a mão,
ninguém se coçou. A estagiária se deu conta de que estava “dominando a situação”. Disse, ainda man-
tendo a voz muito séria: prestem atenção, que eu vou explicar. E falou então, desenhando algumas coisas
no quadro, sobre homem e mulher e sobre menstruação, e como se usava o OB. Ela usou, na explicação,
as palavras pinto e perereca para falar dos órgãos sexuais, porque já havia reparado que eram expressões
utilizadas por eles. Segundo ela, foi um ótimo momento com a turma, logo as crianças fizeram perguntas,
também algumas brincadeiras mais “fortes”, mas sem conteúdo ofensivo. A curiosidade com o assunto foi
se esgotando, e depois de um tempo ela colocou o OB sobre a mesa: agora vamos voltar para o que a gente
estava fazendo e, em outro dia, podemos conversar mais sobre isto. A aula continuou até o final da tarde,
sem problemas maiores. Quando bateu o sinal, ela percebeu que os alunos não tinham pressa de sair,
curiosos com o destino do OB, que com naturalidade, ela ajeitou entre seus pertences. Eles perguntaram:
“a senhora vai usar?”. E ela respondeu: “não, eu uso outra marca”.

5. O que você acha da atitude da estagiária? Você se sentiria em condições de fazer isso também?
Anote suas impressões em no máximo uma lauda e poste na sua área de trabalho.

6. Agora leia o que aconteceu 24 horas depois.

No dia seguinte, ao chegar à escola, no início da tarde, a estagiária foi de imediato chamada para a
sala da diretora, onde já estava a orientadora e sua professora regente, e elas lhe disseram que duas mães,
de duas alunas, tinham vindo bem cedo, para reclamar que suas filhas haviam chegado a casa falando
de menstruação, OB, pinto e perereca, e contando o que a professora havia feito. Enquanto a professora
regente iniciava a aula com a classe, a orientadora e a estagiária foram conversar com as mães. A queixa
era a mesma: eram evangélicas, não queriam que suas filhas tomassem contato com estes assuntos,
porque nas suas famílias isso seria tratado apenas quando as meninas “ficassem grandes”. A estagiária e
a orientadora responderam de modo que me pareceu muito conveniente: a escola é um espaço público,
com pessoas de diferentes credos e diferentes modos de encarar a vida, e não se pode esperar que as
coisas se passem como na família. Além do mais, a escola tem no seu projeto político-pedagógico e no seu
currículo o tema transversal educação sexual, e, ao tratar do tema, a professora estava atendendo a essa
orientação. Por fim, argumentaram que não fora a professora que havia trazido o assunto para a sala de
aula. O assunto se colocou na turma, por intermédio de alguns meninos, na forma de um tema emergente,
para o qual a professora precisava dar uma resposta. A orientadora, que me pareceu ser também uma
professora com experiência em resolver conflitos com pais e mães, perguntou então diretamente para as
mães: o que as senhoras acham que a professora deveria ter feito, ao perceber que havia dois OB na sala
de aula? Para grande espanto da orientadora e da estagiária, as duas mães responderam a mesma coisa:
a estagiária deveria ter “disfarçado”, como disse uma delas, deveria ter mentido aos alunos afirmando
que aquilo servia para outra coisa, e não explicando o que era um absorvente. A orientadora ficou tão
indignada com as mães, por entenderem que a estagiária deveria ter mentido para os alunos (uma atitude
que certamente colocaria em risco a autoridade pedagógica da estagiária), que desafiou as mães: “e o
que a senhoras acham que ela deveria ter dito, que aquilo servia como mata-borrão? Ou talvez como um
guardanapo para limpar o batom dos lábios? Francamente, minhas senhoras!!!”. A orientadora sustentou
que a opção de mentir aos alunos não era correta, além de implicar desprestígio da professora, pois havia
ficado claro que quase metade da turma sabia para que servia o OB.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 21

A estagiária me contou que as mães talvez não tenham ficado convencidas da adequação de sua atitude,
mas não tiveram mais argumentos, e desistiram de discutir. A estagiária ficou aliviada com a solução do pro-
blema e, depois do recreio, retornou para a classe, onde tudo correu bem. Na mesma tarde e nos dias seguin-
tes, porém, ela percebeu que as duas meninas cujas mães haviam comparecido à escola estavam um pouco
envergonhadas, inclusive porque foram motivo de brincadeiras da parte de outros alunos em razão da ida de
suas mães à escola. A estagiária repreendeu esses alunos, deixando claro que todos tinham o direito de ter suas
opiniões respeitadas, e cada um tinha seu modo de lidar com sua sexualidade. As duas meninas gostaram da
atitude da professora, pois talvez tivessem ficado com a impressão que a professora não gostava mais delas.

7. O que você acha da atitude das duas mães? Note que são mães de duas meninas. Nenhuma mãe de
menino veio reclamar, o que aponta uma questão de gênero. Dificilmente mães de meninos teriam trazido
esta queixa. Como a escola deve lidar com as expectativas que têm as famílias sobre os temas do gênero
e da sexualidade? Esta é uma questão difícil, anote alguns pontos de seu pensamento, e poste na sua área
de trabalho. Leia as postagens dos colegas.

1.3 Gênero e sexualidade: algumas definições

A diversidade presente nas salas de aula é uma diversidade de identidades culturais, conforme discuti-
mos nos itens anteriores. Neste módulo do curso, as principais dimensões que nos interessam vincular à
discussão das identidades culturais são aquelas do gênero e da sexualidade. Das muitas dimensões possíveis
da identidade (raça, nacionalidade, geração, região, religião, deficiência, etnia, classe econômica, nível de
escolaridade etc), é perceptível que na sociedade ocidental atual estas duas dimensões são as mais impor-
tantes para a definição da identidade cultural de um indivíduo. Uma das informações mais importantes que
se pode saber de um indivíduo é sua orientação sexual. Em torno da preferência sexual de alguém, muitas
polêmicas podem se estabelecer, e as fofocas acerca dos artistas são um bom exemplo disso. Mas também
as definições de gênero são importantes, tão importantes e fundamentais que só percebemos sua impor-
tância quando as coisas fogem da norma. Ao sermos mencionados a alguém, uma das informações mais
importantes é seu gênero: é homem ou é mulher? Sempre investigamos isso, mas é algo já tão naturalizado,
que só nos damos conta da importância quando ficamos em dúvida. E sempre queremos saber se efetiva-
mente o sujeito é heterossexual, o que seria o “normal”. A pergunta “será que ele é?” é tão frequente, que
virou até mesmo título de filme, uma comédia que recomendamos seja assistida11.
Esta foi e tem sido a regra nas sociedades ocidentais. Neste terreno, a ambiguidade, a incerteza, a
indefinição, podem trazer muitas complicações para a pessoa12. Saber da raça, da etnia, do pertencimen-
to religioso, da nacionalidade, da naturalidade, da classe social de alguém é seguramente importante no
sentido de perceber sua identidade, mas é o conhecimento que possamos ter das dimensões de gênero
e sexualidade do indivíduo aquele mais valorizado, aquele que efetivamente funciona quando se procura
“definir” “quem” é o indivíduo. Mais ainda, saber do gênero e da sexualidade do indivíduo pode nos fazer
rever todo o conhecimento que temos das outras dimensões de sua identidade. O aluno é excelente, tem
ótimo desempenho em todas as matérias, tem ótimo relacionamento com os professores e com os colegas.
Mas, se percebermos que ele tem interesse afetivo e amoroso por outros meninos, tudo isso desaba, e ele
passa a ter sua identidade reduzida ao seu pertencimento sexual, passa a ser chamado de gay em todos os

11 O título em inglês do filme é In & Out, e o título em português é Será Que Ele É? Filme lançado em 1997 (EUA), dirigido por Frank Oz, com o
ator Kevin Kline no papel principal.
12 A argumentação aqui desenvolvida está mais bem explicada na tese de doutorado de Fernando Seffner, intitulada Derivas da Masculinidade:
representação, identidade e diferença no âmbito da masculinidade bissexual. O texto completo encontra-se disponível no repositório digital de
teses e dissertações da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em http://www.lume.ufrgs.br/
22 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

momentos, e é isto que de mais importante todos os demais acham para dizer do sujeito.
Em outras palavras, o conhecimento que possamos ter da identidade de gênero e da identidade sexual
de um indivíduo, em geral, opera deslocamentos naqueles conhecimentos que temos acerca da identidade
de raça, da identidade nacional, da identidade religiosa etc. Na sociedade ocidental, gênero e sexualidade se
ligam de maneira chave com o conceito de identidade, e por vezes é a partir da identidade sexual que todas
as demais construções identitárias do sujeito se ordenam; em outras palavras, esta dimensão da sua vida
torna-se totalizadora de sua identidade, e, quando dele se fala, é para lembrar, em primeiro lugar, sua iden-
tidade sexual. Em outras culturas, ou em outros momentos históricos da cultura ocidental, talvez dimensões
como a da religião tenham tido importância decisiva na configuração da identidade dos sujeitos (é o caso
da Idade Média, na cultura ocidental, e é o caso de algumas sociedades islâmicas, hoje em dia). Em nossa
cultura, e nesse momento histórico, esse papel é ocupado pelas dimensões do gênero e da sexualidade,
muitas vezes referido à abordagem do corpo, à fabricação do corpo desejado.

Trabalhar com uma identidade marcada pela sexualidade ou pelo gênero implica discutir representações
culturais a ela associadas que tenham a sexualidade ou o gênero como elementos importantes, bem como
analisar e compreender processos culturais, simbólicos e sociais aí envolvidos. Em particular, significa tratar
de questões de poder envolvidas nas relações entre identidades marcadas pela sexualidade e pelo gênero
e outras identidades. Convém explicitar melhor o que estamos entendendo por gênero e sexualidade. As
questões de gênero estão vinculadas àqueles comportamentos, atitudes e modos de ser que definimos
como sendo masculinos ou femininos. De forma resumida, convém ressaltar que gênero diz respeito à
produção da diferenciação social entre homens e mulheres. Esta diferenciação é social, cultural e histórica.
Essa diferenciação pode produzir situações de desigualdade entre homens e mulheres. Historicamente, as
mulheres tem tido menores possibilidades de ascensão social pelo simples fato de serem mulheres, e até
alguns anos atrás mulheres não podiam ocupar cargos na magistratura, por exemplo.

No sentido de dar um panorama geral das definições que são necessárias, recorremos a uma citação de
Jeffrey Weeks, cujos termos básicos serão retomados ao longo deste módulo:
Na discussão que se segue estaremos muito preocupados com o uso e o sentido dos termos. [...]
‘Sexo’ será usado [...] como um termo descritivo para as diferenças anatômicas básicas, internas e externas
ao corpo, que vemos como diferenciando homens e mulheres. Embora essas distinções anatômicas sejam
geralmente dadas no nascimento, os significados a elas associados são altamente históricos e sociais. Para
descrever a diferenciação social entre homens e mulheres, usarei o termo ‘gênero’. Usarei o termo ‘sexu-
alidade’ como uma descrição geral para a série de crenças, comportamentos, relações e identidades social-
mente construídas e historicamente modeladas que se relacionam com o que Michel Foucault denominou
‘o corpo e seus prazeres’13. (WEEKS, 1999, p. 43, grifos do autor)

A sexualidade diz respeito ao modo como os indivíduos organizam e valorizam as questões relacionadas
à satisfação do desejo e do prazer sexuais. A identidade de gênero refere-se à identificação do indivíduo com
aqueles atributos que culturalmente definem o masculino e o feminino, num dado contexto social e históri-
co, revelando-se nos modos de ser, nos gestos, nos jeitos de vestir, nas atitudes, nos hábitos corporais, nas
posturas para andar, sentar, movimentar-se, na tonalidade de voz, na seleção de objetos e adornos etc. Estas
escolhas serão nomeadas como representações vinculadas ao mundo masculino ou ao mundo feminino,
situando o indivíduo em algum desses dois grandes universos, e dizendo que “é feminino” ou “é masculino”,
independentemente de coincidir com sua identidade sexual. São, portanto, dois processos a serem vividos
e administrados pelo sujeito: seu pertencimento de gênero e sua orientação sexual.
13 WEEKS, J. O Corpo e a Sexualidade. In: LOURO, G. L. (Org.). O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica,
1999. p. 35-82.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 23

Para aprofundar a compreensão destes dois termos, recorremos à outra citação, da conhecida pesqui-
sadora e educadora Guacira Lopes Louro:
Ainda que gênero e sexualidade se constituam em dimensões extremamente articuladas, parece necessário
distingui-las aqui. Estudiosas e estudiosos feministas têm empregado o conceito de gênero para se referir ao
caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo; assim sendo, as identidades de gênero reme-
tem-nos às várias formas de viver a masculinidade ou a feminilidade. Por outro lado, o conceito de sexualidade é
utilizado, nesse contexto, para se referir às formas como os sujeitos vivem seus prazeres e desejos sexuais; nesse
sentido, as identidades sexuais estariam relacionadas aos diversos arranjos e parcerias que os sujeitos inventam
e põem em prática para realizar seus jogos sexuais14. (LOURO, 2000, p. 63-64)

As relações de gênero e as relações sexuais constituem-se em episódios valorizados na construção da


identidade cultural dos indivíduos, o que significa dizer que, nas interações que um indivíduo mantém com
outros, sempre estão presentes desníveis de poder, representados por diferenças de gênero e de preferência
sexual, embora se reconheça que também operam como diferenciais de poder dimensões como raça, etnia,
classe social, nacionalidade, pertencimento religioso, nível de escolaridade, faixa etária e muitos outros.
No terreno da sexualidade pode-se situar a produção teórica em dois grandes campos: o essencialismo e o
construcionismo. O fundamental da ideia essencialista é a crença de que há uma essência, de caráter imutável e
não histórico, e que muitas vezes é um elemento supostamente dado pela natureza: nasceu fêmea, será mulher;
nasceu macho, será homem. O sexo, tomado como sendo “dado” pela natureza, é, portanto, anterior à cultura.
Esta forma de estabelecer relações de causa e efeito implica excessiva valorização da anterioridade, revelando um
apego ao modo positivista de narrativa. A visão teórica essencialista pode nos fazer sair em busca do “eu” essencial
escondido em cada um de nós. Por exemplo: buscar onde está o masculino, escondido na travesti, ou no homos-
sexual, ou no bissexual, vistos como modos “deturpados” ou “equivocados” de ser homem. Um bom exemplo
de ditos de cunho essencialista, pronunciados nos corredores escolares ocorre quando um menino que se recusa
a participar de brincadeiras mais violentas com outros meninos, termina por escutar: “Tu não estás vendo que tu
és homem? Assume o que tens no meio das pernas!” Nesta linguagem do senso comum, homem e masculino
são tomados como sinônimos, misturando as identidades de gênero e sexual. Também nesta visão se verifica que
há apenas um modo de ser homem, que é em geral um modo onde força e violência se misturam. Qualquer
ambiguidade nesta equação pode trazer complicações aos meninos.
Neste Módulo de nosso curso, para tratar das questões de diversidade de gênero e sexualidade, a opção
que fizemos é pelo construcionismo, e esta é uma escolha não apenas teórica, mas que se dá por razões éticas
e políticas, em sintonia com a abordagem histórico-cultural já referida anteriormente. É no campo do cons-
trucionismo que podemos operar com a questão da diferença cultural, sempre uma diferença de poder, que
envolve a discussão dos diferentes posicionamentos na hierarquia social. E é apenas discutindo as questões de
poder que poderemos modificar as situações de desigualdade. No viés construcionista, o ser humano não está
amarrado a seguir um destino já traçado pela biologia. A visão construcionista fornece mecanismos que nos
permitem trabalhar temas relativos a violência, opressão, autoestima e construção da cidadania, todos vincula-
dos à questão da construção da identidade. E isto abre possibilidades enormes para o trabalho em sala de aula,
onde justamente a diversidade propicia que se tenha que lidar com estes diferenciais.
Na abordagem construcionista, o indivíduo é percebido como tendo capacidade de agência na construção
de sua identidade, o que não implica deixar de perceber os constrangimentos que a todo o momento afetam
seu poder de agência, pois todos nós vivemos em sociedade, e nossos desejos são mediados pelos desejos
dos outros, que podem estar expressos em leis, normas, regras escritas ou regras não escritas, orientações do
que é ter uma “boa postura” em determinados ambientes etc. De toda forma, a visão que temos do sujeito
na abordagem construcionista é de que ele não está submetido a forças naturais cegas, como a carga genética,

14 LOURO, G. L. Corpo, Escola e Identidade. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 25, n. 2, p. 59-75, jul./dez. 2000.
24 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

o tamanho do hipotálamo ou qualquer outro atributo biológico, genético ou de origem, que o moldariam de
forma quase sempre independente de sua vontade. Saber de suas características biológicas, e conhecer seus
potenciais genéticos são algumas informações pessoais importantes, mas que não podem ser vistas como de-
terminantes de nossa personalidade. Por outro lado, o conceito de agência não deve ser confundido com livre
arbítrio, não se trata de imaginar o indivíduo fazendo uma livre escolha entre diferentes estilos de vida. É na
tensão entre a agência individual (capacidade individual de agir) e as representações socialmente construídas (os
limites impostos pelas instituições e por outros sujeitos, e basicamente pelos valores culturais da sociedade) que
cada indivíduo vai fabricando sua identidade, entre limites e possibilidades, negociações e imposições. A ênfase
na construção histórica e cultural dos contextos sócio-políticos em que se produz o discurso da sexualidade e
do gênero é uma marca forte da posição teórica construcionista.

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Atividade 6
Entendendo a postura essencialista em gênero e sexualidade

1. Leia e reflita sobre a citação abaixo, de autor já apresentado:

O ‘essencialismo’ é o ponto de vista que tenta explicar as propriedades de um todo complexo por
referência a uma suposta verdade ou essência interior. Essa abordagem reduz a complexidade do mundo
à suposta simplicidade imaginada de suas partes constituintes e procura explicar os indivíduos como pro-
dutos automáticos de impulsos internos. (WEEKS, 1999, p. 43, grifo do autor)

2. Liste alguns exemplos de explicações essencialistas, no terreno do gênero e da sexualidade, mas também
pensando em identidades de raça, etnia, classe social, pertencimento religioso, nacionalidade, geração etc.

3. Anote estes exemplos em seu diário de bordo.

Atividade 7
Entendendo a postura construcionista em gênero e sexualidade

1. Leia e reflita sobre a citação abaixo, de autor já apresentado:

A expressão ‘construcionismo social’ será usada como um termo abreviado para descrever a abor-
dagem, historicamente orientada, que estaremos adotando, relativamente aos corpos e à sexualidade.
(...) tudo o que ela basicamente pretende fazer é argumentar que só podemos compreender as atitudes
em relação ao corpo e à sexualidade em seu contexto histórico específico, explorando as condições his-
toricamente variáveis que dão origem à importância atribuída à sexualidade num momento particular e
apreendendo as várias relações de poder que modela o que vem a ser visto como comportamento normal
ou anormal, aceitável ou inaceitável. (WEEKS, 1999, p. 43, grifo do autor)

2. Liste alguns exemplos de explicações construcionistas, no terreno do gênero e da sexualidade, mas tam-
bém pensando em identidades de raça, etnia, classe social, pertencimento religioso, nacionalidade, geração etc.

3. Anote estes exemplos em seu diário de bordo.


Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 25

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Atividade 8
Analisando uma polêmica com base nos conceitos de essencialismo e construcionismo
Nesta atividade, é importante que você realize cada etapa de uma vez. Não busque se apressar, e ler
tudo até o final. Faça cada parte, e depois passe para a seguinte.

1. Leia a coluna abaixo, da conhecida socialite Danuza Leão, publicada no jornal Folha de São Paulo,
na edição de 7 de fevereiro de 2010.

Como se tornar uma drag queen


Soube que vai ser inaugurada em Campinas, com o apoio do Ministério da Cultura, a primeira escola
gay do Brasil: a Escola Jovem LGTB, para lésbicas, gays, transexuais e bissexuais.
Nela serão dados inúmeros cursos como expressão literária, expressão cênica e expressão artística,
além de um inédito, para formar drag-queens. Já começa aí o preconceito: por que não ensinar também
a trabalhar com mecânica, carpintaria, eletricidade, ou a consertar um ar-condicionado? Por que existem
pessoas que acham que o mundo gay só é capaz - na cabeça deles - de fazer trabalhos “artísticos”?
Cada um, seja bailarino, lutador de box, cabeleireiro ou bombeiro, tem o direito de escolher com quem
vai para a cama, se com alguém do mesmo sexo ou de outro. Detalhe: a escola está aberta também aos
heterossexuais. Será que eles acham que vai ter fila de héteros querendo estudar lá?
Essa história de dar aulas para ensinar como se tornar uma drag-queen chega a ser ridícula; a vocação
vem do berço e não precisa de professor para ensinar. Mesmo nascendo e crescendo numa fazenda no
interior do Acre, uma drag, desde sua mais tenra infância, sabe se “montar” como ninguém.
Ela pega um pano, amarra na cintura, de umas frutinhas faz um colar, passa colorau na boca - mais
vermelho que os batons de St. Laurent – e, na falta de um sapato alto, anda na ponta dos pés; é com ela
mesmo, e é preciso ser muito ignorante para pensar que para ser drag é preciso aprender.
Ao que me consta, o objetivo da humanidade é integrar, fazer com que os humanos de qualquer raça, cor
ou religião se sintam como na realidade são - iguais. Se os colégios só para meninas ou só para meninos já não
eram recomendados, o que dizer de um dirigido preferencialmente ao mundo gay? Então por que não pensar
também em colégios só para brancos e outros só para negros?
As cotas nas universidades já são de um preconceito absurdo; o resultado será a segregação, em seu mais
alto grau, e me admira que as autoridades hajam permitido essa aberração. O Brasil tem mania de ser moder-
ninho, mas é bom não esquecer Hitler; é assim que começa.
O mundo é cruel, disso já se sabe, e as crianças, ainda mais cruéis que os adultos. Se eles já fazem maldades
com o coleguinha que parece “diferente”, imagine do que não serão capazes quando crescerem, sabendo que os
“diferentes” estão agrupados, juntos, num só colégio. Aliás, desconfie dos homofóbicos: dentro de muitos deles
mora um gay ainda adormecido.
Se a moda pega, veremos no futuro anúncios de edifícios e condomínios exclusivamente para gays, separan-
do cada vez mais o que deveria ser integrado. Essa integração só poderá acontecer quando todas as pessoas do
mundo - inclusive o mundo gay, que às vezes é bem preconceituoso - aprenderem que não existem diferenças
entre os seres humanos, que as preferências sexuais de cada um são pessoais, e não dizem respeito a ninguém.
Por falar nisso, o Exército dos EUA está abrindo as portas para os assumidamente gays poderem servir “à
pátria que eles tanto amam”, segundo o presidente Obama; como somos atrasados. Ensinar a conviver com a
diversidade, isso é que as escolas e o Ministério da Cultura deveriam fazer.
danuza.leao@uol.com.br
26 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

2. Faça uma lista com as afirmações do texto com que você concorda, e outra lista com as afirmações
do texto de que você discorda. A autora utiliza em algum momento do texto afirmações essencialistas? A
autora utiliza em algum momento do texto afirmações construcionistas? Se possível, argumente porque
não concorda com algumas afirmações, e porque concorda com outras.

4. Agora, leia o comentário abaixo, feito por Leandro Colling (professor do Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências Professor Milton Santos e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e
Sociedade, da Universidade Federal da Bahia UFBA)

Os equívocos e acertos de Danuza


Leandro Colling
Danuza Leão, em sua crônica do último dia 7 de fevereiro, Como se tornar uma drag queen, publicada
em vários jornais, a exemplo de A Tarde e Folha de S. Paulo, criticou a criação de uma escola LGBT em
Campinas e, ao mesmo tempo, defendeu a entrada de gays nas forças armadas. Concordo com alguns
trechos do texto e discordo de outros. Como as discordâncias são bem mais incisivas, começo por elas:
- Ser drag queen, segundo Danuza, é uma vocação que vem do berço, portanto, não precisa ser ensinada.
Em primeiro lugar, essa ideia pressupõe que todas as drags já nasceram assim. Algumas até podem ter essa
impressão, que é, na verdade, a velha naturalização de nossas vocações e orientações sexuais (que são por nós
naturalizadas, mas que não têm quase nada de natural, exceto em vocações específicas do mundo artístico).
Não podemos generalizar nada quando tratamos de sexualidades e gêneros. É claro que alguém pode
apreender a ser drag queen mesmo quando adulto. Todos aprendem a ser drag. Da mesma forma, todos
aprendem a ser homo ou heterossexuais. A diferença é que aprendemos de formas mais ou menos diferen-
tes. Por isso, minha afirmação não pode ser lida como também uma generalização.
Um adulto como eu pode aprender a ser drag e nunca ter se sentido uma delas desde a “tenra in-
fância”. Aliás, quando eu era criança, por exemplo, sequer existiam drags. E olha que eu tenho 38 anos.
Danuza provavelmente pensa assim porque diz, adiante, em seu texto, que “não existem diferenças entre
os seres humanos, que as preferências sexuais de cada um são pessoais, e não dizem respeito a ninguém”.
Ao contrário dela, penso, assim como centenas de pesquisadores da área, que existem sim enormes
diferenças entre os humanos, e ainda bem que elas existem, pois são elas que dão graça à vida. O discurso
da igualdade, usado por Danuza com o melhor dos propósitos, na verdade, vai contra o respeito à diversi-
dade, uma diversidade que é tão ampla que pode, a rigor, fazer com que cada um de nós crie um modo de
viver a sua sexualidade e reinvente o seu gênero.
Além disso, quando Danuza diz que as preferências sexuais são pessoais e que não dizem respeito aos
outros, parece flertar, novamente, com a ideia de que nascemos com essas preferências, que elas são inatas
e que, portanto, devem ser respeitadas. Não creio que esse seja o melhor argumento para defendermos o
respeito à diversidade. Para termos os mesmos direitos, precisamos destacar e festejar as nossas diferenças.
Nossas “preferências sexuais” (eu prefiro, na falta de termo melhor, nossas orientações sexuais),
sejam elas quais forem, são construídas desde a nossa fecundação. Ou melhor, uma das orientações é im-
posta desde a barriga de nossas mães e, por essa e outras questões, acaba vista como algo natural. Essas
construções, em boa medida, foram realizadas pelos outros.
Por outro lado, dizer que as nossas preferências não dizem respeito aos outros é despolitizar o sexo. Ao
contrário, penso que, cada vez mais, o sexo é politizado (basta lembrar a recente declaração do general
Raymundo Nonato Cerqueira Filho, indicado para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Militar). Portan-
to, não podemos cair na tentação de realizar qualquer despolitização do sexo.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 27

Em seu texto, Danuza diz que a escola LGBT, ao invés de integrar, segregará e, em seguida, liga essa
questão com as cotas para negros nas universidades, consideradas por ela “um preconceito absurdo; o re-
sultado será a segregação, em seu mais alto grau”. O que está em pauta aqui é a validade ou não das cha-
madas ações afirmativas e das estratégias políticas essencialistas, muito utilizadas pelos movimentos sociais
brasileiros. Ainda que eu tenha várias críticas a essas estratégias, precisamos entender que, num primeiro
momento, sem elas pouca coisa teria mudado nos últimos anos para as mulheres, negros e homossexuais.
No entanto, precisamos nos perguntar até quando, até que ponto, devemos usar tais estratégias.
Atualmente, estou mais interessado em pensar como seria possível aliar estratégias essencialistas, afirma-
tivas, com perspectivas não essencialistas, pós-identitárias. Como essas duas perspectivas poderiam andar
juntas, em um mesmo movimento?
Sobre as cotas: elas não têm gerado, a meu ver, nenhum tipo de segregação nas universidades. Pelo con-
trário, o ingresso de afrodescendentes, ao menos na UFBA, tem contribuído para que a própria universidade
seja repensada. Digo isso pela minha própria experiência. Fui professor substituto antes e depois das cotas e
agora estou na condição de professor efetivo, fase na qual é possível verificar os efeitos das cotas na UFBA.
Diria mais: os não cotistas estão aprendendo muito com os cotistas. Ao invés de segregação, estou
vendo o reconhecimento do outro e um promissor respeito às diferenças, não apenas raciais, mas, inclu-
sive, de gêneros/sexuais.
Agora, destaco minhas concordâncias com Danuza. Ela pergunta: por que a escola LGBT não ensina
“também a trabalhar com mecânica, carpintaria, eletricidade, ou a consertar um ar-condicionado? Por que
existem pessoas que acham que o mundo gay só é capaz - na cabeça deles - de fazer trabalhos “artísticos”?”.
Ora, se o movimento LGBTTT defende a entrada de gays nas forças armadas, por que uma escola
voltada à comunidade dedicar-se-á a ensinar apenas profissões comumente atribuídas aos seus pretensos
e imaginários integrantes?
Outra concordância, ainda que parcial: “desconfie dos homofóbicos: dentro de muitos deles mora um
gay ainda adormecido”. Pode não existir um gay adormecido, mas algo move o homofóbico. O que é exa-
tamente esse algo? Dezenas de coisas, muito difíceis de enumerar. Dificilmente uma resposta daria conta
de tudo para que outra generalização pudesse ser formulada.
Em outro momento, Danuza frisa que mundo gay é, às vezes, bem preconceituoso. Concordo plena-
mente. Há muito preconceito do mundo gay com gays mais afeminados, lésbicas mais masculinizadas, tra-
vestis, transgêneros, transexuais, intersexos, simpatizantes, mulheres e, também, para com os bissexuais
e os heterossexuais. Também há muito preconceito para com aqueles que não desejam se enquadrar em
nenhuma categoria, aqueles que preferem e festejam o livre trânsito entre as inúmeras formas de vivenciar
os seus sexos, gêneros, desejos e práticas sexuais.

5. Faça uma lista com as afirmações do texto com que você concorda, e outra lista com as afirmações
do texto de que você discorda. Se possível, argumente porque não concorda com algumas afirmações, e
porque concorda com outras. Qual a posição do autor, no debate entre construcionistas e essencialistas?

6. Compare as duas listagens. Elabore um comentário pessoal, destacando o que pareceu mais importante.

7. Publique no seu diário de bordo.

8. Leia os comentários dos seus colegas de curso.


28 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

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Atividade 9
Tratando de questões de gênero através de propagandas
Uma luta importante do movimento feminista brasileiro e mundial é no sentido de combater o ma-
chismo, a violência contra a mulher e as tentativas de tornar a mulher um simples “objeto” do prazer
masculino. A mídia desempenha um importante papel nesse assunto, com posições a favor ou contra o
movimento feminista. No contexto da mídia, as propagandas e comerciais carregam também valores e
mostram hierarquias de gênero. Todos nós, inclusive nossos alunos, estamos sujeitos a esta exposição.

1. Pense um pouco nas propagandas de cerveja que você consegue lembrar. Reflita sobre o modo
como estas propagandas em geral são produzidas, e como são representadas as mulheres e os homens e
a própria cerveja.

2. Leia o texto abaixo, publicado no jornal Folha de São Paulo, quarta feira, dia 3 de janeiro de 2007,
na coluna Tendências e Debates, de autoria da professora Berenice Bento, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte.

A cerveja e o assassinato do feminino


Há muitas formas de se assassinar uma mulher: revólveres, facas, espancamentos, cárcere privado,
torturas contínuas. Mesmo com um ativismo feminista que tem pautado a violência contra as mulheres
como uma das piores mazelas nacionais, a estrutura hierarquizada das relações entre os gêneros resiste,
revelando-nos que há múltiplas fontes que alimentam o ódio ao feminino.
Como não ficar estarrecida com a reiterada violência contra as mulheres nos comerciais de cerveja? Com
raras exceções, a estrutura dos comerciais não muda: a mulher quase desnuda, a cerveja gelada e o homem
ávido de sede. As campanhas são direcionadas para o homem, aquele que pode comprar. Alguns exemplos:
uma mulher faz uma pequena dissertação sobre a cerveja para uma audiência masculina, incrédula de sua
inteligência. Logo o mal-entendido se desfaz: claro, uma mulher não poderia saber tantas coisas se tivesse
como mentor um homem; a mulher é engarrafada, transformada em cerveja; um mestre obsceno infantiliza
e comete assédio moral contra uma discípula; ela é a BOA. Quem? O quê? A mulher ou a cerveja?
Todos os comerciais são de cervejas diferentes e estão sendo exibidas simultaneamente. Nesses comerciais
não há metáforas. A mulher não é “como se fosse a cerveja”: é a cerveja. Está ali para ser consumida silencio-
samente, passivamente, sem esboçar reação, pelo homem. Tão dispensável que pode, inclusive, ser substituída
por uma boneca sirigaita de plástico, para o júbilo de jovens rapazes que estão ansiosos pela aventura do verão.
Se já criminalizamos alguns discursos porque são violentos, não é possível continuarmos passivamente
consumindo discursos misóginos a cada dia, como se o mundo da televisão não estivesse ligado ao mundo
real, como se as violências ali transmitidas tivessem fim no click do controle remoto. Embora a matéria-
prima para elaboração desses comerciais esteja nas próprias relações sociais, nas performances ali apre-
sentadas há uma potencialização da violência. Não há uma disjunção radical entre violência simbólica e
física. Há processos de retroalimentação.
A força da lei já determinou que os insultos racistas conferem ao emissor a qualidade de racista.
Também caminhamos para a criminalização da homofobia em suas múltiplas manifestações, inclusive dos
insultos. Por que, então, devemos continuar repetidas vezes ao longo do dia a escutar “piadas” ‘misóginas,
alimentando a crença na superioridade masculina sem uma punição aos agressores?
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 29

Sabemos da força da palavra para produzir o que nomeia, sabemos que uma piada homofóbica, racis-
ta, está amarrada a um conjunto de permissões sociais e culturais que autoriza o piadista a transformar
o outro em motivo de seu riso. Agora, é incalculável o estrago que imagens reiteradas de mulheres quase
desnudas, que não falam uma frase inteligente, que estão ali para servir a sede masculina, invisibilizadas
em duas tragadas, provocam na luta pelo fim da violência contra as mulheres.
Da mesma forma que o “piadista” racista e/ou homofóbico acha que tudo não passa de “brincadeira”,
o marqueteiro misógino supõe que sua “obra-prima” apenas retrata uma verdade aceita por todos, inclu-
sive por mulheres: elas existem para servir aos homens. E como é uma verdade aceita por todos, por que
não brincar com ela? Ou seja, nessa lógica, ele não estaria fazendo nada mais do que reafirmar algo posto.
Será? Não é possível que defendam aquela sucessão de imagens violentas como “brincadeiras”.
Essa ingenuidade não cabe a alguém que sabe a força da imagem para criar desejos.
O que pensam os formuladores dos comerciais? Que tipo de mulheres habita seus imaginários? Por que há
essa obsessão pelos corpos femininos? Será que eles ainda pensam que as mulheres não consomem cerveja?
Não se trata de negar a mulher-consumível, coisificada, pela mulher consumidora, mas de apontar os limi-
tes de uma estrutura de comercial que peca inclusive em termos mercadológicos. Tal qual o assassino que matou
sua esposa acreditando que sua masculinidade está ligada necessariamente à subordinação feminina, a cada
gole de mulher, o homem sente-se, como em um ritual, mais homem. Conforme ele a engole, ela desaparece
de cena para surgir a imagem de um homem satisfeito, feliz; afinal, matou sua sede. É um massacre simbólico
ao feminino. É uma violência que alimenta e se alimenta da violência presente no cotidiano contra as mulheres.

4. Assista algumas das propagandas de cerveja, que podem ser buscadas no site do YouTube, em www.
youtube.com. Você coloca os termos propaganda cerveja Brasil Kaiser, ou propaganda cerveja Brasil Brah-
ma, e assim por diante. O tutor vai ajudar a localizar as propagandas. As propagandas são todas de até
um minuto de duração.

5. Escreva uma lauda, apresentando sua opinião acerca das propagandas de cerveja e as questões de
diversidade de gênero, produção de situações de desrespeito e desigualdade entre homens e mulheres.

1.4 Gênero e sexualidade no ambiente escolar: lidando com as políticas de


inclusão escolar

Conforme mostrado nos tópicos anteriores, assistimos a uma ampla visibilidade de identidades culturais
no terreno do gênero e da sexualidade, nos últimos anos no Brasil, e também no mundo. Essas identidades
povoam também as escolas e salas de aula, e isso se deve a uma combinação de fatores. Ocorre que foi tam-
bém nos últimos anos quinze anos que a escola pública brasileira viveu seu grande momento de expansão,
especialmente no número de alunos matriculados. Tornado obrigatório com a Constituição Federal de 1988,
o ensino fundamental cresceu ao ponto de podermos falar, hoje em dia, em acesso universal a este nível de
ensino. Significa dizer que praticamente todas as crianças em idade escolar de cursar o ensino fundamental
estão efetivamente frequentando a escola. Foi também neste período que a escolaridade fundamental voltou a
ser de nove anos, como já havia sido no passado, quando se faziam cinco anos de curso primário e mais quatro
anos de curso ginasial. Neste momento, as crianças iniciam sua trajetória escolar com seis anos de idade e per-
manecem na escola de modo obrigatório até os quinze anos. O acesso ao ensino médio também se ampliou,
e cresceu muito a demanda pelo ensino de jovens e adultos, em suas várias modalidades.
30 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

Ao colocar “todo mundo” na escola, as políticas públicas de educação conjugaram-se com as do


movimento social das políticas de identidade, que como vimos batalham pela visibilidade e inclusão de
minorias nos benefícios sociais. O resultado mais claro disso é que temos hoje, sentados nos bancos es-
colares, meninos e meninas identificados com “tribos” que antes não se viam nas escolas. E não se viam
ou porque seus representantes não estudavam mesmo (é o caso, por exemplo, das jovens travestis, mas
também é o caso de garotos punk, meninos e meninas muito pobres, alunos e alunas com algumas defici-
ências e que não encontravam lugar nas poucas escolas especiais) ou porque estavam na escola, mas não
assumiam suas identidades específicas lá dentro, apenas quando estavam fora dos portões escolares (é o
caso em geral de gays e lésbicas jovens). Quando se entra em uma sala de aula do ensino fundamental
ou ensino médio hoje em dia, ao acaso, em escolas públicas, o que se verifica é que a diversidade está
presente na adesão a gêneros musicais (são os roqueiros, os padogeiros, os forrozeiros, patrocinando
muitas vezes alguns conflitos, quando as brincadeiras passam dos limites do respeito), no pertencimento
religioso (são as alunas evangélicas, cujas famílias não aceitam que elas participem das aulas de educação
física, porque há exercícios em que se misturam garotos e garotas); no corte de geração (temos hoje em
dia classes em que há alunos e alunas de idades diferentes convivendo, fruto tanto do retorno a escola
de alguns, quanto das reprovações de outros); no corte de classe social (o crescimento da escola públi-
ca brasileira, combinado com a retração na rede das escolas particulares, colocou, em alguns casos, na
mesma sala de aula da escola pública alunos de classes sociais diferentes); no pertencimento de gênero
(nunca as meninas estudaram tanto, superando na maioria dos estados brasileiros os meninos em anos de
escolaridade, e nunca elas foram tão ativas na escola em termos de participação e reivindicação); na ques-
tão das deficiências (fruto de uma série de políticas públicas os alunos que anteriormente estudavam em
escolas especiais foram, em muitos casos, transferidos para a escola regular, o que faz com que hoje em
dia cadeirantes, alunos surdos e cegos, e alunos com algum grau de deficiência mental estejam estudando
junto com os assim chamados “normais”); no pertencimento de nação (os acordos entre os países do
MERCOSUL, por exemplo, permitem que alunos uruguaios, argentinos, paraguaios ou chilenos possam
continuar seus estudos na escola pública brasileira enquanto seus pais aqui estão trabalhando, e isto sem
contar a presença de crianças chinesas, bolivianas e até mesmo africanas, cujas famílias vêm tentar empre-
gos no Brasil, e matriculam seus filhos na escola pública); e muitos outros exemplos poderiam ser dados.

A presença deste contingente de identidades traz impactos em muitas práticas e rotinas escolares. Em
particular, esse impacto é percebido quando da definição de temas e conteúdos a serem ensinados, de
regras de conduta e convívio escolar a serem obedecidos, de modalidades de avaliação dos conhecimen-
tos e das atitudes, de formas de progressão (ou retenção) do aluno em determinada série, dentre outros
quesitos. Frente a novos públicos de alunos, seguiremos ensinando o que sempre ensinamos? Frente a
novas demandas da sociedade, seguiremos mantendo o currículo que sempre praticamos? Quais critérios
devemos adotar para proceder a mudanças curriculares na escola? Tudo o que a sociedade e as políticas de
identidade solicitam a escola deve atender? E se a escola tiver que escolher entre atender a uma demanda
de um setor, que é contrária à demanda de outro setor, que critérios ela deve lançar mão para fazer esta
escolha? Estas são perguntas bastante complexas de responder, não admitem respostas simples, dando
margem a muita discussão. O referencial do multiculturalismo traz questões operacionais para as escolas
que são de difícil resolução15.

15 A discussão a seguir, acerca do tema da inclusão escolar, consta de artigo inédito de Fernando Seffner, intitulado “Das (possíveis) perversas faces
das políticas de inclusão escolar: o que o ensino de História tem a ver com isso”. O artigo foi apresentado na forma de comunicação no XXIV
Simpósio Nacional de História - História e Multidisciplinaridade: territórios e deslocamentos, 2007, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, em evento
organizado pela ANPUH Associação Nacional de Professores de História. Por razões de ordem técnica, não foi incluído nos anais do evento.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 31

O ingresso dos tradicionalmente excluídos na escola conta, em princípio, com a simpatia dos profes-
sores e professoras, e isto se manifesta no uso dos termos “inclusão”, “escola inclusiva”, “inclusão escolar”,
“avaliação inclusiva”, “dinâmicas de inclusão”, “pedagogia inclusiva”, cada vez mais frequentes no vocabulário
docente. Também no nível dos administradores de sistemas escolares essa ideia está presente, particular-
mente na profusão de slogans do tipo “escola para todos” ou “educação para todos”. A ideia da inclusão
conquistou hoje uma quase unanimidade no discurso pedagógico. É praticamente impossível escutar alguém
dizer “eu não sou favorável à inclusão dessa gente toda na escola, é aluno demais”. Ocorre hoje com a ideia
da inclusão algo parecido com o que já aconteceu com a interdisciplinaridade. Nos últimos anos, todos são
favoráveis à criação de estratégias interdisciplinares na escola. É difícil escutar algum professor dizer “cada um
deve ensinar e se preocupar com a sua própria disciplina, e pronto!”.

A aparente unanimidade entre os professores e administradores do ensino e o enorme consenso em


torno da meta da inclusão não são suficientes para esconder a polêmica: se por um lado todos concordam
com a noção geral de que os indivíduos têm que ser incluídos nos processos educativos, por outro as diver-
gências sobre como fazer isso são enormes. E quando se trata da inclusão das identidades de gênero e de
sexualidade, as divergências costumam ser ainda maiores, e os problemas que se apresentam parecem ser
de mais difícil solução no cotidiano escolar. Ao enfrentar uma discussão mais detalhada sobre a as modalida-
des de inclusão efetiva e concreta de determinados alunos, nos deparamos com preconceitos, manifesta-
ções de estigma e discriminação contra os alunos negros, os alunos pobres, aqueles que são provenientes
de famílias com arranjos bem diferentes do modelo tradicional (que é cada vez mais um modelo no meio
de muitos outros), aqueles com deficiências auditivas, motoras, visuais ou cognitivas, aqueles que são por-
tadores do vírus HIV, aqueles que demonstram uma orientação sexual diversa da heterossexual, os muito
gordos, os feios, os alunos que tem mau cheiro, e muitos outros.

Falar de inclusão, enquanto tratada em nível geral, não traz problemas. Da mesma forma, elogiar
a diversidade, falar da riqueza que é a diversidade é muito fácil enquanto estamos no nível geral. Mas
encontramos divergências de todo tipo, quando se trata de discutir o que deve ser feito, como deve
ser feito, quando deve ser feito, quem está habilitado a fazer. As divergências não se dão apenas na dis-
cussão dos caminhos e métodos para efetuar a inclusão. Há um nível mais problemático de discussão,
que diz respeito a quem “merece” ou não ser incluído. Exemplificando: quando se fala na inclusão de
alunos surdos, em geral todos os professores, os administradores do sistema educacional e as comu-
nidades escolares são favoráveis, e a discussão se concentra em “como” vamos fazer para incluir estes
alunos nos processos de aprendizagem, que materiais necessitamos para realizar esta inclusão, que
estratégias de trabalho temos que aprender para auxiliar estes alunos, que equipamentos a escola deve
ter para fazer este trabalho. Ou seja, é claramente uma discussão acerca de métodos pedagógicos,
uma verdadeira discussão educacional. Mas quando se trata de assegurar a inclusão dos que já repe-
tiram muitas vezes a mesma série, daqueles que encontram muita dificuldade em aprender, daqueles
que não revelam interesse pela escola e pelo aprendizado, a discussão muda de figura, e aparecem
outras questões, em geral ligadas às concepções que os professores e professoras têm acerca do que
constituem as obrigações dos alunos. Para muitas professoras, a aluna que reprovou muitas vezes
por ser namoradeira é quase uma “sem vergonha”. O rapaz que só vem à escola para jogar futebol
e bagunçar em certos discursos é quase um marginal, e o melhor seria que ficasse de fora da escola
mesmo. Sabemos bem que são situações difíceis de serem encaminhadas adequadamente pelas dire-
ções e pelos professores, em parte devido às precárias condições de funcionamento da maioria das
escolas. Entretanto, já foi possível verificar que, nas redes escolares onde as condições de infraestrutura
são muito boas, mesmo assim, para a maioria dos professores, a escola deve acolher apenas aqueles
alunos que querem estudar, e expulsar os que não querem.
32 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

O que fica claro é que há um pensamento de fundo que articula as noções de quem merece ser incluído,
e quem não merece. Há um código de valores que precisa ser discutido. Segundo esse código, tem gente
que não merece ser incluída, e que deve então ser excluída. Muitas vezes, analisando o discurso escolar, fica
claro que apenas aqueles que de fato desejam ser incluídos devem ser incluídos. Dessa forma, quem “resis-
te” à proposta de conteúdos e competências da escola, é de imediato rotulado como alguém que não quer
ser incluído, e o melhor então é que fique de fora. Mas estamos tratando de crianças e adolescentes, que
não tem clareza com relação à importância dos aprendizados escolares para seu futuro, profissional e pesso-
al, e que não podem ser tratados como sujeitos portadores de um plano racional para suas vidas, já perfeito
e acabado. Por outro lado, se pararmos para pensar nos conteúdos que ainda são ensinados nas escolas,
nas disciplinas e nos projetos interdisciplinares, e se pensarmos num cenário futuro em que estes alunos irão
viver e trabalhar, certamente perceberemos muitas incongruências. Tudo isso produz, muitas vezes, uma
exclusão na inclusão: o aluno é colocado na escola, é acolhido, mas logo em seguida é praticamente expulso,
e sempre se poderá dizer “mas nós lhe demos uma chance, ele que não aproveitou”. A expressão corrente
nas escolas “os alunos se evadiram” muitas vezes faz alusão a este tipo de situação.
Outro cuidado na hora de aplicar políticas de inclusão é evitar que os incluídos sejam vistos como “bár-
baros”, que precisam ser “civilizados”. Ou seja, incluir para normalizar a todos, eliminando as diferenças que
constituem a identidade de cada um. Esta é uma das causas de fracasso escolar, que acontece quando um
aluno verifica que, embora incluído, tudo o que se discute na escola diz respeito a outro mundo, que não
o seu, e as coisas de seu mundo são muitas vezes criticadas ou desvalorizadas. Se a professora vai discutir
o tema “família”, e começa apresentando uma gravura onde temos o pai, a mãe (sempre alguns centíme-
tros mais baixa que o pai), um filho e uma filha, e estabelece este como modelo de família, logicamente as
crianças que são oriundas de outros arranjos familiares vão sentir-se incomodadas, embora possam não falar
nada. E não são poucas as crianças nesta situação, pois temos enorme diversidade de arranjos familiares hoje
em dia. Como acontece em muitas outras situações nos processos educacionais, é nos detalhes que mora
o perigo da exclusão. Dou um exemplo extraído do diário de campo onde registro cenas de sala de aula:

Fui assistir uma ótima aluna estagiária, em escola pública de Porto Alegre, turma de educação de jovens
e adultos, noturna, de ensino fundamental. Ao sentar no fundo da classe, percebi que a sala de aula devia
ser utilizada, durante o dia, por uma turma de alfabetização, pois havia cartazes com as letras do alfabeto,
e com os algarismos, em todas as paredes, o que deixava a sala muito bonita, com um ar de verdadeiro
ambiente de aprendizagem. Ao sair reparei que na porta da sala de aula havia uma placa, com o nome da
professora e o código da turma de alfabetização, que funcionava no turno da tarde, o que confirmou minha
impressão. O que mais me chamou a atenção foram duas coisas. Logo acima do quadro negro, estava fixado
um conjunto de 23 pequenos cartazes, lado a lado, ocupando toda a extensão da parede. Em cada um de-
les havia uma letra do alfabeto, bem grande e bem desenhada, caixa alta. Logo abaixo a mesma letra, em
escrita cursiva e em tamanho menor. E abaixo, duas gravuras recortadas de revistas representando coisas
que começavam com aquela letra. Por exemplo, abaixo da letra T havia a gravura de um tomate, e a gravura
de uma lata do achocolatado Toddy. Todos os cartazes estavam muito bem feitos, e mostravam as 23 letras
clássicas do nosso alfabeto. Havia também, logo na entrada, a direita da porta e ao lado do quadro negro, de
frente para a classe, um cartaz no sentido vertical onde estava escrito bem no alto “Esta é a turma da Profes-
sora Celyane”. Abaixo, vinham os nomes e sobrenomes dos alunos e alunas, em ordem alfabética, todos em
letra muito caprichada, e ao lado de cada nome, à direita, uma pequena foto com o rosto do aluno ou aluna,
tudo feito com muito capricho, dava gosto de ver. Eram exatamente 22 alunos que compunham a classe.
Destes 22 alunos, nada menos que 11 (a metade!!!) tinham, em seus nomes ou sobrenomes, as letras K, W
e Y, o mesmo acontecendo com a professora, que se chamava Celyane. Reproduzo aqui alguns nomes para
ilustrar, que copiei com muita atenção: Welington, Tacyane, Taylane, Dyane, Maikon. Em alguns sobrenomes,
as letras K, W e Y também apareciam. Entretanto, nos 23 cartazes colocados acima do quadro negro e já
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 33

descritos estas letras não constavam. Todos nós sabemos que nosso alfabeto compõe-se de 23 letras, mas há
também as letras K, W e Y. Nesta classe de alunos em particular verificamos que estas três letras são impor-
tantes, pois estão presentes em nada menos que metade dos nomes ou sobrenomes dos alunos, e no nome
da própria professora. O mais interessante é que, ao ilustrar a letra T, havia sido escolhida a gravura de uma
embalagem do achocolatado Toddy, como já descrito, onde a letra Y comparece. Quando penso em processos
de inclusão, penso nestes pequenos detalhes, que garantem um acolhimento dos alunos. Um deles poderia
ter sido a colocação de mais três cartazes, com as letras K, W e Y, e as respectivas gravuras. Embora talvez
não sejam letras “oficiais” do nosso alfabeto, nesta turma elas compõem os nomes de metade dos alunos,
e não fica bem olharem a lista de letras, e perceberem que uma letra que compõe seus nomes não consta
da relação. Certamente se achariam gravuras para ilustrar estas letras. Lembrei logo da cerveja Kaiser, que
poderia ilustrar a letra K, ou mesmo a gravura de um kart, ou a capa de um livro de Allan Kardec. Na letra
W certamente deveríamos colocar a gravura de um walkman, aparelho que muito se encontra nas salas de
aula. Ou então uma vela de windsurf, sem contar a palavra winchester, parte do computador que todos sabem
o que é. E a letra Y me parece mais difícil, mas a lata de Toddy poderia resolver em parte, além de eu já ter
visto nas prateleiras de congelados do supermercado uma embalagem de yakisoba. Desenhar estratégias de
inclusão passa por uma atenção aos pequenos detalhes, dos quais é feita uma boa aula.

O relato acima permite perceber que é na hora de desenhar as pequenas estratégias de ensino e apren-
dizagem, é na hora de coordenar a classe de alunos, é no momento de propor atividades, de redigir os
textos que os alunos vão ler, de selecionar gravuras, que aparecem as verdadeiras dificuldades para lidar com
a diversidade, com a inclusão, com o acolhimento de todos os alunos e com o respeito à diferença. Exige de
cada professor uma grande dose de força e de empenho pedagógico olhar para turma de alunos e alunas,
com tanta gente diferente, e dizer: todos aqui podem aprender, e todos aqui têm algo a ensinar para os
demais. Isso é algo que está na contramão de quase tudo que se vive na sociedade e na contramão de boa
parte do pensamento pedagógico de senso comum mais tradicional, e especialmente está na contramão do
que a mídia em geral divulga como sendo “modelo de sucesso” em matéria de se dar bem na vida, que são
sempre carreiras marcadas por forte individualismo.

Nos dias de hoje, uma professora tem que ter uma enorme dose de sensibilidade para lidar com a
inclusão escolar, pois é difícil acreditar que surdos, cegos, gays, lésbicas, travestis, cadeirantes, deficientes
mentais, gente mais velha, bagunceiros e comportados, umbandistas e católicos, interessados e desinteres-
sados, limpos e sujos, bem “educados” e mal “educados”, possam aprender em conjunto, num clima de
inclusão, aceitação, respeito e harmonia. Isso explica porque, na maior parte das vezes, quando perguntado
acerca da inclusão escolar, o professor diga que é favorável, mas logo em seguida comece a enumerar os
problemas de se fazer isso. Os problemas logicamente existem, mas eles não devem constituir motivo para
que se volte ao antigo sistema da exclusão sistemática dos diferentes.
34 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

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Atividade 10
Inclusão escolar: o caso de uma professora

Leia com atenção os três materiais abaixo: duas notícias, e o despacho de um juiz. Após a leitura,
elabore um texto de uma lauda, com sua opinião acerca do assunto.

1. Notícia retirada do site www.nuances.com.br


Educadora concursada na Prefeitura Municipal de Nova Santa Rita, cidade próxima da Capital Porto Alegre,
Aitana Godoy da Costa foi exonerada de sua função, ainda durante estágio probatório. Uma sindicância foi ins-
taurada com o objetivo de comprovar sua incapacidade de atuação junto à educação infantil. O motivo, explícito
na sindicância impetrada de forma a desejar competência e seriedade diz respeito ao fato de que Aitana é tran-
sexual. Tendo passado por diversas situações de humilhação e constrangimento, a educadora procurou o grupo
Nuances pela livre expressão sexual e a Igualdade Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul.
O Nuances procedeu a uma ação cautelar de reintegração, depois ter tentado audiência de conciliação junto
à DRT Delegacia Regional do Trabalho, com a participação da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da
Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. A educadora, capaz do exercício de suas funções, inclusive sendo
contratada pelo Estado já por alguns anos, teve de suportar o machismo e heterossexismo do procurador do mu-
nicípio, que em momento algum tratou Aitana como mulher. Disse o Sr. Presidente da Comissão de Sindicância
que diante de si estava um homem e que o município havia contratado alguém do sexo masculino.

2. Despacho do Sr. Juiz Telmo dos Santos Abech - Comarca de Canoas.

Trata-se de cautelar inominada visando à reintegração de servidor público demitido por suposta
conduta indevida.
Em sua inicial o requerente, além de impugnar o procedimento administrativo de que foi réu, faz
menção à suposta perseguição da Secretária de Educação. Dos documentos que instruem a inicial, pode-
se auferir, ‘prima facie’, as qualidades/notas atribuídas ao requerente durante sua avaliação em estágio
probatório, não havendo, em tais documentos, qualquer nota desabonatória de sua conduta.
Em casos como este, necessária uma ampla dilação probatória para analisar solidamente os fatos que
culminaram com a penalização do servidor efetivo no exercício do cargo público de Professor, não podendo
o requerente, durante o tramitar do feito, ficar afastado de suas funções.
Pelo exposto, diante do esvaziamento da decisão que demitiu o agravado tomada pelo Prefeito Muni-
cipal de Nova Santa Rita, bem como da gravidade da pena aplicada - afastamento do cargo e perda do seu
sustento - DEFIRO a antecipação de tutela para determinar a imediata reintegração no cargo público de
professor do qual foi afastado por irregularidades de conduta.
Por fim, apenas acrescento que a medida antecipatória, ora concedida, não causará nenhum prejuízo
ao município requerido, ao contrário, o preservará de uma futura e pomposa indenização no caso da ação
principal ser julgada procedente.
Intimem-se. Intimem-se. Cumprida a liminar, cite-se.”

3. Notícia do jornal “De Fato O Jornal de Nova Santa Rita”, Ano 12, nº 528, semana de 30 de outubro a
5 de novembro de 2008. http://www.jornaldefato.com.br/bancoimg/c081031142959DeFato528EdicaoSite.pdf
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 35

Nova Santa Rita é palco de documentário

Quem caminhava pelas ruas de Nova Santa Rita, terça-feira à tarde, se deparou com uma situação dife-
rente. O cenário se parecia muito com aqueles que vemos em sets de filmagens: uma atriz caminhando pelas
ruas, um cameraman filmando os passos da mesma, à distância, outro mais aproximado e uma equipe de
apoio com blocos e microfones. A cena incomum em nossa cidade nada mais era do que a do documentário
realizado pelos alunos do curso de Audiovisual da Unisinos que tem como tema a reação da sociedade ao
convívio com um transexual. A professora Aitana Godoy, 28 anos, moradora do Centro, leciona português,
inglês, redação e ética em quatro escolas de Porto Alegre. Até aí nada de anormal, não fosse o fato de ela ser
transexual. O diretor do projeto, André Garcia, explicou os motivos que os levaram a realizar as filmagens
em NSR. “Após descobrirmos que havia uma professora transexual aqui, viemos atrás para mostrar como é a
vida dela e como as pessoas reagem ao vê-la em situações do cotidiano. Vamos fazer o trajeto dela, visitando
locais importantes daqui da cidade, até Porto Alegre, onde a acompanharemos numa das escolas onde tra-
balha”. Segundo Aitana, a reação das pessoas foi outra em razão da presença das câmeras. “As pessoas já
me xingaram, fazem piadinhas de mau gosto e algumas até mesmo já me elogiaram. Por onde passo, causo
curiosidade à maioria, mas isso não me incomoda. Na Prefeitura fui afastada por preconceito. Pediram para
que eu me vestisse de homem na administração do Amilton Amorim, e a secretária Karin Hexel fez com que
todas as diretoras me perseguissem. Estamos na luta contra o preconceito, para mostrar que uma ‘trans’
pode ter uma vida normal como qualquer outra pessoa”.
Procurada pelo jornal De Fato, a secretária da educação, Karin Hexel, afirmou serem inverídicas as
acusações. “O Juliano (nome verdadeiro de Aitana) foi exonerado por incompetência e não por sua sexua-
lidade. O processo está em andamento e temos, em forma de atas, com reclamações dos pais, as provas
necessárias para comprovar isso”.
Ao todo são sete alunos, todos da cadeira de documentário do curso de Realização Audiovisual da
Unisinos, participando do projeto. São eles: André Garcia, Fernando Hast, Pedro Risse, Rodrigo Schuster,
Tinha Tigre, Mariana Schuster e Tyrrel Spencer.
Professor Juliano, ou Aitana, terminou as filmagens em Nova Santa Rita na sede do jornal De Fato,
quando pediu a divulgação do documentário, pois “sinto-me injustiçada, já recorri à Justiça e quero retor-
nar a lecionar aqui em Nova Santa Rita”.

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Atividade 11
Analisando os discursos sobre a homossexualidade

1. Busque na internet algum sítio dedicado à cura da homossexualidade pela ação das terapias e da psico-
logia. Leia e faça anotações acerca da argumentação ali utilizada para falar de homossexualidade e diversidade.

2. Busque na internet algum sítio de grupo de ativismo gay ou grupo de ativismo de lésbicas. Leia e
faça anotações acerca da argumentação ali utilizada para falar de homossexualidade e diversidade.
3. Busque na internet algum sítio de instituição religiosa, dedicado à cura da homossexualidade ou à
sua condenação enquanto modo de vida. Leia e faça anotações acerca da argumentação ali utilizada para
falar de homossexualidade e diversidade.
36 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

4. Elabore uma reflexão pessoal, em torno de três laudas, contendo suas impressões acerca dos dife-
rentes pontos de vista.

5. Poste sua reflexão no seu diário de bordo e leia as postagens de alguns colegas, verificando se con-
cordam com suas ideias ou não.

O tutor lhe ajudará a encontrar sítios web dedicados a estes temas.

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Atividade 12
Homossexualidade não é doença: algumas resoluções
Ainda persiste, na sociedade brasileira, a ideia de que a homossexualidade é uma doença.

1. Leia as informações abaixo.


Vale lembrar que a Organização Mundial de Saúde (OMS) não aceita que a homossexualidade seja
considerada uma doença e, por isso, em 1990, excluiu-a do Código Internacional de Doenças (CID). Antes
dela, em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria (APA) já havia retirado a homossexualidade de seu
Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais. Da mesma forma, no Brasil, os Conselhos
Federais de Medicina (desde 1985) e de Psicologia (desde 1999) não consideram a homossexualidade
como doença, distúrbio ou perversão. Diz a Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1 de 1999:
Art. 2º Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o pre-
conceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles comportamentos ou
práticas homoeróticas.

2. O que você acha destas decisões? Escreva sua opinião e poste em seu diário de bordo. Leia as opi-
niões dos colegas.

Atividade 13
Construindo estratégias para questões de diversidade e desigualdade em gênero e
sexualidade na sala de aula

1. Conforme argumentamos ao longo do texto, o grande desafio atualmente não está tanto em enten-
der o que é a diversidade, mas está em construir estratégias de trabalho pedagógico em sala de aula para
dar encaminhamento a muitas situações cotidianas. E o desafio maior ainda é construir estratégias de
trabalho que estejam pautadas no referencial dos direitos humanos. Em resumo, estratégias de trabalho
que mostrem claramente aos alunos e alunas que a professora tem uma postura de respeito e tolerância
pela diversidade, e ao mesmo tempo preocupa-se em não produzir situações de desigualdade, e preocupa-
se com a aprendizagem de todos, sem exclusões.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 37

2. Leia a situação escolar descrita abaixo. Ela foi extraída do diário de campo do autor deste material.
Foram retiradas as referências de nome da aluna e da escola, para não permitir identificação. Interessam
aqui as cenas, e não a escola onde ela aconteceu, que poderia ser qualquer uma. Como diz o ditado popu-
lar, interessa aqui o milagre, e não o nome do santo.

3. Escreva um texto de uma lauda acerca da situação, tentando responder as perguntas colocadas
ao final. Busque encontrar saídas para esta situação, de modo honesto, de acordo com seus princípios, e
pensando no que considera ser a saída mais viável e que preserva o respeito à diversidade.

Cena 1
Hoje conversei longamente com a (fulana), nossa aluna do curso de especialização e orientadora
educacional de uma grande escola pública em Porto Alegre. Ela narrou uma cena muito interessante para
debate. Um casal matriculou o filho (um menino) na quarta série da escola, ele veio transferido de outra
escola pública não muito distante. Na conversa inicial com os pais, a orientadora (a minha aluna) pergun-
tou a eles porque o menino estava trocando de escola. A mãe fez uma longa explicação, dizendo que eles
tinham concluído que esta escola era melhor, a outra escola era muito pequena, tratavam o guri como
uma criança, só tinha professora, e seus colegas lá eram em sua maioria meninas, e citou outros fatores.
A orientadora perguntou então o que eles esperavam da nova escola na educação do seu filho. Novamente
a mãe tomou a palavra e começou uma longa fala, dizendo que eles queriam que o guri se integrasse com
mais gente, que ampliasse seu círculo de amizades etc. Subitamente, o pai, que havia estado calado até
aquele momento, interrompeu a longa explicação da mãe, virou-se para a orientadora, e disse de modo
enfático: “o que a gente quer nesta escola é que, até o final do ano, esse guri esteja jogando mais futebol
e desenhando menos borboletas. E a gente conta com a escola para fazer isso. Na outra escola estavam
transformando o guri em uma mulherzinha. Ele tem que aprender a ser homem e largar essas ideias de
desenhar, pintar, fazer coisas com argila, artesanato, tecido. Na outra escola incentivavam isso, e até uma
exposição fizeram com os trabalhos do guri. Aí foi demais, a gente tirou ele de lá.”

Como você acha que a orientadora deve lidar com isso? Que resposta ela teria que dar ao pai e à mãe
do menino? A escola pode assumir este compromisso de fazer o guri “virar homem” como quer o pai? Que
tipo de conversa a orientadora deveria ter com o menino? Que medos estão escondidos por trás das preo-
cupações do pai? Você já teve conhecimento de cenas semelhantes a esta?

Você já teve conhecimento de cenas semelhantes a esta?

Atividade 14
Perguntas envolvendo questões de diversidade e desigualdade em gênero e sexualida-
de na sala de aula

1. Ao longo dos anos, nos trabalhos de assessoria em gênero e sexualidade em escolas públicas, e
observando aulas de estagiários, foram coletadas numerosas perguntas, propostas por alunos, na sala de
aula, ou nos corredores, após as atividades. Algumas perguntas foram coletadas em atividades por escrito,
de forma anônima. Todas elas foram anotadas no diário de campo do autor deste material, e a listagem é
de fato muito mais longa, aqui foram selecionadas algumas.
38 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

2. Leia as perguntas abaixo. Escolha duas ou três, e pense como você responderia.

Qual a diferença entre o ficar de hoje e o namorar do tempo da minha mãe?


Ficar implica transar?
Como podem dois homens ou duas mulheres viverem como um casal?
O que se faz para que na relação sexual o pinto escorregue melhor?
Devo ficar com um menino que gosto, mas que gosta de outra menina?
O que é sexo?
Com que idade um menino pode engravidar uma menina?
Posso deixar passar a mão?
O que é agarrar e ficar?
Por que os meninos ficam se agarrando entre eles na hora de fazer bagunça?
Como responder a pergunta de onde vêm os bebês?
Por que os meninos precisam ser ameaçadores e fortes para se sentirem machos?
Sou obrigado a iniciar minha atividade sexual agora, se não fizer isso vai me trazer alguma doença? Ou
posso esperar? Tem guris que dizem que se a gente não inicia logo, pode ficar brocha.
Por que tenho que namorar se posso ficar com várias mulheres ao mesmo tempo?
Por que numa faixa etária os meninos se separam em grupos das meninas?
Por que a preocupação com a gravidez parte sempre da menina?
Como orientar os meninos quanto à postura de algumas meninas que segundo eles ficam se oferecendo?
Hoje as meninas gostam de fazer sexo anal para não engravidar. Isso é verdade?
É normal o sexo oral?
Como é o sexo oral?
Como se dá o sexo entre duas mulheres?
Nascem pelos na mão de quem se masturba?
Quem é o homossexual, quem recebe ou quem bota?
É verdade que, quando as mulheres começam a ter relação sexual, elas começam a engordar?
Por que os alunos meninos escrevem tantas besteiras nas portas dos banheiros? No banheiro das
gurias não é assim.
Adão e Eva tinham umbigo?
A mulher pode engravidar ao manter relações sexuais menstruada? Dizem que a ejaculação nas per-
nas já engravida a mulher, porque o sangue escorre e se mistura com o esperma.
Como os bebês vão parar dentro da barriga das mães?
Como os bebês saem de lá de dentro?
Os bebês choram dentro da barriga?
O que eles comem lá dentro?
O que é transar?
Menino que brinca de boneca vai ser gay? Mas com o boneco do Falcon ele pode brincar?
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 39

Atividade 15
Nome social, nome de registro

1. O respeito pela diversidade sexual ou de gênero passa às vezes pela atribuição de um nome. Leia
a notícia abaixo, extraída em 14 de fevereiro de 2010 do endereço web http://noticias.uol.com.br/coti-
diano/2010/02/14/travestis-e-transexuais-agora-podem-usar-nome-social-em-escolas-de-fortaleza.jhtm

Travestis e transexuais agora podem usar nome social em escolas de Fortaleza


Kamila Fernandes
Especial para o UOL Notícias 14/02/2010 - 07h30
Em Fortaleza

Travestis e transexuais matriculados nas escolas municipais de Fortaleza ou cadastrados em projetos


sociais do município poderão ser agora oficialmente tratados por seu nome social no lugar daquele que
consta no registro de nascimento. Isso é possível com a publicação de duas portarias, uma da Secretaria
de Educação e outra da Secretaria de Assistência Social.
As escolas municipais que devem concentrar a maior parte dos beneficiados pela portaria são as do
EJA (Educação de Jovens e Adultos), segundo Martír Silva, consultora jurídica da Secretaria de Educação
de Fortaleza. A medida garante que, logo no início das aulas, ao se apresentar, o aluno tenha respeitada
sua vontade de ser chamado pelo nome social, apresentando isso ao professor ou ao diretor da escola, que
fará a anotação em todos os seus documentos.
“Essa é uma medida de acolhida. Afinal, o poder público não tem apenas o dever de dar acesso à es-
cola, mas também de buscar a permanência do aluno e seu desenvolvimento. E o nome, muitas vezes, tem
sido um empecilho para isso”, disse Silva. Também já existe um projeto de lei complementar na Câmara
Municipal que prevê estender o benefício para outras repartições públicas do município.
A Prefeitura de Fortaleza não sabe ao certo qual será o alcance da medida já que as matrículas ainda
estão acontecendo nas escolas. Para Dediane Souza, diretora do grupo de Resistência Asa Branca (Grab),
movimento de luta pelos direitos dos homossexuais, as portarias não devem favorecer a grande maioria
dos estudantes travestis e transexuais da capital cearense, já que grande parte deles estuda nas escolas
de ensino médio administradas pelo Estado, que ainda não adotou a medida. Ainda assim, para ela, que
também é travesti, esse é um bom começo.
“Essa questão do nome social é uma das principais bandeiras do nosso movimento e agora esperamos
que outros entes públicos tomem a mesma medida como forma de possibilitar que o sujeito travestido
também seja reconhecido como um sujeito social, um indivíduo, tenha uma identidade que não o constran-
ja, e não só no ambiente escolar”, afirmou Souza.
Segundo Mártir, a portaria é destinada apenas às pessoas que já estejam aptas para praticar seus
atos civis e demonstrem vontade de ser chamadas por outro nome. “Certamente, em casos de menores
de idade que demonstrem essa vontade, a orientação é que o diretor da escola faça um acompanhamento
com a família para que se adote a decisão de melhor bom senso, sempre no sentido de acolher e respeitar.”
No caso da Secretaria de Assistência Social, o nome social será anexado ao cadastro daqueles que são
atendidos por programas sociais ou cursos.
Souza lembra que já existe uma iniciativa nacional semelhante. A deputada federal Cida Diogo (PT-
RJ) propôs acrescentar no registro civil de travestis, ao lado do nome original, o nome social. O projeto,
apresentado em 2008, ainda tramita na Câmara dos Deputados.
40 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

Possíveis conflitos
Luma Andrade, doutoranda em educação pela UFC (Universidade Federal do
Ceará) e coordenadora do Crede (Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação) da cida-
de de Russas (a 165 km de Fortaleza) é responsável por 28 escolas em 13 municípios. Ela concorda que,
quando há um descompasso entre o nome e o corpo de estudantes travestis e transexuais, acaba por se
reforçar um intenso conflito interno que, na maioria das vezes, leva o jovem a deixar a escola. Porém, na
opinião dela, que também é travesti, a medida não soluciona o problema.
“Quando você está na escola e o professor o chama pelo nome de registro, vira chacota, brincadeira,
uma situação que eu já vivi e que todos os travestis vivem. Mas, ao mesmo tempo, impor o nome social
pode até criar uma impressão de que os preconceitos acabaram, mas só dentro da escola. Do lado de
fora, isso pode gerar ainda mais conflitos, represálias. É algo muito perigoso”, disse. “Imagina para um
professor homofóbico chamar um estudante travesti pelo nome feminino. Deve haver antes uma formação
para tratar as questões de gênero com os professores, e isso não tem acontecido.”
Luma iniciou um trabalho de conscientização com os diretores das escolas que coordena, mas ainda
encontra obstáculos. “Essa semana mesmo ouvi de um diretor que ele é preconceituoso mesmo. Há quase
um fundamentalismo religioso em várias escolas, o que cria no ambiente escolar, que deveria ser agradável
para todos, algo insuportável para as diferenças. Deve-se buscar também outra forma de avaliar esses
gestores, pois é inconcebível que ainda exista discriminação dessa forma em pleno século 21.”

2. Análise as argumentações levantadas acima e elabore um texto, de uma lauda, com sua posição
pessoal acerca do tema, de forma argumentada.

3. Leia os textos postados pelos colegas.

1.5 Desenvolvendo uma posição pessoal e profissional frente


às questões de diversidade e desigualdade em gênero e sexualidade
no ambiente escolar

O objetivo final deste Módulo é auxiliar cada professor e cada professora a desenvolver uma posição po-
lítica pessoal (original e particular) e profissional (portanto, uma posição que tenha consistência pedagógica)
frente aos temas da diversidade sexual e de gênero no ambiente escolar. A construção dessa posição pes-
soal significa colocar em diálogo a área dos conhecimentos sobre gênero, sexualidade e direitos humanos
(o que foi feito em parte e será concluído em um Módulo mais adiante) e a área dos saberes e valores que
orientam a vida particular e social de cada um (nossas crenças, valores familiares, ideologias políticas, dentre
outros conjuntos morais e éticos).

A construção da posição profissional deve levar em conta as crenças pedagógicas e a experiência docen-
te, bem como a legislação educacional sobre o tema, e as formulações de algumas correntes pedagógicas e
dos direitos humanos. As questões abordadas nos tópicos anteriores auxiliam nesta tarefa, e em muitas das
atividades já solicitamos que fossem explicitadas posições pessoais frente aos temas. Gostaríamos ainda de
relacionar mais alguns elementos para estudo, e depois encaminhamos um conjunto de proposições para
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 41

auxiliar na construção desta posição política pessoal e profissional. Em módulo mais adiante, quando forem
estudadas questões relativas aos direitos humanos, novamente submeteremos esta posição aqui construída
a outras indagações, e ela poderá ser reformulada, ou não, a partir do que for discutido.

Uma vez tratada a questão nesse nível individual (individual pessoal e individual profissional docente), listamos
algumas iniciativas que podem ajudar a escola a inserir estes temas em seu programa de trabalho e nos seus
documentos pedagógicos. Em outras palavras, a mesma tarefa de construir uma posição pessoal será feita com
a escola, no sentido de construir a posição desta instituição, que pode ser diferente de uma para outra escola, a
depender de vários fatores, e atendendo aos documentos que já existem sobre o tema na área da educação e dos
direitos humanos. Gostaríamos então que você, em sua escola, liderasse um processo de discussão dos temas
da diversidade e da desigualdade, visando construir um documento de referência sobre o tema, para nortear as
ações na escola. Mas talvez você lecione em uma escola onde já existem documentos ou atividades em anda-
mento que privilegiem a expressão da diversidade e da necessidade de combate à desigualdade. Sendo assim,
esperemos que os estudos e leituras aqui feitos colaborem para o aperfeiçoamento deste trabalho.
Partimos de uma afirmação bastante comum: “não deve haver distinção entre as pessoas por con-
ta de gênero”. Ou seja, ser homem ou ser mulher não deve implicar uma distinção que prejudique
algum dos dois. Da mesma forma afirma-se: “não deve haver distinção entre as pessoas por conta de
sua orientação sexual”. Estamos assumindo que a manifestação da preferência sexual não deve causar
situação de prejuízo para quem a manifesta. Para que isso se efetive, o primeiro passo é reconhecer
que temos na sala de aula, e na escola, entre professores e alunos, uma diversidade de modos de
pertencimento de gênero e uma diversidade de modos de orientação sexual. A escolha majoritária
em termos de gênero é que os indivíduos nascidos biologicamente machos se inclinam a ser homens
heterossexuais; e aqueles indivíduos nascidos biologicamente fêmeas se inclinam a ser mulheres hete-
rossexuais. Mesmo assim, isso comporta enormes diferenças. Há muitos estilos de masculinidade na
sala de aula, e há muitos estilos de feminilidades também.
A violência é um atributo importante na construção da masculinidade de muitos meninos, mas não de
todos. Meninas mostram por vezes atitudes que denominaríamos de “masculinas”, mas que lhes rendem
bom desempenho escolar: manifestam-se interessadas em aula, são boas alunas em matemática e outras
ciências “duras”, tornam-se líderes de turma, organizam eventos na escola. Já outros meninos são tímidos,
falam em voz baixa, vão mal em matemática, apresentando comportamentos que denominaríamos de “fe-
mininos”. Do ponto de vista da relação afetiva e sexual entre meninos e meninas, temos todos os modos
de ser: meninos e meninas que namoram pouco; outros que namoram muito; arranjos de namoro com
muita fidelidade e permanência; amizades coloridas de muitos tipos, enfim, numa mesma sala de aula temos
trajetórias afetivas e sexuais bem diversas.
O primeiro passo é este, reconhecer que alunos e alunas (e professores e professoras) têm experiências
afetivas e sexuais bastante diversas. O segundo passo é reconhecer que algumas modalidades de identidade
de gênero e de identidade sexual são tidas como positivas, e outras como negativas. Alguns são estimulados
a serem como são, enquanto outros são reprimidos. Podemos exemplificar lembrando que claramente há
professores homens nas escolas (por exemplo, alguns da disciplina de educação física) que estimulam os
meninos a serem violentos, reiterando que violência combina com masculinidade, e que não é possível ser
homem de verdade sem ser violento com outros homens e dominador com as mulheres. E há professoras
mulheres (por exemplo, algumas professoras que lecionam a disciplina de ensino religioso) que desenvol-
vem uma argumentação demonstrando que é natural que a mulher seja obediente ao homem.
Destes primeiros dois passos (reconhecer que há uma diversidade de posições de gênero e sexualidade
na sala de aula e que elas não desfrutam todas da mesma valorização social) decorre nossa primeira atividade
reflexiva no sentido de auxiliar você a construir uma posição sobre o tema.
42 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

Atividade 16
Observar, compreender, emitir um juízo de valor

1. Descreva, em até duas laudas, os diferentes modos de vivenciar os pertencimentos de gênero e


sexualidade que você observa nas turmas de alunos e alunas que você leciona. Podemos chamar isso
também de diferentes estilos de viver a masculinidade e a feminilidade. Se não estiver lecionando, pense
em turmas que já passaram por você. Se nunca exerceu a docência, pense em sua vivência como aluno.
Descreva “tipos” de pessoas, seus modos de ser e estar na sala de aula, seus traços característicos e a
valorização (ou desvalorização) social que atingia estes indivíduos.

2. Pense com sinceridade no que escreveu acima e tome algumas notas acerca de seus juízos de valor
em relação a estes diversos modos de viver gênero e sexualidade. Você concorda com todas estas formas?
Todas lhe parecem “corretas”? Você sente nojo de alguns destes indivíduos?

3. Há outros professores e professoras em sua escola que são mais acolhedores ou dispostos a dialogar
com os alunos e alunas “diferentes” do ponto de vista do gênero ou da sexualidade do que você? Há outros
professores e professoras em sua escola que são menos acolhedores ou dispostos a dialogar com os alunos
e alunas “diferentes” do ponto de vista do gênero ou da sexualidade do que você? Enfim, observando seus
colegas de trabalho, você se considera mais “aberto” ou mais “fechado” a esta diversidade de gênero e
de sexualidade?

4. Guarde estas anotações para você, não há necessidade de postar nada para leitura dos colegas.

Realizada a atividade, demos já o terceiro passo: reconhecer nossas convicções e juízos em relação a
esta diversidade presente na sala de aula, e saber se elas coincidem com aquelas percepções da maioria
(com as valorizações sociais hegemônicas), ou se delas se afastam. Passemos agora a um quarto passo. Antes
disso, vamos agregar algumas informações. Em nossa sociedade tem muita força uma máxima: a ideia de
que todos são livres e iguais. Enfatiza-se, em especial na mídia, a noção de que nós todos temos autonomia
suficiente para ir atrás de nossos sonhos, e que nós todos podemos alcançar o que queremos, pois vivemos
numa sociedade em que somos livres e iguais. Esta máxima pode ser vista como uma noção essencialista da
igualdade, e em nossa sociedade seguramente se fala mais da igualdade do que em sociedades do passado,
a igualdade converteu-se num valor importante, o que é algo muito bom, embora possa trazer armadilhas
em certas articulações.
Uma importante proposição a este respeito vem da Revolução Francesa: “Todas as pessoas nascem livres
e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras
com espírito de fraternidade”. Entretanto, o que observamos é que em realidade as pessoas não nascem
livres e nem iguais. Será talvez graças ao nosso trabalho que poderemos chegar nesta situação proposta pela
Revolução Francesa: que todos nasçam livres e iguais, e que reine o espírito da fraternidade. Este tema será
aprofundado com maior rigor no módulo dedicado aos direitos humanos. Por ora, nos basta esta constatação.
Agregamos ainda uma informação. Em nossa sociedade, os processos de exclusão revelam a ideia de
que há também um essencialismo da diferença, ou seja, operamos com uma noção de normalidade, e
tudo que dela se afasta deve ser excluído. No caso das identidades de gênero e de sexualidade, os “des-
vios” serão considerados como doença física, doença psicológica, pecado, má educação, “sem-vergonhice”,
falta de caráter, fraqueza pessoal, degeneração, dentre outras denominações negativas. Poucas vezes nos
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 43

perguntamos sobre como foi estabelecida a regra (no caso, a regra da heterossexualidade), e poucas vezes
admitimos que outras pessoas possam viver felizes de modo diferente do nosso, ou diferente da maioria.
Também poucas vezes nos perguntamos se já não houve períodos históricos, e outras culturas, em que as
coisas se passaram de outra forma. Em nossa própria cultura ocidental, há diferentes graus de aceitação da
diversidade de gênero e sexual. Enquanto educadores nossa atitude deve evitar dois extremos. O primeiro
deles é o de negar as diferenças, buscando homogeneizar pessoas e comportamentos. Por vezes fazemos
isto, animados das melhores intenções: queremos que os meninos respeitem a um menino mais delicado,
e dizemos simplesmente “ele é igual a vocês”. Mas com isso descaracterizamos essa diferença, deixamos
de mostrar a relação de poder que existe e não educamos para o convívio com a diversidade, que exige
necessariamente negociação de poderes.
O segundo extremo a ser evitado é aquele de absolutizar a diferença, transformando o outro em alguém
que passa a ser julgado unicamente pelo seu traço “diferente”, tudo o que ele faz é decorrência deste atributo
identitário. Já vivemos muitos anos em que isto foi feito com a população negra no Brasil, deixando como
marca a constante frase “isso é coisa de negro”, e reduzindo o outro unicamente ao seu pertencimento racial,
que é visto como sinônimo de atributos unicamente negativos, em oposição binária ao pertencimento à raça
branca, em que todos os atributos são positivos. Ocorre algo muito semelhante com as identidades de gênero,
e não faltariam exemplos de frases do tipo “isso é coisa de mulher” ou “isso é coisa de homem”. E já sabemos
que existe aí uma hierarquia, pois a frase “isso é coisa de mulher” lembra sempre uma ação mal feita, atrapalha-
da; enquanto a frase “isso é coisa de homem” traz valores como bravura, valentia, hombridade. Nosso maior
problema hoje em dia não é com a exclusão completa, total. Nosso problema é com a inclusão subordinada,
algo do tipo: você será incluído, mas vai ficar numa posição subordinada aos demais, que no fundo são me-
lhores do que você. Isso na escola se revela pelas barreiras ao pleno aprendizado, que em geral atingem os
alunos e alunas marcados por uma diferença que se considera “indesejável” frente ao que temos na cabeça
como “normal”. Por exemplo, ser um garoto afeminado, ser uma travesti jovem, ser uma menina com jeitos
de menino. Todas estas posições de gênero e sexualidade podem gerar barreiras ao aprendizado, tais como:
sofrer hostilidades da turma de colegas; ser hostilizado por professores e professoras que não aceitam aquele
tipo de comportamento; sofrer humilhações nas aulas e corredores.
Tendo isso presente, verifica-se, conforme discutido em vários momentos da obra do sociólogo por-
tuguês Boaventura Sousa Santos, que uma das tarefas mais difíceis em sala de aula, como em qualquer
outro local, é aquela de articular políticas de igualdade e políticas de identidade. Em outras palavras, realizar
atividades e construir regras de convívio que levem em conta dois elementos cruciais: a manifestação da
diversidade das diferenças (algo como é feito pelas políticas de identidade e pelas ações do multiculturalismo)
e a busca da igualdade (que ninguém seja prejudicado por conta de sua diferença). É também de Boaventura
Sousa Santos a afirmação: “temos o direito de ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o di-
reito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”. Os desafios são enormes, mas as alegrias
de ter obtido vitórias certamente são compensadoras. Encerramos este tópico do Módulo III convidando
você a trocar ideias com seus colegas, no espaço virtual, acerca dos desafios e alegrias em trabalhar na ótica
do respeito à diferença e combate à desigualdade em temas de gênero e sexualidade no ambiente escolar.
Unidade 2
Povos indígenas e educação

Povos indígenas: assim também são denominadas as sociedades que viviam na América, que na época
da “descoberta”, ou seja, da chegada dos europeus para ocupar e colonizar suas terras, foram chamados
genericamente de “índios”. Isso na virada do século XV para o XVI, por um equívoco geográfico, segundo a
historiografia, quando se acreditava que os europeus estariam chegando às Índias e não ao novo continente,
que recebeu o nome em menção ao navegador Américo Vespúcio.
No Brasil, os povos originários, perfazem hoje aproximadamente 240 etnias, com modos de vida es-
pecíficos e diferenciados e denominações próprias: Kaingang, Guarani, Charrua, Xavante, Bororo, Xikrin,
Yanomami, Xetá, Zo’e, entre outros. São povos que configuram uma preciosa diversidade étnico-cultural.
Mesmo diante de todas as investidas colonizadoras que forçaram a integração à sociedade nacional ou mes-
mo diante da violenta destruição física e cultural a que foram submetidos, perduram hoje no Brasil aproxi-
madamente 180 línguas indígenas diferentes.
Nesta primeira unidade do terceiro módulo
do curso Educação para a Diversidade, vamos re-
alizar algumas reflexões sobre a história e a atu-
alidade destes povos, nossos contemporâneos.
Apresentaremos elementos para a compreensão
da cultura que diferenciam algumas destas etnias,
todas envolvidas na dinâmica cultural comum às
sociedades humanas, modificando-se ao longo do
tempo, porém, mantendo-se com a denomina-
ção comum de “povos indígenas”.

2.1 A questão do “outro”

Conhecemos o mundo e tudo o que nele está


presente através do que experimentamos material e
imaterialmente. O filósofo e linguista búlgaro Tzvetan
Todorov remete-nos a esta situação quando relata, sob
o seu ponto de vista crítico, o descobrimento da Amé-
rica (Todorov, 1993). Na ocasião, ocorreu não somen- O registro do ritual Kuarup na Aldeia Yawalapiti (2008). Fonte: Fundação Na-
te a descoberta de um continente, mas de novas etnias cional do Índio. http://www.funai.gov.br/ultimas/noticias/2_semestre_2008/
julho/imagens/Kuarup/Kuarup_Mario_Vilela_Funai3.jpg
que nele habitavam há muitos anos. Há um tempo tão A representação pictórica do descobrimento do Brasil representada por
antigo quanto aqueles que remetem às demais e co- Cândido Portinari, em 1956. Fonte: Banco Central do Brasil. http://static.
blogstorage.hi-pi.com/photos/pre-vestibular.arteblog.com.br/images/
nhecidas civilizações ocidentais da história. mn/1202343004/IRACEMA-J-de-Alencar-Parte-1-Cap-I-ao-X.jpg
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 45

A descoberta não caracterizou o início da história de um povo, uma vez que ele sempre existiu e possuía
uma trajetória social própria e peculiar. O estranhamento cultural, no entanto, foi uma das características
mais fortes deste encontro, opondo por longos anos os conceitos de sociedades civilizadas e selvagens. A
partir do mundo que o europeu conhecia à época, construiu a representação da imagem dos primeiros
povos americanos. Tratou-se, portanto, de uma descrição do “eu” sobre o “outro”.
Podemos trazer esta experiência histórica para a nossa realidade contemporânea, através da forma
como concebemos a presença deste “outro” na sociedade. Nas palavras de Tzvetan Todorov:

Posso conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração
psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a “mim”. Ou
então como um grupo social concreto ao qual “nós” não pertencemos. Este grupo,
por sua vez, pode estar contido numa sociedade: as mulheres para os homens, os
ricos para os pobres, os loucos para os “normais”. (...) Seres que em tudo se aproxi-
mam de nós, no plano cultural, moral e histórico, ou desconhecidos, cujas línguas e
costumes não compreendo. Tão estrangeiros que chego a hesitar em reconhecer que
pertencemos a uma mesma espécie. (TODOROV, 1993, p. 03)

É comum nas metrópoles contemporâneas, por vezes, desconhecermos aqueles que estão mais pró-
ximos de nós, morando no apartamento acima ou simplesmente na casa situada do outro lado da rua.
Percebemos o mundo a partir do que “nós” acreditamos ser e a partir daquilo que conhecemos ou simples-
mente do que ignoramos a existência. Se invertermos a lógica do descobrimento da América, consolidada
historicamente, poderemos falar também em descobrimento da Europa, desde a perspectiva dos povos
americanos, que desconheciam, em tese, os costumes e interesses europeus.
Apesar de não sermos europeus e estarmos
séculos distantes dos anos de 1492 ou 1500,
reproduzimos ainda, em determinado grau, um
modelo de sociabilidade existente ainda no início
da Idade Moderna. Talvez porque seja algo tão
imbricado na nossa cultura que nem percebemos
os seus efeitos, decorrentes sensivelmente da for-
ma a concretizamos em nosso cotidiano. É como
passar por um mesmo lugar tantas repetidas ve-
zes que não mais percebemos os detalhes e as
belezas da paisagem. Ficamos, então, unidos sob Em visita que realizou ao Brasil em 2009, o príncipe britânico foi
recepcionado pelo líder da etnia indígena dos Caiapó. Fonte: Estadão,
uma mesma prerrogativa de federação, constituí- 12/03/2009. http://www.estadao.com.br/camila_parker_indio.jpg
da por vários “eu” e vários “outros”.
No que condiz à nossa posição social, não somos simplesmente professores. Estamos caracterizados
por diferentes aspectos que nos diferenciam em gênero, idade, titulação acadêmica, estado civil, residên-
cia, filhos, experiências profissionais, e uma listagem interminável que difere um “eu” dos demais “outros”.
Reunimo-nos em nossa diversidade sob o pressuposto de que somos professores, mas nem por isso somos
todos iguais. Você não concorda com estas afirmações?
Agora, dentro da proposta deste curso, vamos pensar estas questões de diversidade dentro de
nossa temática. Os povos americanos, que foram convencionalmente denominados como índios, tam-
bém possuem diversidades culturais e étnicas que caracterizam a sua alteridade. Não são uma massa
homogênea de pessoas que pensam da mesma forma e agem da mesma maneira. Vamos conhecer um
pouco mais – entre um mundo que há para conhecermos – sobre este “outro” que está tão próximo
de nós, porém sabemos interpretá-lo.
46 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

2.2 Passado dos povos e não povos do passado

Antes de começarmos a falar sobre a história


que nos aproxima dos povos indígenas, cabe uma
proposição singular. Precisamos ter em mente de
que falamos sobre o passado destes povos que ha-
bitaram o continente ao longo de muitos anos, e
que eles ainda estão presentes, em maior ou menor
quantidade, em todo o território americano. Os po-
vos indígenas não são, portanto, sociedades especí-
ficas do passado, mas são também nossos contem-
porâneos, seja nas cidades ou no campo, buscando
a preservação de sua cultura e, em determinados
casos, valendo-se de novos costumes.
Nossa historiografia alimentou durante muito Tradição e contemporaneidade indígena estão presentes em nosso
cotidiano. Fonte: Serviço Social do Comércio de São Paulo e Ministério da
tempo uma imaginação errônea e generalizada de Cultura. http://www.congressoiberoamericano.com.br/almanaque/imgs/
que muitos anos antes da chegada dos europeus bgspontos/ffccd-bg_indios_online.jpg

ao continente americano havia um território vazio,


inabitado. Esta tese caiu por terra depois das inúmeras descobertas arqueológicas, que comprovaram a
existência de povos no continente americano há dezenas de milhares de anos. O indígena Davi Kopenawa,
yanomani aldeado no estado do Amazonas, fez um interessante relato sobre a presença de povos nativos
no continente antes do século XVI.

Nós, os habitantes da floresta, habitamos aqui há longuíssimo tempo, desde que Oma-
na nos criou. No começo das coisas, aqui só havia habitantes da floresta, seres huma-
nos. Os brancos clamam hoje: “Nós descobrimos a terra do Brasil!”. Isso não passa de
uma mentira. Ela existe desde sempre e Omana nos criou com ela. Nossos ancestrais
a conheciam desde sempre. Ela não foi descoberta pelos brancos! Muitos outros po-
vos, como os Makuxi, os Wapixana, os Waiwai, os Waimiri-Atroari, os Xavante, os
Kayapó e os Guarani ali viviam também. Mas apesar disso, os brancos continuam a
mentir para si mesmos pensando que descobriram esta terra, como se ela estivesse
vazia! (YANOMANI e ALBERT in NOVAES, 1999, p. 18)

Geralmente, aprendemos – senão reproduzimos – nos bancos escolares a ideia que os povos nativos
americanos surgiram somente a partir do momento da presença dos primeiros europeus no continente.
Esta falsa impressão se consolidou durante a trajetória da própria formação do conhecimento histórico, nos
relatos dos viajantes, na supervalorização da linguagem escrita à linguagem falada, nas reapropriações polí-
ticas de identidades nacionais feitas no decorrer dos séculos, que afirmaram uma representação mais que
subjetiva das nações indígenas.

Com base na formação acumulativa de conhecimento e na sobreposição de uma à outra cultura, ve-
remos juntos, de forma breve, alguns momentos da construção deste saber sobre os povos indígenas em
pelo menos três aspectos: nos discursos criados ao longo da história, na criação do mito do pejorativamente
chamado “bom selvagem” e nas criações engendradas pelo cânone literário. Vale sempre lembrar que a
pesquisa sobre a construção das representações sobre os indígenas no Brasil rendem extensos e exaustivos
trabalhos acadêmicos e que, antes de tudo, ainda há muito para ser estudado.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 47

2.3 Os discursos da história

A questão indígena, como você já deve ter


percebido, confunde-se com a própria história de
nosso país. Mas os relatos sobre a presença dos
nativos americanos no continente foram predo-
minantemente escritos pelos europeus, uma vez
que a cultura indígena estava baseada na tradição
oral. Apesar disso, há muitos registros da arte dos
nativos americanos em produtos de cerâmica ar-
tesanal e nas pinturas rupestres, encontradas pelo
Pinturas rupestres indígenas encontradas em sítio arqueológico localizado
no estado do Mato Grosso do Sul. Fonte: Museu de História do Pantanal. trabalho de sítios arqueológicos espalhados por
http://muhpan.files.wordpress.com/2007/12/04-rupestre-9.jpg
várias regiões do país.
No entanto, apesar de povoarem o continente há milhares de anos, a presença dos nativos americanos
foi intensamente difundida depois das primeiras expedições oficiais dos séculos XV e XVI. Assim, a descrição
que nos foi herdada sobre os povos nativos americanos partiu da perspectiva do ponto de vista europeu.
As descrições sobre a terra e os povos que nela habitavam tinham como referência a experiência de mun-
do adquirida na Europa. O nativo americano, ou simplesmente o índio, com foi comumente chamado, foi
caracterizado pelo exotismo que o diferenciava de uma cultura dita civilizada.

No caso brasileiro, o primeiro documento oficial que marcou este encontro, considerado pela his-
toriografia ocidental, foi a carta de Pero Vaz de Caminha, atenuando as diferenças culturais entre os dois
continentes. Em cada documento escrito, os historiadores consideraram as possibilidades de circunstâncias
contextuais de quem o escreveu. No caso das primeiras navegações portuguesas, o projeto de colonização
ainda não estava claro, o que caracterizou, em certa medida, os primeiros contatos interculturais como
amistosos. Esta relação foi escrita pelo europeu da seguinte forma:

E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante os outros, sem
se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio
Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer.
E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, to-
mando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som
da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto
real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo os
segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e
foram-se para cima. (CAMINHA, on line, acessado em 22/01/2010)

Apesar das relações de contatos terem forte proximidade física, o autor do documento deixa bem claro
o seu distanciamento quanto à cultura do “outro”. Realiza inclusive uma comparação grosseira dos nativos
americanos com animais. Com os interesses político-econômicos dos estados absolutistas europeus em
primeiro plano, dado o desenvolvimento e expansão das práticas mercantilistas na Europa, a timidez dos
primeiros contatos foi substituída por uma relação de imposição marcada por intensa violência.
As primeiras impressões edênicas (de éden) sobre os ativos foram gradativamente desaparecendo me-
diante o confronto que impunha a usurpação da terra e a imposição dos nativos a trabalhos forçados de
extração vegetal e, quando possível, mineral. A antropofagia foi divulgada como uma prática demoníaca que
deveria ser exterminada, sendo a conversão ao catolicismo a solução para a salvação dos habitantes que
estavam no continente americano.
48 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

As diferenças étnicas entre os índios, caracteri-


zadas por sua multiplicidade ao longo do território,
foram consideradas pelos europeus apenas para
o estabelecimento de alianças visando ao emba-
te físico, algo que foi astuciosamente aproveitado
para defender os interesses daqueles que vinham
de solo além-mar. As variações dos discursos que
foram construídos sobre os povos indígenas brasi-
leiros oscilavam conforme o seu autor. Poderiam
ser eles franceses, como os relatos decorrentes
da invasão desses no Rio de Janeiro, entre 1555 e
1567, ou religiosos em missão catequética, como A idealização europeia da conversão das diversas etnias indígenas ao
catolicismo foi representada na obra de Victor Meirelles, realizada em
os discursos produzidos, também no século XVI, 1860. Fonte: Museu Nacional de Belas Artes. http://www.moderna.com.
br/moderna/didaticos/ei/aventuradeaprender/datas/images/indio1.jpg
pelo padre espanhol José de Anchieta.

Já no século XIX, as missões artísticas estrangeiras contribuíram para a construção desta formação
do olhar eurocêntrico sobre o “outro”, caracterizando uma representação distanciada do índio brasi-
leiro. Além do recurso verbal, o poder da imagem contribui significativamente para a construção desse
discurso. Tiveram grande valorização, presente até os dias de hoje em nossa iconosfera – conjunto de
imagens recorrentes em nosso cotidiano –, as missões artísticas francesas. Dentre os artistas de maior
destaque, está o pintor Jean Baptiste Debret, que criou imagens do exotismo e da submissão indígena
diante do homem branco.

Perceba que ao longo dos anos, o discurso


predominante sobre os povos indígenas foi aquele
baseado nos moldes da perspectiva europeia. Con-
solidou-se a visão de um índio genérico, sem uma
distinção séria de sua diversidade étnica e linguística,
da importância de seus papéis sociais e da dignidade
que se buscava através dos muitos movimentos de
luta e resistência visando à preservação da cultura
contra a dominação.
Durante o período imperial brasileiro, no
século XIX, vale ainda lembrar a má contribui-
ção de José Bonifácio para a construção de uma
O pintor francês Jean Baptiste Debret criou a reprodução da submissão imagem do índio integrada ao contexto nacional.
indígena em quadro que datou as primeiras décadas do século XIX. Fon-
te: Museu de Arte de São Paulo. http://upload.wikimedia.org/wikipedia/ A incitação de Bonifácio baseou-se na prevalên-
commons/1/15/Jean_baptiste_debret_-_ca%C3%A7ador_escravos.jpg
cia da chamada civilidade branca sobre os povos
indígenas. Constatava-se ainda a necessidade de
catequizar e aldear o “outro” para que este pudesse se integrar à sociedade, visando à construção de
elementos que originassem um sentimento comum e de unidade à nação.

Nosso patriarca da independência, como ficou conhecido José Bonifácio, escreveu em 1823 uma
obra discriminatória, que ao pensamento da época julgava coerente, denominada “Apontamentos para a
civilização dos índios bravos do Império do Brasil”, na qual, entre outras reflexões que não consideravam
minimamente a preservação da diversidade cultural brasileira, escreveu:
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 49

Provém primeiro de serem os índios povos vagabundos e dados a contínuas guerras


e roubos; segundo de não terem algum freio religioso e civil que coíba e dirija suas
paixões, donde nasce ser-lhes insuportável rejeitarem-se às leis e costumes regulares;
terceiro de serem entregues à preguiça fogem dos trabalhos aturados e diários de ca-
var, plantar e mondar as sementeiras, que pelo nimio viço da terra se cobrem logo de
mato e de ervas ruins; quarto porque temem, largando sua vida conhecida e habitual
de caçadores, sofrer fomes faltando-lhes alimento à sua gula desregrada. (BONIFÁ-
CIO, José, on line, acessado em 22/01/2010)

O projeto dito civilizatório que impunha novos valores culturais aos povos indígenas adentrou-se com o
início da República no Brasil e o decorrer do século XX. Com o apoio financeiro dos Estados Unidos, realizou-
se em 1913, em parte da Bacia Amazônica, a expedição científica Rondon-Roosevelt, que tinha por intenção
realizar um levantamento étnico, botânico e zoológico da região. A expedição que contou com a participação
do Marechal Cândido Rondon influenciou muitas outras nos anos seguintes, marcando, no que diz respeito
aos povos indígenas, a aplicação dos primeiros métodos antropológicos no país, a serviço do Estado. Como se
pode perceber,foram muitos os subsídios que construíram um discurso sobre os povos indígenas ao longo da
história, que se consolidaram como integrantes indissociáveis da memória brasileira. No entanto, um discurso
próprio e efetivo, representativo das muitas socieda-
des indígenas, foi praticamente ignorado no decorrer
dos anos. Um discurso oficial se criou em relação aos
povos indígenas, sem que a eles próprios fosse dada
a autonomia e a aceitação de tomar o curso de sua
própria história.
No entanto, as conquistas oriundas da aceitação
de muitas diversidades culturais no Brasil, concre-
tizadas especialmente no plano legislativo, buscam
corrigir estas falhas consolidadas no discurso da nos-
sa história. Mas vamos continuar adentro neste uni-
verso de representações? Cabe ainda vermos mais
algumas apropriações sobre a identidade os povos
Na fotografia do início da década de 1940, os índios da etnia Kuikuro
receberam roupas da expedição Roncador-Xingu, iniciativa do governo indígenas brasileiros que foram criadas, por exem-
brasileiro visando à efetiva ocupação das regiões centrais do país. Fonte: plo, nos campos do pensamento filosófico, literário,
Museu do Índio. http://img.socioambiental.org/d/216493-1/kuikuro_2.jpg
musical e cinematográfico.

2.4 O mito do “bom selvagem”

Antes de conhecermos algumas das visões criadas sobre o índio na literatura nacional, vamos lembrar,
de forma breve, um pouco sobre a criação do denominado mito do “bom selvagem”, atestando aos povos
indígenas uma determinada passividade no que concerne a sua relação de resistência cultural. Retornando
ao início da Idade Moderna, encontraremos alguns autores que defendiam uma visão edênica e pacificadora
dos nativos americanos.
O frei dominicano Bartolomé de las Casas, por exemplo, denunciava no início do século XVI as atroci-
dades cometidas pelos conquistadores espanhóis contra os povos indígenas nas regiões da América Central
e México. Defendia o religioso que Deus havia criado todas as espécies desprovidas de malícia, muito
obedientes, sem ira, ódio ou desejos de vingança. Desta forma, condenava-se a imposição agressiva de
espanhóis contra os nativos americanos, mas por outro se defendia uma quase infantilidade indígena, assim
como sua predisposição para a conversão ao cristianismo.
50 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

O escritor francês Michel de Montaigne também contribuiu, no final do século XVI, para com a literatura
que caracterizava, dessa mesma forma, os povos indígenas. Utilizava, por sua vez, um tom discursivo irônico
para criticar a sociedade contemporânea à sua época. Podemos considerar que não defendia propriamente
a diversidade, mas se valia dela para fins outros.

É Montaigne quem, apreciando os chamados canibais, num dos seus ensaios mais
cheios de malícia, põe em destaque as qualidades do índio, louvando sempre o “bom
selvagem”, que não se entregava às guerras de conquista, que se caracterizava pela
ausência de bens pessoais, que se conduzia sempre com bravura, criatura assim plena
de virtudes, numa sociedade também digna de elogios a que os civilizados deviam
invejar. (SODRÉ, 1964, pp. 261-262)

Sob a égide iluminista do século XVIII, o filosofo


francês Jean Jacques Rousseau também contribui em
parte com a tese do “bom selvagem”, uma vez que
defendia a existência de um estado de consciência sel-
vagem, no qual os homens não distinguiam o bem do
mal. Caracterizava, em linhas gerais, um indivíduo afas-
tado do regramento dito civilizado pela sua inocência,
cujas ações eram regidas pelos seus instintos naturais.
Também complementavam o pensamento de Rousse-
au os filósofos iluministas franceses, seus conterrâneos,
A defesa de Bartolomé de las Casas aos indígenas, difundida ao longo dos Denis Diderot e Charles de Montesquieu.
anos, esteve condicionada a submissão destes a ideologia católica. Fonte:
Museu do Senado dos Estados Unidos. http://www.learnnc.org/lp/media/ Nessa tipologia social, portanto, que se encon-
uploads/2007/08/de_las_casas.jpg e http://resistir.info/varios/imagens/
bartolome_de_las_casas.jpg
travam os povos indígenas. As influências do pen-
samento filosófico europeu transpuseram-se para o
campo da criação literária. Em busca de uma identi-
dade literária nacional, alguns autores brasileiros, especialmente os românticos e os modernistas, absorve-
ram o pensamento eurocêntrico para buscar as representações, sob a forma da criação em nas letras, para
caracterizar um estereótipo que, por sua vez, sobrepunha a diversidade étnica indígena.

2.5 Arquétipos da literatura, do cinema e da música

Poderíamos falar das muitas representações que foram criadas para os povos indígenas na literatura
canônica brasileira, mas vamos no deter em apenas alguns autores e obras. A maior referência na poesia
romântica representativa da literatura indigenista nacional foi aquela produzida por Gonçalves Dias, durante
o século XIX. Entre a independência colonial e a proclamação republicana, o índio genérico tornou-se um
dos principais expoentes de identificação da cultura nacional. Observe o seguinte trecho extraído da épica
poética de I – Juca Pirama, uma das mais conhecidas obras do autor.

Era ele, o Tupi; nem fora justo


Que a fama dos Tupis — o nome, a glória,
Aturado labor de tantos anos,
Derradeiro brasão da raça extinta,
De um jacto e por um só se aniquilasse.
(DIAS, on line, acessado em 22/10/2010)
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 51

O símbolo nacionalista de Gonçalves Dias, cujo escritor assume as rédeas da narração, é fadado à mor-
te. Assim sugere o seu nome, o mesmo que dá o título ao poema, extraído da língua tupi, cujo equivalente
é “o que há de ser morto”. A representação dos povos indígenas na visão romântica novecentista tornou-se,
então, uma memória sobre o extinto, pertencente somente ao passado. Nos dias atuais, nada parece mais
incoerente do que buscar símbolos mortos, enquanto havia muitos contemporâneos vivos.
A prosa romântica de caráter indianista, por sua vez, foi representada especialmente por José de Alencar
nas obras O Guarani e Iracema, no século XIX. Na primeira, o escritor brasileiro buscou a representação
de um mito de criação, no qual o povoamento da terra ocorreria através da miscigenação entre um índio
convertido e uma branca. Obras como O Guarani, mesmo que denominada como indianista, privilegiou
em seus enredos o desencadeamento da lógica da cultura de origem burguesa europeia. Vale a pena lem-
brarmos quem eram os leitores dos românticos indianistas no século XIX.

Outra apropriação da imagem genérica dos


povos indígenas foi realizada pelos intelectuais
do chamado movimento modernista brasileiro.
A obra-prima modernista, na sua primeira fase,
foi Macunaíma, de Mário de Andrade, baseada,
por sua vez, num conjunto de lendas e mitos
indígenas, misturadas a anedotas e crônicas dos
mundos urbano e rural. Juntamente com o Ma-
nifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade,
os modernistas valeram-se da temática histórica
indígena para ironizar vários aspectos sociais da
Cartazes da projeção fílmica muda de 1920 e da releitura cinematográfica década de 1920. Criou-se novamente um discur-
de 1996 de O Guarani, inspirada nas obras literária de José de Alencar e
musical de Carlos Gomes. http://www.meucinemabrasileiro.com/filmes/ so indígena, sem que os povos indígenas tivessem
guarani-1920/guarani-1920-poster01.jpg e http://www.meucinemabra- a autonomia do discurso.
sileiro.com/filmes/guarani-1996/guarani-1996-poster01.jpg

Foram, e continuam sendo, muitas as apropriações da música, do teatro e do cinema baseadas nas
produções literárias brasileiras. Das obras citadas até o momento, todas receberam versões de vários
artistas e diretores. A influência do cinema estadunidense no mundo multiplicou uma quantidade expres-
siva dos chamados filmes de faroeste, que corroboravam a imagem dos povos indígenas da América do
Norte, idiotizando-os ou fazendo-lhes assumir papeis de vilões. A história da violência estadunidense
contra os seus povos indígenas marcou historicamente a ocupação oficial de seu território, no chamado
avanço ao oeste (far west).
Na música brasileira, muitas foram as tentativas de se incorporar elementos da música indígena a ou-
tros sons. No que concerne ao campo da música
erudita, Carlos Gomes foi um dos precursores des-
tas investidas, no século XIX. Anos depois, Heitor
Villa-Lobos também se aventurou na tentativa de
incorporar elementos da natureza que caracteri-
zassem uma música clássica tipicamente brasileira.
Algo parecido ocorreu durante a década de
1970, com as investidas musicais do movimento
tropicalista. Na contemporaneidade, até mesmo a
música industrial do rock pesado, cantada em in- Da tropicália de Caetano Veloso, em Araçá azul (1972), ao rock pesado
glês, buscou sob uma perspectiva do exótico uma do Sepultura, Roots (1996), aproximações da indústria comercial à cultura
dos povos indígenas. http://static4.vagalume.uol.com.br/caetano-veloso/
aproximação com a cultura indígena. discografia/araca-azul-W200.jpg e http://t.album.youmix.co.uk/41477.jpg
52 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

Vemos, portanto, que ao longo da história foi-nos herdada uma quantidade imensa de discursos a
respeito dos povos indígenas, cuja autoria lhe fugiu quase que plenamente. Nos documentos históricos,
nas discussões filosóficas e nas criações literárias e artísticas, por exemplo, a representação criada sobre os
povos indígenas partiu, na maioria dos casos, de uma mentalidade baseada no conhecimento eurocêntrico.
O ponto de vista sobre o “outro”, que neste caso foi o indígena, esteve sobreposto a sua própria narrativa.
A inversão desta lógica, como vimos brevemente no caso do relato do membro da tribo Yanomani,
pode-nos auxiliar a repensarmos nossos conceitos sobre as populações indígenas e sobre a forma como
construímos histórica e culturalmente os conceitos a seu respeito. Saindo da criação de um índio genérico,
vamos conhecer um pouco mais da diversidade indígena no Brasil, verificando a lista imensa de etnias e a
grande quantidade de línguas existentes no país.

2.6 Diversidades étnica e linguística

Terra dos mil povos: assim Kaká Werá Jacupé denominou o território que hoje chamamos Brasil, antes
da chegada dos europeus. Trata-se de uma louvável iniciativa de um membro indígena escrever a história
sob outra perspectiva. O “outro”, portanto, mudou de lugar. Uma exceção na cultura de origem indígena,
pois ela está fundamentada na tradição oral. A respeito desta tradição, o autor realiza ainda algumas consi-
derações importantes a respeito de como se constitui a memória cultural indígena.

A memória cultural se baseia no ensinamento oral da tradição, que é a forma original


da educação nativa, que consiste em deixar o espírito fluir e se manifestar através da fala
aquilo que foi passando pelo pai, pelo avô e pelo tataravô. A memória cultural também
se dá através da grafia-desenho, a maneira de guardar a síntese do ensinamento, que
consiste em escrever através de símbolos, traços, formas e deixar registrado no barro,
no trançado de uma folha de palmeira transformado em cestaria, na parede e até no
corpo, através de pinturas feitas com jenipapo e urucum. (JACUPÉ, 1998, p. 26)

A diversidade cultural indígena não ocorre somente quando comparada com aquela desenvolvida pelas
sociedades urbanas. Há também muitas diferenças entre os próprios povos indígenas que são, na maioria
das vezes, desconhecidas por nós. O governo federal, por meio do Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
tatística, mapeou uma grande diversidade étnica indígena ao longo de todo o território brasileiro. Algumas
regiões, no entanto, com maior concentração que outras.
Estes são os casos dos estados do Amazonas e do Mato Grosso do Sul, que concentram uma grande
quantidade de populações indígenas, dentro de um total de aproximadamente 340 mil pessoas. No site da
Fundação Nacional do Índio, a FUNAI, é possível encontrarmos um mapa detalhado da distribuição do re-
gistro de terras indígenas no Brasil. Essas informações estão disponíveis no link http://www.funai.gov.br/mapas/
fr_mapa_fundiario.htm. A seguir, você pode conferir uma relação com as etnias e quantidade populacional
de sociedades indígenas distribuídas por estados, conforme dados divulgados pela FUNAI.

• Acre - População total: 9.868


Amawáka, Arara, Ashaninka, Deni, Jaminawa, Katukina, Kaxinawá, Kulina, Manxinéri, Nawa, Nukuini,
Poyanawa, Shanenawa e Yawanáwa.

• Alagoas – População total: 5.993


Cocal, Jeripancó, Kariri-Xocó, Karapotó, Tingui-Botó, Wassú e Xucuru-Kariri.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 53

• Amapá – População Total: 4.950


Galibi, Galibi-Marworno, Karipuna, Palikur, Wayam-
pi e Wayána-Apalai.

• Amazonas – População total: 83.966


Apurinã, Arapáso, Aripuaná, Banavá-Jafí, Baniwa, Ba-
rasána, Baré, Deni, Desana, Himarimã, Hixkaryana,
Issé, Jarawara, Juma, Juriti, Kaixana, Kambeba, Kana-
manti, Kanamari, Karafawyána, Karapanã, Karipuna,
Katawixi, Katukina, Katwená, Kaxarari, Kaxinawá,
Kayuisana, Kobema, Kokama, Korubo, Kulina, Maku,
Na fotografia, o registro das atividades de trabalho da etnia indígena Marimam, Marubo, Matis, Mawaiâna, Mawé, Mayá,
Waimiri-Atroari, localizada no estado do Amazonas. Fonte: Eletronorte.
REFERÊNCIA: http://www.eln.gov.br/opencms/export/sites/eletronorte/ Mayoruna, Miranha, Miriti, Munduruku, Mura, Pa-
aEmpresa/regionais/amazonas/imagens_amazonas/amazonas_indios.jpg rintintin, Paumari, Pirahã, Pira-tapúya, Sateré-Mawé,

Suriána, Tariána, Tenharin, Torá, Tukano, Tukúna, Tuyúca, Waimiri-Atroari, Wanana, Warekena, Wayampi,
Waiwái, Xeréu, Yamamadi, Yanomami e Zuruahã.

• Bahia – População total: 16.715


Arikosé, Atikum, Botocudo, Kaimbé, Kantaruré, Kariri, Pankararú, Pataxó, Pataxó Hã Hã Hãe, Tupinam-
bá, Tuxá e Xucuru-Karirí.

• Ceará – População total: 5.365


Jenipapo, Kalabassa, Kanindé, Kariri, Pitaguari, Potiguara, Tabajara, Tapeba e Tremembé.

• Espírito Santo – População total: 1.700


Guarani (M’byá) e Tupiniquim.

• Goiás - População total: 346


Ava-Canoeiro, Karaja e Tapuya.

• Maranhão - População total: 18.371


Awá, Guajá, Guajajara, Kanela, Krikati e Timbira (Gavião).

• Mato Grosso – População total: 25.123


Apiaká, Arara, Aweti, Bakairi, Bororo, Cinta Larga, Enawené-Nawê, Hahaintsú, Ikpeng, Irantxe, Juru-
na, Kalapalo, Kamayurá, Karajá, Katitaulú, Kayabí, Kayapó, Kreen-Akarôre, Kuikuro, Matipu, Mehináko,
Metuktire, Munduruku, Mynky, Nafukuá, Nambikwara, Naravute, Panará, Pareci, Parintintin, Rikbaktsa,
Suyá, Tapayuna, Tapirapé, Terena, Trumai, Umutina, Waurá, Xavante, Xiquitano, Yawalapiti e Zoró.

• Mato Grosso do Sul – População total: 32.519


Atikum, Guarany (Kaiwá e Nhandéwa), Guató, Kadiwéu, Kamba, Kinikinawa, Ofaié e Terena.

• Minas Gerais – População total: 7.338


Atikum, Kaxixó, Krenak, Maxakali, Pankararu, Pataxó, Tembé, Xakriabá e Xucuru-Kariri.

• Pará – População total: 20.185


Amanayé, Anambé, Apiaká, Arara, Araweté, Assurini, Atikum, Guajá, Guarani, Himarimã, Hixkaryána, Juruna,
Karafawyána, Karajá, Katwena, Kaxuyana, Kayabi, Kayapó, Kreen-Akarôre, Kuruáya, Mawayâna, Munduruku,
54 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

Parakanã, Suruí, Tembé, Timbira, Tiriyó, Turiwara, Waiãpi, Wai-Wai, Wayana-Apalai, Xeréu, Xipaya e Zo’e.

• Paraíba – População total: 7.575


Potiguara

• Paraná – População total: 10.375


Guarani (M’byá e Nhandéwa), Kaingang e Xeta.

• Pernambuco – População total: 23.256


Atikum, Fulni-ô, Kambiwá, Kapinawá, Pankararú, Truká, Tuxá e Xucuru.

• Rio de Janeiro – População total: 330


Guarani

• Rio Grande do Sul – População total: 13.448


Guarani Mbya, Kaingang e Charrua (esta última recentemente reconhecida, embora ainda com uma
população difícil de estimar).

• Rondônia – População total: 6.314


Aikaná, Ajuru, Amondawa, Arara, Arikapu, Ariken, Aruá, Cinta Larga, Gavião, Jabuti, Kanoê, Karipuna,
Karitiana, Kaxarari, Koiaiá, Kujubim, Makuráp, Mekén, Mutum, Nambikwara, Pakaanova, Paumelenho,
Sakirabiap, Suruí, Tupari, Uru Eu Wau Wau, Urubu e Urupá.

• Roraima – População total: 30.715


Ingaricô, Macuxi, Patamona, Taurepang, Waimiri-Atroari, Wapixana, Waiwaí, Yanomami e Ye’kuana.

• Santa Catarina – População total: 5.651


Guarani, Guarani Mbya, Guarani Nhandeva, Kaingang e Xokleng.

• São Paulo – População total: 2.716


Guarani, Guarani M’Bya, Guarani Nhandeva, Kaingang, Krenak, Pankararu e Terena.

• Sergipe – População total: 310


Xocó

• Tocantins – População total: 7.193


Apinaye, Ava-Canoeiro, Guarani, Javae, Karaja, Kraho, Tapirape e Xerente.

No que concerne ao campo linguístico, estima-se a existência, no ano de 1500, de um número muito gran-
de de línguas indígenas, considerando ainda os dialetos e a variações. Na primeira década do século XXI, há o
registro de apenas 180 línguas indígenas faladas por comunidades localizadas tanto em regiões urbanas quanto
rurais. No entanto, pelo contato com os demais segmentos sociais, aos poucos algumas comunidades estão
incorporando a língua portuguesa.
O vocabulário do português brasileiro inclui uma quantidade expressiva de termos que foram de origem in-
dígena. A denominação de elementos da natureza, entre a fauna e a flora, e de espaços geográficos são um bom
exemplo disso. Em outros casos, os órgãos governamentais incorporaram nomes de origem de línguas indígenas
a ruas, avenidas, praças e demais espaços públicos. Você parou para refletir em que medida o vocabulário indígena
está presente na sua fala cotidiana? Eis um bom pressuposto para se trabalhar a questão indígena em sala de aula.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 55

2.7 Pensando na sala de aula

No Módulo VII do curso Educação para a Diversidade vamos elaborar algumas propostas para a inter-
venção em sala de aula partindo da temática indígena. Ao longo da leitura desta unidade você recebeu vários
subsídios que possam lhe ajudar a repensar questões acerca do conhecimento que criamos em torno dos
povos indígenas, de seus costumes e tradições culturais.
Os antropólogos Aracy Lopes da Silva e Luís Donisete Grupioni, na obra “A temática indígena na escola”,
lembram-nos sobre a importância do estudo da diversidade nos ambientes escolares e nos demais espaços
de aprendizagem disponíveis em nosso convívio social. O processo de educação deve superar a simples
acumulação de conhecimento e ser posto em práticas sociais efetivas, que busquem resultados concretos
para o bom relacionamento ente os membros de uma mesma e de diferentes sociedades.

O convívio da diferença: a afirmação da possibilidade e a análise das condições necessá-


rias para o convívio construtivo entre segmentos diferenciados da população brasileira,
visto como processo marcado pelo conhecimento mútuo, pela aceitação das diferenças,
pelo diálogo. Nestes tempos de violência generalizada no país, a reflexão sobre os po-
vos indígenas e sobre as lições de sua história e suas concepções de mundo e de vida
social podem trazer, aliada ao exame dos modos de relacionamento que a sociedade e
o Estado nacionais oferecem às sociedades indígenas constituem um campo fértil para
pensarmos o país e o futuro que queremos. (SILVA e GRUPIONI, 1998, pp. 15-16).

No decorrer de suas atividades docentes,


pense em como você pode contribuir para a di-
fusão de um pensamento em prol da diversidade
para a educação. Algo que supere a comemora-
ção cívica do Dia do Índio, por exemplo, assim
como a construção canônica de discurso usur-
pado acerco de um indivíduo estereotipado pelo
olhar eurocêntrico. Como o exemplo da diversi-
dade indígena pode nos auxiliar na construção de
um mundo melhor através da educação? Encami-
Na fotografia, olhares atentos para a comemoração do Dia do Índio, reali-
zada em 2009. Fonte: Fundação Nacional do Índio. http://www.funai.gov. nhamos o fim da unidade propondo esta questão
br/ultimas/noticias/1_semestre_2009/abril/imagens/Semana_do_Indio/ para reflexão.
Semana_do_Indio_Mario_Vilela_FUNAI_54.jpg

2.8 Povos Indígenas, nossos contemporâneos

Você está lembrado da proposta que discutimos anteriormente de que devemos reconhecer o passado
dos povos indígenas, ao invés de aceitá-los acriticamente como povos do passado? Pois são eles também
membros de nossa sociedade e compartilhamos juntos o mesmo tempo. No caso de nossa federação, po-
demos afirmar que a sociedade brasileira está composta também pelas suas diferenças, sejam elas religiosas,
étnicas ou políticas, de uma maneira geral.
Há importância em conservar as tradições indígenas, mas não é por isso que devemos negar os me-
canismos legais para que isso ocorra, ou que seja feito seu aprimoramento, conforme o interesse de cada
comunidade. A educadora Maria Aparecida Bergamaschi lembra alguns dos focos de interesse contem-
porâneos indígenas, entre os quais estão as universidades.
56 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

O ensino superior também vem sendo foco de interesse dos povos indígenas, sendo
que em sete universidades públicas brasileiras funcionam as “licenciaturas intercultu-
rais”, responsáveis pela formação de mais de mil professores. Políticas afirmativas para
ingresso de indígenas têm sido uma prática crescente nas universidades brasileiras,
sendo pioneira a Universidade de Brasília (UnB). A [Universidade Federal do Rio Gran-
de do Sul] UFRGS e a Universidade de Santa Maria (UFSM) adotaram o sistema de
cotas a partir do ano de 2008, iniciando com dez e cinco vagas, respectivamente.
(BERGAMASCHI, 2008, p. 11)

Devemos considerar também a existência de um considerável crescimento da população indígena no


Brasil. Por mais que governos, autoridades, instituições e estudiosos digam ou ainda anunciam um fim inexo-
rável dos povos indígenas, vemos através de dados estatísticos um crescimento populacional. Alguns censos
já estimam o registro de aproximadamente 700 mil indígenas no Brasil.
Em outro Módulo deste curso você conhecerá um pouco mais sobre questões específicas da legislação
e das políticas públicas existentes no contexto atual. Ao final desta leitura, esperamos que você tenha não so-
mente aprendido um pouco mais sobre as questões históricas e contemporâneas sobre os povos indígenas,
mas que tenha refletido um pouco mais sobre a questão. O módulo de Diversidade e Desigualdade conti-
nuará em suas outras unidades que também contribuirão para a sua formação docente e, também, social.

Atividade 17
Entre a teoria e a prática

Como podemos unir o conhecimento que compartilhamos na leitura deste módulo com a prática de-
senvolvida dentro da realidade de sala de aula? Seus planos de conteúdo reproduzem um modelo historica-
mente construído pela produção canônico e busca medidas de inclusão da diversidade no cotidiano social?
Faça um levantamento sobre a forma de abordagem das concepções acerca da temática indígena em sua
escola. O que se pensa sobre os índios? Como os imaginamos? De que forma conhecemos sua cultura e nos
aproximamos ou distanciamos dela? Como a temática está presente nos livros didáticos?

Após este levantamento, verifique se estão reproduzidos alguns dos seguintes estereótipos: a) índio
genérico, em que a pluralidade das identidades étnicasfica completamente apagada; b) índio exótico, bár-
baro, apresentado por diferenças em sinais diacríticos muito específicos e descontextualizados cultural-
mente; c) índio romântico, vinculada à ideia do bom selvagem, apresentado sempre no passado como uma
figura ambígua, de herói e perdedor; d) índio fugaz, que anuncia um fim inexorável, seja pelo extermínio
físico, etnocídio ou por processos de assimilação à sociedade nacional; e/ou e) índio histórico, concepção
mais recente que enfatiza a historicidade das sociedades indígenas.

O professor pode fazer um levantamento e informar em qual atividade letiva é trabalhada a temática
indígena entre a comunidade escolar. Retome alguns dos principais tópicos apresentados neste módulo
sobre a concepção de povos indígenas que foi construída ao longo dos anos, através dos cânones literá-
rios, históricos ou artísticos, até a contemporaneidade. Esta imagem é a mesma reproduzida nas mídias
televisivas ou cinematográficas atuais? Faça este levantamento e esboce um comentário pessoal na forma
de um pequeno texto acerca da seguinte questão: como posso contribuir (ou tenho contribuído) para a
ampliação de uma educação para a diversidade indígena dentro do meu ambiente de trabalho escolar? Eis
uma boa forma de tentarmos a união entre teoria e prática.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 57

Referências

AZANHA, Gilberto e VALADÃO, Virgínia Marcos. Senhores destas terras: os povos indígenas no Brasil – da colônia aos
nossos dias. São Paulo: Atual, 1991.
BERGAMASCHI, Maria Aparecida (org.). Povos indígenas & educação. Porto Alegre: Mediação, 2008.
BONIFÁCIO, José. Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil. Disponível em http://www.
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ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Pp. 15-21.
Unidade 3: Afrodescendentes e educação

Quero o passado bom

Sem essa de mãe-preta e pai-joão


- eu quero é o passado bom!
Na vontade mais funda
E vulcânica de mim
Eu quero é o passado bom!
Eu quero o passado bom
do quilombo dos negros
livres no mato e de lança na mão.
Da guerra na Bahia- da negrada
Transbordando nas casas,
derramando-se na rua
de pistola e facão!
Quero o passado bom dos negros
do quilombo do Cumbe,
mocambos do Pará,
dos Palmares reais,
dos quilombos gerais,
troço bom demais.
Só quero o passado bom!

Oliveira Silveira (2009)


COLORS MAGAZINE Srl-13: December 1995, Milan. Jean Pierre Hallet/Pygmy Fund.

O estudo ligado a afrodescendentes no Brasil pressupõe uma abordagem inicial sobre a diversidade dos
povos africanos formadores, assim como a desigualdade sócio-econômica existente entre as populações
negra/ branca em nossa sociedade. A obrigatoriedade do ensino da História e Culturas Africana e Afro-
Brasileira nas escolas do país abre um precedente importante para que o aprendizado quilombola, bem
como os modos de fazer e viver dos quilombos contemporâneos, seja considerado um saber essencial para
a formação de uma nova estrutura de educação no Brasil, fundamental para que o país se reconheça como
afrodescendente em sua formação humana e cultural (Paré, 2006).
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 59

3.1 Raça, etnia e educação

O debate sobre raça e etnia na educação perpassa o reconhecimento dos direitos humanos dos afro-
descendentes à reparação histórica da negação de suas culturas constitutivas e do sistema escravagista de
mais de 300 anos.

Quando surge a idéia de raça?

Para Munanga (2003), a noção de raça nasce na botânica e na zoologia para classificar as espécies
vegetais e animais. Esses conceitos foram transportados para as relações sociais com intuito de legitimar a
dominação de um grupo social que subjuga outro e, dessa relação, o primeiro beneficia-se com a condição
do segundo. Isso ficou evidente quando os europeus organizaram suas conquistas no século XV, subjugando
os povos “diferentes”, classificando-os como inferiores.
O conceito moderno de raça é populacional - populações de uma mesma espécie que habitam territó-
rios diferentes e que diferem em seus conjuntos gênicos. (Salzano, 1986, p. 49).

Desigualdade Racial no Brasil e no Sistema de Ensino

Há desigualdade racial no Brasil?


As pesquisas do IBOPE e IPEA comprovam que sim.

Telles, em livro que trata das desigualdades raciais no Brasil, diz que

...essas não são meramente o resultado da escravidão ou de grandes desigualdades de


classe, mas de uma contínua prática social preconceituosa, de cunho racial. A noção
popular sobre raça é transmitida através de estereótipos da mídia, de piadas, das redes
sociais, do sistema educacional, das práticas de consumo, dos negócios e pelas políticas
do Estado (Telles, 2003, p. 306).

Consequentemente, o sistema de ensino no país é reflexo da sociedade e das doutrinas racialistas, eu-
gênicas que aqui se desenvolveram, gerando preconceito e discriminação.

O preconceito que o povo negro sente na escola é resultado de um plano, de um


programa conscientemente deliberado e executado, é uma obra de elites esclarecidas
e nada mais (Vianna, 1991, p. 393).

Os sentimentos que o aluno negro tem com relação à escola aparecem na pesquisa de Paré (2000) nas
duas essências por ela detectadas nas falas dos alunos:
60 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

1ª) a discriminação na escola: reflexo dos preconceitos na sociedade brasileira;

2ª) os sentimentos: conteúdo latente originário da discriminação;

O grande desafio da escola é conhecer e valorizar a trajetória particular dos grupos que
compõem a sociedade brasileira. Nesse sentido, a escola deve ser local de diálogo, do
aprender a conviver, vivenciando a própria cultura e respeitando as diferentes formas
de expressão cultural (BRASIL,1996).

Em pesquisa sobre “Igualdade das relações étnico-raciais na escola” junto a instituições escolares de
São Paulo, Salvador e Belo Horizonte, fica subjacente que uma educação será de qualidade se esta for para
todos; isso implica um projeto político-pedagógico e um currículo que abarque a diferença e a diversidade.
No entanto, as estatísticas, no quesito étnico-racial, mostram a existência de uma enorme desigualdade
entre brancos e negros:
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 61

NEGROS BRANCOS

Analfabetos absolutos com mais de 15 anos 16,9% 7,1%

Estudantes Ensino Médio 28,2% 52,4%

O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) mostra que, apesar da proximidade do
número de matrículas no Ensino Fundamental para negros e brancos (94% para brancos e 92,7% para
negros), a evasão escolar é maior entre os alunos negros.

Quais seriam as causas para a evasão


de tantos alunos negros da escola?

Poderíamos citar algumas, que consideramos bastante importantes:


1. A ausência ou insuficiência de elementos da cultura afrodescendente no ambiente escolar e no currículo;
2. As resultantes da pesquisa “Auto Imagem e Auto-Estima na Criança Negra: um Olhar sobre o seu De-
sempenho Escolar” (Paré,2000):
• a discriminação na escola: reflexo dos preconceitos na sociedade brasileira;
• as relações interpessoais no ambiente escolar, inibidoras do processo de aprender;
62 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

• a percepção do processo de aprender e o contexto escolar;

• os mecanismos de defesa como reação às situações de discriminação.

A reprodução do racismo na escola é um dos temas mais relevantes da agenda dos


movimentos sociais negros, em todo o país. Não sem razão, evidentemente. Por trás
das altas taxas de infrequencia, repetência e evasão escolar verificadas entre as crianças
negras, existe um dominador comum: a estigmatização e a desqualificação delas em
razão do racismo (Moreira,1997, pág.102).
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 63

Diversidade étnico- racial na escola e o aprendizado sobre a cultura negra

Como a escola poderia trabalhar/desenvolver a


temática negra em seu currículo?

Propomos um esquema sugestivo de modus operandi que segue três etapas:

3.2 A África e Povos Africanos formadores da População Brasileira

Você sabia que mais de 50% da população brasileira é afrodescendente?


Em sendo assim, o que você sabe desse continente, cujas culturas formam a base da cultura brasileira?

O que você sabe sobre a África?


Isso que você sabe aprendeu na escola?

“Em todos os cantos do mundo há belezas.


Acho que quando penso nos povos orientais minha
lembrança é esta: como são leves (menos quando
lembro das lutas de sumô)!

Os povos polares, ou seja, do polo norte, o


que lembram, além de sorvete gelado e ursinho
de pelúcia? Um mundo cristalino, o menos po-
luído de todos. (Será?) Mas a África é uma lem-
brança em que vibram várias cores eletrizantes:
parecem somar um calor como o do sol com uma Ilustração de Laurabeatriz, capa do livro Histórias da Preta, de
força que vem de dentro da terra. Heloisa Pires Lima, editora Companhia das Letrinhas, 2005.
64 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

Foi assim que aprendi que são muitos os povos que preenchem aquele continente, e todos ricos
em histórias. Vou contar algumas que já conheço. Mas primeiro quero mostrar que a África tem muitas
etnias, isto é, muitos jeitos diferentes de ser num mundo aparentemente igual. Olhe aí no mapa: são
centenas de etnias distribuídas entre as dezenas de países.”

Mapas dos reinos-etnias africanas

Ilustração de Laurabeatriz, do livro Histórias da Preta, de Heloisa Pires Lima, editora Companhia das Letrinhas, 2005.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 65

Ilustração de Laurabeatriz, do livro Histórias da Preta, de Heloisa Pires Lima, editora Companhia das Letrinhas, 2005.
66 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

Você sabia?

• A cosmovisão africana é global e caracteriza a sociedade como resultado indivisível da inter-


relação entre todos os aspectos humanos.

• Daí o valor do coletivo/ da comunidade,


Contrapondo ao individualismo e competitividade da sociedade ocidental.

• A religião é vista como o momento de reencontro com seus antepassados. Este encontro tem uma
ligação muito familiar, pois a relação entre orisá e homens é a de pais e filhos.

• Os orisás são protetores espirituais vinculados


à pessoa, como filho, e aos grupos enquanto
comunidades.

• A religião está relacionada com a base política


na cosmovisão africana. Isso porque os orisás,
enquanto protetores da comunidade, eram an-
tepassados que exerciam o papel de chefes po-
Osalá e Iemanjá, ilustrações de Pedro Rafael, do livro líticos, com posição de liderança e cuidado para
Oxumarê, o Arco-Íris, de Reginaldo Prandi, editora com seus familiares.
Companhia das Letrinhas, 2004.

• O papel principal da política cabia ao rei, o qual era articulador entre as etnias que compunham
seu reino, devendo entender suas necessidades. Para isso, era essencial ao rei saber todas as
línguas que havia em seu reino, a fim de permitir o diálogo.

• A política de matriz africana tem como aspectos fundamentais a solidariedade e a igualdade de


direitos entre os seres e povos.

• As relações humanas e jurídicas na áfrica antiga primavam pela simplicidade na solução de


demandas jurídicas e nas normas que pautavam a sociedade.

• As relações sociais africanas primavam pelo equilíbrio e pela postura adequada nos momentos
difíceis.

• A áfrica tem cerca de três mil grupos étnicos diferentes e mais de mil línguas. (Moreira,1998).

Baseado em ANJOS, R.S.A. (2002)


Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 67

No século XIX, último ciclo do tráfico negreiro, as fontes correspondem aos atuais Gana, Togo, Benin,
Nigéria, Gabão, Congo, Angola, Moçambique e Madagascar (Anjos, 2002).
Observemos a diversidade de culturas africanas presente na cultura do povo brasileiro.

“O Brasil foi a maior potência escravagista do mundo moderno. Sozinho, importou mais de 40% do
total de escravos que vinham da África para a América. Foram sequestrados cerca de 1,3 milhões de afri-
canos para os trabalhos no Brasil. E foi a última a abolir a escravidão. Em 500 anos de história, o país teve
três séculos e meio de regime escravocrata e apenas um de trabalho livre.” (João de Barro, 2000, p.11)

Principais quilombos no Brasil

Os africanos não reclamavam da escravidão?

Claro que sim! No entanto, como era impossível o retorno à terra


natal, eles buscaram saídas aqui mesmo. E assim surgiram os quilombos,
já a partir do século XVI.
68 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

O que eram e como funcionavam os quilombos?

Quilombos eram núcleos de escravos fugidos que se estabeleciam em áreas onde pudessem viver em
liberdade. Nascimento (2002) coloca o movimento quilombista como uma busca de resgate da liberdade
do negro escravizado e de retorno à sua dignidade enquanto ser humano pleno de direitos, com sua visão
de mundo de origem africana, através da organização de uma sociedade livre. Ele diz ainda que o quilombo
deixa de ser um movimento fechado em uma imagem de fuga de escravos entre os séculos XVI e XIX e
passa a significar uma estratégia de sobrevivência dos grupos de origem africana em todas esferas sociais.
Soynka e Price (apud Nascimento, 2002) destacam os quilombos não apenas como “força reativa” a opres-
sões, mas sim uma sociedade alternativa, com base em um sistema pan-africano, reunindo informações e
práticas culturais sociais de diversos povos africanos em sua estrutura.
O Quilombo de Palmares é o mais famoso dentre vários outros importantes. Situado na Serra da Barri-
ga, em Alagoas, liderado por Ganga Zumba, e Zumbi dos Palmares, hoje é patrimônio nacional.
Outros quilombos importantes:

• de Ambrósio (MG)
• de Sapucaí (MG)
• de Campo Grande (MG)
• de Jabaquara, na região montanhosa de Santos (SP), formado por cativos da plantação de café
• dos Garimpeiros, liderado por Isidoro, o Mártir (MG)
• do Piolho ou da Carlota, em Mato Grosso, na capital da Província de Bela Vista, no século XVIII,
hoje habitada praticamente só por descendentes de escravos. (Nascimento)
• de Manoel Padeiro, no Rio Grande do Sul, responsável pela apreensão das autoridades gaúchas na
região de Tapes, onde se estabeleceu
• de Manoel Cogo, assinalado pela Fundação Palmares (MinC/FCP, 2002) como responsável por uma
das maiores rebeliões do século XIX na região de Vassouras (Maestri,1995).
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 69

Ainda existem quilombos ou são coisas do passado?

As comunidades quilombolas brasileiras, tam-


bém denominadas remanescentes de quilombos
ou quilombos contemporâneos, não pertencem
somente ao passado. Na Constituição de 1988, o
Estado brasileiro reconhece a existência e os di-
reitos territoriais das comunidades remanescen-
tes de quilombos, constituídas por descendentes
de quilombolas que ainda hoje permanecem nos
territórios ocupados pelos seus antepassados que
aqui chegaram. De acordo com o geógrafo Rafael
Sanzio dos Anjos (2005), existem atualmente mais
de 2200 comunidades quilombolas no país. No
entanto, para que a população quilombola se veja
inserida na sociedade atual, é imprescindível que o
eurocentrismo presente nas escolas formais abra Imagem do Livro Racismo no Brasil: Por que um programa com Quilombos?
espaço para o modus vivendi dessas comunidades. Coordenadoria Ecumênica de Serviço, triênio 2000-2003.

A Lei 10639/2003, que diz da obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afro-bra-
sileira no sistema educacional do país, torna o aprendizado quilombola, bem como os modos de fazer e
viver dos quilombos contemporâneos, um saber importante para a formação de uma nova estrutura de
educação no Brasil.

A educação no Brasil é um fato complexo de ser discutido, em diferentes âmbitos.


A questão da diversidade real e efetiva nos enfoques educacionais e curriculares
necessita, assim, de uma ampla discussão em diferentes esferas, e nas comunidades
quilombolas isso não é diferente. Em São Miguel, a necessidade do ensino formal
identificada pela população, que buscou essa inserção no processo educacional dos
seus filhos, procurando uma maior inserção social, tem o contraponto da exclusão
do entorno imediato, com o estabelecimento de espaços claramente divididos entre
o cotidiano e o saber da comunidade, essencial para a formação dos mais novos
e para o sentido de comunidade tradicional, e a escola como símbolo do ensino
formal, do “externo” que traz a inclusão cidadã. Contudo, esta divisão tão clara im-
pede o diálogo entre esses dois ambientes sociais, cujos conhecimentos podem ser
complementares, ampliando a formação e as possibilidades tanto da escola quanto
da comunidade, com o compartilhamento e o aprendizado conectivo, ampliando
sobremaneira a visão de mundo não só dos alunos, mas também da escola pluricul-
tural que temos hoje (PARÉ et. alli, 2008).

3.3 Esquemas de Pensamento da Criança Afrodescendente

Estejamos atentos à narrativa a seguir. O cenário é a sala de aula: mesa da professora maior situada na
frente das classes dos alunos em fileiras.

A professora de matemática põe problemas no quadro negro para as crianças resolverem individual-
mente. Aguarda sentada em sua cadeira para todos terminarem no tempo estabelecido por ela, quando será
o momento em que chamará alguns ao quadro para a solução.
70 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

Passado algum tempo, Joãozinho, aluno negro, lembra do atabaque com aquele som gêge-nagô de
forte cadência, que ouvira na noite anterior e começa a batucar na classe:1 2 1-2 3 1 2 1-23 12 1-234...
”Pare com esse barulho, Joãozinho e termine seu exercício!”- diz a professora.
“Mas, eu já fiz, professora!” responde ele, parando as batidas. Olha para o lado e vê que seu colega
Pedro, que também é afrodescendente, está na última questão e pergunta;
“Você sabe o que eu pensei para resolver essa última?”
“Acho que devo fazer assim, mas como você pensou?, pergunta Pedro.
A professora, sentada à sua mesa, lá na frente da sala, grita:
“João, não te aguento mais. Por que você não fica quieto? Vá já para a secretaria de castigo. E você,
Pedro, se continuar conversando com alguém, também vai!”

Esta cena é bastante comum nas salas de aula do Brasil, ao ponto de nos fazer parecer normal. Mas não
é! Você consegue detectar em que aspectos essa metodologia está inadequada?
Pedagogicamente ela não se mostra adequada à diversidade étnico-racial do alunado, tendo em vista,
nesse caso, principalmente, ao esquema de pensamento da criança afrodescendente, isto é, da cultura de
onde ela provém e da qual também é representativa.
As classes em fileiras estão promovendo a individualidade e incomunicabilidade – aspectos totalmente
opostos ao ethos africano de coletividade.
A postura da professora gera o desenvolvimento de baixa auto-estima no aluno negro; ele não estava
fazendo “barulho” e sua conversa tinha a ver com a atividade que ela estava desenvolvendo, portanto, não
merecedora de castigo.
Como essa professora poderia atuar efetivamente no caso?
• Organizar as classes em forma de círculo ou de modo a que os alunos pudessem trocar suas des-
cobertas em algum momento;
• Aproveitar as batucadas do aluno, pois o ritmo é matemática;
• Questioná-los sobre como pensaram para resolver e trazerem exemplos do seu dia-a-dia.

O cenário de aula apresentado faz-nos questionar, então: como se coloca o contexto educacional ante
a diversidade do alunado/ante a realidade da criança quilombola?
A educação ___transmite cultura
___faz seleção dos temas por critério
___reserva-se o direito de dizer o que é cultura

E, aí? Qual educação?


Para quem?
Para quê?
Reflita!

“Se o meio educacional não souber os esquemas de pensamento de seu aluna-


do, desconhecendo as respostas inteligentes pertinentes a ele, haverá mais dificul-
dades de ocorrer uma aprendizagem significativa.” (Paré, 2000, p. 142)
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 71

As Dimensões da Afroculturalidade

O olhar na multiculturalidade existente em nossas salas de aula é de fundamental importância, especial-


mente no ethos da tradição africana que deve ser explicitado, principalmente através das nove dimensões
da expressão afrocultural, que seriam, segundo Boykin (1983,1986):

1) Espiritualidade – que mostra um conhecimento de uma força de vida não-material a qual permeia
todas as atividades humanas.
2) Harmonia – ser fundamentalmente ligado aos eventos da natureza e aos elementos do universo.
3) Movimento – característica dada numa trama de movimentos, dança, percussão e ritmo observados
na batida musical.
4) Entusiasmo – receptividade especial a níveis relativamente altos de estímulos.
5) Afeto – importância da informação afetiva e da expressão emocional ligadas à co-importância dos
sentimentos e pensamentos.
6) Individualismo Expressivo – brilho singular da expressão pessoal, do estilo da sinceridade da au-
toexpressão.
7) Coletivismo (trabalho cooperativo) – comprometimento com a interdependência fundamental das
pessoas, com os vínculos sociais e com os relacionamentos.
8) Oralidade – a importância dos modelos oral / aural da comunicação para transmitir um significado
verdadeiro e cultivar a ação da fala.
9) Perspectiva do tempo Social – demonstra um comprometimento do tempo como uma construção
social tal que há a orientação de um evento em torno do tempo.

O aluno de origem afro, cuja escola não considere essas dimensões que ele traz consigo, poderá desen-
volver mecanismos de defesa que prejudicariam o desenvolvimento pleno de sua aprendizagem.
72 Curso de Aperfeiçoamento em Educação para a Diversidade

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(Mestrado em Geografia). Instituto de Ciências Humanas, Departamento de Geografia da Universidade de Brasília. Brasília, 2005.
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plementação da Lei 10639/2003. São Paulo: Petrópolis: Ação Educativa, Ceafro e Ceert, 2007.

Anote no Diário de Bordo!

Atividade 18
Pensar/elaborar como a escola poderia aprender sobre a cultura negra;
Formule ações na educação que possam ser desenvolvidas de modo a dar maior conhecimento de
afroculturalidade.

Atividade 19
Faça uma busca no site da UFRGS/PROREXT nos programas de Extensão junto às Comunidades Qui-
lombolas do Rio Grande do Sul, destacando ações desses projetos que considerar relevantes às comunidades.

Atividade 20
Imagine-se docente de séries iniciais em uma escola quilombola e, a partir dos conhecimentos adqui-
ridos, elabore um plano de ação curricular para suas aulas.
Módulo III | Diversidade étnica, de gênero e sexualidade 73

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