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Uma tetralogia para o pensar, chez Deleuze

Sandra Mara Corazza

AGUILHÃO
(Ereto feito um cabo de vassoura. Pele tão colada ao corpo que, ao mínimo
corte, rasga-se toda. Balança numa corda entre dois parapeitos. Não refletido, nem
representado, vestido de impossibilidade. – Ma dove, bambino, dove? Trocado ao
nascer. Menino encantado. Um gnomo. Assoma. Cul-de-sac. Então, rindo, salta rente
ao muro. Escarrapacha-se de encontro a um monte de lixo. Seus sapatos de vidro
abatem-se, destrutivos, sobre os saberes sabidos. Um copo d’água se espatifa. – Les
ronds! Les ponts! Chevaux de bois! Chaîne de dames! Dos à dos! Balancé! As crianças
o vêem e, estridentemente, gritam: – Mas é real! Sem dúvida, embora ameace com
estranhamento. – Sete anos de pastor Jacó servia Labão, pai de Raquel, serrana bela.
Mas não servia ao pai, servia a ela, que a ela só por prêmio pretendia. – Vendo o triste
pastor que com enganos lhe fora assim negada a sua pastora, como se a não tivera
merecida, começou a servir outros sete anos, dizendo: – Mais servira, se não fora para
tão longo amor tão curta a vida! Como um navio gigantesco, assustador, nas águas
calmas, seguras, da sabedoria adquirida, ele não leva jeito. Balança sua pança, desfaz
o emaranhado do cabelo, coça seus trapos. Olha de soslaio. Titubeia. Cambaleia.
–‘Stamos em pleno mar... Era um quadro dantesco o tombadilho... Que das luzernas
avermelha o brilho, em sangue a se banhar. Tinir de ferros... Estalar de açoites...
Legiões de homens negros como a noite, horrendos a dançar... Negras mulheres
suspendendo, às tetas, magras crianças, cujas bocas pretas rega o sangue das mães. E
ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente faz doudas
espirais... Presa nos elos de uma só cadeia, a multidão faminta cambaleia. E chora e
dança ali! Qual um sonho dantesco as sombras voam! Gritos, ais, maldições, preces
ressoam! E ri-se Satanás!... – Senhor deus dos desgraçados! Dizei-me vós, senhor
deus! Se é loucura, se é verdade tanto horror perante os céus?! Ó mar, por que não
apagas, co’a esponja de tuas vagas de teu manto este borrão?... Astros! Noites!
Tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! Ele passa por nós. – Jogo
limpo, por favor! Estica os braços, suspira, enrosca o corpo. Suas brandas mãos
clamam juntas. Ithyphálliko, cutuca. Atira um punhal. Faz o sinal dos cavaleiros
templários. – Diga-me uma palavra apenas! Um caranguejo com olhos vermelhos finca
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as garras em seu coração. – Devorador de paixão! Ils me disent, tes yeux, clairs comme
le cristal: – Pour toi, bizarre amant, quel est donc mon mérite? – O olho é o cadáver da
luz, da cor. Exalando cinzas, seus traços tornam-se cinzentos. Envelhecidos.
Ressequidos. Ergue um braço entorpecido. Na mão esquerda segura uma bengala fina
de marfim com cabo violeta e um castão de prata em forma de cabeça de dragão. – Era
uma vez uma mulher sem nome que dava nome às coisas. Harpa eólia. – Agora posso
me coçar com tranqüilidade. Retira a perna de cima da mesa e vai dançar. – Bals
musette? Lampejos azuis verdes amarelos marrons. Tinidos metálicos. Ele nada mais é
do que são seus ossos: imprevisto, incompreensível, inassimilável. Gorgolejante.
Áspero. Escrofuloso. – Eles vão lutar. – Por mim?! Quem quer?)
Ele não é ele. Mas ele é de novo possível. Peste. Virótico. Venéreo. Terrorista.
Monstro. Fumaça. Vapor. Névoa. Nuvem. Espuma do mar. Centelha. Rumorejo. Risco.
Riso. Júbilo. Máscara. Dementia. Força elementar. Incitação. Afirmação. Inovação.
Estilo de vida. Política da. Arte em favor da. Cofre de ressonâncias. Insolente.
Indiscutível. Nada de justas. Justo idéias. Síntese disjuntiva. Intuitiva. Contra-efetuação.
Lance de dados. Dobra do ser. Imagem-sol. Signo-força. Estrangeiro. Cruel. Violento.
Um gato. Lava as iniqüidades do Ser. De Deus. Da Consciência. Do Negativo. Tem o
que dar a. Diante da obstrução e exclusão. Sem Ego. Sem Édipo. Sem Falta. Sem troca
regulada. Sem interação. Sem diálogo. Sem assembléia. Sem comunidade. Sem
identidade. Sem boa vontade. Sem natureza reta. Sem lei. Não substituir um por outro.
Não um mais ágil ou amplo ou verdadeiro. Não crise. Não mudança. Não virada. Não
sistema discursivo. Afinidade com o inimigo. Work in progress. In process. Um novo
ato. Abalo. Isto sim! Experimentar. Irritar os imbecis. Envergonhar a estupidez. Fazer da
besteira um trampolim. Impedir o impudor dos medíocres. Relançar possibilidades.
Calar respostas. Falar problemas. Meter medo. Ora bolas! Ao intolerável. À miséria
programada. Ao conformismo. Ao consenso-diretriz. À preguiça. À proteção. Operação.
De resistência. Não dizer se nada houver a. Desamparar. Desimpedir. Inventar
singularidades. Clandestino. Garrafa ao mar. Espada. Flamejante. Speranza. Trajeto
solar. Vendredi. Dia de Vênus. Contra atualidade. Interesse geral. Bom-mocismo.
Bonhommes. Valores democráticos-liberais. Universais. Eternos. Aparelhos de partido.
Avaliações subjetivas. Solipsismo. Simples vivido. Juízo empírico. A priori. De Deus.
Regularidades. Modelos. Sensações pastosas. Regime jornalístico. Racionalidade
comunicativa. Instantânea. Conversação edificante. Proposições de fato. Consenso.
Marketing. Mercantilização. Promoção comercial. Divisão social do trabalho. Divisão
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sexual. Fitas métricas. Hermenêuticas apocalípticas. Cultura de massas. Vontade da


maioria. Opiniões razoáveis. Crenças. Hábitos. Convenções. Clichês. Cinismo. Dívida.
Vingança. Nostalgia. Facilitação. Conforto. Hic et nunc. Ficção da razão. Repetição do
Mesmo. Reativo, escravo, ressentido. Vontade de verdade. Acordos intersubjetivos.
Essências. Pseudo-eventos. Debates. Réplicas. Trocas de idéias. Correntes. Trilhos.
Caminhos. Um firmamento. Estruturas. Paradigmas. Gnosias. Praxias. Ortodoxias.
Representação. Recognição. Platonismo. Hegelianismo. Dialética. Imitadores.
Glosadores. O Homem. Os Direitos Humanos. A Infância. O Estado. A Ciência Régia.
Triste imagem midiática. Servidão voluntária. Imensa fadiga. Canto de morte. Morte em
vida. Medo da vida. Car qu’est-ce que le schizo, sinon d’abord celui qui ne peut plus
supporter tout ça: o dinheiro, a bolsa, as forças da morte – morais, pátrias, religiões,
certezas privadas? Hýbris. Ato. Criador. Conservar. Contemplar. Contrair. Arrogância.
Desmesura. Ousadia do querer. Força de amar. Aptidão inventiva. Bander. Interruptor.
Curto-circuito. Des-comunicação. Des-informação. Des-conversa. Como engendrar
saídas para a vida? Linhas de singularização? Formas de heterogênese? Subtração à
homogeneização? Quais aventuras? Atravessar o Aqueronte. Mundos possíveis. Por
Outrem. Le dehors. Mergulho no caos. Forma do conceito. Força da sensação. Função
do conhecimento. Personagens conceituais. Observadores parciais. Figuras estéticas.
Interferências. Extrínsecas. Intrínsecas. Ilocalizáveis. Indecidíveis. Indiscerníveis.
Indizíveis. Impassíveis. Imperdoáveis. Deslizamentos. Partilha da mesma sombra. O
mesmo segredo. Povo-mundo. Imaterial. Incorporal. Invivível. Invisível. Pura reserva.
Espera infinita. Entre-tempo. Guerra. Guerrilha. Grito de alerta. Cor. Som. Imagem.
Arabesco. Intensidade. Velocidade. Multiplicidade. Singularidade. Virtualidade.
Artistagem. Variação. Modulação. Fabulação. Imanência. Un chant de vie. É que eu não
acredito nas coisas. Pedagogia? Cadela. Cavalo alado. Dragão. Centauro. Dioniso.
Maldito. Delírio. Diferença livre. Repetição complexa. Alusão perpétua. Gigantesca.
Mistura louca. Ardência. Sarça. Caosmos mental. Atratores estranhos. Heráclito.
Estóicos. Nietzsche. Spinoza. Bergson. Scott. Artaud. Lenz. Sade. Beckett. Bene.
Cézanne. Klein. Klee. Bouvard. Pécuchet. Bacon. Sacher-Masoch. Hjelmslev.
Lawrence. Miller. Woolf. Gregor. Zaratustra. Monet. Delaunay. Hantaï. Carroll.
Tchekov. Uexhüll. Michaux. Tournier. Bresson. Riemann. Boulez. Homem dos lobos.
Ahab. Dubuffet. Pissaro. Combray. Molly. Josefina. Scenopoietes dentisrostris. O
carrapato. O demônio. O pequeno Hans. Fuite devant la fuite. Evento puro. Idéias vitais.
Ética do amor fati. Transbordamento. Coro de sátiros. Coro trágico. Intermezzi. Orgia
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de liberdade. Os três Não. As três filhas do caos. As três caóides. As três jangadas.
Trajetos. Sobrevôo. O cérebro. Fogacho. Queima da memória e da história.
Esfarelamento dos controles miméticos. Dança. Disparo. Devir. Puro acaso. Pathos. Os
deuses jogam na mesa da Terra. A truly joyous machine. Alegria ilícita. Rameira.
Mundana. Indecente. Ímpia. Lúbrica. Celerada. Gozosa. Anca vaidosa. Vagina dentada
fremente. Incendiada de vida. Bacante. Lena. Mênada. Embriaguez. Absinto. Instinto.
Désir. Vampiro. Cão dos Baskervilles. Cascavel. Escorpião. Mandrágora. Lisa e
listrada. Ferida. Ferina. Festa. Fauno telúrico. Vôo e canto de Andoar. Esmeralda das
bruxas de Mayfair. Possessão. Sortilégio. Espírito de fogo. Mudança de pele. Idéia
diabólica. Vagabunda. Espasmo. Convulsão. Derrame. Enxurrada. Dinamite. Águia
sobre o abismo. Salto mortal. Linguagem da paixão. Asas da alma. Escândalo político.
Vivo ergo cogito. Non cogito, ergo sum.

TURBULÊNCIA
(Lupercalia: 15 de fevereiro. Depois de sacrificar um cão, dois luperci tocam
com a faca do sacrifício a fronte. Correm, então, ao redor do Palatino. – Ah, mas ela
não vai ser surrada com pedaços de couro de cabra! – Pra quê? Já é fértil! Fornica.
Matraqueia. Altiva, flutuante, zombeteira. Toma fôlego com vagar e avança lentamente
em direção às luzes da sala. O fulgor jorra. Aurora borealis? Não, os bombeiros
chegam. Ciclistas, com as campainhas retinindo, correm entre os carros. – Quelle
soupe! Nas mãos, anéis com pedras preciosas. Nos tornozelos, correntes de ouro como
algemas. Cabelo trançado. Travessa de brilhantes e penacho de pluma de pavão na
cabeça. Vestido de negro organdi. Decote fundo. Botões de diamante e rubi no bolero.
Broche camafeu. Brincos e pulseiras de diamantes. Cinto bordado a ouro. Picada por
um espasmo, esfrega a camada de lama grudada em seus sapatos. – Ai, meus sais! –
Mantenha-se, mantenha-se, mantenha-se... – O homem do saco vai te pegar, se ficares
variando tanto! – Sinos a defunto. Ai, quem morreria? Olha, foi o pobre Ti Zé, senhor!
Velho, tão velhinho, nenhum outro havia. Pra cumprir 100 anos, lhe faltava um dia. Há
94 que era pastor... Tocadora de flauta. Dançarina. Mulher de Rodes. Perfumada.
Aromatics elixir. Figura sinistra. De olhar maligno. Cospe fogo. Mulier toto iactans e
corpore amorem. – Eram para ela o maior flagelo, um sofrimento que não tinha
paralelo... Dá um passo. – Ó Sol, liberta-me da gravidade! Lava meu sangue dos
humores espessos que extinguem a alegria de viver. Ensina-me a ligeireza. A minha
metamorfose caminha no sentido da tua chama! Um cão de caça se aproxima e rosna. –
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Ah, esse dog-god tem mesmo alma! Um belo espetáculo! Uma pantomima. Um beijo e
um queijo. Lilies of the valley. Papoulas. Tulipas. Rododentros. – Je ne crois à ni pére
ni mére. Ja na pas à papa-mama... Gotas de suor brilham em sua testa. Calorões de
hora em hora. – Sou uma flecha arremessada contra a tua fornalha! – Dizem, não sei,
contam de tudo. Que ela foi vista a escavar sobre uma tumba, porque queria queimar
restos do morto. Repetia a louca que, assim, teria cinzas para voltar a encher velhos
cinzeiros... A seu lado, um camelo com arreios vermelhos aguarda. Engruvinhar do
pescoço. Rabo e pêlos. Patas rosadas. Uma escada de seda leva ao balanço que
balouça. O camelo se ajoelha para recebê-la. Ela sobe. Ralha com ele em árabe. Vai
começar. O erâstes e seu erômenos vêm vindo. Descalços, túnica e calça à maneira
dória: mostra-coxas. Empurram-se. Chamas tatuadas nas testas. – Engraçado! Seus
pés estão voltados para trás, os calcanhares na frente... Seres de fuga. – Seul l’esprit
est capable de chier.)
Responsável pela arte de pensar, ela nem sempre foi ela. Seria um erro nela
buscar qualquer univocidade. Nos 60, ela era o traçado que moldava o terreno. Uma
constatação impiedosa. Isto é o que ela era, então. Denunciava a boa vontade, a afinação
com o Verdadeiro e o Bem. Claro, Nietzsche, além de mostrar o seu caráter moral, já
havia lutado contra ela. Em nome da gaia ciência. Daí, talvez, a ambivalência produtiva:
uma nova imagem ou sem imagem? Tratava-se de um pensamento que não obedecia a
nenhuma imagem prévia, que o orientaria, que determinaria de antemão o que
significava nele orientar-se. A Imagem, como sinônimo de Modelo, era
representacional, transcendente, com forma subjacente, regras prévias. Corria 1969. Ali,
ainda foi possível encontrar uma geografia mental do pensamento, com eixos e
orientações. Não um movimento ascensional ou uma profundidade. Mas, a reconquista
nietzschiana. Elogio da superfície. Não reivindicação por uma nova. Clamor para que a
filosofia fosse sem. O sentido parecia equivaler, tanto no início como no final dos 60.
Mais adiante, nos 80, ela era associada à forma do Estado. Então, a demolição.
Pensamento-vampiro: sem imagem, nem para criar modelo, nem para fazer cópia.
Rizoma, espaço liso, exterioridade pura. Um deserto. Movente. O pensamento como
multiplicidade. É claro! Aquele que se desloca fora das estriagens do espaço mental,
imposto pelas imagens clássicas e seus modelos. Chegamos aos 90. E ela recebia o
nome inesperado: plano de imanência. Nem um conceito pensado nem pensável. Uma
potência de Uno-Todo. Condições internas. Pressupostos implícitos. Conjunto de
postulados. Pré-filosóficos. Não-filosóficos. Númeno. Um crivo. Um grito. Puramente
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diferencial e repetitivo. Esse percurso: ainda obscuro? Mas, temos condições de


compreender o conjunto. Bref. Antes de 80, a reivindicação por um pensamento
evacuado de pressupostos pré-filósoficos. E de estriagens. Um pensamento sem
imagem. Após, a exposição de um plano não-filosófico necessário à filosofia. O que foi
que mudou? Houve radicalização: o sem imagem continuava proposto. Entretanto, a
exigência: um plano totalmente imanente. O pré-filosófico, desde então, não foi mais
abolido porque compunha intrinsecamente a filosofia. Talvez, fosse mesmo convincente
que o não-filosófico estivesse mais no coração da filosofia do que ela própria!
Modificara-se o entendimento de pré-filosófico, antes remetido à imagem dogmática,
como objetivo e conceitual, ou subjetivo e não-conceitual. Também a idéia de que não
havia uma só imagem, mas que o plano era traçado ao mesmo tempo em que os
conceitos eram criados. Cada filósofo constrói o seu plano ou se instala num já
constituído. Um plano como campo, solo, terra. Albergue dos conceitos. Assegurador de
sua existência autônoma. A crítica não se dirigia mais à Imagem, mas ao plano em que a
imanência não fosse absoluta, em que o movimento não fosse infinito. Um plano sem
coordenadas espaço-temporais, sem horizonte, sem móveis determinados. Porque, desde
que o plano fosse imanente a algo, o transcendente corria o risco de ser reintroduzido. O
pensamento sem passa a ser considerado sem modelo, sem forma, sem transcendência.
Imanência pura. Uma imagem, desta vez, puramente imanente. Pensamento pleno da
imanência. Fluido, fluente. Duração pura. Doação insensata de sentido. Integrado por
sonhos, processos patológicos, experiências esotéricas, embriaguez, excesso. Agora,
entre o plano e os conceitos, personagens de existência misteriosa: conceituais. Imagem
do Pensamento-Ser. Ser-Natureza. Ser-Caos. Ser-CsO. Por sua fluência e vibração, a
imagem torna-se próxima da matéria. Matéria do ser ou imagem do pensamento.
Matéria: mais do que o idealista chama representação e mais do que o realista chama
coisa. No meio do caminho. A Imagem migra de Modelo ou Forma para Matéria. Como
isso foi possível? Percurso conceitual de difícil compreensão! É preciso multiplicar as
precauções e ir mais devagar! Não parece inacreditável que o conceito de Imagem
signifique Modelo, em algum momento? Se o próprio Platão contrapôs a Idéia (o
Modelo) e a Imagem (a Cópia)? Há fusão entre Modelo e Cópia no conceito de
Imagem? Ou, em Platão, há outra dualidade além daquela entre Idéia e Imagem, entre
inteligível e sensível? Com efeito, há duas espécies de imagens que a Idéia deve
selecionar. É preciso distinguir entre os pretendentes bem fundados e os falsos. De um
lado, as cópias ou ícones e, de outro, simulacros ou dissimiles. Imagem sem
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semelhança, portanto. A Cópia interioriza a semelhança com a Idéia, enquanto o


simulacro interioriza a dissimilitude. O Modelo do simulacro não é mais o Mesmo,
como é o caso da Cópia, mas o Outro, o que já é dessemelhança. Eis porque é abolida,
simplesmente, a dualidade entre essência e aparência. Só que Kant e Hegel já tinham
feito isso... Tratava-se de afirmar e de positivar o simulacro. Todas as nossas
esperanças! A imagem sem semelhança não remete a um modelo, que lhe é
insubordinada, sendo ela própria dessemelhança. Por isso, apresenta-se um tipo de
imagem que nada tem a ver com a cópia e que, aliás, é rebelde tanto à cópia como ao
modelo. Uma imagem em devir-louco que produz um a-fundamento universal. Terceira
síntese do tempo. Eterno retorno da diferença. Coextensiva à matéria fluente ou à sua
variação. Uma espécie de Ser-Tempo de que a filosofia se nutre e que ela instaura.
Imagem, como o plano temporal não-filosófico, prévio à filosofia e que subjaz ao seu
exercício. No entanto, por que esses deslocamentos no conceito de imagem? Ora,
porque tinham sido escritos o Cinema 1 e 2, com suas imagens autotemporalizadas.
Herança direta. Não é à toa que o Cinema 2 termina onde começa O que é a filosofia? A
concepção e o estatuto ontológico do conceito de imagem foram, irremediavelmente,
modificados. O conceito ficou prenhe. De todo tipo de velocidades, de movimentos e de
profundidade do tempo. Como as imagens do cinema. Definiram-se as diferenças entre
formas de pensamento e criação: arte, ciência e filosofia. E seus cruzamentos. Bergson
ao lado de Spinoza? No mesmo nível de importância. A filosofia não precisava mais
lutar contra suas próprias ilusões nem se desfazer da imagem. Tem-se a impressão que
essa idéia recém tinha chegado. Mas ela esteve ali. O tempo todo. A filosofia adquire a
necessidade vital de traçar um plano, porque se dedica a subtrair um pouco da
consistência ao caos que desfaz tudo. Não obstante, sem renunciar ao infinito do
movimento e suas velocidades. Assim, movimento infinito e imagem tornam-se, para
sempre, solidários. Um corte no caos. Compreendem-se, por fim, os efeitos de
transcendência que pontuam a história da filosofia. O que a produz é a parada do
movimento. Não a imagem que, em si mesma, é movimento, mas a parada sobre a
imagem. Se há tantas imagens distintas do pensamento é porque cada uma criva o caos
de modo diferente, seleciona de modo diferente o que pertence de direito ao
pensamento. Nenhum plano pode abraçar o todo do caos. Cada um o corta do seu jeito.
Essas operações permitem que os conceitos e os planos se encontrem, se distribuam, se
reagrupem. Tempo estratigráfico. Claro que, deste ponto de vista, não estamos seguros
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que a filosofia não tenha futuro! E, ainda, não estamos seguros que ela não seja nada
mais do que um grande amor...

INFLEXÃO
(– Alô! Olá! Hi! Bonjour! Comment ça va? – Nil novi sub sole? Ele espreita por
detrás. Com seu rosto de coelho. A corda em volta do pescoço. As tripas parecem se
soltar. Acabam se descarregando. Camisa de algodão azul, casaco de linho preto, calça
cinza xadrez. Mordisca uma folha de hortelã. Chupa uma manga. Seu fígado pede o
divórcio por maus tratos e requintes de crueldade. O rosto congelado num raivoso
ponto de interrogação. – Terracota? Se um pensamento entrasse algum dia em sua
cabeça morreria de inanição. – Ei! Mãos ao alto! – De nenhuma criatura viva tenho
rancor. Só l’amour grec. Ela atiça. – Você vai arrumar encrenca! Chuta os seus
testículos. Confusão. Barulho. Em baixo do andaime, aquele banzé! A ousada. – Que
tal eu socar o seu peito? Qual múmia caiu duro. – Muito desagradável! Fabulada pela
memória. Com gestos elaborados, inspira. – Mil vezes matar aquele que inventou o
abdominal! – Mil vezes picar aquele que inventou o apoio! – Não chores ainda. A
terceira. Opulenta cabeleira cor de mel. Linha graciosa do queixo e do colo. Estrutura
óssea bem conformada. Nariz fino. Pele eternamente iluminada pela luz do sol poente.
Olhos cor de jade. Lábios carnudos e resolutos. Perfeita simetria da confluência
genética. Mulher misteriosa. Na cama. Na campa. Continente negro. Pôxa, nem
Freud... O homem faz você-sabe-o-quê. – O que está acontecendo? Um doutor com
estetoscópio. – Eu venho consultar-vos, Doutor. O mal que eu tenho e que me martiriza
os dias, tirando-me a razão e a mocidade, é um cancro que nunca cicatriza. Eu tenho
um coração que não palpita. Cabeça que não pensa, só divaga. Um tédio negro me
envenena os dias. Tédio que mata. Tédio que assassina. Como os beijos vendidos nas
orgias de intermináveis noites libertinas. Todos os seus amantes. – Entrem e
desfrutem... – E se as duas hipóteses forem falsas? E se for ainda mais complicado do
que dissemos? – It is very difficult... – Ora, bolas, já não perguntarás pelo ser, mas pelo
pensar. Ele é apedrejado com cascalho, chinelos, urinóis cheios de porcaria. Mordem-
lhe os calcanhares. – É impressionante a semelhança entre os dois! A mesma crítica
das ilusões! – La femme cependant precisa de ar puro. Pauvre muse! Hélas! – Da
montanha. – A mágica? – Monte de Vênus. – Arrependa-se! Poeirinha da poeira! – Ó,
o fogo do inferno, hem! Um rio de bile pingando. O amargo do amor. – Ó, menininha
com olhos virginais! Eu te procuro. Mas, tu não me escutas. Será que não sabes que és
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a única condutora de minh’alma? – Cet démon, il n’est pas lá... – Só uma coisa me
preocupa mais uma vez... – Membrum virile? – O sêmen pode se converter em
adiposidade, havendo continência? – Aqui reside Hércules. Que nada de mal entre
aqui. – Pouco importa! Em condições artificiais, o destino decide.)
Gottfried: – Caro Friedrich, aqui estamos. Trouxemos conosco este Estrangeiro.
Filho de Diógenes e de Hipatia, ele vem de Cítio no Chipre. Mas ele é diferente
(héteron) dos companheiros de Zenão. Ele pensa realmente como um filósofo, pois
pertence ao círculo de Fiódor, Francis, Franz, Henri, David, Louis, Arthur, Stéphane,
Jean-Luc e Virginia.
Friedrich: – Mas, caro Gottfried, como pensa este Estrangeiro? Como um
homem? Como um deus? Não pensa ele como um deus disfarçado de homem? Não te
acompanha, sem saberes, um deus-pensador em lugar de um pensador-estranho? Não
esquece que, para Homero, há deuses que assumem a aparência de estrangeiros vindos
de outros lugares... Embora existam aqueles que são companheiros dos homens que
operam com um pensamento estranho. Não será o Deus dos Estrangeiros (tón xénion
theòn) o único que pensa estranhamente? Por certo, quem te acompanha é um desses
pensadores superiores que vem pensar junto a nós, que somos tão fracos! Não será ele
um deus refutador (theòs tis elegktikós)? Pensa como político? Como sofista? Pode
bem ser que pense feito louco... Mas, como sabê-lo, se o pensamento segue tão
diversos sendeiros?
Gottfried: – Ora, Friedrich, o pensar deste Estrangeiro percorre a Terra.
Quando indagas se ele pensa como um deus, à qual conceito te referes: ao pensar dos
poetas ou àquele de um deus sophós, cuja divindade parece encarnar-se no filósofo?
Fica tranqüilo, amigo, acho que o Estrangeiro pensa como um homem-divino (theîos
anêr). Seu pensar é mais sóbrio do que os ardorosos amigos da Erística. É comedido
(metrióteros), como em todos os verdadeiros filósofos. Eu o vejo não como um deus-
pensador, mas como um pensador-divino, já que assim considero todos os filósofos.
Friedrich: – Tens razão, caro amigo. Temo, entretanto, que o pensar do filósofo
não seja nada fácil de determinar, assim como o divino. Para o juízo tolo das multidões,
ele corre sempre o risco da besteira. A uns, ele parece nada valer, e a outros, tudo valer.
E, outras vezes, dá a impressão de estar completamente em delírio. Não se trata de um
deus-pensador que assume uma outra forma, mesmo permanecendo deus – mas qual
deus? –, para participar do pensar humano e eventualmente refutá-lo? Diz-nos,
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Estrangeiro, afinal, pensas como um deus ou como um homem? Ou nada disso, mas
como um homem-divino?
Gottfried: – E, se assim for, Estrangeiro, como discernir o pensar filosófico,
dentre as aparências que ele assume (phantazómenoi), devido à estupidez dos outros
homens (dia tèn tôn állon ágnoian)? Como examinar a multiplicidade própria ao modo
que tem o filósofo de pensar? O seu pensar faz ou não parte do mundo?
Friedrich: – Assim como a deusa, no prólogo do poema de Parmênides, diz ao
jovem que é preciso que ele se instrua sobre todas as coisas, sobre a verdade e sobre as
opiniões, modalidade das aparências, parece-te que o pensar filosófico é da ordem da
aparência? É preciso examinar a própria aparência enquanto imagem? Imagem visual?
Imagem falada? Discurso (lógos)?
Gottfried: – O que perguntas é se, dentre as diferentes maneiras que se tem de
pensar, há uma maneira falsa?
Friedrich: – O pensamento falso seria próprio do pensar do sofista, que, em
última análise, é o pensar em confrontação com os eleatas? O pensar sofístico não
implica a máxima socrática do gnôthi seautón? A filosofia da diferença não começa por
esse pensar? Se as nossas questões não forem desagradáveis, quero perguntar-te,
diretamente: o que é pensar?
Gottfried: – Para quem?
Friedrich: – Para o artista, o cientista e o filósofo.
Gottfried: – O que queres saber, precisamente?
Friedrich: – Há uma única forma de pensar ou mais de uma?
Gottfried: – A questão que propões, Friedrich, é bem escolhida. Ela se parece
com aquelas que formulamos, no caminho para cá. O Estrangeiro discutia, então, os
mesmos problemas, e a propósito dos quais ele diz que ouviu muitos ensinamentos e
que não os esqueceu.
Friedrich: – Por favor, Estrangeiro, não te recuses ao primeiro favor que
pedimos. Mas, dize-nos, antes, se preferes desenvolver o que queres mostrar numa
longa exposição ou empregar o método interrogativo?
Estrangeiro: – Com parceiros assim, tão distintos, Friedrich, o método mais
interessante é com um interlocutor. Do contrário, talvez valesse mais a pena argumentar
apenas para mim próprio.
Friedrich: – Neste caso, escolhe a quem, dentre nós que aqui estamos, queres por
interlocutor. Agora, se aceitas um conselho meu, toma a este jovem, Baruch.
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Estrangeiro: – Oh! Friedrich! Sinto-me um tanto inseguro. O problema que


propões exige uma longa conversação. Consinto de bom grado que Baruch me replique,
pois já conversei com ele antes e agora tu o recomendas.
Baruch: – Faz, pois, assim, Estrangeiro, como disse Friedrich, que a nós todos
deixarás satisfeitos.
Estrangeiro: – Toda palavra a mais será supérflua. Tu, Baruch, é que deves,
daqui para frente, proceder à discussão. E se este trabalho vier a cansar-te acusa os teus
amigos aqui presentes e não a mim.
Baruch: – Não acredito que vá cansar-me logo. Se, no entanto, isso acontecer,
tomaremos a Heinrich, que aqui se encontra, meu parceiro no gymnásion. Ele já está
acostumado a realizar o mesmo trabalho.
Estrangeiro: – Muito bem. A decisão de mudar de interlocutor caberá a ti e
poderás tomá-la durante a nossa discussão. Cabe, pois, tratar da filosofia que leva mais
longe a afirmação da criação. A não ser que tenhas outro caminho a propor-nos.
Baruch: – Não, não sei de nenhum outro.
Estrangeiro: – Concordas então que investiguemos a arte de pensar para
Deleuze? Desde que fique bem estabelecido que não é de conhecimento que se trata,
mas de pensamento. Tenhamos presente que a pergunta “O que é a filosofia”? é idêntica
às perguntas “O que significa pensar”? e o “O que é orientar-se no pensamento”?
Baruch: – Qual o início desse pensamento que, na sua instauração filosófica,
deve-se à impaciência e às vertigens nietzschianas?
Estrangeiro: – Como na época de Platão, em que os gregos eram dominados pela
doxa, e somente a filosofia poderia mostrar o verdadeiro mundo, Deleuze inicia pelo
diagnóstico de que também estamos condenados à opinião e às fáceis certezas daqueles
que tudo sabem. A opinião luta contra o caos, que é multiplicidade de possibilidades.
Incapaz de viver com o caos, sentindo-se tragada por ele, a opinião tenta vencê-lo, foge
dele, e impõe um pensamento único.
Baruch: – Mas, essa fuga não é apenas aparente? O caos não continua ali,
jogando dados com a nossa vida?
Estrangeiro: – Diante do caos, o que importa ao filósofo não é nem vencer o
caos, nem fugir dele. Mas conviver com ele e dele extrair possibilidades criativas e
velocidades infinitas.
Baruch: – Agora, diz-nos, Estrangeiro: o caos existe?
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Estrangeiro: – Não, o caos não existe. Ele é uma abstração. Na linguagem


cosmológica, pode-se dizer que o caos é conjunto de possíveis. Na física, que ele é
trevas sem fundo. Na psíquica, que ele é atordoamento universal. O caos é inseparável
de um crivo, que faz surgir algo. É pura diversidade disjuntiva. Enquanto o algo é um
artigo indefinido, que designa uma singularidade qualquer.
Baruch: – Como se faz surgir algo do caos?
Estrangeiro: – É preciso que intervenha um crivo, como uma membrana elástica
e sem forma, como um campo eletromagnético.
Baruch: – Esse crivo é uma máquina infinitamente maquinada que constitui a
Natureza?
Estrangeiro: – Se o caos não existe é porque é o reverso do grande crivo e
porque este compõe, até o infinito, séries do todo e das partes. Estas séries somente nos
parecem aleatórias, caóticas, em função da nossa incapacidade para segui-las ou da
insuficiência de nossos crivos pessoais.
Baruch: – Então, Estrangeiro, a filosofia, entendida em sua relação com o caos,
não se empenha em adquirir um conhecimento capaz de realizar a correspondência entre
o conceito e um estado de coisas. Mas dedica-se a atribuir consistência aos conceitos,
pela via da produção de sentido, não é mesmo?
Estrangeiro: – Desde que ela não busca ascender ao plano de imanência para
atingir uma verdade ulterior.
Baruch: – Temos, então, um monólogo do conceito, que é anticomunicativo,
antidiscursivo e antijuízos?
Estrangeiro: – Não se pode julgar se não houver preocupação com a possível
existência de verdades.
Baruch: – Sendo assim, o que essa filosofia produz sobre o pensamento?
Estrangeiro: – Produz uma subversão da imagem clássica, dogmática, moral da
filosofia. Imagem baseada no reconhecimento: aquela que diz que, fora de si, o
pensamento reconhece materialmente o que formalmente já possui. Imagem que supõe
que, de um lado, existe o intelecto, como faculdade do pensamento, enquanto, do outro,
há a coisa, objeto externo, correlato do intelecto. Conhece-se como adequação. A
verdade é a correspondência entre a coisa, aquilo que ela essencialmente é, e a
representação da coisa, pelo intelecto.
Baruch: – Para a imagem dogmática, pensar significa conhecer. E o pensado
rompe com a doxa, com a opinião, e acolhe as coisas na sua essência?
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Estrangeiro: – Pensar é rejeitar as coisas como aparecem, em favor das coisas


como elas verdadeiramente são. É responder corretamente à pergunta – O que é? É
conhecer as coisas, os objetos, os entes, na sua verdadeira natureza. O pensamento
encontra-se no ser das coisas. Ele pré-figura as idéias inatas e, no contato com as coisas,
reconhece-as. No cogito cartesiano, todos sabem, pré-filosoficamente, no senso comum,
o que significa pensar, eu, ser. O primeiro conceito do plano cartesiano é o cogito, a
partir do qual os outros conceitos conquistam a sua objetividade. Com a condição de
serem ligados por pontos ao primeiro conceito, de responder a problemas sujeitos às
mesmas condições, e de permanecer sobre o mesmo plano.
Baruch: – Ao subverter a imagem dogmática do pensamento, a filosofia da
diferença necessariamente cria?
Estrangeiro: – Ela trata o pensamento como experimentação e viagem. A
imagem do pensamento como encontro. E, junto a isso, concebe a vida como processo
de criação, como uma obra de arte, vinculada à produção de singularidades e de
diferenças.
Baruch: – Nessa proposta criadora, quais elementos estão implicados no pensar
como a força responsável por extrair sentido do não-senso que nos cerca?
Estrangeiro: – A filosofia como criação é constituída por três instâncias
correlacionadas: o plano de imanência que ela traça, os personagens conceituais que ela
inventa, e os conceitos que ela cria.
Baruch: – Então, ao invés de contemplar, refletir, comunicar – verbos clássicos
da imagem dogmática –, os três verbos principais dessa filosofia são: traçar, inventar,
criar?
Estrangeiro: – A filosofia deve ser examinada pelo que produz e pelos efeitos
que causa. Trata-se de perguntar se os conceitos, o plano e os personagens são
importantes, interessantes, notáveis.
Baruch: – O que é que dá materialidade à filosofia?
Estrangeiro: – O plano de imanência, que é o solo e o horizonte dos conceitos. O
que faz com que os conceitos não se desgarrem e se tornem transcendentes.
Baruch: – E há algum “sujeito”?
Estrangeiro: – Aquele que permite ao filósofo criar e explorar os conceitos: o
personagem conceitual. Sócrates é o personagem de Platão. Dionísio, Zaratustra e o
Anti-Cristo são personagens conceituais de Nietzsche.
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Baruch: – Essa filosofia possibilita que se pense o intratável, o impensável, o


esquecimento do esquecimento, o não-pensado do pensamento, a exterioridade, o seu
fora, o diferente de si, o seu outro?
Estrangeiro: – Pensar não é reconhecer. Não é um exercício de boa-vontade. Não
é a correta aplicação de um método. Não tem a ver com a verdade. Não pergunta sobre a
essência das coisas.
Baruch: – Mas, o que é pensar, então?
Estrangeiro: – Pensar é encontrar signos.
Baruch: – São os signos que nos forçam e obrigam a pensar? Que arrancam o
pensamento de seu torpor e de suas possibilidades meramente abstratas? É desse modo
que se pode pensar o caos?
Estrangeiro: – Isto! Pensar como evento e como sentido. Quando alguma coisa é
designada, o sentido está sempre pressuposto.
Baruch: – Logo de saída, então, instalamo-nos em pleno sentido, sem precisar ir
dos sons às imagens, nem das imagens ao sentido?
Estrangeiro: – Nunca dizemos o sentido daquilo que dizemos, embora possamos
tomar o sentido do que dizemos como objeto de novas proposições. Numa regressão
infinita...
Baruch: – O sentido, pois, é distinto do que as proposições significam,
manifestam ou designam?
Estrangeiro: – Ele é um extra-ser. Faz existir o que o exprime. Faz-se existir no
que o exprime.
Baruch: – Por isso é que o evento se passa nas bordas do que acontece, se dá nas
fronteiras entre as coisas e as proposições, entre o que se vê e o que se diz?
Estrangeiro: – O evento é o único capaz de destruir o verbo ser e o atributo.
Baruch: – Pensar por conceitos e produzir sentido têm uma ligação essencial
com a linguagem, não é mesmo?
Estrangeiro: – Os conceitos são manifestações da linguagem. O pensamento é
um corolário da ordenação da linguagem. A filosofia é um jogo de conceitos com
consistência em seus devires.
Baruch: – Estrangeiro, só não podemos esquecer a lógica aristotélica, que nos
levou a pensar por meio de proposições, dotadas da estrutura ternária sujeito-e-
predicado, ligada pelo É do verbo ser. Não podemos esquecer que, ao invés de “Sócrates
filosofa”, ela propôs a forma lógica “Sócrates é filósofo”; ao invés de “A árvore
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verdeja”, “A árvore é verde”. E que esse acabou se tornando o modo dogmático de


pensar...
Estrangeiro: – Já, em Deleuze, o pensar faz com que o encontro com as relações
penetre e corrompa tudo, mine o Ser, faça-o vacilar. Ao invés do É designativo propõe o
E, que faz com que as relações corram para fora de seus termos e para fora do conjunto
de seus termos, para fora de tudo o que poderia ser determinado como Ser, Uno ou
Todo.
Baruch: – Trata-se, então, de uma maneira de afrontar a filosofia como teoria do
que é para constitui-la como teoria do que fazemos?
Estrangeiro: – O pensamento só diz o que é, ao dizer o que faz. Ele reconstrói a
imanência substituindo as unidades abstratas por multiplicidades concretas, o É da
unificação pelo E..., E..., enquanto processo ou devir – uma multiplicidade para cada
coisa, um mundo de fragmentos não-totalizáveis comunicando-se através de relações
exteriores.
Baruch: – Trata-se, então, de querer o evento, de vivê-lo por inteiro? E não pela
metade...
Estrangeiro: – De viver segundo uma ética das quantidades intensivas, que tem
dois princípios: afirmar até o mais baixo e não se explicar demais.
Baruch: – De viver segundo a ética estóica, que nos dizia: – Não sê inferior ao
evento! – Torna-te filho de teus próprios eventos!
Estrangeiro: – Há uma dignidade do evento: – Sê digno dele! O contrário de
uma moral da salvação.
Baruch: – Eventum tantum. Pedagogia filosófica que ensina a alma a viver a sua
vida e não a salvá-la... À vontade abjeta de ser amado opor uma potência de amar.
Extrair o puro evento que nos une àqueles que amamos. Àqueles que não esperam mais
de nós do que nós deles. Já que só o evento nos espera...
Estrangeiro: – Transposição da especulação ontológica para um horizonte ético,
para um campo de forças, de sentido e de valor.
Baruch: – Transavaliação de Nietzsche e de Deleuze: desculpabilizar a
existência, romper com a mobilização dos afectos tristes, que são os princípios da lei, da
finalidade, da causalidade, de toda exterioridade ou de todo transcendente natural ou
sobre-natural.
Estrangeiro: – Para tornar a existência terrena mais leve e alegre... Uma ética
que vai contra a atitude ressentida ou vingativa, que quer estancar as velocidades e
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intensidades, através da lógica representativa. Lógica que agrupa os seres pela


continuidade, tomando-os na extensão e nas qualidades, segundo o modelo do idêntico.
Baruch: – O pensamento de Nietzsche foi vital para esse conceito de pensar
como evento?
Estrangeiro: – Foi Nietzsche quem restituiu a intuição do evento, no ponto em
que as palavras inscrevem-se enquanto diferenciante intensivo em um processo de
criação.
Baruch: – A crítica nietzschiana à filosofia da representação dirigiu-se ao ato
classificatório ou de significação, que despreza tudo o que é singular (nem individual
nem universal), apaga a diferença vital intensiva, e dá-se apenas o idêntico, a
semelhança ou a diferença dos semelhantes, apenas a forma e o conceito.
Estrangeiro: – A filosofia da representação deixa, assim, de reconhecer a
potência inerente ao próprio ato interpretativo – o que dá forma e não pode ser
apreendido mediante o que ele forma.
Baruch: – Podemos dizer que evento e linguagem são pensados juntos? Que as
palavras recebem nelas e sobre elas os eventos, realizando-se como contra-efetuação na
efetuação, atualizando algo e provocando um diferenciante? Que o objeto não é o
designado, mas o expresso ou exprimível, jamais presente, mas sempre já passado e
ainda por vir?
Estrangeiro: – O evento pertence essencialmente à linguagem, mantém uma
relação essencial com ela. Embora a linguagem seja o que se diz das coisas...
Baruch: – O evento não preexiste à linguagem?
Estrangeiro: – Não, ele a habita, sem com ela se confundir.
Baruch: – Por isso, o puro expresso não se confunde com a expressão?
Estrangeiro: – O evento não é o que acontece. Ele é no que acontece o puro
expresso que nos dá sinal e espera.
Baruch: – Ele implica, portanto, outra lógica do sentido, outro tempo?
Estrangeiro: – Ele é inatributável e imprevisível. É o que há para ser
compreendido. O que deve ser querido. O que deve ser representado no que acontece.
Ele tem: uma extensão – conexão todo-partes, que forma uma série infinita, sem
começo nem fim; uma vibração – como uma onda sonora ou luminosa; um indivíduo –
que é criatividade, formação de algo novo, o que apreende o evento; objetos eternos –
fluxos, do Eterno Retorno.
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Baruch: – Apreender-se a si mesmo como evento é desejar e compreender todos


os outros eventos como indivíduos, sem representar todos os outros indivíduos como
eventos?
Estrangeiro: – É conceber uma subjetividade essencialmente fortuita, como um
ator-dançarino, que percorre uma série de individualidades a cada individualidade outra
que ele acredita ser.
Baruch: – Diz-nos, Estrangeiro: que é esse pensamento sem as forças efetivas
que agem sobre ele e as indeterminações afectivas que nos forçam a pensar?
Estrangeiro: – Nada, não é nada. O pensar se dá no infinitivo do presente – e não
na primeira pessoa do indicativo. Produzindo o movimento do pensamento, podemos
pensar de outro modo. Pensar é criar os novos conceitos requeridos pela experiência
real, e não apenas possível (isto é, abstrata), para dar lugar a novas experimentações da
vida.
Baruch: – Como já vimos anteriormente, a força de uma filosofia é medida pelos
conceitos que cria, ou cujo sentido renova, e que impõem um novo recorte às coisas e às
ações. Trata-se de uma vida, que não consiste somente no seu confronto com a morte e
de uma imanência que não produz transcendência?
Estrangeiro: – Conceito e criação se reportam um ao outro para contra-efetuar o
evento. A imanência, como vertigem filosófica, é o que está em jogo no trabalho
filosófico. Zona pré-individual e impessoal, além ou aquém da idéia de consciência, é o
que convoca o transcendental, para opô-lo ao transcendente e a toda forma dada no
campo da consciência – à transcendência do sujeito, bem como à do objeto.
Baruch: – Trata-se da imanência absoluta, ontológica, não fenomenológica ou
crítica?
Estrangeiro: – Exprime o que há de selvagem e de potente, num tal plano de
pensamento. O ser é imanente só a si mesmo, mas está sempre em movimento.
Imanência é potência, beatitude completa, feita de virtualidades, eventos,
singularidades. Um vitalismo transcendental.
Baruch: – Isso tudo está indo rápido demais para mim. Preciso de alguma
desaceleração. Por isso, pergunto: se o ato filosófico por excelência é criar conceitos, o
que é, afinal de contas, um conceito?
Estrangeiro: – É uma aventura do pensamento, que institui um evento ou vários
eventos. Aventura que permite um ponto de visada sobre o mundo, sobre o vivido:
reaprendizado do vivido, ressignificação do mundo. É um sobrevôo, um pássaro que
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sobrevoa o vivido. É formado por partes conceituais, que podem ser também, por sua
vez, tomadas como conceitos e geram, assim, uma extensão ao infinito.
Baruch: – Podes nos dar alguns exemplos?
Estrangeiro: – O conceito de Eu em Descartes é formado por três componentes:
duvidar, pensar, existir. Cada um desses, por sua vez, já é conceito que tem seus
componentes conceituais. Deleuze utiliza o conceito de Eterno Retorno, do plano de
imanência nietzschiano, para operar o conceito de Repetição, como repetição da
diferença – que é o contrário do conceito de Eterno Retorno como produção do Mesmo
e do Idêntico.
Baruch: – A produção de sentido e a consistência entre os conceitos é o que
interessa em sua formulação?
Estrangeiro: – O conceito como evento não é proposicional. A filosofia não é
discursiva. Na lógica e na ciência, uma proposição define-se por sua referência a coisas
ou estados de coisas. Mas o conceito, que é filosófico, é auto-referente. Nem a ciência
nem a lógica operam por conceitos porque as funções científicas supõem uma referência
em ato, são coordenações necessárias de estados de coisas ou objetividades, como
termos variáveis independentes. As funções lógicas recaem sobre a referência em si
mesma, ou como possibilidade proposicional, determinam as condições de referência
das proposições em geral. Já os conceitos remetem apenas a puros eventos incorporais,
distintos de suas atualizações em corpos e estados corpóreos, e formam consistência não
referência.
Baruch: – No plano, os conceitos são imanentes a quê?
Estrangeiro: – São imanentes a um horizonte. Eles têm endoconsistência e
exoconsistência. São rizomas, isto é, sistemas a-centrados e não hierárquicos.
Baruch: – Realizam conexões, ligamentos, junções horizontalmente num mesmo
plano. Mas, nunca saem, verticalmente, desse plano?
Estrangeiro: – Por sua imanência, os conceitos evitam realizar experiências que
centrem o pensamento em realidades ulteriores, sobrenaturais, místicas, ou que
busquem suas referências em estados de coisas (fatos) e em verdades fora do plano. No
sentido escolástico, os conceitos desterritorializam o pensar por figuras de cunho
transcendental.
Baruch: – Contudo, sem referir-se a nada exterior a ele próprio, o conceito não é
uma função?
19

Estrangeiro: – O conceito busca consistência nos eventos. Põe-se a si mesmo e


põe seu objeto: autoposição do conceito. Ele é autopoiético.
Baruch: – Assim, o pensamento conceitual não se interessa por nenhuma
correspondência representativa, mas pela própria coerência e produção de sentido.
Neste caso, podemos afirmar que a auto-referencialidade torna-se um método filosófico,
isto é, uma maneira determinada de fazer filosofia? É isto o que significa pensar por
conceitos?
Estrangeiro: – O conceito diz o evento, que se efetua em um estado de coisas.
Pensar não é tratar os conceitos como noções gerais, mas como eventos. Não como
universais, mas como singularidades. Não sair do plano de imanência e buscar uma
referência ulterior, mas criar sentido no próprio plano. Pois, se a verdade existe, ela está
no sentido das conjunções dos conceitos no plano. Logo, ela é sentido construído.
Baruch: – Se os conceitos não são imanentes a nada, a que eles remetem?
Estrangeiro: – A problemas, que são o sentido da invenção conceitual e o
verdadeiro objeto de uma pedagogia do conceito.
Baruch: – Se os conceitos são criados para solucionar problemas que se
considera mal vistos ou mal colocados, eles exigem só um problema, sob o qual
remanejam ou substituem conceitos precedentes?
Estrangeiro: – Pode ser um problema, mas também uma encruzilhada de
problemas, em que se aliam a outros conceitos coexistentes.
Baruch: – Esses problemas, enquanto criações do pensamento, têm a ver com
interrogações? Tais como essas que vimos formulando aqui?
Estrangeiro: – Não, porque a interrogação é apenas uma proposição suspensa, o
pálido duplo de uma afirmativa que se supõe servir-lhe de resposta. Por exemplo, se
perguntarmos – Quais são os personagens do Sofista? –, estaremos levando o
pensamento a produzir algo de interessante? A fazer com que ele acesse o movimento
infinito que o libera do verdadeiro, como paradigma suposto, e reconquiste um poder
imanente de criação? Ou levando-o apenas à recognição?
Baruch: – A imagem adequada não será a do vapor? Aquele que se desprende
dos corpos, das coisas, dos estados de coisas? Como em história, não se trata de atingir
a névoa não-histórica que ultrapassa os fatores atuais em proveito de uma criação de
novidade?
Estrangeiro: – Trata-se da esfera do virtual. A lógica mata o conceito duas vezes.
O conceito renasce porque não é uma função científica, nem uma proposição lógica. Ele
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não pertence a nenhum sistema discursivo. Ele não tem referência. O conceito se mostra
e nada mais faz do que se mostrar.
Baruch: – Então, os conceitos são verdadeiros monstros que renascem de seus
pedaços... Mas, o que dizer, Estrangeiro, de conceitos ou de conjuntos de conceitos
vagos ou confusos, simples agregados de percepções e afecções, que se formam no
vivido como imanente a um sujeito, a uma consciência? Por exemplo, o conceito de
gordo? Não é ele um conjunto vivido, não um enunciado científico nem uma proposição
lógica? Não é ele uma simples opinião do sujeito, avaliação subjetiva, juízo de gosto ou
juízo empírico? Os conceitos que integram o mundo do vivido são ou não conceitos
filosóficos?
Estrangeiro: – Com os conceitos do vivido se reconstituem funções científicas
ou lógicas, ou inverte-se um novo tipo de função propriamente filosófica. O mundo do
vivido é uma fundação primeira para o conceito filosófico.
Baruch: – O filosófico se confunde com o vivido, mesmo definido como
imanência de um fluxo do sujeito? Os conceitos filosóficos são funções do vivido?
Essas funções tornam-se primeiras?
Estrangeiro: – Ora, Baruch, não se pode confundir o filosófico com o vivido. A
fenomenologia já fez isso em demasia... Para o pensamento da diferença, no seio da
imanência do vivido a um sujeito, é preciso descobrir atos de transcendência.
Baruch: – O sujeito, neste sentido, deixa de ser empírico e passa a ser
transcendental? As opiniões e os juízos deixam de ser empíricos e transformam-se em
proto-crenças, Urdoxa (opinião disfarçada), opiniões originárias como proposições?
Estrangeiro: – O conceito só tem uma consistência definida por seus
componentes internos. Ele é evento como puro sentido que percorre os seus
componentes.
Baruch: – Pelo que disseste, no início de nosso diálogo, esse universo do
pensamento engloba também o plano de imanência. Do que entendi, ele consiste na
possibilidade de pensar o impensável. Parece que o plano é ao mesmo tempo o que deve
ser pensado e o que não pode ser pensado. Pergunto: seria ele o não-pensado do
pensamento? O pensamento-outro (pensée autrement), que embaralha a sintaxe e
organiza o pensamento numa lógica às avessas?
Estrangeiro: – Sim, pode-se afirmar isso. O plano de imanência é alheio às
estruturas e acoplado aos processos. É diagrama, e também horizonte e solo. Um
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campo, onde se produzem, circulam e entrechocam os conceitos. Uma atmosfera. Um


reservatório. Um meio indivisível.
Baruch: – Podemos afirmar que o pensamento-outro é multiplicador de devires?
E que, como todo devir, é composto por fluxos e refluxos nômades, singularidades? Que
ele está liberto das categorias, do culto ao todo, dos pares de tensões, como bem/mal?
Que opõe ao pensamento binário a inocência do devir? Que é um pensamento marcado
não pela vingança nem pela má-consciência, mas, pela vontade de potência? Que o
artista é um criador, portanto, um estrupador da folha, da tela, do barro? Já que não
existe criação sem lutas entre dobras e estruturas, linhas de fugas e nomeação?
Estrangeiro: – O pensador (o criador) é sempre um ignorante... Do valor das
opiniões estabelecidas e das verdades recebidas. A filosofia de Deleuze é uma filosofia
de campo. Só que esse campo não é pensável por si mesmo. Seu mapeamento só é
possível pela definição correlata dos conceitos que o povoam.
Baruch: – Os conceitos precisam de um campo virtual prévio e o plano de
imanência não subsiste sem os conceitos?
Estrangeiro: – O plano de imanência ou planômeno (imagem do pensamento)
despovoado de conceitos é cego. No limite, é o caos. E o conceito, por sua vez, extraído
de seu elemento intuitivo, é vazio. O plano é sempre dito no plural. Ele é um corte no
caos. Cortar é captar uma fatia do caos, que permanece livre em todas as outras
direções. É um crivo, que seleciona e fixa, determina e contém um rio...
Baruch: – De Heráclito... Conceitos e plano de imanência são sempre
contemporâneos?
Estrangeiro: – Trata-se de um construcionismo filosófico. Sempre que conceitos
são criados, é necessário instaurar um planômeno. Compreender o que se passa com um
conceito é, simultaneamente, entender o plano de imanência, pois, eles ressoam,
correlacionam-se. Mas não se confundem.
Baruch: – O que não entendi ainda: qual a relação entre filosofia e vida? Ou seja:
quais os efeitos da idéia do plano de imanência e de conceito, em nossa vida imediata,
individual ou coletiva?
Estrangeiro: – O plano é a máquina abstrata. Os conceitos são agenciamentos
concretos, configurações da máquina, suas peças.
Baruch: – O que está em jogo, em nossa vida imediata, é, assim, uma luta contra
o caos, responsável pela dissolução do consistente? Por isso, o plano retira do caos a
consistência que é doada aos conceitos? O plano é o espaço liso, vetorial, cortado por
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intensidades, por forças criativas de atualização da diferença múltipla, que passam pelo
virtual como um corte, que retira dele consistência?
Estrangeiro: – O plano é a possibilidade de orientação do pensamento.
Baruch: – Ah, finalmente, acho que entendi! Sendo o terreno pré-filosófico que
traça coordenadas para a construção conceitual, o plano é a casa do conceito!
Estrangeiro: – No plano comum de imanência, que é virtual, estão todos os
corpos, todas as almas, todos os indivíduos.
Baruch: – Mas, o que é o virtual?
Estrangeiro: – O virtual é a virtualidade tornada consistente. A entidade que se
forma sobre um plano que corta o caos.
Baruch: – É o que se chama evento, ou a parte do que escapa à sua própria
atualização em tudo o que acontece?
Estrangeiro: – O evento se atualiza num estado de coisas, num corpo, num
vivido. Mas, todo evento tem uma parte sombria e secreta, que não pára de se subtrair
ou de se acrescentar à sua atualização. Ele não começa nem acaba, mas ganha ou guarda
o movimento infinito ao qual dá consistência. É o virtual que se distingue do atual. Mas
um virtual que não é mais caótico, tornado consistente ou real, sobre o plano que o
arranca do caos.
Baruch: – Por isso é que Deleuze gosta de repetir Proust: “real sem ser atual,
ideal sem ser abstrato”...
Estrangeiro: – O evento é transcendente, porque sobrevoa o estado de coisas, os
corpos, o vivido. Mas somente a imanência pura lhe dá a capacidade de sobrevoar-se a
si, em si mesmo, e sobre o plano. Quando então ele se faz trans-descendente.
Movimentos do evento...
Baruch: – Desde que ele é imaterial, incorporal, invisível: pura reserva. Desde
que ele não é eterno, mas também não é tempo: é devir. É um tempo morto, uma espera
infinita que já passou infinitamente...
Estrangeiro: – Espera e reserva. Nada se passa aí. Todavia, tudo muda, porque o
devir não pára de conduzir o evento, que se atualiza alhures, a um outro momento. O
conceito tem uma potência de repetição, a realidade de um virtual, de um incorporal, de
um impassível, porque é ele que apreende o evento, seu devir, suas variações.
Baruch: – Só que, Estrangeiro, para mim, há algo ainda muito enigmático: a
instância intermédia dos personagens conceituais. Eles têm uma existência fluida entre o
conceito e o plano pré-conceitual, certo. Mas, de onde eles vêm? Como aparecem?
23

Estrangeiro: – A filosofia passa pelo estudo desses personagens, de suas


mutações segundo os planos, de sua variedade segundo os conceitos. Ela dá vida aos
personagens conceituais, que não podem aparecer por si mesmos, mas que estão lá e
devem ser reconstituídos.
Baruch: – Fico confuso porque os personagens conceituais, por vezes, têm um
nome próprio, como Sócrates, no platonismo. Entretanto, outras vezes, personagens
como Teeteto, Teodoro, Fédon, Equécrates, Críton, Símias, Gláucon, dos Diálogos
platônicos, não são considerados personagens conceituais.
Estrangeiro: – Todo personagem conceitual é original, único, notável. Ele é
quem opera os movimentos que descrevem o plano do pensamento e intervêm na
criação dos conceitos do pensador.
Baruch: – Mesmo os personagens antipáticos – como o capitalista, em Marx –
ou simpáticos – como o proletário, ou o amigo para os gregos – pertencem ao plano que
traçam e aos conceitos que criam?
Estrangeiro: – O rosto e o corpo dos filósofos abrigam os personagens
conceituais, que lhes dão um ar estranho, sobretudo no olhar, como se outros vissem
através de seus olhos. Os personagens não representam os filósofos, mas são os seus
heterônimos. Os filósofos são idiossincrasias de seus personagens. E o seu destino é
transformar-se neles. Ao mesmo tempo em que eles se tornam sempre outras coisas
diferentes do que são historicamente. E renascem como tigres ou diabos...
Baruch: – O personagem é o agente da enunciação filosófica, não dito mas
pensando...
Estrangeiro: – Em filosofia, o Eu é sempre uma terceira pessoa.
Baruch: – Sim. Eu quero como Zaratustra... Os personagens não são
personificações míticas, pessoas históricas, nem heróis literários ou romanescos. Não é
o Dioniso dos mitos que está em Nietzsche... Porque devir não é ser. E o próprio
Nietzsche devém Dioniso. Há, então, diferença entre os personagens conceituais e as
figuras estéticas?
Estrangeiro: – Os personagens são potências de conceitos, que operam sobre um
plano de imanência. E produzem conceitos. As figuras estéticas são potências de afectos
e perceptos, que operam sobre um plano de composição. E produzem afectos.
Baruch: – Mas ambas, arte e filosofia, recortam o caos, isto é, pensam?
Estrangeiro: – A arte pensa por afectos e perceptos, enquanto a filosofia pensa
por conceitos. Esses pensamentos passam um pelo outro, numa intensidade que os co-
24

determinam. Entre as figuras estéticas e os personagens conceituais, há alianças,


bifurcações e substituições.
Baruch: – Então, o conceito pode tanto ser de afecto, quanto o afecto pode ser
afecto de conceito?
Estrangeiro: – O plano de composição da arte e o plano de consistência da
filosofia podem deslizar um no outro. Certas extensões de um podem ser ocupadas por
entidades do outro. Embora o plano e aquilo que o ocupa sejam partes distintas,
heterogêneas.
Baruch: – É assim que um pensador pode modificar o que seja pensar... Mas, ao
traçar um novo plano de imanência, em vez de criar novos conceitos, o filósofo pode
povoá-lo com entidades poéticas, romanescas, pictóricas, musicais? E o artista pode
fazer o inverso acontecer?
Estrangeiro: – Pensadores como Hölderlin, Rimbaud, Mallarmé, Pessoa não
fazem uma síntese entre arte e filosofia. Eles, tampouco, são filósofos pela metade. São
mais do que filósofos! Acrobatas de um malabarismo perpétuo, eles bifurcam, instalam-
se na própria diferença.
Baruch: – Tanto os personagens conceituais como as figuras estéticas são
irredutíveis a tipos psicossociais?
Estrangeiro: – Um campo social comporta dinamismos poderosos, em que os
movimentos dos personagens, das figuras e dos tipos psicossociais se interpenetram
incessantemente. O estrangeiro, o migrante, o excluído, o passante, o autóctone...
Baruch: – Para não misturá-los, é necessário diagnosticar verdadeiros tipos
psicossociais ou personagens ou figuras, numa sociedade dada, num momento dado.
Entretanto, não me parece fácil... Quais as operações que eles realizam?
Estrangeiro: – Os tipos psicossociais tornam perceptíveis as formações de
territórios, os vetores de desterritorialização, os processos de reterritorialização.
Baruch: – E as figuras estéticas?
Estrangeiro: – Elas falam a linguagem das sensações, que fazem entrar nas
palavras, nas cores, nos sons ou nas pedras. Vêem a Vida no vivente e o Vivente no
vivido. São atletas afectivos...
Baruch: – E os personagens conceituais?
Estrangeiro: – Os personagens manifestam os territórios, desterritorializações e
reterritorializações do pensamento.
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Baruch: – Isso quer dizer que os personagens nos preexistem? Eles assumem
uma nova existência, como condições interiores do pensamento para o seu exercício
real? Eles pensam em nós?
Estrangeiro: – Eles são pensadores. Assim, o Amigo, o Juiz, o Legislador não
são estados privados, públicos ou jurídicos, mas o que cabe de direito ao pensamento.
Baruch: – Os personagens conceituais e os tipos psicossociais remetem um ao
outro e se conjugam, sem se confundirem?
Estrangeiro: – Os traços dos personagens têm, com a época e com o meio em
que aparecem, relações que só os tipos psicossociais permitem avaliar. Os movimentos
físicos e mentais dos tipos psicossociais são suscetíveis de uma determinação pensante e
pensada, que os arranca tanto dos estados de coisas históricas de uma sociedade, como
do vivido dos indivíduos. E faz deles traços de personagens conceituais, ou eventos do
pensamento, sobre o plano traçado ou sob os conceitos criados.
Baruch: – Quais são, afinal, os traços dos personagens conceituais? Esses traços
variam com os planos de imanência? Sobre um mesmo plano, diferentes traços podem
se misturar para compor um personagem?
Estrangeiro: – Há traços páticos: o Idiota, o Louco, a Múmia, um grande
maníaco. O esquizofrênico é um personagem conceitual que vive no pensador e o força
a pensar, assim como também é um tipo psicossocial que reprime o vivo: os dois se
conjugam. Há traços relacionais: o Amigo, mas que só tem relação com seu amigo,
Pretendente e Rival, que disputam a coisa ou o conceito, mais o Jovem, uma Noiva. Há
também traços dinâmicos: dançar como Nietzsche ou pensar como surfista. Os traços
jurídicos ocorrem quando o pensamento exige o que lhe é de direito. Já os traços
existenciais dizem respeito à filosofia que inventa possibilidades de vida.
Baruch: – O personagem conceitual e o plano de imanência estão em
pressuposição recíproca?
Estrangeiro: – Ora o personagem precede o plano, ora o segue. É que ele aparece
duas vezes: primeiramente, mergulha no caos e tira daí determinações, das quais faz os
traços diagramáticos de um plano. Então, como se fossem dados, joga-os no acaso-caos
e os lança sobre a mesa. Para cada dado que cai, faz corresponder os traços de um
personagem e os componentes de um conceito, que vêm ocupar a mesa.
Baruch: – Os personagens intervêm entre o caos e os traços diagramáticos dos
planos? E também entre estes e os traços intensivos dos conceitos? Eles constituem os
pontos de vista segundo os quais os planos se distinguem ou se aproximam? São eles
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que constituem as condições sob as quais cada plano de imanência se vê preenchido por
conceitos do mesmo grupo?
Estrangeiro: – O plano de imanência tem traços diagramáticos. O conceito tem
traços intensivos. Já, o personagem conceitual é ponto de vista e condição. Os traços
personalísticos dos personagens se juntam aos diagramáticos do plano e aos intensivos
dos conceitos.
Baruch: – Do que entendi, os conceitos não se deduzem do plano de imanência.
É necessário o personagem conceitual para criá-los sobre o plano e para traçar o próprio
plano. Parece-me, entretanto, que essas duas operações não se confundem no
personagem, uma vez que ele é um operador distinto.
Estrangeiro: – Os planos são inumeráveis, agrupam-se ou se separam segundo os
pontos de vista constituídos pelos personagens. Cada personagem tem vários traços, os
quais podem criar outros personagens sobre o mesmo plano ou sobre outro plano de
imanência. Há, desse modo, uma proliferação de personagens conceituais. Assim como
há uma infinidade de conceitos possíveis sobre um plano. Há grupos de conceitos, que
ressoam entre si e lançam pontes. Há famílias de planos. Há tipos de personagens,
segundo a possibilidade de encontro sobre um mesmo plano e num grupo. Ou seja, é um
mundo muito rico...
Baruch: – Vejo essa filosofia girando ao redor duma trindade de elementos: um
pré-filosófico, de imanência – o plano; outro pró-filosófico, de insistência – os
personagens conceituais; o terceiro, filosófico, de consistência – os conceitos. É assim?
Estrangeiro: – Só que ainda há uma faculdade de co-adaptação desses três
elementos, uma regra de correspondência das três instâncias: o gosto filosófico. A razão
é a faculdade que traça o plano de imanência. A imaginação inventa os personagens
conceituais. O entendimento cria os conceitos. Já o gosto é a tripla faculdade do
conceito ainda indeterminado, do personagem conceitual ainda nos limbos, do plano de
imanência ainda transparente.
Baruch: – Ah, é o amor do conceito bem feito, como um novo lance, não? Não
se dá o mesmo na arte? Há um gosto também pelos monstros, segundo o qual eles
devem ser bem feitos!
Estrangeiro: – Assim é...
Baruch: – Então, há, por um lado, o que se pode chamar de mau gosto em
filosofia? Seria aquilo que é desinteressante por natureza?
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Estrangeiro: – O mau gosto consiste na redução dos conceitos a proposições ou a


simples opiniões. O desinteressante consiste em conceitos inconsistentes, ou por demais
regulares, ou em conceitos mais universais, que são os mais esqueléticos.
Baruch: – Por outro lado, existe um bom gosto?
Estrangeiro: – É o plano de imanência traçado, que opera por abalos. O
personagem conceitual inventado, que opera por solavancos. O conceito criado, que
opera por saraivadas. Agora, o que é problemático, por natureza, é a relação das três
instâncias. Nada se sabe se não se construir o plano, o conceito, o personagem. São
categorias do Espírito...
Baruch: – Rumando para o final, Estrangeiro, importa falar, um pouco mais,
sobre as ordens de criação que mergulham e recortam o caos, produzindo sentidos.
Estrangeiro: – Como já vimos, são três ordens de criação: a filosofia, a arte e a
ciência.
Baruch: – Já sei que elas se distinguem em função de comportamentos diferentes
diante do caos. Mas, podemos ver, primeiramente, as distinções entre filosofia e
ciência?
Estrangeiro: – O plano filosófico de imanência corta o caos, dá-lhe consistência,
fá-lo não mais transparente. A ciência dá referência ao caos, renuncia aos movimentos e
velocidades infinitos, renuncia ao devir.
Baruch: – Então, a ciência não se ocupa de conceitos?
Estrangeiro: – Não, ela se ocupa de funções, que se apresentam em forma de
proposições. O caos traz o possível, mas com consistência e referência entrópicas. A
ciência atualiza o virtual, através das funções, buscando retirar dele referência. Por isso,
ela instaura um plano de referência.
Baruch: – Devido à sua exigência de paradigmas de verdade?
Estrangeiro: – Essa exigência inibe o poder imanente do conceito (consistência e
sentido no jogo dos planos), em detrimento de verdades capazes de estabelecer uma
correspondência entre o objeto (estado de coisas-fatos) e a idéia (modelo hipotético).
Assim, a ciência é paradigmática, luta para dominar o caos e transformá-lo em
verificação.
Baruch: – Mas, há também a lógica, como já referiste.
Estrangeiro: – Os prospectos designam os elementos da proposição lógica:
função proposicional, variáveis, valor de verdade (igual a verdadeiro e falso). A lógica é
reducionista por essência: ela quer fazer do conceito uma função. O conceito
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proposicional opera uma logicização dos functivos, que se tornam os prospectos de uma
proposição, isto é, realizam a passagem da proposição científica à proposição lógica.
Quando se torna proposicional, o conceito perde todos os caracteres que possuía como
conceito filosófico. Por exemplo, “Leopold Bloom é homem” e “Molly Bloom é
mulher” são prospectos apenas com valor de informação.
Baruch: – E quanto a outras relações entre arte e filosofia?
Estrangeiro: – A arte deixa o caos sensível. Traça um plano de composição
lotado de blocos de sensação, isto é, compostos de perceptos e afectos. Conserva e se
conserva a si. A obra de arte é um ser de sensação e nada mais: ela existe em si.
Baruch: – Mas, o que são perceptos e afectos?
Estrangeiro: – Perceptos e afectos são sensações, seres que valem por si mesmos
e excedem qualquer vivido. Pinta-se, esculpe-se, compõe-se, escreve-se com sensações.
Baruch: – O afecto é o que é semelhante: “como o cachorro”, por exemplo?
Estrangeiro: – Os afectos não são semelhanças, mas devires. Algo passa de um
ao outro. Este algo é a sensação. Coisas, animais e pessoas atingem, na zona do afecto,
um ponto que precede toda sua diferenciação natural.
Baruch: – As figuras estéticas da arte são sensações. Já estas são percepções, que
remetem a um objeto ou a um sujeito?
Estrangeiro: – São perceptos e afectos, paisagens e rostos, visões e devires. Os
afectos são os devires não-humanos do humano. Os perceptos são as paisagens não-
humanas da Natureza. Nathalie Sarraute não escreve com lembranças de infância, mas
por blocos de perceptos e afectos de infância, que são devires-infantis do presente. As
fabulações criadoras nada têm a ver com imaginação, lembranças, fantasmas. Os
estados perceptivos e as passagens afectivas do vivido são excedidos. Na arte, é-se um
vidente, alguém que se torna. Criam-se potências semipessoais ou presenças eficazes. É
assim se acrescentam novas variedades ao mundo.
Baruch: – Porém, o conceito também não é composto por perceptos e afectos,
paisagens e rostos, visões e devires?
Estrangeiro: – Embora tudo seja devir, não se trata do mesmo devir. O da
sensação é o ato pelo qual algo ou alguém não pára de devir-outro, continuando a ser o
que é  alteridade numa matéria de expressão. O devir conceitual é o ato pelo qual o
evento esquiva o que é  heterogeneidade absoluta.
Baruch: – Então, não estamos nunca no mundo, nos tornamos com o mundo.
Estrangeiro: – Mais do que isso: tornamo-nos universo... Finis.
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DESINÊNCIA
(Aischrología. Linguagem feia, vergonhosa. Ética a Nicômano. – Que pai, hem?
– Tocam-se sinos para essa sina?! Riverrun. – Noite escura. Rua escura. Um revólver.
Um bandido. E eu. – A bolsa ou a vida? Olhei minha bolsa. Olhei minha vida. E
respondi: – Escolha. Ambas estão vazias. Uma multidão de esfarrapados se avoluma
através das poças de lama, carregando amuletos em forma de vaginas e falos. Há
tochas também, com a mesma função apotropaica. Ólisboi. – De Mileto? – Escolher
entre a fome do homem e a vida do bicho é difícil! – Bestalhão... Por entre as brechas,
o nevoeiro rola para trás, revelando-a. Algures. Com touca e capa de pele de raposa
branca, enrolada até o pescoço, ela sai de sua carruagem. À frente, no peito, duas
suculentas maçãs maduras. Tira as mãos, perfumadas com água de rosas, do imenso
regalo e as agita no ar. Com os lábios úmidos (seus dardos do amor), grita que parem,
pois ela não é ninguém, nem uma metalinguagem. – Tansa! Tansa! Tansa! Riem
zombeteiramente. – Here Comes Everybody. Aquilo estava virando um mantra. – Dêem-
lhes brioches! Ou os açoitem com violência – ela diz, veemente. Esganiçada.
Esgoelada. Gasguita. Vaias a fazem calar. Franze a testa. Badaladas chegam de
campanários diversos. À sua frente, o padre de barriga de sapo se benze. Prostituição
sagrada. – Hieròs gamós. Máquina infernal, ela é a imagem do mundo que não se
compreende em palavras. Escandalosa, é contraveneno à besteira. – Ars. Seu amor é
como fatum, como fatalidade, único, inocente. Liame de olhos. Brilhantes. Injetados.
Verdejantes. Rejeita o socratismo estético. É forma e caos. Luz e noite. Aparência e
essência. Imagem e música. Apolo e Dioniso. Aristófanes e As tesmóforas. Tristão e
Isolda. Heloisa e Abelardo. Cruzada das crianças. – Venho não sei de onde. Sou não sei
quem. Morro não sei quando. Vou não sei onde. Espanto-me de ser tão alegre. Jogos de
pensares e quereres e fazeres dos artistas. – O non plus ultra. – Tà aphrodísia. Então,
volta-se e diz: – ...a les rayons du ciel dans le cul. – Pela decisão dos anjos e
julgamento dos santos, excomungo, expulso, execro e maldigo. O marrano. Maldito
seja de dia. E maldito seja de noite. Maldito seja quando se deita. E maldito seja
quando se levanta. Maldito seja quando sai. Maldito seja quando regressa. Ordeno que
ninguém mantenha com ele comunicação oral ou escrita. Que ninguém lhe preste favor
algum. Que ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro
côvados. Que ninguém leia algo escrito ou transcrito por ele. – He also believed that
pleasure... – Existem muitos piores do que ele, mas pouquíssimos melhores. – Eu lhe
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daria tudo quanto tenho. À porfia. Se ele me quisesse. Eu seria sua escrava. Por ele, eu
iria até para o fogo.)
kairós estamos agora em condições de dissipar as ambigüidades aparecidas no
início Salve porque fazer filosofia não é refletir sobre domínios extrínsecos a ela mesma
muito menos é repetir os filósofos Ah já que ela não pára de colocar-se em relação
intrínseca com outros domínios embora não tenha o objetivo de fundá-los ou de
justificá-los Ah bom apenas tematiza elementos não-conceituais que são atos saberes
funções sons imagens linhas cores a ciência o literário o artístico e com eles estabelece
ecos conexões ressonâncias articulações agenciamentos convergências que Ó ela integra
e transforma em conceitos de modo que Ó o filósofo é criador e não reflexivo nem
comunicador Imagine a filosofia Não é contemplação Não Nunca pois a contemplação
Não é criativa Ó como no platonismo que visa a coisa mesma tomada como preexistente
e independente do ato de contemplar Não Também não é reflexão sobre alguma coisa
externa ao intelecto porque a reflexão Não é específica da atividade filosófica e Não é
Nada de comunicação porque esta visa ao consenso não ao conceito como querem
Aqueles chatos neopragmatistas que propõem uma conversação democrática ao redor da
mesa do banquete e dificilmente Muito dificilmente saem da opinião Ó é que o filósofo
só pensa a partir de Ó e a sua questão central é esta mesma O que é pensar E eis a
filosofia definida por seu poder criador e pela exigência de criação de um novo
pensamento Ah maravilha ela é arte de formar inventar fabricar conceitos Ó desde
quando a palavra grega filosofia philia + sophia cruzou amizade remetida à
proximidade e ao encontro com o conceito e fez com que o personagem do filósofo
nascesse com os gregos como aquele que busca o que nunca é dado Ah lindeza como
procura e produção e pensa o conceito diferentemente dos sábios antigos que Ah eles
sim pensavam por figuras externas e transcendentes Então foi assim que o filósofo
definiu-se Ó que coisa bonita como amigo do conceito e agora Vejam Salve Viva a
filosofia da diferença resgata tudo isso e Ó admite que a sua tarefa é necessariamente
criativa enquanto o amigo é um personagem conceitual que Bravo contribui para a
definição dos conceitos e que a filosofia Ah bem jamais jamais é passiva frente ao
mundo Isto sim sendo a sua atividade de criar conceitos uma intervenção no mundo
Melhor Bem Melhor a criação de um mundo e Olha a surpresa acontece o mesmo com a
ciência e a arte e a literatura Mas não de jeito nenhum isso resulta numa assimilação
desses domínios nem no predomínio de nenhum deles sobre os outros Como não Cada
um é criador ao seu modo E a filosofia tem por função específica criar conceitos E a
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ciência criar funções E a arte criar agregados sensíveis Ora assim a filosofia é uma
prática dos conceitos que se interconexiona com outras práticas como Ó uma filosofia
do inferno não é sobre o inferno Diabos mas é um pensar Infernal é verdade desde os
conceitos que o Inferno suscita e que estão por sua vez em relação com outros conceitos
que correspondem a outras práticas Ah então é no nível de cruzamento de várias
práticas que os eventos E Ventos E Ventos E Ventos se fazem Claro por isso trata-se de
uma geografia do pensamento mais do que de uma história Por isso em vez de constituir
sistemas fechados a filosofia pressupõe eixos e orientações e traça dimensões e Claro
sua história não é linear nem progressiva mas constitui espaços tipos conceitos planos
personagens não só heterogêneos mas até mesmo antagônicos e Ó enquanto os
dualismos são metafísicos ela Olha ela aí é um elogio da multiplicidade Maravilha para
a qual existem apenas graus e sutis transições Ó pensamento filosófico
rizomáticoooooooooo Ó móvel que não cessamos de deslocarrrrrrrrrr Ó a relação entre a
criação de conceitos e a tradição filosófica e o pensamento de filósofos intempestivos é
condição para esse modo singular de filosofar Ó aquele que foge da hermenêutica da
interpretação do comentário e Ó tem efeito de diagnóstico multipolar e Ó sua potência
performativa o situa fora dos campos de referência tradicionais da filosofia e forma
blocos de devir Ah lindos que deslocam as territorialidades de origem Ah formulam
uma nova política do saber Ah constroem um espaço ideal liberto dos pressupostos da
imagem dogmática da filosofia da representação em Tudo Tudo Tudo diferente de
Platão Aristóteles Descartes Kant Hegel Ah espaço que torna o pensamento de novo
possível disse O querido Foucault Ah sim e não cansa de colocar em jogo sua própria
atualidade a partir da necessidade de pensar de outro modo claramente
dissidenteeeeeeeeeee Ó que resulta num exercício inatual como se o pensamento fosse
uma colagem em pintura Ó roubar Ó realizar inflexões de leituras que têm um caráter
instrumental e Ó não procurar nenhuma idéia verdadeira mas idéias diferentes em outros
domínios Ó de modo que alguma coisa passe entre elas e Bem repete-se um texto não
para buscar sua identidade mas afirmar a sua diferençaaaaaaaaaa e fazê-lo agir como um
Duplo-Duplo Duplo-Duplo e comportar o máximo de variação própria ao duplo
produzido por deslocamento disfarce dissimulação recriação e Ó modificá-lo Tanto
Tanto que o real se transforme em imaginário fingido inventado fabulado Ó
desembaraçar os conceitos de seus sistemas de origem e Ó roubar até mesmo aqueles
que ficam na antípoda das posições adotadas Ó usá-los como operadores
independentemente das inter-relações conceituais próprias do plano de pensamento ao
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qual pertenciam Ó passíveis de pequenas ou grandes torções e Ó aproveitá-los em


problemas que são os nossos e Aí se tudo correr bem bem bem escrever um livro de
filosofia como ficção científica ou um romance policial e Ai Ai Ai zeus nos ajude e não
nos desampare fazer filosofia como um teatro filosófico e Daí trazer os filósofos à cena
como máscaras de suas próprias máscaras pois No fundo No fundo para Nietzsche Sim
Sempre Tudo é máscara Ó fazer multiplicidade no pensamento e na escrita Que difícil
Que difícil usar todas as formas concretas e modos de expressão possíveis Se tivermos
sorte levar a filosofia percorrer um plano de composição para o pensamento e Ó realizar
agenciamentos para um mundo dramatizado a partir dos devires mais atuais que
desterritorializam o que já pensamos e Ó integram a alternativa radical do pensamento
do Eterno Retorno e da Vontade de Potência que Aí justamente constituem a condição
de possibilidade da chamada reversão do platonismo e que critica a representação A
qual Que pena Que lástima reduz o conceito à identidade e a expande pela semelhança
analogia negativo E é assim que a filosofia da diferença não se orienta nem pela altura e
nem pela profundidade mas pelo abismo existente atrás de toda caverna E é na
superfície sobre o plano de imanência e Ó ela não é nada sem as forças efetivas que
agem sobre ela e as indeterminações afectivas que a forçam a pensar Ó se dá no
infinitivo não no Eu que é o do presente Ó pensar assim é criar novos conceitos
requeridos pela experiência real não apenas possível mas pelos eventos Ó dar lugar a
novas experimentações de vida e Claro ter a sua força medida pelos conceitos que cria
ou cujo sentido renova Ó filosofia que impõe um novo recorte às coisas e às ações Ó
filosofia que descobre no devir a sua condição Ó filosofia que tem como princípio uma
razão contingente Ó filosofia que tem no virtual distinto de suas formas de atualização
uma maneira de problematização do movimento infinito do entre-pensamento Ó
filosofia que joga em seu trabalho a vertigem filosófica que convoca o transcendental
para opô-lo ao transcendente e a toda forma dada na consciência Ó filosofia que opõe à
transcendência do sujeito e do objeto uma imanência absoluta ontológica Ó filosofia que
envolve uma nova inteligência do político irredutível à filosofia política tradicional Ó
filosofia que funciona como operadora de desencravamento da filosofia contemporânea
acomodada nos blocos fenomenológico e analítico Ó filosofia que diz respeito às
ciências e às artes desde que domina as potências do Fora que se empenha em captar e
individuar na forma de idéias vitais Ó filosofia que tem por função dizer o evento e não
mais a essência Ó filosofia que pensa por conceitos cruzados com funções ou sensações
E um desses pensamentos Nunca Surpreendente é mais plenamente pensado do que os
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outros e os três entrelaçam-se sem síntese nem identificação Isto que é belo e traçam
planos de consistência de referência de composição sobre o caos Claro que não como as
religiões que invocam dinastias de deuses ou a epifania de um deus único e Ora bolas
Covardes Frouxos Medrosos pintam sobre o guarda-sol um firmamento com as figuras
de uma Urdoxa Ó opinião disfarçada de onde derivam as nossas opiniões Claro que são
pensamentos que fazem surgir eventos com seus conceitos Ó erguem monumentos com
suas sensações Ó constroem estados de coisas com suas funções Ó rico tecido de
correspondência que se estabelece entre os planos Ó rede com seus pontos culminantes
Ó cada elemento sendo criado sobre um plano e apelando a outros elementos
heterogêneos que restam para criar sobre outros planos Ó pensamento como
heterogênese Agora muito muito Cuidado pontos culminantes são perigosos porque
podem nos reconduzir à opinião Cuidado de onde queríamos sair ou Cuidado nos
precipitar no caos que queríamos enfrentar Ó pensamento que experimenta Ó política do
ser mais do que metafísica Ó política das ciências mais do que epistemologia Ó política
da sensação mais do que estética Ó política do inconsciente mais do que psicologia Ó
micropolítica do desejo mais do que psicanálise Ó política da língua e pragmática mais
do que lingüística dos signos Ó ética dos devires mais do que filosofia política Ó
ecologia especulativa das práticas Ó política da filosofia para resistir ao presente e
inventar outras possibilidades de vida Ó construcionismo sistemático Ó trabalho sobre
autores como produção de experiência Ó antropofagia de idéias Ó rajadas e sacudidas
que nos atingem pelas costas Ó móveis que não cessamos de deslocar deslocar de mudar
mudar de lugar lugar lugar
risum teneatis, amici
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