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Capa: Sérgio C Editorags 2009 Copyright © 2005, Purifier et Détruire do: DFL. Impresso no Bras Printed i in Brazil ¢ sobre ilustragio de Francisco Goya S729 09.3699 “Tradusio de: Pu Anexos bibliografia CoD - 304.663 (COU ~ 341.485 Todos os di DIFEL - EDITORA BI Rua Argentina, 171 — 2° andar ~ Sao Crist6vio 20921-3 Te itos reservados pela: selo editorial da [RAND BRASIL LTDA. 80 - Rio de Janeiro ~ RJ (Oxx21) 2585-2070 ~ Fax: (Oxx21) 2585-2087 Nao € permitida a reprodugao total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorizagi Atendemos pelo Reembolso Postal. Para Pierre Hassner, cujo companheirismo amigo e critico sempre foi uma fonte importante de estimulo intelectual e que, muito judiciosa- a explorar os fundamentos do poder Purificar e Destruir ¥ Jacques Sémelin amplamente rural. A diversidade dos percursos hist6ricos nfo impede, todavia, que se apontem probleméticas comuns bem esclarecedoras, permitindo construir uma sociologia politica do assassinio em massa. Este capitulo examina as dinimicas, sob 0 Angulo dessas l6gicas coletvas, a partir dos quatro eixos seguin — O impulso central: nos casos estudados, observa-se que a mul mas sim de a de des- ‘muigao. Coloca-se, entao, a questio da identficagio dessa vontade central, que produz uma mudanca de escala no massacre: 0 episg- dico se torna sistemético. Nos casos estudados, esse impulso deci. sivo veio das pessoas que estavam no topo do poder. — Os agentes estatais e paraestatai lizagao dos principais operadores da,violéncia de Estado (Forgas armadas ¢ polica), com, até mesmo, a constituigio de agentes espe- ificos, criados para impulsionar e efetuar os massacres (milicias e outros grupos de matadores especializados). Os primeiros so desvialos das suas fungbes basicis e os segundos Sio especialmente formados para esse tipo de missio. Ficam ambos encatregados de organizar e de executar a principal parte dos massacres, —A opiniao piiblica e a participagao popular: 0 piblico tem conhecimento dos massacres? Adere a eles? A questi da opinifo i foi abordada precedentemente. No periodo de execugadtios massacres, essencial voltar a iso para saber em que medida a opi- nido adere ou no, fecha os olhos ou manifesta sinais de desapro- vasdo. Pois uma coisa ¢ iniciar o assassinio em massa e outra é con seguir suscitar a adesio da sociedade ao processo de violéncia, —As morfologias da violencia extrema: a convergéncia desses ttés fatores desemboca em formas de extrema © massacre € a mais espetacular. Essas “morfolo, fomam formas diversas (matangas no local ou apés deportagao) ¢ variam segundo os processos de morte ui idos (fogo, fuzilaria, {84s etc:). Outras variantes podem ainda ser consideradas, como a de onde provém a mobi- éncia, das quais ias” do massacre [AS DINAMICAS DO ASSASSINIO EM MASSA a8 geografia dos territérios em que os massacres foram comets iativas eventualmente tomadas pelos agentes locais, a amp! da guerra etc. " Tas roeiros nao se escrevem com antecedéncia. No nivel di impulso dado por aqueles que decidem e organiza 0 massacre, ie haver alguma “folga” — retardo on bruscas aceleragées ; : fungio da evolugio da guerra e do contexto internacional m funga ; ode também haver “folga” com relagdo aos agentes designa os ‘om alguns que talvez recusem participar estan ve - 3 5; “folga” também - contrério, se antecipem as ordens; ay pil ica que pode acabar manifestando seu Aesogrado,¢ “folga” ainda no momento da ago, com as coisas ane pee timas reagiram de modo diferent como se previu, porque as vi e coe de destruigio cresce p esperado etc., ou seja, 0 processo : thente, mas nio de forma totalmente determinada. De fato, Ei n ‘timas escolhidas. Mas, quant la no momento da morte das vi : is 0 proceso avanga sem encontrar obstéculos, mais dificil se torna freé-lo. Do processo de decisio e de seus responséveis © massacre s6 consegue se espalhar em grande escala se uma BU gr yu menos abertamente. Pode-se en idade central o incitar mais o1 em a formas de violéncia espontanea de um grupo ou uma mul P grupe i dio, apesar de estudos empiricos sobre tais fendmenos atestarem 7 tu que, no mais das vezes, foram preparados por lideres.' A ideia de a 1 Além dos trabalhos de Donald L. Horowitz, jé citados, penso ainda nos dé IVa Cit nee indie maglanostendam aun a a ae elcitoral. Purificar e Destruir ¥ Jacques Sémeli tina “violencia espontinea das massas” frequentemente no passa dleargumento de propaganda, utilizado por poderes que proceram Mascarat sua responsabilidade direta na origem das violéncias, Nio ha divide, nos casos de que nos ocupamos aqui, de progress Yamente se ter constitufdo uma vontade central de destruico pat= cial ou total de uma ou de varias populagdes, definidas como how. tis, iniiteis, nocivas ete, Quem vai servir de apoio para toda essa iniciativa de assassinio em massa? Um pequeno grupo de homens (raramente hé mulheres entre eles) que se pode afirmar estar no centro do projeto de morte coletiva, tarefa que eles préprios definem muitas vezes como “his. ‘6rica”, julgando-a ao mesmo tempo necesséria e exaltante, em nome do povo, da “raca”, de uma visdo politica concernindo ad futuro do pais. Paraa Alemanha nazista, além de Adolf Hi ler, devem ser citados os nomes de Hermann Goring, Heintich Himmler, Reinhardt Heydrich. Para a ex-lugoslavia, os de Slodoban Milosevic, Vojslav Seselj, Radovan Karadzic, Biljana Plavsic (dirigentes dos sérvios na Bésnia) e Matte Boban, Em Ruanda, s40 menos conhecidos os de Théodore Sindikubwabo, Presidente do governo interino,' de Jean Kambanda, prim ministro do mesmo governo, e os dos coronéis Théoneste Bagosora e Augustin Bizimungu. De que maneira, entio, esses homens cooperaram com a | Organizagio do que se pode chamar de uma politica de massacre? De que manecira estiveram implicados em sua pritica efetiva? Obeas éspecializadas (sobretudo biografias) tentaram compreendet isso, apesar de as historias particulares desses agentes ainda conserva Fem, com frequéncia, muitas partes obscuras. Independentemente dlos seus papéis respectivos, o que conta é que o poder desses dir Bentes foi, em geral, percebido como legitimo aos olhos de suas Proprias populagées. De fato, ndo se contesta a legitimidade do " Ex-presidente do Conselho Nacional do Desem Parlamento de Ruanda. imento (CND), isto é, 0 {AS DINAMICAS DO ASSASSINIO EM MASSA i rio .der de um Hitler ou de um Milosevic, em seus pats prop Ee a verno provis6rio ruan Nem a do governo pi no momento dos fatos. d ee rea do presidente Habyarimana, éonstituido apés a morte ns, gue grande i sa, na época. Justamente p oténcia alguma pés em causa, raed Trributos da legtimidade, os sublternos, no seio mesmo do spare: o estatal, aceitaram se colocar a seu servigo, inlsive a 2 Be . i jue eleme itada de morte (mesmo qi em andamento a emprei seas refratérios a tal politica eventualmente tenham se manifesto). fi Fstariamos com isso dizendo que a adesdo da maioria se a \de.o massacre, sempre € ¢! basta para que essa coman s layer lugar, oa general comanda um exército? De forma ale es "te em massa s - vimento do assassinio s dindmicas de desenvol 0 os : ites: dependem de um grande nimero de fatores contextuais, tuantes: r fe como o presente capitulo vai procurar sugerir. Alemanha nazista: a preeminéncia de Hitler ic nizar Sem a autoridade central e legitima a impul ona organiza ssacre, eno, € diffi imaginar como ele poderia ganhar © massacre, entéo, : amplitude. Os trabalhos mais recentes sobre a Alemanha ca f ; 40 preemine! a ao realgarem a funga ed nao desmentem isso, ea Fahrer no desenvolvimento de medidas, cada vez sai ala, contra os judeus. Nem por isso imaginemos o Estado nazi ae uma méquina muito hierarquizada, indo do ditador 8 esca tee sistema perfeita- Ke ista, longe de ser um 2 do individuo. O Estado nazi ee mente coerente, parecia mais um conglomerado imbricado jem meus trabalhos sobre a Voltase a encontrar o quadro de anilise que utilizei em meus trab ido tude do pode politico ven cia, na Segunda Guerra Mundial € a atid lic enc es ate ae ape diotem 3 a into * oo tet irs atriads de eps. Ve, sobre, 0 Capitulo TL ation Europe (1939-1943), Paris, Payot, 1998, pp. 73-92. ¥ _AS DINAMICAS DO. [ASSASSINIO EM MASSA Puryear e esruir \¥ jacques Sémelin oriza- do massacre. Pela primeira vez, 0 regime nazista ay eae a matar de maneira “racional” um grupo del pe a ae opulagao. ApOs diversas tenatvas, foi o méxodo 2c mt * das monéxido de carbono) 0 scolhido, com a Cent paaae realizada em janeiro de 1940, aan cea de 15 pacientes, em uma antiga prisio ore sel de conquista do “espaco vital”, foi a ee aa ou nao, que rapidamente pagou o Prego: aah, to de 1939, Hitler declarou sem ambiguidade, reiki & a finalidade [da campanha da Poldnia] era a 08 cas vivas e no a de alcangar uma determina ee Bs énia, de infcio muito severa, levou oficiai ado da Polonia, JIguns dos seus homens. Sem jenunciarem atos cometidos por alguns dos seus Kemnere tet 3 Jo, limitar a ainda possivel, entio, ae era contendo os soldados. Mas Hitler, avin, reagit ‘i jis agdes € ret E iando todos que haviam some oa es ee rutalmente. » apenas uma das expressées da violéncia Von Kiichler, que se ° ynte Von Kichler, a efe de poder hitlerista, que se abatia simultaneamente sobre muitas eel dos, tiveram que se inclinar, ou seja, era 0 ci cS ‘outras vitimas, além dos judeus. Com efeito, 0 contexto de guerra = oa que garantia a impunidade aos militares ofereceu aos nazistas mais determinados novas possibilidades para Estado ener oe He Wehrmacht a se engajar cada vez pea dar sequéncia a aspiragées profundas, tanto para a melhoria da ereaeatits assacres. A atitude do Fabrer é reveladora de “raga” quanto visando a conquista de um “espaco vital” no Leste. efetivagio de vesoal: quando colocado diante de um conflito se Nos dois casos era ainda Hitler quem impulsionava ou autotizava predisposigao - Ta sohugdo mais radical, sto €, a mais brut - as medidas mais radicais. deco sree como sos impulsns do Fare conssissom indo we: as proibi¢s em empurrar adiante 0s limites, por etapas, © re See 7 itivou i is, Dessa forma, ee incen : poe ee ‘de impunidade do pensamento,arespeito do anal ar de um cli im mostrar rehhistoriadores alemies Gotz Aly e Suzanne arene mo caracterizou também varios quadros especia cor iferantes. Recusando se envolver na tio administrativa, o Fiihrer constantemente delegou o poder, em eral por ordens verbais, em termos bastante vagos, dando lugar assim & interpretacdo ¢ iniciativa dos subordinados. Ao mesmo tempo, Hitler impés sua vontade feroz de se livrar de qualquer lei, fosse do Estado ou do partido. Com isso, iniimeras administragbes entravam em competi¢ao, umas contra as outras, para responder da melhor maneira as “expectativas” do Fuhrer, que se mantinha ‘como a pedra angular do sistema. Desse modo, até 1939, a politi« ca antissemita do regime “ziguezagucou”, dada a interacdo entre varios centros de poder. Mantinha-se, mesmo assim, uma direcéo clara: fazer 0s judeus irem embora, deixando que se fizesse a apro- Priagdo dos seus bens. Como observou o historiador inglés Mare Roseman, era simplesmente Hitler quem, com intervengdes espo- adicas, imprimia aceleragio ou freio a perseguica0:! Com a ocupagio da Polénia, a p. Em matéria de melhoria da “raga”, ele ordenou secretamente a morte de doentes mentais e enfermos (medida ja anunciada em Mein Kampf), sendo seu médico pessoal, Karl Brandt, um dos ‘mentores do programa, com Philip Bouhler, diretor da chancelaria € Reichsleiter. Fato rarissimo, Hitler deu uma instrucdo por escrito nesse sentido, datada de 1° de setembro de 1939, isto é, no mesmo dia do ataque & Poldnia, como se a guerra escancarasse a possibili- jent la Shoah, Dominique Vidal (rg), Les historen allemandsreliten Shoal ' Mare Roseman, Ordre du jour: génocide, Le 20 janvier 1942, Audibert, 2002. Purificar e Destruir ¥ Jacques Sémelin cratas do regime.’ Com efeito, economistas, demégrafos € estatisticos nao hesitaram em arquitetar planos grandiosos construgao de uma Europa germanica e “moderna”, precor and deslocamentos macigos de populagdes ou mesmo seu aniquilame to. Os peritos se sentiam ainda mais incentivados em propor Projetos, pelo fato de Hitler estar convencido da necessidad © estabelecimento da “raga ariana”, de subverter as “relagbes - grdficas” da Europa. _ epee jd em 7 de outubro de 1939, cle nomeou eee Fata do Reich Para a cons “io da Fe an + Sua funcao era a de repatriar os alemaes vivendo fora do Reich para os territ6rios poloneses recentemente con: aise dos, o que supunha reagrupar ou expulsar as populagbe a em uma “reserva”, pert abandonada. Guetos foram iets Tae al los do restante da populacio, sendo foemesgil vin aheics de Lodz, em 28 de setembro de 1939. Teve io também a leportagio, por tens, de udeus do Grande Reich para os terit6rio poloneses, concebidos como locais de descarga. Simultancam Himmler enviava para a Polonia os novos colonos alemes. cod tarde, um problema de superpopulagio iria se colocar. Em 12 de margo de 1940, Hitler declarou que a questao judaica cra uma) tio de espago, que ndo havia suficientemente. Por isso, em 9 ‘ad novembro de 1940, “somente” 5.000 judeus de Praga e de Viena, assim como 2.800 ciganos, foram deportados. J Se a Polénia nao era capaz de “absorver” os judeus da Ale~ manha e, ainda menos, os seus préprios, o que se podia fazer? 1 Ste A Gane Him, Vondenker der Vermichtwn, Auscbit und dents aber ero Ord, Hamburg, Honan und Campe de Dominique Via chad sterornene, que fer tuner sree Fessantes de outras obras escritas por hist 0 {AS DINAMICAS DO ASSASSINIO EM MASSA Qual destino dar Aqueles 2 milhdes de judeus caidos subitamente sob 0 dominio nazista? O projeto extravagante de envi: Madagascar foi seriamente pensado pelos servigos de Himmler, em 1940, apés a derrota da Franca. Mas a impossibilidade de ven- cer militarmente a Gri-Bretanha (e assim garantir 0 controle dos mares) tornow o projeto ainda mais irrealista. Com isso, a solugéo proviséria dos guetos se prolongou, com condigdes internas de vida tao horriveis que a taxa de mortalidade no parou de crescer. [A situagdo sem diivida néo podia durar, ainda mais porque os gue- tos se tornaram focos importantes de propagacéo do tifo, que assustava muito os alemées. Medidas ainda mais radicais comega- ram a ser pensadas, antes mesmo da declaracio de guerra contra a Unio Soviética. Ruanda: um apelo piiblico ao genocidio res de abril de 1994 foram preparados durante os meses prece- dentes por um pequeno grupo de pessoas préximas do presidente Habyarimana. Participava ele dessas reuniées? Ou apenas sua mulher e varios membros da Akazu?! Em todo caso, um grupo composto por militares, dirigentes politicos, intelectuais e alguns empresarios comegou a acreditar, em 1991-1992, que a Gnica ‘maneira de impedir uma vitéria total da FPR seria mobilizando a populacdo em matancas de tutsis, em grande escala. Em 1992, identificou-se uma certa “Rede Zero”, operando secretamente & 77 Akazn, ou “Pequena Casa dsignava uma rede de pessoas agindo 20 redor do presidente da Repiblica, provenientes da sua regiio de origem (norte de Ruanda). Sua esposa e pessoas ligadas a ela faziam parte. Caso necessiio, a rede se dirgia diretamente a0 coronel Bagosor,alis, parentado & mulher do presi dente. mM sombra do poder, decidindo 0 assassinato de adversérios politi- 0s € até encomendando massacres.' E em 21 de setembro de 1992 j& nao havia 0 chefe do Estado-Maior, coronel Déogratias Nsabimana, enviado a seus subordinados um memorando secreto em que os tutsis eram definidos como inimigo interno? O texto fazia parte do relatério redigido por cerca de 10 oficiais que, em dezembro de 1991, tinham sido encarregados de estudar os meios de vencer o inimigo nos planos militar, midiético ¢ politico No documento, os militares repetiam a propaganda destilada pelos cextremistas hutus. No final de 1992, listas de “suspeitos” tutsis e adversarios hutus jé haviam sido elaboradas: seriam os pris inimigos a prender (a matar?), prioritariamente, em caso de crise. Além da necessidade de se combater militarmente o inimigo interno, alguns achavam interessante também associar mais direta- mente a populacao civil ao combate. Dias apés 0 ataque da FPR, 0 Pr6prio presidente Habyarimana preconizou, durante uma alocu- Gio radiofonica, a criagdo de uma forca de auzodefesa, dotada de armas brancas, no lugar de fuzis.? Outras vozes se pronunciaram a favor dessa forca de autodefe- sa civil, entre elas a do intelectual Ferdinand Nahimana, professor da Universidade de Butare, que logo se tornaria um eminente pro- Pagandista nas ondas de Radio des Mille Collines. Outro intelec- tual, Léon Mugesera, pronunciou também, no mesmo perfodo, um discurso que se tornou célebre. Em 21 de novembro de 1992, durante uma assembleia do partido presidencial, o MNRD, ele NRE anunciou que, para reagir & ameaga de invasio da FPR. a ‘inica * CE Filip Reyntjens, “Aku, ‘escadrons de la mort et autres ‘Réseau Zéro tn historique des résistances au changement politique depuis 1990", em André Guichaou: Les Crises politiques au Burundi et au Ruvanda (1993-1994), ‘Aucun témoin ne doit survivre, op. cit, seria langar os tutsis no rio Nyabarongo. Fez. apelo & popu- para um levante, propds uma versio alternativa do Evan- Se lhe derem um tapa no rosto, devolva-lhe dois”, e termi- mparando os tutsis a insetos parasitas ¢ a serpentes. Todo naquele pafs, sabe o que fazer com serpentes: “Saibam que 1¢ nao tiverem 0 pescogo cortado virdo cortar 0 seu”, con- Quando, exatamente, os partidarios da forca de autodefesa comegaram a preparé-la? Na data de 12 de fevereiro de 1993, a agenda do coronel neste Bagosora, diretor de gabinete do ministro da Defesa, ados a lutar) — coordenados por militares. E dava detalhes re 0 tipo de armamento a fornecer a esses homens.? Mas a ‘io era saber quando o plano seria posto em pratica. No mesmo momento, comegavam as negociagGes de Arusha, deviam chegar a um acordo de paz, assinado pela FPR ¢ 0 erno ruandés. Entre a soluco politica para a crise, por nego- ciago, e aquela outra solugdo, visando armar 0 povo contra ameaga tutsi, qual seria vencedora? No decorrer de 1993, Bagosora e seus amigos prepararam o seu préprio roteiro “ Be vercicc de1993, com a PR wiacdo rah center 8 ys em Ruhengeri e arredores.' Associagdes de defesa dos direitos "Léon Mugesera € o exemplo tipico do intelectual incendidrio descrito no lo I. Quanto ao contetido, seu discurso retomava o fundo ameagador da lo presidente Kayibanda, em 11 de margo de 1963. Mas sua expres- andés. Mugesera sabia « paixto destrutiva jos0, a destruigao do a em quiniaruandes. E 0 protétipo do discurso mata de antemao, com palavras. Cf ibid., pp. 104-105. 2 Tbid. p. 131. * Ibid. p. 817. Purificar e Destruir ¥ Jacques sémelin hum: i 6 a ed fizeram, na €poca, acusag6es sustentiveis contra a FPR, firmando que ela havia assassinado, naquele perfodo, pelo me oito responsveis governamentais ruandeses ; a «, pelo menos, Os extremistas hutus estavam e vam em boa posi para sfneat que a FPR nio tinha a menor intengao de ool uum acordo de paz e que procurava, na verd i na verdade, exclusivamente conquistar o poder. Entio, a seu ver, tornay. t , 5 tormava-se urgente uma resstnia popu. Esimando qu st amas de fog cam 1s demais para serem distribuidas em srande escala, preconiza- ram a compra volumosa de facoe f n a con , que eram uma fe ito liad pels camponcsy pao cot de ‘vores ¢ atl s. Os timers comprovam: em 1993, 0 vol i imeros : , © volume de impo: desses facées foi anormalmente elevado. De janeiro Bet” mar de 1994, 581.000 facdes chegaram a Ruaiida, 0 dobro daqui- lo que era habitualmente encomendado todo ano, Em final de 1993, esimou-se que o estoque de fates novos ji esava bem explhado ee oo izara-se um para cada trés homens. Afora isso, 85. tna adn de muniso como granadas) foram igualmente distribuf- mo periodo, observou-se ainda um aumento exeepel ; exce nal da importagio de aparelhos de radio ¢ de pilhas., i ki Aassinatura dos acordos de Arusha, em agosto de 1993, Ppode- , NO entanto, ter trazido a paz, jé que eles se f Pn , apoiavant divisio do poder entre todas as partes conflitantes. Mas os orld Permaneceram bem frégeis (cf. Capitulo III). Alguns meses depois, "bid, p. 134. +A jornalista Linda Melvern acrescentou 0. Arai ‘ ede que os fades (e ours fer » chegaram a Ruanda em 18 encomendas distintas, Com a compra al a ‘como Ruanda, um dos pafses mais pobres do. mundo, pode aa ae 1adas em 100 milhdes de délares? Gragas ao desvio de fundos do irmou, pois a economia de Ruanda estava, desde 1990, suk funder. The Rwandan Genocide, Londres-Nova York, Verso, 200%, p. 86, [AS DINAMICAS DO ASSASSINIO EM MASSA © assassinato do presidente hutu de Ruanda, em 6 de abril de 1994, foi a ocorréncia que comprovava a necessidade de se passar agi. A populagio, porém, seguiria 0 previsto? Os hutus se enga~ jariam na eliminagdo nao s6 dos tutsis, mas também daqueles que, apesar de hutus, manifestavam moderacio? ‘esse 0 centro da tragédia hist6rica vivida por Ruanda, no di seguinte do assassinato do presidente, em 7 de abril de 1994. Sabia- se que os massacres haviam sido preparados a partir de um grupo proximo do poder. Sabia-se também que o grupo tinha varios caim- plices no aparelho de Estado. Mas faltava-Ihe ainda a legitimidade politica que permitisse suscitar a adesio da populacio. Estariam jé prontos para agit —em caso afirmativo, quando? — se no houves- se 0 assassinato do presidente ruandés? Em todo caso, foi gracas a seu desaparecimento que grupo se outorgou a legitimidade politi- ca que faltava, Aproveitando o vazio provocado pela morte do pre- sidente, foi formado um governo interino, com Théodore Sindikubwabo como presidente ¢ Jean Kambanda, primeiro- ministro, dois not6rios extremistas hutus. Explorando 0 choque emocional provocado pelo atentado, eles fizeram apelo & populacio para que se defendesse dos inyenzi. Um marco simbélico: 0 filho do primeiro presidente de Ruanda, Mbonyumutwa Kayibanda, inter- veio pessoalmente no rédio, com palavras de rara violéncia, acusan- do os tutsis de quererem cometer um genocidio contra os hutus: “Bles vdo exterminar, exterminar, exterminar, exterminar. Vo cexterminar até ficarem sozinhos neste pafs, para guardar por mais, 1,000 anos o poder que os seus pais tiveram durante 400 anos!” ia dos ruandeses, entio, ndo tinha por que duvidar que 10s representassem a nova vor oficial do poder; tanto \Gio e, em primeiro lugar, a Radio-Télévision des Mille Collines francamente encorajavam uma cacada mortal aos tutsis. De certa maneira, as novas autorida- des politicas decretaram a mobilizagio geral do povo em armas, T Gitado por Jean-Pierre Chrétien (org.), Ruwunda, op. cit, p. 300. a Para defender o regime contra os inyenzi. Na pratica, a iza¢do dos hutus nada era sendo um extraordindi Piiblico ao acometimento do assassinio em massa minoria ¢ seus aliados, designados como =) © apelo & rio apelo tra uma imigo mortal, Iugoslavia: a desarticulacao do sistema federal _Na lugoslavia, a situagio era c assim, o papel preeminence de um Slobodae Mig ne ae em diregio a guerra, com a finalidade de afugen- ca eopulagesindeseéves, ndo gera dvida alguma. Deve-se re quuanto, considerd-lo o nico responsével pela acio de “limpes Agua” dos anos 1990? Seria uma visio demasiadamente esque inten Un agente Poltico internacional, mesmo sendo chefe de » com certeza evolu inaisdomin por complet im qe medida as pln re rie) a brags, cujo controle Ihe escapava por completo? See miewe suficiente para fazer as contingéncias histor so ea ott E claro, Adolf Hitler conseguiu, em pou- Sos anos, “forgar a Histéria” em sua diregdo,tornando a Alemanky a primeira poténcia dominadora da’Europa, mesm levandoid Miles angio 2 entrar em guerra. Mas com relagio a Slobodan exevi devesenuansarojulgament, aeeves ae anos 1980, os nacionalistas sérvios ndo eram os aed ry si . acontecimentos na diregio do “desrfibnte” indepen aC eslovenos © 08 croatas também queriam suas re nendéncias, Podese dizer que havia um “efeto de sistema”, dena 'uga, apontando para desintegragao, como teo. liversos autores.' No contexto da derrocada do comunismo llosevic em seu "Ver, por exemplo, Kalevi J Hol E Kalevi J Holt The Stat, Wr, andthe Cambridge, Camrige Univer Pre 199604 Willan Pare eh Z _ nner ‘The Disintegration and Restoration of; Ae uulder, Lynne Rienner, 1995, ne 26 i apa, foi o préprio sistema federal iugoslavo, construfdo por indo resistiu as presses nacionalistas. Afinal, os primeiros estar aspiragGes nacionais, ap6s a morte do lider, foram os do Késovo, em 1981, fato que, em reagio, paralelamen- a crescente mobilizagio dos sérvios daquela provin- lerar Milosevic como tendo teleguiado, dos bastidores, mudanga que, entdo, se exprimiam em Lubljana, ina seria dar ao personagem uma representacao jana, Nao vamos imagin4-lo um ditador, dirigindo com a das as forcas politicas da Sérvia e das demais nacionalida- crtamente ele herdara estruturas da ditadura titista e sabia, dade, manipulé-las, como bom apparatchik comunista. intimeros depoimentos, inclusive durante seu processo em |, atestaram que ele exercia 0 poder de maneira bastante soli- . nia companhia e sob a influéncia de sua mulher. Para chegar fins, “Milosevic aparece, antes de tudo, como um grande ipulador, deixando-se levar pelas correntes ¢ sabendo se servir de uns quanto de outros, nos momentos oportunos, com a a finalidade de reforcar seu poder”.? ‘Afora isso, quando assumiu o controle da Liga dos Comunistas da Sérvia, em 1987, Milosevic pensava agir no ambito da unidade slava. Muito rapidamente, porém, 0 contexto internacional radicalmente novo 0 incitou a por em andamento uma nova linha politica que nao havia sido premeditada. Para Joseph Krulic, tudo se passou como se o sistema politico iugoslavo estivesse incapaci- tado para gerir essas reviravoltas em cadcia. Krulic se apoiou na teoria de David Easton, que considerava que um sistema politico muito solicitado por demandas (input) nao consegue mais fornecer respostas apropriadas (output). Esse “desligar” se tornava mais vidvel no caso da Sérvia, porque “a cultura politica herdada nao "Ver Michel Roux, Les Albanaisen Yougoslavie. Minorité national, tertore et développement, Patis, Maison des sciences de l'homme, 1992; e Joél Hubrecht, Kosovo. Etablir les fais. Pris, Esprit, 2001 2 Entrevista com Joél Hubrecht (4 de dezembro de 2003). 27 Purificar e Destruir \¥ Jacques Sémelin proporcionava as categorias que tornam legivel e suportavel a mudanga, com uma parte da populagdo se sentindo ameagada por essa mudanga”.! Em consequéncia disso, as oposigdes entre sér~ vios, eslovenos e croatas provavelmente tinham se tornado incon- cilidveis em 1990, e o desmanche da Iugoslévia inevitavel. Mas a guerra precisava estar presente? Afinal, a retirada da Eslovénia e da Croécia da Federagio poderia ter se dado sem choques notaveis, na medida em que néo se punham em causa suas respectivas fronteiras. A gestio politica pacffica dessas separagdes nao era impossivel. Mas 0 mesmo nao podia mais ocorrer com a Sérvia, quando Milosevic, apoiando-se em reivindicagées dos nacional fronteiras para per tas sérvios, planejou retragar r a todos os sérvios viverem dentro de um mesmo Estado. Por isso a transigo politica se transformou em tran- sigio guerreira:para retomar a expressio de Marina Glamocak.? »Milosevic, entéo, contribuiu para transformar a guerra, uma guerra com um “recorte étnico” dos territérios. Teria, contudo, em 1990, um plano preestabelecido e preciso? O cien- tista politico inglés James Gow preferiu falar de um projeto adap- tével e flexivel, mas no de um plano tinico e detalhado sobre a maneira de se alcangarem as metas fixadas, ou seja, se'apropriar de diversos territ6rios para junté-los a Sérvia, neles reunindo todos os sérvios e esvaziando territ6rios como o de Kosovo dos elementos no-sérvios: “Os planos iam e vinham de acordo com as necessida- des ¢ as oportunidades, mas o projeto continuava.”¥/Assim, losevic achou importante apoiar, em 1990, a rebelido dos séra, vios nacionalistas da Crodcia contra Tadjman. historiador ame- " Joseph Krulic, “Réflexions sur la singularité serbe", art. cit p. apresentagio da teori le David Easton remeter-s Braud, Sociologie politique, 4% ed., Pais, LGDJ, 1998, p. 160 5. + Marina Glamocak, La Transition guerrére yougoslave, Pars, LHarmattan, 2002. 3 James Gow, The Serbian Project and Its Adversares. A Strategy of War Crimes, Londres, Hurst 8 Co, 2003, p. 12. 28 no Tim Judah reportou os movimentos de Belgrado nesse sen- tido, que se traduziram concretamente pelo envio de armas aos dirigentes secessionistas.' Mas Judah observou um ponto interes- sante: Milosevic talvez nao tivesse realmente vontade de realizar 0 plano. Pode ser que achasse que os croatas se intimidariam e deci- dissem permanecer na Federagio. Certo € que Milosevic conside- rou que armar os sérvios vivendo fora da Sérvia era uma boa ideia com vistas & construgio do Estado sérvio ampliado. Por sua vez, Franjo Tadjman procurou, no mesmo momento, obter forsas policiais e militares préprias, na perspectiva até de formacao de um Estado croata. Segundo Marina Glamocak, as importagdes de armas vindas da Espanha via Austria, para em seguida serem encaminhadas & Eslovénia e & Croacia (através das redes do Opus Dei), comegaram em julho de 19902 Ela igualmen- te sublinhou que as tropas (paramilitares) do Partido Comunidade Democrética Croata (HDZ), de Tudjman, entraram em ago no mesmo perfodo. Estariam, também, se preparando para a guerra? Em todo caso, foi a declaragio de independéncia de Zagreb, em 25 de junho de 1991, que radicalizou a crescente agitagio dos nacio~ nalistas sérvios, no decorrer do verao, sobretudo em Krajina. Na cidade de Knin, por exemplo, os policiais recusaram vestir 0 novo tuniforme croata. E 0s sérvios viram como verdadeira provocaca0 0 fato de a Crodcia adotar, como sfmbolo nacional, a bandeira quadriculada vermelha e branca, de triste meméria.? Os choques entre sérvios e croatas, entéo, néo pararam mais de se multi ‘A guerra nao estava longe. TTim Judah, The Serbs. History, Myth and the Destruction of Yugoslavia, New Haven, Yale University Press, 1997, p. 169. 2 Marina Glamocak, La Transition guerrgre yougoslave, oP. ci 5 Na visio dos sérvios, era 0 emblema do regime fascista de Pa ; croata é, na verdade, um simbolo medieval, retomado em 1991 com uma nuanga ‘nas cores (em comparacio ao de 1941 29 Purificar e Destruir ¥ Jacques Sémelin Buscando a decisdo? Dentro de um contexto em que o nacionalismo de alguns ali- menta o nacionalismo de outros, em suma, seria, de fato, posstvel isolar 0 momento preciso da decisio que faz a crise revirar em guerra e em massacre? A comum recusa de qualquer compromisso precipita a passagem ao ato, A imbricagio da atuacio dos agentes € tal, que eles acabam todos se assemelhando. E, afinal, € desse bindmio conflituoso que surge a mesmo que um dos dois se revele mais rapido para agredir 0 outro. Tado isso comprova a dificuldade de se d ir, entre os pri- ivo da passagem a0 at6'em diregio do massacre. Se Hitler impulsionou e “recarregou”” incessantemente a violéncia de seus homens, quakfoi 9, impulso mais determinante, na avalanche de medidas gue tomou contra os judeus, nos anos em que esteve no poder? Teria sido em 31 de julho de 1941, quando Goring ordenou a Heydrich que “tomasse todas as medidas preparatérias necessérias [...] para obter uma solugdo total da questao judia, dentro da zona de influéncia alema na Europa”? Ou em 18 de outubro de 1941, quando toda emigra- io de judeus fora do Reich foi proibida? Ou na metade de dezem- bro de 1941, logo depois da entrada dos Estados Unidos na guer- ra? Ou em 20 de janeiro de 1942, quando Heydrich reuniu em 4 Berlim, no quarteirao Wannsee, uns 15 altos funciondrios nazistas, para decidir 0 destino dos judeus europeus ¢ dos casais mistos? Ou mais tarde ainda? Os historiadores apresentam interpretagdes sen- Imente diferentes (voltaremos a isso). Observemos que 0 caso ruandés se remete & mesma discussio. Deve-se, por exemplo, con- siderar que a virada em diregdo dos massacres de 1994 jé estava definida no final de 1992, com o reagrupamento politico de todos aqueles que constituiriam o Hutu Power? Ou deve-se achar que foi a preparagao do plano de autodefesa civil, na primavera de 1993, ‘que mais concretamente constituiu tal virada? A menos que tenha {AS DINAMICAS DO ASSASSINIO EM MASSA sido antes de outubro de 1993, logo apés 0 assassinato do pr. dente de Burun = cgate is ambiguidades, é possivel se referir aos discur- ees pen i (deres. Os temas, de partir do momento 10s, a encorajar uma fato, ganham uma importa eles passam, como achar que esses discursos puiblicos indiquem que a decisio ie) a sacre jé foi tomada. Quando o lider dos sérvios na Bésnits Radovan Karadzic, declarou em outubro de 1991, na tribuna do Parlamento bésnio, que 0s mugulmanos, ao optarem pela indepen déncia, assumiam 0 risco de desaparecimento, evocava Cae uum projeto de “purificagio étnica” sendo de genocidio. Mas bd no significa, de modo algum, que o projeto estivesse pronro Pa ser acionado naquele momento. Pode-se dizer o mesmo do ae 0 discurso de Adolf Hitler no Reichstag, em 30 de fesciode 1939, em que ele profetizou 0 “aniquilamento da raca judia na Europa”. Disso deducir que a “Solugio final” jf estava programa. da ou até funcionando seria um erro grosseiro de interpretagio histsrica, No momento preciso em que foram expressas tas decla- ragdes nfo podiam ser tomadas “ao pé da letras intengfo que publicamente formulavam nao tinha ainda uma tradugio cor fatos. ' Pa earn nog de “ine, fair a js colo ca, aliés, um problema para o historiador € para 0 sociloge ie qualificar 0 crime, 0 juiz procura sempre estabelecer qual foi 8 intengio do criminoso: ele teria tido a ideia do assassfnio? Ter de Ido a ideia proposta por Linda Melvern, de que “a programacio (0 tgenoeidio comegou em outubro de 1990", como indicado na cronolegia 8 Conspiracy to Murder, op. cit pp. 316-317. De fato, houve massacres duranee ae ‘do ataque da FPR, mas nada comprova que em Kigali ‘Acconstatagio de massacres isolados nd significa um Purificar e Destruir ¥ Jacques sémelin premeditado?! Pode-se, € claro, falar da intengdo de uma pessoa Para descrever sua disposicdo de espfrito diante de uma determi- nada aco em um dado momento. Mas aplicar essa nogio ao fun- cionamento de uma estrutura de poder € problemético:? estarfa- mos “psicologizando” seu funcionamento, enquanto sempre & melhor que se analise uma politica e se descrevam os meios orga- izacionais postos em acao para atingir determinada meta. Acrescente-se que a nogio de intencao subentende uma visio sim- plista da passagem ao ato: haveria uma sequéncia pensamento- acto, indo do projeto de se destruir uma coletividade a sua aplica- 40 concreta; como se fosse o caso de se formular uma ideia, cul tivar um plano com essa finalidade e p6-lo em pratica. Esse tipo de avaliagio oculta, jé de inicio, o enigma fundamental colocado pela . Morte em massa: o de sua realizagio concreta. Abordar o a mento dos processos de destrui¢io de uma popiulagao ci intengio seria correr o risco de passar ao lado de toda a complexi- dade da evolugio de tais fendmenos. Entéo, pode-se dizer, mais vale se limitar aos arquivos, as ano- tagdes € aos documentos comprovando, sem ambiguidade, que decisdes foram tomadas, instrucdes foram dadas, etc. Mas uma investigacao desse tipo estd, frequentemente, longe de ser possivel. Com efeito, em muitos casos de massacres, os documentos escritos que permitiriam datar e autenticar, sem ambiguidade, a decisao da assagem ao ato so raros ou mesmo inexistentes. Por um motivo, simples: quem tem a responsabilidade do ato nao quer, absoluta- mente, deixar provas disso. Apés um massacre, procura-se, inclu- " Por isso essa nocio de intencdo esté no centro da “Convengao para a prevencio € a repressio do crime de genoctdio” adotada pela ONU, em 1948. O texto do artigo 2 comega assim: “Compreende-se haver genocfdio em qualquer dos atos infractados cometidos com intengio de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso enquanto tal." Ver os trechos mais importan- tes dessa convengio no Capitulo VI deste livro, no quadro da p. 436. + Apesar dea linguagem corrente nos levar muitas vezes a isso, quando se diz, por ‘exemplo: “A Franga tem a intengio de..." oa [AS DINAMICAS DO ASSASSINIO EM MASSA sive, apagar completamente os tragos daquele crime, como aconte~ ceu em Srebrenica. Resultam disso intimeros debates quanto “verdadeira” intencio de quem tomou a deciséo, quanto & data da suposta decisio ¢, é claro, quanto a posterior negagio da realidade dos fatos. © caso dos massacres de arménios, em 1915-1916, exemplar com relacio a isso.' Mesmo assim, 0 estudo dos arquivos se mostrou particularmente fecundo na andlise do exterminio dos judeus europeus, com a administragio alemd tendo produzido uma quantidade de anotagdes e de documentos relativos & “Solugio final”. Raul Hilberg foi um dos primeiros a fazer uma notivel exploragio.? No entanto, a profusio documental ndo per- mitiu identificar o instante em que se decidiu 0 genocidio, ainda mais porque ninguém descobriu até hoje uma ordem escrita de Hitler nesse sentido. E verdade, em seus trabalhos mais recentes, Christopher Browning apresentou a tese de que 0 momento-chave decisivo da “Solugio final” estaria no inicio da guerra contra a Unido Sovietica, exatamente entre julho e outubro de 1941, Naquele periodo, Hitler parecia estar tomado por uma “euforia da vitéria”, motivado pelos sucessos da Wehrmacht, que avangava rapidamente no territ6rio soviético.} Embalado pelo entusiasmo da “guerra de destruigao mi- litar-racial”, o Fihrer teria comandado a Himmler ¢ a Heydrich 0 que se pode chamar de um “estudo de viabilidade” do exterminio dos judeus (31 de julho). No inicio de outubro, apés a tomada de smplo, contestou TO historiador do Império otomano, Gilles Veinstein, por exemplo, 6 sua natureza “genocida”. Ver “Trois questions sur un massacre", LHistoire, 1° 187, abril de 1995, pp. 40-41. Essa posi suscitou vivas polemicas, entre elas uma resposta do his ivro Du négationnisme. Mémoire et tabou, Paris, Desclée de Brow eae 2 Raul Hilberg, La Destruction des juifs d'Europe, Paris, Gallimard, col. “Folio”, 1988, 2 vol. 5 Christopher R. Browning e Matthius Jargen, The Origins ofthe Final Solution. ‘The Evolution of Jewish Nazi Policy (September 1939-March 1942), Lincoln, University of Nebraska Press, 2004, p. 309 4. 23 Purificar e Destruir ¥ Jacques Sémelin Kiev (19 de setembro), as propostas que eles apresentaram foram aprovadas ¢ uma enxurrada de medidas veio a seguir, com a suspen- sio de toda emigracio de judeus (18 de outubro), as primeiras deportagées de judeus do Reich, a escolha das localidades de Chelmno ¢ Belzec (para o exterminio por gis) etc. Browning afir- mou, ainda, que os meses entre novembro de 1941 e marco de 1942 foram aqueles da progressiva implementagio da “Solugio final Partindo daqueles mesmos anos, no entanto, o historiador suigo Philippe Burrin props uma outra interpretagio, enraizan- do 0 processo da “decisio final” nao na vitoria, mas diante da perspectiva de um possivel fracasso dos exércitos alemaes que, ja na metade de outubro de 1941, se atolavam cada vez mais na frente russa. Como Hitler sempre julgara os judeus culpados pela guerra, eles deviam pagar um preco caro pelo sangue alemao der- ramado. Decidindo seu exterminio, o Fahrer os fazia pagar ante- cipadamente pelo desastre da possivel dérrota militar. Com a “morte de certa maneira sacrificial dos judeus, mente endurecia sua postura para conseguir a vit6ria ou lutar até 0 aniquilamento”,' diz Burrin. iador alemao Christian Gerlach propés ainda uma outra leitura do mesmo periodo, & luz. dos novos documentos des- cobertos nos arquivos soviéticos. Estando de acordo com Browning selado jd no outono de 1941, ele achou que faltava ainda explicar 0. momento da tomada de decisio de se matarem todos os judeus da Europa. Para Gerlach, isso ocorreu logo depois da entrada dos Estados Unidos na guerra, apés 0 ataque japonés a Pear! Harbor (6 de dezembro). No contexto de uma guerra tornada verdadeira- mente mundial, Hitler se determinou a cumprir na integra a “pro- fecia” de 1939. Gerlach se apoiou, para isso, em uma anotagio da agenda de Himmler, na data de 18 de dezembro de 1941, propos p. 169. 3pe Burrin, Hitler et les jus. Genése d'un génocide, Pati, Le Seuil {AS DINAMICAS DO ASSASSINIO EM MASSA uma andlise penetrante do protocolo da célebre conferéncia de “Wannsee, cujo valor historiogréfico é efetivamente excepcional (um dos raros documentos escritos da administragio nazista, atestando a.existéncia de um plano pan-europeu de “cumprimento” da *ques- to judaica”, incluindo-se os judeus residindo na Inglaterra)! Mas para o historiador francés Florent Brayard, a conferencia de Wannsee no marcava ainda o final do processo de decisio. ‘Apoiando-se nos trabalhos de Peter Longerish, ele achou ter sido necessirio esperar, na verdade, até maio ou mesmo junho de age, para que a sorte de todos os judeus europeus estivesse tracada, Brayard referiu-se a um discurso de Himmler, pronunciado iS de junho (por ocasito dos funerais de Heydrich, assassinado alguns dias antes, em Praga), para afitmar que Hitler acabava alk de decidir a erradicagao de todos os judeus na escala do continente. Himmler ainda fixava um prazo: 0 “programa” devia estar pronto em um ano. De fato, no final do verdo de 1943, 0 objetivo dos dirigentes nazistas tinha sido quase completamente atingido, pelo menos na grande parte da Europa que tinha cafdo sob a administragio direta de Berlim. Desse modo, diferentes autores a erudit dos discursos, anotagées e relat6rios produzidos pela administraci0 falema (tragou-se aqui, evidentemente, apenas uma apresentacio sumfria), Mas, no final das contas, chegaram a conclusGes sensi velmente diferentes, para nao dizer divergentes, que ndo apontaram fizeram uma leitura erudita Apés uma reuniso com Hitler, Hime anotou em sua agenda, na data de 18 de ezembro: “Questo judi: a serem exterminados como milan” &A erpretagio dessa anotasSo, ropes Pot (Christian Gerlach, e férence de Wannsee, op. cit, pp» $3-54. Serer onsets do ac dein {que se inclufa a alusio a0 exterminio dos judeus: migragio do povojudeu em um ano, exatamen rnenhum deslocado, Deve-se presentemente fazer {Citado por Florent Brayard, La Solution finale de la question Te temps et les catégories de la décision, Paris, Fayard, 2004, p iante dos genersis SS, em ‘Devemos ter terminado a lepois, no haveré mais bula rasa, totalmente. Latechnique, ) 255 um mes “ et lum mesmo “momento” para o process de deciso, Em busca ie instante preciso em que se teria tomado A decisio, suas and- See muit ° influenciadas pelo valor concedido a um docu: ‘mento (pot exemplo, para Gerlach, a agenda de His * aa agenda de Himmler, na data ae Se 1941; para Brayard o discurso de Himmler 10 de 1942 etc.). A expresso do t a rexto pesou fc a te na construgio dos seus raciocinios suai ma ae z = Foe no seria vao esse tipo de exercicio? Parece, efetivamente, Mas , , querer absolutamente isolar ui : ; m momento, um acontecimento, como reviravolta d aa ‘4 im » COI vi leterminante. Em vez de ut oe nica, mais vale falar de um processo de decisdo, de aa ncadear de medidas que, em circunstincias sempre cambiante evolu para uma “solo” cada vez mais bral. Em sums a ene atraindo outra e essa, tomada dentro de amie fexto, parece “natural” com rela 0 a precedente: um efeit contatena¢io “puxa” uma nova er n medida, ainda m: Fema rg ; b: iais radical. Desse modo, a dindmica conduzindo ao assassi em massa se.constréi por efeitos acumulativos, se ia : cumulativos, sem que as diferentes ea sido, necessariamente, programadas arom 0 - " a sa axlog Miche Man propts uma abordgem ese paralela, também acreditando 5 que © processo genocid: constr6i por etapas, por mei 5 etree por meio de interagbes compl plexas entre ages tanto wlb shospaacpeectdanccviodaredetngaa dum contest de guerra, Ele io nega que o gue hari : 7 ‘tnica” tenha sido realmente acidental: “Ela, afi Je maneira deliberada, mas 0 caminho para ta geral, é bem sinuoso”, escreveu.’ E mesmo que 0 era iis” ho spoon prem Bln pun gases medical estas as dest ean spar seems ochre examin lann observou, todavia, que sua construgio tedrica as vezes se en 256 10 piv6 dessa dinimica, ele certamente nao é 0 ele- timo permanes: jevem ser levados em conta, mento Gnico. Muitos outros agentes de tt comecar pelos que organizam e executam 0s massacres. Da organizacao do assassinio em massa ¢ de seus agentes ‘um outro caminho para o estudo das priti- identificar, no passado, jocar o estudo da Eis, precisamente, cas de massacre. £ verdade, pode ser difi ‘0 momento da decisio, mas € posstvel, entio, enf organizagfo pratica que se seguiu. © que melhor comprova a von- tade daqueles que decidiram o massacre nao seriam, j de inicio, os meios colocados em ago, em campo, para perpetra-lo? Revela-se aqui a importincia de uma metodologia de investigacao historica: descrever como, para compreender por qué. Mesmo que nao se consiga encontrar uma ordem escrita, pode-se deduzir que houve ‘uma ordem. Se, por exemplo, em alguma regido da Bésnia, no mesmo dia, na mesma hora, em vilarejos separados por quiléme- tos, uns dos outros, todas as casas de mugulmanos foram queima- das por varias unidades de combatentes érvios ou croata, € Gbvio {que a agressio nao foi casual: a constatagio dos fatos revela lago entre as operacées concertadas. £ importante, entio, se dirigir 8 identificagao das forcas empregadas naquela finalidade e & nature- za dos seus comandos. presente estudo comparativo permi caso, dois tipos de agentes violentos, simul envolvidos na execugdo dos massacres. Os de Estado propriamente dito: exército € ditas regalistas, destinadas, em princi- sao desviadas identificar, em cada Jraneamente distintos € complementares, meiros vém do aparelho . Essas forgas estatais, ‘a defesa do tertit6rio e A protecéo dos cidadios, ‘o enquadramento hierdrquico mir a ideia de que destruir um ou da ordem ¢ pio, de suas misses. Mais exatamente, {que tém acaba fazendo-as assu outro grupo civil faz parte das suas fungdes de defesa 27 eee Purificar e Destruir ¥ Jacques Sémelin da seguranga. Instrug6es nesse sentido passam a ser transmitidas a seus homens. Simultaneamente, um segundo tipo de agentes se zados de matadores, criados nas proximi- . A tarefa desses diltimos nao apenas a de encorajar 0 massacre no terreno, mas, sobretudo, a de cometé-lo de maneira sistemitica: € a razio de ser que Ihes é dada, como grupo. ‘Mesmo que venham a participar direta- mente da organizacao e da perpetragio dos massacres, em algum momento eles podem expressar reticéncia, considerando que tais atividades nao se incluem em suas missGes. Nesse sentido, casos de recusa de participacao, ou até de desobediénci contrapartida, os corpos especializados de matadores ¢ as milicias de todo tipo aparecem como grupos ad hoc, verdadeiramente for- mados para o massacre. Eles, As vezes, ganham uma aparéncia ofi- ial, com a ctiagio de uma nova corporagio do Estado. Inclusive quando 0 status dessas milicias € paraestatal ou ai mesmo priva- do, os lagos informais ou secretos com responsiveis fortemente presentes no aparelho de Estado nao deixam margem a diividas. Pois a constituicéo, seguida da agio em campo, daquilo que somos levados a chamar unidades organizadas de assassinos se apoia na existéncia de uma rede de dirigentes determinados, pre- sentes na direcdo de ministérios e de servigos operacionais. Essas redes pessoais, dirctamente ligadas ao chefe de Estado, repousam em modos de comunicagao transversal, que se estabelecemp, em geral, entre trés tipos de responsiveis: politicos, militares © pol ciais. A figura de alguns deles, particularmente ativos, se torna uma" espécie de simbolo do processo de assassinio em massa, do ponto de vista da sua organizacio pritica. Foi o caso de um Heydrich na ‘Alemanha nazista, de um Stanisic na Sérvia de Milosevic, de um Bagosora em Ruanda. Convencidos da importancia de sua missio, esses homens determinados souberam se apoiar nas estruturas estatais, mas também fazer entrar em curto-circuito 0 seu funcio- namento, sem hesitar, entio, em sair do limite da legalidade para alcancar suas metas. Foi instrumentalizando o aparelho de Estado que conseguiram por em ago a politica do massacre. |S DINAMICAS DO ASSASSINIO EM MASSA Mas a existéncia de tais redes ndo significa que elas comandam todo 0 processo de destruigio. Uma vez “dinamizado", um apare- Tho burocratico funciona por si mesmo, ¢ 0s inverior podem tomar iniciativas no sentido que desejarem. © caso da Alemanha nazista fo sintomdtico com relagio a esse fendmeno, No total, a instrumentalizagio das estruturas de poder chegou 20 aque se pode chamar de uma “vampirizagio” do Estado, tornado qMrsvino de sua propria populacio ou de outras populagdes cafdas sab o seu controle em decorréncia da guerra. A vampirizagio do poder gera no proprio aparelho de Estado, ow em sua Grbita, novas petiaturas® conecbidas para produzir morte, como os tristemente c&- I cores Einsategruppen, a milcia Interahamue ou 08 Tigres de Arkan. Raul Hilberg mostrou como os dirigentes nazistas souberam utilizar todos os servigos da burocracia alemd para pOr em aplicay io sua teoria r “A destruigao dos judeus {da Europa mostra ter sido um processo conduzido por etapas esc Tonadas, com cada uma resultando de decisoes tomadas por ind- eros burocratas, no seio de uma vasta méquina administrative 0 processo de destruigio se desenvolveu em um esquema aie Comecou, de inicio, com a elaboracio da de! ram-se, depois, procedimentos de expropri {o, mais adiante, ainda, a concentrago em guctOss & enim, a SJecisto foi tomada de se aniquilarem todos os judeus da Europa", «te eccreveu.' Emostrou em detalhe como o funcionamento de um Farad moderna, tal como Max Weber jé havia descrito, pode ser completamente desvirtuado em bene : Foi o que levou autores como Zygmunt Bauman a falarem do genocidio de judeus como um fendmeno sociol6gico aurentica: mente ligado nossa modernidade* ; ’A importancia da méquina burocrética pode, entretanto, Ocul tar 0 peso dos nazistas radicais, que 0 historiador alem#o Dieter su TRaul Hilberg, La Destruction des juifs d'Europe, 2 Zygmunt Bauman, Moderité et Holocauste, oP. 259 Purificar e Destruir ¥ Jacques Sémelin Pohl denominou de “guerreiros ideol6gicos”. Colocados em postos- chave da administragio, eles nem sempre esperavam ordens supe- riores ¢ agiam por conta propria. Eram responsaveis fandticos, procurando dinamizar o aparelho burocrético para que ele reali. zasse, da melhor maneira, os objetivos do partido nazista. Para estruturas mais flexiveis, fora do Estado. Foi como Himmler con- seguiu, a partir de 1934-1936, desvencilhar 0 conjunto do apare- tho policial do controle do Ministério do Interior: a Gestapo ¢ a SS mantiveram a aparéncia de érgios estatais, mas escapavam, na pré- tica, a0 controle do Estado..., colocadas sob a influéncia direta de Hitler. Segundo Edouard Husson, o modo de funcionamento de Hejadrich — tornado adjunto de Himmler apés ter sido, inici ‘mente, por ele recrutado para se ocupar do servigo de informag&es — fornece um exemplo tipico da vontade de provocat curto- circuito nas rotinas administrativas, tanto por cima quanto por baixo, coma finalidade de por em aco uma politica racial eficaz e coerente.' Assumindo, em 1939, a direcdo do recém-criado Oficio Central de Seguranca do Reich (RSHA), Heydrich se tefetia ao 6rgio como sendo uma “administrago de combate”. Foram homens recrutados no RSHA que se tornaram os organizadores e executores das primeiras operagoes genocidas dur: 4 ant Unido Soviética. ral Alenianba nazista: 0s guerreiros ideolégicos Oaparelho de terror concebido por Heydrich cul nOsmerliod jou com a ‘magio dos Einsatzgruppen (grupos de ago especi reconsti- ¥ Participagio no Ambito do seminirio de Mare-Oli seminirio de Marc-Olivier Baruch, na Ecole des ‘Hautes Erudes en Sciences Sociales, em 23 de novembro de 2003, - 260 |S DINANICAS DO ASSASSINIO EM MASSA tuidos precisamente antes do ataque & Unido Sov Compostos por voluntérios, os Einsatzgruppen — 3.000 homens a0 todo, organizados em grupos que iam de 500 a 1.000 integran- tes — demonstram a capacidade de Heydrich para traduzir em atos a especificidade da concepgio hitlerista da politica e da guer- ra. Sua missio principal era, efetivamente, proceder & eliminagio dos inimigos “judeo-bolcheviques”, isto é massacrar os judeus residindo em territ6rios que acabavam de ser conquistados. Para Hitler, os inimigos do Reich nao podiam, sobretudo, mais uma vez “apunhalar a Alemanha pelas costas”, como em 1918. Assim, as unidades de Heydrich deviam “colar” na progressio da Wehrmacht em diregio a Moscou. Os massacres comegaram, entio, jé no més de junho e ganharam, em agosto, uma caracteris- tica macica. Nao se fazia ainda qualquer mistério em torno daque- Jas matangas, ao contrério da prudéncia que prevaleceria em seguida. A populagio judaica capturada nas cidades ¢ vilarejos era, em geral, fuzilada nos arredores (inclusive mulheres e criangas). O massacre mais célebre foi o de Babi-Yar, na Ucrania, em 29 ¢ 30 de setembro de 1941: 10 dias apés a tomada de Kiev, os comandos da Einsatzgruppe C fuzilaram, em dois dias, 33.771 judeus. ‘As unidades do exército regular alemao se viram igualmente tragadas pela dindmica dos repetidos massacres. As instrugoes dadas por Hitler ao alto comando consistiam em travar uma bata- tha mortal contra o inimigo “judeo-bolchevique”. Como sublinhou marechal Von Reichenau, comandante em chefe do VI Exército, na frente russa, em 10 de outubro de 1941, “a meta mais importan- te da guerra contra o sistema judeo-bolchevique € a destrui¢io com- ado da influéncia asidtica na pleta dos seus meios de acio ea el ia. Desse ponto de vista, as tropas se veem na presen 1. Quem com> cultura euro} a de tarefas que ultrapassam a simples rotina 7 Bias undades, surgidas pela primeira vex por ocasio da anexagio da Austria, foram duas vezes dissolvidas ¢ depois reconstitufdas antes das invasées da Poldnia: « da Unio Sovietca. 261 Purificare Destruir \V¥ Jacques Sé1 bate nos territ6rios do Leste nao é mais simplesmente um soldado, dentro das regras da arte militar, é também o portador de uma implacével idcologia nacional e o vingador das brutalidades de que a Alemanha e os pafses a ela ligados racialmente foram vitimas, Por essa razdo, 0 soldado precisa perfeitamente compreender as neces- sidades de uma vinganca severa, mas justa, contra essa humanidade inferior, que é a judiaria®. Compreende-se melhor entao por que a ‘Wehrmacht estava implicada na perpetracao de iniimeros massacres de populagées judias, como apoio logistico ou agente direto, fosse lorrdssia, na Réissia ou na Sé Mas os judeus, certamente, no eram os tinicos alvos. Ainda para eliminar a pretensa influéncia asiética, os militares alemaes fizeram morrer de fome, aos milhdes, os soldados soviéticos cap- z ». Em ambos os casos, 0 exército contri- buiu para a destruigio de w igo total, cuja face era, a0 ~mesmo tempo, judia e bolchevique. Oestudo de Omer Bartov tornou-se um dos mais Hotdveis para se compreender como a Wehrmacht foi tragada na luta mortal contra o inimigo toral e como homens de tropa integraram aquela ideologia, pasando pelo aprendizado coletivo da violéncia.? Ruanda: “executar o trabalho” Em Ruanda, a situagdo se apresentava da maneira invétsa.'De fato, 0s nazistas estavam estabelecidos no poder e controlavames todos os servigos do Estado, quando deram inicio a eliminagio dos doentes mentais ¢ dos judeus, enquanto, em Ruanda, os massacres, preparados pelos extremistas hutus, antes da tomada do poder, foram executados na prépria fase de constituigio e de consolidacdo " Ver o Procés des grands criminels de guerre devant le Tribunal ere devant le Tribunal militaire interna- tional de Nuremberg (1947-1949), t. IV, p. 476. : ‘Omer Bartoy, LArmée d° do novo poder, no momento em que a guerra contra a FPR era reto- mada. A vitéria do projeto supunha, entio, que tivessem assegura- das inimeras cumplicidades e colaboragées, em todos os escaldes do Estado, quando se chocassem contra certas resisténcias. Para atingirem suas metas, apoiaram-se tanto sobre as forcas armadas, prontas a combater o inimigo interno, quanto sobre “forgas civis”, igualmente essenciais para “incentivar” a populagdo hutu ao massa- cre em nome da seguranca coletiva. Durante seu proceso, em ‘Arusha, sob 0s auspfcios do Tribunal Internacional para Ruanda, Jean Kambanda, ex- 10 do governo interino, dew ‘uma ideia bastante precisa das diferentes estruturas hierérquicas que impulsionaram os massacres, ap6s 7 de abril. Ele descreveu cinco is de comando: 0 comité de crise do exército (dotado, segundo cle, de uma “estrutura fantasma” a que pertencia Bagosora), a hie- rarquia militar oficial, os lideres politicos sob a influéncia dos mi tares, 0 governo interino ea rede de “autodefesa civi Imediatamente ap6s 0 assassinato do presidente da Repii © coronel Bagosora se esforcou para obter 0 apoio — ou pelo menos a concordancia — de todos os comandantes do exército, no ‘momento mesmo em que seus homens comecavam a massacrar nas ruas de Kigali. Enquanto o general Dallaire esperava que 0 primeiro-ministro interviesse no radio com um apelo & calma, Bagosora procurou se aproveitar da situagao para formar um governo militar sob sua autoridade. Mas esbarrou na recusa de varios oficiais de alta patente. Ap6s 0 assassinato do primeiro- ministro, Bagosora propés a formagao de um governo civil, cons- tituido por extremistas hutus. Com essa proposta finalmente acei- ta, oficiais que Ihe permaneciam hosts fizeram apelo a comunida- de internacional. Mas os diplomatas servindo em Kigali estavam ocupados com a evacuacéo urgente de seus compatriotas nao em impedir os massacres. Bagosora pode contar com cerca 2.000 solda- dos de elite (em primeiro lugar, os da guarda presidencial), assim iro-mi TGitado por Linda Melvern, Conspiracy to Murder, op. 263 Cee ee ik Purificar e Destruir ¥ Jacques Sémelin como com unidades da policia ¢ policiais civis tiveram, ent4o, um papel importante na dos massacres, sobretudo para que se espalhassem pelas provincias. Antes de 6 de abril, soldados e policiais militares j haviam discreta- mente distribuido armas a populagio hutu. Apés essa data, passa- ram a fazé-lo abertamente. Paralelamente, 0s mi as autoridades civis, ainda reticentes, para dar es pressionaram jo as matancas. A outra forga armada, a disposi¢ao dos que prepararam os mas- sacres, era constituida por milicias, criadas pelos partidos politicos préximos do presidente morto. Em 1992, 0 MNRD havia criado a CDR, 0s Impuzamugambi (“Aqueles que tem o mesmo objetivo”). A formagio dessas milicias procedia sempre de uma mesma i armar éivis para lutar contra a FPR e dar caca aos tutsis, seus supos- tos aliados. Compunham-se, principalmente, de jovens} reftigiados ¢ desocupados. Fazer intervirem as milicias tinha a vantagem de nao implicar diretamente as autoridades administrativas, nem as forcas oficiais do exército ou da policia militar, na execugio de massacres, Assim, em margo de 1992, os Interahamuwe foram acio- nados, pela primeira vez, para massacrar tutsis na regio de Bugesera. Até abril de 1994, seu efetivo nao chegava a 2.000 homens. Mas cresceu, em seguida, até 20.000 ou 30,000, pois os milicianos conseguiam importantes lucros com as vi Desde o infcio dos massacres, os responséveis politicos coloca- ram suas milicias 4 disposigao dos militares. Por exemplo, em matangas de grande dimensio — como o ataque A igreja de Gikondo, em 9 de abril —, os milicianos, com toda evidéncia, obe- deciam aos soldados presentes no local. E respondendo as necessi- dades das autoridades, os chefes das milicias deslocavam seus homens de uma regido para outra, o que comprova a centralizagio ea coordenagao das operagées de matangas. ‘Mas militares ¢ milicianos néo bastavam para matar tutsis nas proporgées esperadas, isto é, em grande escala e em tempo reduzi- do. Em conformidade com o discurso oficial do novo governo, a [AS DINAMICAS DO ASSASSINIO EM MASSA defesa do pats era da responsabilidade de todos, 0 que incitar 0 conjunto da populagdo ao massacre. Com essa final 1s organizadores repuseram em vigor uma antiga pratica colonial, retomada pela administragio ruandesa, de mutirées comunitérios obrigatérios (wmtugarida). Eram trabalhos efetuados para 0 interes- se publico: desmatar terrenos, reparacio de estradas, escavacio de fossas antierosio etc. A umuganda era posta em funcionamento pelo nyumbakumi (chefe de bairto, responsavel por um grupo de 10 residéncias), que mantinha um registro das presengas ¢ tinha o poder de aplicar multas em quem nao participasse das sessbes de trabalho coletivo. Naquele caso especifico, o trabalho de interesse coletivo, a causa nacional urgente, tornara-se a eliminagio do ini- migo tutsi, inclusive © No passado, as autoridades pol strativas ja haviam organizado expedigdes desse tipo, nas colinas, para pro- vocar os primeiros massacres de tutsis. Repondo em vigor aquela prética, Calixte Kalimanzira, chefe de gabinete do ministro do Interior, contava com uma burocracia cujo pessoal estava acostu- mado a executar ordens pronta ¢ integralmente. Da chefatura de polfcia a comuna, a organizagio dos massacres se apoiou na buro- cracia e na hierarquia do jovem Estado ruandés, 0 que dava aque- la matanga maciga uma caracteristica bastante “moderna”. Con- cretamente, eram os burgomestres (prefeitos) que tinham a tarefa, nas localidades, de enquadrar a populagio ¢ suscitar a deniincia dos “suspeitos”. Enviavam seus subordinados de casa em casa para recrutar todos os homens, dizendo-Ihes que teriam um “trabalho”, ‘com a palavra tendo passado a significar matar ¢ roubar. As decla- rages de Jean Kambanda durante seu processo em Arusha foram esclarecedoras quanto ao uso ambfguo da palavra. Ao ser interro- gado, foi perguntado 0 que Wa, entio, a palavra “traba~ ho”, ¢ ele respondeu: “A palavra tinha dois sentidos [...]. Naquela época, as pessoas nio trabalhavam, absolutamente. Levantavam-se ¢ iam ouvir 0 radio para saber 0 que estava acontecendo; entio, ‘trabalho’ podia ser cumprir seus afazeres cotidianos [...]. Mas, no 7 Purificar e Destruir ¥ Jacques sémelin pasado, ‘trabalho” significava matar tutsis. Em 1959, quando as pessoas diziam estar indo trabalhar, isso signi nar tutsis.’ Desse modo, havia uma confusio.”! A mobilizagao geral para “trabalhar” fazia com que a dindmica coletiva das matangas, conduzida por encarregados administrati- vos e politicos, nem por isso ficasse presa 8 rotina burocritica. Era, inclusive, 0 contrério que ocorria, observou Alison Des Forges: “A organizacéo que conduzia a campanha era flexivel: o posto dos individuos dependia mais de sua vontade de participar dos massa- eres do que de sua posicdo na hierarquia. De maneira que no inte- rior do aparelho administrativo os subchefes podiam ficar acima dos chefes, como foi 0 caso em Gikongoro e em Gitamara, € no campo militar tenentes podiam nao prestar contas a coronéis, como ocorreu em Butare.”? Naquela situago excepcional, alguns agentes podiam ultrapassar os limites legais das suas fungGes: mili- tares intervinham na area civil, enquanto civis sem qualquer poder obrinham o apoio de militares quando queriam atacar os tutsis. Um outro agente dava a execugio dos massacres uma caracte- ristica moderna: a Radio-Télévision des-Mille Collines (RTLM). A emissora que, durante meses, destilara um virulento édio antitutsi passou a fazer apelo, abertamente, ao assassinaro. Os locutores se apresentavam como 0 “Estado-Maior da palavra”, 0 que explica bastante bem o papel que a radio se atribufa. Prodi n tivos aos que serviam nas barreiras, denunciava soldados deserto- res da frente de guerra e repreendia milicianos que se mostravam mais interessados em pilhar do que em matar, pressionando exército a distribuigao de fuzis e de drogas aos jovens que respon- diam aos apelos a mobilizagao geral, prometendo a medalha da resisténcia a todos que assumissem o risco de permanecer na capi- tal, para limpé-la dos tutsis e impedir que cafsse nas maos do “ibid, p. 191. 2 Alison Des Forges (org.), Aucim témoin ne doit surviore, op. cit p. 261. [As DINAMICAS DO ASSASSINIO EM MASSA inimigo.' A RTLM pretendia, dessa maneira, ser a vor da “resis- téncia do povo hutu”. ‘Com isso, a emissora retomou certas fungdes do radio, ja iden- tificadas em outras crises politicas.* A RTLM se tornou mensag ra, dando, por exemplo, instrugdes precisas, sendo ordens, as cias, pedindo que se dirigissem a determinados locais. Passou também a estabelecer preceitos, dando aos ouvintes hutus ordens chamadas de “vigilancia e defesa” que, no caso, eram verdadeiros inclusive de vizinhos. “As pessoas devem observar os seus vizinhos, ver se nao estio conspirando contra, Pois esses conspiradores sio os piores. As pessoas devem se levantar para desmascaré-los; nao € dificil ver se alguém esté fazendo complé contra voce”, langou uma locutora de RTLM, > Bla oferecia aos ouvintes, querendo procurar pessoas suspeitas, cujos nomes eram dados em seu programa, que a contatassem para maiores informagdes. Foi a primeira vez, na Hist6ria, que uma estagio de rédio incitou, abertamente, seus ‘ouvintes a participarem de maneira ativa em massacres, que logo viriam a ser reconhecidos como genocidas. ation populaire & la violence d’Etat: le cas du alestra no coléquio La Violence et ses causes, Paris, 3 de novembro de 3 2A come renee tor ameutive Le Liberté abot de ones. Di ony sue dla chute du mur de Berlin, Pars, Belfond, 1997, em que propus uma See sisters de ale 1986 Se Pop on 168 Em cada um dos pases, as ridios nacionasfizeram apelos & resistencia do povo contra o invasor soviético. Ao tomar conhecimento da acio de RTLM em ira como as estagoes Ruanda, nio pude deixar de fazer a aproximacio com a maneira como * ee ee ncaram dane sc cee A RLM oem rete dia fazer apelo a um movimento de resisténcia, no caso, um apelo pablico & morte dos tutsis. * Citado por Alison Des Forges p. 300, ), Aucum témoin ne doit survivre, op. 267 Purificar e Destruir i] Jacques Sémelin Sérvia: forcas armadas alternativas Na lugoslavia, a situagio politica daqueles que se preparavam para a guerra estava mais ou menos no meio do caminh dos nazistas, em 1940, e a dos extremistas hutus, no 1994. Milosevic, é verdade, jé estava no poder em Belgrado, desde 1987, mas seu mando permanecia limitado: era apenas presidente da Sérvia e da Liga Comunista da Sérvia. Desse modo, querendo impor sua autoridade ao exército iugoslavo, o JNA, ele se chocava a resistencias internas da prépria instituigao militar, por definigao federal. Até 1991, 0 exército iugoslavo, apesar de dominado por um enquadramento sérvi era “multiétnico”, mantendo-se auten- ticamente comuni ‘em oposigio a qualquer movimento » Secessionista. entio, se esforgou, por um lado, para pro- gressivamente aumentar seu controle sobre a inttituigdo militar ¢, por outro lado, criar forgas armadas alternativas para suas necessi- dades praticas, politicas e pessoais.' Mas 0 controle do JNA pare ce no ter ocorrido tio facilmente quanto achava Milosevic, con- tou James Gow em seu estudo sobre a “servianizacao” do exército. general Eljko Kadijevic, entio ministro federal da Defesa, nao apreciava muito a linha seguida por Milosevic, apesar de ter resol- vido, mais tarde, se losevic, por sua vez, achava Kadijevic demasiadamente “iugoslavo”. Para destruir tal estado deyespirito dentro do exército, ele pouco a pouco passou a nomear, 20s pos- tos de comando, oficiais sérvios que Ihe eram favorveis, como 0 -general Bozidar Stevanovic. Com isso, o JNA se viu cada vez mais implicado em operagdes de “limpeza étnica”. As circunstancias politicas se prestaram favoravelmente as losevic. De fato, as partidas da Eslovénia, da Crofcia e, depois, de outras rept considerdvel a presenga dos sérvios no que sobrara do exército ingoslavo: em marco de 1992, ndo restavam mais do que 5% de ¥ James Gow, The Serbian Project and Its Adversaries, op. city p. 51. [AS DINAMICAS DO ASSASSINIO EM MASSA ndo-sérvios.' No infcio da guerra da Bésnia, o JNA, formalmente issolvido em 19 de maio de 1992,? gerou duas entidades distintas: ‘S exército bésnio-sérvio (VRS) € o exército ainda chamado “iugos- lavo” (VJ). A decisio dava continuidade a resolugao da ONU, ‘mpondo sang6es & Iugoslivia, apontada como principal responsé- vel pela agressio a Sarajevo. Para que a cidade de Belgrado nao fosse mais formalmente acusada de ter invadido a Bosnia, Milosevic respondeu provocando a dissolugao do JNA: pode, a partir de entdo, dizer que nao eram sérvios que lutavam no territ6rio bés- nio... mas bésnios-sérvios do general Ratko Mladic, sobre 0 qual le alegava nao ter mais controle. Era pura ficgao, € claro, apesar de as forcas do general Mladic gozarem, em acio, de uma margem grande de liberdade, ¢ os bésnios-sérvios, € verdade, procurassem ‘obter autonomia no plano politico. Na prética, a guerra da Bésnia permitiu a Milosevic aumentar um pouco mais o seu controle sobre (08 militares. Segundo James Gow, pode-se considerar que ele con- seguiu 0 dominio total do exército apés 0 Conselho Supremo de Defesa, de 25-26 de agosto de 1993, marcado pela despedida for- ada de 40 generais, Entretanto, considerou ele, 0 “fantasma” do exército federal parece nunca ter sido eliminado, o que gerava uma permanente desconfianga de Milosevic com relagio aos militares.» Era no Ministério do Interior que Milosevic tinha os homens mais fidis 2 sua causa, a comegar por Radmilo Bogdanovic, 0 men- tor da “revolucio antiburocratica”, que levara ao poder. Ele 0 tornou ministro do Interior, com Bogdanovic conseguindo, entio, fazer da policia sérvia a “guarda pretoriana” do regime.‘ Bem equi- 1 Essa “servianizagéo” do exército acelerou-se, também, com a demissio de ofi- chisnsosevis oust aon. — i SA dissolugio resulton, uridicamente, da criagSo de uma nova Tugoslivia (Sérvia~_’ Hany pala Coasuiio de 27 de abn ds 1392 J ‘T James Gow, The Serbian Project and Its Adversaries, op. 4 Florence Hartmann, ssevic. La diagonale du fou, p. 206. Bogdanovic foi forgado a se demi de 9 de margo de 1991, que causou duas Imanceeu muito ativo nos bastidors do pode! antes. Mas per= Purificar e Destruir ¥ Jacques Sémelin pas ¢ bem pagas, as unidades da policia, com 5.000 homen {Gem contar os reservists), constiufam uma verdadeira emai ta de coersdo nas mios de Milosevic. A partir dese minisério, sinasdoexérto, da plea « uabeanee oe Ee > também da criminalidade. ee eeetiy sobretudo ao redor de Jovica Stanisic, ae ‘para os sevigos seeretos sérvios aps os estudos de céncis pol ‘eas im 1990, Stanisc se tornou o responsivel pea “linha mili aus so do Interior (Vojna Linija).' Essa rede, com ofi- Sais servos favoréveis a Milosevic (como Ratko Mladic), elabo- {Ou gm 1990, 9 plano *RAM" (acrOnimo inspirado na palayra fee en ee cat © hiingaro Mihajl Kertes, as vezes Seereiagaia la Limpeza Etnica”, fazia parte. A meta da afd organiza “a resistencia” dos servos da Crodciae da Bésnia, inclusive enviando-Ihes armas? r aa ainda, lagos com diversos grupos pafamilitares que stitufram no infcio dos anos 1990. Como em Ruanda, os” extremistas sérvios se muniram, na prética, de milicias armadan: beneiindos da complacenci do poder. Uma das mas souhe™ sidan ai Mesias Brancas, de Vojslav Seselj, chefe do partido de cera ela oer Remetendo-se abertamente aos tchetniks, oe isposicao de qualquer combate para a'redefinigao ronteiras da “Grande Sérvia”. Foram, alis, os homens di Ses gue cometeram um dos primeiros massacres da ae rovo Selo, contra policiais croatas.} Ou da Guarda Voluntéria sérvia, chamada “Tigres ake Zelko Raznjarovic, um homem com um pasado criminoso, Para as milicianas, 0 poder nio hesitava em libertar con= | Net Tim Juda, The Serbs op. itp. 170. a plano ok claramenteidentiicad em stembro de 1991, quando vazoua gra ima conversa entre Milosevic e Karadzic (ver ibid, p. 191), Mas até hoje nenhum document Bel its to escrito atestando a existéncia do plano foi * Ver Paul Garde, Vie et mort de la Yougoslavie, op. cit p. 306. 2 {AS DINAMICAS DO ASSASSINIO EM MASSA “Croacia ou na Bosnia. “Tais milicias, pilhando, violentando ¢ ‘matando, formavam, evidentemente, 0 pelotio de frente da “lim- ‘peza mica”: o simples andincio de sua chegada, muitas vezes, bas- tava para por em fuga um vilarejo. Seu efetivo global foi estimado ‘em 12,000 homens, em 1991-1992. Na Crodcia vizinha, constitut- ram-se, no mesmo perfodo, milfcias bastante semelhantes. ‘A utilizacdo desses grupos paramilitares, além de remediar as desergoes em massa nas fileiras do exército (inclusive de sérvios da Sérvia, na mobilizagio do outono de 1991), apresentava uma gran de vantagem politica para Belgrado, que era a de dissimular aos ‘olhos do exterior o papel da Sérvia naquelas operacdes. Mas, na verdade, os grupos eram comandados por homens do Ministério “do Interior e nao conseguiriam agir sem 0 apoio do exército, pois precisavam de tiros de artilharia antes de entrar em agio, assim como de diversos apoios logisticos (em primeiro lugar, o combus- tivel). A presenca, na frente, de bandos armados que escapavam de ‘qualquer disciplina militar suscitou, em muitos militares, indigna- ‘gio e repiidio. Mas o crescente controle de Milosevic sobre o exér- Gito serviu para reforcar a complementaridade dos dois tipos de “forga. Na pratica, era um mesmo rotciro.que-se repetia: 0 ‘exército ‘comegava bombardeando uma cidade ou vilarejo e, depois, 0s paramilitares chegavam para matar ou expulsar os habitantes no- “sérvios: Em novembro de 1991, o ataque de Vakovar transcorreu dessa forma, com os paramilitares chegando a matar doentes em ‘um hospital. As operacies se sucediam, de massacre em massacre, para afugentar os croatas, enquanto as forgas de Tudjman também vam para resistir a0 avanco dos sérvios, usando 0s mes- se OFga mos métodos expeditivos. Praticas organizadas € aut6nomas Mesmo que 0 massacre, com evidéncia, proceda de uma orga- nizagéo, no Ihe devemos dar uma representacdo rigida. Alguns am Purificar e Destruir ¥ Jacques Sémelin autores tendem a dar a impressio, para demonstrar a premedita- io dos atos, de que tudo fora calculado de antemao pelos crimi- nosos. f, ainda, uma visio inspirada pela abordagem jurfdica: pro- Yar que 0 massacre resultou de um plano combinado e coordena- do. Jornalistas e historiadores, nesse caso, tém tendéncia a se trans- formar em procuradores. Apesar de a dindmica do processo de destruigdo ser acionada por um impulso central (vinda daqueles que 0 decidiram e organizaram), ela depende, também, de uma certa improvisagio da ago. Sabe-se, por exemplo, que incriveis etros ¢ falta de tato, com relagio as familias, acompanharam o pri- meiro programa de exterminio dos doentes mentais alemfes. Houve caso em que o atestado de dbito dirigido a familia mencionava uma tise de apendicite, ¢ 0 doente jf havia antes operado o apéndice; ou familias que receberam duas urnas, em vez de uma s6 ete, Da mecma »forma, “em setembro e outubro de 1941, comboigs [de deportados judeus] foram enviados para leste, sem que se tivesse uma ideia clara do que fazer com eles, indo para zonas em que nao havia uma poli- tica nitidamente definida quanto ao que fazer com eles. Os respon- siveis regionais procuravam seu caminho e tomaram certas decisées, ‘mas sempre em estreita ligagio com Bérlim”." Em vez de considerar que tudo se origina em um sistema de poder central, melhor seria se interessar por sua periferia, quer dizer, por agentes locais que igualmente podem tomar vas determinantes. Varios estudos regionais — como o do histdtiador alemao Dieter Pohl sobre a Galicia oriental (sudeste da Pol6nia) —a dessa forma mostraram como agentes da periferia anteciparam 0 gue desejavam os que estavam no centro do sistema, com esses. filtimos apenas avalizando 0 que jé havia sido feito... e pedindo que fossem ainda mais longe.? Naquela regio, onde se encontrava Mare Roseman, Ove du jour: génocide op cit. 151. eter Pohl, Nationalsozialistsche Judenverforlung in Ostgalizien, 1941-1944, Organisation und Durchfubrung eines staatlchen Massenverbrechens, Oldenburgo- Maniaus, ‘Studien zur Zeitgeschichte, 1997. Enconta-e em Dominique Vial (org) orien allemands relisent la Shoa, op. ci, uma lon a eee la Shoah, op. cit. uma longa apresentagio |S DINAMICAS DO ASSASSINIO EM MASSA a maior concentragio judaica da Europa (com excecao da regio de Vars6via), viu-se como — a partir das interagGes permanentes entre centro ¢ periferia — os agentes elaboraram métodos de matangas diferentes, de acordo com os contextos particulares do momento: pogrons, fuzilarias, fome organizada, matanca por gis € novamente fuzilarias se sucederam em menos de trés anos. No total, dos 545.000 judeus vivendo naquela regido, em 1939, néo restaram sendo algo entre 10.000 e 15.000, em 1945. Da mesma forma, quando 0 novo comandante-geral das forcas alemas, Hans- Joachim Béhme, chegou a Sérvia, em setembro de 1941, alguns Oficiais the sugeriram que rapidamente tomasse medidas radicais contra 0s judeus (provavelmente medidas de deportacio). Jé the haviam dado a ordem de instituir uma politica de represilias, intei- ramente nova, contra 0s ataques de militantes: para cada soldado alemio morto, 100 reféns judeus masculinos deviam ser executa- dos. Mas seus superiores nao Ihe tinham transmitido qualquer ins- truco particular de perseguicio aos judeus, propriamente. Foi por conta prépria que tomou medidas nesse sentido. No final de 1941, praticamente nao existiam mais adultos judeus de sexo masculino na Sérvia. E no infcio de 1942, com o exterminio das mulheres € das criancas, a Sérvia foi um dos primeiros paises “livres de judeus” (Judenrei). Desse modo, agentes locais podem conquistar uma real auto- nomia ao por em pratica as matangas. F tal autonomia se torna muito possivel, pois precisamente se encaminham na diregio dese- jada pelo centro. Observacées assim parecem ter se verificado no caso de Ruanda, Mesmo havendo, de fato, uma evidente coorde- nagio das operagdes, uma ampla autonomia foi deixada para os agentes. A palavra de ordem geral, repetida em todo lugar, era que ‘se matassem tutsis, pouco importando quem tomava a iniciativa: “Em todos os niveis, a superposi¢ao daqueles que davam ordens permitiu remediar eventuais falhas individuais em uma estrutura ou outra. Melhor ainda, isso encadeava uma progressio € uma violencia cada vez mais indiscriminada dos quadros pequenos ¢ médios, que tentavam dominar um crescente caos, ou se esfor- ™

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