Está um belo dia, um céu sem nuvens e um generoso sol de inverno, e os dois
amigos desfrutam agora do horizonte privilegiado que se pode obter da varanda da casa
de Berna. Trata-se de uma casa antiga situada nos limites de um bairro histórico, e a
pequena varanda, escancarada sobre o vasto leito do rio, fornece uma das mais agradáveis
perspectivas da beleza mediterrânica da cidade, na opinião muito pessoal do compositor.
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Talvez por conta dos Qualia e do suave empolgamento que o invade, vão
nascendo no seu pensamento imagens sutis, à medida que o bulício dos transeuntes e as
rotas das embarcações se organizam e se contratam nos seus trajetos, ora em linhas retas
(que se cruzam com outras linhas retas formando, em várias amplitudes, ângulos opostos
pelo vértice), ora em rotas errantes com imponderabilidades oblíquas, justapondo a estas
diagramações espaciais critérios de massa que distinguem os indivíduos isolados dos
pequenos grumos de aglomeração transitória, a ténue configuração dos bateis da vigorosa
escala do cargueiro, sem esquecer as diferentes velocidades em que estas relações se
estabelecem e se desagregam. Há um encadeamento sinfônico que unifica, no teatro da
sua mente, todas estas operações com uma lógica musical, formando narrativas que ora
se bifurcam numa faixa verbal, traduzindo as pessoas, os barcos e o seu movimento geral
em palavras e frases, ora em formas não verbais, quase fílmicas, que narram
acontecimentos melódicos, acumulações harmônicas, contrapontos heterogêneos,
acentuações dinâmicas2, todas elas compondo a contínua procissão de respostas emotivas
e matizando, a cada momento, a produção dos seus sentimentos de pacífica agitação.
O compositor Tristão Ventura olha de relance para a sua amiga, tal como ele
enlevada pela benigna encenação do mundo na sua varanda. Que imagens germinarão nos
vários pontos dos seus sistemas visual e auditivo, que narrativas ordenarão essas imagens,
que respostas emocionais acompanharão essa labuta? No carrossel da sua própria
consciência junta-se o propósito deste novo encontro, que neste momento germinal de
uma nova obra é precisamente este primeiro encontro, o seu estampido, a sua vibrante
promessa de uma consequência artística ainda desconhecida. Um dia, daqui a uns meses,
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“Gosto de pensar nos Qualia I como música, como uma partitura que acompanha o restante processo
mental em curso, mas frisando que esse acompanhamento musical faz parte integrante do processo mental.
Quando o objeto principal da minha consciência não é o oceano mas uma composição musical verdadeira,
passo a ter duas faixas musicais a tocar na minha mente, uma com a peça de Bach que está neste momento
a ser reproduzida, e outra com a faixa semelhante a música com que reajo à música real, com a linguagem
da emoção e do sentimento” (Damásio, 2010, p. 314).
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“O resultado de todos estes processos imagéticos não é apenas uma grande peça teatral, uma sinfonia
ou um filme. O resultado é um espetáculo multimídia épico” (Damásio, 2017, p. 208)
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Aos poucos vão surgindo, na mente de Ventura, imagens de uma nova peça, uma
obra à imagem de um denso organismo, habitado por múltiplos impulsos, que ora
divergem e logo convergem, contaminando e alvoroçando a mônade em que se ela
constitui, uma estrutura movente, instável e maquínica, dotada de um metabolismo
mutante, com distintas instâncias de transfiguração. Um organismo constituído pelos
intérpretes, que são músicos e bailarinos, mas que agirão como se fossem células
complexas, cujo núcleo ora irá pensar, ora obedecer. Quando pensar, cada célula se
autonomizará, isolará e falará, voz difusa numa névoa harmônica, eterna diferença em
seu eterno retorno. Cada intérprete poderá ser, assim, uma potência de insurreição ou de
atrito, constituindo-se em discurso individual, cuja percepção se dissolverá na polifonia
dos restantes discursos. A resultante expressiva será aleatória, confusa e vital,
sobressaindo efémeras erupções de intensidade na multiplicidade extensiva dos gestos e
dos sons, numa babel tentacular, orgânica e estridente. Mas, nos momentos em que o
núcleo obedecer, concentrará a energia na direcionalidade substantiva da crença e da
repetição. A dispersão performativa e sonora poderá afunilar, então, num discurso
tendencialmente convergente ao observar qualquer regra tacitamente aceite. Essa
convergência terá, como efeito narrativo, um acúmulo de vontades e uma efetividade
produtiva - é o organismo que se determina enquanto movimento. Assim será lançada a
tensão anímica, plena de restos e de fissuras que desfocarão a percepção do abismo e
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“As imagens relacionadas com o mundo interior começam por ser integradas nos núcleos do tronco
cerebral, embora sejam re-representadas e expandidas em certas regiões cruciais do córtex cerebral, tais
como os córtices insulares e os córtices cingulados. As imagens relacionadas com o mundo exterior são
integradas sobretudo no córtex cerebral, embora os colículos superiores tenham igualmente um papel
integrativo” (Damásio, 2017, p. 129).
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agenciarão o movimento das fibras deste organismo. Não se estabilizará nunca uma
identidade, porque ela oscilará perpetuamente entre a desintegração do arbítrio individual
e o esboço de uma consciência plural, coletiva. O ânimo será esta dubiedade orgânica -
sua emotividade parcelar ou unificada- e também a clareza do movimento – opaco e
disperso nas células desgarradas, claro e opinativo nos movimentos convergentes. O todo
se agitará conforme o desempenho do meio, irá aderir ao silêncio, aderir ao perigo, aderir
ao riso, aderir à fúria. O movimento do meio e suas transformações no tempo, explicarão
o movimento do monstro. O meio será dramatúrgico e segregará causalidades. Tudo o
que acontecer terá origem numa causa e produzirá uma consequência. A escuridão tenderá
à luz, a mansidão à violência. Haverá uma virtualidade de opostos no simples movimento
do tempo – não o enlace de um com o outro, mas algo conjurado numa zona intermédia
que se deslocará no tempo e no espaço. O meio terá o seu ritmo (seu jogo transiente de
velocidades), densidade e textura; o meio confinará, constrangerá e desafiará.
Perturbações do meio irão convocar as adaptações do organismo – as chuvas ácidas, o
tremer da terra, a solidão desértica, a vertigem urbana... O organismo se adaptará ao meio
e cada célula trabalhará a seu favor; haverá um devir em que prospera, haverá um cancro
que se deverá extirpar. Porque haverá morte, já que haverá vida. Haverá quem esmoreça
e venha a morrer em cena. O organismo absorverá a célula morta, função acidental de sua
metamorfose. Ocorrerão pequenas catástrofes agindo sobre a integridade do organismo,
clarões de luz, pesados silêncios, disfuncionalidades, patologias, bolores... A duração do
organismo será o seu tempo de sobrevivência ao risco. Irá nascer, durará e acabará por
morrer. O organismo será multiforme, ora se dissipando em células autónomas, ora se
recriando reabsorvendo as partes. Nascerá por partes, multiplicando o tecido celular até à
maturidade; fenecerá por desgaste, assistindo, impotente e digno, à sua própria
decadência. Assim durará, respirará, agirá e reagirá, gritará e calará. Um momento de
glória, de absoluta lucidez e sabedoria, precederá o instante final do seu ocaso. Luz! Luz!
Luz!
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“O aspecto que pretendo salientar aqui é o de que a mente não está vazia no começo do processo do
raciocínio. Pelo contrário, encontra-se repleta de um repertório variado de imagens, originadas de acordo
com a situação que enfrenta e que entram e saem da sua consciência numa apresentação demasiado rica
para ser rápida ou completamente abarcada” (Damásio, 2011, p. 227).
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“Um sentimento é uma percepção de um certo estado do corpo, acompanhado pela percepção de
pensamentos com certos temas e pela percepção de um certo modo de pensar. Todo este conjunto
perceptivo se refere à causa que lhe deu origem” (Damásio, 2003, p. 104).
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