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http://dx.doi.org/10.15448/1984-7726.2016.4.23018

Dos sinais às imagens poéticas:


leitura de poesia e crítica do imaginário
From the signals to the poetic images: poetry reading and criticism of the imaginary

Enivalda Nunes Freitas e Souza


Fernanda Cristina de Campos
Universidade Federal de Uberlândia – Uberlândia – Minas Gerais – Brasil

Resumo: Este trabalho privilegia uma concepção de arte poética que capta os elementos naturais
como sinais de extratos mais profundos. Ao revestir as imagens de uma carga simbólica, o poeta
promove, segundo G. Bachelard, uma experiência nova com a linguagem e faz renascer um
novo psiquismo, além de sobrepor mundos diversos e cruzar experiências passadas e futuras.
A provocação ao desenvolvimento desse tema vem dos poemas “Poetas e insetos”, “Falcões”
e “As formas prisioneiras”, de Dora Ferreira da Silva (1918-2006). Nessa poeta, a conversão
de sinais em símbolos operada pelo texto poético encontra ressonância nas teorias de Jung e
Durand, que compreendem o símbolo – resultado da cultura e das pressões subjetivas – como
responsável pelo dinamismo do objeto artístico, cujo sentido é incessante. O encaminhamento
desse estudo se faz por meio de análises dos poemas, conceitos sobre imagem e símbolo e de
um percurso sobre a história do imaginário no ocidente.
Palavras-chave: Imagem; símbolo; Dora Ferreira da Silva; Bachelard; Jung

Abstract: This work focuses on a conception of poetic art which captures the natural elements
as deeper signals of extract. By covering the images with a symbolic load, the poet promotes,
according to Bachelard, a new experience with language and revives a new psychism, besides
overlapping diverse worlds and crossing past and future experiences. The provocation to the
development of this theme comes from the poems “Poetas e insetos”, “Falcões” and “As formas
prisioneiras”, by Dora Ferreira da Silva (1918-2006). In this poet, the conversion from signals
into symbols operated by the poetic text finds resonance in the theories of Jung and Durand, who
comprehend the symbol – the result from culture and subjective pressures – as responsible for
the dynamism of the artistic object, whose meaning is incessant. The development of this study
is made through the analyses of the poems, concepts of images and symbol and an overview of
the history of the imaginary in the West.
Keywords: Image; symbol; Dora Ferreira da Silva; Bachelard; Jung

Poetas e insetos com um cotidiano admirável ou recuando a fontes


longínquas do illud tempus.
“O artista caminha por atalhos e desvios, longe Na forma de lidar com a natureza, não a reproduzindo,
da estrada principal. Então, ele descobre o que falta na porém, deformando-a – já o dissera Mário de Andrade no
estrada principal, o que falta aos homens”, escreve Carl “Prefácio interessantíssimo”: todos os grandes artistas são
Gustav Jung em conferência de 1922, intitulada “Relação deformadores da natureza – o poeta insere uma visada
da psicologia analítica com a obra de arte poética” (JUNG, simbólica extensiva a todos os homens e assegura a
1991, p. 71). É assim, sem mapas e sem roteiros, seguindo perenidade da arte. Quando o poeta lança sobre sinais
os sinais da natureza e do inconsciente, palmilhando o fenômeno simbólico da imaginação, está fazendo da
caminhos inseguros e inusitados, zonas obscuras da poesia um “patrimônio do imaginário da humanidade”
imaginação, que o poeta faz ressoar por meio da palavra (DURAND, 2001, p. 25). A poeta paulista Dora Ferreira
consciente as imagens simbólicas, estabelecendo pontes da Silva (1918-2006) elabora sua poesia partindo da
Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional,
que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação
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concepção de que o mundo está coberto de sinais, recados 1999, p. 137), como está posto no último verso também
que o poeta desvela e os recobre novamente pela força da primeira estrofe. Observa-se que a imagem literária se
psíquica da linguagem. Por isso, à primeira vista, a torna eixo essencial da criação e recepção poéticas.
poesia surge como um complexo de “signos arbitrários” Poeta e leitor participam da experiência em sua
que, recebidos pelo leitor, sofrerão o peso de um novidade trazida pela imagem reinventada pelo labor
símbolo. Veja-se como isso acontece no poema “Poetas e da linguagem. Ambos acessam, dialeticamente, com-
insetos”: partimentos de mundos diferentes: “subimos a escada
platônica/descemos a escada plutônica”, para assim revelar
Poetas e insetos o esplendor da obra, “escrevendo entre dois amores/a
Gravamos nas folhas (como insetos) modo de insetos nas folhas/para gerar sem fim/outras
signos arbitrários flores/outras fomes” (SILVA, 1999, p. 137). Ao tocar as
futuros dicionários novas imagens, poeta e leitor exploram, infinitamente,
para aprendizes de símbolos. outros símbolos, dinamizando a existência de outros
O céu é transparente como significados, evocando sempre o potencial e a importância
as lentes dos óculos da imagem poética, que nem sempre foi tomada como
e a terra se adorna
um artífice de valor na solidificação de pensamentos e
como as belas mulheres.
na própria criação poética. Paradoxalmente, a sociedade
Subimos a escada platônica
moderna ocidental é denominada como a civilização
descemos a escada plutônica
escrevendo entre dois amores
da imagem. Porém, desde tempos remotos, o Ocidente,
a modo de insetos nas folhas calcado no pensamento socrático e cristão, combateu
para gerar sem fimoutras flores a utilização das imagens, renegando o valor artístico e
outras fomes (SILVA, 1999, p. 137) transcendente das palavras poéticas, como bem discorre
Gilbert Durand, ao empreender uma reflexão sobre a
O signo poético ganha simbologia quando o leitor iconoclastia persistente (cf. DURAND, 1989, p. 10).
entra com a experiência subjetiva e as forças sociais que
vão encorpando as palavras com a prenhez simbólica O percurso do imaginário
acumulada em cada época. A polissemia da linguagem
poética é o dicionário ideal para quem quer aprender a A crítica do imaginário foi sistematizada por Gilbert
olhar o mundo como um conjunto de sinais porque, uma Durand (1921-2012) a partir dos trabalhos de pensadores
vez a palavra convertida em símbolo, o sentido não se da primeira metade do século XX que estavam interessados
esgotará e a imagem nunca cessará de significar. em cultura, religião e etnografia como possibilidades de
Céu e terra, natureza e cosmos são celeiros de compreender o homem pelo viés da espiritualidade. Nesse
símbolos, basta que, deles, o poeta se aperceba. Os sentido, as reflexões ocorridas nos encontros em Ascona
encantos da terra são os rios que correm, os olhos dos (Suíça), conhecidos como escola de Eranos, exerceram
lagos das florestas, as pedras e suas lições. Do céu vem grande impacto sobre suas ideias, sobretudo o pensa-
a clareza que é a consciência da linguagem na ordenação mento de Carl Gustav Jung (1875-1961), Mircea Eliade
do processo da escrita para que o poema continue (1907-1986) e Gaston Bachelard (1884-1962).
provocando, gerando outros sentidos, bem como outras Valendo-se dos estudos de arquétipo de Carl Gustav
iluminações. Entretanto, apesar de sua ordenação, os Jung, dos conceitos de homem religioso de Mircea
signos engendrados pela natureza lançam interpretações Eliade e das reflexões sobre a imaginação dinâmica
muitas vezes ininteligíveis. Quem entende os traços do – a fenomenologia – de Gaston Bachelard, o pensador
inseto na folha vegetal? Incompreensíveis são as fissuras francês, Gilbert Durand, vê na forma simbólica da obra de
ou trilhas tecidas pelos invertebrados. Todavia, a natureza arte uma possibilidade para o homem vencer o tempo. Na
em sua plenitude de linguagem colhe nesses sinais os seus organização desses pensamentos, chegou-se à crítica do
segredos. imaginário, pautada pelo estudo da imagem, do símbolo
De igual modo, o poeta ensaia caminhos sem roteiros e do mito constituídos como eixo central da interpretação
que ganharão possibilidades de sentidos novos a cada da arte como forma simbólica.
leitura. Nascem novas palavras e formas de linguagem, Gilberto Durand afirma que durante séculos impe-
“futuros dicionários” (SILVA, 1999, p. 137), como afirma rou no mundo ocidental a guerra iconoclasta. Dividiu,
a voz poética no terceiro verso da primeira estrofe do o pesquisador, essa guerra iconoclasta em três grandes
poema. Esse é o desempenho da imaginação frente a um períodos: na era helênica, com os pressupostos aristo-
signo, que se desponta em imagem poderosa, cativante e télicos; na era medieval, com a filosofia escolástica, e na
dinâmica à espera de “aprendizes de símbolos” (SILVA, era racionalista dos séculos XVII e XVIII.

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Por outro lado, prossegue Durand (1989), em Conclui-se, então, que tal possibilidade de estudo da
defesa da valorização da imagem, trazendo um certo imagem em seu campo simbólico faz ampliar até mesmo
desequilíbrio ao iconoclasmo endêmico, surgiram vários o conceito de mímesis clássica, como afirma Luiz Costa
grupos resistentes ao pensamento progressista e racio- Lima ao discorrer sobre a representação moderna no
nalista contrários ao imaginário. Basta lembrar como a capítulo intitulado “A explosão das sombras: mímesis
linguagem barroca se impôs, revestindo-se de imagens, a entre os gregos”:
fim de arrebatar o homem dos templos nus de estatuárias
e pinturas dos protestantes. o discurso mimético é uma das formas do discurso do
Dentre estes grupos, os que merecem relevo são inconsciente, o qual só é reconhecido como artístico
quando o receptor encontra no texto uma semelhança
aqueles ligados ao movimento romântico – o que
com a própria situação histórica. A situação histórica
inclui com destaque os simbolistas. Os românticos, ao funciona, portanto, como um possibilitador do
delinearem uma teoria sobre o “sexto sentido”, criam significado que será alocado no texto. A obra, enquanto
uma terceira via de conhecimento com a finalidade de tal, é um significante a que o leitor empresta um
atingir o belo: “uma via que privilegia mais a intuição significado. Ela permanece tomada como artística
pela imagem do que a demonstração pela sintaxe” enquanto a situação histórica permite a alocação de
(DURAND, 1989, p. 32). As reflexões sobre o “juízo um significado ficcional, sendo próprio do ficcional
de gosto” de Kant; os sistemas filosóficos de Schelling, permitir descoberta, na alteridade da cena do texto,
de uma semelhança com a cena dos valores de quem
Schopenhauer e Hegel. As inovações estéticas na poesia
o recebe. Esta conclusão torna, pois, forçoso o
baudelairiana representaram verdadeiras insurreições desenvolvimento, aqui não praticado, do conceito de
e resistências à guerra iconoclasta. A imagem recupera ficção e de seu papel nas sociedades humanas como
seu status, passa a ser o ponto central para as análises agenciador de imaginário (LIMA, 2003, p. 81)
estéticas e a arte liberta-se “aos poucos dos serviços antes
prestados à religião e, nos séculos XVII e XIX, à política” O estudo das imagens possibilita o trânsito pelo trajeto
(DURAND, 1989, p. 32). antropológico do poeta e o contato com seu imaginário,
Durand não se esquece da enorme contribuição de concedendo ao leitor inserção na criação poética. Assim
Sigmund Freud (1856-1939) aos estudos da imagem. como o poeta pôde selecionar e acessar as imagens,
Foi este quem revelou que as imagens são mensagens libertando-as de seu estado denotativo e de inércia, os
“que afloram do fundo do inconsciente do psiquismo leitores, por meio do devaneio poético, também, têm a
recalcado para o consciente. Qualquer manifestação autonomia de libertar as formas prisioneiras. Na fruição,
da imagem representa uma espécie de intermediário as imagens são tocadas, são interpretadas e, como afirma
entre o inconsciente não manifesto e uma tomada de Costa Lima, o leitor acessa o inconsciente do poeta com
consciência ativa” (DURAND, 1989, p. 32). A imagem o seu próprio inconsciente. Há um imbricamento de
não apenas se torna a “Rainha das faculdades” (título arquétipos, mistura de experiências pessoais e de situações
dado por Baudelaire) como se transforma em instrumento históricas por meio das releituras das imagens poéticas.
primordial que dará acesso aos compartimentos mais
isolados e recalcados do psiquismo. Um falcão peregrino
Gilbert Durand (1989, p. 36) constata que a valorização
da imagem alcança o apogeu com os estudos do psiquiatra O poema seguinte de Dora Ferreira da Silva percorre
Carl-Gustav Jung, que reinterpreta a imagem, pluralizando uma imagem – a de um pássaro – carregando-a de força
o seu conceito. Jung liberta a imagem, desconstruindo simbólica. Os primeiros versos, “Povoa-se o mundo de
a ideia de concepção única, obsessiva e totalitária da sinais / dizeres mudos” (SILVA, 1999, p. 272), anunciam
libido, transformando as imagens em estruturas plurais a imagem de um falcão peregrino entrando pela varanda
que compõem as estruturas do imaginário. As palavras de uma casa, desencadeando um fio de associações que
poéticas revelam esquemas arquetípicos do artista, como enlaçam a contemporaneidade do sujeito poético à Idade
de todo o imaginário coletivo, e na plurissignificação Média (Dama de Cluny) e ao Egito de Hórus e Akhenáton.
serão as traduções arcaicas e espirituais do sujeito e da
cultura, segundo o psiquiatra. Falcões
A partir da valorização das imagens, o poeta ganha o Povoa-se o mundo de sinais
título de artista maldito, visionário, profeta, mago e guia. dizeres mudos. O falcão peregrino entra na vivenda
assustando a esposa de Marino. Desvia
A imagem passa a ser reconhecida em suas ambiguidades os olhos límpidos que espelharam faraós dinastias
e dobras, o que possibilitou as inúmeras maneiras de templos jardins claríssimos dias.
representar a realidade por meio das análises poéticas e Outro falcão – mais feliz – comeu nas mãos gentis
dinâmicas das palavras. da dama de Cluny. Agora aqui

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passa em bando clandestino elaborado prosaicamente, com imagens de tomada mais


à procura do Sol de outro destino. poética, como olhos, faraós, jardins, espelhos, tapeçarias,
Hórus – falcão peregrino – é um filho bastardo de Ísis que vêm como “desvio” da linguagem anterior, uma vez
e talvez de Osíris. Em coro os deuses até hoje discutem. que a ausência de vírgulas acompanha o olhar global do
No jardim espreito o falcão peregrino falcão que vê com nitidez os elementos misturados pela
em busca de terra mais quente visão abrangente.
de ombro mais fino. Exilou-te Akhenáton porque eras A finalização do poema, com os mesmos dois
só meu versos iniciais, leva a compreender o movimento da
e em teu olho redondo eu mirava em espelho.
imagem do falcão como uma dinâmica simbólica com
Mais tarde – em Cluny – afaguei teu contorno
tuas plumas tecidas então se aqueciam. O porteiro capacidade projetiva para outras formas de arrebatamento
grognon da temporalidade. A imagem tecida no poema, plena
impaciente dizia: – Alors, Il faut partir! de realidade psíquica, encerra tantos outros sinais de
Enredada num fio, a ti me prendia. transporte afetivo e faz o leitor recuar-se no tempo ou
Povoa-se o mundo de sinais projetar-se no devir.
dizeres mudos. (SILVA, 1999, p. 272) Uma imagem – a do falcão e os contextos em que
se insere – evoca o mistério da existência humana cuja
O impulso de voar e peregrinar do falcão suscita indagação é sempre acolhida pela palavra poética. Em
toda uma simbologia da alma humana que não encontra plena consciência do ato criador, a poeta reinventa a
morada na terra, vivendo em perpétuo caminhar por imagem do pássaro mítico que, tal como o homem,
tempos e lugares distantes, acordando lembranças vividas movimenta-se face à vida, em busca de seu lugar ao
e imaginadas e alimentando a nostalgia de um tempo feliz Sol: “Agora aqui / passa em bando clandestino / à
que não conheceu. Ao pássaro imponente, mas solitário, procura do Sol de outro destino” (SILVA, 1999, p. 272).
agrega-se a imagem do bastardo, Hórus, estreitando Colocada à procura de um destino, a imagem do falcão
mais ainda a aproximação simbólica entre homem – antropomorfiza-se, ganha nova forma e novo sentido.
um amaldiçoado – e pássaro peregrino. A inicial mudez Portanto, observa-se que a poeta extrai da cultura e de sua
simbólica do signo – um pássaro invadindo um recinto e percepção apenas um impulso de matéria poética, uma
assustando a moradora – se avoluma na estrofe seguinte imagem que foi trabalhada para se libertar da imagem de
quando o sujeito poético atravessa um espelho – o olho um simples falcão ou pássaro.
do falcão – e se faz contemporâneo do tempo dos faraós
e da Dama de Cluny. O arquétipo, o poeta e o símbolo
No tempo em que não se valoriza ler os sinais – a
contemporaneidade, dessacralizada, e o tempo do Faraó A função do inconsciente que envia recados –
Akhenáton, que expulsou todos os videntes do reino – o símbolos – ao consciente foi verificada por Jung, que
sujeito poético assume o papel da sibila que compreende ficou intrigado com os desenhos de seus pacientes, que
os sinais da natureza. Em outra era e espaço, um elemento engendravam figuras circulares, as mandalas, como se
profano – um porteiro impaciente – desfaz o encanto, tivessem recebido instrução para aquilo. O estudioso logo
cortando o fio da imaginação, quando o sujeito poético entendeu que os desenhos tinham uma carga simbólica,
admirava a tapeçaria, enredado por ela. isto é, o homem é capaz de produzir símbolos por meio
É observando o falcão de sua varanda que o sujeito do sonho e da arte, que é quando se manifesta em toda sua
poético divaga sobre tempos remotos que se presentificam pregnância simbólica. Não demorou para que Jung visse
pela força do símbolo. As imagens se fundem a partir do naquelas figuras símbolos de uma intuição compartilhada
“Agora aqui” da ave em bando mas que se afigura sozinha. pela humanidade, o que o levou a sistematizar a teoria
Nos “olhos límpidos que espelharam faraós dinastias / do inconsciente coletivo. Além de um inconsciente
templos jardins claríssimos dias” (SILVA, 1999, p. 272), individual, composto por informações traumáticas,
o sujeito poético reconhece-se dono do falcão já no tempo recordações, influência cultural, que ficaram adormecidos
do faraó que extinguiu os cultos religiosos e, bem mais no inconsciente, o homem também dispunha de um
tarde, em Cluny, como a dama que lhe afaga as penas, ao inconsciente coletivo, imagens que se manifestavam
contemplar a tapeçaria. indistintamente em todos os homens, ao que ele
O anúncio do mundo como revelação, no começo denominou de arquétipo: “a imagem arquetípica constitui
do poema, é estabelecido pelo movimento das imagens um correlato indispensável da ideia de inconsciente
dos versos seguintes que arrastam o leitor para tempos coletivo, indica a existência de determinadas formas
e espaços distantes. A construção imagética cruza na psique, que estão presentes em todo tempo, em todo
rapidamente com um acontecimento prosaico, também lugar” (JUNG, 2008, p. 53).

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Jung escreve que as imagens arquetípicas são, na significado em si, mas tem que comprometer a crença
verdade, possibilidades de ideias, e que o inconsciente na sua pertinência total (DURAND apud ALLEAU,
coletivo não é reprimido nem esquecido: “A rigor, o 1976, p. 26).
inconsciente coletivo nem existe, pois nada mais é do
que uma possibilidade, ou seja, aquela possibilidade que Gilbert Durand pontua sobre a confusão dos termos
nos foi legada desde os tempos primitivos na forma de relativos ao imaginário, fato que se deve, segundo ele, à
imagens mnemônicas. Ideias inatas não existem. Existem desvalorização da fantasia no ocidente. Para chegar ao
possibilidades inatas de ideias” (JUNG, 1991, p. 69). símbolo, o signo “viúvo” do significado, Durand passa
Segundo Jung, imagem primordial (arquétipo) é uma pela imagem, pelo signo e pela alegoria. Em relação ao
figura “que reaparece no decorrer da história, sempre que significante, enquanto o signo é arbitrário e adequado, e
a imaginação criativa for livremente expressa. É, portanto, a alegoria é não-arbitrária e, parcialmente adequada, o
em primeiro lugar, uma figura mitológica” (JUNG, 1991, símbolo é não arbitrário, não convencional e inadequado
p. 69). O arquétipo é sempre invariável, o que transforma por excelência. A relação do signo entre significante e
é o símbolo, quando o homem entra em contato com as significado é de equivalência, ao passo que a da alegoria
forças sociais. é de tradução (caveira e foice apontam para morte) e a
O poeta deverá encontrar o símbolo adequado e novo relação do símbolo entre significante e significado é de
para expressar o arquétipo. As imagens arquetípicas contêm epifania, epifania de um mistério. O símbolo não é uma
extratos profundos da psique, por isso portam “psicologia representação direta e seu significado nunca é dado fora
e destino humanos” – dor e prazer, por exemplo. Então, do processo simbólico. (cf. DURAND, 1988, p. 17).
o que é individual, é alçado ao “destino da humanidade”, Valendo-se de Paul Ricoeur, Durand assinala as três
e o que é da categoria do “único e efêmero” se projeta dimensões do símbolo: a cósmica, pois o símbolo liga-se
no “contínuo devir”. Assim, quando o poeta deixa fluir ao mundo que nos rodeia; a onírica, pois os símbolos
uma imagem arquetípica, a obra de arte entra como fator ligam-se a recordações que emergem nos nossos sonhos
de equilíbrio social, encontrando nos caminhos menos (Freud) e a poética, pois é produto da linguagem (cf.
palmilhados uma resposta ou provocação para seu tempo: DURAND, 1988, p. 12). Há que se lembrar, ainda, do
“É aí que está o significado social da obra de arte: ela caráter polivalente, ambíguo e até contraditório do
trabalha continuamente na educação do espírito da época, símbolo. A inesgotável epifania do símbolo é consequência
pois traz à tona aquelas formas das quais a época mais de sua “repetição instauradora”: o símbolo nunca é
necessita” (JUNG, 1991, p. 70, 71). explicado uma vez por todas. A repetição o aperfeiçoa,
Jung finaliza a conferência de 1922 acentuando o as várias leituras de um símbolo vão esclarecendo um
processo a que o artista se entrega para transformar a outro símbolo.
imagem arquetípica “até que ela possa ser compreendida A imagem é uma maneira indireta que o consciente
por seus contemporâneos” (JUNG, 1991, p. 71). Trata-se, dispõe para representar o mundo, quando “a coisa não
portanto, da criação do símbolo, assim definido: pode apresentar-se “em carne e osso” à sensibilidade,
como na recordação da nossa infância” (DURAND, 1988,
O que chamamos de símbolo é um termo, um nome ou p. 7). Na poesia, Octavio Paz salienta a intraduzibilidade
mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida da imagem: a imagem não quer dizer, ela diz; a imagem
diária, embora possua conotações especiais além do é o próprio sentido. Quando explicada, ela perde a sua
seu significado evidente e convencional. Por isso uma
riqueza. Se na prosa há várias maneiras de se dizer uma
palavra ou uma imagem é simbólica quando implica
alguma coisa além do seu significado manifesto e coisa, na poesia há só uma. Desta forma, a linguagem
imediato. Esta palavra ou esta imagem têm um aspecto perde sua “mobilidade”: “a linguagem, tocada pela
“inconsciente” mais amplo, que nunca é precisamente poesia, cessa imediatamente de ser linguagem. (...) O
definido ou de todo explicado (JUNG, s/d, p. 21). poema transcende a linguagem” (PAZ, 1982, p. 134, 135).

Cabe ao artista revigorar os símbolos, criar imagens Um jardim de formas prisioneiras


que mantenham a “pregnância simbólica”, a peso de
transformar um símbolo num “sintema”, um mero sinal, Gaston Bachelard afirma que toda imagem literária
sem nenhum distanciamento do objeto evocado. Gilbert em sua novidade torna-se um texto original da linguagem,
Durand teoriza como funciona o símbolo: uma tessitura poética nova. Portanto, o poeta e também o
leitor devem conceber a imaginação como a “faculdade
O simbolismo só “funciona” se existe distanciação,
mas sem corte, e se há plurivocidade, mas sem
de deformar as imagens fornecidas pela percepção”
arbitrariedade. É que o símbolo tem duas exigências: (BACHELARD, 2001, p. 1), porque imaginar “é sobretudo
deve medir a sua incapacidade para “por à vista” o a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de

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mudar as imagens. Se não há mudança de imagens, união poema em análise – como os demais estudados neste
inesperada das imagens, não há imaginação, não há ação artigo – é um convite à reflexão sobre o processo de
imaginante” (BACHELARD, 2001, p. 1). elaboração poética. Para cada análise de poema, toma-se,
O poema intitulado “As formas prisioneiras...”, de como ação primeira, a verificação das imagens, levando
Dora Ferreira da Silva, caminha artisticamente na direção ao entendimento e intimidade de cada uma, o que
de Bachelard, visto que sua temática discute sobre a resultará na compreensão do imaginário que envolve o
possível libertação (deformação) da matéria – toda a poeta. Assim, entender as imagens é o primeiro passo para
cosmologia e, por extensão, os conteúdos inconscientes o processo de libertação das palavras.
– pela força redentora da imagem, ou seja, pela criação Ainda nos mesmos versos, “As formas prisioneiras
poética: por belas e dementes/esperam seu resgate” (SILVA, 1999,
p. 61), observa-se que não se trata somente da libertação
As formas prisioneiras... por parte do poeta. A recepção da poesia está em jogo,
As formas prisioneiras por belas e dementes uma vez que o leitor também se transforma em ser
esperam seu resgate. Nem veriam criante ao participar, por meio de releituras, do resgate
a eclosão das imagens poéticas. O poeta foi o primeiro, em ritual
essas duras crisálidas do sono órfico, a adentrar nos mundos ínferos da imaginação, com
ocultas em pedras, telas, tramas, o objetivo de resgatar as palavras, transformando-as em
insensíveis ao sol, à chuva fria,
seres vivos. No segundo momento, há um outro resgate,
nem júbilo
nem melancolia dado por meio da leitura, tão impressionante como o
sem que as desates. primeiro, pois o leitor, ao passo que toca as imagens com
Medram a medo o olhar, voz e ouvido, ressuscita-as, trazendo-as para o seu
na ante-manhã, carentes de teu sonho, mundo, deformando-as com o seu imaginar.
princesas embalsamadas em sucessão estranha, O lirismo engendrado por Dora Ferreira da Silva
à espera (SILVA, 1999, p. 61). é um convite ao reino da criação poética, a fim de que
seja vislumbrado o ante-poema, uma vez que o mesmo
O título prediz aquilo que o poema é antes mesmo se encontra em plena maturação, sendo “essas duras
de nascer. Trata-se do ante-poema, a não-composição, crisálidas do sono” (SILVA, 1999, p. 61). Comparadas às
aquilo que as palavras são antes de sua organização borboletas em seu terceiro estado de desenvolvimento, ou
como linguagem poética, isto é, um arquétipo, uma forma seja, aquilo que ainda não é uma borboleta, mas virá a ser,
encarcerada em estado primordial. Observa-se um poema as palavras em seu estado amorfo encontram-se “ocultas
composto por treze versos livres, cujo ritmo semântico em pedras, telas, tramas,/insensíveis ao sol/à chuva fria”
é determinado por enjambements que tematizam em (SILVA, 1999, p. 61). São ainda frágeis, mas encerram o
camufladas assertivas metalinguísticas, o processo de poder da imaginação, do processo criante tanto do poeta
elaboração poética bem como a sondagem de uma quanto do leitor que as despertam – o primeiro por meio
situação psicológica. da escrita e o segundo por meio da leitura.
No primeiro verso, destacam-se os atributos dessas Outra imagem bela e forte evocada no poema é a das
formas: belas e dementes, adjetivos que, semanticamente, princesas embalsamadas, que comungam e dialogam tão
opõem-se, mas que se aproximam, por meio da dialética, bem com a imagem da crisálida. Somente uma imaginação
definindo as formas. Tratam-se de particularidades fortes dinâmica e aberta para relacionar as borboletas a princesas
que revelam a natureza complexa das imagens. No embalsamadas, visto que a crisálida é o corpo da borboleta
segundo verso, marcado pelo enjambement, percebe-se em seu desenvolvimento ocorrido sob a casca dura, como
a inércia dessas formas à espera de um possível resgaste: se a crisálida estivesse embalsamada, como as princesas,
“As formas prisioneiras por belas e dementes/esperam seu antes de nascer.
resgaste” (SILVA, 1999, p. 61). Finalmente, a casca se rompe e, então, nasce
O jogo imagético evocado ao longo poema é o a borboleta, a palavra encantada. Percebe-se que a
desejo de liberdade das palavras, que remete à discussão imagem da crisálida repousa na metáfora das princesas
essencial do fazer poético. É preciso que haja a libertação embalsamadas que estão à espera do vir a ser, pois do
das formas, para que as mesmas se organizem em nascimento há o anseio da vivência, sendo ela repleta de
linguagem na folha em branco de papel. Não é à toa que júbilo ou de melancolia. O que importa é o nascimento
ao final do título revelam-se as reticências, que induzem para as futuras experiências, sendo as mesmas boas ou
o desejo libertário. ruins: “nem júbilo/nem melancolia/sem que as desates./
Não há outro caminho para a libertação das formas Medram a medo/na ante-manhã, carentes de teu sonho”
prisioneiras que não seja através da pena do Poeta. O (SILVA, 1999, p. 61).

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Dos sinais às imagens poéticas 579

Seguindo o viés metalinguístico, o poema evoca aos conteúdos arcaicos que estão aprisionados e
a mesma ideia do “mundo povoado de sinais” à espera adormecidos no indivíduo, à espera de transformação
do gesto revelador da palavra poética. A poesia dá voz à em matéria consciente. É o entregar-se ao universo do
matéria muda e pesada, liberta em versos o movimento poeta em devaneio poético que resulta em eclosão de
aprisionado na “floresta de símbolos” que reconhece imagens em que os conteúdos aprisionados passam por
o homem, mas o homem não a reconhece, escreve uma assimilação racional, deixando de ser insensíveis
Baudelaire em “Correspondências” (cf. BAUDELAIRE, e sombrios. Resgatar as formas prisioneiras sugere,
1985, p. 115). A palavra que vê o que os outros não veem portanto, o processo de individuação que deve trazer à
é a palavra inaugural, fundante, que se encarrega de luz aspectos obscuros da personalidade e incorporá-los
sentidos múltiplos, sem jamais se esgotar, tal é a força ao campo psíquico.
da imagem. Ao ler os versos de Andanças (1970), livro Segundo Jung, o arquétipo da sombra é o que mais
que guarda esse poema, o amigo Carlos Drummond perturba o eu, e tomar consciência da sombra significa
de Andrade escreve a Dora Ferreira da Silva: “Suas reconhecer os aspectos obscuros da personalidade,
Andanças estão aqui, andantes, dançantes, libertando em atitude indispensável para qualquer processo de
música as ‘formas prisioneiras’, numa contínua criação autoconhecimento. Esse processo é muito demorado
de poesia” (SOUZA, 2013, p. 39). Assim, a poesia faz e doloroso, mas é terapêutico. Jung deixa claro que o
acontecer, confirmando o vir-a-ser da linguagem. arquétipo da sombra está relacionado às projeções, que
As coisas passam a existir depois de sua nomeação. são de natureza emocional, e com uma certa “autonomia”,
Antes, vivem num sono profundo, como que encantadas uma vez que a emoção é um evento que sucede a um
em eterna “ante-manhã”, às portas da palavra libertadora indivíduo, exigindo dele uma força de vontade que ele
que imprimirá emoção. “Crisálidas”, “princesas embal- não possui, até mesmo porque acredita que a emoção
samadas” reivindicam a ideia de transformação e de um parece provir “de outra pessoa” (JUNG, 1986, p. 7). Sem
certo suplício com que se paga a espera da libertação, a dar cidadania ao sombrio, por medo e insegurança, o
qual implica em um sonhar muito correlato ao devaneio sujeito se isola do mundo exterior e vive uma ilusão, isto
bachelardiano. Para tirar a palavra de seu uso comum, é é, sua relação com o real é ilusória.
preciso pensá-la. Bachelard dialoga com Paul Valèry e Para a construção da imagem poética que gira em
sua observação de como se passa rapidamente por sobre torno da ideia de transformação – pela linguagem das
as palavras. No cotidiano, esta é a salvação do homem, palavras ou pela conscientização de conteúdos obscuros –
porque se demora sobre as palavras, cai-se em armadilhas há uma constelação simbólica de imagens que vão tecendo
e embaraços. (cf. BACHELARD, 2001, p. 47). O sonho o campo semântico, cujos símbolos mais contundentes
do poeta é o devaneio e sua função é “chocar” as palavras são “eclosão, “crisálida” e “embalsamadas”. Nem o ato
familiares: “Então, a eclosão mais inesperada, mais rara, de escrever nem a tomada de consciência são processos
sai da palavra que dormia no seu significado – inerte como simplificados. É preciso incorporar elementos díspares,
um fóssil de significações” (BACHELARD, 2009, p. 18). como “júbilo” e “pedra” para que “as formas prisioneiras”
saltem da “ante-manhã” para a iluminação da palavra
Por debaixo do jardim: poética e da consciência.
uma forma prisioneira O inconsciente se afigura como uma “princesa
adormecida”, portanto, à espera do toque mágico da
Estar atento às imagens criadas pelo poeta é acessar palavra e do reconhecimento pelo campo psíquico. Vale
seus arquétipos mais profundos. Diante do poema, lembrar que o inconsciente é, segundo Jung, governado
deve-se tomar as imagens em estado de origem e por anima, que é responsável, inclusive, pela criação
beneficiar-se delas como se as mesmas fossem o produto artística. A ante-sala da realização artística e psíquica
psíquico da imaginação do poeta a ser estudado. É por evoca, ainda, um segundo espaço feminino, o jardim,
isso que para Bachelard a imagem poética vai além da fonte mítica da origem da vida e símbolo de prazeres,
simples metáfora. Ela, realmente, abre-se para instintos intimidade e aconchego em todas as culturas. O jardim
recalcados, para as pistas que conduzem ao trajeto terrestre é um espaço sagrado que recorda ao homem
antropológico do poeta. Desta forma, deve-se tomar a ideia do Paraíso, com a diferença que ele é criador
a imagem como um novo ser da linguagem, centro da de seu jardim, é o doador da vida que se oculta entre
criação poética, superior a qualquer outra forma estilística “pedras”, “telas”, “tramas”, “sol”, “chuva”. Por baixo da
engendrada (cf. BACHELARD, 2009, p. 3,4). camada superficial, há flores belas a desatar. A paronomia
O poema “As formas prisioneiras...” avança os instaurada no verso “medram a medo” acentua o exigente
limites metalinguísticos e se abre para a sugestão de processo da construção do espaço psíquico, sedimentado
um acontecimento psíquico que pode ser relacionado em disparidades e solidão.

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580 Freitas e Souza, E. N.; Campos, F. C.

O último verso, “à espera”, recebe um teor provocativo Percebe-se que o poema “As formas prisioneira...”
ao se destacar sozinho para encerrar o poema, unindo o é um convite a uma viagem ao imaginário do poeta.
princípio ao fim, reafirmando, portanto, que as formas Imagens novas envolvem poeta e leitor em uma
prisioneiras estão esperando o resgate. Dora Ferreira da experiência dinâmica na criação poética, intitulado como
Silva concebia a linguagem poética como reinauguradora um psiquismo novo. Adentrar neste mundo criante requer
da vida, acreditava em sua potência de nomear a realidade uma tomada de consciência, que é o ato de interpretar
fundando-a; conhecia, também, a fundo o pensamento de as palavras poéticas revivendo-as. Trata-se de um “devir
Jung, uma vez que coordenou os trabalhos de tradução do psíquico vigoroso, um devir que propaga seu vigor
psicólogo aqui no Brasil. Contudo, a primeira tradução por todo o psiquismo” (BACHELARD, 2009, p. 5) em
que fez do psicólogo das profundezas, Memórias, sonhos estado pleno, “buscando aumentar a linguagem, criar a
e reflexões, foi publicada em 1975, cinco anos depois da linguagem, valorizar a linguagem, amar a linguagem”
publicação desse poema. (BACHELARD, 2009, p. 3), acrescendo assim, ao poema,
a intimidade de quem o analisa a partir do devaneio
O poeta e a imagem poética poético do escritor.
Bachelard explica que esta palavra devaneio é
Segundo Gaston Bachelard, em seu livro A poética do bastante complexa para quem almeja tomar consciência
devaneio, a imagem exige um método especial de análise sobre algo, como é exigido no método fenomenológico.
denominado de método fenomenológico das imagens Isso porque a definição do próprio vocabulário devanear
poéticas, que parte do seguinte pressuposto: as imagens é esquivar-se do real, o que é negar, paradoxalmente,
são o germe da poesia e do mundo imaginante. Por isso, a tomada de consciência. Sendo assim, o devaneio vai
faz-se necessário conduzir o leitor a uma comunicação contra toda a essência da fenomenologia, que é revestir-
com a consciência criante do poeta a partir do contato se de conhecimento a respeito das coisas e do mundo.
com as imagens: “escolhi fenomenologia na esperança Todavia, um adjetivo, como afirma o filósofo da imagem,
de reexaminar com um olhar novo as imagens fielmente redime todo o conceito empreendido por ele. Trata-se do
amadas, tão solidamente fixadas na minha memória que adjetivo poético que recria e dinamiza o conceito original
já não sei se estou a recordar ou imaginar quando as de devaneio: “devaneio poético, um devaneio que a poesia
reencontro em meus devaneios”. (BACHELARD, 2009, coloca na boa inclinação, aquela que uma consciência em
p. 3,4). crescimento pode seguir. Esse devaneio é um devaneio
Analisar as imagens é submergir na produção que se escreve, ou que pelo menos, se promete escrever”
psíquica do poeta, compactuando-se com a imaginação (BACHELARD, 2009, p. 5).
do escritor. O labor poético é o melhor destino para O devaneio poético é a criação da palavra em po-
essas formas prisioneiras que anseiam a liberdade que tência, em ação dinâmica. Trata-se do trabalho árduo com a
se eterniza em versos, sensações, ideias e invariáveis linguagem que desperta e harmoniza as imagens por meio
alusões a mundos diversos. Cada imagem-poética da polifonia dos sentidos. Sendo assim, o devaneio poético
resgatada, despertada, “em sua novidade, abre um porvir antecede a escrita no estado de sonho acordado e culmina
de linguagem” (BACHELARD, 2009, p. 3,4) no devaneio com a tessitura poética – a libertação e ordenação das
poético. palavras na folha de papel em branco. O poeta comunica
O método fenomenológico de Gaston Bachelard o seu devaneio escrevendo-o com emoção, com gosto,
coloca o leitor frente a frente com o poema, e com um revivendo-o melhor ao transcrever “a matéria noturna es-
momento totalmente novo, uma vez que o incentiva quecida na claridade do dia” (BACHELARD, 2009, p. 10).
aprofundar-se no reino das palavras poéticas sem que Dora Ferreira da Silva, em uma entrevista a Donizete
estas venham como produto de recalque ou fruto de um Galvão, afirmou que desde pequena esteve em estado
biografismo, porque a imagem é de “uma origem absoluta” de criação poética: “A minha imaginação sempre foi
e nela está o “germe de um mundo”: “a imagem não é grande. Não só a de olhos fechados, mas sobretudo a de
fruto de recalque, ela não tem passado. É uma conquista olhos abertos” (GALVÃO, 2015). Esse sonhar de olhos
positiva da palavra” (BACHELARD, 2009, p. 3,4). É a abertos mencionado pela poeta é quando todos os sentidos
condição de novidade da imagem que transporta o homem despertam e se harmonizam no devaneio poético. O
às profundezas de sua origem. Por isso, a imagem está poeta vê-se emaranhado nessa polissemia de sentidos e é
acima de qualquer significante, cabendo a ela revigorar impulsionado pelas imagens a engendrar um mundo para
a língua, além de enriquecer o pensamento. E o método elas. Assim, quando se lê no poema de Dora o verso “na
fenomenológico consiste em “tentar restituir no leitor a ante-manhã, carentes de teu sonho” (SILVA, 1999, p. 61),
ação inovadora da linguagem poética” (BACHELARD, depara-se com as imagens conclamando o toque do autor
2009, p. 4). por meio do devaneio poético.

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Dos sinais às imagens poéticas 581

Bachelard adverte para não confundir o devaneio As imagens altamente elaboradas têm o poder de
poético com a inspiração, pois esta é destituída de alterar conceitos outrora impregnados na sociedade. “A
dinamismo e “demasiado genérica para exprimir a criação é um gesto espiritual”, assim observou Mircea
originalidade das palavras” (BACHELARD, 2009, p. 7), Eliade a respeito de Os Lusíadas, ao afirmar que é o
transformando o engenho poético em um ato pobre e sem poeta Luís de Camões quem transforma o mar em uma
autonomia. Enquanto que o devaneio poético depende imagem afetiva, elemento primordialmente intimidante,
exclusivamente da perspicácia do trabalho do poeta e ao conferir à obra um sentido espiritual que recoloca o
do leitor ao se depararem com as imagens. No devaneio homem em relação a seu meio. Eliade afere um sentido
poético há uma tomada de consciência dinâmica sobre espiritual à obra artística:
as imagens e estas promovem a construção, a partir da
originalidade e do labor poético, de outros mundos – uma Chegar a uma tal significação espiritual é chegar a um
válvula de escape para as hostilidades do mundo real: “o valor ecumênico, é transformá-lo num objeto de circu-
lação universal – ou fazer dela um instrumento de civi-
devaneio poético é um devaneio cósmico. É uma abertura
lização e de dignidade humana [...]. O Oceano com todos
para um mundo belo, para mundos belos. Dá ao eu um os seus mistérios, com os seus encantos escondidos,
não-eu (...) É esse não-eu meu que encanta o eu sonhador e com a sua beleza, tinha sido até Camões um ‘objeto’
que os poetas sabem fazer-nos partilhar” (BACHELARD, sem significação espiritual (ELIADE, 2000, p. 59)
2009, p. 13). O ser humano é obrigado, pelas exigências
da sua existência, a adaptar-se às hostilidades da vida real, Como foi escrito no início deste artigo, os grandes
a constituir-se como um ser calcado no real, mergulhado poetas são deformadores da natureza, o que assegura
no tempo profano, porém, o devaneio poético transforma- perenidade à obra artística e uma comunhão eterna entre
se em veículo de fuga para outras realidades. os tempos. A potência humanizadora da arte apontada por
Eliade é correlata à função da poesia entrevista por Jung,
Poetas, insetos, falcões que lhe atribui o papel de promotora do equilíbrio social,
por mais desconcertantes que sejam suas imagens, pois
Dora Ferreira da Silva no poema “Poetas e insetos” são elas que libertam o homem de sua hostil realidade
nivela a existência do poeta com a do inseto, sugerindo neste mundo carente de sinais.
uma condição insignificante que se atribui àquele
enquanto agenciador de um conhecimento que foge ao Referências
pensamento racional. A partir de tal comparação, conclui-
se que é no desvio e na insignificância dos sinais que ALLEAU, René. A ciência dos símbolos. Trad. Isabel Braga.
ainda medram em sua pré-existência, elaborados em uma Lisboa: Edições 70, 1976.
linguagem que jamais esgota suas simbologias, tal qual BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. Trad. Antonio de
Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
os traços dos insetos nas folhas, que o poeta confere à
arte um valor social, por converter caminhos incertos em ______. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi.
São Paulo: Martins Fontes, 1988.
possibilidades afetivas e transcendentes.
Os símbolos, mesmo enclausurados, como no poema ______. A poética do devaneio. Trad. Antonio de Pádua Danesi
São Paulo: Martins Fontes, 2009.
“As formas prisioneiras...”, esperam pelo manejo do
______. O ar e os sonhos. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São
trabalho da arte poética, o qual se revelará em eclosão
Paulo: Martins Fontes, 2001.
de imagens a partir da tessitura do poeta e do alcance
BAUDELAIRE, Charles, As flores do mal. Trad. Ivan Jun-
do leitor. Nessa explosão de sentidos, vê-se a riqueza da
queira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
imagem que se oferece como possibilidade de conhe-
DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Trad. Eliane
cimento para o que ainda não foi explicado pelo pensa- Fittipaldi Pereira. São Paulo: Cultrix, 1988.
mento racional.
______. As estruturas antropológicas do imaginário. Trad.
A imagem poética, antes considerada como a louca Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
da casa, pode ser comparada àquele falcão peregrino que
______. Campos do imaginário. Trad. Maria José Batalha Reis.
perturba a rotina de um ambiente, desviando os olhares Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
para mundos insuspeitáveis, uma vez que perverte ______. O imaginário. Ensaio acerca das ciências e da filosofia
a observação do sujeito poético. Com sua cultura e da imagem. Trad. Renée Eve Levié. Rio de Janeiro: Difel, 1993.
afetividade, o poeta atribui-lhe inesgotáveis valores ______. O universo do símbolo. In: ALLEAU, René. A ciência
simbólicos. Compreende-se, desta forma, o temor à dos símbolos. Trad. Isabel Braga. Lisboa: Edições 70, 1976.
imagem alimentado durante séculos, devido ao seu poder p. 252-267.
de desordenar a clareza das ideias e perturbar aquilo que ELIADE, Mircea. Camões e Eminescu. Trad. Anca Ferro.
é aparentemente dominado pelo homem. Bucareste: Libra, 2000.

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582 Freitas e Souza, E. N.; Campos, F. C.

GALVÃO, Donizete. Entrevista: Dora Ferreira da Silva. LIMA, Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas das
Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/dgp5.html>. sombras. Graal, São Paulo, 2003.
Acesso em: 05 fev. 2015. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de
JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Trad. Maria Lúcia Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
Pinho. 7. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [s/d.]. SILVA, Dora Ferreira da. Poesia reunida. Rio de Janeiro:
______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Trad. Topbooks, 1999.
Dora Ferreira da Dora Ferreira da Silva, Maria Luiza Appy. SOUZA, Enivalda Nunes Freitas. Flores de Persófone: a
Petrópolis: Vozes, 2008. poesia de Dora Ferreira da Silva e o sagrado. Goiânia: Cânone
______. Psicologia e poesia. In: O espírito na arte e na Editorial; Belo Horizonte: FAPEMIG, 2013.
ciência. Trad. Dora Ferreira da Silva, Ruben Siqueira Bianchi.
Petrópolis: Vozes, 1991.
Recebido: 03 de fevereiro de 2016.
______. Aion – estudos sobre o simbolismo do simesmo. Trad. Aprovado: 01 de setembro de 2016.
Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha. Petrópolis: Vozes, 1986. Contato: eni@ufu.br

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