(Peter Gay)
Não há muito exagero em dizer que esse século é marcado por dois momentos ideológicos
contraditórios, aliás, aparentemente contraditórios: a paródia e o ceticismo. Duas observações iniciais são
necessárias. A questão da ideologia é por demais complicada, mas tomo aqui a palavra em seu sentido
mais primário, aquele que se refere a um conjunto de idéias, em tomo de um tema comum, por exemplo.
A segunda observação se refere à contradição, ainda que aparente, passível de ser detectada entre esses
Toda essa introdução se justifica por força da qualidade de um escritor latino- americano que, na
minha opinião, e conforme o quadro de referências apresentado, pode ser tomado como paradigma dessa
situação, principalmente no que se refere à literatura. Trata-se de Jorge Luiz Borges. Esse nome é aqui
referido explicitamente, por conta de uma de suas personagens mais intrigantes: Pierre Menard. Essa
personagem
é responsável pela tentativa de re-escrever o Quixote, tentativa que acaba por deixar metaforizada a grande
ansiedade da literatura, a busca de uma origem e/ou de uma originalidade absoluta, uma utopia.
A referência a Pierre Menard vai me levar ao ponto inicial de minhas considerações nessa
comunicação. Trata-se de um artigo de Silviano Santiago, chamado ‘TEça, autor de Madame Bovary”
Em linhas gerais, o ensaio do crítico brasileiro coloca em discussão uma das instâncias textuais mais
escritos em Língua Portuguesa - O primo Basilio, de Eça de Queirós e Dom Casmurro, de Machado de
Assis - ambos tomados como uma reapropriação de Madame Bovary, de Flaubert. Por que a insistência
no nome dos autores? Porque, na verdade, essa referência vai explicitar um dos objetivos mais genérico
dessa comunicação que é pensar a questão da identidade que se constitui, também, na língua e em seus
usos. Essa identidade deve ser, aqui, considerada uma experiência permanentemente recomposta,
inapropriável. Pois bem, Santiago discute a possibilidade de pensar a escrita de seu romance como um
plágio1 - ainda que essa seja uma palavra muito forte - do romance do escritor francês. O sentido de plágio,
i
SCHNEIDER, Michel. Voleurs de mots. 1985, p.47-70.
enquanto o leitor de um texto é sempre um outro, é possível considerar que o texto é a lembrança de uma
tela, algo que faz lembrar de um “texto” anterior. Assim, a leitura remete ao desejo de um grau zero da
Outra idéia a ser considerada aqui é a de que a leitura é sempre uma escritura de segundo grau,
não apenas em relação à realidade cultural representada no texto, mas também da escritura ela mesma.
Assim, o plágio é apenas um caso particular de escritura e, eu diria, um exercício de leitura sempre
derivada de uma outra leitura. A proposta de discussão se assenta numa crítica contemporânea a Machado
A argúcia do crítico brasileiro relê as linhas dessa proposta de polêmica, gênero muito comum
no final do século XIX e início do nosso, para desenvolver um raciocínio brilhante acerca da questão da
questão da “autoria” de um texto literário, o que acaba por refletir-se na consideração do que costuma
Meu interesse particular é propor, a partir dessas premissas, um caminho de reflexão sobre a
relação intercultural que pode ser identificada e analisada a partir da leitura comparativa dos três romances
anteriormente citado. Vale lembrar que aleitura é, ao mesmo tempo, uma atividade individual e social. '
Ideologia e coletividade se intercambiam dando forma ao que podemos chamar de discurso cultural.
Quando se faz esse tipo de consideração no âmbito do que se conhece por lingua, é necessário afirmar
que a leitura é, em si mesma, um acontecimento em que a própria língua se transforma. E claro que não
vou concluir essa discussão aqui, nem, tão pouco, ouso desenvolver toda uma hipótese teórica. Minha
arrogância se junta à minha honestidade intelectual para apenas determinar algumas linhas que considero
plausíveis e básicas para repensar uma série de coisas - entre outras a relação interlingual que pode ser
Não interessa aqui a discussão pura e simples de diferenciações identitárias entre língua materna,
língua estrangeira e língua segunda, por exemplo. No entanto, acredito que tais especulações pode abrir
2
BARTHES, Roland Le degré zéro de 1'écriture. 1972, p. 165-167.
?
NUNES, José Horta. Formação do leitor brasileiro. 1994, p.9-12.
mais um caminho para a discussão de questões pertinentes a essas três categorias.
Uma outra motivação para a apresentação de minha proposta de especulação é o fato de que nos
três romances em referência, a cena final é idêntica. Cada um a seu modo, acaba por apresentar uma
situação de punição da mulher que se identifica com um traço atávico da cultura ocidental, daí a
Portugal - e língua francesa. O pano de fundo é o trabalho com a leitura de textos literários, no ensino
superior.
É necessário esclarecer que por “cena final” estou entendendo, aqui, a seqüência narrativa que
culmina com a morte das três protagonistas - Ema, Luisa e Capitu. Em rápidas pinceladas o que acontece
é o seguinte: no caso de Ema Bovary, o narrador nos apresenta o suicídio de Ema, por um motivo que é
recorrente ao longo do romance - a insatisfação da protagonista e sua sede de prazer e felicidade, abortados
pelos repetidos malogros amorosos, inclusive, o matrimônio; nesse caso a punição se dirige à devassidão.
No caso do romance português, a protagonista é punida com uma febre inexplicável, e mortal. Sem quê
nem porquê, da noite para o dia, Luisa amanhece febril, seus cabelos são cortados - aí está o significante
da punição - e ela morre; seu pecado foi a traição aos princípios burgueses de fidelidade conjugal. Em
Machado de Assis, a situação é análoga, mas a motivação é um tanto particularizada, porque burguesia e
devassidão não se juntam, mas induzem Capitu a cair na rede do ciúme atormentado de Bentinho: não se
À parte as diferenças no tratamento ficcional dado ao tema do adultério nos três romances,
minha comunicação - acerca de cada uma das narrativas. Adianto que não vou me deter na questão
vocabular por si mesma, ainda que, ao final, venha a propor um direcionamento das considerações para o
campo da tradução.
No caso do romance de Flaubert, temos um casal de província que é - e esse fato é fundamental
para entendermos um pouco das perspectivas de leitura de romances franceses do século XIX, devedores
convictos de uma tradição descritivo-realista fundamental para a literatura da época, o casal de
protagonistas sacramentam, com seu casamento, um contrato burguês no campo: nada da burguesia
urbana que vai caracterizar outras narrativas ficcionais da época, mas a insistência na articulação entre
provincianismo e vida no campo. Ema é uma mulher “romântica”, por vício de formação. Leitora dos
românticos mais em voga, vive influenciada pelo imaginário romântico e desenvolve uma procura
desesperada de ascensão social aliada ao prazer sensual. Nesse desejo desenfreado por mudança de status
existencial, Ema recusa sua condição provinciana, em nome do desejo burguês de bem viver. Nesse
sentido, seu casamento se reveste de uma aura de interesse, marcada pela busca de um status social
diferenciado.
Em contrapartida, Charles, o marido, reconhece, ao longo do romance, sua falência como marido
mesmo, enquanto instrumento de realização marital dos desejos de ascensão social de Ema. Ela ama sua
mulher mas não perde de vista seu perfil estreito de médico de província, o que lhe impões e à mulher,
Dadas essas condições, a punição de Ema - veiculada por um suicídio que nada tem de covarde,
mas funciona como admissão do fracasso, no sentido nietzcheano - funciona como sentença social
provinciana para o pecado da devassidão. Na esteira da luxúria, Ema perde o controle da situação e se
deixa arrastar numa enxurrada de “crimes” que não podiam ficar impunes: o moralismo provinciano da
Num segundo momento, temos o casal formado por Luisa e Jorge, igualmente provincianos, mas
de um provincianismo citadino, urbano - como requer o código da modernidade. Luisa também é leitora
dos românticos franceses, mas ao contrário de Ema, não se sente atraída por mais nada além do que já
possui: boa casa em Lisboa, empregados, um marido dedicado e todos os confortos que o modelo burguês
poderia oferecer. Seu paraíso começa a ser ameaçado com a volta de um primo, amor antigo, atropelado
pelo casamento apaixonado. O contrato burguês aqui se localiza na cidade, como já se disse. Há de se
insistir que um certo provincianismo pode ser detectado nesse quadro narrativo, mas um provincianismo
dirigido à situação de Lisboa no contexto europeu “fin-de-siècle”. Jorge é o protótipo do macho bem
O detalhe que chama a atenção no aparente equilíbrio da cena de fundo é o fato de que a célula
narrador, Emestinho, uma personagem, escreve uma peça cujo fim é vivenciado pelo casal de
protagonistas. O marido é traído e deve decidir sobre o destino da mulher adúltera. Coincidentemente, ela
morre, mas não por meio da febre que vitima Luisa. Esse espelhamento em profundidade pode remeter à
narrativa de Flaubert, recuperada pela dicção narrativa de Eça de Queirós que, por meio de insistentes
comparações da vida lisboeta com a mundanidade parisiense, acaba por reduplicar a situação de
insatisfação vivida por Ema e sua punição que, no caso de Luisa, é revestida de uma erudição atávica no
Em outras palavras, a morte de Luisa remonta à punição medieval das mulheres tomada pelo
demônio. Os jesuítas, mestres na arte de “arrancar” confissões de obsessão de homens e mulheres têm
uma participação mais que profunda na formação do caráter religioso dos portugueses. Essa marca se
deixa transparecer quando Luíza tem a cabeça raspada Esse elemento dramático pode ser associado ao
maneira diferente, em relação às duas protagonistas já citadas, Capitu tem uma personalidade forte. Moça
decidida, resolve todas as situações com um senso de objetividade e equilíbrio, que superam o próprio
Bentinho, personagem fraca e indecisa, apesar de nomear a narrativa, fato que o faz coincidir com Basilio,
o vértice do triângulo de adultério estabelecido no romance português. Bentinho, como já se disse, é fraco
e seu espírito ffeqüentemente assaltado por dúvidas e inseguranças. Talvez seja resultado da força
impositiva da mãe, substituída depois pela objetividade de Capitu. No fim de sua trajetória narrativa,
Bentinho é um homem atormentado por um ciúme doentio, um pouco fruto de sua imaginação, associada
à insegurança que lhe marca a personalidade. Suas fantasia são comuns quando se pensa no perfil do
homem burguês - na perspectiva de Peter Gay que coloca no homem um temor desmedido pelo “sexo
misterioso” da mulher, o que acaba por refletir uma insegurança em relação à possibilidade de perda de
Ainda sobre Dom casmurro, é necessário que se diga que os nomes das personagens são
significantes mais que sintomáticos das situações aqui referidas. A mãe de Bentinho se chama Glória;
Capitu, na verdade, se chama Capitolina, o que remete o significado de seu nome para o campo semântico
da superioridade que marca sua personalidade. Bentinho, ele mesmo, tem no nome um diminutivo
Todas essas considerações, a meu ver, remetem para uma reflexão acerca do exercício da leitura.
Não há como negar o valor das teorias que se debruçam sobre essa perspectiva de trabalho com o texto,
seja ele literário ou não. No caso específico da literatura, pode-se pensar nas considerações de Wolfgang
4
ISER. Wolfgang. Tc act of reading. A theory of asthetic response. 1980.
de sentido. No que se refere ao ensino de lingua, tal perspectiva me parece igualmente válida, ma vez que
o texto literário, para além de suas questões particulares, apresenta, no minimo, duas outras facetas
que a própria linguagem, utilizando determinado código lingüístico, acaba por construir de urna cultura.
O texto literário é porta-voz desses discursos difusos, subliminares, aparentemente inocentes. De outro
lado, a questão das formas lingüísticas elas mesmas que, confrontadas pela ótica da tradução - por
Além do mais, o texto literário encena um sujeito que escapa do controle gramatical de uma
língua. Em outras palavras, o eu que fala no texto, na linguagem, nunca é, sem poderá sè- lo, uma entidade
compacta, única. A história de sua nacionalidade, os traços de sua cultura, as entroces de seus códigos
sempre serão mais fortes. A leitura, el mesma, é reveladora desses subterfúgios nos quais o eu do leitor
se identifica com aquele outro, o que o faz repetir a mesma série de considerações Assim, estabelece-se
uma mise-en-abyme constante, crescente e circular, girando sempre em tomo da utopia de uma língua
Tudo isso pode ser correlacionado quando, se o quisermos, tomamos a representação agenciada
pelo discurso desenvolvido na linguagem ficcional, através, por exemplo, da descrição realizada no
romance Muitas teorias devem haver sobre as inúmeras possibilidades que o texto ficcional oferece. Nesse
sentido, o que disse sobre os três romances, no curto espaço dessa comunicação, acaba por propor uma
linha de discussão que pode, por exemplo, eleger a paródia como inversões narrativas, enquanto formas
de leitura intercultural Sihiano Santiago estaria certo, então, ao considerar Eça de Queiroz autor de
pelo fato de ter tomado a categoria de “autor” como aquele - dentre outras -que privilegia a consideração
4
CAMPOS. Haroldo de. Deus eo diabo no Fausto de Goethe. 1981. p. 179-209.
Assim, na conclusão desse conjunto de provocações, creio ter deixado clara a minha proposta de
encaminhamento não apenas de uma discussão teórica sobre o assunto - no sentido d determinação de
possíveis “modelos” pra as análises possíveis mas um encaminhamento até certo ponto prático, um
exercício demonstrativo das idéias que gostaria de ver discutidas e teorizadas aqui e em outras
oportunidades. É nesse sentido que considero pertinente declarar que a Literatura Comparada, enquanto
Universidade.