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Adel El Tasse

CONTRA LAVA JATO

NEACCRIM
Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais
Sobre o Autor:

Professor na cadeira de Direito Penal em cursos de


graduação e pós-graduação em diferentes instituições de
ensino superior. Professor na Escola da Magistratura do
Estado do Paraná. Professor do Curso LFG (São Paulo/SP)
e do Curso CERS (Recife/PE). Mestre e Doutor em Direito
Penal. Coordenador no Paraná da Associação Brasileira
dos Professores de Ciências Penais. Autor de vários livros e
artigos publicados em diversos livros, revistas e periódicos.
Adel El Tasse

CONTRA LAVA JATO


“O único ditador que eu aceito é a voz
silenciosa da minha consciência.”
Mahatma Gandi
Índice

1. A Título De Marco ........................................................... 5

2. Os Avanços Ocorridos No Direito Penal Brasileiro


Após A Década De 1980 E Seu Atual Retrocesso ........ 13
3. O Afastamento Da Dogmática-Penal Democrática E A
Corrosão Do Sentido De Proteção Do Tipo .................. 26

4. A Admissão Da Lógica Tortura Aceitável ................. 42

5. A Total Corrosão Do Devido Processo Legal E Da


Lógica Da Necessidade Probatória Para A
Condenação ..................................................................... 57
6. Ai 5 E 10 Medidas De Combate À Corrupção:
Desagradável Coincidência ............................................ 67

7. A Moral Como Critério ................................................. 80

8. A Deslegitimação Do Sistema Político-Eleitoral....... 89

9. A Retomada Do Pensamento Oligárquico. ............. 100


1. A título de marco

“A mim, a imprensa sempre me tratou bem”


Francisco Franco

Tendo tido início em 17 de março de 2014, a


conhecida “Operação Lava Jato”, a qual cumpriu mais de mil
mandados de busca e apreensão; de prisão temporária; de
prisão preventiva; e de condução coercitiva1, com resultante
de mais de cento e quarenta condenações prolatadas em
primeiro grau de jurisdição, dentro de um processo
investigativo que visaria apurar um esquema de corrupção e
lavagem de dinheiro.
Tratando, reiteradamente, da questão como
demonstrativa de corrupção sistêmica no Brasil, obteve apoio
de parte da opinião pública a partir da afirmação de que
estaria “atingindo ricos e poderosos”, estabelecendo “nova
realidade no sistema de justiça penal brasileiro” –
historicamente, canalizado para as camadas menos
favorecidas da sociedade. 2

1
Fonte: http://www.pf.gov.br/imprensa/lava-jato/numeros-da-operacao-lava-jato. Acesso em 12 de
mar. de 2018.
2
O posicionamento, no sentido de que a Lava Jato seria uma das maiores operações de combate à
corrupção sistêmica, equivalente à “Operação Mãos Limpas”, na Itália, está bem sistematizado em
(CHEMIN, Rodrigo. Mãos Limpas e Lava-Jato: a corrupção se olha no espelho. Porto Alegre: Citadel
editora, 2017).
5
Inicialmente, os apoiadores da referida “Operação
Lava Jato”, vêm, em especial com o sustentáculo, tanto
financeiro como estrutural, do Movimento Brasil Livre (MBL),
o qual surgiu exatamente no mesmo ano em que teve início
a mencionada operação, ou seja, 2014, constituindo-se em
um movimento que, dentro de seu programa oficial, defende
o liberalismo econômico; a total ausência de qualquer
controle sobre a imprensa; o fim de qualquer subsídio direto
ou indireto para regimes classificados pelo movimento liberal
como ditaduras.3
Vale destacar que a revista “The Economist” observa
ser um grupo composto por aderentes ao thatcherismo,
fundado sobre os anseios do livre comércio4, enquanto. o
jornal “El País” destaca que “apesar de sua aparência, a ação
do movimento é eminentemente contrária ao Partido dos
Trabalhadores (PT)”.5
Em 2015, o MBL obteve substancial fortalecimento
pelo somatório de forças com as bancadas evangélica,

3
A partir da organização de protestos reivindicando a investigação e punição dos envolvidos no
escândalo apurado pela “Operação Lava Jato”, e pela liberdade de imprensa (MBL, 2014) – em
resposta ao vandalismo ocorrido na sede da Editora Abril -, o Movimento Brasil Livre foi fundado,
objetivando suas ideias a partir das premissas liberais e conservadoras. Entre as suas exigências
estão uma imprensa livre e independente, sem verbas ou regulamentações governamentais, que
influenciem seus posicionamentos; liberdade econômica; um mercado livre de regulações abusivas e
impostos escorchantes; separação de poderes, instituições independentes, livres da ingerência
sufocante dos partidos totalitários, eleições livres e idôneas, um processo eleitoral transparente e livre
de coerções partidárias; e, por último, o fim dos subsídios diretos e indiretos a ditaduras: tributos
cobrados do povo brasileiro devem ser investidos no Brasil. (MACHIAVELI, Gabriel Reis Moraes.
Protestos de 2015: os imaginários no facebook. Curitiba: Appris, 2017, p. 14.)
4
«Niche no Longer». The Economist. 28 de fev. de 2015. Acesso em 19 de jun. de 2015.
5
País, Ediciones El (12 de dez. de 2014). «Não é uma banda de indie-rock, é a vanguarda anti-Dilma».
EL PAÍS
6
armamentista e ruralista do Congresso Nacional, dentro de
um projeto de construção de uma agenda centrada na
edificação do Estado Mínimo; produção de uma reforma
trabalhista e de um ajuste fiscal com corte de benefícios
sociais; além da redução da maioridade penal com
recrudescimento das respostas punitivas. 6
Ocorre que a organização desenvolvida pelo MBL
dentro de projetos de mobilização social, jamais, foi realizada
na afirmação de sua pauta programática, mas em uma
proclamação genérica de combate à corrupção, o que
produziu situação muito particular na sociedade brasileira – a
qual é própria do retrato traçado por FOUCAULT em “A
Ordem do Discurso”, em que todo pensamento crítico foi
interditado, sendo impossível e inviabilizado qualquer debate
em torno da efetiva produção de efeitos positivos para o povo
e para o seu sistema de justiça em decorrência da “Operação
Lava-Jato”, uma vez que esta passou a contar com uma
defesa apaixonada como sinônimo de luta contra a corrupção

6
Vale destacar que “o atual Congresso Nacional, eleito em 2014, é considerado um dos mais
conservadores da história republicana nacional. Se, em algum momento, em função de sua menor
vedação, ele pode ser visto por determinadas correntes de esquerda como o espaço prioritário a ser
disputado pelos setores explorados, hoje os anteriores elementos de verdade que alimentava tal
ideologia se esboroaram, trazendo ao chão o véu que rebuçava a verdadeira natureza histórica do
Parlamento (...) O argumento, hoje quase irretorquível, da existência de uma ´onda conservadora´,
no país ganhou força empírica a partir das massivas manifestações do dia 15 de março de 2015.
”(DEMIER, Felipe. O Barulho dos Inocentes: a revolta dos “homens de bem”. A onda conservadora.
Rio de Janeiro: Mauad, 2016. P. 5-7).
7
e, qualquer crítica a ela, seria imediatamente classificada
como conivência para com a corrupção.7
Nesse sentido, parece ser bastante claro que os
anseios reais de um Estado Mínimo, produção de uma
reforma trabalhista e de um ajuste fiscal com corte de
benefícios sociais, além da redução da maioridade penal com
recrudescimento das respostas punitivas encontram, em via
de regra, obstáculos maiores em governos de esquerda
democrática não punitivista, como, com erros e acertos, era
a linha geral existente no Brasil, sendo que a operação lava-
jato fornecia importante elemento retórico para a derrubada
do governo, então existente – o que efetivamente acabou por
culminar no golpe de 2016.8
Por outro lado, embora não se possa afirmar que
nenhuma das pessoas que tenham atuado na “Operação
Lava Jato” tivesse qualquer relação com o MBL ou sequer
simpatia com as suas pautas, também, é bastante claro que
a mobilização provocada, independente dos seus reais
objetivos, garantiu fortalecimento às práticas realizadas
nesta investigação criminal, tenham elas maior ou menor

7
Veja FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
8
Com efeito, “o impeachment, que derrubou o governo da presidenta Dilma Rousseff foi, em sua
essência, um golpe de Estado, com verniz de legalidade (...). O golpe contra o governo da presidenta
Dilma Rousseff foi preparado desde 2013, para a eventualidade de que ela vencesse o candidato das
oligarquias de Minas Gerais e São Paulo, Aécio Neves. E, de fato, ela ganhou com 54 milhões de
votos, uma estreita margem, o que permitiu o avanço de articulações dentro e fora do Congresso para
derrubá-la.” (BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Armações Internacionais. Enciclopédia do Golpe.
Volume 1. Bauru; canal 6, 2017, p. 18).
8
adaptação com o sistema constitucional e com a estrutura
dogmático-penal.9
Dessa forma, a investigação criminal e o sistema que
a “Lava Jato” estruturou passaram, desde 2014, a serem
retoricamente hegemônicos na sociedade brasileira,
havendo acoamento de qualquer pensamento crítico, até
porque a sustentação de combate à corrupção,
genericamente apresentada, encontrava ecos favoráveis nos
mais diferentes setores da sociedade.
Superado o golpe de 2016 e estabelecida nova
estrutura governamental no País, os reais objetivos dos
movimentos de apoio à “Operação Lava Jato” começam a se
colocar de forma bastante manifesta, tendo, por exemplo, em
tempo muito rápido, o novo governo aprovado uma Reforma
Trabalhista, encaminhado uma proposta de Reforma
Previdenciária redutora de conquistas sociais e estabelecido
um programa de ajuste fiscal centrado no aumento de
arrecadação junto aos trabalhadores assalariados e
servidores públicos, além de isenções e perdões de dívida
para os grandes empresários e donos de vastas fortunas,
acrescido de mecanismos como, por exemplo, o estímulo
para transações comerciais em dinheiro e não em cartão de
crédito, o que representa um retrocesso no padrão global,

9
Veja CHEQUER, Rogério; BUTTERFIELD, Colin. Vem pra rua. São Paulo: Matrix, 2016.

9
mas, claramente, dificultadoras na fiscalização pelas
autoridades fazendárias e, em contrapartida, facilitadoras
das práticas de sonegação fiscal.10
Com isso, muitos apoiadores da “Operação Lava
Jato” passaram a refletir se o resultante dela para o país seria
positivo ou negativo. Notadamente pela percepção destes,
somado aos fatores delineados no parágrafo anterior de que
a corrupção não sofreu qualquer redução no Brasil, enquanto
o Estado de Direito se viu fragilizado pela facilitada
habilitação da intervenção nas liberdades.
Nesse cenário, importa que o discurso crítico seja
manifestado de forma clara, pois ainda que siga submetido à
estigmatização, importa lutar pela existência intelectual de
espaços para a reflexão e o debate.
Assim, de todo conveniente, questionar se a
investigação realmente tem a significação de algo positivo
para o país, considerando desde o sistema de justiça até os
avanços da própria sociedade.
A verdade é que a reflexão crítica sobre a “Operação
Lava Jato”, independente de pontuais ações contra agentes
públicos que efetivamente praticaram a corrupção, é, dentro
de uma consideração macro sistêmica, o que conduz à
conclusão de ser absolutamente desnecessária e negativa,

10
Veja LEÃO, Roberto Franklin. A reforma da previdência do governo Temer: a ordem é privatizar e
retirar direitos. Golpe de 2016 e a reforma da previdência. Bauru: Praxis, 2017.
10
além de produtora de grau ímpar de participação no
retrocesso do Direito Penal e Processual Penal Brasileiro,
ademais é um verdadeiro massacre nos direitos e garantias
fundamentais, na pauta universal de respeito aos Direitos
Humanos, bem como das bases lógicas do modelo
democrático e no programa de desenvolvimento e
independência do país.11
Com isso, não se quer afirmar que quaisquer
participantes da operação tenham, deliberadamente, traçado
estes objetivos, mas, igualmente, não se pode afirmar que
não. Possível apenas observar que a forte habilitação que ela
e seus métodos sofreram a partir da mobilização provocada
pelo MBL para atingir objetivos próprios deste, os quais
resultaram em corrosão da estrutura democrática, do sistema

11
Bem a propósito, “a Constituição da República está sendo sistematicamente violada no âmbito da
operação "lava jato". Os tribunais, ao tolerarem as violações, fragilizam as bases constitucionais da
nossa democracia. As democracias contemporâneas não estão fundadas na força das armas, mas na
convicção de que as regras da Constituição e dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos,
orientadas à contenção do poder e à evitação do arbítrio, obrigam a todos. Como na história recente
de tentativas de golpes parlamentares na América Latina, é perceptível um padrão de conduta que
define neste momento quase-tardio não mais a qualidade das violações, mas a intensidade e sua
oportunidade. O amplo rol de garantias constitucionais (e das Convenções) é impeditivo da condução
coercitiva de pessoas que têm domicílio certo e se fazem representar nos procedimentos. Mas estas
conduções antijurídicas foram validadas por tribunais. Por isso, são repetidas e apropriadas como
espetáculos midiático-políticos. São da espécie dos espetáculos que se prestam à tentativa de
enfraquecer o governo e tomar pela via da criminalização da política a legitimidade que as urnas não
oferecem às grandes empresas de mídia e não ofereceram a setores insatisfeitos da oposição. Da
mesma maneira —e muito claramente —a Constituição não admite a prisão provisória a título de
castigo. Examino as decisões da "lava jato" em um projeto de investigação sobre standards
probatórios, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e também em razão de consultas que
me fizeram sobre a minha opinião acadêmica sobre casos concretos neste âmbito. Várias prisões
foram decretadas em flagrante violação à Constituição — e foram mantidas pelos tribunais — apoiadas
em um único argumento: o suspeito ou acusado é culpado da prática dos crimes investigados. Isso
viola clara e literalmente a presunção de inocência nos termos da Constituição.[...] Apenas estes dois
exemplos são suficientes para ilustrar a sequência de atentados à Constituição e sua progressão.”
(PRADO, Geraldo. Constituição é sistematicamente violada na operação "lava jato". Revista eletrônica
Consultor Jurídico. https://www.conjur.com.br/2016-mar-06/geraldo-prado-constituicao-
sistematicamente-violada-lava-jato. Acesso em 12 de mar. de 2018).
11
de justiça penal e no enfraquecimento do próprio Estado
brasileiro, nos seus anseios de real independência e
desenvolvimento, conforme, de maneira sistemática, será
tratado nos próximos capítulos.12

12
De forma amplamente majoritária, a doutrina especializada tem se manifestado no sentido que,
“estamos presenciando juízes abandonando a sua necessária posição de sujeito processual imparcial,
que deve ser indiferente ao resultado do processo. Estamos presenciando Procuradores da República
e Promotores de Justiça agindo como verdadeiros “advogados de acusação”. Tudo isso fica muito
claro na chamada “Lava Jato”, pautada pelo estardalhaço e exibicionismo de vários agentes que
atuam em nosso sistema de justiça criminal. O chamado “processo penal do espetáculo” criou danos
irreparáveis para a nossa sociedade. Não só prejudicou fortemente a imagem de pessoas que sequer
eram rés, como tornou vulnerável a diversas críticas juízes e procuradores da república. Cabe também
salientar que a forma espetaculosa que foi imprimida nesta operação, previamente articulada com
alguns órgãos da grande imprensa, causou imenso dano a várias empresas nacionais e à nossa
economia em geral. Note-se que não estamos afirmando que o combate à corrupção foi danoso, mas
sim que a forma usada para efetivar este combate foi a maior responsável pelos imensos prejuízos
acima apontados. Um exemplo claro disso, dentre tantos outros, foi a “Operação Carne Fraca”,
irresponsavelmente tornada pública por alguns delegados da polícia federal. Ademais, não resta
dúvida de que os danos que o processo penal do espetáculo causou à Petrobrás são absurdamente
maiores do que lhe causava a deletéria corrupção. Para comprovar o que acabamos de dizer, basta
citar o pagamento de quase dez bilhões de reais que a Petrobrás acordou com seus acionistas norte-
americanos. Nada obstante tudo isso, julgo que as sequelas maiores deixadas pela Lava Jato não são
os danos patrimoniais, mas sim a disseminação, perante a opinião pública, de que vale a pena
“flexibilizar” regras jurídicas de garantias, inclusive os chamados Direitos Fundamentais, previstos na
Constituição da República, em prol de um combate à corrupção em nosso país, mais simbólico do que
efetivo, como demonstrou o professor Jessé Souza, em sua excelente obra intitulada “A Elite do
Atraso”. Outra sequela indelével foi a total “desarrumação” do nosso já precário sistema processual
penal. A introdução, em nosso sistema de justiça criminal, do “negociado sobre o legislado”, através
de acordos de cooperação premiada em flagrante desacordo com o disposto no Código Penal e Lei
de Execução Penal, criando regras processuais absurdas, chegou ao ponto de violar o princípio “nulla
poena sine judicio”, fundante do Estado Democrático de Direito.” (JARDIM, Afranio Silva. As sequelas
da operação lava-jato. Revista eletrônica Empório do Direito. http://emporiododireito.com.br/leitura/as-
sequelas-da-operacao-lava-jato. Acesso em 25 de jan. de 2018).
12
2. Os avanços ocorridos no direito penal brasileiro após
a década de 1980 e seu atual retrocesso

“A liberdade diminui à medida que o homem


evolui e se torna civilizado”
Antonio Salazar

O Direito Penal representa um mecanismo de


contenção ao poder punitivo e do regular cumprimento desta
tarefa, depende a preservação do próprio Estado
Democrático, pois a sua fragilização representa o
crescimento do punitivismo, o qual tem por consequência
direta a redução dos direitos e garantias – em especial da
liberdade individual.13
A história recente da legislação penal brasileira tem
na reforma da parte geral do Código Penal, em 1984, um
importante marco, pois a profunda discussão que se
estabeleceu no cenário mundial, após as consequências do
regime nazista na Alemanha – no qual as penitenciárias
converteram-se, inicialmente, em instrumentos de

13
Registre-se que “a seleção criminalizante é realizada pelas agências executivas, os juízes o único
que podem fazer é deter o processo de criminalização aquelas colocam em marcha ou permitir que
ele avance, os legisladores, pelas leis penais, abrem âmbitos de seleção arbitrária, mas jamais podem
saber sobre quem esta recairá. O s juízes contém o poder punitivo. Quando o poder jurídico (dos
juízes etc.) desaparece, não desaparece o poder punitivo, pelo contrário, aí se exerce sem limites por
agências executivas, que é o que ocorre nos Estados absolutistas (GESTAPO, KGB etc.). No Estado
de polícia o poder punitivo se exerce ilimitadamente porque o que falta é justamente poder jurídico
que o contenha.” (ZAFFARONI. Eugenio Raul. Estrutura básica del Derecho Penal. Buenos Aires,
2009,pp. 30-31. Livre tradução).
13
perseguição ideológica e racial e, ao final, em máquinas de
extermínio – o qual produziu impacto significativo no intento
de desprisionalização e busca de alternativas ao sistema de
penas no país a partir da década de 1980.14
Assim, é estruturado um sistema com limites mais
marcados ao poder punitivo, sendo iniciada a introdução mais
intensa de medidas de cunho não prisional, como as penas e
medidas alternativas.
A Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984, que então
institui a nova parte geral do Código Penal Brasileiro, tem
como característica mais marcante, dentro do avanço
experimentado pelo sistema penal de todo o mundo
civilizado, a busca da redução da aplicação da condenação
à prisão, com o crescimento das medidas restritivas de
direito.15
Em certa medida, no aspecto em comento, a
Reforma Penal de 1984 antecipou a própria Constituição de
1988, a qual, no artigo 98, inciso I, determina a instituição de

14
À época do movimento reformista da década de 1980 se destacava que “desenha-se no horizonte
do terceiro milênio o quadro de transição das penas privativas de liberdade, após o vencimento de um
trecho importante no itinerário das reações criminais. As diposições de princípio que iluminaram o
movimento vitorioso da Revolução Francesa (1789) e a revisão ideológica procedida após a Segunda
Grande Guerra (1939-1945) constituíram marcos da renovação cíclica do pensamento e de ações em
defesa das liberdades públicas e dos direitos humanos fundamentais.” (DOTTI, René Ariel. Bases e
alternativas para o sistema de penas. São Paulo: RT, 1998. p. 131).
15
Sobre o contexto da reforma de 1984, “definiu-se, assim, o quadro de uma ampla reforma do sistema
penal brasileiro que seria empreendido em duas etapas: Parte Geral do Código Penal, Código de
Processo Penal e Lei de Execuções Penais; depois, a Parte Especial do Código Pena e a Lei das
Contravenções Penais. Ensejava-se antecipar a já considerada inadiável reformulação do anacrônico
e deficiente sustenta penitenciário e tão reclamada atualização dos métodos e da própria estrutura da
justiça criminal de primeira instância.”(AZEVÊDO, Jackson C. de. Reforma e ‘ contra’ reforma penal
no Brasil. OAB/SC Ed., 1999, p.65).
14
Juizados Especiais em matéria Criminal, o que, em uma
leitura sistemática, representa um incentivo à Lei Maior como
diretriz fundamental do Estado brasileiro, ao
desenvolvimento de alternativas que impeçam o
aprisionamento, como a transação e a suspensão condicional
do processo.
Essa tendência de redução do cárcere na legislação
contemporânea recebeu o aval e incentivo da Organização
das Nações Unidas (ONU) que, no VIII Congresso das
Nações Unidas, ocorrido em 14 de dezembro de 1990, lançou
a recomendação conhecida como “Regras de Tóquio”, na
qual os países firmatários, entre os quais o Brasil,
comprometem-se a buscar soluções alternativas para
substituir o uso da prisão. 16
A partir dessa contundente realidade mundial, no
sentido de humanização no sistema punitivo com o
fortalecimento das penas e medidas alternativas -
espelhadas na Lei Maior Brasileira, na sua determinação de

16
No item I das regras de Tóquio, quando são definidos os objetivos gerais, assim consta: “1.1 Estas
Regras Mínimas Padrão enunciam uma série de princípios básicos que visam promover o uso de
medidas não privativas de liberdade, assim como garantias mínimas para os indivíduos submetidos a
medidas substitutivas ao aprisionamento. 1.2 Estas Regras visam promover o envolvimento e a
participação da coletividade no processo da justiça criminal, especificamente no tratamento dos
infratores, assim como desenvolver nestes o sentido de responsabilidade para com a sociedade. 1.3
A aplicação destas Regras deve levar em consideração a situação política, econômica, social e cultural
de cada país e os fins e objetivos de seu sistema de justiça criminal. 1.4 Ao aplicar as Regras, os
Estados-Membros devem se esforçar para assegurar o equilíbrio adequado entre os direitos dos
infratores, os direitos das vítimas e a preocupação da sociedade com a segurança pública e a
prevenção do crime. 1.5 Os Estados-Membros devem desenvolver em seus sistemas jurídicos
medidas não privativas de liberdade para proporcionar outras opções e assim reduzir a utilização do
encarceramento e racionalizar as políticas de justiça criminal, levando em consideração a observância
aos direitos humanos, as exigências da justiça social e as necessidades de reabilitação dos infratores.”
15
criação dos Juizados Especiais Criminais, é que, em 1995,
há a introdução destes no sistema jurídico brasileiro e, em
1998, é editada a Lei nº 9.714 que amplia, em nível sensível,
a adoção de determinações alternativas, estabelecendo sua
geral aplicação para os crimes punidos em até quatro anos
de reclusão, sem emprego de violência ou grave ameaça à
pessoa, em uma clara demonstração da opção pela política
criminal de maior utilização de medidas diversas à prisão e
separação dos crimes, entre aqueles em que há emprego de
violência e grave ameaça à pessoa e os demais, possibilita-
se respostas penais diversas à cadeia.17
Nesse sentido, apesar de resistências pontuais e por
vezes puramente retóricas, calcadas no ódio ao indivíduo
apenado, o sistema de penas e medidas alternativas se
mostrou muito mais positivo que o aprisionamento, com
índices de reincidência infinitamente menores, uma média de

17
O Ministro Ricardo Lewandowski, em escrito de apresentação da publicação das Regras de Tóquio,
pelo Conselho nacional de Justiça, assim observa: “Inspeções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
denunciaram, porém, que o ambiente prisional, no Brasil, ainda está marcado por outra modalidade
de castigo, consistente na forma como é executado. Estruturas arquitetônicas em ruínas, celas
superlotadas, úmidas e escuras e a falta de higiene qualificam, negativamente, um sistema de
punições sem nenhum comprometimento com um prognóstico de não-reincidência. A superlotação
desses espaços adiciona, inclusive, um componente agravante a todo esse contexto. Enfim, o instituto
da prisão, no Brasil, assim como em todo o continente sul-americano, é um assunto que reivindica
uma indispensável revisitação, notadamente porque a seletividade como opera o sistema penal,
majoritariamente alcançando as populações menos favorecidas, econômica e socialmente, denota o
quanto tentamos encobrir, através de respostas penais, situações que demandam outra modalidade
de intervenção e interferência.”(LEWANDOWSKI, Ricardo. Apresentação. Regras de Tóquio: regras
mínimas das Nações Unidas para a elaboração de medidas não privativas de liberdade. Brasília: CNJ,
2016.
16
20%, enquanto o cárcere apresenta números superiores a
50% de reincidência.18
Ademais, algumas sanções alternativas, em
particular, passaram a contar com índices de reincidência
ainda mais baixos e apoio manifesto da opinião pública, como
a prestação de serviços à comunidade e a perda de bens e
valores, esta última, em especial para os delitos de natureza
econômica ou contra a Administração Pública.19
Destarte, o Brasil, sob a ótica legitimante do poder
punitivo, admitida nesta etapa no plano explicativo e retórico,
embora de forma um pouco mais lenta, produzia evolução
compatível com as demais nações do mundo, separando a
gravidade dos delitos em níveis próprios. Os mais graves
considerados hediondos ou equiparados e os demais,
divididos em delitos praticadas com ou sem o emprego de
violência ou com grave ameaça à pessoa, sendo aplicadas
as punições adequadas depois de estabelecer deste
diferencial as distintas possibilidades punitivas, regra a ter o

18
Interessante pesquisa desenvolvida pelo Grupo Candango de Criminologia, da Faculdade de Direito
da Universidade de Brasília constatou: reincidência de 24,2% entre os condenados a penas
alternativas 53,1% entre os condenados à prisão. (https://www.unbciencia.unb.br/humanidades/57-
direito/301-penas-alternativas-reduzem-reincidencia).
19
De acordo com a pesquisa realizada na Vara de Execuções Penais da Comarca de Porto Velho/RO,
as modalidades de penas alternativas mais aplicadas são: prestação de serviços à comunidade, em
torno de 80%, e prestação pecuniária, 15%.Quanto ao índice de reincidência é baixo dentre as penas
alternativas aplicadas, girando em torno de 5% de reincidência. (SILVA JUNIOR, Adonias Soares da.
Prestação de Serviços à Comunidade: uma alternativa à prisão. Âmbito Jurídico. http://ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=14998).
17
aprisionamento evitado nos delitos sem emprego de violência
ou grave ameaça à pessoa.20
Em perspectiva evolutiva, ainda sob ótica legitimante
do poder punitivo, o passo seguinte natural seria a ampliação
do rol de penas e medidas alternativas, bem como a
admissão de seu implemento em escala maior, não
considerando qualquer limitador calcado no valor numérico
da pena.
Em um primeiro momento, para se analisar o impacto
que a “Operação Lava Jato” produziu na matéria em
comento, não se deve ficar adstrito às penas que
concretamente têm fixado, o que, na sequência também será
analisado, pois claramente houve uma paralisação de
quaisquer iniciativas ou tendências de dar continuidade ao
processo legislativo de introdução de penas e medidas
alternativas no sistema brasileiro, passando o simples debate
na matéria a ser taxado de casuístico ou gerador da
impunidade.

20
O debate sobre a questão das respostas penais antes da operação lava-jato, pode ser assim
sistematizado: “O fato seguro é que o sistema prisional brasileiro, na sua atual estruturação, não mais
se sustenta, já tendo tempo demais para mostrar a necessidade de profundas alterações que
permitam estabelecer o aprisionamento de forma rigorosa para as infrações que atinjam diretamente
o ser-humano, por outro lado, esvaziando de infrações que possam adequadamente ser sancionadas
por penas e medidas de cunho alternativo (...) A pena de prisão deve ficar reduzida aos crimes com
emprego de violência ou grave ameaça contra a pessoa, admitindo as demais hipóteses,
independente da pena fixada, a utilização de medidas penais alternativas, incluindo-se outras no rol
já existente e estimulando-se a análise e discussão doutrinária quanto à viabilidade de aceitação da
reparação voluntária do dano à vítima, como resposta penal ao crime.” TASSE, Adel El. Teoria da
Pena. Curitiba. Juruá, 2003, pp. 154-156.
18
Bem, a propósito, um dos mais corrosivos efeitos que
a investigação criminal em análise produziu foi o de
estabelecer a certeza judicial que a impunidade deve ser
combatida com prisões, pensamento que gerou na sociedade
uma espécie de paranóia, no sentido prisionalizante, fazendo
as pautas de humanização do sistema punitivo serem
absolutamente estranhas ao Brasil, com o cárcere
reassumindo o papel que havia lhe dado os nazistas, meio de
atendimento ao clamor popular para gerar a sensação de
segurança coletiva, o que vai produzir o raciocínio no sentido
de que quanto mais tempo que a pessoa fique encarcerada,
mais segura estará a sociedade, independente de qualquer
discussão em torno da violência do cárcere, de seus efeitos
criminógenos, desmoralizantes, atingindo, não somente do
condenado, mas todos os seus familiares.21
Evidentemente, o resultado foi um sistema
absolutamente patológico, pois de um lado o modelo de
penas e medidas alternativas, o mesmo que melhor
funcionou até o momento no Brasil em matéria punitiva, foi

21
Sobre o movimento punitivista no Estado nazista, “as diretivas nacional-socialistas para o novo
direito penal alemão não deixavam dúvidas sobre o sentido altamente repressivo deste, embora pouco
esclareciam sobre o objetivo do poder punitivo no regime, salvo afirmações muito genéricas: depois
de afirmar que o primordial é o dever de lealdade com a comunidade popular e que a violação a este
dever acarreta a perda da honra, declara que ‘a tarefa do estado nacional-socialista é impor a devida
punição expiatória a todo desleal que por sua infidelidade haja sido separado da comunidade. A
devida punição serve de garantia e proteção da segurança da comunidade, mas serve também a
educação e correção do delinquente e dos integrantes do povo ainda perdidos.’” ZAFFARONI,
Eugenio Raúl. Doctrina Penal Nazi: la dogmática penal alemana entre 1933 y 1945. Buenos Aires:
Ediar, 2017, pp. 140-141. Livre tradução.
19
deixado de lado, e com isso, no outro lado, surgiu a
destinação às prisões glamurisadas, como meios essenciais
ao combate à impunidade e à insegurança coletiva,
habilitando-se em penas descontroladas, passando a ser
comum superarem aos 10 (dez) anos em condenações por
crimes sem emprego de violência ou grave ameaça a outrem,
em um sistema em que a Lei fixa a pena base do homicídio,
o mais grave dos delitos, em 6 (seis) anos.
Acaba por se manifestar a integral destruição do
princípio da proporcionalidade, o que compromete todos os
avanços históricos do Direito Penal, desde o iluminismo, em
torno da racionalização do sistema com base no bem jurídico
e no seu nível de ofensa, a fim de impedir que o subjetivismo
do julgador, calcado em sua moral pessoal e em sua
ideologias, possa produzir punições maiores tendo em conta
a forma de ser das pessoas ou as suas opções ou
concepções ideológicas, por exemplo.22
No caso da “Lava Jato”, a qual produz efeitos
multiplicados em julgamentos de diferentes processos pelo
país, nos quais pode ser observado, com tranquilidade, juízes
fixarem penas de 20, 30 e até 50 anos para acusações de

22
Mesmo dentro do raciocínio habilitador do poder punitivo, um dos principais objetivos do princípio
da proporcionalidade é “determinar a medida da tutela penal que seja equivalente à afronta ao bem
jurídico, de modo que o quantum da pena privativa de liberdade passe a conter, também, o significado
de colocar a incriminação numa determinada posição hierárquica dentro do ordenamento.” (GOMES,
Mariângela Gama de Magalhães, O princípio da proporcionalidade no Direito Penal. São Paulo: RT,
2003, p. 233).
20
delitos sem grave ameaça ou violência à pessoa. Entretanto,
à questão ainda é acrescida de outro viés, pois se observa
que o total ignorar dos marcos normativos orientadores da
avaliação do bem jurídico e dos seus níveis de ofensa, sem
qualquer justificativa racional para fazê-lo, representa indireta
assunção pelo Poder Judiciário da própria atividade
legislativa, simplesmente ignorando os limites legais com os
quais o julgador não concorda, para impor penas
“espetaculares”, pela sua elevação, em relação os bens
jurídicos tratados, em comparação com os demais, tal como
com a vida, tendo por base o puro subjetivismo do magistrado
e em suas impressões pessoais.23
Dentro deste quadro, não há qualquer possibilidade
de negar que o sistema jurídico penal brasileiro acabou
dotado de insegurança plena, pois o juiz passou a ser uma
espécie de legislador/julgador quanto aos marcos da
resposta punitiva, simplesmente, ignorando a avaliação
sistemática que deles deveria fazer, com base nas diretrizes
normativas.24

23
Veja: MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Quando o inconsciente do juiz se revela na sentença.
Comentários a uma sentença anunciada: o processo Lula. Bauru: Praxis, 2017.
24
Em entrevista concedida ao Jornal Nexo, em 17 de fevereiro de 2018, a Professora Maíra ZAPATER
da FGV-SP assim observa em relação às penas aplicadas no âmbito da lava-jato: “Embora legalmente
existam artifícios para se chegar a essa pena, o Ministério Público está chegando a interpretações
que permitam uma sensação de legalidade. Isso é um reflexo de uma cultura punitivista. O sistema de
Justiça tem demonstrado uma tendência de punir de uma forma excessiva, quando se pensa no que
se pretende com uma pena. Essas penas com números absurdos, em que evidentemente as pessoas
não irão sobreviver a elas, têm um caráter muito mais simbólico do que qualquer resultado prático. É
mostrar que estão punido exemplarmente.” Na mesma entrevista Carlos HADDAD, Professor da
UFMG e também Juiz Federal, fala com compreensível discrição, mas não consegue deixar de
observar o simples afastamento que se tem feito da lei, com o ignorar da regra do crime continuado:
21
Os limites da pena, deste modo, deixam de ser
orientados por uma complexa avaliação das características
efetivas do caso concreto, de uma relação com as
características próprias e naturais do delito em análise,
conjugada com o exame do sistema normativo penal em sua
integralidade, para extrair as diretrizes que ofertam em
relação ao bem jurídico, passando a ser pura opção subjetiva
do juiz, baseada em seus valores pessoais e ideológicos.
A verdade é que com isso, o poder punitivo
descontrolou-se, o que fez com que houvesse um retorno ao
modelo anterior ao iluminismo e, na medida em que a
sociedade lavajatizada se reafirma com a necessidade de
prisão como contraposição à impunidade, mais expressiva é
a pena fixada e mais se tem a sensação de que a impunidade
está sendo vencida. Dessa sorte, a opinião pública, a partir
da interiorização do discurso “Lava Jato”, insistentemente
repetido pelos grandes meios de comunicação em massa,
passa a se comprazer com os aprisionamentos, os quais
sejam elevados com tendência a sua eternização, e, assim,
é replicada nos cárceres brasileiros a lógica do Estado
Nazista.

“No Brasil, há a possibilidade de aplicar as penas no chamado concurso material. Ou seja, são
praticados vários crimes e as penas são somadas. Mas a lei prevê descontos e normalmente se aplica
a pena pelo crime mais grave e aumenta-se pela repetição. Falando no geral, o que pode explicar a
situação é que, em vez de aplicar o aumento para a repetição, aplica-se uma nova pena. Então coloca-
se que o réu praticou 30 lavagens de dinheiro.”
22
Dentro do desenvolvimento da lógica “Lava Jato”, se
o cárcere representa o fim da impunidade e segurança
coletiva, quanto mais prolongado o tempo deste, melhor. Se
este tiver que terminar algum dia, melhor seria se os que já
estão dentro do sistema, não saiam, na verdade, eis a
solução final nazista, o que, no caso brasileiro, possibilita
com facilidade o avanço do punitivismo a ponto que chegue
aos extermínios, sendo considerados normais e positivos
para o bem da coletividade.25
A título de sistematizar a reflexão, vale observar um
quadro comparativo entre o sistema penal contemporâneo
dos povos desenvolvidos e o sistema gerado, no Brasil, a
partir da “Operação Lava Jato”:

25
Não deve deixar de se considerar que “a manipulação dos mecanismos associados ao poder
punitivo, tais como os aspectos da investigação criminal e da administração da justiça, permite que,
em verdade, a legitimação do poder punitivo crescente, com a interiorização dos discursos oficiais,
garanta a mutação contínua das ações, permitindo tudo o que seja funcional aos interesses
hegemônicos. Como se gera pânico coletivo com o discurso oficial interiorizado, tudo passa a ser
legítimo para combater o mal imaginado para cada período histórico, até mesmo instituições que
serviriam de barreira à intervenção excessiva, como judiciário, passam a construir teses justificativas
da própria negativa de suas funções, pois também junto a estes conjuntos sociais houve a
interiorização discursiva. Dessa forma, toda estrutura serve a quem controla o poder efetivo, o da
formulação discursiva, no caso latino-americano, aos detentores dos grandes capitais da metrópole e
às oligarquias regionais.” (TASSE, Adel El. O que é a impunidade. Curitiba: Juruá, 2009, p. 95-96).
23
SISTEMA SISTEMA
CONTEM- LAVA
PORÂNEO JATO
Divisão dos delitos em com Sim Não
ou sem emprego de violência
ou grave ameaça à pessoa

Bem jurídico como marco Sim Não


para análise do nível de
resposta penal

Pena fixada, em análise Sim Não


sistemática, com base nas
características do fato

Preferência por penas e Sim Não


medidas alternativas à prisão

Objetivo de substituição do Sim Não


cárcere por meios
alternativos

Prisão como ultima ratio Sim Não


punitiva

Pena fixada com base em Não Sim


critérios subjetivos do
julgador

Pena maximizada para Não Sim


atender clamor da opinião
pública

24
Como já referido acima, é significativo ainda perceber
que a legislação brasileira, mesmo seguindo um caminho
muito lento, consideravelmente mais moroso que, por
exemplo, o experimentado nos países europeus ocidentais,
se orientava no sentido do sistema penal contemporâneo dos
povos desenvolvidos, o que confirma o sistema “Lava Jato”
claramente como supressor da competência legislativa de
seus legítimos exercentes.
Isso faz com que o voto, como mecanismo
legitimante das definições das políticas estatais, seja
ignorado, em prol do desejo de pessoas que, ainda que
tecnicamente bem preparadas, jamais receberam um único
voto para definir os rumos do país.
Começa, dessa forma, a se descortinar não somente
um retrocesso aos avanços ocorridos no sistema penal
brasileiro após 1980, o que, por si, já é extremamente
preocupante, mas o verdadeiro combate ao modelo
democrático de exercício do poder no Estado, gerando um
sistema penal absolutamente ilógico e casuísta, sem a
presença de regras vetoras claras quanto às hipóteses de
aprisionamento e àquelas puníveis com outras
consequências penais, ou seja, submetendo o cidadão ao
desejo subjetivo do julgador no caso concreto, ao arrepio da
estrutura legislativa existente.

25
3. O afastamento da dogmática-penal democrática e a
corrosão do sentido de proteção do tipo

“Quem se torna senhor de uma cidade


habituada a viver em liberdade e não a
destrói, espere para ser destruído por ela.”
Nicolau Maquiavel

A estrutura dogmático-penal dominante no mundo


ocidental é a que se fundamenta nas estruturas onto-
ontológicas welzenianas, que obtiveram notável prestígio
após o término da segunda guerra mundial, a partir da
inevitável constatação de que o modelo estrutural do sistema
jurídico penal, até então existente, com forte vinculação ao
neokantismo, atuou como elemento essencial para que as
matanças dos regimes nazi-fascistas fossem cometidas.26
A partir dessa percepção, tão logo a segunda grande
guerra chega em seu fim, obtém espaço e credibilidade o
pensamento que defende a estrutura de contenção do poder
punitivo pelo Direito Penal, com base em rigoroso controle
dogmático.27

26
A questão é que “contra o conceito causal de ação Welzel formulou o conceito finalista. A formulação
do conceito finalista da ação ocorreu dentro do marco da crítica a influência do naturalismo na ciência
do Direito Penal, perceptível no conceito causal de ação, assim como na crítica à filosofia neokantiana,
com sua inflexível separação do ser e do dever ser, da realidade e do valor.” CEREZO MIR, José.
Obras Completas: Derecho Penal, Parte General. Lima: Aras: 2006, p.393-394, livre tradução.
27
Ao tratar da distinção entre a Parte Geral e a Especial do Código Penal, JORGE DE FIGUEIREDO
DIAS traz importante aporte no esclarecimento das funções exercidas pela dogmática penal: “De um
ponto de vista teórico e dogmático torna-se complexíssimo estabelecer a espécie e a natureza
26
As estruturas dogmáticas, nesse período, têm sua
base nas verificações onto-ontológicas, ou seja, na
descoberta da essência das coisas e das relações, a partir do
emprego do método lógico-real, pelo qual a verificação da
realidade se impõe, não admitindo que afirmações retóricas
de cunho utilitarista possam afastá-las ou mesmo que
possam ser estruturadas em base legislativa em confronto
com a matriz dogmática.28
Vale observar que a importância central desse
modelo está na salvaguarda que fornece a sociedade,
justamente por protegê-la dos abusos punitivos, em especial
nos momentos de maior irracionalismo, impedindo a
destruição das próprias vigas mestras da sociedade livre e
democrática, pela simples exteriorização do desejo das
pessoas ou dos grupos que controlem as estruturas de poder
no Estado.

concretas das relações que, aos mais diversos propósitos, intercedem entre a PG e a PE do direito (e
do próprio Código) penal. Seria demasiado simplista reconduzi-lo simplesmente a uma qualquer
distinção ideal entre o abstrato e concreto, entre o comum e o particular ou mesmo entre a
principiologia e a concretização. Importante neste enquadramento é acentuar que, de um ponto de
vista funcional e racional, a autonomização de uma PG do direito penal serve o controlo racional da
aplicação jurídico-penal, através do esclarecimento fundamental da matéria da regulamentação
jurídica e do domínio dos critérios de valoração. De modo a evitar, até onde é possível, tanto as
contradições normativas, como uma jurisprudência sentimental e, deste modo, a propiciar a ‘
descoberta’ da justiça do caso”. (DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: parte geral. 2ª edição.
Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p.8.)
28
O utilitarismo penal transforma o acusado em objeto e o sistema punitivo em sujeito. A este
propósito, vale observar que “o humanismo penal – tal como delineado nos séculos XVII e XIX –
dificilmente pode aceitar uma prevenção em que o homem é utilizado para que outros homens tirem
um exemplo dele ‘mediatizando-o’ para que o Direito Penal concretize seus fins sociais.”(CREUS,
Carlos. Introducción a la nueva doctrina penal. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, p. 32).
27
Não se deve desconhecer que a implementação do
pensamento welzeniano sempre ocasionou certo
desconforto, justamente por cumprir com razoável eficácia a
tarefa a que se propõe, por conseguinte, debilitando as
possibilidades de quem tem poder de exercê-lo de forma
ilimitada, o que fez com que tão logo fossem esquecidas as
carnificinas ocorridas na segunda grande guerra,
ressurgissem pregações propondo o retorno ao modelo
neokantista.
Por certo, essas pregações, como aconteceu nos
autoritarismos europeus do século XX, não foram aleatórias,
mas contaram com refinada construção teórica, além de um
eixo central baseado na afirmação da necessidade de
funcionalizar o Direito Penal para garantir aumento da carga
punitiva e combate a uma proclamada impunidade, a qual
seria uma decorrência das exigências dogmáticas,
consequentes da análise onto-ontológica das categorias, por
tornarem mais difícil a condenação criminal de alguém.29
O pensamento funcionalizante dos limites de
contenção ao poder punitivo acabou manifestando
contundente capacidade de agigantamento do poder em
favor de quem controla as estruturas formais encarregadas
da punição, tanto no plano nacional, quanto como no

29
Veja ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar,
2002.
28
internacional, contribuindo de forma marcante, por exemplo,
para a produção do genocídio palestino e do massacre da
população iraquiana, com os conhecidos milhares de
estupros de mulheres locais, práticas repugnantes de tortura
e morte de milhares de pessoas.30
O modelo funcionalizante do Direito Penal, também,
foi destacado como suporte para, a partir da xenofobia, ser
desabilitados os parlamentos, sendo implementadas “Leis de
exceção”, retirando direitos e ampliando os poderes
cerceadores das liberdades individuais, como nos Estados
Unidos da “era Busch”.31
Com isso, na mesma velocidade com que foram
geradas as teorias de retorno neokantista, a experiência real
das estruturas de poder nos anos 1990 e 2000 fez com que
fossem severamente combatidas em solo Europeu, pelo
chamado pensamento neo-finalista, que encontrou, na

30
Veja CAMPAGNUCCI, Fernanda. O outro lado do muro: uma viagem à Palestina. Rio de Janeiro:
Multifoco, 2011; FINKELSTEIN, Norman G. Imagem e Realidade do Conflito Israel-Palestina. Rio de
Janeiro/São Paulo: Record, 2005; EÇA, Luiz. Palestina: a guerra sem fim. Cotia: Editora 247, s.d.;
ERICSON, Patrick. Anoitece no Iraque: projeto brainwashing. São Paulo: Geração editorial, 2012;
KRAKAUER, Jon. Onde os homens conquistam a glória: a odisseia de um soldado americano no
Iraque e no Afeganistão. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2011.
31
É sabido que “sem dúvida, a maior novidade da resposta dos estados Unidos a ameaça terrorista
foi a instrumentalização, completamente a margem do direito, de um sistema global de retenção de
pessoas, cujo número não se sabe com exatidão e possivelmente nunca se saberá. Quando
unilateralmente o presidente dos Estados Unidos qualificou a estas pessoas de ´combatentes
inimigos´, as colocou em uma situação de vazio jurídico que se pretendia completamente
impenetrável. Desde então, centenas de pessoas de dezenas de países permaneceram nesta
situação durante anos.”(ROYO, Javier Pérez. Prólogo. Los abogados de Guantánamo. Barcelona:
Sol90, 2009, p. I.
29
América Latina, a mais conhecida repercussão na obra de
ZAFFARONI.32
Por outro lado, no Brasil, as propostas de retorno ao
neokantismo tiveram seu momento de maior destaque,
quando já eram combatidas na Europa, ou seja, a partir dos
anos 2000, repercutindo em uma série de propostas
desestruturantes da dogmática penal, ganhando espaço a
continua pregação da necessidade de funcionalizar o Direito
Penal, com flexibilização de direitos e garantias, em prol de
maior alcance de punições, sendo gerada verdadeira
“psicose coletiva” em torno da expressão “impunidade”
repetida exaustivamente, sem maiores reflexões científicas
ou mesmo percepções mínimas com a realidade brasileira e
sua gigantesca população carcerária, além de uma das
forças policiais que mais mata no mundo, ou seja, executa a
pena de morte sem julgamento.33
A “Operação Lava Jato” encontrou, nesse cenário,
um terreno absolutamente fértil para apregoar a flexibilização
integral da dogmática penal e completa funcionalização do
sistema em prol de punições de pessoas selecionadas para

32
Veja: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Havia um realismo jurídico marginal. Caracas/Venezuela:
Monte Ávila Editores. 1993, 186p.
33
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado pelo Forum Brasileiro de Segurança
Pública: Em 2016 foram registrados quatro mil e duzentos (4.200) homicídios praticados por policiais
militares e civis. Entre 2009 e 2016, o número é de vinte e um mil e novecentos (21.900) homicídios.
Em 2016, 99,3% dos mortos eram homens, 76,2% negros, 65,2% tinha entre 18 e 29 anos e
adolescentes, entre 12 e 17 anos, 16,6% dos mortos.
30
servirem de modelo de afirmação retórica do fim da
impunidade.
Com isso, rapidamente se importaram fórmulas
absolutamente incompatíveis com o sistema brasileiro e com
a estrutura dogmático-penal finalista, como a “teoria da
cegueira voluntária” – fortemente agressiva à teoria da
tipicidade, na forma desenvolvida no ocidente, em especial
após a Segunda Guerra Mundial.34
A partir do exercício de verdadeira intimidação ao
pensamento contrário, por um consórcio formado entre os
responsáveis pela persecução criminal, o MBL e a grande
mídia, a Lava Jato impôs sua noção de verdade como única
e impediu que as instâncias superiores do judiciário
restabelecessem o eixo do sistema penal brasileiro,
prevalecendo a noção de que estariam justificando eventuais
pecados à dogmática penal, em prol da satisfação da ideia
de combate à impunidade e atendimento da opinião pública
simbolizada pela grande mídia, ainda que, reiteradamente,
tenha, como nas pesquisas de intenção de votos para a

34
Ao tratar da teoria da ignorância ou cegueira deliberada há que se ter claro que “a sua recepção
implica a criação de elemento estranho ao ordenamento jurídico brasileiro, de base continental, com
sério risco à segurança jurídica e à legalidade penal. Aliás, tal evidência vem ressaltada com seu
emprego, como modalidade de imputação subjetiva (no delito de lavagem de capitais, em substituição
ao dolo eventual), o que pode ensejar o agasalho inadmissível da responsabilidade penal objetiva.
Isso porque é absolutamente impositivo ter-se em conta que o ordenamento jurídico brasileiro está
assentado sobre o princípio da responsabilidade penal subjetiva, de previsão legal expressa (art. 18,
CP), sem nenhuma espécie de substitutivo, distorção ou menoscabo. Neste último caso, sua aplicação
dá lugar a uma normatização judicial indevida, e ao arrepio da Constituição (art. 5º, XXXIX, CF).”
PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: revista dos Tribunais, 2016, p. 532, nota
67.
31
Presidência da República, ficado evidente o distanciamento
da imprensa em relação a real vontade popular.
O exercício da ação intimidativa, também, produziu o
silenciamento de entidades historicamente comprometidas
com proteção dos cidadãos e o combate ao abuso do Estado
que, como em uma tentativa de também estarem inseridos e
não sofrerem os ataques endereçados pela grande mídia a
todos que ousaram discordar da “verdade única”
estabelecida, passaram de forma constrangedora e
comprometedora da sua própria história de lutas
democráticas a repetir o discurso de funcionalização do
sistema penal, com flexibilização de direitos e garantias, em
prol do combate à impunidade.
O que passou a ocorrer no Brasil foi, portanto, uma
espécie de realidade alemã imediatamente anterior ao
estabelecimento do Estado nazista, ou seja, a definição de
um discurso único aceito, com sua forte divulgação pela
grande mídia e combate implacável às posturas críticas,
gerando verdadeira contradição histórica nas instituições
tidas como bastiões da defesa dos direitos e garantias,
acrescido do silenciamento das instâncias superiores do
judiciário. 35

35
Veja DIEHL, Paula. Propaganda e persuasão na Alemanha nazista. São Paulo: Annablume, 1996.
32
Com isso, efetivamente a “Lava Jato” se tornou um
poder descontrolado, não passível de qualquer forma de
fiscalização, centrado na lógica de que haveria que ocorrer o
funcionalizar de todo o sistema para a garantia de punições
dos alvos pretendidos.
O tipo penal e toda sua estruturação como elemento
de proteção do cidadão contra o poder estatal, ideia
concebida ainda no iluminismo, não resistiu à investida
funcionalizante e interpretações extensivas passaram a ser
admitidas em matéria penal.
Assim, os elementos do tipo passaram a ser lidos
como mera referência, sem vinculação real, de forma, por
exemplo, que pouco importou se era comprovado o ato de
ofício para condenar por corrupção; se dissimulada ou
ocultada a origem de recurso para condenar por lavagem de
dinheiro; passando a ser desnecessário demonstrar a
presença de recurso ilícito para condenar por lavagem de
dinheiro, pouco importando, até mesmo, o que dizem os
núcleos dos tipos penais, pois a prova da ocorrência do agir,
conforme eles disciplinam, passou a ser dispensável para
produzir a condenação.
Mais do que isso, aos tipos penais passou a se
implementar sentido não protetivo do cidadão contra o poder
estatal, mas habilitador deste poder, pelo emprego do
método próprio do neokantismo em que eles serviriam para
33
o afastamento da dogmática penal, como por exemplo, o tipo
de lavagem de dinheiro que foi transformado em justificante
para o afastamento de conceitos dogmáticos como o do
exaurimento do delito e o do pós-fato impunível. 36
Desse conjunto, o que se tem claro é que a atividade
do jurista penal foi relegada ao plano de nulidade plena,
assim como a do legislador, pois o interprete no caso
concreto, passou a ter liberdade plena para fazer do tipo
penal o que bem desejar com ele: ampliá-lo, desconsiderá-
lo, justificar afastamento da dogmática penal finalista. Enfim,
não restou sequer a base mínima de proteção aos cidadãos,
concebida no iluminismo, a partir do sentido de proteção do
tipo.
A questão, porém, tem assumido viés ainda mais
preocupante, porque ao passo que se tem retirado a eficácia
protetiva dos cidadãos da tipicidade penal, tem-se inovado
em matéria de proclamação dogmática para se afirmarem
regras não aceitas pela estrutura onto-ontológica e

36
Como a importância da tipicidade penal em seu modal de garantia se v~e representado
constitucionalmente no princípio da legalidade penal, convém lembrar que “o princípio da legalidade
ou da reserva legal constitui uma efetiva limitação ao poder punitivo estatal. Embora, constitua hoje
um princípio fundamental do Direito Penal, seu reconhecimento constitui um longo processo, com
avanços e recuos, não passando, muitas vezes, de simples ‘fachada formal’ de determinados Estados.
Feuerbach, no início do século XIX, consagrou o princípio da reserva legal através da fórmula latina ‘
nullum crimen, nulla poena sine lege. O princípio da reserva legal é um imperativo que não admite
desvios nem exceções e representa uma conquista da consciência jurídica que obedece a exigência
de justiça, que somente os regimes totalitários o tem negado.” (BITENCOURT, Cezar Roberto.
Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 10.)

34
confrontantes com o próprio sentido axiológico do Direito
Penal.37
Por exemplo, é comum na atualidade se ouvirem
proclamações em torno de um “princípio da proteção ineficaz
do bem jurídico”, ou coisa que o valha, em uma verdadeira
desconstrução do real princípio penal de necessidade de
ofensividade ao bem jurídico para a habilitação punitiva.
Melhor explicando, o princípio dogmático em torno do
bem jurídico traz ao Estado uma barreira fundamental ao seu
poder de intervenção sobre as liberdades, pois somente
permite que o Direito Penal ceda passagem ao poder
punitivo, quando o agente houver praticado alguma ação que
agrida ou ao menos coloque em risco real o bem jurídico de
terceiro.
Em outras palavras, a exigência de ofensividade
retira a possibilidade de atuação do sistema punitivo, sobre,

37
Vale referir a observação que “toda a América está sofrendo as conseqüências de uma agressão
aos Direitos Humanos (que chamamos de injusto jus humanista), que afeta o nosso direito ao
desenvolvimento, que se encontra consagrado no art. 22 (e disposições concordantes) da Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Este injusto jus humanista tem sido reconhecido pela Organização
dos Estados Americanos (OEA), através da jurisprudência internacional da Comissão dos Direitos
Humanos, que declara ter sido violado o direito ao desenvolvimento em El Salvador e no Haiti. A
existência deste injusto jus humanista não é, pois, uma afirmação ética, mas uma afirmação jurídica,
reconhecida pela jurisprudência internacional. Este injusto jus humanista de violação de nosso direito
ao desenvolvimento não pode ser obstacularizado, uma vez que se resguarda de seus efeitos, que se
traduzem num aumento das contradições e da violência social interna que, vista em perspectiva, nos
levaria a genocídios internos e à destruição do sistema produtivo, submetendo-as a um
desenvolvimento ainda pior, como decorrência de uma violência incontrolável. Se a intervenção do
sistema penal é, efetivamente, violenta, e sua intervenção pouco apresenta de racional e resulta ainda
mais violenta, o sistema penal nada mais faria que acrescentar violência àquela que perigosamente,
já produz o injusto jus humanista a que concomitantemente somos submetidos. Por conseguinte, o
sistema penal estaria mais acentuando os efeitos gravíssimos que a agressão produz mediante o
injusto jus humanista, o que resulta um suicídio.”(ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José
Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 4.ª ed. São Paulo: RT, 2002, p. 80-81.)

35
por exemplo, o conteúdo meramente moral ou pessoal do
agente, pois há, no íntimo de tal regra, a garantia ao cidadão
de ser e pensar de forma livre, sem que seja permitida
qualquer ação estatal pelo que é, pensa, ou mesmo sente o
indivíduo; bem como não pode o Estado intervir
punitivamente pela prática de condutas que não atinjam
terceiros ou sequer tenham concreta possibilidade de atingi-
los.
Assim, há uma clara regra no sentido de que a todo
delito deve corresponder um bem jurídico ofendido, o que não
é sinônimo da afirmação corrente de que o Direito Penal
tutela bens jurídicos, na medida em que o Direito Penal não
tutela nada, pois atua como barreira ao poder punitivo e a
ofensa ao bem jurídico é indispensável para que ocorra
habilitação deste, ou seja, a ação punitiva é posterior a
ofensa ao bem jurídico e se assim o é, por lógica inexorável,
não está a protegê-lo.
Houve, sim, uma manipulação histórica em modelos
estatais que apresentassem tendência ao reestabelecimento
do autoritarismo, do conceito desenvolvido pelos pensadores
iluministas, em especial por FEURBACH 38, em torno da
temática da ofensividade, passando nos últimos anos, de
forma pouco refletiva, a se falar no Brasil em tutela de bens

38
Veja FEUERBACH, Anselm v.. Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2007.
36
jurídicos, o que, como esperado, quando manifestado o
desejo de incremento excessivo do poder, foi absolutamente
útil, pois na onda da Lava Jato passaram a se implementar
aumentos punitivos, contrários aos critérios individulizadores
da pena definidos pelo legislador, em especial na
interpretação deles em conformidade com a Constituição
Federal.
Isso foi feito a partir da afirmação retórica de que
como se tutela bens jurídicos a pena pouco expressiva, ainda
que de acordo com a lei, representaria proteção ineficaz ao
bem jurídico, em uma espécie de autismo jurídico, ignorando
que se a pena é fixada justamente o é, porque o bem jurídico
já foi ofendido e, portanto, não há nada a proteger.
Sintetizando:

Base Estruturante Método


Dogmática Penal só pode haver punição se ocorrer
ofensa ao bem jurídico.
Retórica Tendente como só pode punir se ocorrer
ao Autoritarismo ofensa ao bem jurídico é porque
tutela bens jurídicos.
Modelo Lava Jato se tutela bens jurídicos quanto mais
de imposição punir melhor para mais proteger o
punitiva abusiva bem jurídico, dando vazão a um
“princípio da proteção deficiente do
bem jurídico”.
Realidade Ignorada quando se pune, o bem jurídico já
foi ofendido, portanto, não há nada
a proteger.
37
É importante que se perceba o forte conteúdo
intervencionista que estrutura o inexistente na dogmática
penal, mas proclamado de forma constante no Brasil atual,
princípio da proteção deficiente de bens jurídicos.
Isso, porque outro fato não representa que um
subterfúgio para conseguir agravar consequências punitivas
além dos limites individualizadores. Com tal, é promovida
uma quebra ao princípio de individualização previsto na
Constituição Federal, um ataque frontal ao princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana e espécie de
atividade legislativa pelo julgador, pois, ao final, a regra de
fixação da pena nada mais é que a vontade subjetiva de
quem julga.39

39
Há uma clara instrumentalização da pessoa quando se argumenta com uma proteção deficiente ao
bem jurídico para puni-la de forma mais severa que sua responsabilidade subjetiva específica, tendo
em conta os limites punitivos estabelecidos pelo legislador. A propósito, “Günter Dürig
(1956) apud Ingo Sarlet (2007), ao tratar da dimensão da não instrumentalização, relata que a
dignidade da pessoa humana poderia ser considerada atingida sempre que a pessoa concreta (o
indivíduo) fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada como uma coisa, em outras palavras,
sempre que a pessoa venha a ser descaracterizada e desconsiderada como sujeito de direitos.Se, por
exemplo, um indivíduo pratica atos nefastos e completamente contrários aos mandamentos do
ordenamento jurídico-constitucional pátrio, como v. G. atos de terrorismo, pedofilia ou homicídios,
mesmo assim, face à dimensão da não instrumentalização, não poderia ter a proteção à sua dignidade
afastada pelo ordenamento. A concepção do homem como objeto (instrumento) atinge frontalmente a
dignidade da pessoa humana, pois o homem deve ser considerado um fim em si mesmo e não como
objeto da arbitrariedade de outrem na consecução da sua vontade. Assim, no exemplo ut supra, o
Estado não poderia, de forma alguma, punir o indivíduo sem a devida observância e respeito à sua
condição de ser humano como fim em si mesmo. Não haveria, para o Estado, fundamento jurídico-
constitucional para afastar a proteção à dignidade do indivíduo, ainda que se buscasse alcançar o fim
mais legítimo possível. Em outras palavras, não se justificaria a conduta de, p. Ex., torturar o indivíduo
para se descobrir onde está determinada bomba (no caso de um terrorista) ou para buscar o paradeiro
de uma criança (no caso de um pedófilo ou de um homicida).”(ALMEIDA, Felipe Neri Horwath.
Dignidade da pessoa humana – dimensão da não instrumentalização.
https://felipenha.jusbrasil.com.br/artigos/114760852/dignidade-da-pessoa-humana-dimensao-da-
nao-instrumentalizacao).

38
As inovações não cessam e, mais recentemente, o
Pretório Excelso proferiu controvertida decisão em relação ao
indulto, claramente invadindo competência reservada ao
Poder Executivo em matéria essencial do próprio modelo
presidencialista, não passível de controle judicial quanto ao
seu mérito, com base em proclamação de sui generis –
princípio de existência de mínimo conteúdo penal.
A verdade é que se promoveu, travestido de discurso
de combate à corrupção, dentro da onda lavajatizante, total
inversão da lógica do sistema penal, em ataque direto aos
seus fundamentos dogmáticos.
A dogmática-penal objetiva reduzir o poder punitivo,
não havendo qualquer problema que ele seja parcialmente
bloqueado, vez que reconhecida sua realidade como
fenômeno irracional, permitida está a racionalização do
sistema para limitá-lo ao máximo possível.
Por tal razão, desde o movimento iluminista, o
princípio já referido de ofensa ao bem jurídico ganhou
destaque e no desenvolvimento da sua estrutura restou certo
que assume caráter fragmentário e de ultima ratio.
Em outras palavras e de forma bastante direta, não
há na dogmática penal dos países desenvolvidos qualquer

39
garantia de mínima intervenção penal, mas, sim, que esta
intervenção seja a mínima possível.40

Destarte, o que se observa é que a pretexto de


promover justificativa para a quebra da tripartição dos
poderes e impedir o estabelecimento de regra de contenção
ao poder punitivo, o que se fez foi no plano retórico, inverter
toda a lógica estruturante do Direito Penal em sua função de
contenção ao poder punitivo.

Veja:

O Direito Penal contém o Poder Punitivo, logo,


tem dever de limitá-lo o máximo possível, por
esta razão, a punição ocorre, nos Estados
Democráticos, com caráter fragmentário e como
ultima ratio, o que faz existir um princípio de
intervenção mínima.

O STF, por existir um princípio da intervenção


mínima que limita as intervenções punitivas,
desabilitou indulto de competência do privativa
do Poder Executivo, com proclamação retórica
de comprometimento ao mínimo interventivo
penal.

40
A tarefa do Direito Penal é intervir o mínimo possível para conseguir o máximo de liberdade (...)
Nesse sentido se fala do princípio da intervenção mínima, para recordar que somente quando é
absolutamente necessário deve se recorrer ao Direito Penal. (MATEU, Juan Carlos Carbonell.
Derecho penal: concepto y princípios constitucionales. 3ª edición. Valencia: Tirant lo blanch
alternativa, 1999, p. 202-203
40
Assim, um princípio que em todo mundo
desenvolvido se volta para conter o poder punitivo, no Brasil,
foi convertido no inverso. Transformado em um princípio que
o habilita, permitindo, até mesmo, que um poder invada
competência constitucional de outro.
O exemplo acima, manifestado na Corte Máxima,
permite visualizar, com clareza, o que a “Operação Lava
Jato” foi capaz de produzir no Brasil, no campo dogmático-
penal, praticamente, deixa ela de existir e é retoricamente
manipulada conforme possa sempre garantir maiores
punições e, em consequência, maiores limitações à liberdade
dos cidadãos.
Vale refletir que a proposta real, nesta matéria,
presente na lógica “Lava Jato”, é abdicar da proteção
fornecida pela dogmática penal, a garantir, em nome do
combate à corrupção, o exercício indiscriminado do poder
punitivo, conduzindo ao implemento do modelo de Estado de
índole claramente totalitária.
O retrocesso dessa linha discursiva, quando lhe
retira a roupagem retoricamente insinuante da proclamação
de combate à corrupção, é evidente, pois não passa
desapercebido diante da corrosão dos valores humanitários
mínimos que produz.41

41
Sobre o tema veja: RAFFIN, Marcelo, La experiencia del horror, Buenos Aires: Del Puerto, 2006.

41
4. A admissão da lógica tortura aceitável

“Nós vamos te quebrar por dentro”


Delegado Fleury para Frei Tito

Não é novidade que as condições carcerárias


brasileiras são péssimas, não atendendo às exigências
mínimas internacionais em torno da garantia de tratamento
humano ao apenado.42
Os questionamentos dos organismos internacionais
em relação à pena de prisão no Brasil foram se convertendo
ao longo dos anos em uma situação constrangedoramente
constante, sendo que a Corte Constitucional, até momentos
anteriores à dominação midiática pela “Operação Lava Jato”,
gradualmente fazia as regras constitucionais derramarem
sobre a temática, estabelecendo, com total respeito à
tripartição dos poderes, forte pressão para que as

42
Cesar Barros Leal analisa o problema dos ataques ao ser humano praticados no cárcere
questionando, “o que dizer, afinal, das prisões, onde se mesclam o delinqüente ocasional e
consuetudinário, perdendo estes não apenas a sua liberdade, mas também a privacidade, a decência,
a autodeterminação e a identidade familiar e social? O que dizer das prisões em que a população é
regida por um código particular de ética, calcado na desconfiança e no temor e que não tolera os
estupradores e os delatores? O que dizer das prisões em que os presos, despersonalizados, sujeitam-
se a constrangimentos de toda ordem, inclusive sexual, e se transformam em vítimas da emasculação
simbólica representada pelo afastamento de sua família, de seu meio social? O que dizer das
delegacias policiais, cancros de um organismo onde se pratica o idioma do esquecimento e do
desleixo; onde os cubículos acolhem de 30 a 40 homens em sombria promiscuidade, alguns dos quais
se transformam em ‘presos morcegos’, assim chamados porque se amarram às grades, com lençóis,
para dormirem em pé, enquanto outros se tornam ‘presos aéreos’, porque se penduram em rede no
teto; onde se desrespeitam as leis, os regulamentos, as principiologias e se conspurca a imagem
daqueles que insculpiram o nome na História graças à sua luta empreendida pela dignificação do
cárcere?” (LEAL, Cesar Barros. Prisão: crepúsculo de uma era. Belo Horizonte : Del Rey, 1998p. 122-
123).
42
autoridades administrativas passassem a atuar no sentido de
tratar o problema carcerário com mais responsabilidade, o
colocando em uma agenda nacional importante. 43
Até mesmo a grande mídia, no Brasil, em regra
refratária a qualquer melhora nas condições dos apenados e,
usualmente, defensora de rigor extremo, passou a
experimentar sensibilização com a problemática, ante o
quadro caótico experimentado no País.
A “Lava Jato” faz o processo de preocupações com
as condições dos encarcerados serem menosprezadas pela
agenda nacional e, ademais, estimula a lógica da prisão-
tortura, ou seja, o ideal é que realmente as condições
carcerárias sejam ruins e que a pessoa aprisionada seja
massacrada física e moralmente. Pois, primeiro este se
tornaria o mecanismo de pressão o qual os acusados
passariam a confessar qualquer coisa e também a delatar o
que fosse desejado pelos responsáveis pela persecução
criminal.44

43
É exemplo importantes deste movimento jurisprudencial a admissão da indenização ao aprisionado
em razão de submissão à situação degradante e a superlotação na prisão (RE 580252, com
repercussão geral reconhecida).
44
Sobre a cultura da tortura no Brasil é importante ter em conta que “o próprio Estado brasileiro, em
relatório encaminhado ao Comitê Contra a Tortura da ONU, reconheceu as dificuldades na
erradicação da prática da tortura no Brasil, em face da corrupção policial e o abuso de autoridade, que
gravitam nos organismos policiais. Reconheceu que a tortura é, comumente, utilizada na fase de
investigação policial, como meio de se descobrir a verdade, notadamente na apuração dos crimes
contra o patrimônio. Ressaltou, também, que os suspeitos de ‘origem humilde e com passagens
anteriores pela polícia sofrem, por vezes, maus-tratos por parte da polícia, durante seu interrogatórios’
e que as informações ‘sobre possíveis suspeitos envolvidos em crimes são obtidas por policiais por
meio de espancamento, constrangimento e ameaça. Pode ser acrescida ao diagnóstico elaborado
pelo Governo Federal a total falta de preparo técnico da polícia judiciária brasileira, que dispõe de uma
estrutura mínima para o desencadeamento da persecução penal, sendo que a contribuição da polícia
43
Igualmente, a não garantia de aplicação das regras
elementares do processo penal, como a excepcionalidade do
cárcere processual, para os acusados não colaboradores
criou a certeza de que a opção no âmbito processual
começou a estreitar-se, ou ele confessa e delata o que quer
que os responsáveis pela persecução desejem, ou
permanece indefinidamente em cárcere processual, com a
certeza de todos os sofrimentos que será acometido contra
ele – o qual foi tantas vezes denunciados como existentes no
sistema prisional brasileiro.
Nesse sentido, a lógica oficial passou a ser que este
sistema seria bom, pois separaria pessoas entre
colaboradores privilegiados pelo juiz da causa, dos não
colaboradores submetidos à tortura aceita – até também
desejarem ser colaboradores.
Um dos principais problemas apresentados pela
tortura sob o ponto de vista da lógica da prova é que a

científica, para o deslinde da materialidade e autoria delitiva, é ínfima, encontrando-se sedimentada,


na maioria das vezes, mais no heroísmo e dedicação de médicos legistas e peritos criminais do que
em aparatos tecnológicos, já que poucos são os investimentos estatais em tal área. A própria técnica
de investigação encontra-se obsoleta, mesmo porque a polícia não dispõe de recursos para o seu
aperfeiçoamento, até porque lhe faltam, muitas vezes, equipamentos básicos para o trabalho, como
combustível para as viaturas. Assim, a herança do autoritarismo fortemente impregnada na polícia, a
cobrança social, em relação ao acentuado índice de criminalidade, fomentada, diuturnamente, pela
imprensa, aliada à inércia governamental, quanto à necessidade de se realizar uma reestruturação
acentuada na polícia, com destaque para a polícia judiciária, inclusive com investimentos na aquisição
de aparatos modernos para investigação policial, faz com que a tortura continue a ser aplicada
impunemente nas unidades policiais. Também as raras punições penais aplicadas aos torturadores
constituem fortíssimo estímulo, para a perpetuação de tão nefando instrumento, que,
indubitavelmente, atinge somente a camada pobre da população brasileira. A situação não é menos
caótica em relação às pessoas que se encontram presas nas unidades penitenciárias, muitas das
quais, além de terem sido torturadas na fase de persecução penal, sofrem novos tormentos na
execução penal, como medida de disciplina.” (COIMBRA, Mário, Tratamento do injusto penal da
tortura. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 158-161).
44
manifestação do cidadão torturado tende a se distanciar da
verdade, pois o desejo de obter favores para livrar-se do que
ocasiona sofrimentos conduz a um total desmonte dos freios
morais da pessoa, o qual se propõe então a mentir, caluniar,
acusar terceiros, até alguns inocentes. Enfim, o que for
necessário para acabar com a tortura.45
Partindo-se da reflexão acima, é evidente que ao
mesmo tempo em que desaparece qualquer possibilidade de
credibilidade mínima às palavras das pessoas acusadas,
passa o sistema penal brasileiro a perigosamente “namorar”
com a tortura.
Quando se cria, no cárcere processual indefinido,
sem reais e claros fundamentos processuais, um mecanismo
de coação sobre o acusado, para que confesse e delate
outras pessoas, por maiores que sejam as tentativas de
purificação moral deste expediente, há, em verdade, pura e
simplesmente, o Estado que não conhece limites éticos e, no
afã de atacar o criminoso, se torna mais perverso que este.
Ao longo da história humana, poucos atos se
mostraram mais corrosivos para o homem do que o
desenvolvimento nas sociedades da aceitação da tortura,
pois, ao longo do tempo ela alimenta o sentimento de
irrelevância do outro, possibilitando que a ausência de

45
Veja GUIMARÃES, Renato. Travessia: da tortura e dos meios de resistir a ela. Rio de Janeiro:
Revan, 1999; BARROS, Marcelo. Tortura e polícia no Brasil. Curitiba: Apris, 2015.
45
solidariedade e a apreciação da dor alheia sejam a tônica
fundamental para o processo de punição.46
Sob um ponto de vista das transformações sociais
ampliativas da não solidariedade e do culto à dor do outro, é
interessante lembrar o antigo costume de muitas mães no
Brasil. Elas ensinavam os filhos antes de dormir a rezar por
pessoas com fome, frio, abandonadas e pelos presos, algo
que parece absolutamente estranho, independente de
qualquer conotação religiosa, não pretendida neste texto, em
um país em que parte da população vai às ruas com seus
filhos menores para protestar contra o reconhecimento de

46
Da prefeitura!... Assim cá estou. O trajeto execrável está feito. A praça está aí, e embaixo da janela,
o horrível povo que late, e me espera e ri. Por mais que me enrijecesse, me crispasse, o coração
falhou. Quando vi acima daquelas cabeças, aqueles dois braços vermelhos, com o triângulo preto na
ponta, erguidos entre duas lanternas no cais, o coração falhou. Pedi para fazer uma última declaração.
Deixaram-me aqui, e foram buscar algum procurador real. Estou esperando, é sempre alguma coisa
ganha. Eu explico: Estavam tocando três horas, vieram avisar-me que já estava na hora. Tremi, como
se tivesse estado a pensar em outras coisas nessas seis horas, seis semanas, seis meses. O efeito
foi algo inesperado. Fizeram-me atravessar os corredores e descer as escadas. Empurraram-me entre
duas portas do primeiro andar, sala escura, estreita, em arco, mal iluminada por um dia de chuva e de
neblina. No meio, havia uma cadeira. Disseram para eu sentar, sentei. Havia, perto da porta e ao longo
das paredes, umas pessoas em pé, além do padre e dos gendarmes, havia mais três homens. O
primeiro, o mais alto, o mais velho, era gordo e tinha face vermelha. Vestia um redingote e um chapéu
de três pontas deformado. Era ele. Era o carrasco, o criado da guilhotina. Os dois outros eram criados
dele.Mal tinha sentado, os dois outros aproximaram-se de mim, portrás, feito gatos; e de repente senti
o frio do aço no meu cabelo, e as tesouras rangeram no meu ouvido. Meu cabelo, cortado ao acaso,
caía por mechas nos meus ombros, e o homem com o chapéu de três pontos espanava-os de leve
com sua grossa mão. Em volta, estavam falando baixinho. Ouvia-se muito barulho fora, como um
frêmito que ondulava no ar. Pensei primeiro que fosse o rio; mas nas gargalhadas reconheci a
multidão. Um jovem perto da janela, escrevendo com um lápis num bloco de papel, perguntou a um
dos guardas como se chamava o que estavam fazendo .— O preparo do condenado, respondeu o
outro. Entendi que estaria amanhã no jornal. De repente um dos criados tirou meu paletó, o outro
pegou minhas mãos que estavam para baixo, colocou-as nas minhas costas e senti os nós de uma
corda se enrolarem lentamente em volta dos meus pulsos unidos. Ao mesmo tempo, o outro desatava
minha gravata. Minha camisa de cambraia, único farrapo que sobrasse do eu de outrora, fez com que,
de alguma maneira, ele hesitasse um pouco; depois começou a cortar a gola. Aquela precaução
horrível, à sensação do aço no meu pescoço, meus cotovelos estremeceram e deixei escapar um
rugido abafado. A mão do executor tremeu. — Senhor, disse-me, perdão ! Machuquei-o ? Esses
carrascos são homens muito doces. A multidão estava urrando mais alto lá fora. O homem gordo de
rosto borbulhento ofereceu-me um lenço embebido em vinagre para cheirar. — Obrigado, disse-lhe
com a voz mais forte que pude, é inútil, estou bem.

46
abusos nas prisões processuais e exigir que sempre mais
pessoas sejam presas e as que já estão nunca mais voltem
ao meio livre.47
Mas a lógica da tortura aceitável tem poder de
corrosão ainda maior, pois como as pessoas rapidamente
tendem a se acostumar com ela, uma importante barreira terá
sido retirada, a de que ninguém pode ser transformado em
objeto e passa a ser aceita a objetivização humana. Com
isso, há a crescente agressão e violência contra pessoas
criminalmente processadas.48
Não por outras razões, as ações de extermínio
policial contam cada vez com mais adeptos no país, pois,
lamentavelmente, o próprio Poder Judiciário, essencial como
garante do regime democrático e do respeito à condição
humana, tem transmitido a mensagem de que a tortura e as

— Então um deles agachou-se e amarrou os meus pés com uma corda fina e frouxa, que só me
deixava dar uns passinhos curtos. Esta corda foi atada com a das minhas mãos. E o homem gordo
jogou o paletó nos meus ombros e amarrou as mangas juntas debaixo do meu queixo. O que tinha
que fazer já tinha sido feito. Então o padre aproximou-se com o crucifixo. — Vamos meu filho, disse-
me. Os criados pegaram-me pelas axilas. Levantei-me, andei. Minhas pernas estavam bambas e
dobravam-se como se tivesse dois joelhos em cada perna. Naquele momento a porta externa abriu-
se de par em par. Um clamor furioso e o ar frio e a luz branca irromperam até mim na sombra. Do
fundo da sala sombria, vi de repente tudo ao mesmo tempo, através da chuva, as mil cabeças uivantes
do povo amontoadas desordenadamente na rampa da grande escada do Palácio; à direita, no mesmo
nível da soleira, uma fileira de cavalos de gendarmes, dos quais só conseguia ver, pela porta baixa,
as patas dianteiras e o peitoral; em frente, um destacamento desordenado de soldados; à esquerda,
a parte de trás de uma charrete na qual estava apoiada uma escada íngreme. Quadro hediondo, bem
emoldurado numa porta de prisão. Era para este momento temido que eu tinha reservado minha
coragem. Dei três passos e apareci na soleira. — Aí está! Aí está! gritou a multidão. Está saindo!
Finalmente! E os que estavam mais perto de mim batiam palmas. Um rei, por mais amado que fosse,
não seria tão festejado. Era uma charrete comum, com um cavalo macérrimo, e um carroceiro de bata
azul com desenhos vermelhos, como as dos horteleiros das proximidades de Bicêtre.
O homem gordo de chapéu de três pontas subiu primeiro.— Bom dia, senhor Samson! gritavam umas
crianças penduradas nas grades. — Um criado entrou atrás dele. — Bravo , Terça-Feira! gritavam
novamente as crianças. Os dois sentaram no assento da frente. Era a minha vez. Subi com uma
atitude bastante firme. — Ele está bem! Disse uma mulher ao lado dos gendarmes. Este elogio

47
violações aos direitos humanos podem ser aceitas e a elas
podem ser atribuídas um caráter positivo, quando tiverem a
finalidade de aumentar a carga punitiva contra pessoas
suspeitas de praticar algum crime.49
É curioso pensar, nos tempos de “Lava Jato”, que
todo o sistema processual brasileiro é, em verdade,
estruturado, tendo o encarceramento processual como regra,
sendo que deve ser exceção extrema, somente utilizado
quando houver clara demonstração de uma necessidade
cautelar processual e de que todas as demais modalidades
previstas na lei não podem garantir razoavelmente a cautela
pretendida.50

atroz deu-me coragem. O padre veio colocar-se junto de mim. Tinham-me sentado no assento de trás,
de costas para o cavalo. Senti um arrepio por esta última atenção. Eles põem humanidade na coisa.
Quis olhar em minha volta. Na frente, gendarmes, atrás, gendarmes; e gente, gente, gente; um mar
de cabeças na praça. Um piquete de gendarmes a cavalo estavam me esperando no portão gradeado
do Palácio. O oficial deu a ordem. A charrete e sua comitiva puseram-se em movimento, como
empurrados para frente por um urro do populacho. Passamos a grade. No momento em que a charrete
dobrou em direção ao Pnt-au-Chang, a praça estorou em barulhos, da calçada aos telhados, e as
pontes e os cais responderamm, dando a impressão de um terremoto. Foi aí que o piquete que estava
esperando juntou-se à escolta.— Tirem o chapéu! Tirem o chapéu! gritavam mil bocas juntas. Como
para o rei.— Então eu também ri horrivelmente e disse ao padre:— Para eles os chapéus, para mim
a cabeça. Andávamos a passo. O Quai aux Fleurs era um perfume só; é dia de feira. As vendedoras
deixaram suas flores para ver-me. Em frente, um pouco antes da torre quadrada que fica na esquina
no Palácio, tem botequins cujas sobrelojas estavam cheias de espectadores felizes com seus ótimos
lugares. Mulheres sobretudo. A féria vai ser boa para os donos. Alugavam-se mesas, cadeiras,
palanques, charretes. Tudo estava vergando sob o peso dos espectadores. Uns vendedores de
sangue humano gritavam a plenos pulmões: — Quem quer lugar? Fui tomado por uma raiva contra
aquele povo. Tive vontade de gritar para eles: — Quem quer o meu? Enquanto isso, a charrete
continuava. A cada passo que dava, a multidão desmantelava-se atrás dela, e eu a via, com meu olhar
perdido, reconstituir-se mais longe em outros pontos da minha passagem. Entretanto na Pont-au-
Change, dei uma olhada por acaso para trás, à minha direita. Meu olhar fixou-se no outro cais, acima
das casas, numa torre preta, isolada, coberta de esculturas, no topo da qual via dois monstros de
pedra sentados de perfil. Não sei porque perguntei ao padre o que era aquela torre. — Saint-Jacques-
la Boucherie, respondeu o carrasco. Ignoro como isso era possível; na neblina e apesar da chuva fina
e branca que riscava o ar como uma rede de teia de aranha, nada me escapou do que estava
acontecendo em minha volta. Cada um desses detalhes trazia-me uma tortura. Faltam palavras para
tanta emoção. Lá pelo meio da Pont-au-Change, tão larga e tão cheia de gente que tínhamos
dificuldade para avançar, fui violentamente tomado pelo horror. Temi desfalecer, última vaidade!

48
A verdade é que, dificilmente, sob a ótica de garantia
do processo, muito raramente a prisão domiciliar não
consegue cumprir os objetivos de acautelamento processual,
tendo o mérito de não gerar sofrimentos excessivos à pessoa
investigada, além de não transferir custos e
responsabilidades para o Estado.51

Então atordoei-me sozinho para cego e surdo para tudo, exceto para o padre, cujas palavras mal
ouvia, entrecortadas por rumores Peguei o crucifixo e beijei-o. — Tendes piedade de mim, disse, ó
meu Deus! E tentei afundar-me naquele pensamento.
Mas cada solavanco da charrete dura sacudia-me. E, de repente, senti um frio intenso. A chuva tinha
penetrado minhas roupas e estava molhando meu couro cabeludo através do cabelo cortado e curto.
— Está tremendo de frio, meu filho? Perguntou-me o padre. — Estou, respondi. Infelizmente, não só
de frio. Na saída da ponte, umas mulheres sentiram pena de mim, por ser tão jovem. Pegamos o cais
fatal. Estava começando a não ver, não ouvir mais. Todas aquelas vozes, todas aquelas cabeças nas
janelas, nas portas, nas grades das lojas, nos postes das lanternas, aqueles espectadores ávidos e
cruéis; aquela multidão onde todos me conhecem e onde não conheço ninguém; aquela estrada
pavimentada e cercada por cabeças humanas... Estava ébrio, estupido, insensato. É coisa
insuportável o peso de tantos olhares em cima de você. Estava vacilando no banco, não prestando
mais atenção nem ao padre, nem ao crucifixo. No tumulto que me envolvia, não distinguia mais os
gritos de compaixão dos gritos de alegria, os risos de lamúria, as vozes do barulho; tudo era um rumor
que ressoava na minha cabeça como um eco de cobre. Meus olhos liam mecanicamente os letreiros
das lojas. Uma vez, senti a estranha curiosidade de virar a cabeça e olhar em direção de que estava
andando. Era uma última bravata da inteligência. Mas o corpo não quis; minha nuca ficou paralisada
e, antecipadamente, como morta. Só vislumbrei de lado, à minha esquerda, além do rio, a torre de
Notre-Dame, que, vista de lá, esconde outra. É aquela onde está a bandeira. Havia muita gente e que
devia estar vendo bem. E a charrete ia, ia, e as lojas passavam, e os letreiros sucediam-se escritos,
pintados, dourados, e o populacho ria e pateando na lama, e eu deixava-me levar, como os que
dormem se deixam levar pelos sonhos. De repente, a série de lojas que ocupavam meus olhos
interrompeu-se na esquina de uma praça; a voz da multidão ficou mais ampla, mais esganiçada, mais
alegre ainda; a charrete parou subitamente e quase caí de frente nas tábuas. O padre ajudou-me. —
Coragem!, murmurou. Então trouxeram uma escada na parte de trás da charrete; deu-me o braço,
desci, dei um passo e virei-me para dar outro, não consegui. Entre as duas lanternas dos cais, eu vira
uma coisa sinistra. Oh! Era a realidade! Parei, como cambaleante já pelo golpe.— Tenho uma última
declaração a fazer!, gritei com voz fraca. Trouxeram-me aqui em cima. Pedi que me deixassem
escrever minhas últimas vontades. Desataram as minhas mãos, mas a corda está aqui, prontinha, e
o resto está em baixo. Um juiz, um comissário, um magistrado, não sei de que espécie, acaba de
chegar. Pedi-lhe o indulto juntando as duas mãos e arrastando-me de joelhos. Respondeu-me, com
um sorriso fatal, se era tudo o que eu tinha para dizer-lhe.— O indulto! O indulto!, repeti, — ou, por
caridade, mais cinco minutos! Quem sabe? Talvez ainda venha! É tão horrível, na minha idade, morrer
assim! Não é incomum ver indultos que chegam no último momento. E quem vai ser agraciado, senhor,
senão eu? Este execrável carrasco! Aproximou-se do juiz para dizer-lhe que a execução devia ser
feita a tal hora, que estava se aproximando, que ele era responsável, que aliás estava chovendo e
que aquilo corre o risco de enferrujar. Eh, por caridade! Um minuto pra esperar meu indulto! Ou eu
resisto! Eu mordo! O juiz e o carrasco saíram. Estou sozinho – Sozinho com dois gendarmes. Oh! O
horrível povo com seus gritos de hiena! Quem sabe se não vou escapar dele? Se não serei salvo? Se
meu indulto? ... É impossível que não seja agraciado! Ah! Miseráveis! Parece que já estão subindo a
escada ... QUATRO HORAS.” (HUGO, Victor. HUGO, Victor. O último dia de um condenado à morte.
São Paulo: Polo, 1997, p. 90-95)

49
Quando se cogita de crimes sem violência ou grave
ameaça e que não são caracterizados como hediondos ou
equiparados, por certo as reflexões anteriores conduzem à
certeza plena de que o aprisionamento durante o processo
em regra não encontra fundamentos, sendo eventuais
referências a modus operandi ou comoção social, puramente
retóricos e desprovidos de qualquer sustentáculo real, mas
foram convertidos em lugar comum para a manutenção das
pessoas encarceradas, a despeito da eficácia presente no

47
Veja FIGUEIREDO, Alexandre. Brasil temeroso: a aventura do golpe e a desventura do país. s.e.,
2106.
48
Há uma clara contradição nacional com a evolução do humanismo e a questão do combate a tortura,
pois, “no período da Idade Média, a crueldade e a extensão das penas corporais aumentam,
inventando-se novos métodos para fazer sofrer o condenado. Na Alemanha, até o século XIII, as
mutilações e os açoites são comuns. Igualmente na França, até os séculos XV e XVI são impostas
análogas penalidades, além de marca de ferro quente, ainda aplicada no século XVIII. Na Espanha,
crudelíssimas penas foram prodigamente usadas até o século XVI quando, sob Carlos I e Felipe II,
passaram em muitos casos, especialmente no tocante às mutilações, a ser substituídas pelas galés.
Mesmo assim até o século XIX, o ferro quente e açoites foram aplicados. Defendidas como um dos
melhores meios de intimidação e adequado castigo para os culpados de crimes brutais, reveladores
de ausência de sentimentos humanitários pois, sendo sua execução rápida e dolorosa, elimina os
inconvenientes da pena privativa de liberdade, principalmente a separação do condenado do seu meio
familiar e a interrupção do seu trabalho, funcionando, com sentido altamente preventivo, em relação
a ele e à comunidade. Preconizadas também como meio educativo, principalmente com relação aos
menores, e como providência enérgica capaz de refrear certas tendências criminosas, tem sido
invocado em seu abono o exemplo da Inglaterra onde, até a primeira metade do século XIX
empregava-se o castigo corporal, restrito aos condenados masculinos maiores de 16 anos, em razão
do ‘Criminal Law Consolidation Act’ de 1861. Com a promulgação do ‘Garroters Act’ ficaram sujeitos
a essa pena os autores de roubo e tentativa de estrangulamento, apregoando-se os seus excelentes
resultados, embora tal afirmação sempre tenha sido fortemente contestada. Em 1913, a Câmara dos
Comuns adotou a fustigação dos proxenetas. Mas em seguida a escala da aplicação da pena corporal
foi sendo sensivelmente reduzida, até sua abolição.” (GOULART, Henny, Penologia I . São Paulo:
Brasileira de Direito. 1975 p. 43-44).
49
Veja PEIXINHO, Manoel Messias. Desmilitarização e Direitos Fundamentais. Debates sobre Direitos
Humanos Fundamentais. Volume I. Rio de Janeiro: Gramma, 20017. P. 277-287.
50
Veja TASSE, Adel El; SANTOS, Cassia Camila Cirino. Cautelares no processo penal. Curitiba:
Juruá, 2011.
51
CLAUS ROXIN, ao analisar o desenvolvimento que deverá ser seguido pelo Direito Penal no atual
século, trata da prisão domiciliar com entusiasmo: “pode-se imaginar a prisão domiciliar como a nova
pena, atenuada frente a privação da liberdade, cujo controle não será nenhum problema graças aos
modernos sistemas eletrônicos de controle. Esta sanção tem a vantagem de não custar nada, de não
trazer consigo nenhum perigo de contaminação criminal e de dar forma mais humana à privação da
liberdade, de qualquer forma, é sentida como grave.”(ROXIN, Claus, Dogmática penal y política
criminal. Lima/Peru: Moreno, 1998, p.453-454. Livre tradução.)
50
aprisionamento domiciliar, afinal é somente com
encarceramento que há o aval para tortura-se.
A nula preocupação com a formação estruturante do
sistema penal é de impacto desconfortante, pois tudo passa
a buscar o sofrimento de alguns, dentro das bases aceitas,
ainda que a preço da destruição de todos os valores positivos
da sociedade e geração de perda da solidariedade e de
qualquer preocupação com o outro.
A aparente disputa entre o que se convencionou
chamar de punitivismo de direita e punitivismo de esquerda,
nos diferentes Tribunais do País, evidencia esta perda de
parâmetros humanos e sociais mínimos pela simples ação de
imposição de sofrimento ao outro.52
A história recente dos desafios enfrentados pelo
Judiciário brasileiro para reafirmar valores democráticos à
sociedade, por vezes contrapondo-se à pressão midiática,
demonstra, de forma contundente, que muitos são os
magistrados que defendem a postura ilustrada e democrática
em torno do exercício dos mecanismos punitivos e não
desejam compactuar com medidas limitadoras de direitos,

52
Veja KARAM, Maria Lucia. A esquerda punitiva. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade,
ano 1, n. 1, 1999, p.79-92; FREIXO, Adriano de (org.) Manifestações no Brasil: as ruas em disputa.
Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2016.
51
garantias e mesmo confrontante com a condição humana dos
acusados e sentenciados.53
Ocorre que o estabelecimento de uma verdadeira
batalha campal entre esquerda e direita no campo do
punitivismo, tem gerado constrangimentos e tentativa de
silenciamento das vozes que entendem a importância de que
realmente seja edificado um sistema penal democrático na
sociedade brasileira.
A necessidade da estruturação democrática vai muito
além do desejo de julgadores mais identificados com o
pensamento punitivista, quer eles sejam de direita ou de
esquerda e que eventualmente tenham atuado com uma
lógica de ação/reação, de um lado utilizando o sistema penal
para estigmatizar o posicionamento ideológico contrário e, de
outro, reacionando, também com o sistema penal, para punir
em movimento de vingança.
E, em meio a isso, há ainda os punitivistas avulsos
que prendem pelo pensamento que assim resgatariam
valores de ordem e moralidade na sociedade, ou porque
acreditam que possuem espécie de mandato divino para
fazê-lo, possuindo capacidade messiânica de separar o bem

53
Nesse sentido, merece todo destaque posturas como a dos Ministros Celso de Melo, Marco Aurélio
de Melo e Ricardo Lewandowski, todos do Supremo Tribunal Federal que, mesmo submetidos a
tentativas de constrangimento, e possuidores de eventuais posicionamentos divergentes entre eles,
tem mantido postura francamente defensora do predomínio constitucional e democrático, em
situações, por exemplo, como da indevida determinação de desrespeito ao princípio da presunção de
inocência e cumprimento antecipado da pena de prisão.
52
do mal, ou, uma terceira opção, porque gostam de exercer o
poder punitivo, sentindo-se superiores aos que contra quem
ele é exercido.
Em resumo há punitivismo de direita, o qual se soma
ao punitivismo de esquerda, os quais se somam ao
punitivismo avulso para produzir uma das maiores ondas
prisionalizantes que a sociedade brasileira pós-colonial já
experimentou.54
E pouco importa a quantidade de apoio que ostentam
os punitivistas, pois, uma das estratégias fundamentais da
“Lava Jato” foi se aliar a grande mídia, então, esta passou a
repercutir um clamor insano pelo maior índice de
aprisionamentos, em especial cautelares, como essenciais
para a “moralização” da sociedade.
A questão é que nenhum dos atores do sistema de
justiça penal desconhece que a prisão processual deveria ser
medida excepcionalíssima, não desconhecendo, também, os
problemas do cárcere no Brasil, inclusive sua tão propagada
superlotação, de sorte que ao trabalharem permanentemente
pela edificação de um sistema que só conhece uma

54
Já há algum tempo a onda punitivista tem preocupado o que se agrava de forma sensível com a
lava-jato e a verdade é que “a responsabilidade pela densificação do punitivismo e pela criação do
imenso contingente de pessoas presas é dos atores que dão vida diariamente ao sistema punitivo. A
responsabilidade da imposição gótica de sofrimento em nosso sistema carcerário é da própria
estrutura punitiva e dos seus discursos relegitimantes, que promovem e fomentam sua utilidade como
mecanismo imprescindível de controle social.” (CARVALHO, Salo. Substitutivos penais na era do
grande encarceramento. Criminologia e sistemas jurídicos-penais contemporâneos. Porto Alegre:
EDIPURS, 2010.
53
estratégia: a prisão - embora não assumam, estão a defender
a permanência da lógica da tortura aceitável.
Em uma síntese para melhor visualização:

PUNITIVISTAS DE DIREITA + PUNITIVISTAS DE


ESQUERDA + PUNITIVISTAS AVULSOS + MÍDIA =
PRISÕES COMO ÚNICO MECANISMO DO SISTEMA, SEM
ENFRENTAMENTO AOS PROBLEMAS DO CÁRCERE
QUE SÃO INTIMAMENTE VISTOS COMO POSITIVOS =
RECONHECIMENTO DE APLICAÇÃO DA LÓGICA DA
TORTURA ACEITÁVEL.

A tortura e o Brasil têm uma relação antiga e


persistente. Afinal, foi nos períodos colonial e imperial
brasileiro ocorreu violento massacre sobre os povos
originários e um dos mais cruéis e gigantescos processos
escravagistas da história mundial. Nesse período, a tortura
foi o método fundamental de submissão dos índios e dos
negros às demandas dos senhorios.55
Superada a escravidão, a tortura ficou e passou a ser
prática aceita na persecução criminal, não se cogitando que
se pudesse investigar um crime sem o emprego de métodos
de violência e agressão, uma atitude que vai produzir

55
Veja CORREA, Marcelo Barros. Dimensiones histórico-sociológicas de la tortura en comisarías de
Brasil: el caso de Pernambuco. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2014.
54
verdadeira degeneração das práticas de muitos agentes
policiais, maximizada quando ocorre o golpe de 1964 com
sua declaração de uma guerra civil de brasileiros contra
brasileiros, ou seja, dos gestores do Estado contra os que
pensavam diferente deles.56
Houve praticamente uma redescoberta de
mecanismos medievais e sua ampla utilização contra os
prisioneiros, visando suas confissões para sumária execução
e delação, ou seja, entrega do nome de outras pessoas que
pensassem como o seviciado.
O fim do regime ditatorial de 1964, não põe fim à
violência como método e seguem sendo aceitas as práticas
violadoras dos direitos humanos em nome do combate ao
crime.57
A característica vista até a Operação “Lava Jato”,
porém, foi de enfrentamento entre o pensamento penal
liberal-democrático e as ações agressivas aos seres
humanos, praticadas em nome do combate ao crime, de sorte
que começaram a ser ampliadas as ações penais por crimes
de tortura; deste modo, foi se formando a jurisprudência
baseada na imprestabilidade das provas obtidas por meios

56
Até mesmo máquinas de tortura utilizadas pela GESTAPO na Alemanha Nazista foram importadas
por forças policias brasileiras, mecanismos que serão amplamente utilizados nos anos seguintes,
inclusive após o golpe 64. A este proposito sentido é esclarecedor o estudo apresentado em FON,
Antonio Carlos. Tortura: a história da repressão política no Brasil. São Paulo: Parma, 1979. P.78-80.
57
Veja OLIVEIRA, Luciano. Tortura. Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014.
55
ilícitos, em especial a tortura, com forte poder propedêutico,
pois se a prova ilícita se torna nula, inútil é produzi-la e,
portanto, os responsáveis pela persecução devem buscar
métodos avançados e adaptados aos direitos humanos para
a obtenção da prova.
Ocorre que a legitimação da tortura aceitável pela
“Lava Jato” produziu, pela primeira vez no Brasil República,
a expressa normalização da tortura, franqueando a sua
utilização, não somente como método obscuro e ilegítimo,
mas como meio válido no processo penal, a partir da cessão
à pura lógica utilitária, pela qual o que importa é punir, punir
sempre mais pessoas e mais rigorosamente.
Em um país que, historicamente, sempre teve a
tortura presente, não tendo jamais conseguido dela se
desvincular completamente, a normalização de tortura
aceitável pode ser antevista como a abertura de uma franquia
para a crescente vulneração dos direitos humanos e uma
rápida corrosão de qualquer elemento mínimo tendente à
democratização do processo, em um fenômeno em que a
realidade é muito mais rápida que a academia, possivelmente
quando houver a percepção de tal, nada ou muito pouco
sobrará da estrutura democrática no sistema penal brasileiro
e a tortura terá voltado a sua condição medieval de rainha.

56
5. A total corrosão do devido processo legal e da lógica
da necessidade probatória para a condenação

“Demos um modelo para o mundo, com a


criação dos Codis, dos DOIs e com
alterações na Lei de Segurança Nacional
como a incomunicabilidade de 30 dias"
General Brilhante Ustra

O grau de respeito ao devido processo legal demarca


o grau de comprometimento que um país apresenta com a
noção de superioridade ética do Estado e desenvolvimento
de uma sociedade avançada no pacto de respeito ao Estado
de Direito.58
No sistema “Lava Jato”, a única expressão que
consegue minimamente se aproximar do que se tem
construído em matéria de respeito ao devido processo legal
é: catástrofe. Contrariamente ao afirmado no parágrafo
antecedente, demonstra baixíssimo comprometimento do
Estado brasileiro com sua superioridade ética e com o
desenvolvimento do respeito coletivo ao Estado de Direito.
A tabula rasa da retórica do combate à corrupção
passou, com a “Lava Jato”, a justificar tudo, ou quase tudo,
em matéria excepcionalizante do processo penal brasileiro.59

58
Veja MEDEIROS, Luiz Cézar. Formalismo processual e instrumentalidade: um estudo à luz dos
princípios constitucionais do processo e dos poderes jurisdicionais. Florianópolis: Conceito, 2008.
59
É sempre importante ter em conta que os regimes totalitários não partem de premissas outras que
a construção do bem desejado pela coletividade. A propósito, Agamben observa que “Não há motivos
57
Conforme já dito, prisões processuais de exceção
converteram-se em regras; o juiz pode investigar, produzir
provas e julgar; o ministério público pode ter acesso
privilegiado à provas e documentos; medidas cautelares são
deferidas sem qualquer preocupação com os danos que
venham a ocasionar; reinventa-se a prisão processual por
fase do processo, a partir da execução provisória da pena
com o julgamento de segundo grau, independente do trânsito
em julgado, como determina a Constituição Federal; as
provas podem ser livremente “vazadas” para mídia para gerar
clamor social; a lógica das provas é toda corrompida e a
palavra de delator passa a ter peso absoluto e suficiente para
a condenação; decisões conflitivas são produzidas conforme
a parte que requeira, em claro privilégio da acusação em
detrimento da isonomia processual; o regime de provas
ilícitas passa a ser flexibilizado; entre outras tantas
exceções.60

para duvidar de que as razões humanitárias que empurraram Hitler e Moler a elaborar imediatamente
depois da tomada de poder um programa de eutanásia foram de boa fé, como de boa fé atuavam
certamente, desde seu ponto de vista, Biding e Hoche ao propor o conceito de ‘vida indigna de ser
vivida’” (AGAMBEN, Giorgio, Homo Sacer,Pre-textos, 177. livre tradução.) (…) contrariamente a um
difundido preconceito, o nazismo não se limitou simplesmente a utilizar e a distorcer para seus próprios
fins políticos os conceitos políticos que lhe eram necessários; a relação entre a ideologia nacional
socialista e o desenvolvimento das ciências sociais e biológicas do momento, em particular o da
genética, é mais íntimo e complexo e, a cada vez mas inquietante.” (AGAMBEN, Giorgio, Homo
Sacer,Pre-textos, 184. livre tadução).
60
Há um aparente esquecimento de que “se é verdade que o direito penal começa onde o terror acaba,
é igualmente verdade que o reino de terror não é apenas aquele em que falta uma lei e impera o
arbítrio, mas é também aquele onde a lei ultrapassa os limites de proporção, na intenção de deter as
mãos do delinquente.” (BETTIOL apud BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios
de aplicação. Segunda edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.13.)
58
Essas “entre outras tantas exceções” são
expressamente aceitas em prol de uma visão funcional do
processo, com objetivo ampliativo de punições e de produção
de satisfação nos meios sociais mais atingidos por conflitos.
Há algo muito particular na sociedade
contemporânea, que se pode chamar de miditiatização da
vingança, a qual auxilia no entendimento desse fenômeno.
A verdade é que, ao longo da história humana, foram
contínuos os esforços para dotar o Estado julgador de
racionalidade, a fim do afastamento da pura repetição do
desejo de eventuais vítimas de promover uma ação de
vingança contra os acusados de delitos. 61
É absolutamente compreensível alguém que se sinta
vítima de uma ofensa a um bem jurídico desejar vingança,
muitas das quais com crueldade. Notadamente, em países
como o Brasil, os mecanismos cíveis de abordagem dos
conflitos parecem ser concebidos para gerar a ampliação da
insatisfação, pela demora aliada à total incapacidade de
pacificação, além de aparentarem sempre estar
desfavorecendo e ignorando o cidadão comum.

61
Convém notar que o “fim da pena sempre preocupou a todos os homens de espírito. Nenhuma
situação produz vibração tão íntima nas pessoas que ainda — mesmo em nosso século da automação
— não perderam a faculdade de refletir, em silêncio, mas continuamente, surge das prisões em que
jazem milhares de homens, sepultados vivos por outros homens, em nome da justiça, em nome da
liberdade. Ali padecem, a eles se inflige a pena — o mal —, em nome do bem comum... A
superficialidade com que alguns autores, e não somente em jornais ou publicações populares,
abordam o tema, está quase fazendo esquecer sua profundidade e transcendência.” BERISTAIN,
Antonio. Cuestiones penales y criminológicas. Madri: REUS, 1979. p.29.).
59
Assim, a pulsão por transformar o Direito Penal em
algo ineficaz na sua missão de contenção ao poder punitivo
é permanente, pois há clara transferência dos problemas de
conflitividade não resolvida no âmbito cível para o campo
criminal, transformando as punições em uma espécie de um
elixir sagrado, o qual é capaz de curar todas as feridas.
Ocorre que deve ser produzida a racionalização do
conflito pelo Estado, pois quando a matéria é colocada em
viés criminal, pode o próprio Poder Judiciário ser apenas um
amplificador consciente dos conflitos e produtor da
separação dos diferentes grupos sociais, gerando visão
segregacionista e preconceituosa.
Por outro lado, conforme já dito, os grandes veículos
de comunicação, há muito passaram a miditizar a vingança,
ou seja, a propagar a ideia de que a sociedade deveria ser
simplesmente dividida em bons e maus, além de vingar-se os
bons dos maus.
Sempre receosos da perda de espaço ou poder pela
aproximação consigo das outras classes sociais, evidente
que esta forma superficial de enxergar os fenômenos sociais
relacionados ao delito foi estimulada por grupos
economicamente hegemônicos, que tem importante papel
financeiro nas grandes corporações de comunicação de
massa.

60
Com isso, uma parcela significativa e relevante da
imprensa brasileira simplesmente propaga a ideia da
sociedade dos bons e dos maus, com necessidade de
vingança pelos primeiros em relação ao mal representado
pelos outros.
A essas reflexões se soma o movimento pendular
apresentado pela classe média latino-americana.62 O que se
verifica é que essa classe na América Latina apresenta forte
tendência ao discurso de distribuição de renda e de conteúdo
social e coletivizante conforme mais se distancia dos maiores
detentores de riqueza, ou seja, quanto mais aumenta o
espaço de separação da classe média em relação à classe
mais rica, é o momento em que mais espaço ganha a posição
no sentido da defesa de reformas sociais, o que, em geral, dá
origem a vitórias de movimentos ou governos mais
populares.63
Com o passar do tempo e o desenvolvimento de
ações de distribuição de renda e enriquecimento da classe
média, vai o pêndulo no qual ela está deslocando-se para se
aproximar da classe A, momento em que como em uma
verdadeira alquimia de valores, seus integrantes se tornam
conservadores e passam a ver com hostilidade os menos

62
Veja ESTANQUE, Eliseu. A classe média: ascensão e declínio. Lisboa: Fundação Francisco Manuel
dos Santos, 2016.
63
PARENTE, Juracy; LIMEIRA, Tânia Vidigal; BARKI, Edgard (org.). Varejo para a baixa renda. Porto
Alegre Bookman, 2008.
61
favorecidos, incorporando o discurso midiatizado de
necessária vingança dos bons contra os maus.
Esse movimento pendular na classe média brasileira
é facilmente perceptível quando se observa os discursos de
mudança em prol de uma maior distribuição de renda e visão
coletiva que ela encampou principalmente a partir do início
dos anos 2000 e o conservadorismo extremo, defensor até
mesmo de supressão dos direitos e garantias e
implementação de nova ditadura militar, que passou a ser
propagado desde, principalmente, 2014/2015, auxiliando
decisivamente na produção do golpe de 2016.
O que ocorreu, em mais de uma década, que separou
o desejo de mudanças do desejo de paralização das
mudanças, não foi a descoberta de um esquema de
corrupção no Estado brasileiro, pois afirmar isso seria como
imaginar ser a corrupção algo recém inventado no Brasil, o
que ninguém com mínima seriedade intelectual cogita.64
O que realmente motivou a mudança de postura da
classe média foi o seu maior enriquecimento, ou seja, o
pêndulo se aproximou dos mais ricos e com isso o sentimento
de autopreservação em relação aos outros aflorou e passou
a servir de terreno fértil à produção da hostilidade com o

64
Veja ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no Brasil: uma história, séculos XVI a XVII. Belo
Horizonte: Autentica, 2017.
62
diferente e geração de estigmas para catalogar pessoas
como inimigas.
Evidente que o somatório da classe média ao
discurso midiático de vingança, faz a aceitação da ruptura
com o devido processo legal ser facilitada por quem controla
o poder punitivo, pois, em última análise, o discurso de que
foi necessário para combater o mal acaba por prevalecer.
Sempre foi assim, os superpoderes dos inquisidores
na Idade Média decorriam de afirmação de sua necessidade
para o combate ao mal, titularizado pelo demônio e seus
seguidores. Os Exércitos Napoleônicos marcharam sobre a
Europa sobre o argumento que perseguiam o mal, presente
nos contrarrevolucionários. Igualmente, o Nazismo
fundamentava seus extermínios na ideia de que o mal,
apontado nos que de alguma forma enfraqueciam a nação,
precisava ser eliminado. Recentemente, na era Busch, os
Estados Unidos habilitaram a tortura e toda forma de
violência pelo Estado para combater o mal representado pelo
terrorista.65

65
O tema é detalhadamente tratado em O que é a impunidade, que inicia a análise da história da
concessão de poderes punitivos extremos nos diferentes momentos históricos, esclarecendo:
“Dominar pessoas é algo que ocorre com um discurso de sustentação para que o próprio dominado
concorde com as intervenções que sobre ele se impõem e, desta forma, não apresente qualquer
resistência. O discurso de sustentação além de construir uma falsa legitimidade ao poder interventivo,
serve para uma interiorização pelo sujeito da necessidade de que ele mesmo seja controlado, objetiva
que o sujeito sinta como de boa-fé as ações que em verdade o limitam e deseje que elas estejam
sempre presentes.” (TASSE, Adel El. O que é a impunidade. Curitiba: Juruá, 2009.
63
No Brasil, mais uma vez, com o modelo “Lava Jato”,
o que se fez foi a atribuição de superpoderes a alguns para
combater o mal, desta vez conhecido por “corrupção” – mais
diretamente, corrupção praticada pelos integrantes do
movimento de esquerda brasileiro.66
Esses superpoderes, para o combate ao mal, têm
como característica a ilimitação e, assim, as barreiras
decorrentes do devido processo legal passam a ser um mero
inconveniente para a imposição de punições a quem é
seletivamente escolhido para delas ser merecedor.
A fundamentação em torno da excepcionalidade da
situação passa a justificar a adoção de medidas proclamadas
como excepcionais que, ao final, são apenas a simples e
liminar revogação do princípio do devido processo legal.
Com isso, o Estado e seus representantes passam a
ter comportamento ético muito mais reprovável que o
apresentado pelo próprio mal que prometem conjurar, pois,
não encontram qualquer limite para agir como o desejam –
se ao final conseguirem produzir a punição dos selecionados.
As exceções se convertem, em regra, e o devido
processo legal desaparece como efetivamente tem sido cada
vez mais ignorado na prática judicial brasileira, passando a

66
Convém anotar que há que ser muito cauteloso com a proclamada luta contra “criminalidade
moderna”, pois observa-se que “as normas penais incriminadoras cresceram desmedidamente, ao
extremo de alarmar aos penalistas dos mais diversos parâmetros culturais.” (LUISI, Luiz. El principio
de intervención mínima. Política Criminal y Reforma Penal,1996, p. 10)

64
ser o processo algo sem regras em que cada um tem em sua
mente sua Constituição e seu Código de Processo Penal
pessoal, produzindo-se um claro retrocesso civilizatório.
Na medida em que desaparece o devido processo
legal e as garantias inerentes ao sistema penal, essenciais
para o exercício do poder punitivo no Estado Democrático,
desaparece o próprio Direito Penal e este se converte em
espécie de Direito Administrativo, pelo qual os agentes
públicos, dotados de poderes, atuam exercitando coação
direta.67
O titular nominal do poder pode ser variável, mas o
fato é que o exercício da coação direta estabelece o
punitivismo sem controle real, pois os mecanismos previstos
em lei para sua fiscalização são puramente formais, afinal as
prisões cautelares como antecipação punitiva, sem formação
de culpa são, em via de regra, mantidas e para os abusos
processuais cometidos se estabelecem justificativas com
base na retórica calcada da razoabilidade e na satisfação dos
interesses finais do processo. Enfim, quando há o
desparecimento do devido processo legal, há também o

67
A transformação do exercício democrático do poder punitivo, com sua transformação em coação
direta é analisada na premiada obra, ganhadora do prêmio The Stockolm Prize in Criminology,
equivalente ao Nobel em Criminologia, Crímenes de Masa, de Eugênio Raúl ZAFFARONI, publicada
em 2012, na cidade de Buenos Aires pela Ediciones Madres da Plaza de Mayo. Em referida obra é
destacado que “sem dúvida , também se verifica que quando o poder punitivo do estado se
descontrola, desaparece o estado de direitoo e seu lugar é ocupado pelo de polícia.” (p. 31. Livre
tradução).
65
próprio desaparecimento do sistema penal, substituído pelo
exercício da coação direta.68
Nesse ponto, inegável a característica totalitária que
passa a estar presente no Estado e a permanente
reafirmação retórica da necessidade de luta contra a
corrupção faz do sistema “Lava Jato”, claramente, uma mola
propulsora para o desenvolvimento deste totalitarismo.

68
Da obra referida na nota 67 também pode ser destacado: “ em verdade, o que se designa como
direito penal do inimigo é prática corrente em maior ou menor medida em quase todo planeta e em
especial na América Latina, onde seu instrumento preferido é a prisão preventiva ou cautelar, usada
como pena principal ou quase única (...) O direito penal do inimigo postula ‘ despersonalizar’ os
inimigos e, em decorrência, não os submeter às penas e medidas conforme sua culpabilidade, mas
´contê-los´ para neutralizar seu perigo. Não é mais que a reiteração das ‘ medidas de segurança’ para
os multireincidentes, habituais etc., conhecidos desde Kart Stooss, ou seja, penas sem culpabilidade
segundo a conhecida tese Kohlraush (o embuste das etiquetas). Pois bem, dado que quase 70% dos
presos latino-americanos se acham em prisão cautelar e tendem e esgotar a pena nela, resulta
evidente que esta opera como uma pena sem culpabilidade, antecipada a sentença formal”
(ZAFFARONI, op cit. P. 84 e nota 116.)
66
6. AI 5 e 10 Medidas de Combate à corrupção:
desagradável coincidência

“Às favas, senhor presidente, neste


momento, todos os escrúpulos de
consciência”.
Jarbas Passarinho, então Ministro do Trabalho
na reunião que aprovou o Ato Institucional Nº 5
(AI-5).

Embalados na popularidade alta dos primeiros


momentos da “Operação Lava Jato”, a proposta legislativa
conhecida como “10 medidas de combate à corrupção”,
formulada por alguns integrantes do Ministério Público
Federal, contou com um número total de assinaturas
suficientes para ser apresentada ao Congresso Nacional
como proposta legislativa de iniciativa popular. 69
Inicialmente, havia uma grande dificuldade para se
conseguir acesso ao conteúdo das ditas medidas de combate
à corrupção e, mesmo durante o período em que ocorreu
ampla campanha para aposição e assinatura em dito
conjunto de propostas, o seu texto seguia sendo de difícil

69
No documento assinado por vários dos movimentos atuantes no golpe de 2016, nominado Carta
dos Movimentos Sociais ao Povo Brasileiro e publicado in VIANNA, Antonio Didier. Tem que mudar:
a crise econômica continua até quando?. Rio de Janeiro: Jaquatirica, 2016, a defesa das “10 medidas
de combate à corrupção”, como inseridas na ação estratégica conjunta traçada por eles e trazida no
momento de alta popularidade da lava-jato fica bastante clara.
67
acesso o que, após a apresentação como proposta de
iniciativa popular (PL 4850/16), ao mesmo tempo trouxe o
mérito da total publicização do seu conteúdo. 70
Justamente o conhecimento desse conteúdo é algo
que causa profundo desconforto, porque não se consegue
encontrar uma real conexão entre o título do projeto (medidas
de combate à corrupção) e seu conteúdo, que em realidade
outra coisa não representa que a redução das possibilidades
do exercício da defesa no processo penal, com geração de
desequilíbrio em prol de um modelo inquisitivo extremo, em
uma espécie de “corrupção judicial”, na qual o juiz passaria a
atuar oficialmente em conjunto com quem acusa para
prejudicar quem se defende.71
De saída, vale destacar os dois pontos até hoje mais
criticados do projeto, o primeiro dele é a restrição ao uso do
habeas corpus; e o outro, a permissão do uso de provas
ilícitas.72
Na questão da limitação do habeas corpus, não se
pode deixar de recordar ao Ato Institucional nº 5 (AI 5), de 13

70
Durante a apresentação das “10 medidas de combate à corrupção”, fundamentalmente eram
apresentados documentos publicitários e panfletários em torno a elas, sem realmente se dar ao
conhecimento público seu conteúdo e, muito menos, submetê-lo a um amplo debate.
71
Não há dúvidas, após o conhecimento delas na afirmação: “‘10 Medidas Contra a Corrupção’ (PL
4850/2016), que formaliza as propostas encaminhadas pelo Ministério Público (que suprimirem
aspectos do devido processo legal e conferem mais poderes de exceção ao Estado).”(RAMOS
Gustavo Teixeira; MELO FILHO, Hugo Cavalcanti; LOGUERCIO, José Eynard; RAMOS FILHO,
Wilson. A classe trabalhadora e a resistência ao golpe de 2016. Bauru: Praxis, 2016. Nota 3.)
72
FÖPPEL, Gamil; SANTOS, Pedro Ravel Freitas. https://www.bahianoticias.com.br/artigo/744-por-
que-os-pacotes-anticorrupcao-sao-inocuos-ilegitimos-e-inconstitucionaisa.html.
68
de dezembro de 1968.73 Considerado como um dos maiores
ataques legislativos à Democracia promovidos pela ditadura
militar, o AI 5, traz, em seu artigo 10, uma regra
extremamente parecida com algumas das pretendidas nas
chamadas “10 medidas de combate à corrupção”. Veja:

Art. 10 - Fica suspensa a garantia de habeas


corpus, nos casos de crimes políticos, contra a
segurança nacional, a ordem econômica e
social e a economia popular.

A propósito do AI 5, também é relevante observar


que no seu artigo 5º, inciso I, estava outra regra bastante
defendida no âmbito da “Lava Jato”74, embora não
propriamente nas “10 medidas de combate à corrupção”, qual
seja, o afastamento do foro por prerrogativa de função:

73
Veja CONTREIRAS, Helio. AI-5: a opressão no Brasil. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005.
74
Assim tem sido destacado, sem deixar dúvidas sobre a origem do debate, na atualidade, em torno
do fim do foro por prerrogativa de função e sua inserção dentro da lógica de deslegitimação do
processo político-eleitoral que será tratado no próximo item,: “ao completar o terceiro aniversário, a
Operação Lava Jato já permite vislumbrar que, se o foro por prerrogativa de função não for relativizado,
possivelmente outros aniversários serão comemorados sem que se tenha avançado de forma
significativa na punição de tais condutas. E aí se apresentam alternativas de duvidosa implementação
e resultado. Buscar alteração da Constituição Federal, pela via do Poder Legislativo, é definitivamente
impossível, pela quantidade e pelo grau de comprometimento de parlamentares com os fatos em
apuração. Aguardar as eleições de 2018 para que o eleitor possa fazer tal depuração, pelo movimento
que se alastra no Congresso Nacional com a inusitada participação de integrantes do Poder Judiciário
– voto por lista com prioridade aos atuais detentores de mandatos –, é no mínimo risível.”( SILVA,
Derocy Giacomo Cirillo da. A lava jato e a prerrogativa de foro, Curitiba, Jornal Gazeta do Povo,
caderno opinião, 22/03/2017.)
69
Art. 5º - A suspensão dos direitos políticos, com
base neste Ato, importa, simultaneamente, em:
I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa
de função;

Como dito, o foro por prerrogativa de função, não é


integrante das medidas, mas é duramente combatido no
âmbito da “Lava Jato”, não necessitando de demoradas
explicações quanto ao seu critério existencial e vinculação ao
regime democrático, mas, para entender o porquê do seu
ataque pelos modelos totalitários de Estado, basta apenas a
lembrança que visa proteger os representantes do povo,
legitimamente eleitos, nesta condição, de sofrerem
perseguições pela indevida utilização do processo criminal
desconcentrado, fazendo-os precisar viver em função de
ajuizamento de ações criminais que contra eles se façam em
um país continental como o Brasil, sem condições de dedicar-
se da forma exigida aos seus mandatos; além de poder o
processo criminal, ainda que indevidamente instaurado, ser
utilizado como uma forma promover sua desmoralização
perante sua base eleitoral.
Retornando a avaliação das ditas “10 medidas de
combate à corrupção”, de início, portanto, pode-se observar
uma sinistra coincidência entre as proposituras legislativas
advindas da “Operação Lava Jato” e o AI 5, famoso como
70
momento de ataque mais direto e brutal à democracia, por
força de instrumental legislativo, durante o período da
ditadura militar.
Seria exagero discorrer sobre a importância da
garantia de habeas corpus amplo como referencial do próprio
Estado democrático e de sua vinculação com a não negativa
de apreciação pelo Poder Judiciário de lesões ou perigo de
lesões ao direito fundamental e à liberdade, valendo, porém,
destacar que as limitações a ele são uma expressa admissão
de que o Estado está autorizado a utilizar seu poder de forma
indevida para cercear a liberdade das pessoas.75
No bojo das propostas em relação ao habeas corpus,
também está uma clara tentativa de controle sobre a
liberdade judicial e sobre o poder decisório do juiz, pela
proposta de impedimento de que promova a concessão de
habeas corpus em favor a alguém que não se encontre preso,
sem ouvir o Ministério Público.
Com isso, admite-se até que o Magistrado, mesmo
constatando flagrante ilegalidade da instauração de um
inquérito policial, por exemplo, ou uma investigação
conduzida ao arrepio da lei e colheita permanente de provas

75
Vale registro que “é a partir da República, especificamente com Rui Barbosa, que a ação de habeas
corpus adquire importância política no Brasil, pois possibilitou ao Poder Judiciário a interferência
indispensável na solução de algumas questões de Estado.”(BAJER, Paulo. Processo penal e
cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p.31).
71
ilícitas, seja obrigado a ignorar tudo, até ato de vontade do
Ministério Público em manifestar-se.
E não há como contra argumentar que há a fixação
de prazos, pois a realidade do processo penal brasileiro
mostra que, comumente, quando a lei defere prazos desta
natureza, em especial para os agentes do Estado, ao longo
do tempo, com base em argumentações em torno do
excessivo volume de trabalho, eles acabam sendo
convertidos em prazos impróprios, ou seja, que não precisam
ser cumpridos.76
Quanto às provas ilícitas, admitir validade,
independente da justificativa que se dê ao expediente,
significa retirar todas as barreiras de proteção ao cidadão,
conduzindo à persecução criminal ao modelo investigativo
próprio da inquisição medieval em que todo e qualquer
mecanismo de obtenção de provas seria válido, desde que
conduzisse à condenação.77
A lógica é rigorosamente a mesma e, se considerado
que um dos expedientes preferenciais da inquisição, a
delação, já faz parte do sistema jurídico nacional, sendo um
dos principais mecanismos investigativos da “Lava Jato”, não
restam dúvidas do que se deseja produzir, o efetivo retorno

76
Veja PAIVA, Gabriel Anderson de. O contraditório participativo no Processo Penal. Rio de Janeiro:
Gramma, 2017, p. 171 e ss.
77
Veja KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras: maleus maleficarum.
Tradução: Paulo Froés. Rio de Janeiro: BestBolso, 2015.
72
ao sistema de obtenção de provas prévio ao movimento
iluminista.78
Evidente que flexibilizar o rechaço à prova ilícita é
apenas um passo para admitir livremente invasões pelo
Estado na propriedade privada, devassamento da intimidade
e, claro, até mesmo, o uso da tortura.
Ocorre que as medidas de combate aos limitadores
ao poder punitivo, presentes no PL 4850/16, vão muito além
das insustentáveis limitação do habeas corpus e admissão
de prova ilícita.
O referido projeto prevê um esdrúxulo teste de
integridade para funcionários públicos, em que seria possível

78
Sobre o desenvolvimento histórico da delação premiada vale observar que , “a defesa do
mecanismo utilitário da delação premiada tem produzido argumentos representativos de absurdo tão
expressivo que somente podem se pautar pela má-fé daqueles que sabem as violências que praticam,
mas tentam justificá-las sob áurea angelical, como o demônio, que na tradição sempre faz questão de
lembrar que nada mais é que um anjo, tudo bem que caído, mas um anjo. A delação premiada não se
constitui em um recurso moderno do processo penal, assim como não se apresenta como repercussão
de nenhum avanço especial havido na persecução criminal. Em verdade, a delação premiada sempre
representou, juntamente com a prática da tortura, uma das ferramentas fundamentais dos processos
arbitrários, em especial os medievos de índole inquisitorial.Para que se visualize com clareza, é de
observar que a primeira previsão da delação premiada no território brasileiro não decorreu de
nenhuma legislação ultramoderna e avançadíssima, como muitas vezes se tenta fazer crer, mas das
vetustas ordenações do Rei. O Código Filipino, no Título CXVI, estabelecia expressamente as regras
de “como se perdoará aos malfeitores, que derem outros á prisão”.Efetivamente o procedimento de
índole inquisitorial, com apego às idéias fundamentais desenvolvidas pelo Tribunal do Santo Ofício,
tem na delação praticada pelo acusado um dos elementos essenciais de prova, além, evidentemente,
de constituir medida investigatória fundamental.O autoritarismo na investigação sempre teve em alta
conta o exercício de pressão sobre o indivíduo acusado, para que este promova a entrega à autoridade
responsável pela punição de outras pessoas que entende serem envolvidos em atividades
criminosas.O markartismo americano também fez uso permanente da delação premiada. No momento
em que o pensamento arbitrário calcado na busca de punições a pessoas pelas suas idéias ganhou
espaço nos Estados Unidos, o método fundamental de investigação foi a delação, com o perdão
oferecido a quem denunciasse outros, criando uma espiral de perseguições e mentiras em que
pessoas afirmavam atividades “perigosas” como tendo sido praticadas por cidadãos que sequer
conheciam, como forma de livrarem-se de punições. Assim, nada mais se tem que a nova encenação
de uma velha peça, carcomida pelo tempo e rejeitada pelo seu histórico de abusos e opressões.”
TASSE, Adel El. Delação Pemiada: novo passo para um procedimento medieval. Ciências Penais.
Volume 5. São Paulo: revista dos Tribunais, 2006, p. 273-274.
73
ser simulada a oferta de propina para ver o comportamento
do servidor e, então, dependendo, contra ele tomar medidas.
Evidente não passar desapercebido que referido
teste, além de poder se constituir no âmbito interno da
Administração Pública, em poderoso mecanismo de
perseguição contra servidores não protegidos pelas chefias,
é passível de ampla utilização para a perseguição política,
sendo uma forma indireta de afastar a não validade de
flagrante preparado, mais que isso, em aprofundamento
dogmático da matéria, de afastar até mesmo a não
possibilidade punitiva em hipóteses de crime impossível, pois
estaria sendo aberta pela lei expressamente a possibilidade
sancionatória, mesmo em situações em que o delito tratado
jamais teria condições de se consumar.
O projeto, impropriamente nominado de “10 medidas
de combate à corrupção”, também se aproxima do AI 5 ao
propor acréscimo do artigo 580-A, no código de Processo
Penal, para garantir que dê ofício ou a requerimento da parte,
possa o Tribunal se recusar a apreciar recurso da defesa com
simples argumentação de que o mesmo é protelatório ou
abusivo do direito de recorrer, conceito, a propósito, que
nenhum sistema jurídico de um país livre do mundo conhece,
certificando o trânsito em julgado da decisão recorrida e o
imediato retorno dos autos à origem, sendo ainda que o
recurso desta decisão não terá efeito suspensivo.
74
Na redação do projeto em análise, é gerada a falsa
sensação de que a regra seria para ambas as partes, porém,
ao ser proposta como acréscimo ao artigo 580 do Código de
Processo Penal, fica evidente sua vinculação direta e
exclusiva aos recursos da defesa, criando para eles a
possibilidade de que haja negativa de apreciação de
apontada lesão ou perigo de lesão ao direto pelo Poder
Judiciário.
O AI 5 previa em seu artigo 11:

Art. 11 - Excluem-se de qualquer apreciação


judicial todos os atos praticados de acordo com
este Ato institucional e seus Atos
Complementares, bem como os respectivos
efeitos.

Em outras palavras, não é novidade a tentativa de


impedir apreciação do Poder Judiciário, sendo, aliás, medida
usual em regimes totalitários, o único diferencial no projeto
em análise é que o próprio Poder Judiciário declararia que
não vai apreciar a matéria, o que, colocado dentro da lógica
real, da contínua tentativa de Tribunais do País inteiro em
diminuir o volume dos recursos, faz facilmente antever que a
regra será a não apreciação do recurso.

75
O princípio da proporcionalidade em matéria penal,
que já vem sendo amplamente ignorado na aplicação das
penas na “Lava Jato” e nos processos criminais que lhe
fazem espelho por todo o País, passa, com as
impropriamente ditas “10 medidas de combate a corrupção”,
a inexistir, pois o aumento de penas, o qual é promovido nos
crimes contra a Administração Pública, não guarda relação
alguma com a questão do bem jurídico e os níveis de ofensa
a ele.79
No âmbito prisional, como se não fosse pouco o uso
que se faz no Brasil da prisão processual como antecipação
de pena sem formação de culpa, o projeto permite prisão
preventiva sem fundamento, com base em argumentos vagos
como, por exemplo, a identificação e a localização do produto
e proveito do crime, ou seu equivalente, e assegurar sua
devolução, ou para evitar que sejam utilizados para financiar
a fuga ou a defesa do investigado, em outras palavras,
prende-se para intimidar o acusado ou impedi-lo de se
defender, o que colocado de forma direta significa prender
por puro ato de autoridade.

79
Vale a lembrança de Zaffaroni no sentido de que “o mundo se divide entre o real e o dos juristas;
enquanto no mundo real vemos o problema da segurança, da vitimização, e todas essas coisas, no
mundo dos juristas se diz que a lei penal tutela ao bem jurídico e em conseqüência previne, e então
quanto mais leis penais tenhamos mais prevenção vamos ter, e temos mais leis penais por um lado,
mas por outro lado cada vez temos menos segurança” ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La justicia penal
hoy: de su crisis a la busqueda de soluciones; El sistema penal y el discurso jurídico. Buenos Aires:
FD, 1999, pág. 41. Livre tradução)
76
O regime de nulidades no processo penal também
tem propostas de modificação que não escondem o desejo
de admitir toda e qualquer prova ilícita ao processo,
funcionalizando-o ao máximo, pois estabelece que desde que
seja atendida a finalidade de uma prova, leia-se, desde que
habilite o poder punitivo, nenhuma nulidade será declarada. 80
Quanto a prescrição, por via transversa, é criado um
regime de imprescritibilidade para todos os crimes no Brasil,
ampliando todos os prazos, já excessivos no Brasil, em 1/3,
impedindo o cálculo com a pena em concreto em relação à
duração do processo em sua primeira etapa e bloqueando
que transcorra enquanto é suscitada a discussão nos
Tribunais Superiores, interrompendo-se, inclusive, até
mesmo com julgamento monocrático que julgar qualquer
recurso de que qualquer parte, por exemplo uma correição
parcial para corrigir um vício in procedendo passa ter o poder
de zerar o prazo prescricional.
Enfim, o que se proclama como “10 medidas de
combate à corrupção”, claramente é a mais ousada tentativa

80
Não é demais ressaltar a necessidade de respeito às regras processuais no regime democrático. A
propósito, no pensamento de “Maier, o poder penal do Estado, aplicado racionalmente, resguarda
certos valores essenciais para a vida de uma comunidade e foi a criação do Estado de Direito que
estabeleceu as garantias contra sua utilização arbitrária. As garantias, segundo a doutrina
constitucionalista, são as asseguradas para impedir que seja atingido o rol de direitos que são atributos
essenciais dos membros da comunidade(....) Por sua vez, a noção do que se deve entender por ‘bem
jurídico’, segundo foi claramente explicado por Rudolphi, oferece uma perspectiva liberal ou
substantiva, contraposta a noção meramente metodológica, que implica o reconhecimento da
importância significativa das garantias contidas no conceito de Estado de Direito.” (HENDLER,
Edmundo. La razonabilidad de las leyes penales: la figura del arrepentido. Teorías Actuales en el
Derecho Penal, Buenos Aires, Ad-Hoc. 1998, p. 393-394. Livre tradução).
77
de produzir um processo penal totalitário da história brasileira
recente.
Dentro da lógica negocial, defendida pelos autores
do projeto, há a ainda uma aspecto adicional, qual seja, o
bloqueio integral à defesa, inclusive prevendo prisão
preventiva para impedir a possibilidade do suspeito obter
recursos para constituir Advogado, o que conduz a um falso
processo negocial, dentro de uma estrutura em que uma
parte tem todo o poderio e a outra nenhuma opção, ou seja,
é a imposição da vontade da acusação, independente da
existência de investigação lícita ou provas válidas em um
processo democrático, somente com aparência de acordo.
Aprovado este novo ataque aos mecanismos de
contenção do poder punitivo com habilitação do modelo
totalitário de Estado, com sinceridade, há de se reconhecer o
quanto o nefasto ato patriótico de George W. Busch terá sido
visionário, pois lá também a lógica foi a da prisão por
suspeita, da validade da prova ilícita, do não cabimento do
habeas corpus, da não declaração de nulidades, da
imprescritibilidade e do bloqueio à defesa.81

81
No plano interno, em plena euforia patriótica e bélica, foi promulgado em outubro de 200l com
vigência inicial até 2005, o Ato Patriótico, que em nome da luta contra o terrorismo aumentou as
prerrogativas do Estado policial impondo sérias restrições às liberdades individuais dentro dos EUA.
Essa legislação envolveu uma vaga e imprecisa definição de terrorismo, possibilitando ao Estado
reprimir qualquer atividade de oposição e protesto. SANTOS, Marcelo. O poder norte-americano e
América latina no pós-guerra fria. São Paulo: FAPESP, 2007, p. 80.
78
Bem pensado, agora somente falta escolher um
ponto fora do território nacional para instalar a “Guantánamo
brasileira”.82

82
Sobre a base de Guantánamo veja MARGULIES, Joseph. Guantánamo and the abuse of
presidential power. Nova Iorque, Toronto, Sindey, Londres: Simon & Schuster paperbacks, 2006.
79
7. A moral como critério

“Humanitarismo é a expressão da estupidez e da


covardia.”
Adolf Hitler

O sistema penal é sempre seletivo, conforme há


muito os aportes, em especial da criminologia crítica,
deixaram evidente, sendo esta questão aceita, geralmente,
por penalistas de diferentes vertentes e concepções.
Ocorre que a “Lava Jato” se desenvolveu na mítica
de combater a seletividade, a partir da falsa perspectiva de
que pela primeira vez no Brasil ocorreria a prisão de políticos
e poderosos, o que é de todo incorreto sob o ponto de vista
histórico.
Sempre se utilizou o poder punitivo para neutralizar
inimigos ou dissidentes políticos, não havendo um único
movimento de caráter autoritário na América Latina que não
tenha se valido da estigmatização das pessoas com
posicionamento contrário ao que se deseja implantar, para
tentar sua neutralização e ampliação de estigmas, a partir da
imposição de medidas punitivas, sob a pecha de que diante
de criminosos.83

83
A verdade é que “a vingança indiscriminada não é um fenômeno exclusivo de culturas supostamente
primitivas mas que se verifica também nas mais avançadas civilizações atuais, sempre se contrapõe
a ela a atitude de relativa compreensão com o transgressor que está implícita na imposição de castigos
80
Isso é uma das razões inclusive de sempre se
conviver com a forte tendência das pessoas que eram
punidas dentro dessa estrutura de luta pelo poder, em um
segundo momento serem convertidas em mártires, atingindo,
por vezes, à condição de verdadeiros heróis.
A inovação da “Lava Jato”, portanto, não é punição
de políticos ou de ditos “poderosos”, mas a preocupação em
parecer fazer o operativo realizado “mais limpo”, antecipando
ao pensamento crítico para afirmar que justamente está
lutando contra a seletividade do sistema penal.
Há em verdade uma ação de seletividade sobre a
corrupção, escolhendo atores que deverão responder por
atos comprovados ou não, enquanto um grande universo de
pessoas, as quais se têm a certeza e provas de que
praticaram a corrupção, permanecerão impunes. Isso
claramente não pode ser entendido como enfrentamento à
seletividade, mas sua utilização programada para atingir
objetivos em relação à estrutura de poder do Estado. 84

de algum modo delimitados, quer dizer sobre o resguardo de garantias.”(HENDLER, Edmundo S. Las
garantías penales y procesales: un enfoque histórico-comparado; Presentación. Buenos Aires:
Del Puerto, 2004, pág. II. Livre tradução).
84
Não se deve esquecer, quando se analisa a operação lava-jata e seu ataque fulminante à
PETROBRAS que já em 1996, no programa Manhattan Conection, o respeitado jornalista Paulo
Francis denunciava um esquema de corrupção na estatal, ou seja, em momento anterior aos governos
do Partido dos Trabalhadores, inclusive, Pedro Barusco que se tornou importante personagem da
lava-jato já em 1997 ocupava suas funções de destaque na PETROBRAS, sendo que os
procedimentos licitatórios simplificados na PETROBRÁS, que são a base intelectual do “consórcio”
formado pelas empreiteiras na estatal, foram criados pelo Decreto 2.745, assinado pelo então
Presidente Fernando Henrique Cardoso após manifestação favorável do seu então Advogado Geral
da União, hoje Ministro do Supremo tribunal Federal, Gilmar Mendes. Ainda não se pode esquecer
que as denúncias de Paulo Francis somente não foram apuradas, comoa inda ele acaba sofrendo um
enfarto e morrendo após ameaças com processamento judicial contra si.
81
O elemento fundante da escolha dentro do modelo
“Lava Jato”, aparentemente assenta-se em um forte
elemento de ordem moral, em que a religiosidade que é
marcadamente presente, desde a inquisição, em todas as
estruturas autoritárias de poder no Ocidente se faz
novamente presente.85
Já houve quem de forma absolutamente infeliz, mas
com ares de profeta, insinuasse que Deus trabalhasse pró-
Lava Jato.86
Apesar da infelicidade desta afirmação, ela traz ao
menos uma chave para tentar entender um pouco da
estruturação moral do modelo “Lava Jato”.
Sem dúvida o mundo ocidental viveu nos últimos 20
anos uma intensa transformação de costumes e
compreensão da relação do homem com a moral, inserindo-

85
Sempre que se analisa o poder punitivo é importante referir que “ o pensamento moderno funda-se
no reconhecimento generalizado de que o verdadeiro fundamento de validade – do Direito em geral e
dos direitos humanos em particular – não deve ser procurado na esfera do sobrenatural da relação
religiosa, nem tampouco na natureza como essência imutável de todos os entes no mundo. Se o direito
é elaboração humana, o seu valor emana, justamente, daquele que o criou. O que importa afirmar que
o seu fundamento está no próprio homem, considerado em sua dignidade substancial de pessoa,
cujas especificações individuais e grupais são sempre secundárias.”(BORNIA, Josiane Pilau.
Discriminação, Preconceito e Direito Penal. Curitiba: Juruá, 2007 p. 17-18.)
86
A questão moral presente na condução da lava-jato é bastante evidente no destaque jornalístico
dadto à matéria: “Ontem, Mello Franco esteve numa igreja batista na Tijuca, zona norte do Rio de
Janeiro, onde o procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava Jato, falou para cerca de
200 pessoas.
A reportagem descreve: "Antes de falar, o procurador, que tem mestrado em Harvard, foi apresentado
como 'servo' e 'irmão.' De terno e gravata, discursou do púlpito, citou a Bíblia e disse acreditar que
Deus colabora com a Lava Jato."O jornalista cita um diálogo entre Dallagnol e os fiéis: "Dentro da
minha cosmovisão cristã, eu acredito que existe uma janela de oportunidade que Deus está dando
para mudanças", afirmou."Amém", respondeu a plateia."É isso aí. Deus está respondendo", devolveu
Dallagnol.O procurador também disse: "se nós queremos mudar o sistema, precisamos orar, agir e
apoiar medidas contra a corrupção", disse, antes de acrescentar: "O cristão é aquele que acredita em
mudanças quando ninguém mais acredita. Nós acreditamos porque vivemos na expectativa do poder
de Deus".”(LEITE, Paulo Moreira. Dallagnol tenta pôr Lava Jato acima do bem e do mal, por Paulo
Moreira Leite. Jornal GGN. 28/07/2015.
82
a muito mais como um elemento de ordem individual, do que
coletiva.
Aparentemente, essa modificação na forma de ser
está associada ao desencanto havido com as sociedades em
que a presença dos valores morais e religiosos na estrutura
de Estado provocou, quando começa ocorrer maior troca
cultural entre os povos, a partir da globalização da
informação. Basta refletir no campo dos exemplos, o
Afeganistão do Talibã, de forte conteúdo moral, não
representou uma grande propaganda do “Estado moralista”;
assim como o Estado Islâmico (ISIS ou DAESH) em nada
contribui para afirmar ser saudável o controle estatal pela
religiosidade.
Mesmo experimentos como o franquismo na
Espanha e as ditaduras militares nos países latino-
americanos, modelos de forte conteúdo moral e influência da
religiosidade nas questões de Estado, não representaram
modelos que sejam exaltados e, nos momentos posteriores
vê-se uma intensa ruptura com as estruturas que eles
representam, fazendo avançar profunda alteração na relação
das pessoas com a questão moral e religiosa. 87
A isso se soma o fato de que o Brasil passa, a partir
das eleições de 1994, a viver governos, ainda que oponentes

87
Veja GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada: as ilusões armadas. Rio de Janeiro: Intrínseca,
2014.
83
entre si, com tendência geral à adoção de algumas linhas
vetoras do pensamento de esquerda latino-americano, entre
as quais a não intervenção estatal em assuntos atinentes à
moral, a não fundamentação religiosa de ações estatais e,
mais profundamente, nos últimos anos, as políticas públicas
de aceitação das minorias e da diversidade, inclusive das
relacionadas às orientações sexuais.
Nesse momento, os exercentes do poder político,
independente de terem ou não praticado atos de corrupção,
o que em alguns casos não se nega aparentemente terem
ocorrido e estarem provados, passaram a ser identificados
com o movimento de liberação moral experimentado pela
sociedade e, então, dentro de um processo de contracultura,
houve a criação de uma oposição, maximizada em sua
aparência pelo MBL, já tratado no primeiro capítulo, e
rapidamente houve a identificação dos exercentes do poder
como “os inimigos da nação”.
A corrupção seletiva, então, foi perfeita para produzir
a caçada aos que foram convertidos em inimigos da nação,
pois a corrupção como problema histórico do Brasil é
facilmente apontável em qualquer estrutura de poder, em
quaisquer poderes na nação, sendo que a população sempre
teve relação contraditória com ela e com a classe política,
rechaçando ambas fortemente, mas delas sempre desejando
fazer parte.
84
Assim, dizer que políticos praticavam corrupção e
que estes políticos eram os identificados com os movimentos
de liberação moral e religiosa permitiu que toda hostilidade
social contra tudo se manifestasse contra eles em um único
movimento, o “lavajatizante” do país.

Premissa Maior Premissa Menor Síntese


Há conhecimento A escolha dos Logo, é preciso
geral de que há que serão um elemento
corrupção em selecionados individualizador
todas as como corruptos do grupo que
estruturas de (maus) não pode será seletivizado
poder no Brasil. ser feita pela para ser
corrupção caracterizado
praticada, pois como
muitos podem ser representando da
atingidos, corrupção no
inclusive nas Brasil.
estruturas que se
deseja proteger.
Deseja-se O pensamento logo, a corrupção
seletivizar os mais moral e religioso seletiva decorre
relacionados ao liberal permitem da
pensamento de individualizar o moral/religiosa e
esquerda. grupo que se não de qualquer
deseja atingir. ato praticado.

Não por outra razão, na onda da “Lava Jato”, museus


começaram a ser objeto de ataques morais, obras de arte e
espetáculos teatrais a serem censurados, com claro
crescimento de um movimento que tenta restabelecer a

85
censura prévia às diferentes manifestações culturais e,
mesmo a aceitação e compreensão do outro e de suas
opções, com base em critérios morais e religiosos.88
A evidência lógica de que se algo é moralmente
contrário à determinada pessoa, basta que ela não participe,
para que o direito de todos esteja preservado foi rapidamente
pulverizado e surgem “patrulheiros da moral e da sexualidade
coletiva”, vindos dos mais inusitados meios, até mesmo do
cinema pornô, gerando uma espécie de “guerra santa” no
Brasil.89

88
Sobre a censura no Brasil veja SILVA, Deonísio da. Nos bastidores da censura. Barueri: Manole,
2010.
89
Vale ler a seguinte matéria jornalística: Ninguém duvida que o coordenador da força tarefa da Lava
Jato, Deltan Martinazzo Dallagnol, é um homem de convicções. Mais do que isso, é um homem de
fé.No ano passado, Dallagnol fez uma peregrinação por igrejas evangélicas em busca de apoio às
suas 10 medidas de combate à corrupção. Num culto, respondeu a uma espectadora que queria saber
sobre seus planos, de acordo com o Estadão: “Eu descartaria poucas coisas em relação a meu futuro,
cogito talvez até virar pastor. Mas nós focamos no presente”.Dallagnol é membro da Igreja Batista de
Bacacheri, bairro de Curitiba, onde costuma ministrar palestras com seu indefectível powerpoint.Lança
mão de imagens fortes para impactar as plateias. O mesmo sujeito que apontou Lula como
“comandante máximo” e “grande general” da “propinocracia” gosta de lembrar que “a corrupção é uma
assassina sorrateira, invisível e de massa”, uma “serial killer que se disfarça de buracos de estradas,
de falta de medicamentos, de crimes de rua e de pobreza.”A retórica e as técnicas do show de
Dallagnol foram influenciadas pesadamente pelas lideranças religiosas de sua terra. Não só a forma:
o moralismo, o maniqueísmo e o antipetismo vieram dali.“Dentro da minha cosmovisão cristã, eu
acredito que existe uma janela de oportunidade que Deus está dando para mudanças”, disse ele no
Rio em sua turnê religioso-política.Repetiu essa sentença numa entrevista ao pastor Paschoal
Piragine Júnior, da Primeira Igreja Batista de Curitiba, dono de um programa meia boca de bate
papos que ele chama de talk show (assista abaixo).Piragine é uma referência para esse povo. Ganhou
fama em 2010 ao pedir a seus fieis que não votassem em candidatos do PT por causa do
posicionamento do partido em relação a temas como aborto, criminalização da homofobia e divórcio.O
mote da pregação era “iniquidade”. Piragine denunciou o Programa Nacional de Direitos Humanos.
“Se você olhar, vai ver como a máquina estatal está mobilizada. Se os ministros de Estado que estão
ligados a esse governo não trabalharem assim, perdem o seu cargo”, falou. O vídeo da peroração
tem, hoje, mais de 3 milhões de visualizações.Uma das admiradoras mais entusiasmadas de Dallagnol
é Marisa Lobo, autodenominada “psicóloga cristã”, campeã de causas como a da cura gay. Marisa faz
conferências na mesma igreja do amigo sobre sua nova obsessão, a ideologia de gênero, tema de
seu último livro.Depois da apresentação da denúncia contra Lula num hotel curitibano de luxo, postou
uma mensagem de solidariedade ao “irmão”: “Dallagnol congrega na mesma igreja que eu e é nosso
orgulho. Deus está usando a Lava Jato para limpar o Brasil”.A Igreja Batista do Bacacheri foi fundada
em 1959. O site da empresa informa que L. Roberto Silvado, que serve ali desde 1988, é o atual
coordenador geral do colegiado de pastores.Silvado tem uma atuação mais discreta que fanáticos
desmiolados como Marisa, mas deixa claras suas preferências e intenções no Facebook. Milita
intensamente pelas célebres medidas de Dallagnol.“Nossa Igreja participou ativamente na coleta de
86
E a interrogante é justamente esta, após tanto
estímulo a onda moralizadora e castradora da sexualidade
estruturada para fortalecer a seleção de inimigos da “Lava
Jato”, em que o Brasil será transformado?
Não se diga que esse não é um problema processual
ou dos que estudam o processo, pois qualquer ação em uma
sociedade, sem preocupações com os resultados reais que
se possam antever como possíveis, são, no mínimo,
manifestação de insanidade.
É evidente que antever todos os resultados da onda
moralizante e de imposição religiosa, em um cenário tão
complexo como o é o das relações sociais, é impossível. Mas,
seguramente se pode observar algumas consequências
diretas que lhe são evidentes, entre as quais, o crescimento
da intolerância, a diminuição da solidariedade, o combate ao
diferente, a tentativa de bloqueio ao que não se gosta ou não
se concorda (censura cultural prévia) e a formação geracional
baseada na ideia de que existe domínio individual da verdade
absoluta, ou seja, um cenário assustador. 90

assinaturas. Ao todo foram mais de 2 milhões em todo Brasil. (…) Nós fazemos parte disso, vamos
continuar manifestando apoio até que sejam aprovadas. Artistas e líderes de todo país precisam se
manifestar, como o fez a atriz Maria Fernanda Cândido no vídeo abaixo”, diz numa de suas
postagens.Dallagnol, registre-se, não está sozinho. O procurador Roberson Pozzobon palestrou num
templo em 2015 durante o Fórum Batista de Ação Social. Foi anunciado como “nosso irmão em Cristo,
Procurador da República e colaborador do Juiz Sergio Moro que coordena a Operação Lava Jato”
(https://www.diariodocentrodomundo.com.br/como-o-antipetismo-fanatico-das-igrejas-batistas-de-
curitiba-fez-a-cabeca-de-dallagnol-por-kiko-nogueira/ acesso em 21/03/2018).
90
Sobre a questão do assentamento das certezas absolutas Veja D’Auria, Aníbal. El pensamiento
político, Buenos Aires: Depalma,1999, p. 16.

87
Da percepção desse cenário assustador em
processo de construção é que se pode afirmar que os efeitos
da escolha da moral para justificar sua seletividade, desde a
aliança com estruturas como o do MBL e sua maximização
pela grande mídia, fazem da “Lava Jato” uma das mais
preocupantes páginas do desenvolvimento brasileiro, pois
com possibilidade evidente de ofertar impulso decisivo ao
retrocesso cultural da sociedade e a seu retorno às estruturas
anteriores aos movimentos de libertação humana do século
passado.

88
8. A deslegitimação do sistema político-eleitoral

"A imprensa é a arma mais poderosa no


nosso Partido."
Joseph Stalin

Ao passo que a moral e a religiosidade são os eixos


justificadores da “Lava Jato”, a deslegitimação do sistema
político-eleitoral é sua estratégia.91
Desde o início o trabalho que foi realizado junto à
grande mídia, ele consistiu em estabelecer a classe política
como em essência corrompida, com ações exclusivamente
voltadas para favorecimento pessoal de seus integrantes.
A deslegitimação do sistema político-eleitoral contou
com claras demonstrações de forças das autoridades
responsáveis pela persecução contra personalidades
importantes do mundo político, como a abusiva e

91
Ao tratar da investigação havida na Itália que inspira os trabalhos da lava-jato, o Magistrado Sergio
Moro deixa patente seu entendimento em torno da necessidade da deslegitimação do sistema político
para o sucesso da operação: “A política do pós-guerra italiano estava apoiada na separação da Europa
em dois blocos, o democrático-liberal e o comunista. Tal oposição também se fazia presente na Itália,
com a oposição entre os partidos de direita, como a Democracia-Cristã (DC), e os de esquerda, como
o Partido Comunista (PC). Com a queda do “socialismo real” e o arrefecimento do debate ideológico,
as fragilidades do sistema partidário e a corrupção tornaram-se mais evidentes. A deslegitimação do
sistema foi ainda agravada com o início das prisões e a divulgação de casos de corrupção. A
deslegitimação, ao mesmo tempo em que tornava possível a ação judicial, era por ela alimentada: A
deslegitimação da classe política propiciou um ímpeto às investigações de corrupção e os resultados
desta fortaleceram o processo de deslegitimação. Conseqüentemente, as investigações judiciais dos
crimes contra a Administração Pública espalharam-se como fogo selvagem, desnudando inclusive a
compra e venda de votos e as relações orgânicas entre certos políticos e o crime organizado. As
investigações mani pulite minaram a autoridade dos chefes políticos – como Arnaldo Forlani e Bettino
Craxi, líderes do DC e do PCI – e os mais influentes centros de poder, cortando sua capacidade de
punir aqueles que quebravam o pacto do silêncio 2 . O processo de deslegitimação foi essencial para
a própria continuidade da operação mani pulite.”(MORO, Sergio Fernando. Considerações sobre a
operação mani pulite. R. CEJ, Brasília, n. 26, p. 56-62, jul./set. 2004, p. 57.)
89
desnecessária condução coercitiva do ex-Presidente Lula,
evidentemente para estabelecer no imaginário a ideia de
“quem é que manda”.92
Tal situação, ocorreu sob uma intensa onda de
discursos claros de ódio, como a manifestação dos
integrantes da força tarefa do Ministério Público Federal nas
redes sociais em relação a reforma do sistema eleitoral, em
que abertamente atacavam dentro da expressão que usaram
“os políticos”93.
O tempo todo se trabalhou na produção da ideia de
que a política seria ruim, os políticos viciados e o sistema
eleitoral brasileiro condutor de corruptos para o poder,
chegando a questão, a ponto tal, que o Brasil hoje conta com
expressiva parcela da população, a qual dominada por esta
falsa impressão deliberadamente gerada do mundo político,

92
“BRASÍLIA - O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), criticou a
autorização dada pelo juiz federal Sérgio Moro para que a Polícia Federal realizasse a condução
coercitiva - quando a pessoa é obrigada a depor - do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Marco
Aurélio afirmou que esse recurso só deve ser usado quando houver a recusa do intimado em
comparecer, o que, segundo ele, parece não ter sido o caso.— Eu só concebo condução coercitiva se
houver recusa do intimado para comparecer. É o figurino legal. Basta ler o que está no código de
processo — disse Marco Aurélio, acrescentando:— Uma medida de coerção que deve ser o último
recurso para ouvir alguém. Você hoje, por exemplo, é um cidadão e pedem que você seja intimado
para prestar um depoimento. Em vez de expedirem o mandado de intimação, podem conduzir
coercitivamente, como se dizia antigamente, debaixo de vara?O ministro lembrou que não há
informação de que Lula tenha se recusado a prestar depoimento, o que justificaria uma condução
coercitiva.— Não me consta que o ex-presidente da República - e poderia ser um cidadão comum,
não importa - tenha se recusado a comparecer. Ou seja, não me consta aqui que o mandado de
condução coercitiva tenha sido antecedido por um mandado de intimação para comparecer
espontaneamente perante a autoridade — disse Marco Aurélio.O ministro destacou que, em direito,
os fins não podem justificar os meios. Caso isso ocorra, as consequências serão negativas.— Quando
se potencializa o objetivo a ser alcançado em detrimento de lei, se parte para o justiçamento, e isso
não se coaduna com os ares democráticos da Carta de 88 (Constituição) — afirmou Marco Aurélio.”
Leia mais: https://oglobo.globo.com/brasil/ministro-do-stf-critica-autorizacao-para-conducao-
coercitiva-de-lula-18808285#ixzz5AP8OMdsj
93
https://cbncuritiba.com/procuradores-da-forca-tarefa-da-lava-jato-criticam-reforma-politica-que-
sera-votada-na-camara/
90
defende a volta de um regime ditatorial ao país, com todos os
tipos de violências que lhe são inerentes. 94
Não se deve jamais esquecer, inclusive deve ser um
registro inafastável para a posteridade que, no âmbito da
“Lava Jato” houve até mesmo “grampo telefônico” de
conversas entre a Presidente da República com um ex-
Presidente da República, e o vazamento desta conversa, em
seu conteúdo, absolutamente trivial, com ares de escândalo
nacional para promover o impedimento de uma nomeação de
Ministro de Estado, ato discricionário do Presidente da
República, por via do controle do próprio mérito do ato pelo
Poder Judiciário.
A deslegitimação do processo político-eleitoral
brasileiro foi traçada como estratégia necessária ao ataque
que, aparentemente, desde o início, desejava ser feita a
umas das maiores lideranças políticas do planeta, o ex-
Presidente Lula, independente de afeições ou desafeições
ideológicas, alguém que após dois mandatos presidenciais

94
O desejo de produzir operação semelhante a mãos limpas italiana, a partir da deslegitimação do
sistema político e de sua visão claramente negativa da classe política, somada a defesa da
aproximação do Ministério Público e do Judiciário é deixada evidente já em 2004, pelo principal ator
da Operação Lava-Jato, o magistrado Sergio Moro: “No Brasil, encontram-se presentes várias das
condições institucionais necessárias para a realização de ação judicial semelhante. Assim como na
Itália, a classe política não goza de grande prestígio junto à população, sendo grande a frustração
pelas promessas não-cumpridas após a restauração democrática. Por outro lado, a magistratura e o
Ministério Público brasileiros gozam de significativa independência formal frente ao poder político. Os
juízes e os procuradores da República ingressam na carreira mediante concurso público, são vitalícios
e não podem ser removidos do cargo contra a sua vontade. O destaque negativo é o acesso aos
órgãos superiores, mais dependentes de fatores políticos. Destaque também negativo merece a
concessão, por lei, de foro especial a determinadas autoridades públicas, como deputados e ministros,
a pretexto de protegê-los durante o exercício do cargo.” (MORO, Sergio Fernando. Op cit, p. 61.)

91
deixa o governo com a maior popularidade da história
nacional e como uma das vozes mais ouvidas no mundo.
Evidente que para integrantes de movimentos
conservadores, tais como o MBL, os ruralistas e outros, a
exaltação intelectual, nos diferentes países do mundo, de
alguém sempre estereotipado, por eles, pela ausência de
formação universitária e por suas origens de retirante
nordestino e de metalúrgico foi admitida à força, mas jamais
aceita, e, a percepção de que a “Lava Jato” precisava
deslegitimar a estrutura político-eleitoral brasileira conduziu a
que estes movimentos vissem uma oportunidade de
redenção.
Com isso, estes grupos, propagaram o discurso de
ataque ao processo político-eleitoral em todos os meios
disponíveis, houve convocação de manifestações de ruas,
bombardeio inclusive de notícias falsas pelas redes sociais,
encaminhamento de manifestações, entrevistas, releases
para a mídia, em uma ação que dividiu por completo o País,
com parte dele interiorizado do discurso de que o problema
seriam os eleitores e os políticos, estes por serem corruptos
e aqueles por não saberem votar e eleger.
Entre os eleitores, o ataque especial se deu
principalmente aos moradores dos estados mais carentes do
País, em especial Norte e Nordeste, a partir da percepção da

92
grande força eleitoral dos partidos de esquerda nestas
regiões.
Nesse ponto, aliás, é possível perceber o quão
absurdo é o discurso de deslegitimação político-eleitoral
sustentado, pois, na própria “Lava Jato”, a imensa maioria
das pessoas investigadas, julgadas e condenadas são de
estados não considerados carentes e onde estão os eleitores
autoafirmados integrantes de camada intelectual privilegiada,
ou seja, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro, sendo
proporcionalmente insignificante o número de Deputados ou
Senadores eleitos por eleitores, por exemplo, do Nordeste,
acusados na “Lava Jato”.
Claro, isso não quer dizer que a corrupção existe no
Sul e Sudeste e não no Nordeste, e nem que todos os
investigados e mesmo condenado na operação, dentro de
uma lógica democrática de processo, deveriam tê-lo sido,
mas que a tentativa de construção, em especial pelos
moradores dos grandes centros do Sul e do Sudeste, de uma
deslegitimação político-eleitoral, a partir da incapacidade de
votar em não corruptos pelos eleitores das demais regiões é
no mínimo desmentida pela própria investigação que este
discurso tenta justificar, portanto, o discurso é falso e, em
consequência, a justificação para a investigação não existe e
há que se concluir, tudo não passa de um jogo retórico que
ao final objetiva fortalecer estruturas de poder capazes de
93
intervir nas liberdades e nos direitos de todos e fazer ruir a
estrutura político-eleitoral.
Na análise deste item, não se pode deixar de
considerar, em sentido inverso ao contínuo trabalho de
deslegitimação político-eleitoral, a importância que
justamente o poder político e a capacidade eleitoral têm na
construção das nações livres do mundo.
A conquista do voto universal é um marco na
superação das sociedades divididas em castas, sendo que a
luta pela sua garantia se confunde com a própria luta pelo
reconhecimento da condição humana a todas as pessoas,
independente de cor, sexo e origem.95
Quando os primeiros processos eleitorais são
concebidos, eles o são para conferir ares democráticos a um
movimento de manutenção do status quo, mantendo os,
numericamente reduzidos, grandes detentores do capital no
controle pleno do Estado, das riquezas e dos demais seres
humanos, pela persistente objetivização deles.96
Por essa razão, o voto ao início era exclusivo de
detentores de determinado capital e a possibilidade de seu

95
CAÑEDO, Letícia Bicalho (org.). O Sufrágio Universal e a invenção democrática. São Paulo: Estação
Liberdade, 2005.
96
NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. , 2004.
94
exercício por outras camadas da sociedade jamais foi
concedida, mas conquistada.97
Ao passo que hoje se olha com normalidade patrões
e empregados irem votar livremente no mesmo dia, ou o
marido e sua esposa, os negros e os brancos; acaba por se
esquecer que este cenário de universalização é bastante
recente e resultado de lutas intensas pelo reconhecimento da
capacidade humana plena a todas as pessoas.
A deslegitimação político-eleitoral “Lava Jato”
esquece essas lutas para perigosamente se legitimar
deslegitimando o resultado delas, criando a falsa perspectiva
de que o voto universal é ruim; de que existem alguns mais
capazes de decidir o destino da nação do que outros; que o
mundo deve ser lido somente sob a perspectiva dos mais
ricos e, eventualmente, intelectualizados.
Acresce observar que a classe política ofertou, ao
longo da história humana, contribuições importantíssimas,

97
Importante o que Norberto Bobbio expressa: “o alfa e o ômega da teoria política é o problema do
poder: como o poder é adquirido, como é conservado e perdido, como é exercido, como é defendido
e como é possível defender-se contra ele. Mas o mesmo problema pode ser considerado de dois
pontos de vista diferentes, ou mesmo opostos: ex parte principis ou ex parte populi. Maquiavel ou
Rosseau, para indicar dos símbolos. A teoria da razão de Estado ou a teoria dos direitos naturais e o
constitucionalismo. A teoria do Estado potência de Ranke a Meinecke e ao primeiro Weber, ou a teoria
da soberania popular. A teoria do inevitável domínio de uma restrita classe política, minoria
organizada, ou a teoria da ditadura do proletariado de Marx a Lenin. O primeiro ponto de vista é o de
quem se posiciona como conselheiro do príncipe, presume ou finge ser o porta-voz dos interesses
nacionais, fala em nome do Estado presente; o segundo ponto de vista é o de quem se erige em
defensor do povo, ou da massa, seja ela concebida como uma nação oprimida ou como uma classe
explorada, de quem fala em nome do anti-Estado ou do Estado que será. Toda história do pensamento
político pode ser distinguida conforme se tenha posto acento, como os primeiros no dever de
obediência, ou como os segundos no direito à resistência.”(BOBBIO, Norbeto; A era dos direitos;
Campus; Rio de Janeiro; 1992; pág. 143.)

95
sempre contando com pessoas dispostas a doar parte de
suas vidas em prol da edificação de projetos coletivos. A
verdade é que grandes avanços ocorridos, por exemplo, no
campo dos direitos civis, dos direitos humanos, do combate
à miséria, do enfrentamento ao totalitarismo, são o fruto da
ação política.
Mais que isso, a legitimidade da classe política é
indiscutível, independente de eventuais críticas que possam
ser feitas, objetivando sua evolução.
O voto é o mais democrático dos critérios até hoje
concebidos para o acesso ao poder, além de conferir uma
legitimidade muito particular, pois o seu detentor representa
todo o conjunto de pessoas que o elegem e, por mais
desconfortável que seja admitir, pensar diferente disso é
defender que sejam corroídas as estruturas de toda
democracia ocidental.
Também, não se deve esquecer que a classe política
conta com critério ímpar de verificação de desempenho, a
periodicidade das eleições, ou seja, não há integrante da
classe política, em uma democracia, que tenha mandato
permanente, ele é sempre provisório e pode o cidadão pelo
voto aprová-lo ou desaprová-lo a cada lapso temporal98

98
É bastante delicado, quando se avalia sob a ótica da importância do voto e da manifestação de
desejo do eleitor como referenciais da democracia, entender até mesmo legislações, exaltadas como
a lei do ficha limpa, pois, em um última análise não corrige qualquer distorção eventualmente existente

96
Nessa perspectiva de análise a legitimação da “Lava
Jato” produziu a deslegitimação da própria democracia
brasileira, pois ao trazer a retórica maximizada por ações, por
exemplo, do MBL e da grande mídia, no sentido de que o
político é ruim e a vontade manifestada por grande parte dos
eleitores equivocadas, estabeleceu a possibilidade de
censura indireta transformando o Poder Judiciário, nesta
matéria, em espécie de censor da vontade popular, capaz de
dizer em quem as pessoas podem votar, quem o Presidente
da República pode nomear Ministro, quando e quem pode ser
indultado, prender legisladores federais, suspender
mandatos, enfim, praticar todo e qualquer ato de intervenção,
muito além das possibilidades inerentes à Justiça Eleitoral.
Evidente que existam situações problemáticas na
classe política, mas imaginar que isto garante a possibilidade
de intervenção irrestrita do único poder cujos membros não
são escolhidos por processo eleitoral, significa primeiro
trabalhar com o equívoco de que este não possui também
situações problemáticas e, sempre, todas as suas ações são

no processo e eleitoral, conseguindo tão somente deslegitimar a vontade do voto e atribuir o peso de
algumas vontades, não eleitas, como sobrepondo por vezes a vontade da maioria da população
brasileira. Vale destacar que o autor do presente ensaio, desde sua edição sempre manifestou posição
crítica a lei do ficha limpa, entendendo ferir a presunção de inocência e produzindo censura antecipada
sobre a vontade do eleitor.

97
positivas e todos os seus membros invariavelmente
irretocáveis.
Além disso, esse entendimento não suplanta o
simples campo de observação de que por mais problemáticas
que seja as situações encontradas nos Poderes Executivo e
Legislativo, a intervenção excessiva neles representa
geração de desequilíbrio sob o ponto de vista da tripartição
dos poderes, e, total submissão das manifestações
democráticas, o que indiscutivelmente conduz o país para o
modelo totalitário de Estado.
Em um esboço para que se compreenda o ocorrido:

Democracia
Voto Ocidental
Universal Contemporânea
Processo
Político -
Eleitoral

Lava-jato

combate por movimentos estratégia de deslegitimação


de defesa da lava-jato à processo político-eleitoral
capacidade de escolha de
determinados eleitores
deslegitimação da própria
Democracia Ocidental
Contemporânea

Produção do Modelo
Totalitário de Estado

98
Nessa análise, é particularmente relevante destacar
que o Poder Judiciário nos Estados democráticos é de
relevância ímpar, justamente pelo papel que exerce dentro
do desenvolvimento do equilíbrio entre os poderes e da
garantia do regime democrático.99
Por certo, o Poder Judiciário possui centralidade na
manutenção da democracia, pois de sua interpretação da
Constituição e dos demais instrumentos normativos é que há
a estruturação do equilíbrio entre os poderes do Estado, bem
como, sendo-lhe deferida a função de racionalizar os conflitos
na sociedade, o que, em última análise, significa que no
Poder Judiciário se tem o edificador da pacificação social,
elemento fundamental para que movimentos sectários e de
cunha autoritário não encontrem repercussão na sociedade.
Dessa forma, a estratégia de deslegitimação do
poder político construída pela “Operação Lava Jato”,
conforme já analisado, faz ruir as próprias bases
estruturantes da democracia a partir de uma ação do Poder
Judiciário, a quem incumbe preservá-la, o que confronta com
o próprio projeto constitucional de Poder no Estado brasileiro.

99
Vale lembrar que justamente “o Poder Judiciário é o principal guardião da cidadania, por ser o órgão
do Estado incumbido de proteger o particular e a sociedade contra abusos de quem, transitoriamente,
detém o poder, ou mesmo, proteger os particulares dos desrespeitos e agravos perpetrados uns contra
os outros. É o Poder Judiciário que tem a função de garantir à sociedade que o conjunto de direitos
básicos da cidadania será rigorosamente observado, não sendo aceitas atitudes contrárias aos
interesses maiores da mesma.” (TASSE, Adel El. A “crise” no Poder Judiciário. Curitiba: Juruá, 2001,
p. 55.)
99
9. A retomada do pensamento oligárquico

“Somente um país inferior, ordinário,


insignificante pode ser democrático. Um
povo forte heroico tende para a
aristocracia.”
Benito Mussolini

A “Lava Jato”, desde o seu início, foi apresentada,


não somente como um processo criminal que visava apurar
a prática de corrupção, mas como um operativo, o qual
alguns, açodadamente, até atribuíram o peso de instituição
nacional, que pretendia produzir uma transformação na
sociedade brasileira.
Após alguns anos desta operação investigativa
criminal já produtora de centenas de prisões e geradora de
horas de narrativa midiática, há condições de verificar
algumas interrogantes:

 Há indicativo que após a “Operação Lava


Jato” a corrupção no Estado brasileiro
diminuiu?
 A “Operação Lava Jato” criou uma nova
forma de agir do brasileiro em relação ao
poder público?
 Os direitos e garantias limitados para punir
mais, tornaram o Brasil um país mais

100
seguro e mais bem situado
economicamente?
 Houve alguma alteração no exercício do
poder após a “Operação Lava Jato”?
 O que se pode antever em relação ao
exercício do poder no Estado brasileiro
após a “Lava Jato”?

Pois bem, partindo para o enfrentamento das


interrogantes acima, o que, empiricamente, se percebe é que
a “Operação Lava Jato” não produziu quaisquer efeitos na
diminuição da corrupção do Estado brasileiro, ao contrário,
tendo sido funcionalizada por grupos claramente viciados
para afastar outros grupos que com ele dividiam o poder e
assumir sozinhos o controle de toda máquina pública,
inclusive dos mecanismos de corrupção nela estruturados.
Não por outra razão, já após o golpe de 2016,
algumas situações pontuais apresentadas que,
aparentemente fugiram ao controle desejado, tiveram que ser
rapidamente corrigidas pela anulação da emblemática
delação dos “irmãos Batista”, no caso JBS, pois trazem ao
conhecimento da sociedade brasileira que os operativos de
corrupção no Estado brasileiro seguem e em ritmo acelerado,
por conhecidos casos como o do parlamentar, interlocutor
direto do Presidente da República, saindo correndo de uma
pizzaria com uma mala de dinheiro ou o ex-Ministro que criou
um bunker em uma apartamento para guardar em malas e

101
caixas milhões em dinheiro vindos, aparentemente, de fontes
ilícitas.100
Não se diga, com estes dois casos acima referidos,
que a “Lava Jato” não pode ser acusada de seletividade, pois,
na verdade, ao observador atento, o que eles demonstram é
justamente a sua profunda seletividade.
Melhor explicando:

1. pelas redes sociais foram geradas, as hoje


conhecidas, “fake news” de que o filho do ex-
presidente Lula seria o dono da empresa
Friboi, vinculada ao grupo JBS. 101

2. Essa falsa informação claramente gerou


interesse investigativo sobre o Mercado
brasileiro de carne, o que deu margem à
“Operação Carne Fraca” que chegou
a contundente verificação de que
aparentemente este mercado apresentava
inúmeras irregularidades e práticas massivas

100
Veja TOGNOLLI, Claudio; SILVA, Bernardino Coelho. Nome aos bois: a história das falcatruas da
JBS. São Paulo: Matrix, 2017.
101
“Esse é um dos mais conhecidos boatos da política brasileira. A história falsa diz que o filho do ex-
presidente Lula, Fábio Luís Lula da Silva, seria sócio majoritário da JBS, grupo dono da marca de
carnes Friboi. A farsa ganhou força com o crescimento da empresa e a veiculação das já famosas
propagandas com Tony Ramos. Na internet, mensagens pediam o boicote da marca “do filho do Lula”.
O boato tomou tanta proporção que foi desmentido pela própria empresa. Em comunicado, a JBS
esclareceu que “Os nomes dos maiores acionistas da JBS podem ser encontrados no site, lá será
possível identificar que do total de ações, 44% são de propriedade de uma holding chamada FB
Participações, que é formada por membros da família Batista, fundadora da JBS.”(
https://exame.abril.com.br/brasil/7-boatos-da-politica-brasileira-que-podem-ter-enganado-voce/)
102
de corrupção estatal, porém que nada tinha
a Friboi ou a JBS relacionadas com o ex-
Presidente Lula, mas sim, pasme-se, com os
movimentos de apoio ao processo “Lava
Jato”, como pessoas ligadas à bancada
ruralista do Congresso Nacional.102
3. Momento seguinte é desenvolvido
verdadeiro ataque à própria investigação
conhecida como “Operação Carne Fraca”,
sendo o Delegado de Polícia Federal que a
presidiu hostilizado amplamente pela mídia
de massa, e, ao final, alguns atores
secundários presos e mantidos
indefinidamente presos, sendo realizada
delação premiada de proporção concessória

102
“Mapa. Sigla do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Esplanada dos Ministérios,
Bloco D, 8º Andar, sala 847, Brasilia/DF. Esse é o 19º endereço de uma lista de 71 alvos de busca e
apreensão da Operação Carne Fraca, a maior da história da Polícia Federal, deflagrada ontem em
sete Unidades da Federação, por decisão da 14º Vara da Justiça Federal, de Curitiba. Trata-se de
uma das salas do Gabinete do Ministro (GM/Mapa) Blairo Maggi.A informação está disponível na lista
de prisões (temporária ou preventiva), conduções coercitivas e de diligências de buscas e apreensão
divulgada ontem pela própria PF. Mas passou despercebida pela imprensa. O 71º e último item da lista
de buscas e apreensão é o Mapa, sem endereço detalhado. Apesar da dupla menção, os jornais não
publicaram notícias sobre a visita dos agentes ao ministério. Apenas registraram em imagens a
presença no prédio (como fez a Folha), sem informar que o alvo era o gabinete.Mas a sala 847
aparece especificamente no item 19. Nela trabalham alguns assessores do ministro. Entre eles os que
trabalham na Assessoria Parlamentar (Aspar/GM), na Divisão de Relacionamento Político e
Informações (DRPI/Aspar/GM) e na Divisão de Acompanhamento do Processo Legislativo
(DAPL/Aspar/GM). A PF não informou o alvo exato. O chefe de gabinete, Coaraci Nogueira de
Castilho, trabalha na sala 805. Maggi, na sala 806. No mesmo andar.”
(https://deolhonosruralistas.com.br/2017/03/18/carne-fraca-pf-fez-busca-e-apreensao-no-gabinete-
de-blairo-maggi/ acesso: 21/03/2018).
103
de benefícios ímpar com os verdadeiros
donos da JBS.103
4. Na delação dos donos da JBS, eles trazem
ao conhecimento público um esquema de
corrupção muito além do atribuído à
esquerda brasileira e praticado justamente
pelos que a combatem, sendo na sequência
então anulada a delação por eles realizada e
dela retirado todo valor.104

A seletividade, portanto, é evidente, e seria sempre,


pois o poder punitivo sempre o é. A questão é que a evidência
desta seletividade, na hipótese em comento, apenas
fortalece a conclusão de que a “Lava Jato”, desde o início, é
incapaz de promover quaisquer alterações no quadro de
corrupção do Estado brasileiro e a verdade é que sequer há
possibilidades de afirmar que este tenha sido, em algum
momento, seu objetivo, pelos seus principais
impulsionadores.

103
“A Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) contestou nesta segunda-feira (20) as
críticas de representantes do governo e do agronegócio que apontaram excessos na divulgação dos
resultados da Operação Carne Fraca, que desvendou esquema de corrupção envolvendo fiscais do
Ministério da Agricultura e produtores de carne.Em nota, o presidente da Fenapef, Luís Boudens,
afirma que "na intenção de proteger setores do mercado e do governo, há uma orquestração para
descredenciar as investigações de uma categoria que já provou merecer a confiança da
sociedade."Para Boudens, "a Operação Carne Fraca é de suma importância, uma vez que as
empresas e servidores públicos envolvidos negligenciaram de forma grave a saúde dos consumidores"
e "reforça o compromisso dos federais com combate à corrupção no Brasil e com os interesses da
sociedade." (https://g1.globo.com/economia/noticia/associacao-de-policiais-federais-defende-
operacao-carne-fraca.ghtml. Acesso em 23/03/2018).
104
Veja LEITÃO Miriam, A verdade é teimosa. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017.
104
A esse propósito é fundamental observar que a
realidade demonstra que propagar discurso favorável à
“Operação Lava Jato” não significa ser contrário à corrupção,
assim como, manifestar-se contra ela, em hipótese alguma
significa qualquer apoio à prática da corrupção.
O combate à corrupção, em espécie de refundação
do Estado brasileiro a partir da “Lava Jato”, superada a sua
retórica, mostra-se absolutamente distante da realidade, sem
qualquer embasamento minimamente técnico que lhe dê
suporte, até porque, vale ressaltar, nada mais é que uma
manifestação punitiva, com os vícios que sempre a
acompanham, como a já destacada seletividade e sua
incapacidade para a resolução de conflitos ou problemas
sociais, mais que isso, tende, como em todo exercício
punitivo, ampliar a ocorrência das situações que diz
combater, pois sabidamente, ao optar pela opção punitiva, o
Estado abandona qualquer política pública, estas sim
dotadas de eficácia para equacionar a situação problemática
apresentada.105

105
A questão do incremento das medidas sancionatória, diz respeito ao fato de que, “ tem-se
associado a impunidade a uma falha no sistema jurídico-penal dos países latino-americanos, que
conduziria a um abrandamento da resposta punitiva estatal e, por via de conseqüência, visualiza-se a
superação da problemática com o agigantamento das hipóteses sancionáveis na sociedade, assim
como com o incremento de medidas mais rigorosas, para contrapor a ação tida como delituosa. O
raciocínio é falho e centra-se em análises reducionistas de situações que são socialmente
conjunturais, ignorando por completo que as soluções propostas somente conduzem a um
agigantamento interventivo do Estado, em detrimento das liberdades fundamentais. O pânico gerado
na sociedade latino-americana atual decorre do chamado discurso político do crime, em que as
condutas catalogadas pela lei penal como delituosas são exploradas de forma sensacionalista pelos
veículos de comunicação de massa, assim como determinados setores da sociedade, como parte da
105
E nesse sentido é que se pode afirmar não existirem
alterações minimamente perceptíveis na forma de agir da
população brasileira, no que se refere à sua relação com a
corrupção.
Igualmente, não há dados que indiquem que tenham
diminuído as práticas associadas à corrupção, em qualquer
âmbito das relações sociais, não havendo notícias de
enfrentamentos ou choques reais entre defensores de um
novo comportamento baseado na probidade por antigos
praticantes de atos desviados.
Ocorre que, conforme é sabido, a pretexto dessa
propaganda de reconstrução nacional sem corrupção foram
sistematicamente admitidos desrespeitos aos direitos e
garantias fundamentais, além de ser constituído um modelo
de processo penal absolutamente autoritário.106
O estado de inocência do acusado passou a ser
inexistente no Brasil, como dado real, pois em todos os casos
tiveram que justificar as prisões processuais e todas as

classe política, do ministério público e da polícia, em especial interessados na apresentação do crime


de maneira monstruosa.”(TASSE, Adel El. O que é a impunidade. Curitiba: Juruá, 2009, p.11-12.)
106
A verdade sobre o crescimento da sistema penal autoritário é que “a vingança indiscriminada não
é um fenômeno exclusivo de culturas supostamente primitivas mas que se verifica também nas mais
avançadas civilizações atuais, sempre se contrapõe a ela a atitude de relativa compreensão com o
transgressor que está implícita na imposição de castigos de algum modo delimitados, quer dizer sobre
o resguardo de garantias.”(HENDLER, Edmundo S. Las garantías penales y procesales: un
enfoque histórico-comparado; Presentación. Buenos Aires: Del Puerto, 2004, pág. II. Livre
tradução).

106
prisões processuais se deram como indefinidas, claramente
antecipando a pena sem formação de culpa.
Além disso, em uma das mais lamentáveis decisões
dos últimos tempos, o Supremo Tribunal Federal
expressamente negou aplicação ao artigo 5º LVII da
Constituição Federal, admitindo execução provisória de pena
privativa de liberdade, ou seja, sacrificando,
antecipadamente, a liberdade, um dos bens pessoais mais
importantes, em um país que não admite sequer que tenha
eficácia executiva plena uma decisão de natureza puramente
patrimonial, no âmbito cível, se pendentes recursos para as
Superiores Instâncias.
As conduções coercitivas se converteram em nefasta
moda, pela qual um cidadão que nunca foi intimado a
comparecer ao juízo e nunca se recusou a fazê-lo é
conduzido forçadamente, produzindo-se total objetivização
do ser, em prol da manifestação de espécie de prepotência
estatal, manifestada em um poder interventivo ilimitado e que
não depende de qualquer requisito.
Regras consolidadas como direitos fundamentais do
processado ou condenado, em todos os povos desenvolvidos
do planeta, tem sido tacitamente revogadas, pela não
aplicação de institutos como o do crime continuado, do
antefato e do pós fatos impunível, da necessidade de
demonstração de existência efetiva de recursos ilícitos para
107
o crime de lavagem de dinheiro e do concurso de agentes
com sua conversão, em todas as hipóteses, para crime de
organização criminosa.
Além disso, o processo, cada vez mais, encontra
pessoas a fazerem dele um ato de imposição de força do
Estado Juiz, independente do que prescreve a Constituição
Federal e as regras processuais penais, havendo total
conivência com hipóteses evidentes de comprometimento da
imparcialidade do julgador, desde que o seu
comprometimento se dê em favor dos interesses da
acusação e, ao final, da habilitação do poder punitivo.
Assim, a mídia passou a se converter em prova,
criando a espiral do lançar deliberadamente e, por vezes, de
forma ilegal, com quebra da existência de sigilo, informações
parciais para divulgação dos grandes veículos de
comunicação de massa, para depois trazer estas mesmas
informações ao processo como prova ou manifestação de
clamor público.
Nesse sentido, mesmo no Brasil que não tem
histórico de ouvir as parcelas mais alijadas e marginalizadas
da sociedade, a opinião pública nunca foi tão confundida com
opinião publicada.
A situação atual raia um quadro em que teria que se
reconhecer um cenário coletivo de transtorno dissociativo de
identidade, pois todas as pesquisas e manifestações
108
populares deixam evidente que, no mínimo, metade da
população brasileira, bem como a imensa maioria das
opiniões de juristas com estudo aprofundado no Direito Penal
ou no Processo Penal, apresentam contrariedade com os
métodos empregados pela “Operação Lava Jato”, com as
interpretações jurisprudenciais que dela tem advindo,
colocando em, no mínimo, desconfiança seus resultados e
imparcialidade. Enquanto isso, a “opinião publicada” é no
sentido inverso, ou seja, de que uma unidade nacional pró-
lava jato, a favor de seus métodos e das construções
cerceadoras de direitos que dela tem-se feito.
A que se ter cuidado, porém, pois na medida em que
se apresenta claramente a dicotomia do parágrafo anterior,
quando alguém se refere sobre a opinião pública para
prender, para cercear direitos, para macular a Constituição
Federal, não está falando a verdade, pois o que manifesta é
simples preocupação com a opinião publicada e com o que
sobre si próprio se publicará.
Com efeito, a “Operação Lava Jato” não pode ser
açodadamente afirmada como a manifestação da vontade
geral da população brasileira e, na medida em que nenhuma
alteração sensível ocorreu no tema da corrupção após seu
implemento, vale verificar se produziu alguma influência em
outros setores.

109
Nesse passo, sim, são perceptíveis as alterações, a
iniciar pela questão econômica, a partir do completo
esfacelamento da economia brasileira, perda de credibilidade
internacional das instituições e empresas nacionais,
alteração da lógica enérgica brasileira, de país com controle
predominante em seu território e poder de aquisição de
fontes energéticas e de sua transformação em outros países,
inclusive da maior potência mundial, os Estados Unidos, para
um país que vende o controle enérgico nacional para outros
países, predominantemente, para os Estados Unidos.
Ao passo que países como os Estados Unidos
orientam responsáveis pela persecução criminal,
independente do caráter da investigação, a preservar as
empresas e instituições nacionais, estes mesmos países,
pela sua parcela mais conservadora, exaltam as ações da
“Lava Jato” de fragilização das principais empresas
brasileiras e total retirada de credibilidade das instituições
pátrias.107
Com isso, o que merece destaque é a indisfarçável
reestruturação do Brasil como nação controlada e
economicamente frágil, após 22 anos de construção com
claro objetivo de estabelecê-lo como protagonista no cenário
mundial.

107
http://usinfo.state.gov/usa/infousa, http://thomas.loc.gov/, www.uscourts.gov/understand02/ e
https://www.justice.gov/.
110
No que tange à estruturação do poder como impacto
da “Lava Jato”, é ainda mais evidente, pois, sem qualquer tipo
de “maquiagem”, poucas pessoas têm assumido o controle
pleno de todas as decisões do País e, independente de não
contarem com sequer um voto a legitimar suas ações para
definição de políticas públicas e desenvolvimento do Estado,
têm exercido poder de censura sobre as decisões do
executivo mesmo dentro de sua competência reservada e
alterado à legislação e até à Constituição Federal, por força
de interpretações, claramente, confrontantes com os textos
normativos, sem qualquer aval do poder constitucionalmente
estabelecido para promover alterações legislativas.
No mesmo sentido, foi fortalecido o pensamento de
que haveria menor capacidade decisória pela imensa maioria
da população brasileira, a partir da já tratada estratégia de
deslegitimação do processo político-eleitoral.
O somatório dos fatores destacados nos dois
parágrafos antecedentes, inevitavelmente, conduz a
conclusões no sentido de que foi de todo reintroduzido de
forma institucional, no Brasil, o pensamento oligárquico,
senão Veja:

1. OLIGRAQUIA

111
 Concentração do poder por um pequeno grupo
do mesmo partido, classe ou família, em geral
retoricamente fundamentado por sua maior
capacidade e ou integridade em relação ao geral
das pessoas
2. ESTRUTURA DE PODER PÓS “LAVA
JATO”:
Integrantes de um mesmo grupo tem
concentrado todas as funções dos Estado, mais
deslegitimação do processo político-eleitoral,
mais retórica de incapacidade da grande maioria
dos eleitores de efetuar escolha adequada de
pessoas integras como seus representantes

 produz concentração do poder por um


pequeno grupo da mesma classe com base na
retórica de sua maior capacidade e integridade
em relação ao geral das pessoas

112
3. COMPARANDO:

OLIGARQUIA PÓS-LAVA JATO


concentração do poder por concentração do poder por
um pequeno grupo do um pequeno grupo da
mesmo partido, classe ou mesma classe com base
família, em geral na retórica de sua maior
retoricamente fundamentado capacidade e integridade
por sua maior capacidade e em relação ao geral das
ou integridade em relação ao pessoas.
geral das pessoas.
Resultado de inexistência de diferenças entre os dois
modelos.

A partir dessa clara resultante de reafirmação do


modelo oligárquico no Brasil, há evidente manifestação de
choque entre o poder que foi concedido pela população
brasileira e o exercício de poder que tem se feito.108

108
Como reflexão oportuna, é interessante observar o posicionamento de um dos maiores teóricos do
absolutismo: “o único caminho para erigir semelhante poder comum, capaz de defendê-los contra a
invasão dos estrangeiros e contra os ataques alheios, assegurando-lhes de tal sorte que por sua
própria atividade e pelos frutos da terra possam se nutrir e viver satisfeitos, é conferir todo seu poder
e força a um homem o uma assembléia de homens, todos os quais possam reduzir suas vontades a
uma vontade. Isto equivale dizer: eleger um homem ou uma assembléia de homens que represente
sua personalidade e que cada um considere como própria e reconheça a si mesmo como autor de
qualquer coisa que faça ou promova quem representa sua pessoa, naquelas coisas relativas á paz e
a segurança, que ainda, submetam suas vontades à vontade daquele e seus juízos ao juízo
dele.”(HOBBES, Thomas, Leviatã, Madrid: Sarpe, 1983, p. 139 e p. 179.)
113
Nesse sentido, resulta, de forma bastante clara, que
a concentração oligárquica do poder jamais foi objeto de
outorga pela população, o que gera o evidente quadro de
apropriação ilegítima do poder, hipótese que, em via de
regra, acaba por produzir o processo inverso ao desejado por
quem se apropria.
A apropriação do poder, em última análise, visa
estabelecer capacidade de decisão dotada de força absoluta
e de cumprimento obrigatório, e, este objetivo, acaba sendo
sempre frusto, pois inexorável ganham espaço e legitimidade
as ações de desobediência civil.109
Vale observar que a própria construção dos
chamados “direitos civis” foram precedidas de ações
contundentes de desobediência, ora exaltadas como
movimentos legítimos e importantíssimos no
desenvolvimento das sociedades, justamente porque quando
a população não outorga o poder a uma pessoa ou grupo, o
seu exercício se torna ilegítimo e as ações dele decorrentes
continuamente questionadas e não incorporadas na
sociedade.110

109
Veja THOREAU, Henry David. Caminhada. São Paulo: Dracena, 2011.
110
A propósito da desobediência civil na formação dos direitos civis, “para Arendt, a desobediência
civil negra conseguiu, principalmente, trazer o “dilema americano” para o espaço aberto do cenário
político. Quando Rawls define desobediência civil, aprofundando o princípio de desobediência
civil de Thoreau, aponta quatro características presentes em atos de desobediência, características
que vão estar presentes no Movimento dos Direitos Civis.” PAIVA, Angela Randolpho. Católico,
protestante cidadão: uma comparação entre Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Centro edelstein
de pesquisas sociais, 2010 p. 133.
114
Nesse sentido, já começam a ocorrer claras
manifestações de desobediência na sociedade brasileira,
manifestações estas que têm contando com ausência de
repulsa pela maioria da população.
Alguns exemplos são bastante claros, como o do
Presidente do Senado, o qual enfrentou uma ordem de
afastamento do Supremo Tribunal Federal, claramente
promotora de intervenção de um poder em outro; ou a
crescente onda de simpatia na população por foragidos da
justiça, condenados em processo ainda não transitado em
julgado, os quais buscam caminhos para burlar a execução
provisória da pena privativa de liberdade.
O que se pretende desta feita, é apenas realizar uma
verificação dos fenômenos sociais em movimento no Brasil,
sem qualquer adjetivação a eles e, nesse sentido, a investida
de um poder sobre os demais, com a incorporação de suas
competências, as quais, claramente, não têm produzido o
ganho de credibilidade e respeitabilidade talvez imaginado,
mas ao contrário, dentro do que historicamente costuma
ocorrer quando há apropriação forçada do poder, a perda de
credibilidade, com questionamentos permanentes sobre o
conteúdo das decisões e já o inaugural desenvolvimento de
ações de desobediência civil.
Igualmente, como sintoma claro da perda de
credibilidade que a apropriação forçada do poder produz,
115
percebe-se o crescente surgimento de manifestações de
fragilização da ideia de integridade associada aos integrantes
do grupo controlador, com questionamentos sobre seus
rendimentos, propriedades, critérios de escolha e de
processamento na hipótese de falhas, punições aplicáveis,
formação, entre outras tantas situações que nos últimos
meses têm sido continuamente debatidas pela sociedade
brasileira.
Dessa forma, de posse de todo acima escrito, e
retomando as indagações iniciais do presente capítulo, o que
se têm como resultantes da “Lava Jato” não é a redução da
corrupção, mas a clara perda de credibilidade nacional e de
suas instituições, aliadas ao início de um processo de
desobediência civil na sociedade brasileira, pela não
aceitação da tentativa de intervenção de um poder nos
demais.
Em um quadro demonstrativo, que já na etapa final
do presente texto acaba por servir de justificativa ao seu
título, tem-se após a “Lava Jato”:

116
ASPECTO RESULTADO
redução da corrupção no Não
Brasil
melhora das condições Não
econômicas no País
fortalecimento das Não
instituições nacionais
melhora na garantia dos Não
direitos civis
maior aceitação da pauta dos Não
direitos humanos
desenvolvimento do modelo Não
democrático de processo
fortalecimento do modelo Sim
processual penal totalitário
redução de direitos e Sim
garantias fundamentais
redução da estrutura Sim
democrática
concentração do poder por Sim
poucos
deslegitimação do voto Sim
universal
relegitimação do poder Sim
punitivo
reafirmação da seletividade Sim
penal
estabelecimento da lógica da Sim
tortura aceitável
desenvolvimento de Não
propostas legislativas para a
redução das situações
conflitivas na sociedade

117
ASPECTO RESULTADO
punição de alguns políticos e Sim
empresários acusados de
corrupção
apresentação de projeto de Sim
lei com conteúdo autoritário
propagação da fixação de Sim
penas abusivas com
desrespeito às regras penais
como concursos formal e de
agentes, crime continuado,
ante e pós fato impunível
abandono à dogmática penal Sim
protetiva do cidadão
Invasão nas liberdades de Sim
forma descontrolada
(conduções coercitivas,
prisões processuais regra e
permanentes etc.)
funcionalização do direito Sim
penal e do processo penal em
prol de maior punitividade
desmoralização dos direitos Sim
humanos, associando sua
defesa com pessoas
coniventes com o crime
afastamento do princípio da Sim
proporcionalidade em
matéria penal
novo processo de Sim
prisionalização, com
derrocada do avanço
tendente à limitação da prisão
para os crimes com violência
ou grave ameaça à pessoa

118
Nenhuma teoria, posição, estratégia, ação pode ser
considerada boa ou ruim em uma sociedade, senão pelos
efeitos concretos que produz e a evidência de que a
“Operação Lava Jato” produziu efeitos devastadores sobre a
lógica democrática, sobre o desenvolvimento do País e da
população e sobre o Direito Penal e o Processo Penal, os
quais não se justificam pela punição de alguns políticos e
empresários acusados de corrupção, que é apontada como
a grande conquista havida.
Isso, porque, ignorando por completo que a própria
exaltação da punição vai contrário ao real equacionamento
das causas do conflito manifestado e é evidentemente uma
mera manifestação vingativa, e trabalhando com a lógica dos
que defendem o punitivismo, a punição de algumas pessoas,
mesmo que de camadas dificilmente atingidas, não é um
contraponto suficiente para justificar que se pulverize em toda
sociedade um modelo totalitário de poder punitivo, com
supressão da estrutura democrática.111
Dito isso, não há resultados que consigam justificar o
desmonte do Direito Penal e do Processual Penal protetivo
do cidadão contra o poder do Estado, após toda a evolução

111
É importante que se tenha em conta que, “o poder punitivo exercita-se ao longo da história humana,
independente da existência de estrutura jurídica a ampará-lo, sendo manifestado em determinados
momentos como um ato de força do soberano sobre os cidadãos, sendo essa uma das razões pelas
qual a construção do Estado Democrático de Direito traz como fundamental reflexo a limitação do
mesmo, pelos princípios e regras jurídico-penais.”(TASSE, Adel El. Lesividade nos Crimes contra a
ordem tributária. Matérias Atuais da Justiça Federal. Curitiba: Juruá, 2009, p. 13.)

119
humana havida ao longo dos séculos, com o objetivo de
salvaguardar as pessoas contra o autoritarismo em defesa do
Estado Democrático.
Igualmente, os grandes confrontos havidos com os
direitos humanos são sempre e de todo injustificados, pois
apesar da exaltação às punições e da associação aos que
apregoam a defesa dos direitos humanos – como fracos e
defensores do crime, o que garante a sobrevivência da
própria espécie humana e seu reconhecimento como
formada por seres capazes de não se autodestruírem é o
respeito permanente por este conjunto de direitos
decorrentes apenas da condição de ser humano.
Assim, a conclusão única possível, a partir da
significação real da operação criminal em análise no presente
texto, é contra “Lava Jato”.

120
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